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Salim Miguel: “temas ou personagens é que me procuram” Entrevista concedida a Viegas Fernandes da Costa e Darlan Jevaer Schmitt Florianópolis, 2008

Salim Miguel: temas e personagens me perseguem

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Entrevista realizada por Viegas Fernandes da Costa e Darlan Jevaer Schmitt com o escritor Salim Miguel. Florianópolis, 2008.

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Salim Miguel: “temas ou

personagens é que me procuram”

Entrevista concedida a Viegas Fernandes da Costa e Darlan Jevaer Schmitt

Florianópolis, 2008

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Salim Miguel: “temas ou personagens é que me procuram”

Nascido no Líbano em 1924, Salim Miguel chegou ao

Brasil ainda criança. Depois de viver sua adolescência no

município catarinense de Biguaçu, mudou-se para

Florianópolis onde, nas décadas de 1940 e 50, integrou o

movimento modernista nas artes catarinenses: o Grupo Sul.

Juntamente com sua esposa, a também escritora Eglê

Malheiros, escreveu o roteiro do primeiro longa-metragem

catarinense, o filme “O Preço da Ilusão”. Em 1965, depois

de ser preso pelo Regime Militar, mudou-se para o Rio de

Janeiro, onde editou a revista Ficção e trabalhou para a

Editora Bloch e de onde retornou em 1979. Jornalista

renomado com passagem por diversos jornais e revistas

nacionais, Salim Miguel dirigiu também a editora da

Universidade Federal de Santa Catarina e a Fundação Cultural Franklin Cascaes. Autor

de 30 livros, entre contos, crônicas, romances, depoimentos e impressões de leitura, dos

quais se destacam: “A Morte do Tenente e Outras Mortes”, “A Voz Submersa”, “Nur na

Escuridão” (que recebeu o prêmio de melhor romance de 1999 pela Associação Paulista

de Críticos de Arte, e o Prêmio Zaffari & Bourbon da 9º Jornada Nacional de Literatura

de Passo Fundo), “A Vida Breve de Sezefredo das Neves, poeta” (indicado para o

Prêmio Jabuti) e “Mare Nostrum”.

Doutor Honoris Causa pela UFSC e reconhecido como intelectual do ano pela União

Brasileira dos Escritores e Folha de S. Paulo, recebendo o Troféu Juca Pato, Salim

Miguel recebeu o Sarau Eletrônico em seu apartamento, ao lado do campus da UFSC de

Florianópolis, onde concedeu o presente depoimento no mês de setembro de 2008 e às

vésperas de ver publicado seu mais novo romance, “Jornada com Rupert”.

Nesta entrevista o escritor e jornalista conta sobre a parceria que estabeleceu com um

livreiro cego e que lhe oportunizou as primeiras leituras, ainda em Biguaçu, relembra

sua infância, a experiência com o Grupo Sul e os momentos difíceis por que passou

durante a Ditadura Militar brasileira e fala da sua história no jornalismo, das suas

aventuras literárias e da sua experiência como escritor.

(Entrevista: Viegas Fernandes da Costa / Fotos: Darlan Jevaer Schmitt)

Gostaríamos de começar com a tua história de vida. Como se deu a tua vinda para

o Brasil e o teu primeiro contato com os livros?

Eu começaria com a palavra árabe “Maktub”, que quer dizer “estava escrito”. Estava

escrito que o destino da minha família seria o Brasil. E quando nós saímos do Líbano,

estávamos sendo encaminhados para os Estados Unidos. Como a cota para libaneses já

estava esgotada, nós viemos fazer aquilo que ainda hoje se faz: ir ao México e de lá, por

meio de contrabando, entrar nos Estados Unidos. Quando chegamos em Marselha,

houve um imprevisto. A vista do meu pai estava com uma inflamação e não pudemos

continuar a viagem. Ficamos alguns dias em Marselha, o dinheiro escasseava, os irmãos

da minha mãe, meus tios que moravam nos Estados Unidos, mandaram algum recurso,

mas o primeiro navio que saía vinha para o Brasil. Então meu pai disse assim: “eu tenho

uma irmã morando no Rio de Janeiro e um irmão no Norte” – que nunca foi localizado.

Então o projeto era o seguinte. “Vamos para o Rio de Janeiro, ficamos alguns dias com

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a minha irmã” – meu pai dizendo – “e de lá retomamos o projeto para os Estados

Unidos”. Foi aí que entrou “maktub”. Quando chegamos aqui, em pouco tempo, meu

pai disse para minha mãe: “vamos ficar pelo menos alguns anos por aqui porque estou

gostando deste tal de Brasil”. E estes “poucos anos” duraram a vida toda. Ele nunca saiu

do Brasil, nem para voltar ao Líbano! Só que nós fomos parar em Magé, na casa de

minha tia, e lá ele fez o que fazem todos os imigrantes libaneses – não só eles, mas

também os sírios, os judeus, que começam mascateando – : ele começou mascateando.

Mas não estava dando certo. Então ele se lembrou que tinha uns primos em

Florianópolis. Veio para Florianópolis e aí “maktub” de novo! Uma correspondência

mal explicada, enquanto ele pensava em voltar para o Rio, porque era tudo igual, fez

com que a família chegasse em Florianópolis. Ficamos uns dois, três meses aqui, e o

primeiro lugar em que fomos morar foi em São Pedro de Alcântara, primeiro núcleo de

colonização alemã em Santa Catarina. Ficamos lá um ano e pouco e fomos parar em

Rachadel, outro núcleo de colonização alemã. Depois fomos para Alto Biguaçu. Mas o

resto da minha infância e a minha adolescência passei em Biguaçu. Por isso digo que

sou um líbano-biguaçuense. Comecei a ser alfabetizado em árabe e em alemão, porque

tanto em São Pedro de Alcântara como em Rachadel não havia escola que ensinasse em

português. Mas quando cheguei em Biguaçu, entrei imediatamente no grupo escolar, e

nessa besteira de criança não quis mais estudar nem o alemão nem o árabe. Meu pai

dizia “aprende, continua estudando, um homem que sabe dois idiomas vale por dois”.

Ele tinha sido professor primário no Líbano. Eu me recusei a estudar e hoje, a não ser

alguns palavrões em alemão e árabe, não sei mais nada.

Houve, nas comunidades onde vocês se instalaram, alguma resistência ao fato de

vocês serem libaneses, algum tipo de preconceito?

Em São Pedro de Alcântara sim. Embora meu pai não tivesse nenhuma vocação para o

comércio, acho que – vendo hoje, à distância – os alemães tinham menos vocação do

que ele. Então ele estava tirando a freguesia dos comerciantes alemães. E um dia houve,

na missa de domingo, um padre que falou contra os alemães que estavam preferindo

comprar naquele turco do que com os alemães. De repente ninguém mais comprava na

venda do meu pai. A família foi obrigada a sair e fomos para Rachadel, que é outro

núcleo de colonização alemã. Mas lá já foi diferente. Tanto que meu pai logo se tornou

amigo de alguns alemães, e um deles passou a me ensinar o alemão. Mas como lá

também comercialmente não estava indo bem, fomos para Alto Biguaçu, que hoje é o

município de Antônio Carlos. Ali o núcleo alemão já era muito rarefeito, mas lá

também comercialmente não estava dando certo e meu pai resolveu ir para Biguaçu,

onde pelo menos havia algumas famílias descendentes de libaneses, e foi onde ficamos

por doze anos. Minha infância e adolescência passei em Biguaçu.

E na tua família havia uma cultura do livro, ou ele se dá mais tarde na tua vida?

