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Tratado de direito penal parte especia - cezar roberto bitencourt (1)

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Rua Henrique Schaumann, 270, Cerqueira César — SãoPaulo — SP

CEP 05413-909 – PABX: (11) 3613 3000 – SACJUR:0800 055 7688 – De 2ª a 6ª, das 8:30 às 19:30

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BAHIA/SERGIPERua Agripino Dórea, 23 – Brotas – Fone: (71) 3381-

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3616-3666 – São Paulo

ISBN 978-85-02-17439-9

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Bitencourt, Cezar RobertoTratado de direito penal, 3 :parte especial : dos crimescontra o patrimônio até doscrimes contra o sentimentoreligioso e o respeito aosmortos / Cezar RobertoBitencourt.- 8. ed. rev. e ampl. --SãoPaulo : Saraiva, 2012.Bibliografia.1. Direito penal 2. Direitopenal - BrasilI. Título.CDU-343(81)

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Índice para catálogo sistemático:1. Brasil : Direito penal 343(81)

Diretor editorial Luiz Roberto CuriaGerente de produção editorial Lígia Alves

Editora Thaís de Camargo RodriguesAssistente editorial Aline Darcy Flôr de Souza

Produtora editorial Clarissa Boraschi MariaPreparação de originais Ana Cristina Garcia / MariaIzabel Barreiros Bitencourt Bressan / Raquel Benchimol

de Oliveira RosenthalArte e diagramação Cristina Aparecida Agudo de

FreitasRevisão de provas Rita de Cássia Queiroz Gorgati

/ Ana Beatriz F. MoreiraServiços editoriais Elaine Cristina da Silva / Vinicius

Asevedo VieiraCapa Aero Comunicação

Produção gráfica Marli Rampim

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Produção eletrônica Ro Comunicação

Data de fechamento da edição:31-12-2011

Dúvidas?Acesse www.saraivajur.com.br

Nenhuma parte desta publicação poderá serreproduzida por qualquer meio ou forma sem a

prévia autorização da Editora Saraiva.A violação dos direitos autorais é crime estabelecido

na Lei n. 9.610/98 e punido pelo artigo 184 doCódigo Penal.

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PUBLICAÇÕES DO AUTOR

Tratado de direito penal ; parte geral, 16. ed., SãoPaulo, Saraiva, 2011, v. 1.

Tratado de direito penal ; parte especial, 11. ed.,São Paulo, Saraiva, 2011, v. 2.

Tratado deƒ direito penal ; parte especial, 7. ed.,São Paulo, Saraiva, 2011, v. 3.

Tratado de direito penal ; parte especial, 6. ed.,São Paulo, Saraiva, 2011, v. 4.

Tratado de direito penal ; parte especial, 5. ed.,São Paulo, Saraiva, 2011, v. 5.

Código Penal comentado, 7. ed., São Paulo,Saraiva, 2012.

Falência da pena de prisão — causas ealternativas, 4. ed., São Paulo, Saraiva, 2011.

Crimes contra o sistema financeiro nacional econtra o mercado de capitais (em coautoria comJuliano Breda), 2. ed., Rio de Janeiro, Lumen Juris,2011.

Reforma penal material de 2009 — crimessexuais, sequestro relâmpago, Rio de Janeiro, LumenJuris, 2010.

Erro de tipo e erro de proibição — uma análise

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comparativa, 5. ed., São Paulo, Saraiva, 2010.Crimes contra as finanças públicas e crimes de

responsabilidade de prefeitos, 2. ed., São Paulo,Saraiva, 2010.

Teoria geral do delito: uma visão panorâmica dadogmática penal brasileira, Coimbra, AlmedinaEditora, 2007.

Novas penas alternativas, 3. ed., São Paulo,Saraiva, 2006.

Juizados especiais criminais federais — análisecomparativa das Leis 9.099/95 e 10.259/2001, 2. ed.,São Paulo, Saraiva, 2005.

Direito penal econômico aplicado (em coautoriacom Andrei Z. Schmidt), Rio de Janeiro, Lumen Juris,2004.

Lições de direito penal, 3. ed., Porto Alegre,Livraria do Advogado Ed., 1995 (esgotado).

Elementos de direito penal; parte geral (emcoautoria com Luiz R. Prado), São Paulo, Revista dosTribunais, 1995 (esgotado).

Elementos de direito penal; parte especial (emcoautoria com Luiz R. Prado), São Paulo, Revista dosTribunais, 1996 (esgotado).

Juizados especiais criminais e alternativas àpena de prisão, 3. ed., Porto Alegre, Livraria do

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Advogado Ed., 1997 (esgotado).Teoria geral do delito , São Paulo, Revista dos

Tribunais, 1997 (esgotado).Código Penal anotado, 2. ed. (em coautoria com

Luiz R. Prado), São Paulo, Revista dos Tribunais,1999 (esgotado).

Teoria geral do delito (bilíngue), em coautoriacom Francisco Muñoz Conde, 2. ed., São Paulo,Saraiva, 2004.

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ABREVIATURAS

ADPCP — Anuario de Derecho Penal y CienciasPenales (Espanha)

AICPC — Anuario del Instituto de Ciencias Penalesy Criminológicas (Venezuela)

CF — Constituição Federal do BrasilCLT — Consolidação das Leis do TrabalhoCNT — Código Nacional de Trânsito, hoje Código

de Trânsito Brasileiro (CTB)CP — Código Penal brasileiroCPC — Cuadernos de Política Criminal (Espanha)CPP — Código de Processo Penal brasileiroCTN — Código Tributário NacionalDP — Doctrina Penal ArgentinaIBCCrim — Instituto Brasileiro de Ciências CriminaisILANUD — Instituto Latinoamericano para la

Prevención del Delito y Tratamiento delDelincuente (ONU, Costa Rica)

LCP — Lei das Contravenções PenaisLEP — Lei de Execução PenalNPP — Nuevo Pensamiento Penal (Argentina)PPU — Promociones y Publicaciones

Universitarias

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REEP — Revista de la Escuela de EstudiosPenitenciarios (Espanha)

REP — Revista de Estudios Penitenciarios(Espanha)

RIDP — Revue International de Droit Penal (Paris)RIPC — Revista Internacional de Política Criminal

(ONU)

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ÍNDICE

Publicações do AutorAbreviaturasNota do Autor à 1ª edição

CAPÍTULO I | FURTO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado

2.1. Não podem ser objeto de furto3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Elemento normativo: coisa “alheia”4.2. Proprietário que subtrai coisa da qual não

tem a posse: atipicidade4.3. Lesão patrimonial: bem economicamente

apreciável4.4. Coisa perdida, abandonada e coisa comum

5. Natureza e efeito do consentimento da vítima nocrime de furto

6. Tipo subjetivo: adequação típica7. Consumação e tentativa

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7.1. Consumação7.2. Tentativa

8. Classificação doutrinária9. Furto durante o repouso noturno10. Furto de pequeno valor

10.1. Aplicabilidade da privilegiadora no furtoqualificado

10.2. Pequeno valor e pequeno prejuízo:distinção

11. Furto qualificado: tipo derivado11.1. Com destruição ou rompimento de

obstáculo (I)11.2. Com abuso de confiança, ou mediante

fraude, escalada ou destreza (II)11.3. Com emprego de chave falsa (III)11.4. Mediante concurso de duas ou mais

pessoas (IV)12. Concursus delinquentium e concurso de duas ou

mais pessoas12.1. Coautoria e participação em sentido estrito12.2. Causalidade física e psíquica: elemento

objetivo-subjetivo12.3. Participação impunível: impede a

configuração da qualificadora

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12.4. Autoria colateral: atipicidade daqualificadora do concurso de pessoas

13. Autoria mediata: impossibilidade da qualificadorade concurso de pessoas

14. Punibilidade do concurso de pessoas e daqualificadora similar

15. Comunicabilidade ou incomunicabilidade daqualificadora

16. Punibilidade desproporcional da qualificadora doconcurso de pessoas

17. Furto de veículo automotor: qualificadoraespecial

17.1. Furto de uso: intenção de restituir18. Furto de energia: equiparação a coisa móvel

18.1. Furto de energia e furto de sinal de TVpaga

19. Erro jurídico-penal no crime de furto: erro de tipoe de proibição

20. Pena e ação penal

CAPÍTULO II | FURTO DE COISA COMUM

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos do crime

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3.1. Sujeito ativo3.2. Sujeito passivo

4. Tipo objetivo: adequação típica4.1. Sócio que furta da própria sociedade

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa

6.1. Consumação de furto de coisa comum6.2. Tentativa de furto de coisa comum

7. Classificação doutrinária8. Causa especial de exclusão da antijuridicidade9. Pena e ação penal

CAPÍTULO III | ROUBO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos do crime

3.1. Sujeito ativo3.2. Sujeito passivo

4. Tipo objetivo: adequação típica5. Modus operandi: mediante violência ou grave

ameaça ou qualquer outro meio5.1. Violência física (vis corporalis)5.2. Grave ameaça (vis compulsiva)

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5.2.1. Idoneidade da grave ameaça5.2.2. Simulação de arma e arma de

brinquedo5.3. Qualquer outro meio de redução da

resistência5.4. Violência ou grave ameaça para fugir sem a

coisa6. Espécies de roubo: próprio e impróprio

6.1. Roubo próprio6.2. Roubo impróprio6.3. Roubo próprio e impróprio: distinção

7. Objeto material do crime de roubo8. Tipo subjetivo: adequação típica9. Roubo majorado (“qualificado”, § 2º)

9.1. Se a violência ou ameaça é exercida comemprego de arma (I)9.1.1. O emprego de arma de brinquedo e a

Súmula 174 do STJ9.2. Se há concurso de duas ou mais pessoas

(II)9.3. Em serviço de transporte de valores e o

agente conhece essa circunstância (III)9.4. Roubo de veículo automotor que venha a

ser transportado para outro Estado ou

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para o exterior (IV)9.5. Roubo de veículo automotor com sequestro

da vítima (V)9.6. Elevação da pena mínima no roubo

qualificado10. Eventual presença de duas causas de aumento11. Consumação e tentativa

11.1. Consumação do crime de roubo11.2. Tentativa do crime de roubo

12. Classificação doutrinária13. Roubo qualificado pelo resultado: lesão grave ou

morte13.1. Pela lesão corporal grave13.2. Pelo resultado morte: latrocínio

13.2.1. Resultado morte decorrente degrave ameaça: não tipifica latrocínio

13.3. Morte de comparsa: inocorrência delatrocínio

14. Tentativa de latrocínio: pluralidade dealternativas

15. Latrocínio com pluralidade de vítimas16. Concurso do crime de roubo com o de quadrilha17. Pena e ação penal

17.1. Inconstitucionalidade da proibição de

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progressão de regime nos crimeshediondos

CAPÍTULO IV | EXTORSÃO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. A extorsão mediante grave ameaça e ocrime de ameaça do art. 147

4.2. Obtenção de indevida vantagemeconômica: especial fim de agir

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Extorsão majorada: coautoria e emprego de armas

6.1. Se a extorsão é cometida por duas ou maispessoas

6.2. Com emprego de arma7. Omissão da Lei n. 9.426/96: majorantes relativas a

veículo automotor8. Extorsão qualificada: lesão grave ou morte9. Roubo e extorsão: semelhanças e dessemelhanças

9.1. Roubo e extorsão: são crimes da mesmaespécie

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10. Extorsão mediante restrição de liberdade10.1. Extorsão mediante restrição de liberdade

qualificada pelo resultado10.2. A gravidade da semelhança entre roubo e

extorsão especial10.3. A desproporcional cominação de penas

entre roubo e extorsão especial10.4. Violação ao princípio da

proporcionalidade e inconstitucionalidadedas sanções cominadas

11. Crimes de extorsão e de constrangimento ilegal:conflito aparente de normas

12. Consumação e tentativa12.1. Consumação12.2. Tentativa

13. Classificação doutrinária14. Pena e ação penal

CAPÍTULO V | EXTORSÃO MEDIANTESEQUESTRO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos do crime

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3.1. Sujeito ativo3.2. Sujeito passivo

4. Tipo objetivo: adequação típica4.1. (Ir)relevância da natureza ou espécie da

vantagem visada4.2. Vantagem devida: outra tipificação

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Extorsão qualificada: modus operandi

6.1. Duração do sequestro e idade da vítima6.2. Cometido por bando ou quadrilha

7. Extorsão mediante sequestro qualificada peloresultado: lesão grave ou morte

7.1. Se resulta lesão corporal de natureza grave7.2. Se resulta a morte

8. Delação premiada: favor legal antiético9. Crime hediondo10. Consumação e tentativa11. Classificação doutrinária12. Pena e ação penal

CAPÍTULO VI | EXTORSÃO INDIRETA

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado

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3. Sujeitos do crime3.1. Sujeito ativo3.2. Sujeito passivo

4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Classificação doutrinária7. Consumação e tentativa8. Pena e ação penal

CAPÍTULO VII | DA USURPAÇÃO

1ª SEÇÃO

ALTERAÇÃO DE LIMITES1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica

5.1. Elemento subjetivo especial: para apropriar-se de coisa móvel alheia

6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

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CAPÍTULO VIII

2ª SEÇÃO

USURPAÇÃO DE ÁGUAS1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

CAPÍTULO IX

3ª SEÇÃO

ESBULHO POSSESSÓRIO1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos do crime

3.1. Sujeito ativo3.2. Sujeito passivo

4. Tipo objetivo: adequação típica

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4.1. Violência à pessoa ou grave ameaça ouconcurso de mais de duas pessoas

4.2. Esbulho civil e esbulho penal4.3. Esbulho de imóvel do SFH

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Usurpação em concurso com violência8. Pena e ação penal

8.1. Penas cominadas8.2. Pena e ação penal

CAPÍTULO X | SUPRESSÃO OU ALTERAÇÃO DEMARCA EM ANIMAIS

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Somente em animais já marcados4.2. Concurso com outros crimes4.3. Elementares típico-normativas:

“indevidamente” e “alheio”4.4. Significado e limite das locuções “gado” ou

“rebanho”

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5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

CAPÍTULO XI | DO DANO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Dano qualificado

6.1. Com violência à pessoa ou grave ameaça6.1.1. Dano praticado com violência:

concurso material de crimes oucúmulo material de penas

6.2. Com emprego de substância inflamável ouexplosiva, se o fato não constitui crimemais grave

6.3. Contra o patrimônio da União, Estado,Município, empresa concessionária deserviços públicos ou sociedade deeconomia mista

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6.4. Por motivo egoístico ou com prejuízoconsiderável para a vítima6.4.1. Por motivo egoístico6.4.2. Com prejuízo considerável

7. Consumação e tentativa8. Classificação doutrinária9. Pena e ação penal

CAPÍTULO XII | INTRODUÇÃO OU ABANDONODE ANIMAIS EM PRO PRIEDADE ALHEIA

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Sem consentimento de quem de direito4.2. Ocorrência efetiva de prejuízo4.3. Prejuízo: condição objetiva da punibilidade

ou elementar típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Questões especiais9. Pena e ação penal

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CAPÍTULO XIII | DANO EM COISA DE VALORARTÍSTICO, ARQUEOLÓGICO OU HISTÓRICO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

CAPÍTULO XIV | ALTERAÇÃO DE LOCALESPECIALMENTE PROTEGIDO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Questões especiais9. Pena e ação penal

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CAPÍTULO XV | DA APROPRIAÇÃO INDÉBITA

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos do crime

3.1. Sujeito ativo3.2. Sujeito passivo

4. Pressuposto da apropriação indébita5. Tipo objetivo: adequação típica6. Tipo subjetivo: adequação típica7. Consumação e tentativa8. Classificação doutrinária9. Formas majoradas de apropriação indébita

9.1. Coisa recebida em depósito necessário9.2. Qualidade pessoal do agente: tutor,

curador, síndico, liquidatário,inventariante, testamenteiro oudepositário judicial

9.3. Em razão de ofício, emprego ou profissão10. Apropriação, furto e estelionato11. Compra e venda, depositário infiel e apropriação

indébita12. Apropriação indébita e relação

mandante/mandatário13. Pena e ação penal

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14. Algumas questões especiais

CAPÍTULO XVI | APROPRIAÇÃO INDÉBITAPREVIDENCIÁRIA

1. Bem jurídico tutelado2. Sujeitos ativo e passivo3. Tipo objetivo: adequação típica

3.1. Pressuposto: contribuições recolhidas3.2. Prazo e forma legal ou convencional: norma

penal em branco4. Tipo subjetivo: adequação típica5. Figuras do caput e do § 1º: distinção6. Deixar de recolher no prazo legal (§ 1º, I)

6.1. Pressuposto: que tenha sido descontadode pagamento efetuado

6.2. Antiga figura do art. 95, d7. Deixar de recolher contribuições devidas (§ 1º, II)

7.1. Despesas contábeis ou custos relativos aprodutos e serviços

7.2. Pressuposto: que tenham integrado oscustos

8. Deixar de pagar benefício devido (§ 1º, III)8.1. Pressuposto: reembolso realizado

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9. Consumação e tentativa10. Classificação doutrinária11. Causa extintiva da punibilidade

11.1. Início da ação fiscal (antes)11.2. Requisitos para extinção da punibilidade11.3. Aplicação do art. 34 da Lei n. 9.249/95

12. Irretroatividade da lei nova (n. 9.983/2000)13. Perdão judicial ou pena de multa

13.1. Valor de pouca monta: inocuidade13.2. Princípio da insignificância: configurado13.3. Requisitos necessários ao perdão judicial

ou multa14. Crimes praticados após a Lei n. 9.983/2000: efeitos

práticos15. Pena e ação penal

CAPÍTULO XVII | APROPRIAÇÃO DE COISAHAVIDA POR ERRO, CASO FORTUITO OUFORÇA DA NATUREZA

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

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5. Apropriação de tesouro6. Apropriação de coisa achada

6.1. Elemento temporal: quinze dias7. Tipo subjetivo: adequação típica8. Classificação doutrinária9. Consumação e tentativa10. Minorante do pequeno valor nos crimes de

apropriação indébita11. Pena e ação penal

CAPÍTULO XVIII | ESTELIONATO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo

3.1. Criança e débil mental: impossibilidade4. Fraude civil e fraude penal: ontologicamente iguais5. Tipo objetivo: adequação típica

5.1. Emprego de artifício, ardil ou qualqueroutro meio fraudulento

5.2. Induzimento ou manutenção da vítima emerro

5.3. Obtenção de vantagem ilícita em prejuízoalheio: elemento normativo

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6. Vantagem ilícita: irrelevância da naturezaeconômica

