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Rui Belo Rio Maior 1933 1978

Rui Belo

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Alguns poemas de Ruy Belo

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Page 1: Rui Belo

Rui Belo

Rio Maior

1933 – 1978

Page 2: Rui Belo

Este céu passará e então

teu riso descerá dos

montes pelos rios

até desaguar no nosso

coração

Page 3: Rui Belo

É triste ir pela vida como

quem

regressa e entrar

humildemente por engano

pela morte dentro.

Page 4: Rui Belo
Page 5: Rui Belo

Digam que foi mentira, que não sou

ninguém, que atravesso apenas ruas

da cidade abandonada

fechada como boca onde não

encontro nada:

não encontro respostas para tudo o

que pergunto nem na verdade

pergunto coisas por aí além

Eu não vivi ali em tempo algum.

Page 6: Rui Belo

Mesmo que não conheças

nem o mês nem o lugar

caminha para o mar pelo

verão

Page 7: Rui Belo

Amei a mulher amei a terra

amei o mar

amei muitas coisas que hoje

me é difícil enumerar

De muitas delas de resto

falei.

Page 8: Rui Belo

Tem o amor a arte de tornar

eterno aquele que por amor

tem de morrer

e até de morrer jovem

amiúde pois os deuses amam

aquele que perece em plena

juventude

e assim se fixa petrifica e

permanece

Page 9: Rui Belo
Page 10: Rui Belo

Ver-te é como ter à minha frente

todo o tempo

é tudo serem para mim estradas

largas estradas onde passa o sol

poente é o tempo parar e eu

próprio duvidar mas sem pensar

se o tempo existe se existiu

alguma vez e nem mesmo meço a

devastação do meu passado

Page 11: Rui Belo

Nomeei-te no meio dos meus

sonhos chamei por ti na

minha solidão troquei o céu

azul pelos teus olhos e o meu

sólido chão pelo teu amor.

Page 12: Rui Belo

e um olhar perdido é tão

difícil de encontrar

como o é congregar ventos

dispersos pelo mar

Page 13: Rui Belo

Esta manhã gostaria de ter

dado ontem um grande passeio

àquela praia onde ontem por sinal

passei o dia

É difícil a vida dos homens

senhor

Os anjos tinham outras

possibilidades e alguns deles foi o

que tu sabes

Esta terra não está feita para

nós

Mesmo que ela fosse diferente

nós quereríamos talvez outra terra

talvez esta de que agora dispomos

Page 14: Rui Belo

Pra nascer e morrer seria

necessário tanto?

É difícil a vida difícil a morte.

Por vezes os homens juntam-se

todos ou quase todos e organizam

grandes manifestações.

Mas nada disso os dispensa

da grande solidão da morte de

termos de morrer cada um por

nossa conta.

Page 15: Rui Belo

Requiem por um cão

I

Cão que matinalmente

farejavas a calçada

as ervas os calhaus os seixos

os paralelepípedos os restos de

comida

os restos de manhã a chuva

antes caída

e convertida numa como que

auréola da terra cão que isso

farejas cão que nada disso já

farejas

Page 16: Rui Belo

II

Foi um segundo súbito e

ficaste

ensanduichado esborrachado

comprimido

e reduzido debaixo do rodado

imperturbável do pesado camião

Que tinhas que não tens diz-

mo ou ladra-mo

ou utiliza então qualquer

moderno meio de comunicação

Page 17: Rui Belo

III

Eras vivo e morreste nada

mais

teus donos se é que os tinhas

sempre que de ti falavam

falavam no presente falam no

passado agora Cão que morreste

tão caninamente

Page 18: Rui Belo

IV

cão que morreste e me fazes

pensar

parar até que o polícia me diz

que siga em frente

Que se passou então?

Um simples cão que era

e já não é

Page 19: Rui Belo

No teu amor por mim há uma

rua que começa

Nem árvores nem casas

existiam antes que tu

tivesses palavras e todo eu

fosse um coração para elas

Tocam sinos e levantam voo

todos os cuidados

Ó meu amor nem minha mãe

tinha assim um regaço como este

dia tem

E eu chego e sento-me ao lado

da primavera

Page 20: Rui Belo

Aqui eu fui feliz aqui fui terra

aqui fui tudo quanto em mim se

encerra aqui me senti bem aqui o

vento veio aqui gostei de gente e

tive mãe em cada árvore e até em

cada folha aqui enchi o peito e

mesmo até desfeito eu fui aquele

que da vida vil se orgulha Aqui

fiquei em tudo aquilo em que

passei um avião um riso uns olhos

uma luz eu fui aqui aquilo tudo até

a que me opus

Page 21: Rui Belo
Page 22: Rui Belo

Morreu a mais bela mulher do

mundo tão bela

que não só era assim bela

como mais que

chamar-lhe marilyn

devíamos mas era reservar

apenas para ela o seco sóbrio

simples nome de mulher em vez

de marilyn dizer mulher

Não havia no fundo em todo o

mundo outra mulher

Page 23: Rui Belo

I

O portugal futuro é um país

aonde o puro pássaro é possível

e sobre o leito negro do asfalto da

estrada

as profundas crianças desenharão

a giz

esse peixe da infância que vem na

enxurrada

e me parece que se chama sável

Page 24: Rui Belo

II

Mas desenhem elas o que

desenharem

é essa a forma do meu país

e chamem elas o que lhe

chamarem

portugal será e lá serei feliz

Poderá ser pequeno como este

ter a oeste o mar e a espanha a

leste

Page 25: Rui Belo

III

tudo nele será novo desde os

ramos à raiz

À sombra dos plátanos as crianças

dançarão

e na avenida que houver

à beira-mar

pode o tempo mudar será verão

Page 26: Rui Belo

IV

Gostaria de ouvir as horas do

relógio da matriz

mas isso era o passado e podia ser

duro

edificar sobre ele o portugal futuro

Page 27: Rui Belo

Os pássaros nascem na ponta das árvores*

As árvores que eu vejo em vez de fruto dão

pássaros

Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores

Os pássaros começam onde as árvores acabam

Os pássaros fazem cantar as árvores

Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam

movimentam-se

deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao

reino animal

Como pássaros poisam as folhas na terra

quando o outono desce veladamente sobre os

campos

Page 28: Rui Belo

Gostaria de dizer que os pássaros emanam das

árvores

mas deixo essa forma de dizer ao romancista

é complicada e não se dá bem na poesia

não foi ainda isolada da filosofia

Eu amo as árvores principalmente as que dão

pássaros

Quem é que lá os pendura nos ramos?

De quem é a mão a inúmera mão?

Eu passo e muda-se-me o coração

• Texto recomendado pelas Metas Curriculares do 9 º ano.

Page 29: Rui Belo

Os estivadores

Só eles suam mas só eles sabem

o preço de estar vivo sobre a terra

Só nessas mãos enormes é que cabem

as coisas mais reais que a vida encerra

Outros rirão e outros sonharão

podem outros roubar-lhes a alegria

mas a um deles é que chamo irmão

na vida que em seus gestos principia

Onde outrora houve o deus e houve a ninfa

eles são a moderna divindade

e o que dantes era pura linfa

é o que sobra agora da cidade

Page 30: Rui Belo

Vede como alheios a tudo o resto

compram com o suor a claridade

e rasgam com a decisão do gesto

o muro oposto da gravidade

Ode marítima é o que chamo à ode

escrita ali sobre a pedra do cais

A natureza é certo que muito pode

mas um homem de pé pode bem mais

• Texto recomendado pelas Metas Curriculares do 9 º ano.

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