Havia este contato. Minha mãe era de uma família tradicional, e além do árabe ela havia

estudado russo e inglês. Meu pai era de uma família humilde, mas foi professor

primário. E além disso, naquela época, estudava-se árabe e francês no Líbano. E ambos

gostavam muito de ler. Então eu comecei a me interessar pelo livro com meu pai me

contando – a minha mãe também, mas mais ele – aquelas histórias orais que passam de

geração para geração, um pouco modificadas, mas que mantêm aquela tradição da

literatura oral, que é uma coisa muito bonita. Contar histórias é uma coisa muito bonita.

Então eu comecei a me interessar pelo livro ali. Quando fui alfabetizado, e aí é outro

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fato curioso, entrei no grupo escolar José Brasilício de Sousa sabendo pouca coisa de

português. No fim do ano a professora bateu palmas, chamou a atenção dos alunos, me

apontou e disse: “vejam só, chegou ontem aqui, mal sabia algumas palavras de

português misturadas com árabe e alemão; hoje fala, lê e escreve melhor que vocês!

Não se envergonham diante deste turco?” Eu desabei no choro, não sei se pelo elogio ou

pelo turco. Porque meu pai sempre dizia: “não

aceite que te chamem de turco.” Porque a Síria e

o Líbano durantes anos foram dominados pelo

império otomano, pelos turcos. E a professora

me deu de presente um tinteiro que tenho até

hoje. Aos oito anos comecei a ler absolutamente

tudo que encontrava. Quando não tinha nada

para ler, eu lia bula de remédio. E devo muito a

almanaques. Foi em almanaques que li, aos oito

anos, pela primeira vez, Machado de Assis, o

“Soneto à Carolina”, que é um dos mais belos sonetos da língua portuguesa e,

certamente, o melhor de toda a poesia machadiana. Até porque a praia dele não era bem

a poesia, embora deixou um volume enorme de poesias.

Além dos almanaques, quais as outras fontes de acesso à literatura? Havia

bibliotecas?

Em Biguaçu praticamente não havia bibliotecas nem nas escolas. Havia uma meia dúzia

de livros, e poucas pessoas tinham bibliotecas. Tinha alguns livros, mas que não podiam

ser chamados de biblioteca. Até que certo dia, lá pelos meus dez ou doze anos, eu me

lembrei que havia uma livraria de um poeta cego chamado João Mendes. Fui lá e fiz

uma proposta que ele não aceitou. Mas ele me fez uma outra proposta, que eu aceitei. A

minha era a de ele me emprestar livros e eu me comprometia a não amassá-los e não

sujá-los quando fosse devolvê-los, depois que os tivesse lido. E quando eu tivesse os

tostõezinhos para comprar um livro, eu compraria. Ele disse “não, vamos fazer

diferente. Tu vens aqui, lês para mim em voz alta o tempo que tu quiseres todos os dias,

porque eu também tenho fome de leitura.” E acertamos isso. Durante alguns anos li em

voz alta para ele. Todas as vezes em que conto esta história as pessoas me perguntam, e

acho que tu vais me perguntar: “que livraria fantástica era essa que pôde, durante anos,

alimentar vocês?” Ora, o que ele tinha não daria para nos alimentar a fome de livros por

quinze dias. Mas ele tinha experiência. Ele tinha um primo em Florianópolis, que era

poeta também, que gostava muito de ler e tinha uma excelente biblioteca, e passou a nos

mandar livros. Além disso, ele começou a comprar livros em consignação. Comprava

quarenta livros de uma editora e noventa dias depois devolvia. Mas não podia devolver

os quarenta livros. O que ele fazia? Obrigava parentes e amigos a comprar alguns dos

livros, devolvia os demais, mas nós já tínhamos lido os quarenta. Então através disso

tomei conhecimento da literatura brasileira e universal. Foi ali que li Shakespeare, “As

alegres comadres de Windsor”, em uma edição portuguesa muito feiazinha por sinal.

Foi ali que li pela primeira vez um livro em espanhol, “Don Segundo Sombra” de

Ricardo Güiraldes. Não sei se ele ou e eu entendemos todo o espanhol, mas o negócio é

que devoramos o livro. Então foi ali a minha formação. O primeiro romance que li na

vida, não sei de onde me apareceu este romance, foi “O Tronco do Ipê” do José de

Alencar. Relendo este livro há pouco tempo, pela terceira vez, notei uma coisa que não

havia observado na segunda leitura. Na primeira nem pensar! Tem um conselheiro,

neste livro, que é o conselheiro Acácio, que é o primo Basílio do Eça de Queiroz. É o

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mesmo tipo enfatuado que diz coisas banais com uma pose como que se estivesse

dizendo as últimas maravilhas do mundo. E aí fui para a internet para ver se o livro do

Eça era posterior. Eu achava que era, mas não tinha certeza. Porque se o livro do Eça

fosse anterior, o José de Alencar poderia ter copiado aquele conselheiro. Mas não. O

livro do José de Alencar é de 1873 e o livro do Eça é de 1878. Será que o Eça tomou

conhecimento?

É possível supor que, pelo fato de seres um devorador de livros, o interesse pela

escrita se dá de uma forma quase natural. Quando começas a escrever e perceber

que o que escrevias tinha qualidade? E como se dá o processo que leva à

publicação dos teus textos?

Bem, são duas perguntas e por isso vou responder de duas maneiras diferentes. Lá pelos

dez anos de idade, meu pai me vendo devorar tudo o que era impresso, aqueles símbolos

mágicos, perguntou assim: “o que pretendes fazer na vida?” E respondi: ler e escrever.

Aí a minha mãe, que era uma mulher sensível, mas com os pés no chão, disse: “não vai

ser fácil.” Meu pai então disse: ”fácil não vai ser, mas se ele persistir, conseguirá.”

Então se há uma palavra que me acompanha até hoje, esta é persistir. Persistência é

fundamental em tudo que a gente quer fazer. Então aos dez anos eu já pensava não só

em ler, mas também em escrever. Naquela época, depois das estripulias do dia, porque

eu não só lia, eu era uma criança normal que gostava de nadar, de correria, de jogar

futebol, até de brigar com os amiguinhos, de noite a gente se reunia na frente das casas e

cada um contava, a sua maneira, aquilo que estava na sua lembrança do dia. Eu fazia

diferente. Quando eu chegava em casa, pegava uma folha de papel, fazia uns traços na

vertical e na horizontal, botava algumas palavras e transformava aquelas coisas do dia

numa matéria de jornal ou numa crônica. Então, lá pelos dez anos, eu já brincava de

jornalista e escritor. Tive a preocupação de não publicar cedo e de ler, reler e rasgar.

Porque rasguei e coloquei no lixo muito mais do que publiquei. Fiquei em Biguaçu até

os meus 19 anos, já tinha alguma coisa manuscrita, mas nada daquilo foi publicado. Foi

só chegar em Florianópolis e, aquilo que me faltava de leitura, li na Biblioteca Pública

do Estado, que tem um acervo enorme. Foi em 1943 que nós mudamos para

Florianópolis. Veio a família toda.

Quais os motivos para a mudança?