7. Tipo subjetivo: adequação típica8. Classificação doutrinária9. Consumação e tentativa10. Estelionato e falsidade11. Estelionato privilegiado: minorante de aplicação

obrigatória12. Figuras especiais de estelionato

12.1. Disposição de coisa alheia como própria(I)

12.2. Alienação ou oneração fraudulenta decoisa própria (II)

12.3. Defraudação de penhor (III)12.4. Fraude na entrega de coisa (IV)12.5. Fraude para o recebimento de indenização

ou valor de seguro (V)12.6. Fraude no pagamento por meio de cheque

(VI)12.6.1. Cheque pós-datado e cheque

especial12.6.2. Sujeitos ativo e passivo do crime

13. Majorante especial do crime de estelionato14. Arrependimento posterior e as Súmulas 246 e 554

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14.1. Reparação de danos e as Súmulas 246 e554

15. Algumas questões especiais16. Pena e ação penal17. Transcrição das principais súmulas relativas ao

estelionato

CAPÍTULO XIX | DUPLICATA SIMULADA

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Falsificação ou adulteração do livro deregistro de duplicatas

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

CAPÍTULO XX | ABUSO DE INCAPAZES

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo

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4. Tipo objetivo: adequação típica4.1. Necessidade, paixão ou inexperiência do

menor4.2. Ato suscetível de produzir efeito jurídico4.3. Natureza do proveito ou vantagem

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXI | INDUZIMENTO ÀESPECULAÇÃO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXII | FRAUDE NO COMÉRCIO

1. Considerações preliminares

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2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Fraude no comércio de metais ou pedraspreciosas (§ 1º)

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXIII | OUTRAS FRAUDES

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXIV | FRAUDES E ABUSOS NAFUNDAÇÃO OU ADMINISTRAÇÃO DESOCIEDADE POR AÇÕES

1. Considerações preliminares

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2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Fraude na fundação de sociedade porações: crime subsidiário

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Fraude sobre as condições econômicas de

sociedade por ações (§ 1º, I)8.1. Bem jurídico tutelado8.2. Sujeitos ativo e passivo8.3. Tipo objetivo: adequação típica8.4. Consumação e tentativa

9. Falsa cotação de ações ou título de sociedade (§1º, II)

9.1. Sujeitos ativo e passivo9.2. Tipo objetivo: adequação típica9.3. Consumação e tentativa

10. Empréstimo ou uso indevido de bens ou haveres(§ 1º, III)

10.1. Sujeitos ativo e passivo10.2. Tipo objetivo: adequação típica10.3. Consumação e tentativa

Page 39: Tratado de direito penal   parte especia - cezar roberto bitencourt (1)

11. Compra e venda de ações da sociedade (§ 1º, IV)11.1. Sujeitos ativo e passivo11.2. Tipo objetivo: adequação típica11.3. Consumação e tentativa

12. Caução de ações da sociedade (§ 1º, V)12.1. Sujeitos ativo e passivo12.2. Tipo objetivo: adequação típica12.3. Consumação e tentativa

13. Distribuição de lucros ou dividendos fictícios (§1º, VI)

13.1. Sujeitos ativo e passivo13.2. Tipo objetivo: adequação típica13.3. Consumação e tentativa

14. Aprovação fraudulenta de conta ou parecer (§ 1º,VII)

14.1. Sujeitos ativo e passivo14.2. Tipo objetivo: adequação típica14.3. Consumação e tentativa

15. Crimes de liquidante (§ 1º , VIII)16. Crimes do representante da sociedade estrangeira

(§ 1º, IX)16.1. Sujeitos ativo e passivo

17. Crime de acionista: negociação de voto (§ 2º)17.1. Sujeitos ativo e passivo

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17.2. Tipo objetivo: adequação típica18. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXV | EMISSÃO IRREGULAR DECONHECIMENTO DE DEPÓSITO OUWARRANT

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Conhecimento de depósito e warrant5. Tipo objetivo: adequação típica

5.1. Elemento normativo: em desacordo comdisposição legal

6. Tipo subjetivo: adequação típica7. Consumação e tentativa8. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXVI | FRAUDE À EXECUÇÃO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica

Page 41: Tratado de direito penal   parte especia - cezar roberto bitencourt (1)

6. Consumação e tentativa7. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXVII | RECEPTAÇÃO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica: receptação

simples4.1. Novas figuras da Lei n. 9.426/96: receptação

ou favorecimento4.2. Receptação de receptação: possibilidade

5. Significado dogmático das elementares: “sabe” e“deve saber”

5.1. Síntese dos postulados fundamentais dasteorias do dolo e da culpabilidade

5.2. Sentido e função das elementares “sabe” e“deve saber” na definição do crime dereceptação

6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Receptação qualificada: tipo autônomo ou

derivado8.1. Adequação típica: receptação qualificada

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8.2. Receptação simples, receptação qualificadae princípio da proporcionalidade

8.3. Elemento normativo da receptaçãoqualificada: no exercício de atividadecomercial ou industrial

9. Tipo subjetivo: adequação típica: dolo direto9.1. Elemento subjetivo especial do injusto: em

proveito próprio ou alheio10. Receptação culposa11. Autonomia da receptação: independência relativa12. “Autor de crime”: a culpabilidade não é mero

pressuposto da pena13. Perdão judicial (§ 5º, 1ª parte)14. Receptação privilegiada (§ 5º, 2ª parte)15. Receptação majorada (§ 6º)16. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXVIII | DISPOSIÇÕES GERAIS DOSCRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO

1. Considerações preliminares2. Repercussão do Estatuto do Idoso nos crimes

patrimoniais3. Imunidade penal absoluta4. Imunidade relativa: condição de procedibilidade

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5. Exclusão de imunidade ou privilégio5.1. Concurso eventual de estranhos: coautoria

ou participação

CAPÍTULO XXIX | VIOLAÇÃO DE DIREITOAUTORAL

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Inovações da Lei n. 10.695/20035. Figuras qualificadas: majoração penal

5.1. Intuito de lucro é o fundamento damajoração penal

5.2. Elemento normativo do tipo: semautorização

6. Repressão da ciberpirataria7. Tipo subjetivo: adequação típica8. Consumação e tentativa9. Classificação doutrinária10. Pena e ação penal11. Algumas questões especiais

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CAPÍTULO XXX | USURPAÇÃO DE NOME OUPSEUDÔNIMO ALHEIO

1. Considerações preliminares

CAPÍTULO XXXI | AÇÃO PENAL NOS CRIMESCONTRA A PROPRIEDADE INTELECTUAL

1. Considerações preliminares2. Natureza da ação penal3. Prazo decadencial: geral ou especial4. Prova do direito de ação (art. 526 do CPP): pré-

constituída

CAPÍTULO XXXII | ATENTADO CONTRA ALIBERDADE DE TRABALHO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo

3.1. Pessoa jurídica: impossibilidade4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Formas ou meios de execução: medianteviolência ou grave ameaça

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa

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7. Concurso com crimes praticados com violência8. Classificação doutrinária9. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXXIII | ATENTADO CONTRA ALIBERDADE DE CONTRATO DE TRABALHO EBOICOTAGEM VIOLENTA

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Formas ou meios de execução: medianteviolência ou grave ameaça

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Concurso de crimes: violência tipificada9. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXXIV | ATENTADO CONTRA ALIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado

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3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Trabalho individual e crime contra aorganização do trabalho

5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXXV | PARALISAÇÃO DETRABALHO, SEGUIDA DE VIOLÊNCIA OUPERTURBAÇÃO DA ORDEM

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Abandono coletivo e suspensão dotrabalho

4.2. Violência contra pessoa ou coisa5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Pena e ação penal

Page 47: Tratado de direito penal   parte especia - cezar roberto bitencourt (1)

CAPÍTULO XXXVI | PARALISAÇÃO DETRABALHO DE INTERESSE COLETIVO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica

5.1. Tipicidade de greve pacífica:excepcionalmente

6. Consumação e tentativa7. Pena e ação penal

CAPÍTULO XXXVII | INVASÃO DEESTABELECIMENTO INDUSTRIAL,COMERCIAL OU AGRÍCOLA. SABOTAGEM

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Pena e ação penal8. Questões especiais

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CAPÍTULO XXXVIII | FRUSTRAÇÃO DE DIREITOASSEGURADO POR LEI TRABALHISTA

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Novos tipos assemelhados8. Penas e ação penal

8.1. Sanções cominadas8.2. Natureza da ação penal

9. Questões especiais

CAPÍTULO XXXIX | FRUSTRAÇÃO DE LEI SOBREA NACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Meios executórios normativos: mediantefraude ou violência

5. Tipo subjetivo: adequação típica

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6. Consumação e tentativa7. Penas e ação penal

CAPÍTULO XL | EXERCÍCIO DE ATIVIDADE COMINFRAÇÃO DE DECISÃO ADMINISTRATIVA

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Pena e ação penal

CAPÍTULO XLI | ALICIAMENTO PARA O FIM DEEMIGRAÇÃO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Pena e ação penal

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CAPÍTULO XLII | ALICIAMENTO DETRABALHADORES DE UM LOCAL PARAOUTRO DO TERRITÓRIO NACIONAL

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Novo tipo penal (§ 1º)8. Pena e ação penal9. Leis n. 9.099/95 e 9.714/98: “fundamentos” para

exasperação penal

CAPÍTULO XLIII | ULTRAJE A CULTO EIMPEDIMENTO OU PERTURBAÇÃO DE ATO AELE RELATIVO

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Escárnio por motivo de religião4.2. Impedimento ou perturbação de culto

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religioso4.3. Vilipêndio público de ato ou objeto

obsceno5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Majorante especial: com violência9. Pena e ação penal

CAPÍTULO XLIV | IMPEDIMENTO OUPERTURBAÇÃO DE CERIMÔNIA FUNERÁRIA

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Figura majorada8. Pena e ação penal

CAPÍTULO XLV | VIOLAÇÃO DE SEPULTURA

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado

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3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Furto em sepultura: tipificação8. Classificação doutrinária9. Pena e ação penal

CAPÍTULO XLVI | DESTRUIÇÃO, SUBTRAÇÃOOU OCULTAÇÃO DE CADÁVER

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica

4.1. Objeto material do crime: cadáver5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

CAPÍTULO XLVII | VILIPÊNDIO A CADÁVER

1. Considerações preliminares2. Bem jurídico tutelado

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3. Sujeitos ativo e passivo4. Tipo objetivo: adequação típica5. Tipo subjetivo: adequação típica6. Consumação e tentativa7. Classificação doutrinária8. Pena e ação penal

Bibliografia

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NOTA DO AUTOR À 1ª EDIÇÃO

É com imenso prazer que trazemos a público aprimeira edição do terceiro volume de nosso trabalhoque, como já mencionado nos volumes anteriores,passou a denominar-se Tratado de Direito Penal emrazão de certa profundidade que achamos necessáriapara podermos imprimir-lhe alguma renovaçãoconceitual, particularmente em relação à ParteEspecial do Código Penal.

Mantendo nossa linha de trabalho, procuramosrevigorar conceitos que o pensamento jurídico atualaprimorou, na tentativa de adequar o tratamento doscrimes em espécie à reforma penal de 1984 (Lei n.7.209/84), que alterou toda a Parte Geral do Códigode 1940. Na verdade, a exemplo do que ocorreu nosegundo volume, esforçamo-nos por fazer umareleitura dos velhos tipos penais de acordo com aatual dogmática e, particularmente, segundo osprincípios que inspiraram a referida reforma.Sustentamos, como em todos os nossos trabalhos,uma postura crítica, procurando contribuir para aevolução da dogmática penal brasileira.

Este volume abrange os Títulos II (Dos crimescontra o patrimônio) a V (Dos crimes contra o

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sentimento religioso e contra o respeito aos mortos)da Parte Especial do Código Penal. Procuramosmanter o nível de abordagem, especialmente emrelação aos crimes contra o patrimônio. Nossointeresse é oferecer conteúdo mais denso aosoperadores do direito, uma vez que a bibliografianacional ressente-se de obras com um pouco mais defôlego, particularmente em relação à Parte Especial.

No tocante ao tratamento dos demais crimes(Títulos III, IV e V), realizamos uma análise objetiva,oferecendo o estritamente necessário para osestudantes dos cursos de graduação. A pequenaimportância dessas infrações penais e a poucafrequência com que ocorrem no quotidianoconduziram-nos à adoção dessa postura.

As críticas, como sempre, além de bem-vindas,serão recebidas como estímulo.

Porto Alegre, inverno de 2003.

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CAPÍTULO I - FURTO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado.2.1. Não podem ser objeto de furto. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1.Elemento normativo: coisa “alheia”. 4.2.Proprietário que subtrai coisa da qualnão tem a posse: atipicidade. 4.3. Lesãopatrimonial: bem economicamenteapreciável. 4.4. Coisa perdida,abandonada e coisa comum. 5. Naturezae efeito do consentimento da vítima nocrime de furto. 6. Tipo subjetivo:adequação típica. 7. Consumação etentativa. 7.1. Consumação. 7.2.Tentativa. 8. Classificação doutrinária. 9.Furto durante o repouso noturno. 10.Furto de pequeno valor. 10.1.Aplicabilidade da privilegiadora no furtoqualificado. 10.2. Pequeno valor epequeno prejuízo: distinção. 11. Furtoqualificado: tipo derivado. 11.1. Comdestruição ou rompimento de obstáculo

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(I). 11.2. Com abuso de confiança, oumediante fraude, escalada ou destreza(II). 11.3. Com emprego de chave falsa(III). 11.4. Mediante concurso de duasou mais pessoas (IV). 12. Concursusdelinquentium e concurso de duas oumais pessoas. 12.1. Coautoria eparticipação em sentido estrito. 12.2.Causalidade física e psíquica: elementoobjetivo-subjetivo. 12.3. Participaçãoimpunível: impede a configuração daqualificadora. 12.4. Autoria colateral:atipicidade da qualificadora doconcurso de pessoas. 13. Autoriamediata: impossibilidade daqualificadora de concurso de pessoas.14. Punibilidade do concurso depessoas e da qualificadora similar. 15.Comunicabilidade ouincomunicabilidade da qualificadora. 16.Punibilidade desproporcional daqualificadora do concurso de pessoas.17. Furto de veículo automotor:qualificadora especial. 17.1. Furto deuso: intenção de restituir. 18. Furto deenergia: equiparação a coisa móvel. 18.1.

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Furto de energia e furto de sinal de TVpaga. 19. Erro jurídico-penal no crime defurto: erro de tipo e de proibição. 20.Pena e ação penal.

TÍTULO II | DOS CRIMES CONTRA OPATRIMÔNIO

Capítulo I

DO FURTO

FurtoArt. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa

alheia móvel:Pena — reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e

multa.§ 1º A pena aumenta-se de um terço, se o crime é

praticado durante o repouso noturno.§ 2º Se o criminoso é primário, e é de pequeno

valor a coisa furtada, o juiz pode substituir a penade reclusão pela de detenção, diminuí-la de um adois terços, ou aplicar somente a pena de multa.

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§ 3º Equipara-se à coisa móvel a energiaelétrica ou qualquer outra que tenha valoreconômico.

Furto qualificado§ 4º A pena é de reclusão de 2 (dois) a 8 (oito)

anos, e multa, se o crime é cometido:I — com destruição ou rompimento de obstáculo

à subtração da coisa;II — com abuso de confiança, ou mediante

fraude, escalada ou destreza;III — com emprego de chave falsa;IV — mediante concurso de duas ou mais

pessoas.§ 5º A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito)

anos, se a subtração for de veículo automotor quevenha a ser transportado para outro Estado oupara o exterior.

• § 5º acrescentado pela Lei n. 9.426, de 24-12-1996.

1. Considerações preliminares

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A Lei das XII Tábuas já punia o crime de furto,distinguindo-o em manifesto e não manifesto.Ocorria o furtum manifestum quando o agente erasurpreendido em flagrante delito, praticando a açãoou no lugar em que essa fora praticada. As penasaplicadas eram as próprias da época, quais sejam, denatureza corporal para o furto manifesto epecuniárias1 para o furto não manifesto. A própriaLei das XII Tábuas previa que o ladrão podia sermorto se fosse surpreendido durante furto noturno.

Na expressão de Magalhães Noronha, “o furto é,em geral, crime do indivíduo de casta ínfima, do pária,destituído, em regra, de audácia e temibilidade para oroubo ou para a extorsão; de inteligência para oestelionato; e desprovido de meios para usurpação.Frequentemente é o crime do necessitado”2.

Nosso Código Penal vigente, no Título dosCrimes contra o Patrimônio, dividiu-os em oitocapítulos: I — furto; II — roubo e extorsão; III —usurpação; IV — dano; V — apropriação indébita;VI — estelionato e outras fraudes; VII —receptação; VIII — disposições gerais. Contudo,nem todos os crimes contra o patrimônio estãoincluídos nesse capítulo da Parte Especial. Nas leisextravagantes e no próprio Código Penal

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encontraremos outros crimes que também ofendem opatrimônio público ou particular, tais como a usura(art. 4º da Lei n. 1.521) e os crimes falimentares (Dec.n. 7.661/45); nos crimes de peculato (art. 312 do CP),corrupção (arts. 317 e 333) e concussão (art. 316) hátambém a lesão patrimonial, embora o legisladortenha preferido incluí-los no Título relativo aosCrimes contra a Administração Pública.

Nos chamados crimes pluriofensivos (ofensa amais de um bem jurídico), como o roubo e a extorsão,os códigos anteriores (Criminal do Império, de 1830, eo Republicano, de 1890) os classificavam, a nossojuízo com acerto, em Título autônomo, “Crimescontra a Pessoa e contra a Propriedade”.

2. Bem jurídico tutelado

Bens jurídicos protegidos diretamente são aposse e a propriedade de coisa móvel, como regrageral, e admitimos também a própria detenção comoobjeto da tutela penal, na medida em que usá-la,portá-la ou simplesmente retê-la já representa umbem para o possuidor ou detentor da coisa3. Aposse, como bem jurídico protegido pelacriminalização da conduta de furtar, remonta ao

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direito romano, desde Justiniano, que prescrevia: deobligationibus quae ex delicto nascuntur (furto é atomada fraudulenta de uma coisa de seu uso ou desua posse) (Institutas de Justiniano — Livro IV,Título I, § 1º). Carrara já destacava que, para ospráticos, o crime de furto consistia tanto na violaçãodo direito de propriedade quanto no de posse,constituindo, na última hipótese, furto impróprio,pois o proprietário já se encontrava privado da coisasubtraída4.

Nesse aspecto, equivocava-se Nélson Hungriaquando afirmava: “A posse, como mero fato, só porsi, ou não correspondente ao direito de propriedade,embora protegida pelo direito civil, não entra naconfiguração do furto”5. Magalhães Noronha,pontificando a corrente majoritária, em sentidodiametralmente oposto a Hungria, sustentava que oobjeto jurídico imediato do crime de furto é aproteção da posse, e apenas secundariamente apropriedade é protegida6. Somente a posse legítima,contudo, recebe a proteção jurídico-penal: assim,ladrão que furta de ladrão responde pelo crime defurto7; apenas o sujeito passivo do segundo furtonão será o ladrão, mas o verdadeiro dono oupossuidor legítimo de quem a coisa fora

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anteriormente subtraída.A lei protege, igualmente, a propriedade, pois

não se pode negar que o proprietário sofre danopatrimonial com a subtração ou o desaparecimentoda coisa sobre a qual tinha a posse, direta ouindireta. Somos obrigados a admitir, contudo, que aproteção da posse vem em primeiro lugar, e sósecundariamente se tutela a propriedade. Esta é odireito complexo de usar, gozar e dispor de seus bens— jus utendi, fruendi et abutendi; aquela, a posse, é,na expressão de Ihering, a relação de fatoestabelecida entre o indivíduo e a coisa, pelo fim desua utilização econômica. Enfim, posse é fato,protegida pelo direito como fato, enquanto fato. E éexatamente essa situação de fato que o diploma legalprotege, imediatamente.