Em Biguaçu, durante a guerra, nem a vendola do meu pai estava dando para as despesas

da casa. Vendia-se muito fiado e recebia-se pouco retorno. Também as pessoas de

Biguaçu, São Miguel, Tijuquinhas, Ganchos, de Alto Biguaçu, daquela região toda que

frequentava a venda do meu pai e as outras, também estavam tendo dificuldades

financeiras. Então ele resolveu se aventurar em Florianópolis, onde nunca passou de um

dono de venda. Quando faleceu, aos 60 anos de Brasil ou mais, a única coisa que deixou

foi uma casa hipotecada na Caixa Econômica Federal. A primeira lembrança que tenho,

e a mais exata, é a de que nós chegamos em maio de 1943 e no começo de 44

começamos a nos reunir e conversar, eu estava com exatos 20 anos. Desse primeiro

grupo, três acabariam no Grupo Sul: Ody Fraga, Antônio Paladino, Cláudio Bousfield

Vieira. Ody Fraga fez uma trajetória no teatro e depois no cinema. Antônio Paladino

faleceu de tuberculose aos 23, 24 anos. E Cláudio Bousfield Vieira nunca mais quis

saber de literatura depois da Revista Sul. Aí sim nós começamos, primeiro trocando

originais com aquela velha história: leia o meu que eu leio o teu. Depois começamos a

furar os espaços dos jornais. Tem colaboração nossa, não só minha, mas do Ody, do

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Paladino, depois da Eglê Malheiros, do Aníbal Nunes Pires, a quem nós devemos muito,

em todos os jornais de Santa Catarina, que na época, nos anos cinquenta, eram quatro:

O Estado, Diário da Tarde, A Gazeta, Diário da Manhã. Tem colaboração nossa em

todos os jornais. Então começamos a publicar ou crônicas ou poemas. E como a minha

praia não era a poesia, então comecei a publicar crônicas e anotações sobre livros.

E é o que vai te perseguir pela vida inteira, porque muitos dos teus livros são sobre

livros.

Com este que está saindo agora, “Minhas Memórias de Escritores”, são sete livros onde

faço anotações sobre aquilo que estou lendo.

Interessante observar que muitos dos teus romances também tratam de livros. “As

Confissões Prematuras”, por exemplo, é a angústia de um escritor. “A Vida Breve

de Sezefredo das Neves, poeta” também. Então muitos dos teus livros têm como

tema o livro.

Sim, têm como tema o livro. Mas de repente, em 1946, nós colaboramos com o jornal

Folha da Juventude. Em 1947 o Antônio Paladino, o Cláudio Bousfield Vieira, o Aldo

Sagaz e eu criamos um jornalzinho datilografado chamado Cicuta. A tiragem era de

quatro exemplares e tinha uma frase que caracterizava o jornal: “leitor, por favor, não

faça com este jornal o que faz com os demais”. Tudo isso não bastava. Então nós

resolvemos partir para uma coisa maior, que era a Revista Sul. Naquela época, dos fins

dos anos 40 aos fins dos anos 50, eram cerca de quarenta publicações de jovens em

todos os estados brasileiros. Não tinha estado que não tivesse a sua revista de literatura.

Só que não queríamos nenhum contato com órgãos oficiais, com poderes estabelecidos.

Queríamos inteira independência. Também não tínhamos como fazer a revista porque

não tínhamos recursos. Todos nós éramos classe média ou classe média baixa. Então o

Ody disse assim: “por que nós não fazemos um espetáculo de teatro para angariar

recursos?” As duas ou três primeiras revistas foram bancadas por dois espetáculos de

teatro; a primeira com três peças de um ato. No segundo espetáculo nós lotamos a casa.

Florianópolis sempre gostou de teatro. A população pediu um segundo espetáculo, nós

pedimos um tempo, e em lugar da peça do Ody, “Um homem sem paisagem”, nós

adaptamos um conto do Sartre, ao qual demos o nome de “Estátuas Volantes”, embora o

conto não se chamasse assim. O conto era do livro “O Muro”, mas não me lembro do

título original. E muita gente em Florianópolis, depois, achava que nós tínhamos

inventado o tal de Sartre.

Qual era o ambiente intelectual da Ilha neste contexto em que vocês estavam

montando o Grupo Sul?

Havia um grupo intelectualizado, só que eles haviam estacionado no tempo. Eu me

lembro de, talvez, uma das figuras mais proeminentes do estado de Santa Catarina dizer

assim: “vejam só, ‘tem uma pedra no meio do caminho’. Isso é poesia? E esse

Drummond hoje está sendo considerado um poeta! Na minha época ele não serviria nem

para varrer o chão de um poeta!” Então era esse o ambiente na época. Tanto que quando

surgiu a Revista Sul, nós tínhamos publicado um caderno chamado “Os Velhos e os

Novos” e, ou intencionalmente, ou por esquecimento, não convidamos essa figura para

participar desse caderno. Então ele ficou indignado porque se considerava a maior

autoridade em Goethe, não só em Santa Catarina. A esta altura nós já estávamos com

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uma página, chamada “Página do Círculo de Arte Moderna”, no jornal O Estado. Então

nós tivemos a mais duradoura polêmica sobre literatura e cultura em Santa Catarina, que

durou um ano no jornal O Estado. Nós tínhamos espaço uma vez por semana e ele

diariamente, quando quisesse tinha espaço para nos atacar. No fim – ele tinha sido dono

do jornal O Estado, que depois foi vendido para o Aderbal Ramos da Silva – ele disse

que não era concebível, como ex-dono do jornal, que ele, uma autoridade intelectual

respeitada, fosse atacado por um grupo de jovens que nem sabiam começar uma frase

por um pronome oblíquo. Assim nós perdemos a página. Mas este debate durou um

ano!

E qual era o nome dele Salim?

Professor Altino Flores.

Quando começas a atuar como jornalista?

Comecei trabalhando aqui, primeiro como free-lance, depois como correspondente de

jornais do Rio Grande do Sul e de revistas do Rio de Janeiro e colaborando,

eventualmente, nos principais órgãos de imprensa do país. Tem colaboração minha no

Estadão, no Diário de Notícias, no Correio da Manhã, no Correio do Povo. Costumo

dizer que tenho contos e textos, não de crítica, mas de anotações sobre livros, do

Oiapoque ao Chuí. A minha primeira carteira de jornalista profissional foi assinada pelo

Diário da Manhã de Florianópolis em 1951.

Trabalhei dois anos nesse jornal, depois comecei a

trabalhar como correspondente de jornais e revistas.

Mais adiante uma revista, que durou dois números,

mas que levou dois anos para tirar dois números,

chamada BN, que naquela época era Bossa Nova, e

que me assinou a carteira. Depois um jornal

chamado Opinião Pública. E depois do Golpe,

quando fui preso e fui obrigado a sair de Santa

Catarina, no Rio trabalhei por 13 anos na Bloch

Editores. Comecei como copidesque, depois redator, repórter especial e por fim chefe

de redação de uma revista chamada Tendência.

Salim, sabemos que a Eglê é a grande companheira da tua vida. Em vários dos teus

livros vemos dedicatórias a ela. Como vocês se conheceram?

Em 1947, quando estávamos montando as peças de teatro. A Eglê eventualmente tinha

colaborado no jornal Folha da Juventude. Quando estávamos montando o espetáculo,

precisávamos de atrizes, e a Eglê foi uma dessas atrizes. Depois ela trabalhou em uma

outra peça chamada “Cândida”, uma peça em três atos do Bernard Shaw. Na verdade,

desde o primeiro momento, a gente sentiu que tinha uma coisa muito próxima, tínhamos

interesses comuns, uma visão de mundo mais ou menos parecida. Começamos a

namorar em 1947. Um amigo nosso diz que foi em um jantar que nós fizemos depois

dos dois espetáculos com as três peças, porque ainda sobrou um trocadinho para a gente

fazer um jantar porque ninguém é de ferro. Ele disse que naquele momento percebeu

que nós estávamos de namoro, a Eglê e eu. Como naquela época a gente não namorava

hoje e amanhã estava junto, nós levamos até 1952 entre namoro, noivado e casamento.

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Mas eu costumo dizer que nós estamos juntos há exatos 61 anos! Desde 1947! Na

verdade eu não seria quem sou sem a Eglê.

Teus primeiros livros são de contos, e depois vem o romance “Rede”...

Sim, meus dois primeiros livros são de contos: “Velhice e outros contos”, de 1951, e

“Alguma Gente”, de 1953. “Rede”é de 1955. Todos eles pela Sul. Meu projeto era um

livro a cada dois anos. Quando publiquei “Rede”, sentei para refletir e cheguei à

conclusão que o mais importante não é publicar; o importante é o que e como se

publica. Porque na verdade o escritor, desde o início dos tempos, trabalha com alguns

poucos temas. A maneira dele trabalhar esses temas, a maneira dele resolvê-los, é que

diferencia e identifica um escritor do outro. Então passei exatos 18 anos sem publicar

livros. Eventualmente publicava um conto, mas passei a me dedicar mais ao jornalismo

e às anotações de leituras, escrevendo sobre livros. Só em 1973, já residindo no Rio de

Janeiro, e graças ao Carlos Jorge Appel, um amigo meu de Brusque que hoje é uma

figura da intelligentsia gaúcha, acabei reunindo alguns dos contos publicados em jornais

e revistas num livro chamado “O Primeiro Gosto”. O título do livro era “Os nossos

iguais”, mas o Appel achou que este título não traria muito interesse para os leitores.

Então uma das epígrafes era de um poema de Camões, que fala do primeiro gosto, foi

quando sugeri “O Primeiro Gosto” e ele achou que estava bom. Este livro ainda não me

satisfez, embora eu hoje ache que pelo menos três contos do livro tenham alguma

validade. Parei outros seis anos e disse para a Eglê: “Eglê, vou fazer mais uma tentativa,

se não der certo vou ficar como jornalista, talvez passe para o cinema, mas vou parar

com literatura porque não estou fazendo nada que me satisfaça”. Em 1979 publiquei um

livro chamado “A Morte do Tenente e Outras Mortes” que foi considerado o melhor

livro de contos daquele ano. E este, na verdade, me satisfez. E tem uma introdução do

Fausto Cunha onde, em alguns pontos, ele diz assim: “tem um conto chamado ‘Aranha’

que, além de ser um dos melhores contos da literatura brasileira, marca um novo

momento na literatura de Salim Miguel”; e ele cita mais três ou quatro contos desse

livro. Aí eu disse para a Eglê: “acho que agora tenho o meu caminho na literatura. Se

vou fazer coisa melhor do que esse não sei, mas agora sei que vou continuar”. Em 1984

publiquei “A Voz Submersa”, que teve uma boa aceitação e uma boa vendagem, e não

parei mais.

Uma das grandes dificuldades para o escritor radicado em Santa Catarina é

chegar a uma grande editora. Normalmente ele consegue publicações mais

localizadas, mas poucos são os autores que conseguem dar este salto para uma

editora maior. No teu caso, desde a década de 1980 já publicas por editoras de

âmbito nacional. Como conseguiste chegar a estas editoras?

Vou dizer uma coisa, não sou melhor nem pior que outros escritores de Santa Catarina.

Hoje podemos dizer que temos em Santa Catarina escritores, em todas as áreas e não só

na ficção, que não deixam nada a desejar a escritores de outros estados. Só que eu tive a

“sorte” de ser preso e por isso tive que sair de Santa Catarina. No Rio, embora eu

tivesse feito na imprensa tudo o que se possa imaginar, trabalhei mais na área de

cultura, e com a Laura Sandroni, o Cícero Sandroni, o Fausto Cunha e a Eglê Malheiros

fizemos uma revista chamada “Ficção”, que durante quatro anos fez um mapeamento do

conto no Brasil, do passado e do presente. Com isso nós cinco nos tornamos uma

referência, e isso me ajudou. Ou seja, morando no Rio, já tendo feito essa revista,

tornou-se mais fácil, para mim, conseguir espaço nas editoras do Rio, de São Paulo, de

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Brasília e de Porto Alegre. Se examinares meus livros, verás que a maioria deles foram

publicados por editoras destas regiões. Mas repito aqui que não sou melhor, também

não sou pior do que outros escritores de Santa Catarina, não vou bancar o falso

modesto.

Como surgiu a idéia de filmar o longa-metragem “O Preço da Ilusão”?

Nós criamos o primeiro clube de cinema de Santa Catarina, que tinha como presidente o

Armando Carreirão. Aí nós passamos a trazer não só filmes importantes, como também

a comprar livros, não só a Eglê e eu, mas vários do grupo. Tenho uma razoável

biblioteca sobre cinema, não só de história do cinema, mas sobre argumento, roteiro e

tudo o que diz respeito ao cinema. Em 1956 nós pensamos: “já estamos encharcados de

ver filmes e ler sobre cinema, por que não partimos para o nosso próprio filme?” Todo

mundo achou isso uma loucura. E era uma loucura! Mas é boa essa loucura dos jovens,

e dos velhos também! Então fizemos contato com todo o pessoal do grupo para que

apresentassem sinopses para um argumento de filme. E o mais viável, por vários

aspectos, era o da Eglê e meu. Foi aprovado. Começamos a preparar o roteiro. No

roteiro tivemos a ajuda de um amigo chamado E. M. Santos. Estava tudo pronto, sim,

mas precisávamos de recursos. Fizemos então outra coisa inimaginável em termos de

Florianópolis dos anos de 1950: saímos vendendo cotas deste filme. E através das cotas

conseguimos tornar viável este filme. Nenhum de nós tinha coragem de dirigir o filme,

por isso pegamos um diretor do Rio Grande do Sul que tinha trabalhado como diretor

assistente em um longa-metragem de lá e tinha feito alguns curtas. Trouxemos de São

Paulo, para fazer a fotografia do filme, um jovem que tinha trabalhado com Alberto

Cavalcanti, importamos os equipamentos e começamos o filme. O filme tem duas

linhas. A primeira é uma crônica de uma cidade pequena, que era Florianópolis. a

segunda veio porque nós éramos muito marcados pelo expressionismo alemão e pelo

neo-realismo italiano, e o filme procura fundir estas duas tendências. Quando o filme

ficou pronto – a gente sempre acha que está fazendo uma obra-prima – nós vimos que

não era uma obra-prima e que ele tinha vários problemas que nós não tínhamos

conseguido solucionar. Então o filme foi apresentado em Santa Catarina, em duas ou

três cidades fora e desapareceu durante uns dois anos. Depois uma atriz de São Paulo

disse que tentaria recuperar o filme, desde que fossem feitas algumas modificações e ela

entrasse no filme. Mas antes pediu que fosse feita uma cópia de 16 milímetros. Nós

estávamos morando no Rio de Janeiro quando, certa noite, telefonou Ricardo Ramos,

grande amigo nosso, filho do Graciliano Ramos, dizendo: “Ô Salim, você disse que o

filme de vocês não vale nada, não vou dizer que é uma obra-prima, mas não é tão ruim.

Está na média do que se fazia no Brasil naquela época.” “Mas como é que você está me

dizendo uma coisa dessa?” “É que ontem à noite, na TV Gazeta, tinha um programa de

cinema brasileiro e passou “O Preço da Ilusão”, a cópia de 16 milímetros.” “Não brinca

Ricardo!” “Passou, eu vi, minha mulher viu e estou te telefonando para dizer isso!” Isso

foi lá pela metade da década de 1970. Nós saímos atrás dessa cópia de 16 milímetros,

jamais conseguimos a cópia, e o que existe para provar que o filme foi feito são os oito

minutos finais. Quem projetava os filmes na TV Gazeta era um grego. Consegui o

telefone dele e liguei para ele. Nós ficamos sabendo que ele tinha brigado com a TV

Gazeta e tinha levado filmes que eram do acervo da emissora, e um deles era “O Preço

da Ilusão”. Ele me disse: “isso é uma mentira deslavada, querem me prejudicar, nunca

tive esse filme na mão!” Depois o diretor do filme também telefonou para ele, o nome

do diretor era Nilton Nascimento: “me ligou um tal de Salim Miguel, e o que eu disse

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para ele vou te dizer: não tenho nada a ver com esse filme, nunca projetei nada na TV

Gazeta!”