2.1 Não podem ser objeto de furto

Objeto de furto somente pode ser coisa móvel. Oser humano, vivo, não pode ser objeto de furto, pelasingela razão de que não se trata de coisa. Poderáresponder por inúmeras outras infrações, não denatureza patrimonial, tais como sequestro, cárcereprivado, subtração de incapazes, lesão corporal etc.A própria subtração de cadáver, em princípio, não

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pode ser objeto material de furto; constitui, naverdade, crime contra o respeito aos mortos (art.211). No entanto, quando, eventualmente, o cadáverfor propriedade de alguém, passando a ter valoreconômico, pode ser objeto de furto, como, porexemplo, quando algo que pertence a uma instituiçãode ensino para estudos científicos é furtado.

Não podem ser objeto do crime de furto, porexemplo, aquelas coisas que não pertencem aninguém, tais como res nullius (coisa que nunca teved o n o ), res derelicta (coisa que já pertenceu aalguém, mas foi abandonada pelo proprietário)8 e rescommune omnium (coisa de uso comum, que, emborade uso de todos, como o ar, a luz ou o calor do Sol, aágua do mar e dos rios, não pode ser objeto deocupação em sua totalidade ou in natura). Paraefeitos penais, constitui res derelicta qualquerobjeto abandonado pelo dono e, como tal, por eledeclarado sem valor econômico, ainda que paraterceiro possa ser valioso; apoderar-se de coisa deninguém — res nullius — constitui, para o direitoprivado, forma de aquisição da propriedade de coisamóvel (ocupação), algo impossível de ocorrerquando a coisa tem dono. E assim o é porque a coisasubtraída, para constituir objeto de furto, devepertencer a alguém, e em qualquer das hipóteses

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antes mencionadas, não pertence a ninguém.Os direitos, reais ou pessoais, não podem ser

objeto de furto. Contudo, os títulos ou documentosque os constituem ou representam podem serfurtados ou subtraídos de seus titulares oudetentores.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, menos oproprietário; este não pode ser sujeito ativo docrime de furto, mesmo em relação ao possuidor, poisfaltará à coisa a elementar normativa “alheia”, ouseja, ninguém pode furtar “coisa própria”; poderá, nomáximo, praticar o crime do art. 346. Pelas mesmasrazões, condômino, coerdeiro ou sócio também nãopodem ser sujeito ativo desse crime de furto.

Na mesma linha de raciocínio, o possuidortampouco pode ser sujeito ativo do crime de furto, namedida em que, estando de posse da coisa, não podesubtraí-la de outrem. Ademais, se inverter a naturezada posse que detém, o crime que praticará não seráeste, mas o de apropriação indébita (art. 168).

Sujeitos passivos são o proprietário, o possuidore, eventualmente, até mesmo o detentor da coisa

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alheia móvel, desde que tenha algum interesselegítimo sobre a coisa subtraída. Na verdade, para opossuidor, inegavelmente, a perda da posse tambémrepresenta um dano patrimonial. Assim, tanto oproprietário quanto o possuidor são sujeitospassivos do crime de furto. Ter a coisa, a qualquertítulo, ou simplesmente poder usá-la constitui umbem para o possuidor ou mesmo o detentor9. Essaconclusão é coerente com a posição que assumimos,pois, se posse e detenção são equiparadas a um bempara o possuidor ou detentor, é natural que ostitulares desse bem se sintam lesados quando foremvítimas de subtração.

A posse ou detenção, contudo, não pode serconfundida com a disposição momentânea da coisa.Por exemplo, alguém entrega a coisa a terceiro, que,de inopino, põe-se em fuga: essa entrega e possecorrespondente não convertem a conduta emapropriação indébita. O crime cometido, narealidade, configura furto.

Para a configuração do crime de furto é irrelevantea identificação e individualização da vítima, pois a leinão protege o patrimônio de alguém em particular,mas de todos em geral; por isso, basta a certeza deque a res furtiva não pertence ao ladrão, isto é, trata-se de coisa alheia. Logo, o fato de não ser

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descoberto ou identificado o proprietário oupossuidor da coisa furtada, por si só, não afasta atipicidade da subtração de coisa alheia.

4. Tipo objetivo: adequação típica

Subtrair coisa alheia móvel, para si ou paraoutrem. Subtrair significa tirar, retirar, surrupiar, tiraràs escondidas. Subtrair não é a simples retirada dacoisa do lugar em que se encontrava; é necessário, aposteriori, sujeitá-la ao poder de disposição doagente. A finalidade deste é dispor da coisa, comanimus definitivo, para si ou para outrem. Oordenamento jurídico brasileiro continua nãopunindo criminalmente o furto de uso. A coisaobjeto da subtração tem de ser móvel, sendo-lheequiparada a energia elétrica. A coisa móvel tem deser alheia. Coisa sem dono ou por esse abandonadanão pode ser objeto de furto. Subtrair coisa própriaconstitui conduta atípica. A coisa móvel precisa sereconomicamente apreciável.

A estrutura da descrição típica do crime de furtonão se limita a dados puramente objetivos,encontrando-se enriquecida por elementos extraídosdas searas da antijuridicidade e da antiga definição

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da culpabilidade, com grande carga normativa esubjetiva. Para a concretização dessa infração penalé insuficiente que o agente subtraia coisa móvel: éindispensável que o faça, para si ou para outrem, eque a coisa subtraída seja alheia. Esses doiselementos — o primeiro normativo e o segundosubjetivo —, exigindo, ambos, juízos valorativos,indispensáveis para que se encontrem seusverdadeiros significados, afastam a objetividade puraprópria dos chamados tipos normais.

Enfim, a tipificação do crime de furto materializa-se com a subtração da coisa móvel, pertencente aoutrem, orientada pela intenção do agente doassenhoramento, próprio ou de terceiro.

Coisa, para fins penais, é tudo que possaconstituir objeto da ação física de subtrair, isto é,coisa corpórea passível de ser deslocada, removida,apreendida ou transportada de um lugar para outro.A eventual intangibilidade da coisa não afasta suaidoneidade para ser objeto de subtração. Contudo,em princípio, a luz, o ar, o calor, a água, do mar oudos rios, não podem ser apreendidos, consumidosou utilizados em sua totalidade. Mas, como lembraNélson Hungria, parcialmente, podem seraproveitados ou consumidos como força ou energia,e, nesse caso, são passíveis de furto10.

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Coisa imóvel, com efeito, pode ser objeto deinúmeras infrações, mas nunca dos crimes de furto eroubo. As definições de coisa móvel e imóvel, nodireito penal, não têm exatamente a mesmacorrespondência no direito civil ou mesmo no direitocomercial. Apesar da prescrição, em sentidocontrário, do Código Civil, para fins penais sãocons ideradas coisas móveis apólices da dívidapública com cláusula de inalienabilidade (art. 79 doCC), materiais separados provisoriamente de umprédio (art. 81, II), navios (art. 1.473, VI) e aeronaves(art. 1.473, VII)11. Em verdade, todos esses objetospodem facilmente ser subtraídos e retirados do lugaronde se encontram sem que o dono ou possuidor operceba; são, em outros termos, de acordo com suanatureza, coisas móveis, configurando, portanto, aelementar exigida pelo tipo penal. Por isso merecem atutela penal, a despeito da natureza jurídica deimóveis que o Código Civil lhes atribui.

Coisa móvel, para o direito penal, é todo equalquer objeto passível de deslocamento, deremoção, apreensão, apossamento ou transporte deum lugar para outro. Na definição de Hungria, “anoção desta, em direito penal, é escrupulosamenterealística, não admitindo as equiparações fictíciasdo direito civil”12. Assim, os imóveis, somente se,

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por qualquer meio, forem mobilizados poderão serobjeto de furto. Os acessórios do imóvel — árvores,arbustos, casas, madeira, plantas — que foremmobilizados também podem ser objeto de furto.

Nessa mesma linha, a despeito de o Código Civilconsiderar coisa móvel os direitos reais (art. 83),eles não podem ser objeto do crime de furto, por nãoserem coisas suscetíveis de serem apreendidas,subtraídas, removidas ou transportadas pelo sujeitoativo.

4.1 Elemento normativo: coisa “alheia”

A condição “alheia” é elemento normativoindispensável à tipificação da subtração de coisamóvel; sua ausência torna a conduta atípica. Aexpressão alheia tem o sentido de coisa que não temou nunca teve dono. Por isso, as coisas sem dono(res nullius), abandonadas (res derelicta) e as coisascomuns (res communes omnium) não podem serobjeto de furto em sua totalidade. Esta última — rescommunes —, já destacava Hungria, “pode ser,entretanto, parcialmente captada e aproveitada comoforça ou energia (ar liquefeito, calor solar como forçamotriz etc.), incidindo essa parte especializada napropriedade de alguém e, assim, tornando-se objeto

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adequado do furto. As águas das cisternas ou ascolhidas e depositadas para uso exclusivo de alguémpodem ser, como é claro, res furtiva”13. Observe-se,porém, que o desvio ou represamento de águascorrentes alheias, em proveito próprio ou alheio,tipifica o crime de usurpação (art. 161, § 1º, I, do CP),e não o crime de furto.

Faz-se necessário demonstrar que a res furtivapertence a alguém. Não há necessidade de identificaro proprietário ou possuidor. A comprovação de quepertence a alguém tem a finalidade de excluir a resnullius, res derelicta e res desperdita. No caso daúltima hipótese, poderá caracterizar apropriaçãoindébita (art. 169).

4.2 Proprietário que subtrai coisa da qual não tema posse: atipicidade

Afinal, pode o proprietário de uma coisa, da qualnão tem a posse, furtá-la? Não esqueçamos aafirmação que fizemos sobre a impossibilidade de oproprietário não poder ser sujeito ativo do crime defurto de coisa própria, por faltar a característica dealheia na coisa cujo domínio lhe pertence. Contudo,a questão, num aspecto mais abrangente, não éassim tão simples.

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Magalhães Noronha, refletindo sobre o tema,exemplifica com um direito real de garantia, como openhor, quando alguém dá ao credor, em garantia dedívida, coisa móvel a título de penhor14.Posteriormente, impossibilitado de honrar o crédito, enão querendo ficar privado de sua coisa, resolvesubtraí-la. Não temos dúvida de que a subtração éilegítima, para não dizer ilícita, ou ainda, criminosa: secriminosa, é certo que a objetividade jurídica épatrimonial. Admitindo tratar-se do crime de furto —prossegue Noronha —, a despeito de ter havidosubtração de coisa própria, há sujeito ativo (odono), há sujeito passivo (o credor), há ação (oapoderamento), há objeto material (a coisa) e hálesão a um bem jurídico (o direito real de garantia docredor). Magalhães Noronha afasta, ainda, apossibilidade de ser admitida a modalidade do art.346, que, segundo afirma, é “modalidade do delito deexercício arbitrário das próprias razões, devendo, nocaso, o proprietário ter certa ou supostamente umapretensão legítima a satisfazer”.

A infração penal, se houver, e acredita-se que há,é de natureza patrimonial. O penhor ficou sem objeto,houve lesão patrimonial, na medida em que o direitoreal de garantia, representado pelo penhor, integravao patrimônio do credor, que foi diminuído pelo

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devedor, proprietário da coisa penhorada. Mas,afinal, será furto subtrair coisa própria, de que não setem a posse direta? E a tipicidade estrita, que exige apresença da elementar normativa, “alheia”, paraconfiguração típica desse crime?

Bento de Faria, na mesma linha de MagalhãesNoronha, admitia essa possibilidade, da qualdiscordava Carlos Xavier15. Para Nélson Hungria eHeleno Cláudio Fragoso haveria infração ao art. 346do CP16. Damásio de Jesus e Paulo José da Costa Jr.acompanham o entendimento esposado porHungria17. Este último, contrariando expressamenteMagalhães Noronha, que afirma estar equivocado,justificando sua opção pela tipificação do art. 346,sustenta: “O que aí se apresenta,inquestionavelmente, é a solução para a hipótese desubtração da res própria na legítima posse deoutrem (a qual, erroneamente, o Código de 1890, noseu art. 332, considerava furto)”18. Maisrecentemente, Luiz Regis Prado não se posiciona,limitando-se a trazer à colação as duas correntessobre o tema19.

Contudo, a despeito de os dois entendimentosperdurarem por mais de meio século, temosdificuldades dogmáticas em aceitar qualquer das

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orientações anteriormente mencionadas, no marco deum direito penal garantista, em um EstadoDemocrático de Direito. Afinal, de plano não se podeesquecer que o direito penal somente se legitimaquando objetiva proteger bens ou interessesjurídicos, e a partir daí, exatamente, começa nossagrande dificuldade. A figura do crime de furto, desdeo direito romano, tem como objetividade jurídica aproteção do patrimônio (posse, propriedade,detenção etc.); de igual sorte, o verbo nuclearrepresentativo desse crime tem sido,sistematicamente, “subtrair”. Por fim, dentro daharmonia adotada pelo Código Penal de 1940, todosos crimes contra o patrimônio têm sede própria, qualseja, o Título II de sua Parte Especial.

A infração penal descrita no art. 346 do CódigoPenal está inserta no Título XI, que disciplina osCrimes contra a Administração Pública, maisespecificamente aqueles que forem praticados contraa administração da justiça. Ora, nenhum dessescrimes tem como objetividade jurídica o patrimônioalheio ou, principalmente, o próprio. Já por esseaspecto, eventual furto de coisa própria, por si só,deve ser afastado da moldura descrita no art. 346,que tem outra finalidade protetiva. Por outro lado,nos crimes de furto (inclusive de coisa comum) e de

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roubo o verbo nuclear, “subtrair”, tem forma livre,não estabelecendo meio, forma ou modo de serexecutado, adquirindo sentido específico, qual seja,de apossamento da res furtiva. Assim, os verbos“tirar”, “suprimir”, “destruir” ou “danificar” sãoinadequados ou impróprios para significar subtraçãode coisa móvel, própria ou alheia. Ademais, oespecial fim de agir, típico do crime de furto,tampouco se faz presente na figura descrita no art.346, que, como afirma Noronha, constitui modalidadede exercício arbitrário das próprias razões. O fatode não existir a rubrica lateral com o nomen juris dotipo penal não causa nenhuma estranheza, na medidaem que existem inúmeros dispositivos com essatécnica, sem que a omissão permita atribuir aproteção de bens jurídicos estranhos ao própriocapítulo ou título a que pertençam.

Por fim, os estudiosos do Código Penal sãounânimes em reconhecer que se trata de um diplomalegal metódico, harmonioso e coerente. Pelo menosnão se lhe tem atribuído, ao longo de sua existência,nenhum paradoxo, como seria deslocar um tipo penalprotegendo um bem jurídico fora daquele Título quelhe foi cientificamente reservado. Que seria de nossodiploma legal se nos onze Títulos de sua ParteEspecial pudessem ser encontrados aqui e acolá

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tipos penais disciplinando e protegendo bensjurídicos distintos de suas rubricas? Certamente nãoteria recebido o reconhecimento internacional comoum dos melhores Códigos Penais da primeira metadedo século XX.

Assim, com essa sucinta argumentação,afastamos a adequação do crime de furto de coisaprópria da descrição contida no art. 346.

Melhor sorte, contudo, não assiste aoentendimento esposado por Magalhães Noronha,independentemente de a proteção imediata ser daposse ou da propriedade, em especial nos temposatuais, quando se sustenta a necessidade absolutada tipicidade estrita, como garantia máxima daproteção das liberdades individuais. A imensamaioria da doutrina, inclusive a estrangeira, nãoadmite o furto de coisa própria, por faltar-lhe aelementar alheia: o dono não pode ser sujeito ativodo crime de furto de coisa que lhe pertence!20Alheio, seja no sentido comum, seja em sentidojurídico-penal, significa “o que não é nosso, o quenão nos pertence”. Esse é o sentido empregado peloCódigo Penal, nos crimes de furto e roubo e tambémnaqueles descritos nos arts. 163, 164, 168 e 169,todos contra o patrimônio.

O fato de o direito do detentor da coisa subtraída

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pelo dono necessitar de proteção legal não autorizainterpretação extensiva para admitir a tipificação decondutas que não encontram correspondência típicaem nenhum dispositivo penal. O reconhecimento daexistência de eventual dano patrimonial tampouco éfundamento suficiente para burlar toda a estruturadogmática da teoria do delito, construída ao longo deséculos de evolução científica.

Com efeito, se dano patrimonial existir,indevidamente, necessita da proteção legal que, porcerto, ante a ausência de tipificação específica, nãoestará no âmbito penal. Porém, o ordenamentojurídico como um todo tem condições de estenderseu manto protetor para assegurar eventual lesão dequem assim se sentir; institutos tais como busca eapreensão, sequestro, ações possessórias,indenizatórias etc., enfim, um arsenal de medidasestará à disposição de eventual lesado, semnecessidade de destruir o direito penal para supriruma lacuna desconhecida pelo então legislador.

4.3 Lesão patrimonial: bem economicamenteapreciável

Determinada corrente condiciona a existência decrime patrimonial à lesão de interesse

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economicamente apreciável; outra corrente, emborareconheça a importância do aspecto econômico noscrimes patrimoniais, adverte que, se algum bemmoral for constituído por alguma coisa, deve serconsiderado “coisa” no sentido jurídico, pois énessa condição que assume valor patrimonial21.Efetivamente, determinada coisa pode não ter valorpara o agente, mas ser extremamente valiosa para avítima.

Para Heleno Fragoso, não pode existir crimepatrimonial se não houver lesão a interesse jurídicoapreciável economicamente, aplicando-se, nessescasos, a noção civilística, segundo a qual é elementarao conceito de patrimônio a avaliação econômica dosbens ou relações que o compõem22. Em sentidocontrário posicionava-se Nélson Hungria,reconhecendo que, embora a nota predominante doelemento patrimonial seja seu caráter econômico,deve-se advertir que, “por extensão, também sedizem patrimoniais aquelas coisas que, embora semvalor venal, representam uma utilidade, ainda quesimplesmente moral” (Hungria). Manzini adotavaessa orientação, considerando que o conceito devalor patrimonial não corresponde necessariamenteao de valor econômico, e o conceito de danopatrimonial não se identifica necessariamente com o

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de dano econômico. Se um bem moral é constituídopor uma coisa, ele é coisa no sentido jurídico23. Nomesmo sentido era o magistério de Antolisei24, paraquem “O patrimônio não compreende apenas asrelações jurídicas economicamente apreciáveis —isto é, os direitos que são avaliáveis em dinheiro —senão também as que versam sobre coisas que têmmero valor de afeição (recordações de família,objetos que nos são caros por motivos especiaisetc.). Posto que também essas coisas fazem parte dopatrimônio, a subtração delas representa, semdúvida, uma diminuição patrimonial e, assim,constitui dano patrimonial”.