E o filme continua perdido...

Existia uma cópia em 35 milímetros, das três que foram feitas, com o sujeito que

projetava os filmes em Florianópolis. Ele era o responsável por todos os cinemas,

embora não fosse o dono. O Carreirão deixou sob a guarda dele uma cópia de 35

milímetros. Um dia um dos participantes do filme, que tinha feito uma ponta, disse para

o Carreirão: “me empresta este teu filme, eu vou levar e percorrer Santa Catarina

dizendo venham conhecer Florianópolis e o primeiro filme feito em Florianópolis”.

Carreirão, que já estava em outra e já não queria mais saber de cinema e nem de

literatura, emprestou e nunca mais cobrou a devolução do filme. E até hoje não se sabe

onde foi parar esta cópia. Que o cara andou projetando pelo interior, andou. Fez em São

José, Lages, Criciúma, Itajaí, isso em fins dos anos sessenta quando eu já estava no Rio.

Sobre o Regime Militar. Sabemos que foste preso e que tiveste que ir para o Rio de

Janeiro. Depois a Eglê também foi presa. O que desencadeou a tua prisão? Qual

foi o argumento utilizado pelas forças de segurança para te prender?

Bem, a minha prisão foi uma coisa fantástica! Eu era chefe do escritório da Agência

Nacional em Santa Catarina. A Agência Nacional era o órgão de comunicação do

Governo Federal. Ao mesmo tempo eu era assessor de imprensa do governador Celso

Ramos. Eu estava saindo do gabinete de relações públicas do governo, onde eu

trabalhava, e estava indo para os Correios para passar uma mensagem para o Rio de

Janeiro. Isto no dia 2 de abril. Mas disse: “vou tomar um cafezinho no ‘Ponto Chic’

antes de passar a mensagem.” Chego lá, peço um cafezinho, está lá um amigo, lembro-

me até hoje, eu estava pronto para tomar o cafezinho quando vejo a rua cheia de

policiais, civis e uma ambulância. Naquela época a rua era aberta, não como hoje,

fechada para veículos. Chega um comissário perto de mim e disse: “estás preso!” “Pô,

deixa de brincadeira e me deixa tomar um café em paz!” Resumo. “Estás vendo a

ambulância ali? Vamos levá-lo ao 5º Distrito Naval.” “Que brincadeira é essa?” “Não é

brincadeira! Nós temos uma autorização do 14º Batalhão de Caçadores para prendê-lo.”

E aí fiz uma coisa que hoje eu não faria de maneira alguma; recusei-me a ir para o 5º

Distrito Naval e a entrar na ambulância. Isso durou quase uma hora, e haja gente

circulando em torno daquilo! Até que de repente, acho que esse comissário mandou

alguém se informar e voltou dizendo assim: “tudo bem, quartel da polícia militar!”

“Está certo.” “Entra na ambulância!” “Não. Já disse que não estou doente e não vou

entrar na ambulância! Vamos fazer o seguinte. Sei muito bem onde é o quartel. Vou

pegar um táxi e vocês podem ir de ambulância!” “Vai de táxi, mas dois soldados vão

junto.” Os dois soldados chegaram para mim: “podemos ir no seu táxi? Porque se nós

formos em outro, vai sair do nosso bolso e nós não ganhamos pra isso!” (RISOS) “Tudo

bem, não tenho nada contra vocês.” Fui de táxi, desci lá na Praça Getúlio Vargas, na

entrada do quartel militar. O comissário já estava lá e me entregou ao sub-comandante

da polícia, que tinha sido oficial de gabinete do Celso Ramos, e nós dois trabalhamos

juntos e várias vezes viajamos juntos. Ele me olhou e disse assim: “poxa Salim, é isso!

Tu falavas demais, dizias o que querias dizer e não devias e agora estás aqui preso!”

“Vou te dizer uma coisa. Isto comigo não é nada. Eu quero ver, amanhã ou depois, teu

chefe Juscelino Kubitschek estar pior do que eu.” E não deu outra! Pouco depois

cassaram o Juscelino. Fiquei 48 dias preso, e as alegações eram duas: primeiro a de que

Page 11: Salim Miguel: temas e personagens me perseguem

eu era chefe do núcleo do Partido Comunista de Santa Catarina. Eu nunca participei de

partido político nenhum! Não acredito em partidos políticos, e estamos vendo hoje o

que eles são. Sempre fui um homem de esquerda, embora hoje isto nem se deva mais

dizer, mas continuo sendo um homem de esquerda. Mas diziam que eu era chefe do

Partido Comunista e que tinha feito a Eglê entrar no partido porque eu não queria

aparecer. Ela era filiada, mas isso nada tinha a ver com nosso relacionamento de marido

e mulher e de pessoas que se gostam e até hoje continuam. Além disso, eu era sócio da

Livraria Anita Garibaldi. Foi a primeira livraria a trabalhar com livros estrangeiros, de

todas as tendências, inclusive livros de esquerda e comunistas. Mas era um ponto de

referência em Santa Catarina. Foi a única livraria em todo o Brasil, na pacata

Florianópolis, que foi queimada. Isso cinco dias depois de eu ter sido preso. Como o

Brasil é um país surrealista, devo a minha soltura não só, mas principalmente, a um dos

escritores mais importantes de Santa Catarina chamado Adonias Filho. Adonias Filho

era um homem ligado aos militares. Quando o diretor geral da Agência Nacional foi

obrigado a fugir, Josué Guimarães, um excelente jornalista e romancista, o Adonias

assumiu a direção da Agência Nacional. Eu o conheci no Rio de Janeiro através do

Jorge Lacerda, governador de Santa Catarina que morreu em um acidente de aviação. E

o Adonias ficou muito espantado em ver um jovem provinciano conhecer toda a obra

dele e discuti-la de igual para igual. Eu dizia: “ó Adonias, isso aqui você fez muito bem,

mas eu não faria desse jeito” Quando ele assumiu a direção da Agência Nacional, a

primeira coisa que fez foi procurar me

soltar. Conseguiu depois de 48 dias. Fiquei

preso no quartel da polícia militar. Os

primeiros 30 dias de prisão fechada, sem

poder me comunicar com ninguém. Os

outros 18 dias meus filhos pequenos, minha

família, já podiam me visitar. A Eglê não

porque já estava presa. A minha soltura foi

uma coisa fantástica! Eu estava no

restaurante, porque os presos políticos, ao

contrário dos coitados dos soldados, comiam

no restaurante dos oficiais. Eu estava no

restaurante dos oficiais com o prato e os talheres na mão quando ouço uma voz dizer

“Salim Miguel!” Em um momento destes a primeira coisa que se pensa é: “o que virá de

pior para mim?” E ele repetiu: “Salim Miguel!” “O que é que há?” “Vem comigo, estás

solto!” “Pô, me deixa jantar em paz!” “Chegou um comunicado do 14º Batalhão de

Caçadores, do General Sarmento, mandando te soltar.” Aí todos começaram a gritar:

“janta! janta!” “Vou jantar? E vem outra mensagem me mandando ficar? Vou-me

embora! Só que vou levar a faca e o garfo!” Como o oficial não disse nem sim e nem

não, se vocês olharem na minha estante verão a faca e o garfo. Imediatamente telefonei

para o Adonias, para saber o que tinha acontecido, e ele disse: “o seu processo foi

arquivado e você continue dirigindo o escritório da Agência Nacional em Santa

Catarina.” Mas já não havia mais condições. Amigos meus, dos tempos de infância,

viravam rua para não me encontrar, enquanto pessoas que eu mal conhecia vinham me

abraçar e me convidavam para tomar um cafezinho. É quando a gente fica conhecendo

melhor o bicho homem, o ser humano.