Trata-se de crime material por excelência, sendoindispensável a superveniência do eventus damni.Não se pode falar em crime de furto, em nossaconcepção, sem a existência efetiva de diminuiçãodo patrimônio alheio. A coisa subtraída não deveter, enfim, para o sujeito passivo, apenas valormonetário, mas representar, pelo menos, algumautilidade, de qualquer natureza, para que possa serconsiderada integrante de seu patrimônio.

A descrição típica não exige que a finalidade doagente seja a obtenção de vantagem ilícita ou, maisprecisamente, agir com animus lucrandi, como

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algumas legislações fazem. A despeito dessaomissão, alguns doutrinadores sustentam anecessidade dessa finalidade que, segundo afirmam,estaria implícita na definição do crime de furto. AssimWeber Martins Batista, para quem “é evidente queele é essencial ao furto e está implícito na expressão‘para si ou para outrem’”25. Contraditoriamente, noparágrafo anterior, Weber Martins Batista afirma que“nada importa, para a caracterização do fato, omotivo do crime, o fim último que levou o agente acometê-lo. Basta que o tenha praticado com aintenção de ficar com a coisa — que sabia ser alheia— para si ou para terceiros”26. É indiferente quepratique um furto infamante ou, ao contrário, o façacomo um moderno Robin Hood, furtando dos ricospara distribuir aos pobres.

Na verdade, em nosso entendimento, é irrelevanteo motivo ou finalidade que orientou a conduta doagente, ou seja, é absolutamente desnecessário queo sujeito ativo tenha praticado a subtração visando aobtenção de lucro ou mesmo que tenha conseguidoefetivamente algum lucro, sendo suficiente que otenha feito para “si ou para outrem”, sabendo que setrata de coisa alheia, e apresente algum danopatrimonial. Igualmente, a motivação de vingançacontra a vítima ou apenas proporcionar um agrado a

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um amigo, desafeto da vítima, não altera a tipicidadedo crime, desde que presente o animus rem sibihabendi.

Não se pode esquecer, contudo, que, se o animusorientador da conduta tipificar outra infração penal,por exemplo, exercício arbitrário das própriasrazões, responderá por esse crime, e não pelo defurto. Assim, aquele que, visando satisfazerpretensão, legítima ou não, subtrai valor de seudevedor que não lhe paga comete esse crime (art.345), e não o de furto.

Quando o objeto da subtração (aspectoexaminado em tópico próprio) for de pequeno valor,configurará a minorante prevista no art. 155, § 2º, doCP. Esse “valor diminuto”, convém registrar, nãoconstitui descriminante ou mesmo qualquer causa deatipicidade; no entanto, as coisas juridicamenteirrelevantes não podem ser objeto do crime de furto,tais como um palito, um cotonete, um alfinete, umaagulha etc.

4.4 Coisa perdida, abandonada e coisa comum

Ao examinarmos o objeto jurídico do crime defurto, destacamos que, prioritariamente, é a posse e,secundariamente, a propriedade, estendendo-se até a

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detenção legítima. Assim, a coisa perdida não seencontra na posse de ninguém. Mas coisa perdidanão é coisa abandonada; consequentemente, o dononão renunciou a sua propriedade, apenas e tãosomente ignora o local onde ela se encontra. Por issoa coisa perdida não pode ser objeto de subtração.Teoricamente até se poderia discutir a existênciaresidual da proteção do direito de propriedade. Seria,no entanto, mera discussão acadêmica, no casoimprodutiva, na medida em que o art. 169, II, tipificaessa conduta como apropriação de coisa achada (aespecialidade afasta a generalidade).

A coisa abandonada — res derelicta — não podeser objeto de subtração nem de apropriação indébita.Constitui res derelicta, repetindo, qualquer objetoabandonado pelo dono e, nessa circunstância, porele declarado sem valor econômico, ainda que,eventualmente, possa ser valioso para terceiro.

Mas convém ter presente que o abandono dacoisa deve ser evidente, inequívoco, preciso, não ocaracterizando, por exemplo, o simples fato de seruma coisa velha, com as aberturas em precáriascondições, facilitando inclusive o acesso. Essascircunstâncias, por si sós, não autorizam estranho apenetrar em seu interior e dispor de seus bens.

A subtração de coisa de propriedade ou posse

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comum, praticada por sócio, condômino oucoerdeiro, está tipificada no art. 156, e, por todas assuas peculiaridades, será abordada em capítulopróprio.

5. Natureza e efeito do consentimento da vítima nocrime de furto

Destaca-se, por fim, que o crime de furtopressupõe o dissenso da vítima, sendo irrelevante,contudo, que seja praticado na presença ou ausênciadesta, na medida em que a clandestinidade, emboraseja a regra, não constitui elemento estrutural dessecrime. Na verdade, a subtração da coisa alheia móvelpode ser realizada por meio da apreensão manual,com a utilização de algum instrumento, animaladestrado ou por intermédio de agente incapaz(autoria mediata).

No entanto, ao se examinar a natureza eimportância do consentimento do ofendido, devem-se distinguir aquelas situações que caracterizamexclusão de tipicidade das que operam comoexcludentes de antijuridicidade. Na verdade, sefizermos uma análise, ainda que superficial,constataremos que em muitas figuras delituosas, de

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qualquer Código Penal, a ausência de consentimentofaz parte da estrutura típica como característicanegativa do tipo. Logo, a presença deconsentimento afasta a tipicidade da conduta que,para configurar crime, exige o dissenso da vítima, porexemplo, a invasão de domicílio (art. 150), aviolação de correspondência (art. 151) etc. Outrasvezes, o consentimento do ofendido constituiverdadeira elementar do crime, como ocorre, porexemplo, no aborto consentido (art. 126). Nessescasos, o consentimento é elemento essencial do tipopenal.

Enfim, são duas formas distintas de oconsentimento do ofendido influir na tipicidade:para excluí-la, quando o tipo pressupõe o dissensoda vítima; e para integrá-la, quando o assentimentoda vítima constitui elemento estrutural da figuratípica.

6. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo, que éseu elemento subjetivo geral, e pelo especial fim deagir, que é seu elemento subjetivo especial. O dolo,por sua vez, constitui-se pela vontade consciente de

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subtrair coisa alheia, isto é, que pertença a outrem. Éindispensável que o dolo abranja todos os elementosconstitutivos do tipo penal, sob pena de configurar-se o erro de tipo, e, como não há previsão damodalidade de furto culposo, a evitabilidade ouinevitabilidade27 do erro é irrelevante, pois ambosexcluirão a tipicidade, salvo se se tratar de simulacrode erro.

É indispensável, enfim, que o agente saiba que setrata de coisa alheia. Quando, no entanto, o agente,por erro, supuser que a coisa “subtraída” é própria,não responderá pelo crime de furto, por faltar-lhe oconhecimento ou a consciência da elementarnormativa alheia. O sujeito crê que seu atuar épermitido, em virtude de não saber o que faz, nãoestando, consequentemente, sua vontade dirigida àrealização do tipo, como reconheceu a célebrejurisprudência alemã de 18 de março de 195228. Estar-se-á diante do que se chama de crime putativo, que,evidentemente, crime não é.

O elemento subjetivo especial do tipo, por suavez, é representado pelo fim especial de apoderar-seda coisa subtraída, para si ou para outrem. Aausência desse animus apropriativo (finalidade deapossamento) desnatura a figura do crime de furto.

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Logicamente, quando essa circunstância se fizerpresente, haverá uma espécie de inversão do ônusda prova, devendo o agente demonstrar, in concreto,que a finalidade da subtração era outra e não a deapoderar-se da coisa, para si ou para outrem.

7. Consumação e tentativa

7.1 Consumação

Quanto ao momento consumativo do crime defurto podem-se destacar, basicamente, trêsorientações distintas: a) que é suficiente odeslocamento da coisa, mesmo que ainda não tenhasaído da esfera de vigilância da vítima; b) que énecessário afastar-se da esfera de vigilância dosujeito passivo; c) que é necessário um estado deposse tranquilo, ainda que momentâneo.

Consuma-se o crime de furto com a retirada dacoisa da esfera de disponibilidade da vítima,assegurando-se, em consequência, a posse tranquila,mesmo passageira, por parte do agente; em outrostermos, consuma-se quando a coisa sai da posse davítima, ingressando na do agente. A posse de quem

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detinha a coisa é substituída pela posse do agente,em verdadeira inversão ilícita. Para MagalhãesNoronha, a consumação “verifica-se quando a coisaé substituída à esfera de atividade da vítima, isto é,quando ela é colocada em situação tal que aquelanão mais pode exercer os atos que sua posse lheconfere”29. Enfim, o apossamento ouassenhoramento ocorre quando a coisa alheia sai davigilância ou disponibilidade do ofendido, emboraseja bastante difícil precisar, aprioristicamente, omomento em que ocorre essa verdadeira inversão daposse. Apesar de tratar-se de crime material, a faseexecutória, não raro, é tão exígua que ação econsumação praticamente se confundem; assim, porexemplo, quando o agente subtrai alimento e, aindano local, o ingere.

A despeito da necessidade dessas duascircunstâncias — sair da disponibilidade da vítima eestar na posse tranquila do agente —, é possível,teoricamente, ocorrer a consumação do furto, sendoo agente preso em flagrante. Com efeito, a amplitudedo conceito de flagrante estabelecido pelo art. 302,IV, do Código de Processo Penal permite essainterpretação. Segundo esse dispositivo, considera-se em flagrante delito até mesmo quem “éencontrado, logo depois, com instrumentos, armas,

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objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autorda infração”. Nessas circunstâncias, nada impedeque a res furtiva tenha saído da esfera de vigilânciada vítima e, ainda que momentaneamente, o agentetenha tido sua posse tranquila, tendo-se consumadoo furto30. Enfim, a prisão em flagrante, comconsequente brevidade da posse, não descaracterizao furto consumado, pois para que o delito seconsuma não é necessária posse definitiva ouprolongada da res furtiva, bastando a posse efêmera,com a saída da esfera de vigilância da vítima. Existemcircunstâncias em que o furto deve ser consideradoconsumado, como ocorre mesmo que a res furtivapermaneça no âmbito pessoal ou profissional davítima, como destacava Hungria: “É o caso, porexemplo, da criada que sub-repticiamente empolgauma joia da patroa e a esconde no seio ou mesmonalgum escaninho da casa, para, oportunamente, semdespertar suspeitas, transportá-la a lugar seguro”31.Nesses casos, esclarecia Hungria, não hápossibilidade material, por parte do ofendido, deexercer o seu poder de disposição da coisa, cujoparadeiro desconhece.

7.2 Tentativa

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O furto, como crime material, admite comsegurança a figura tentada. Sempre que a atividadeexecutória seja interrompida, no curso da execução,por causas estranhas a vontade do agente,configura-se a tentativa. Em outros termos, quando oprocesso executório for impedido de prosseguirantes de o objeto da subtração ser deslocado daesfera de vigilância e disponibilidade da vítima para aposse tranquila do agente, não se pode falar emcrime consumado. “Consuma-se o delito — afirmaDamásio de Jesus — no momento em que a vítimanão pode mais exercer as faculdades inerentes à suaposse ou propriedade, instante em que o ofendidonão pode mais dispor do objeto material”32.

Não se pode falar em crime consumado quando,por exemplo, a vítima percebe que está sendo furtadapelo punguista e sai em sua perseguição, prendendo-o em seguida na posse da res furtiva. Inegavelmenteo evento jurídico pretendido pelo agente —apossamento da coisa alheia — não se realizou, umavez que o objeto pretendido não saiu da esfera devigilância da vítima e, consequentemente, não entrouna pose tranquila do agente.

Por outro lado, para a punibilidade da tentativa,nosso Código Penal seguiu a teoria objetiva,segundo a qual “o que justifica a punibilidade da

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tentativa é o perigo objetivo que ela representa parao bem jurídico. E esse perigo só existirá se os meiosempregados na tentativa forem adequados àprodução do resultado e se o objeto visadoapresentar as condições necessárias para que esseresultado se produza”33. A tentativa, em outrostermos, não é punível quando é absoluta aineficácia do meio ou absoluta a impropriedade doobjeto (art. 17). Não há tentativa quando, porexemplo, o agente introduz a mão no bolso da vítimapara subtrair-lhe os valores, mas esta não trazconsigo nenhum centavo. Equivocadamente, NélsonHungria posicionava-se em sentido contrário,considerando que a inexistência de dinheiro forameramente acidental e que o insucesso do melianteresultou de puro caso fortuito34. Deve-se, naverdade, distinguir duas hipóteses: (1) se a vítimatem dinheiro acondicionado em outro bolso, o bemjurídico (patrimônio) corre sério risco, pois há operigo efetivo de dano; (2) contudo, se a vítima nãotem dinheiro algum no momento, não há qualquerrisco a seu patrimônio, em face da inexistência dobem. A ação do agente, desde o princípio, estavadestinada ao insucesso, pois não se pode furtar onada. Enfim, na primeira hipótese, a impropriedade doobjeto é relativa; na segunda, a impropriedade é

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absoluta, tratando-se de crime impossível (art. 17 doCP).

Ocorre furto tentado, não havendo que se falarem crime impossível, no caso do agente que subtraidiversas mercadorias de supermercado, só nãoconsumando o delito porque, aleatoriamente, érevistado ao passar pela portaria do estabelecimento.Caracteriza-se o furto tentado simples quando ocrime material não se consuma por circunstânciasalheias à vontade do agente, não chegando a resfurtiva a sair da esfera de vigilância do dono e,consequentemente, não passando para a possetranquila daquele.

Se o agente teve a posse tranquila da res furtiva,apesar do pouco tempo, de forma totalmentedesvigiada, é indiscutível a ocorrência do furtoconsumado, sendo, portanto, irrelevante o tempo deduração da disponibilidade da coisa.

8. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (aquele que exigequalquer condição especial do sujeito ativo); dedano (consuma-se apenas com lesão efetiva ao bemjurídico tutelado); material (que causa

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transformação no mundo exterior, consistente àdiminuição do patrimônio da vítima); comissivo (é daessência do próprio verbo nuclear, que só pode serpraticado por meio de uma ação positiva;logicamente, por intermédio da omissão imprópriatambém pode ser praticado, nos termos do art. 13, §2º) ; doloso (não há previsão legal para a figuraculposa); de forma livre (pode ser praticado porqualquer meio, forma ou modo); instantâneo (aconsumação opera-se de imediato, não se alongandono tempo); unissubjetivo (pode ser praticado, emregra, apenas por um agente); plurissubsistente(pode ser desdobrado em vários atos, que, noentanto, integram uma mesma conduta).

9. Furto durante o repouso noturno

O § 1º do art. 155 determina o aumento de umterço da pena “se o crime é praticado durante orepouso noturno”. Constata-se que o furto praticadodurante o repouso noturno, embora não qualifiqueo crime, majora a pena aplicável.

Trata-se de vetusta previsão legal que remonta aodireito romano — furtum nocturnum —, jáabandonada pelas legislações da segunda metade do

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século XX35. Acreditamos, ademais, que ofundamento é absolutamente equivocado e não temrazão de ser mantido no limiar do século XXI. Não seignora que o legislador, em 1940, considerou que anoite facilita o furto, proporciona ao agente maioresprobabilidades de êxito, assegura-lhe maisfacilmente a fuga, enfim, diminui os meios de defesado indivíduo e amplia os de execução e êxito dodelinquente. Acreditamos equivocado o argumentode que aquele que procura furtar durante a noiterevela maior temibilidade, quando o quotidianourbano se encarrega de nos mostrar diariamente queos crimes mais graves e cruéis estão sendopraticados à luz do dia, com absoluto destemor àsautoridades policiais, como ocorre com os assaltosaos estabelecimentos bancários. Aliás, esse já era olúcido magistério de Magalhães Noronha, in verbis:“Se se pode dizer que o agente que procura a noiteage insidiosamente para não ser descoberto, podefalar-se também que assim age por maior temor àPolícia. Mais temíveis são os que não receiam a luzdo sol para assaltar o patrimônio alheio. Menosperigosos são os ladrões que assaltam um Bancodurante a noite do que os que o fazem à luz solar,como frequentemente acontece entre nós...”36.

Teria sido melhor não prevê-lo. Contudo,

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trabalhando com um Código Penal que tem mais demeio século de vigência, não nos resta outraalternativa senão interpretá-lo. Como o desuso, adesatualização ou superação político-científica não orevogam, deve-se procurar, pelo menos, dar-lheinterpretação a mais restritiva possível.

Não entraremos na superada discussão sobre oque deve ser entendido por noite, que deu origemaos critérios físico-astronômico e psicossociológico,uma vez que nosso legislador optou pelo últimocritério, adotando expressamente a locução repousonoturno, sem qualquer referência à palavra noite. Poropção, também não questionaremos a possíveldistinção entre casa habitada e repouso noturno.

Com a expressão durante o repouso noturno, porcerto, a lei não se refere ao nascer e ao pôr do sol,mas ao período de recolhimento, aquele em que apopulação deve dormir. Essa circunstância, denatureza puramente sociológica, deve ser analisada,casuisticamente, considerando os hábitos ecostumes da localidade onde o fato ocorreu. Aexistência ou não da majorante é matéria de fato, quedeve ser examinada em cada caso concreto. Emboratecnicamente irrepreensível, mostra-seabsolutamente superada a velha orientação deMagalhães Noronha, que afirmava: “Para nós, existe

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a agravante quando o furto se dá durante o tempoem que a cidade ou o local repousa, o que nãoimporta necessariamente seja a casa habitada ouestejam seus moradores dormindo”37. Com efeito, nalinha restritiva a que nos propomos, para seconfigurar a majorante do repouso noturno necessitaser praticada em casa habitada, já em horário derepouso, porque, nessas circunstâncias,efetivamente, afrouxa-se a vigilância do sujeitopassivo, facilitando não só a impunidade, mastambém o êxito do empreendimento delituoso.

Levantaram-se sobre o tema algumas orientaçõesdistintas: a) o lugar precisa ser habitado, com pessoarepousando (RT, 559:358); b) o lugar não precisa serhabitado (RT, 537:372 e 590:361); c) os moradoresnão devem estar acordados (RT, 498:323); d) não seexige a presença de moradores (STF, RTJ, 64:593 eRT, 637:366).

Não se podem perder de vista dois aspectosfundamentais: a finalidade protetiva da norma e anecessidade de sua interpretação restritiva, como járeferimos. Nessa linha, sustentamos a conveniênciapolítico-criminal de adotar a primeira opção, qualseja, para se admitir caracterizada a majorante dorepouso noturno, é necessário que o lugar sejahabitado e se encontre com pessoa repousando. O

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próprio Nélson Hungria, em seu tempo, já reconheciaque essa agravante não se aplica quando o furto épraticado em local onde os moradores não seencontram repousando, mas festejando, “pois, em talcaso — sustentava Hungria —, desaparece a razãode ser da maior punibilidade”.

Jurisprudência e doutrina dominantes, comacerto, reconhecem a inaplicabilidade da majorantedo repouso noturno quando o furto é praticado emlugar desabitado (estabelecimento comercial, porexemplo) ou na ausência dos moradores. O acertodessa orientação reside no fato de que a majoranteestá diretamente ligada à cessação ou afrouxamentoda vigilância. Ora, em lugar desabitado ou naausência de moradores não pode cessar ou diminuiralgo que nem sequer existe38.

Indubitavelmente, a majorante do repousonoturno é inaplicável às hipóteses de furtoqualificado, podendo, contudo, ser considerada nadosimetria da pena, como circunstância do crime (art.59).

10. Furto de pequeno valor

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Destacamos, desde logo, que não nos agrada aconsagrada terminologia “furto privilegiado”, namedida em que se trata somente de uma causa suigeneris de diminuição de pena ou, como preferimosdenominar, de minorante. Em nossa concepção, paraconfigurar verdadeira figura privilegiada,contrapondo-se à qualificada, deveria apresentarnovos limites mínimo e máximo, inferiores àqueles dofurto simples.

O § 2º do art. 155 prevê a possibilidade de reduzira sanção cominada para o crime de furto, quando setratar de réu primário e de pequeno valor a coisasubtraída. Presentes esses dois requisitos, a pena dereclusão pode ser substituída pela de detenção,somente pela pena de multa ou apenas ser reduzidade um a dois terços. Em outros termos, o pequenodesvalor do resultado e a primariedade do agenterecomendam menor reprovação deste, determinando,em obediência ao princípio da proporcionalidade, aredução da sanção para adequá-la à menor gravidadedo fato. Esse dispositivo procura corrigir, pelaequidade, o excessivo rigor da sanção cominada aum simples crime de furto; aplica-se tanto ao furtosimples quanto ao furto durante o repouso noturno,excluindo-se, segundo interpretação majoritária, dofurto qualificado.

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A despeito da tradição e da solidez desseentendimento, não vemos nenhuma base sólida,contundente e jurídica para excluir essa minorante dofurto qualificado. A inaplicabilidade da majorante dorepouso noturno justifica-se pela incidência de duasagravações da pena: a simples qualificadora já dobraa sanção penal da figura simples, não havendo razãológica para ainda ser elevada em mais um terço.Contudo, na hipótese da minorante do pequenovalor não se está cuidando de duas causas deaumento, mas tão somente de redução sobre um tipoqualificado. Não há, com efeito, fundamento político-jurídico para punir um réu primário, que subtrai coisade pequeno valor, com abuso de confiança, com amesma pena daquele que subtrai coisa valiosa, nasmesmas circunstâncias. São coisas diferentes, quemerecem reprimendas igualmente diferentes,devendo incidir, por isso mesmo, a minorante paraaquele, conforme demonstraremos em outro tópico.

A primariedade, como primeiro requisitonecessário para a configuração da minorante, emboraencerre um conceito negativo, não se confunde comnão reincidência, especialmente a partir da reformapenal de 1984 (Lei n. 7.209), que introduziu um novoconceito, qual seja, o de “não reincidente”. A ParteGeral do Código adota um critério distinto do da

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Parte Especial: trabalha com os conceitos de“reincidente” e “não reincidente”, enquanto a ParteEspecial utiliza os conceitos de “reincidente” e“primário”. Anteriormente, “reincidente” e “primário”constituíam definições excludentes: ou uma ou outra,tanto que se adotava o seguinte conceito: “primárioé o não reincidente”.

A partir da reforma penal referida, essa concepçãodeixou de ser verdadeira, na medida em que passarama existir três, digamos, categorias: primário,reincidente e não reincidente. Com efeito, chama-seprimário quem nunca sofreu qualquer condenaçãoirrecorrível; reincidente, quem praticou um crimeapós o trânsito em julgado de decisão condenatória(em primeiro ou segundo grau), enquanto não tenhadecorrido o prazo de cinco anos do cumprimento ouda extinção da pena; não reincidente, comocategoria, é aquele que não é primário e tampoucoostenta a condição de reincidente (essa é definiçãoexclusiva para o direito brasileiro, sendo inaplicável,genericamente, às legislações alienígenas). Não éreincidente, por exemplo, quem comete o segundo outerceiro crime antes do trânsito em julgado de crimeanterior; quem comete novo crime após o decurso decinco anos do cumprimento de condenação anteriorou da extinção da punibilidade etc. Dessa forma,

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discordamos frontalmente do conceito de primárioconcebido por Damásio de Jesus, segundo o qual“Criminoso primário... é o não reincidente. Assim,entendemos que é primário não só o sujeito que foicondenado ou está sendo condenado pela primeiravez, como também aquele que tem váriascondenações, não sendo reincidente”39.

Constata-se, enfim, que o termo “primariedade”tem, tecnicamente, um conceito bem delimitado.Eventuais condenações anteriores, por si sós, oumeros antecedentes criminais negativos não sãocausas impeditivas do reconhecimento da existênciadesse requisito à luz de nosso ordenamento jurídicoem vigor. Tratando-se de norma criminal, não podeter interpretação extensiva, para restringir a liberdadedo cidadão.

O segundo requisito legal é que se trate de “coisade pequeno valor”, definição que está longe de serpacífica quer na doutrina quer na jurisprudência.Como elemento normativo do tipo, para interpretá-loadequadamente, dever-se-á ter em consideração aspeculiaridades e as circunstâncias pessoais e locaisdo fato.

A doutrina, em geral, tem definido como pequenovalor aquele cuja perda pode ser suportada semmaiores dificuldades pela generalidade das pessoas.

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“Ao rico — lembrava Magalhães Noronha —porque, talvez, nem perceberá sua falta; ao pobreporque, na sua penúria, de pouco lhe valerá”40.Embora nos desagrade a fixação de determinadoquantum, por sua relatividade, ante a necessidade deum paradigma, aceitamos a orientação majoritária,segundo a qual de pequeno valor é a coisa que nãoultrapassa o equivalente ao salário-mínimo.

Contudo, na seara tributária, a própria receitaencarregou-se de estabelecer valores muitosuperiores para os quais não admite a execução fiscal(no momento, fixado em R$ 2.500,00). Diante desseentendimento da receita, é natural que se considere,nos crimes fiscais ou tributários, não apenas“pequeno valor”, mas valor insignificante, paraexcluir a própria tipicidade da conduta, segundo oprincípio da insignificância41.

10.1 Aplicabilidade da privilegiadora no furtoqualificado

Reina profunda desinteligência sobre apossibilidade de o privilégio contido no § 2º incidirem qualquer das figuras qualificadas previstas no §4º do mesmo artigo. Razões das mais variadas são

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invocadas para fundamentar esse entendimento, masnenhuma apresenta fundamento cientificamentesustentável.

A jurisprudência majoritária historicamente temnegado essa possibilidade e tem encontrado eco naprópria doutrina. Contudo, mais recentemente, essasorientações têm cedido espaço a uma interpretaçãoracionalmente mais liberal, com uma análise maispolítico-dogmática e menos anatômico-anacrônica,que sempre procurou dar sentido à norma segundo aordem crescente ou decrescente que aparecem nosdispositivos legais.

Não há nenhuma razão lógica, metodológica oucientífica para que um tipo fundamental de crimepossa receber a incidência ora de privilegiadora orade qualificadora, mas nunca de ambas. Quandodeterminado crime satisfizer, in concreto, osrequisitos legais exigíveis para caracterizar aprivilegiadora, como é o caso da primariedade e dopequeno valor da coisa furtada, se incidir, ao mesmotempo, alguma qualificadora, não há fundamentojurídico que autorize a não aplicação daprivilegiadora. Por que razão, optando-se por umalinha excludente, se deve dar preferência àqualificadora em detrimento da privilegiadora? E porque não se pode interpretar em sentido contrário, na

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medida em que, em se tratando de normascriminalizadoras, recomenda-se sempre ainterpretação mais favorável?

Todo sistema jurídico bem estruturado deve serharmônico, intercomunicando-se os diversos ramos enormas que o compõem. Essa harmonia sugere aconjugação das diversas normas, inclusive daquelasaparentemente contraditórias, como são asprivilegiadoras e qualificadoras de determinadainfração penal.

Com efeito, não há razão que justifique a puniçãode réu primário que subtrai coisa de pequeno valor,com abuso de confiança, com o mesmo grau de penadaquele que subtrai coisa de valor considerável, nasmesmas circunstâncias. Como destacou o MinistroCernicchiaro, o tratamento normativo traduz acaracterística jurídica da infração penal, e, se houvereventuais complexidades, devem ser consideradas;caso contrário, a pena não projetará a expressão queo direito lhe atribuiu42. Enfim, a circunstância desituar-se o preceito privilegiador em parágrafoanterior àquele que define o furto qualificado nãoimpede a aplicação daquele benefício43.

O Supremo Tribunal Federal, assumindo posturamais conservadora, ao contrário do que vem

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entendendo o Superior Tribunal de Justiça, temdecidido pelo não cabimento da concessão doprivilégio do furto de pequeno valor quando se tratarde crime qualificado44.

Sintetizando, a primariedade e o pequeno valord a res furtiva permitem a substituição da pena dereclusão por detenção, reduzi-la de um a dois terçosou aplicar somente multa. Pequeno valor não seconfunde com pequeno prejuízo (art. 171, § 1º). Essaminorante, direito público subjetivo do réu, éaplicável ao furto simples e ao furto noturno.

10.2 Pequeno valor e pequeno prejuízo: distinção

Para fins de aplicação do disposto no § 2º do art.155 do CP, não se identificam “pequeno valor” da resfurtiva e “pequeno prejuízo” resultante da açãodelituosa. Quando o legislador deseja considerar oprejuízo sofrido pela vítima, o faz expressamente,como no estelionato (art. 171, § 1º, do CP).

O valor da res furtiva deve ser medido ao tempoda subtração, não se identificando com o pequenoprejuízo que dela resultar. Como a previsão legalrefere-se a pequeno valor da coisa furtada, éirrelevante a circunstância de a vítima recuperar o

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bem subtraído e não sofrer prejuízo algum. Noscrimes contra o patrimônio, a recuperação do bemsubtraído não pode ser admitida como causa daatipicidade da conduta do agente e nem mesmo comofundamento da privilegiadora “pequeno valor”. Oscrimes patrimoniais tipificam-se peloassenhoreamento da coisa subtraída, orientada pelaintenção dolosa do agente.

11. Furto qualificado: tipo derivado

O modus operandi, no crime de furto, podeapresentar particularidades que representem maiorgravidade na violação do patrimônio alheio,produzindo maior alarma social, tornando a condutamais censurável e, por isso mesmo, merecedora demaior punibilidade, quer pelo maior desvalor daação, quer pelo maior desvalor do resultado(destruição ou rompimento de obstáculo). Comoadverte Luiz Regis Prado, “é inegável a maiorgravidade do injusto, pois não só o desvalor daação, mas também os efeitos deletérios da infração,são acentuadamente maiores do que na hipótese dofurto comum”45.

Essas particularidades podem assumir diversos

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graus de intensidade, recebendo, de acordo com suagravidade, a qualificação de agravantes, majoranteso u qualificadoras. Observando o princípio dareserva legal, optou-se por estabelecer taxativamenteaquelas circunstâncias que, por sua gravidade,tornam o crime qualificado, que, a rigor, constituemnovos tipos penais, derivados, mas autônomos, comnovos parâmetros sancionatórios, bem mais graves,distintos da figura fundamental — furto simples.Destacava Nélson Hungria que, “segundo o critériogeral, não poderiam passar de accidentalia do furto,mas a lei, destacando, no caso, para apriorístico rigorde punição, uma species do genus ‘furto’, considera-as, ipso facto, essentialia em relação a esta”46.

A graduação do injusto penal observa sua maiorou menor danosidade, que ora é representada, comodissemos, pelo desvalor da ação, ora pelo desvalordo resultado. Inegavelmente, como destaca WeberMartins Batista47, a reprovabilidade é maior paraquem utiliza meios excepcionais para superarobstáculos defensivos do patrimônio alheio, ou seorganiza para essa finalidade, ou, ainda, trai aconfiança que alguém lhe depositara, descuidando-se, por isso mesmo, da vigilância de seu patrimônio.Nesse crime, as qualificadoras, com exceção doabuso de confiança, são de natureza objetiva e, por

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conseguinte, comunicam-se aos coautores, nostermos do art. 30 do CP.

A presença de apenas uma delas é suficiente paraqualificar o crime, mudando sua capitulação e,substancialmente, sua punição; eventual concursode duas ou mais qualificadoras não modifica a penaabstratamente cominada; contudo, deve serconsiderada na medida da pena concretizada, ouseja, uma delas, a nosso juízo a mais grave ou maisbem comprovada nos autos, servirá para estabelecera pena-base, fixando o marco do tipo penal derivado,enquanto as demais devem ser trabalhadas naoperação dosimétrica da pena, visando encontrar oresultado definitivo.

Façamos uma análise individualizada dessaselementares definidoras de novos tipos penais.

11.1 Com destruição ou rompimento de obstáculo(I)

Este dispositivo concretiza a distinção que oCódigo Penal faz ao incriminar a violência praticadasobre a coisa e a violência praticada contra apessoa. Assim, somente a violência empregadacontra a coisa caracteriza a qualificadora do furto,pois quando for utilizada contra a pessoa, o crime

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será de roubo. A violência deve ser contraobstáculo que dificulte a subtração, e não contra aprópria coisa que é o objeto da subtração.

Obstáculo é tudo o que é empregado paraproteger a coisa contra eventual ação delitiva. Nãose considera obstáculo aquilo que integra a própriacoisa, como, por exemplo, os vidros do automóvel, amenos que sejam rompidos para subtrair objetos quese encontram no interior do veículo, mas não parasubtrair o próprio; da mesma forma, o simplesdesparafusamento dos faroletes ou dos pneus deum automóvel não tipifica a qualificadora. Éindispensável que a violência seja exercida contra umobstáculo exterior à coisa que se pretendesubtrair48; contudo, o obstáculo pode ser interno ouexterno: externo, quando a violência se direciona,por exemplo, a obstáculo que objetiva impedir oacesso à parte interna de uma casa ou edifício ouqualquer outro ambiente fechado; interno, quando aação violenta se dirige a obstáculo interno, isto é,que se encontra no interior do local da subtração,tais como cofres, armadilhas, armários etc.49. Enfim,para efeitos penais, não constitui obstáculo aresistência inerente à própria coisa, que por si mesmadificulte sua subtração. O obstáculo deve ter afinalidade de proteger o patrimônio, e para vencê-lo o

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agente deve empregar violência para destruí-lo ourompê-lo. Mas, registre-se, é indispensável queexista obstáculo a ser vencido, isto é, que hajaresistência a ser vencida, caso contrário não sepoderá falar nessa qualificadora.

A qualificadora contida no inciso I do § 4º do art.155 apresenta duas hipóteses distintas: destruição er o mp i me n t o . Destruir significa desfazercompletamente o obstáculo, demoli-lo, ao passo queromper é arrombar, arrebentar, cortar, serrar, perfurar,deslocar ou forçar, de qualquer modo, o obstáculo,com ou sem dano à substância da coisa. Hádestruição quando ocorre a demolição, oaniquilamento ou o desaparecimento de eventualobstáculo que, de alguma forma, sirva de proteção aoobjeto da subtração. O rompimento, por sua vez,consiste no arrombamento, deslocamento ousupressão do obstáculo, visando facilitar asubtração da coisa alheia. Não é necessário que oagente ingresse de corpo inteiro no local onde seencontra a res, sendo suficiente retirá-la, pelaabertura forçada, seja com a mão, seja com alguminstrumento apropriado.

A ausência de previsão legal dos meios, modosou formas de produzir destruição ou rompimentoautoriza a utilização de quaisquer deles — manuais

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ou mecânicos —, desde que idôneos para o fimproposto.

A violência50, na verdade, é o meio paraconcretizar a subtração da coisa alheia. MagalhãesNoronha sustentava que a violência devia seranterior ou contemporânea à apreensão, refutando,inclusive, autores alienígenas, como Manzini, porexemplo, pois trabalhavam sobre textos legaisdistintos51. Nélson Hungria, em posição antagônica,seguida por Heleno Fragoso, contestava MagalhãesNoronha, pois a subtração contida no texto legalabrange não apenas a apreensão, mas também aremoção52.

Na verdade, não há qualquer relevância se aviolência contra a coisa se opera antes ou depois desua apreensão, desde que, logicamente, se concretizeantes da consumação do crime53. Assim, destruiçãoo u rompimento praticado para consumar asubtração, mesmo após a apreensão física da coisa,também qualifica o crime; agora, se o rompimento oua destruição for praticado após a consumação dofurto, constituirá crime autônomo.

11.2 Com abuso de confiança, ou mediante fraude,

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escalada ou destreza (II)

Neste inciso são criminalizados quatro meios oumodos de ser executado o crime de furto em formaqualificada, merecedores de maior reprovação penal.No primeiro deles, o agente pratica a subtraçãovalendo-se de relação de confiança que mantém como sujeito passivo, que lhe facilita o acesso à resfurtiva, cuja violação justifica sua maiorcensurabilidade.

Confiança é um sentimento interior decredibilidade, representando um vínculo subjetivo derespeito e consideração entre o agente e a vítima,pressupondo especial relação pessoal entre ambos.Abuso de confiança, por sua vez, consiste em umaespécie de traição à confiança, produto de relaçõesde confiabilidade entre sujeitos ativo e passivo,exatamente a razão pela qual, foi facilitado o acesso àcoisa alheia. Exemplos típicos são os casos dosempregados domésticos, incluindo-se também quemse vale da relação de hospitalidade ou coabitação.Convém advertir, contudo, que não basta a simplesrelação empregatícia para caracterizar a qualificadora,sendo indispensável um vínculo subjetivocaracterizador da confiança e, por isso mesmo,passível de ser quebrado54. Assim, simples furto de

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objetos no local de trabalho não qualifica o furto porabuso de confiança, que não é uma condição naturale obrigatória das relações trabalhistas oudomésticas; pode, no máximo, incidir, no furtosimples, a agravante genérica das relaçõesdomésticas, de coabitação ou hospitalidade (art. 61,II, f). E mais: não basta a existência de uma relação deconfiança entre sujeito ativo e sujeito passivo; énecessário que o sujeito ativo se tenha valido dessarelação para praticar o crime, isto é, tenha abusadodela para a execução criminosa. É a velha relação decausa e efeito.