Muito desta tua experiência já contaste no livro “Primeiro de Abril”, mas sofreste

algum tipo de violência além da psicológica?

Page 12: Salim Miguel: temas e personagens me perseguem

Nenhum dos sessenta que estavam presos comigo sofreu qualquer violência física.

Sofreram violência psicológica. Narro uma no “Primeiro de Abril” que aconteceu

comigo. Agora, uma coisa impressionante é a maneira como as pessoas se diferenciam

numa prisão. A maneira como cada um encara aquilo. Tinha um que durante toda a

prisão ficava numa posição fetal, todo encolhido, e nunca mais se recuperou. Não falava

com ninguém. Tinha outros que contavam anedotas, jogavam, brincavam, numa

maneira de tentar fugir daquela situação opressiva. No meu caso a Eglê, antes de ser

presa, mandou-me um caderno e um lápis, porque não podia entrar caneta, e eu fui

fazendo as anotações que resultaram no “Primeiro de Abril”. E no final do livro

coloquei uma relação com o nome e a profissão de todos que estiveram presos comigo.

Inclusive, escreves o livro em 2ª pessoa.

O que é uma coisa rara no Brasil. Este livro acabou de sair na França, só que eles

mudaram o título. Eles acharam que “Primeiro de Abril: Narrativas da Cadeia”

funcionaria para o Brasil, mas não lá. Então eles me consultaram e eu concordei, e ficou

assim: “Brasil, 1964: a ditadura se instala”.

E como se deu a prisão da Eglê?

A Eglê ficou mais tempo do que eu, só que ela foi presa em casa, numa manhã. Não

chegaram a entrar na casa, não destruíram a nossa biblioteca, mas ela foi chamada, foi

presa, e deixaram, sem ninguém em casa, quatro crianças, o mais velho com 10 anos e o

mais moço com 4 anos. E foi preciso uma vizinha ligar para a minha irmã, para ela ir lá

e pegar as crianças. A Eglê foi levada para o hospital da polícia militar, onde ficou uma

semana. O Golpe, na verdade, não foi um golpe de militares, mas de civis e militares. A

cidade se movimentou, começaram a falar tanto, que acabaram tirando a Eglê do

hospital e a levaram para casa. Então ela ficou em prisão domiciliar. Quando fui

libertado, ela ainda estava em prisão domiciliar. Então ela ficou mais tempo presa do

que eu.

E por que a decisão de ir para o Rio de Janeiro?

Aqui eu volto a dizer que o Brasil é um país surrealista! Eu estava pensando o que iria

fazer, porque não tinha mais condições de continuar na Agência Nacional. Seis dias

depois de ser preso – fui demitido do meu cargo no serviço de imprensa do estado –

recebo um telefonema do Adonias Filho dizendo o seguinte: “Salim, estou te mandando

uma passagem, venha ao Rio porque nós precisamos conversar.” Cheguei lá, sentei no

escritório dele e perguntei: “Qual é a necessidade da minha vinda ao Rio? Vamos falar

de literatura?” “Quero trazer você para vir trabalhar na direção geral da Agência

Nacional comigo.” “Adonias, isso é uma loucura! Eu vou sair de Florianópolis para vir

cair na boca do lobo?” Aí ele falou uma frase que nunca esqueci: “Você tem as suas

idéias e eu tenho as minhas; o que seria de um país sem idéias? Agora, você também

não vai sair por aí berrando nas ruas que és de esquerda! Mas em Florianópolis não há

condições de você continuar por dois motivos: primeiro porque há a possibilidade de

que você volte para a prisão; segundo, tem uma amigo seu, jornalista, que veio ao Rio e

pediu o seu lugar.” Não é um negócio fantástico? Um amigo jornalista foi ao Rio pedir

o meu lugar! Fui para o Rio em fevereiro de 1965, ainda consegui me segurar aqui

durante uns meses. Eu costumo dizer que foi uma pena o Golpe não ter acontecido

antes, porque eu teria ido antes para o Rio. (RISOS)

Page 13: Salim Miguel: temas e personagens me perseguem

Por que então a decisão de voltar para Santa Catarina?

O meu chão é Santa Catarina! Eu trabalhava em dois empregos com a carteira assinada,

e trabalhava como free-lance em mais um jornal e fazia mais colaborações. Além disso,

a Eglê cuidando de cinco filhos, fazia traduções, já que ela conhece muito bem vários

idiomas, fazia revisão de livros, e não dava para a gente continuar no Rio de Janeiro.

Em 1979 fui falar com o diretor da Agência Nacional, que já não era mais o Adonias há

muito tempo, que disse assim: “tudo bem, você volta para Santa Catarina para dirigir a

Agência Nacional.” “Não faça isso, por favor!” “Ou você aceita, ou não libero você

daqui!” Vim, fiquei uns meses, mas não havia mais condições para eu ficar na Agência.

Então fui colocado à disposição da Universidade Federal de Santa Catarina, o que foi

bom. Aí sim, trabalhando bastante, mas não mais trabalhando em tempo integral, pude

me dedicar mais à literatura e ao jornalismo. Acredito em três coisas, não acredito em

inspiração, ou muito pouco, mas acredito em vocação, em talento e em persistência.

Vocação todos nós temos, e alguns têm a sorte de ter vocação para mais de uma coisa.

Por exemplo, tinha aqui um excelente médico, o Holdemar Menezes, que era um

excelente ficcionista. No meu caso foi o jornalismo e a criação literária. Porque

jornalismo também é literatura, embora muitos não aceitem. Talento; é preciso a gente

regar o talento como quem rega uma flor muito preciosa e muito frágil. E a maneira de

regar o talento é a persistência. “Eu quero ser isso, posso não ser um gênio nisso, mas

devo chegar aonde quero chegar!” Então isso é a persistência que faz, e isso eu consegui

em Florianópolis.

Uma pergunta clássica, que fazemos a todos os escritores. Quais são as tuas

referências literárias? Claro, durante a tua carreira escreveste a respeito de uma

infinidade de autores, e as epígrafes dos teus livros também nos permitem perceber

um pouco das tuas referências. Mas o teu estilo estaria dentro daquilo que hoje

chamamos de pós-moderno. Muitos dos teus livros têm uma trama bastante

diferenciada daquilo que se praticava e daquilo que ainda se pratica ainda hoje. Já

nas tuas críticas literárias vemos que tu tens uma formação literária bastante

clássica, como Fernando Pessoa, por exemplo.

Isso é uma das coisas mais difíceis para mim, porque sempre fui um devorador de

livros, e não satisfeito em ler, reli muito. Por exemplo, não sei quantas vezes reli

Machado de Assis e Graciliano Ramos. São só dois exemplos. Mas se eu tivesse que ser

obrigado a dizer quais os livros que mais me marcaram, eu teria dois: “Dom Quixote” e

“As Mil e Uma Noites”. Acho que “Dom Quixote” deveria ser um livro obrigatório.