É necessário que a confiança seja natural,conquistada normalmente, isto é, sem ardil, casocontrário a qualificadora que se apresenta não é oabuso de confiança, mas a fraude. Dois requisitos sefazem necessários: abuso da confiança depositadapelo ofendido e que a coisa se encontre, em razãodessa confiança, na esfera de disponibilidade doagente55. É indispensável, ademais, que o agentetenha consciência de que pratica o crime abusandoda relação de confiança que mantém com a vítima.

Confiança é uma circunstância de “caráterpessoal” e, como tal, em princípio, é incomunicávelaos diversos participantes de uma mesma infraçãopenal (art. 30); contudo, na hipótese, ela constitui

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“elementar do crime” qualificado, incidindo naressalva do mesmo art. 30, que determina, nessescasos, a comunicabilidade das elementares típicas,independentemente de sua natureza objetiva ousubjetiva. Convém destacar, no entanto, que acomunicabilidade, não apenas de elementaressubjetivas, mas de qualquer natureza, somente existese o participante conhecer essa circunstância antesda prática delituosa; caso contrário, ela não terá sidoabrangida por seu dolo, resultando incomunicável,por sua natureza subjetiva, mas pelodesconhecimento do agente que, em relação àelementar, não agiu com dolo.

O furto qualificado, ora examinado, difere daapropriação indébita, basicamente, por doisaspectos fundamentais: o momento da deliberaçãocriminosa e o do apossamento da res. Na apropriaçãoindébita o agente exerce a posse em nome de outrem,enquanto no furto com abuso de confiança tem merocontato, mas não a posse da coisa; naquela, o dolo ésuperveniente, enquanto neste há dolus ab initio56.

Nélson Hungria advertia, com acerto, que não sedeve confundir esse furto qualificado com aapropriação indébita, que, em princípio, pressupõeabuso de confiança. Nessa, o agente exerce“desvigiada posse de fato sobre a coisa”, que, em

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razão da confiança, lhe fora autorizada pelo dominus,para determinado fim; no furto, em razão daconfiança, o agente tem contato com a coisa, masnão a posse, que continua na plena esfera devigilância e disponibilidade do dono. Em outrostermos, o abuso de confiança, elementar quequalifica o crime de furto, não se confunde com aconfiança, implícita, na apropriação indébita. Nessesentido, é impecável o exemplo citado por Damásiode Jesus, pela semelhança e proximidade entre asduas situações, que apenas se distinguem no detalheessencial: “Suponha-se que o sujeito, numabiblioteca, apanhe o livro que lhe foi confiado pelabibliotecária e o esconda sob o paletó, subtraindo-o.Responde por delito de furto qualificado pelo abusode confiança. Suponha-se, agora, que o sujeito, damesma biblioteca pública, tome emprestado o livro e,levando-o para casa, venda-o a terceiro. Neste caso,responde por apropriação indébita”57. Emborapareça sutil, é uma distinção que faz a diferençaefetiva entre um crime e outro. No mesmo sentido, oexemplo de Hungria é lapidar: “Assim, o caixeiro-viajante que se apropria de dinheiros recebidos daclientela do patrão, comete apropriação indébita;mas o caixeiro sedentário que, iludindo a vigilânciado patrão, subtrai mercadoria das prateleiras, ou

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dinheiro da caixa registradora ou recebido no balcão,comete furto qualificado”58.

Mediante fraude é a segunda qualificadoracontemplada no inciso II do § 4º do art. 155. Fraudeé a utilização de artifício, de estratagema ou ardil paravencer a vigilância da vítima; em outros termos, trata-se de manobra enganosa para ludibriar a confiançaexistente em uma relação interpessoal, destinada ainduzir ou a manter alguém em erro, com a finalidadede atingir o objetivo criminoso. Na verdade, a fraudenão deixa de ser uma forma especial de abuso deconfiança, ou, na feliz expressão de Guilherme Nucci,“é uma relação de confiança instantânea, formada apartir de um ardil”59.

A qualificadora aperfeiçoa-se quer a fraude sejautilizada para a apreensão da coisa, quer para seuassenhoreamento. Não há nenhuma restrição quantoà forma, meio ou espécie de fraude, basta que sejaidônea para desviar a atenção do dono, proprietárioou simples “vigilante” da disponibilidade esegurança da res. Assim, caracteriza meiofraudulento qualquer artimanha utilizada paraprovocar a desatenção ou distração da vigilância,para facilitar a subtração da coisa alheia.

Embora a fraude seja característica inerente ao

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crime de estelionato, aquela que qualifica o furtonão se confunde com a deste. No furto, a fraudeburla a vigilância da vítima, que, assim, não percebeque a res lhe está sendo subtraída; no estelionato, aocontrário, a fraude induz a vítima a erro. Esta,voluntariamente, entrega seu patrimônio ao agente.No furto, a fraude visa desviar a oposição atenta dodono da coisa, ao passo que no estelionato oobjetivo é obter seu consentimento, viciado peloerro, logicamente.

O dissenso da vítima no crime de furto, mesmofraudulento, e sua aquiescência, embora viciada, noestelionato são dois aspectos que os tornaminconfundíveis. Examinando, com acerto, essadistinção, Fernando de Almeida Pedroso destaca “aunilateralidade do furto majorado pela fraude, peladissensão da vítima no apoderamento, e abilateralidade do estelionato, pela aquiescência —embora viciada e tisnada — do lesado”60.

Escalada, em sentido vernacular, significa“assaltar, subindo por escalada; subir a algum lugarusando escadas; trepar a, subir a, galgar, atingir”61.Escalada, que em direito penal tem sentido próprio, éa penetração no local do furto por meio anormal,artificial ou impróprio, que demanda esforço

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incomum. Escalada não implica, necessariamente,subida, pois tanto é escalada galgar alturas quantosaltar fossos, rampas ou mesmo subterrâneos, desdeque o faça para vencer obstáculos. O acesso ao localda subtração deve apresentar determinadadificuldade, a ponto de exigir esforço incomum,habilidade ou destreza para superá-la. Se paraingressar no recinto, mesmo através de uma janela ousaltando um muro, não for exigível desforço anormal,não se pode falar em escalada, como qualificadora docrime de furto. Esse já era o magistério de Carrara,que, criticando a doutrina francesa, exageradamenteliberal na interpretação do obstáculo, pontificava: “Éexagerada essa doutrina, porque estende aoproprietário incauto a proteção que deve ser dada aoprecavido, e um simples arremedo, uma meraaparência de defesa, não se equipara à defesaefetiva”62.

Os meios artificiais utilizáveis para a superaçãode obstáculo à subtração, sem violência, sãoquaisquer meios idôneos para consegui-lo, estejamno local ou sejam levados pelo agente. A existênciade obstáculo, por si só, não caracteriza aqualificadora, sendo-lhe indispensável a idoneidadepara dificultar a ação delitiva. Importa, isso sim, é arealidade da defesa, sendo irrelevante a intenção do

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dono. Qualquer que seja o obstáculo, necessita sercontínuo de forma a inviabilizar o acesso, a não sermediante escalada. Assim, segundo Hungria, “se omuro galgado apresenta rombos que permitam apassagem de pessoas ou não rodeia todo o prédio,não existirá a qualificativa (não passando acircunstância de mero capricho ou inadvertência doagente)”63.

Em síntese, a escalada consiste no fato depenetrar o agente no lugar em que se encontra acoisa objeto da subtração, por via anormal, porentrada não destinada a esse fim, e da qual não tem odireito de utilizar-se. E mais: consiste não apenas emingresso no local por via incomum, mas, sobretudo,superando obstáculo difícil, que demande o uso deinstrumento especial ou de invulgar habilidade doagente64. Afinal, o fundamento dessa qualificadoraé, como destacava Sebastian Soler, o mesmo quedeterminou a agravação do furto praticado comchave falsa, ou seja, punir mais gravemente aqueleque, mesmo sem usar violência, mas com habilidadeou grande esforço, vence obstáculos efetivamentedefensivos da res65.

Finalmente, a destreza, que é a últimaqualificadora constante do inciso II do § 4º do art.

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155. Significa especial habilidade capaz de impedirque a vítima perceba a subtração realizada em suapresença. É a subtração que se convencionouchamar de punga66. A destreza pressupõe umaatividade dissimulada, que exige habilidade incomum,aumentando o risco de dano ao patrimônio edificultando sua proteção. O folclórico batedor decarteiras, o conhecido punguista, é o exemplo maiscaracterístico do furto com destreza, que não seconfunde com o “trombadinha”, que se choca com avítima e, com violência, arranca-lhe os pertences.Não configura a destreza quando o ladrão age adescoberto, mesmo que o faça com rapidez invulgar,pois não eliminou totalmente a possibilidade dedefesa da vítima. Não se pode falar em destrezaquando, por inabilidade do agente, é surpreendidopela vítima no momento da ação. Contudo, se fordescoberto, logo após a subtração, por meroacidente ou simples suspeita, sem qualquer vínculocom a perfeição ou imperfeição da ação, aqualificadora deve ser reconhecida. A habilidadeassegurou o êxito da execução; outras causas podemter impedido, num momento posterior, adisponibilidade definitiva. Na verdade, a destrezadeve ser analisada sob a ótica da vítima e não deterceiro. Assim, se ela não percebe a punga, é

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irrelevante para caracterizá-la que terceiro impeça suaconsumação.

Destreza não se confunde com audácia, que secaracteriza, por exemplo, com o arrebatamentoviolento. O arrebatamento não revela destreza doautor, mas exagerada distração da vítima. No entanto,o arrebatamento com o rompimento de obstáculoconstitui furto qualificado (§ 4º, I). Embora oarrebatamento, por si só, praticado sem violência àpessoa, constitua furto simples, havendo violência àpessoa constituirá roubo. Tampouco se podereconhecer a destreza quando a subtração épraticada com vítima que se encontra dormindo,mesmo que o faça com o cuidado necessário paranão despertá-la.

Sintetizando, a destreza constitui a habilidadefísica ou manual empregada pelo agente nasubtração, fazendo com que a vítima não perceba oseu ato. É o meio empregado pelos batedores decarteira, pick-pockets ou punguistas, na gíriacriminal brasileira. O agente adestra-se, treina,especializa-se, adquirindo habilidade tal com mãos ededos que a subtração ocorre como um passe demágica, dissimuladamente. Por isso, a prisão emflagrante (próprio) do punguista afasta aqualificadora, devendo responder por tentativa de

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furto simples; na verdade, a realidade práticacomprovou exatamente a inabilidade do incauto.

11.3 Com emprego de chave falsa (III)

Chave falsa é qualquer instrumento de que sesirva o agente para abrir fechaduras, tendo ou nãoformato de chave. Exemplos: grampo, alfinete, prego,fenda, gazua etc.

A chave verdadeira, à evidência, não qualifica ocrime, pois lhe falta a elementar normativa “falsa”. Oemprego de chave falsa traduz maior perigosidade doagente, que, dessa forma, demonstra a instabilidadeda normal proteção patrimonial, que uma fechadura,por si só, não pode elidir o risco de sua violação.Equivocado, nesse particular, o antigo magistério deMagalhães Noronha, que professava o seguinte: “Namesma ordem de ideias, são também falsas as chavesverdadeiras furtadas ou perdidas. Não há comoexcluí-las da disposição legal. Se o que a lei veda é aabertura ilícita da coisa que representa a custódia,maior razão existe contra o emprego da chavesubtraída ou achada, pois já é obtidacriminosamente, quer por ter sido furtada, quer pornão ter sido devolvida ao dono”67. Na verdade, se achave verdadeira for ardilosamente conseguida

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pelo agente, a qualificadora será pelo emprego defraude (art. 155, § 4º, II, 2ª figura)68; contudo, seaquela for esquecida na fechadura ou encontrada,normalmente, em algum lugar, pelo agente ou porterceiro, indiferentemente, o furto será simples69, aocontrário do que sustentava Noronha.

A locução “se o crime é cometido” traduz ideia deação, não se referindo, portanto, a resultado; logo,refere-se ao modus operandi, sendo, porconseguinte, irrelevante o êxito do empreendimentodelituoso para que a qualificadora se aperfeiçoe. Ésuficiente que a chave falsa seja utilizada peloagente, independentemente de conseguir seu intentode apreender a res pretendida.

A simples posse de chave falsa, por mais suspeitaque seja, não passa de autêntico ato preparatório,teoricamente, impunível. Excepcionalmente, porém,desde que satisfeitas as elementares específicas,pode tipificar a contravenção do art. 25 da LCP. Pararepresentar pelo menos o início de execução —elemento objetivo da tentativa — é necessário, aomenos, que o agente esteja introduzindo oinstrumento falso na fechadura, quando éinterrompido, por causa estranha à sua vontade (art.14, II, do CP).

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11.4 Mediante concurso de duas ou mais pessoas(IV)

Finalmente, estamos diante da última, maiscomplexa e mais polêmica das qualificadoraselencadas para o furto: se o crime é cometido“mediante concurso de duas ou mais pessoas”. Semsombra de dúvida, é a qualificadora que produz maiordiversidade de opiniões e que apresenta, ao mesmotempo, o maior número de sugestões quer quanto asua configuração, quer quanto a sua naturezajurídica. Para melhor interpretá-la, deve-se começarrepassando as manifestações que sobre elaexternaram alguns dos principais especialistas, apartir, inclusive, de Nélson Hungria.

O magistério de Hungria pode ser sintetizado noseguinte: trata-se de crime eventualmente coletivo,devendo-se, em princípio, observar as regras sobre aparticipação criminosa (concurso de pessoas), comalgumas modificações: a necessidade da presença inloco dos concorrentes, ou seja, participação efetivana fase executiva; é necessária uma conscientecombinação de vontades, sendo insuficiente umaadesão voluntária, mas ignorada. É irrelevante quealgum dos participantes seja inimputável ou isentode pena; pela mesma razão, é indiferente que apenasum seja identificado. Ajuste prévio que não chega

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sequer a ser tentado é impunível70.Para Magalhães Noronha, a qualificadora

pretende impedir a conjugação de esforços e evitar oenfraquecimento da defesa privada; é indispensávelacordo de vontades, sob pena de caracterizar aautoria colateral; a exemplo de Hungria, ainimputabilidade de qualquer dos participantes nãoelimina a qualificadora, que, nesse particular, deveser avaliada sob o critério objetivo; é aplicável aoinstigador a agravante genérica71.

Heleno Fragoso, por sua vez, preleciona: não seexige a presença dos “coautores” na fase executória,nem ajuste prévio ou combinação, bastando aconsciência recíproca de cooperar na ação comum; ofundamento do gravame reside na maior eficiência docrime organizado ou associado. É irrelevante ainimputabilidade de qualquer dos concorrentes.Disciplina-se pela previsão do concurso depessoas72.

Damásio de Jesus, por seu turno, defende: édesnecessária a presença in loco dos concorrentes,lembrando a autoria mediata; a exemplo de Fragoso,adverte que comete crime “quem de qualquer modoconcorre” para ele; é desnecessário acordo prévio, e,como a lei não faz nenhuma exigência, deve-se

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aplicar os princípios do concurso de pessoas73.Em apertada síntese, procuramos retratar o

pensamento desses ilustres penalistas, que fizeramescola entre nós. Numa coisa praticamente todosconcordam, com mais ou menos restrições: para aboa interpretação dessa qualificadora, devem-seaplicar os princípios orientadores do concurso depessoas, com o que, aliás, estamos de pleno acordo.A partir daí, começam profundas diferenças,especialmente com o advento da reforma penal de1984 (Lei n. 7.209), que deu outra roupagem aoconcursus delinquentium, a começar pelaterminologia, que de “coautoria” (espécie) passou a“concurso de pessoas” (gênero), além de acrescentarque cada concorrente responde “na medida de suaculpabilidade”, o que era exigência natural de umEstado Democrático de Direito. Portanto, é a partirdessa ótica que faremos nossa análise da indigitadaqualificadora.

12. Concursus delinquentium e concurso de duas oumais pessoas

O exame dessa qualificadora, comparada aoinstituto concurso eventual de pessoas, deve iniciar

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destacando a mudança de tratamento que a reformapenal de 1984 deu ao concursus delinquentium.

Incorre em grave equívoco quem afirmar que,segundo nosso Código Penal, “comete crime quemde qualquer forma concorre para ele”. Na realidade, aassertiva não é verdadeira, e o legislador não podeser acusado desse paradoxo, pois em nenhummomento incidiu nesse erro crasso, pois nem mesmoimplicitamente afirmou que “comete o crime quem dequalquer modo concorre para ele”. Na verdade, otexto legal afirma que “quem de qualquer modoconcorre para o crime” incide nas penas a elecominadas, o que são coisas muito diferentes. Acontrario sensu, com efeito, está afirmando,implicitamente, que não o comete quem, de qualquermodo, concorre para o crime. Nesse sentido, precisae enfática é a crítica de Weber Martins Batista, quemerece ser transcrita, in verbis: “O Código Penal nãocomete a heresia de consagrar, expressa ouimplicitamente, que comete o crime quem de qualquerforma concorre para ele. O que está na lei,corretamente, é que incide nas penas cominadas aocrime — expressão com que, implicitamente, se afirmaq u e não o comete — quem, de qualquer modo,concorre para ele. Comete o crime — ninguém afirmade outro modo — quem participa materialmente de

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sua execução. Não fora isso, e seria desnecessária anorma de extensão do art. 29 do Código Penal”74.

Enfim, todos os que concorrem, moral oumaterialmente, para o crime são punidos pelo CódigoPenal (art. 29, caput), mas a qualificadora somentese configurará no furto cometido por duas ou maispessoas que, necessariamente, devem encontrar-seno local do crime, pois, como adverte WeberMartins, “o furto só será cometido ‘mediante oconcurso de duas ou mais pessoas’ se estasparticiparem na fase executiva do delito”75. Somenteassim se pode fazer presente a maior temibilidade eeficiência da delinquência coletiva, que seria ofundamento da maior punibilidade. O próprioSupremo Tribunal Federal já reconheceu — ainda navigência da lei anterior — a necessidade daparticipação efetiva dos agentes na execução docrime. Argumentou, então, com muita propriedade, orelator, Ministro Djaci Falcão, que “se o legisladorvisa, no caso, a punir mais gravemente a soma deesforços para a prática do crime, circunstância a quese agrega a da redução de capacidade de defesa davítima, razão, a nosso ver, dessa agravação, parece-nos evidente que o preceito deva ser interpretado,teleologicamente, como endereçado à hipótese decooperação de agentes na fase de execução do crime,

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única hipótese em que, aquelas duas circunstânciasse fazem realmente presentes”76. Mais não precisariaser dito.

Incorre em erro grosseiro quem, sustentandoentendimento contrário, continua afirmando que“não há mais diferença entre autor principal e autorsecundário no atual sistema brasileiro”77. Naverdade, não se pode ignorar que, embora a reformapenal de 1984 tenha mantido a teoria monística daação, adotou a teoria restritiva de autor78, fazendoperfeita distinção entre autor e partícipe que,abstratamente, incorrem na mesma pena cominadaao crime que praticarem, mas que, concretamente,variará segundo a culpabilidade de cadaparticipante (art. 29 e §§ 1º e 2º)79; em relação aopartícipe, variará ainda de acordo com aimportância causal da sua contribuição80.

Ora, esse tratamento diferenciado de autor epartícipe, adotado pela reforma penal de 1984, nãopode ser ignorado quando estivermos perante aqualificadora do crime de furto que, segundo aorientação dominante, deve ser orientada pelosprincípios que fundamentam o instituto concurso depessoas, especialmente considerando que umsistema jurídico não pode abrir mão da harmonia e

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coerência, características fundamentais que devempresidi-lo.

O ajuste e a determinação, reconhece o próprioCódigo Penal (art. 31), são penalmente irrelevantesse, pelo menos, não participarem de sua execução;aliás, não constituem nem agravante genérica,quanto mais qualificar um crime. Nesse particular jáera o magistério do velho Hungria81, que continuacom a razão ao exigir, para configurar a qualificadora,a presença in loco dos concorrentes, isto é, aparticipação efetiva na execução do crime.

Enfim, para reconhecer a configuração daqualificadora deve-se observar os princípiosorientadores do instituto concurso de pessoas,notadamente a distinção entre coautoria eparticipação, a começar pela necessidade dacausalidade física e psíquica, que passamos aanalisar.

12.1 Coautoria e participação em sentido estrito

Coautoria é a realização conjunta, por mais deuma pessoa, de uma mesma infração penal. Coautoriaé, em última análise, a própria autoria82. Édesnecessário um acordo prévio, como exigia a

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antiga doutrina, bastando a consciência de cooperarna ação comum. É a atuação consciente de estarcontribuindo na realização comum de uma infraçãopenal. Essa consciência constitui o liamepsicológico que une a ação de todos, dando ocaráter de crime único. A resolução comum deexecutar o fato é o vínculo que converte asdiferentes partes em um todo único. Todosparticipam da realização do comportamento típico,sendo desnecessário que todos pratiquem o mesmoato executivo. Basta que cada um contribuaefetivamente na realização da figura típica e que essacontribuição possa ser considerada importante noaperfeiçoamento do crime.

A coautoria fundamenta-se no princípio da“divisão de trabalho”83, em que todos tomam parte,atuando em conjunto na execução da ação típica,de modo que cada um possa ser chamadoverdadeiramente autor. É o que pode ocorrerespecialmente naqueles crimes que Beling chamoude crimes de “ação dupla”84, como, no crime deestupro: enquanto um dos agentes segura a vítima, ooutro a possui sexualmente.

Na coautoria não há relação de acessoriedade,mas a imediata imputação recíproca, visto que cada

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um desempenha uma função fundamental naconsecução do objetivo comum. O decisivo nacoautoria, segundo a visão finalista, é que o domíniodo fato pertença aos vários intervenientes, que, emrazão do princípio da divisão de trabalho,apresentam-se como peça essencial na realização doplano global.

O Código Penal não define o que deve serentendido por participação. Essa omissão, contudo,não impediu que a doutrina nacional reconhecesse adistinção ontológica que está não apenas na lei, masna situação fenomenológica da coautoria e daparticipação. O novo tratamento dado pela reformaao instituto do concurso eventual de pessoas facilitae até recomenda essa distinção ao determinarconsequências penais diferenciadas, segundo aculpabilidade de cada participante, e nos limites dacontribuição causal de cada partícipe.

A participação em sentido estrito, como espéciedo gênero concurso de pessoas, é a intervenção emum fato alheio, o que pressupõe a existência de umautor principal. O partícipe não pratica a condutadescrita pelo preceito primário da norma penal, masrealiza uma atividade secundária que contribui,estimula ou favorece a execução da condutaproibida. Não realiza atividade propriamente

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executiva. A norma que determina a punição dopartícipe implica uma ampliação da punibilidade decomportamentos que, de outro modo, seriamimpunes, pois as prescrições da Parte Especial doCódigo não abrangem o comportamento do partícipe.Bettiol insiste que o critério distintivo entre autor epartícipe deve apoiar-se na tipicidade, sendo que atipicidade da conduta do partícipe decorre da normareferente à participação, enquanto a tipicidade daconduta do autor decorre da norma principalincriminadora. Por isso, o penalista italiano define opartícipe como “quem concorre para a prática decrime, desempenhando atividade logicamentedistinta da do autor principal, porque recai sob oâmbito das normas secundárias de caráter extensivosobre a participação”85.

Para que a contribuição do partícipe ganherelevância jurídica é indispensável que o autor oucoautores iniciem, pelo menos, a execução dainfração penal. A participação pode apresentar-sesob várias formas: instigação, determinação, chefia,organização, ajuste, cumplicidade etc. A doutrina, demodo geral, tem considerado, porém, duas espéciesde participação: instigação86 e cumplicidade87.

Por derradeiro, qualquer que seja a forma ou

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espécie de participação, é indispensável a presençade dois requisitos: eficácia causal e consciência departicipar na ação de outrem. É insuficiente aexteriorização da vontade de participar. Não bastarealizar a atividade de partícipe se esta não influir naatividade final do autor. Não terá relevância aparticipação se o crime não for, pelo menos, tentado.Que importância teria o empréstimo da arma se oautor não a utiliza na execução do crime ou nemsequer se sente encorajado a praticá-lo com talempréstimo? Por outro lado, é indispensável saberque coopera na ação delitiva de outrem, mesmo queo autor desconheça ou até recuse a cooperação. Opartícipe precisa ter consciência de participar naação principal e no resultado.

12.2 Causalidade física e psíquica: elementoobjetivo-subjetivo

De plano, deixamos consignado que nãoaceitamos a afirmação de que a qualificadora doconcurso de pessoas tem natureza puramenteobjetiva; para nós, essa qualificadora não tem caráterobjetivo e tampouco subjetivo, mas objetivo-s ub jet ivo : objetivo quanto à necessidade dapresença efetiva de duas ou mais pessoas na

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execução do crime, independentemente daresponsabilidade ou da punibilidade do comparsa;subjetivo quanto à exigência de participação inconcreto dos concorrentes efetivamentecontribuindo conscientemente na realização efetivado crime de furto.

A causalidade é apenas o elemento material,objetivo do concurso de pessoas — a contribuiçãocausal física —, importante, necessária, masinsuficiente para aperfeiçoar o instituto. Éindispensável a presença, ao mesmo tempo, de umelemento subjetivo, a vontade e a consciência departicipar da obra comum. O concurso de pessoascompreende não só a contribuição causal,puramente objetiva, mas também a contribuiçãosubjetiva, pois, como diz Soler, “participar não querdizer só produzir, mas produzir típica, antijurídica eculpavelmente”88 um resultado proibido. Éindispensável a consciência e vontade de participar,elemento que não necessita revestir-se da qualidadede “acordo prévio”, que, se existir, representaráapenas a forma mais comum, ordinária, de adesão devontades na realização de uma figura típica. Aconsciência de colaborar na realização de umaconduta delituosa pode faltar no verdadeiro autorque, aliás, pode até desconhecê-la ou não desejá-la,

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bastando que o outro agente deseje aderir à empresacriminosa. Porém, ao partícipe é indispensável essaadesão consciente e voluntária, não só na açãocomum, mas também no resultado pretendido peloautor principal.

A causalidade física é apenas um fragmento docomplexo problema do concurso de pessoas, queexige também o liame subjetivo para completar-se. Énecessário, na expressão de Soler, a integração deum “processo físico de causação e um processohumano de produção de um resultado”89. Assim,inexistindo o nexo causal ou o liame subjetivo,qualquer dos dois, não se poderá falar em concursode pessoas. Por exemplo, alguém, querendocontribuir com a prática de um homicídio, empresta aarma, que, afinal, não é utilizada na execução docrime e não influi de forma alguma no ânimo doautor; ou, então, o criado que, por imprudência ounegligência, deixa aberta a porta da casa durante anoite, favorecendo, inadvertidamente, a prática deum furto. No primeiro caso, não houve eficáciacausal da participação; no segundo, faltou oelemento subjetivo, não sendo, consequentemente,em qualquer das hipóteses, puníveis as condutasdos pseudopartícipes.

Assim, não basta a constatação puramente

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objetiva da existência de mais de um indivíduo nacena do crime ou no cenário criminal: é indispensávelcomprovar a efetiva contribuição e a existência realdos dois elementos — objetivo-subjetivo — queacabamos de examinar, sob pena de não seconfigurar a qualificadora.

12.3 Participação impunível: impede aconfiguração da qualificadora

Verificamos que a participação estácondicionada a dois requisitos fundamentais:eficácia causal e consciência de participar na açãocomum. De outro lado, sabe-se que, em regra, o crimenão será punido se não for, pelo menos, tentado; ouseja, as duas primeiras fases do iter criminis,elaboração mental e preparação do crime, não sãopuníveis, desde que esta última não constitua em simesma algum crime. Na mesma linha de orientaçãoestão as formas de participação, que o art. 31 doCódigo Penal exemplifica como ajuste, determinação,instigação e auxílio. A participação em um crime quenão chegou a se iniciar não teve eficácia causal, esem essa eficácia não há falar em participaçãocriminosa. Nessas circunstâncias, como atividadeacessória que é, a participação, em qualquer de suas

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formas, não será punível. Em relação à qualificadora,a interpretação não pode ser outra, sob pena deconsagrar-se a odiosa responsabilidade objetiva,evocando-se verdadeiro direito penal de autor.

Com efeito, a conduta de cada participante deveintegrar-se à corrente causal determinante doresultado. Nem todo comportamento constitui“participação”, ou, no caso, a qualificadora emexame, pois precisa ter “eficácia causal”,provocando, facilitando ou ao menos estimulando arealização da conduta principal. Assim, no exemplodaquele que, querendo participar de um homicídio,empresta uma arma de fogo ao executor, que não autiliza e tampouco se sente estimulado ou encorajadocom tal empréstimo a executar o delito, aquele nãopode ser tido como partícipe pela simples e singelarazão de que seu comportamento foi irrelevante, istoé, sem qualquer eficácia causal. Por outro lado, deveexistir também, repetindo, um liame psicológicoentre os vários participantes, ou seja, consciência deque participam na obra comum. A ausência desseelemento psicológico desnatura o concurso eventualde pessoas, transformando-o em condutas isoladas eautônomas. Ora, tratando-se de obras ou condutasisoladas, autônomas, não se pode falar em concursode pessoas, que traria implícito aquele fundamento

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majorativo da qualificadora.O simples conhecimento da realização de uma

infração penal ou mesmo a concordânciapsicológica caracterizam, no máximo, “conivência”,que não é punível, a título de participação, se nãoconstituir, pelo menos, alguma forma de contribuiçãocausal, ou então, constituir, por si mesma, infraçãotípica. Tampouco será responsabilizado comopartícipe quem, tendo ciência da realização de umcrime, não o denuncia às autoridades, salvo se tivero dever jurídico de fazê-lo.

12.4 Autoria colateral: atipicidade daqualificadora do concurso de pessoas

A ausência do vínculo subjetivo não apenasafasta o concurso de pessoas, como já destacamos,mas também impede a configuração da qualificadorado art. 155, § 4º, IV, que não passaria decircunstância puramente objetiva, uma espécie deautoria mediata.

H á autoria colateral quando duas ou maispessoas, ignorando uma a contribuição da outra,rea lizam condutas convergentes objetivando aexecução da mesma infração penal. É o agir conjuntode vários agentes, sem reciprocidade consensual, no

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empreendimento criminoso que identifica a autoriacolateral. A ausência do vínculo subjetivo entre osintervenientes é o elemento caracterizador da autoriacolateral. Na autoria colateral, não é a adesão àresolução criminosa comum, que não existe, mas odolo dos participantes, individualmente considerado,que estabelece os limites da responsabilidadejurídico-penal dos autores. Ora, o reconhecimento daqualificadora, nessas circunstâncias, quando um dosagentes ignora que participa ou contribui nasubtração praticada por outrem, implica autênticaresponsabilidade objetiva; logo, os agentes devemresponder, isoladamente, pelo crime de furto simples.

Quando, por exemplo, dois indivíduos, sem saberum do outro, colocam-se de tocaia e, ao passar avítima, desferem tiros ao mesmo tempo, matando-a,cada um responderá, individualmente, pelo crimecometido. Se houvesse liame subjetivo, ambosresponderiam como coautores de homicídioqualificado. Havendo coautoria, será indiferentesaber qual dos dois disparou o tiro fatal, pois ambosresponderão igualmente pelo delito consumado. Ján a autoria colateral é indispensável saber quemproduziu o quê. Imagine-se que o tiro de um apenasfoi o causador da morte da vítima, sendo que o dooutro a atingiu superficialmente. O que matou

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responde por homicídio, e o outro responderá portentativa. Se houvesse o liame subjetivo, ambosresponderiam por homicídio em coautoria.

13. Autoria mediata: impossibilidade daqualificadora de concurso de pessoas

Heleno Fragoso e Damásio de Jesus90 sustentama desnecessidade da presença dos “coautores nafase executória” (Fragoso) ou “no local da execução”(Damásio) para a configuração da qualificadora“mediante concurso de duas ou mais pessoas”,lembrando Damásio, aliás, a figura do “mandado”,que, segundo afirma, também qualificaria o crime.

A doutrina consagrou a figura da autoriamediata, e algumas legislações, como a alemã (§ 25,I) e a espanhola (Código Penal de 1995, art. 28),admitem expressamente sua existência. É autormediato quem realiza o tipo penal servindo-se, para aexecução da ação típica, de outra pessoa comoinstrumento. A teoria do domínio do fato molda comperfeição a possibilidade da figura do autor mediato.Todo o processo de realização da figura típica,segundo essa teoria, deve apresentar-se como obrada vontade reitora do “homem de trás”, o qual deve

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ter absoluto controle sobre o executor do fato. Oautor mediato realiza a ação típica por meio deoutrem, que atua sem culpabilidade.

Originariamente, a autoria mediata surgiu com afinalidade de preencher as lacunas que existiam como emprego da teoria da acessoriedade extrema daparticipação. A consagração da acessoriedadelimitada não eliminou, contudo, a importância daautoria mediata. Modernamente se defende aprioridade da autoria mediata diante da participaçãoem sentido estrito. Em muitos casos se impõe aautoria mediata, mesmo quando seja possível, sob oponto de vista da acessoriedade limitada, admitir aparticipação (caso do executor inculpável), desdeque o homem de trás detenha o domínio do fato91.Nessas circunstâncias, o decisivo para distinguir anatureza da responsabilidade do homem de trásreside no domínio do fato. O executor, na condiçãode instrumento, deve encontrar-se absolutamentesubordinado em relação ao mandante.

As hipóteses mais comuns de autoria mediatadecorrem do erro, da coação irresistível e do uso deinimputáveis para a prática de crimes, o que nãoimpede a possibilidade de sua ocorrência em açõesjustificadas do executor, quando, por exemplo, oagente provoca deliberadamente uma situação de

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exclusão de criminalidade para aquele, como járeferimos neste trabalho.

Em todas essas hipóteses, normalmente, oexecutor age sozinho, isto é, sem a presença do“homem de trás” ou mandante, desaparecendo, porconseguinte, aquele fundamento da agravação dacensura comportamental. Assim, em princípio, emcaso de autoria mediata, não há fundamento políticoou jurídico para a agravação da sanção penal pormeio da qualificadora.

14. Punibilidade do concurso de pessoas e daqualificadora similar

A reforma penal de 1984 manteve a teoriamonística. Adotou, porém, a teoria restritiva deautor92, fazendo perfeita distinção entre autor epartícipe, que, abstratamente, incorrem na mesmapena cominada ao crime que praticarem, mas esta,concretamente, variará segundo a culpabilidade decada participante. E em relação ao partícipe variaráainda de acordo com a importância causal da suacontribuição.

A rigor, para punir o coautor — que intervém

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materialmente na execução do crime —, o art. 29 doCP seria desnecessário, uma vez que a tipicidade desua conduta decorre da norma incriminadora violada.Contudo, esse dispositivo é indispensável para apunibilidade do partícipe, cuja tipicidade sefundamenta nessa norma de extensão.

De notar que, a partir da reforma penal (1984),autores e partícipes sofrem punições diferentes, comlimites igualmente distintos. Para os autores (oucoautores), valem os limites mínimo e máximocominados abstratamente no tipo penal violado, aopasso que, para os partícipes, concedem-se outrosparâmetros e procura-se, segundo os princípios daofensividade, culpabilidade e, principalmente, daproporcionalidade, ajustar melhor a sanção que lhesdeve ser aplicável. Assim, para estes, a própria leiencarrega-se de graduar-lhes a pena, adotandomodulação mais flexível e mais ajustada à magnitudedo injusto e, particularmente, segundo aculpabilidade individual, nos termos da eficáciacausal e psíquica de cada partícipe.

Visando facilitar e dinamizar a operacionalidadedessa individualização penal, adotou-se (a) aparticipação de menor importância e (b) acooperação dolosa distinta. Com efeito, se aparticipação for de menor importância, a pena

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pode ser diminuída de um sexto a um terço (art. 29, §1º, do CP).

A participação aqui referida diz respeitoexclusivamente ao partícipe e não ao coautor,porque, ainda que a participação do coautor tenhasido pequena, terá ele contribuído diretamente naexecução propriamente do crime. Sua culpabilidade,naturalmente superior à de um simples partícipe,será avaliada nos termos do art. 29, caput, do CódigoPenal, e a pena a ser fixada obedecerá aos limitesabstratos previstos pelo tipo penal infringido. Já opartícipe que houver tido “participação de menorimportância” poderá ter sua pena reduzida de umsexto a um terço, podendo ficar aquém do limitemínimo cominado, nos termos do art. 29, § 1º93. Ora,essa previsão legal não pode, em hipótese alguma,deixar de ser considerada quando se examina aqualificadora do concurso de pessoas, sob pena deviolentar-se totalmente o instituto, que recebeu novaroupagem na Parte Geral, exatamente para adequar-seaos dogmas de um direito penal da culpabilidade,como o próprio texto legal se encarrega de apregoar.

A figura do partícipe, em se tratando daqualificadora, deve receber tratamento diferenciado:ninguém discute que atividade do partícipe(instigador ou cúmplice) é acessória, secundária,

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isto é, sem intervenção direta na execução materialdo crime. Em outros termos, o partícipe pode existir eresponder como partícipe, mesmo sem estar no lugardo crime no momento da sua execução: basta que asua atividade de partícipe tenha sido eficaz, ou seja,concorrido efetivamente para o crime.

É exatamente aqui que apresentamos algumasrestrições à possibilidade de a figura do partícipepoder concorrer para a qualificadora do crime defurto: calma, primeiro não afastamos essapossibilidade, admitimos sua viabilidade; contudo,precisa ser um outro partícipe, necessita ter um outroperfil, deve ser participativo, isto é, precisa estarpresente no local e no momento da prática do crime,isso sem desnaturar sua condição de mero partícipe,ou seja, sem realizar atividade executivamente típica.