Este foi o livro que talvez mais me marcou, embora eu já conhecesse anteriormente “As

Mil e Uma Noites”. Primeiro pelo que minha mãe e meu pai contavam, que eram e não

eram as “Mil e Uma Noites” que vim conhecer depois. Quando cheguei a Florianópolis,

procurei logo “As Mil e Uma Noites” e encontrei uma edição resumida para o público

juvenil, mas aquilo não me satisfez. Em 1956, eu já escrevia sobre livros e recebia

praticamente tudo o que as editoras publicavam. Recebi da Saraiva uma edição em oito

volumes de “As Mil e Uma Noites”, a única edição completa, com ilustrações de

Aldemir Martins. Estão todas elas ali, traduzidas do francês. Depois disso comprei o

que foi saindo, e só não comprei esta de agora, que é a primeira que está sendo

traduzida diretamente do árabe, porque não vou conseguir ler já que estou praticamente

cego. E outro fato. Cervantes esteve preso durante muito tempo. E na prisão e no

contato com aquelas pessoas, ele deve ter sabido e ouvido muito d’“As Mil e Uma

Page 14: Salim Miguel: temas e personagens me perseguem

Noites”. Há no “Dom Quixote” uma influência que nunca foi devidamente examinada,

ou se foi não tomei conhecimento, d’“As Mil e Uma Noites”. Mas tem outros livros que

me marcaram. Um livro que é muito contestado e que algumas pessoas põem debaixo

do braço para dizer que leram, mas que nunca

leram, o “Ulisses” de James Joyce. Li “Ulisses”

em 1948, aos 24 anos, em edição espanhola.

Tinha saído na Argentina uma tradução na qual

o tradutor trabalhou por sete anos. Depois li a

tradução de Antônio Houaiss, que foi a primeira

tradução brasileira e na qual ele levou um ano

inteiro para aprontar. Ele tinha sido demitido do

Itamarati e foi contratado pelo diretor da

Civilização Brasileira para traduzir o “Ulisses”.

Quando eu estava no Rio, colaborei com a

Enciclopédia Delta Larousse, que era coordenada pelo Antônio Houaiss e pelo Otto

Maria Carpeaux. Então conversei com o Houaiss sobre a tradução que ele fez. “Vou te

dizer uma coisa, em alguns aspectos, embora não conheça o original, gostei mais da

tradução argentina.” E ele disse que a conhecia. Ele fez a tradução dele consultando não

só a edição inglesa, mas a italiana, a francesa, a alemã e esta espanhola. Na Rússia tem

três ou quatro que não canso de ler e reler: Dostoievski, Tolstoi, Gogol e Tchekhov, que

para mim, é um dos mais importantes contistas de toda a história do conto, desde os

tempos mais antigos.

Gostaria que falasses sobre o teu processo criativo. Como surgem as idéias? Onde

buscas as histórias? Vemos que muito é autobiográfico...

Eu disse, no começo desta nossa conversa, que os temas com que o escritor trabalha são

relativamente os mesmos desde o início dos tempos. Agora, no meu caso, não tenho

personagens nem temas. Temas ou personagens é que me procuram. Para alguns digo:

“tudo bem, vamos trabalhar”; para outros: “procure outro escritor porque não consigo

chegar aonde tu queres”. Posso dar dois exemplos. Quando vou para um livro, um

conto, uma novela, não sei como ele vai caminhar ou até onde ele vai chegar. Não sou

como Érico Veríssimo ou como é aqui o Adolfo Boos Júnior. Eles fazem uma planta

baixa, estruturam tudo o que vão narrar, o local, a situação, o perfil dos personagens. Eu

não, não sei nada disso. Então vou contar esses dois casos. Primeiro, eu estava na minha

casa de praia e, de noitinha a minha filha, que estava passando as férias conosco,

atendeu ao telefone e me chamou. “Quem é?” “Não sei, é uma mulher.” Peguei o

telefone: “É Salim Miguel? Estou chegando do Rio e preciso encontrá-lo.” “Por quê?”

“Só posso explicar quando nos encontrarmos. Vamos nos encontrar em um bar?”

“Desculpe, mas não vou sair. Por que não vens na minha casa de praia?” “A sua casa é

muito longe, mas tenho que vê-lo! Vim do Rio especialmente para isso!” “Então

amanhã pela manhã procure-me na editora da universidade, onde trabalho.” No outro

dia eu estava passando uns originais para a secretária quando ouço uma voz dizer “que

pena! Parece mas não é! Me desculpe!” Olho para a dona da voz. “O que é?” “Desculpe,

parece mas não é.” “Mas parece e não é o quê?” “Vi uma fotografia sua num jornal do

Rio falando do lançamento do seu livro e disse ‘é ele! É o homem que ando procurando

desde 1964!’.” “Mas que história maluca é essa?” “Desculpe!” “Não, você me criou um

problema em casa. Minha mulher agora está pensando que eu tive um caso com alguém.

E agora diz ‘que pena’, ‘desculpe’, ‘não é ele’ e vai embora? Você vai sentar aqui e me

explicar esta história!” Ela me contou um verdadeiro tema que não daria só um conto,

Page 15: Salim Miguel: temas e personagens me perseguem

como acabei fazendo, mas uma novela ou um romance. Só que nunca consegui dar o

clima que ele merecia. Mas ainda assim fui obrigado a publicá-lo porque nunca

consegui me livrar daquilo. O conto se chama “Um Verão Louco”. O outro é muito

mais fantástico ainda! Eu estava em Chapecó com Gervásio Batista, fazendo uma

reportagem sobre o extremo oeste de Santa Catarina para a revista Manchete. Nós

estávamos sentados em um restaurante, tínhamos pedido um jantar e uma cerveja. Eu

estava resumindo para o Gilmar Batista o romance “São Miguel” do Guido Wilmar

Sassi, que se passa naquela região. De repente vejo alguém se levantar e dizer: “posso

sentar?” Antes que a gente pudesse dizer “pode”, ele sentou. “Estava naquela mesa ao

lado, ouvia o que estavas contando e me interessei muito. Sou balseiro, minha vocação é

ser balseiro, poderia ser outra coisa, mas eu gosto muito de ler e fiquei interessado neste

romance porque se passa por aqui.” “Eu não tenho o romance aqui e ele está esgotado,

talvez encontres nos sebos.” “Só para provar que gosto de ler, vou dizer que li a pouco

‘E Rilo Oscuro’ do Alfredo Varela.” “Conheço, é um bom romance.” “Mas este outro tu

não conheces: “Anaconda”, do Horácio Quiroga.” “Também conheço!” “Ma tu

conheces tudo?” “Não, não conheço tudo. Por exemplo, não sei o que é esse teu trabalho

de balseiro. Sei o que é uma balsa porque já andei em uma, mas balseiro, como tu, não

sei o que é.” “Mas para eu contar o que é ser balseiro, preciso tomar outra coisa que não

seja essa cerveja. Preciso de um conhaque ou de uma cachaça da brava. Posso pedir?”

“Mas por que estás me pedindo?” “Por que sei que vais anotar na cachola tudo que

estou te dizendo, depois vais escrever tudo isso e vais me transformar em personagem.

E os meus direitos autorais?” (RISOS) Este sim acho que é um dos meus contos que

mais me agrada. Chama-se “Ponto de Balsa”. As florestas naquela região estão

praticamente devastadas porque os madeireiros cortavam a madeira, transformavam-na

em tábuas e toras, faziam balsas e esperavam a enchente para levar para a Argentina.

Isso era corriqueiro naquela região de Santa Catarina. A história dele era a de uma balsa

que ele estava levando para a Argentina durante um temporal enorme, e eles acharam

que o temporal tinha terminado, mas não. A balsa bate e afunda e os amigos dele, mais a

mulher com quem ele vivia, desaparecem e ele nunca mais os encontra. Ele me contou e

eu anotei tudo, e o conto é mais dele do que meu, mas dei tempero e esta é a minha

maneira de escrever. No meu último livro de contos, publicado pela Editora Record, “O

Sabor da Fome”, tem três contos cujo início é igual. Eu estou em uma sala escura, de

uma clínica oftalmológica, e pessoas que estão ali me contam pedaços das suas vidas,

que transformo em contos.

Apesar da crítica ainda não ter discutindo com o cuidado que merece, teu livro “As

Confissões Prematuras” é uma novela diferente, tem uma trama diferenciada, não

linear, apresentando só três personagens (o gordo, o magro e a mulher). Como se

deu a idéia e a construção deste livro?

Foi quando eu estava na quarta para a quinta versão do “Nur na Escuridão” e não

consegui mais ir adiante. Eu precisava terminar o romance, mas não conseguia mais ir

adiante. Foi quando disse para a Eglê: “vou ver se pego alguma coisa que seja

inteiramente fora do meu mundo ficcional, que é Biguaçu e Florianópolis.” “Tenta!”

“Se eu conseguir isto, talvez possa retomar o ‘Nur’.” Então pensei em três personagens

sem nome, numa cidade em que nada pudesse ser identificado e onde as únicas

referências seriam o gordo, o magro, a mulher e uma janela iluminada em um prédio, à

noite, e onde na se via mais nada. E incidentalmente tem uma passagem num hospital.

Fiz uma primeira versão, e nesta já senti a necessidade de incluir mais um personagem

secundário, que pode ser o autor mas não o é, é um outro autor que se intromete ali

Page 16: Salim Miguel: temas e personagens me perseguem

dentro, e de repente até o leitor. Fiz uma coisa, que também não é nova, onde o livro é

narrado, ao mesmo tempo, na primeira, na segunda e na terceira pessoa. Isto eu devo em

parte ao Miguel de Unamuno, que tem um romance chamado “Niebla”, um livro muito

bom onde um personagem se rebela contra o que está sendo escrito. E na verdade são

dois personagens. Primeiro a mulher, que na máquina de escrever do leitor ou do autor,

escreve uma carta que é publicada na íntegra; e no fim do livro tem a carta do gordo. Só

que enquanto que a carta da mulher é publicada na íntegra, a do gordo é recheada de

observações de um pseudo-autor, onde este concorda ou não concorda com o que o

gordo está dizendo. Agora tem uma coisa curiosa. Passei este livro para o Fábio

Brüggemann e o Péricles Prade, da editora Letras Contemporâneas. Não tentei uma

editora de fora porque eles iam dizer: “puxa, isso não tem nada a ver com a tua

literatura.” Tem e não tem! O livro saiu e em menos de dez meses e esgotou a primeira

edição. Muitas pessoas me contataram dizendo que neste livro era um outro Salim

Miguel. Não, é o mesmo, porque não consigo ser, como outros escritores, 350, como

diria Mário de Andrade. Mas foi uma experiência curiosa. Tem inclusive uma

publicação da Universidade de Brasília com dois textos discutindo este livro. Ele está

com a segunda edição esgotada, e quero ver se no próximo ano a Record tem interesse

em lançá-lo junto com outro livro meu, “As Várias Faces”, que é uma novela em três

atos. Tentei fazer uma peça de teatro, não consegui, mas também não consegui me

desgrudar da estrutura do teatro, então resolvi fazer uma novela em três atos.

“Jornada com Rupert”. Poderias falar um pouco sobre este teu novo livro?

Penso que imigração e colonização são iguais e são diferentes. Imigração é aquela

família que vem de fora, sozinha. A minha tia, por exemplo, em 1920 ou 21 se tocou

sozinha para o Brasil, maluca que era! Isso é imigração. Colonização é um grupo que já

vem com um espaço definido, já sabe para onde vai, embora não tenha a menor idéia de

como é este lugar. O que é “Jornada com Rupert”? “Jornada com Rupert” é a

colonização do Vale do Itajaí. Só que não faço um romance histórico, muito pelo

contrário. Eu pego Rupert, que é o protagonista do livro, e três famílias, e em torno

deles faço, durante um dia, um percurso que traz fragmentos da colonização alemã no

Vale do Itajaí. Não tem ordem cronológica. O romance começa com o dia em que

Rupert está saindo de Blumenau. De repente, no terceiro capítulo, nós estamos em 1870,

quando os avós e tios-avós estão chegando a Blumenau. Em outro capítulo estamos no

início do século passado, depois estamos nos anos de 1940, depois em 1946, onde

Rupert está em um bar com os amigos. Então vou intercalando fragmentos com a

colonização alemã. No final do livro temos Blumenau e temos Rio de Janeiro, porque

uma das personagens, filha de um imigrante que chegou depois da guerra de 1914-18 e

que vai abrir, em Blumenau, uma relojoaria além de ser um excelente fotógrafo. Ele vai

se casar com uma blumenauense e da união nasce esta sua filha que, antes do Rupert,

não consegue mais viver em Blumenau e se toca para o Rio de Janeiro. Então, na parte

final do livro, nós temos intercaladas as cartas que ela manda para o pai e a situação de

Blumenau. E o livro se fecha na véspera de Blumenau completar cem anos. Mas ali

estão, como em outros livros meus, passagens da história do Brasil. 1930 e Getúlio; 36,

Plínio Salgado em Blumenau; 37, a Espanha sendo invadida pelas forças do Franco,

ajudado por Mussolini e por Hitler; 42, o Brasil entrando na Guerra. Então tudo isso vai

pontilhar para dar um contexto da história do país neste período, o que já fiz no “Nur na

Escuridão”. Então a editora está acreditando no livro e eu também. Costumo dizer que o

melhor livro é aquele que se está escrevendo, senão não teria sentido continuar

escrevendo.

Page 17: Salim Miguel: temas e personagens me perseguem

Para terminarmos gostaria de abordar uma questão cujo debate vem se tornando

cada vez mais acalorado, que é o da existência ou não da literatura catarinense.

Existe uma literatura catarinense, ou podemos falar de uma literatura produzida

em Santa Catarina?

Gosto muito mais da idéia de uma literatura feita em Santa Catarina. Em 50, quando

trabalhava no Diário da Manhã, fiz um debate em cima desse tema: Literatura de Santa

Catarina. Porque literatura catarinense é muito mais vago. Literatura de Santa Catarina

pode ser feita aqui, mas não necessariamente em cima de temas de Santa Catarina. Acho

que nós temos em Santa Catarina, e já tínhamos no passado também, nomes

representativos que trabalham, ou não, em cima

de temas nossos. Por exemplo, tem o livro do

Othon D’Eça, que este ano está no vestibular, o

“Homens e Algas”, que é um livro

importantíssimo. Tem o Virgílio Várzea e, do

Grupo Sul para cá, há muitos nomes

representativos. Em Santa Catarina nós tivemos

um movimento importantíssimo que foi o “Idéia

Nova”, de Cruz e Sousa e Virgílio Várzea.

Depois vem a geração da revista Terra, da

Academia Catarinense de Letras, mas se tu

pegares os membros que criaram a Academia, não tem nenhum que tenha deixado uma

obra literária, não só na ficção, mas também no ensaio, na crítica e na historiografia.

Tem, depois, alguns acadêmicos que vão surgir, como o Othon D’Eça, o Oswaldo

Cabral, o Almiro Caldeira. A partir do Grupo Sul criou-se a consciência de que em

Santa Catarina há um campo para todas as áreas de cultura, não só literatura, mas

cinema, artes plásticas, música. Um dos nomes mais representativos da música clássica

é o Edino Krieger, e o pai dele, o Aldo Krieger é outro nome importante. Na pintura nós

não temos só Vitor Meireles, tem Martinho de Haro, tem Hassis entre outros.