Ora, não podemos esquecer o fundamentopolítico dessa qualificadora: a presença e aparticipação de mais de uma pessoa asseguram oêxito do empreendimento, garantem maiordanosidade da conduta, aumentam a periculosidadedos meliantes e, em contrapartida, enfraquecem adefesa da vítima e aumentam o risco davulnerabilidade patrimonial; mas tudo isso somenteserá verdadeiro se o mencionado participante —partícipe ou não — se fizer presente in loco na hora

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do cometimento do crime. Assim, admitimosqualificadora com partícipe, mas, repetindo, somenteum partícipe presente, participativo, atuante, quaseum coautor, caso contrário o fundamento dogravame não se faz presente, impedindo suaimputação.

Mesmo assim, se esse partícipe de corpo presentetiver participação de menor importância, deve-se-lhereconhecer o benefício. Mas participaçãoinsignificante, necessariamente, não irrelevanteapenas para o verdadeiro autor, com certeza tambémpara as consequências que fundamentam majoraçãopenal igualmente; logo, a aplicação da pena nãopode limitar-se exclusivamente ao partícipe. Se assimfosse, bastaria aplicar a redução prevista no art. 29, §1º, e estaria resolvido o problema. Contudo,examinando-se politicamente, o partícipe teriapraticado grande injustiça para com o autor: além denão lhe ajudar em nada, ainda agravou desnecessáriae exageradamente a situação. Nessas circunstâncias,sugerimos que, reconhecido, objetiva esubjetivamente, que houve participação de menorimportância, não se admita a qualificadora: overdadeiro autor responde pelo furto simples e opartícipe pelo mesmo furto, ainda com a penareduzida pela minorante.

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Sintetizando, para o reconhecimento daparticipação de menor importância no crime de furto,a consequência é afastar a qualificadora, que nãodeve ser reconhecida, para ninguém.

A segunda grande flexibilização da teoriamonística refere-se ao reconhecimento dacooperação dolosamente distinta. Nessa hipótese,ocorre o chamado desvio subjetivo de condutas.

Isso acontece quando a conduta executadadifere daquela idealizada a que aderira o partícipe,isto é, o conteúdo do elemento subjetivo do partícipeé diferente do crime praticado pelo autor. Porexemplo, “A” determina a “B” que dê uma surra em“C”. Por razões pessoais, “B” mata “C”, excedendo-se na execução do mandato. Pela lei anterior, os doisresponderiam pelo delito de homicídio, podendo opartícipe beneficiar-se com uma causa de diminuiçãode pena (art. 48, parágrafo único). Ainda na vigênciada lei anterior a doutrina e a jurisprudênciarepudiavam essa punição pelo delito mais grave, porcaracterizar autêntica responsabilidade objetiva.

Realmente, o desvio subjetivo de condutasrecebeu tratamento especial e mais adequado dareforma penal, ao estabelecer no art. 29, § 2º, que, “sealgum dos concorrentes quis participar de crimemenos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa

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pena será aumentada até metade, na hipótese de tersido previsível o resultado mais grave”. A soluçãodada pela reforma leva à punição de “A”, no exemplosupracitado, pelo delito de lesões corporais, que foio crime desejado, cuja pena será elevada até ametade, se o homicídio for previsível. Como afirmavaWelzel, “cada um responde somente até ondealcança o acordo recíproco”94. A regra dadisposição em exame pretende ter aplicação a todosos casos em que o partícipe quis cooperar narealização de delito menos grave. O concorrentedeverá responder de acordo com o que quis,segundo seu dolo, e não de acordo com o dolo doautor.

Afinal, como se poderá deixar de aplicar essepreceito na qualificadora em exame, se ele foi criadoexatamente para evitar as aberrações jurídicas e aspunições absolutamente injustas edesproporcionais? E, ademais, a imensa maioria dadoutrina reconhece a necessidade de aplicar aqui osprincípios orientadores do instituto concurso depessoas. Apenas acreditamos que se deveacrescentar: a flexibilização do desvio subjetivo decondutas, no caso da qualificadora, deve seraplicada para qualquer das partes: ou seja, para opartícipe, que pretendia contribuir numa infração

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menos grave, mas também para o autor ou coautorque, pela praticamente insignificante contribuição dopartícipe, não teve sua tarefa facilitada, nãoaumentou a dificuldade da defesa da vítima, enfim, aparticipação não produziu o efeito que o fundamentoda qualificadora quer punir.

A questão pragmática: como se deve, afinal,operacionalizar essa individualização penal? Quer-nos parecer que a questão é singela: em princípio,para o partícipe, aplica-se literalmente o disposto noart. 29, § 2º, não se lhe reconhecendo a qualificadorapelo concurso; para o autor, embora seja o executorefetivo da conduta tipificada, não contava ou nãodesejava a contribuição de ninguém, e mesmo assima recebeu. Ora, apesar de, teoricamente, a simplesanuência de um na ação do outro ser suficiente paraconfigurar o concurso de pessoas, a nosso juízo,para a configuração da qualificadora, ascircunstâncias mudam um pouco de figura, pelagravidade das consequências, uma vez que dobra apena aplicável, e isso não se pode ignorar. Assim, asimples dúvida sobre a anuência do autor em aceitara ajuda do partícipe já recomenda, em relação a ele, onão reconhecimento da qualificadora.

Enfim, a casuística é sempre rica no oferecimentode detalhes e, consequentemente, de alternativas.

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15. Comunicabilidade ou incomunicabilidade daqualificadora

Esta é outra regra prevista para o instituto deconcurso de pessoas de absoluta pertinência àqualificadora “mediante concurso de pessoas”, sobpena de consagrar-se autêntica responsabilidadeobjetiva. Com efeito, é possível que a qualificadorase aplique a um e não a outros concorrentes domesmo crime. Na verdade, essa previsão legal temcomo corolário o desvio subjetivo de condutas, qualseja, o agente responde pelo que quis, segundo oque quis.

O art. 30 do Código Penal determina que ascircunstâncias e as condições de caráter pessoalnão se comunicam, salvo quando elementares docrime. Por serem pessoais, dizem respeitoexclusivamente ao agente que as tem como atributo.Cada agente responderá de acordo com suascircunstâncias e condições pessoais. Na verdade,seria uma heresia aplicar esse mandamento comodogma, na Parte Geral, e agora, na Parte Especial,especificamente sobre o crime, in concreto, negar-lhevigência, principalmente porque serve para dobrar apena, sem qualquer possibilidade de dosá-la.

A comunicabilidade das circunstâncias

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objetivas, quando desconhecidas do agente, já eracriticada pela doutrina sob o império da lei anterior,que a via como autêntica responsabilidadeobjetiva95. A reforma de 1984, comprometidainteiramente com o direito penal da culpabilidade,procurou afastar todo e qualquer resquício daresponsabilidade objetiva. Mas, para que essafilosofia se faça verdadeira, é indispensável adequaros postulados da Parte Geral do Código Penal àvelha Parte Especial, que, necessariamente, devereceber os influxos da moderna orientaçãoconsagrada nos fundamentos gerais do Código.

A comunicabilidade das circunstâncias objetivase das elementares do crime deve ser examinada nostermos do art. 29, caput, na medida da culpabilidadede cada participante. É imperioso que o participantetenha agido ao menos culposamente em relação àqualificadora, isto é, em relação à contribuição naação de outrem, para que possa havercomunicabilidade. Esses postulados, à evidência,aplicam-se integralmente à qualificadora do concursode pessoas, sob pena de se reconhecer a famigeradaresponsabilidade objetiva. Assim, aquele indivíduoque pratica a subtração da coisa, ignorando queestava recebendo o auxílio de alguém, não poderesponder pelo crime qualificado; agora, o

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concorrente que conscientemente contribui com oautor direto da ação, que ignorava a contribuição,como dissemos, responde pela qualificadora. Oprincípio do desvio subjetivo de condutas autorizaessa interpretação: um dos participantes respondepelo furto qualificado e outro, por furto simples, semnenhum problema de ordem dogmática.

16. Punibilidade desproporcional da qualificadora doconcurso de pessoas

Para o “legislador” brasileiro, praticar um furtomediante a participação de mais de uma pessoaconstitui circunstância mais grave que cometer umroubo, nas mesmas circunstâncias! Essa é, semsombra de dúvida, a única conclusão a que se podechegar ao se comparar a punibilidade que o CódigoPenal atribui aos dois crimes praticados medianteconcurso de pessoas: no caso do roubo, a pena éelevada de um terço até metade, ao passo que, nahipótese de furto, a pena é duplicada (dois a quatroanos); em outros termos, no crime de furto oconcurso de pessoas qualifica o crime, enquanto noroubo não passa de simples causa de aumento(majorante).

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Constata-se, de plano, que estamos diante de umaquestão de extrema relevância jurídica, necessitandoser enfrentada num plano superior, acima, portanto,da legislação infraconstitucional. Trata-se, comefeito, de flagrante violação do princípio daproporcionalidade, representado pela duplicação dapena na hipótese do crime de furto, quandopraticado mediante concurso de pessoas. A equaçãoé simples: tanto no furto como no roubo, o concursode pessoas “qualifica” o crime, com a diferença deque no primeiro a pena dobra, enquanto no segundo,que é mais grave, é acrescida de um terço até metade.Essa é apenas uma das incontáveis previsõesparadoxais de nosso vigente Código Penal (1940),que vai de encontro (deveria ir ao encontro) àmoderna principiologia adotada pela atualConstituição Federal (1988). Com efeito, comodestaca Lenio Luiz Streck, “entre tantas distorçõesque existem no Código Penal (e nas leis esparsas),este é um ponto que tem sido deixado de lado nasdiscussões daquilo que hoje denominamos de‘necessária constitucionalização do direitopenal’”96 (grifo do original).

Os dois tipos penais protegem, em princípio, omesmo bem jurídico (o patrimônio); o roubo, comocrime complexo, protege, ao mesmo tempo, “a

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liberdade individual e a integridade física e a saúde,que são simultaneamente atingidos pela açãoincriminada”97. Logo, o roubo é um crime bem maisgrave, como se verifica pelos limites, mínimo emáximo, das sanções cominadas: para o furto, um aquatro anos de reclusão; para o roubo, quatro a dezanos. No entanto, paradoxalmente, a participação demais de uma pessoa no crime de roubo representamajoração de pena bem menor que a prevista para ocrime de furto. E, convenhamos, a simples mudançaterminológica — qualificadora no furto e causa deaumento no roubo — não altera a essência dascircunstâncias fático-jurídicas: praticar a subtraçãomediante concurso de pessoas. Nesse sentido,merece ser invocada, mais uma vez, a doutrina deLenio Streck, que preleciona: “Ora, no furto apresença de mais de uma pessoa não coloca em riscoa integridade física da vítima, e, sim, facilita o agirsubtraente; já no roubo, a presença de mais pessoascolocam em risco sobremodo a integridade física davítima. Não obstante isto, o Código Penal valorizamais a coisa (propriedade privada) que avida/integridade física”98. Ademais, essadesuniformidade de tratamento de situaçõessemelhantes fere também o princípio da isonomia,igualmente assegurado constitucionalmente.

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Pela beleza plástica do pensamento externado porAmilton Bueno de Carvalho, invoco aqui sua felizmanifestação, referindo-se ao princípio da isonomia,quando afirma: “Há que se constitucionalizar odireito penal; toda análise penal deve ser banhada,atravessada, pelo viés constitucionalizante. Assim,ao contrário do que alguns poderão pensar, não seestá violando leis, mas sim colocando-a no quadromaior: o do direito. E o princípio da isonomia estáinserto na Constituição, logo há, até no discursokelseniano, obediência ao sistema”99. Estamos, narealidade, diante de crime da mesma espécie, amboscontra o patrimônio, que integram o mesmo capítuloe se situam, no Código Penal, lado a lado. Com efeito,a única nota destoante, em nível de caput, é que atipificação do roubo é enriquecida pela elementar da“violência ou grave ameaça à pessoa” (que torna oroubo muito mais grave), sendo idênticas as demaislocuções. A previsão do concurso de pessoas comofator agravador da punibilidade é idêntica paraambos os delitos; o argumento político para aagravação da resposta penal é o mesmo: facilitaçãoda execução do crime, maior dificuldade de defesa davítima, maior perigosidade do agente. Por que entãoa grande desproporção na majoração penal de um eoutro? A conclusão é inevitável: iguais são tratados

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desigualmente! Se se houvesse de dar tratamentodiferenciado, necessariamente o crime de roubodeveria receber tratamento mais grave, e jamais oinverso. Por isso, deve-se aplicar ao crime de furto amesma majoração prevista para caso de roubo, apósdeclarada a incons titucionalidade do art. 155, § 4º, IV,do CP, interpretando-o conforme a Constituição.

O desprezo pelo controle de constitucionalidade— direto ou difuso — na seara criminal, no sistemabrasileiro, beira as raias da imoralidade, na medida emque tem sido sistematicamente omitido, quando nãosonegado desarrazoadamente pelo Judiciário, deprimeiro e de segundo graus, postura inadmissívelem um Estado Democrático de Direito100. Nocontrole direto, quem tem legitimidade para apropositura das ADIns não tem “interesse” em fazê-lo, e, no controle difuso, o clamor da doutrina não fazeco nos tribunais, que, nesse particular, fazemouvidos moucos. O Judiciário brasileiro tem ignoradoque deve aplicar a norma somente quando estiverconforme com o Texto Constitucional, pois, comodestaca Lenio Streck, “lamentavelmente, examinandoa tradição jurídica brasileira, é possível constatar aexistência de um certo fascínio em torno do Direitoinfraconstitucional, ao ponto de se adaptar aConstituição às leis ordinárias... e não o contrário!

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Enfim, continuamos a olhar o novo com os olhos dovelho... A Constituição — e tudo o que representa oconstitucionalismo contemporâneo — ainda nãoatingiu o seu devido lugar no campo jurídicobrasileiro”101.

Os exemplos desse “desvio de controleconstitucional”, especialmente no controle difuso,ocorrem com frequência intolerável, podendo serverificados diariamente, em situações como quandose invoca que os recursos excepcionais (especial eextraordinário) não têm efeito suspensivo e, por isso,determinam a antecipação do cumprimento da pena,priorizando o vetusto Código de Processo Penal de1942 e fazendo letra morta do Texto Constitucional,que assegura a presunção de inocência enquantonão houver trânsito em julgado. Desconhecem queprevisão semelhante da Lei n. 8.038/98 deve teraplicação restrita ao âmbito cível, porque nesse háexigência legal determinando o caucionamento daexecução provisória da sentença recorrível, visandoassegurar o executado, ante eventual reforma dojulgado; ademais, é impensável caucionar a execuçãoprovisória de uma decisão penal condenatóriarecorrível! Como se restabeleceria o status quo antequando ocorre a reforma do julgado cuja execução setenha antecipado? À evidência, esse dano é

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irreparável e, por sua própria natureza, não há comocaucioná-lo previamente. Tantas outras situaçõessemelhantes ocorrem, que não podem ser aquiexaminadas, que demonstram a necessidade urgentede, digamos, “constitucionalizar o direito penalbrasileiro”. Enquanto o Poder Legislativo nãoelaborar as necessárias e indispensáveisreadaptações, “cabe ao Poder Judiciário, em suafunção integradora e transformadora, típica doEstado Democrático de Direito, efetuar as correções(adaptações) das leis, utilizando-se para tal dosmodernos mecanismos hermenêuticos, como ainterpretação conforme a Constituição(Verfassunskonforme Auslegung ), a nulidade parcialsem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohneNormtextreduzierung) e a declaração dainconstitucionalidade das leis incompatíveis com aConstituição, para citar alguns”102.

Na verdade, o legislador infraconstitucional nãotem o direito ou mesmo o poder de estabelecerlivremente tipos penais e cominar sanções aleatórias,sem obedecer materialmente à Constituição Federal,que é traduzida basicamente pelos princípios quedão o verdadeiro sentido e conteúdo de valores doTexto Constitucional brasileiro. O controle desseperfil deve ser feito por meio de uma filtragem

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hermenêutico-constitucional, permanentemente.Aliás, afrontando esses limites, o legisladorinfraconstitucional acaba por editar mais um textolegal absolutamente inconstitucional (Lei n. 10.268,de 28-8-2001), elevando, por exemplo, a pena do art.343 do Código Penal para o mínimo de três e omáximo de quatro anos de reclusão, impedindo,dessa forma, a individualização judicial da penaaplicável103. A cominação de pena, nesses limites(mínimo de três e máximo de quatro anos), não sóviola o princípio da individualização da pena comocaracteriza verdadeira tarifação penal (taxatividadeabsoluta das penas), eliminada pelo CódigoNapoleônico de 1810 e seguida pelas legislaçõesmodernas, inclusive pelos Códigos Penaisbrasileiros.

Por todo o exposto, urge que se faça uma revisãoà luz da moderna principiologia adotada pelaConstituição Federal de 1988, isto é, uma releitura detodo o sistema criminal brasileiro, especialmente nascominações das sanções penais, inclusive nasqualificadoras e causas de aumento, que, comodemonstrado, apresentam inúmeros vícios deinconstitucionalidade. Adotamos, para concluir, alúcida e corajosa sugestão de Lenio Streck, comomecanismo de controle de constitucionalidade, “a

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interpretação conforme a Constituição, originada naAlemanha, e que vem sendo adotada pelo SupremoTribunal Federal há alguns anos”. Assim, comoafirma Lenio Streck, “... o texto da Lei (CP) permanececom sua literalidade; entretanto, a norma, fruto dainterpretação, é que exsurgirá redefinida emconformidade com a Constituição. Desse modo,analogicamente, o aumento de pena decorrente doconcurso de pessoas (circunstância especial deaumento de pena) do roubo (art. 157, par. 2 º, II),que é de 1/3 até a metade, torna-se aplicável aofurto qualificado por concurso de agentes”104(grifo do original).

17. Furto de veículo automotor: qualificadoraespecial

A Lei n. 9.426, de 24 de dezembro de 1996, criauma nova figura de furto qualificado, distintadaquelas relacionadas no § 4º do art. 155, sempre quea coisa móvel, objeto da ação, consistir em veículoautomotor (automóveis, caminhões, lanchas,aeronaves, motocicletas, jet skis etc.). Com essanova qualificadora (§ 5º), pretendeu-se inibir aconduta de subtrair veículo automotor, exasperando

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exageradamente a sanção correspondente, fixando-aentre três e oito anos de reclusão. O texto legal é oseguinte:

“A pena é de reclusão de 3(três) a 8(oito) anos, sea subtração for de veículo automotor que venha a sertransportado para outro Estado ou para o exterior”.

Essa nova previsão merece, objetivamente, doisdestaques: a) esqueceu-se de tipificar o chamadofurto de uso, tão corriqueiro na atualidade, que,reconhecidamente, constitui figura atípica; e, b) paraa configuração da nova qualificadora, não basta quea subtração seja de veículo automotor: éindispensável que este “venha a ser transportadopara outro Estado ou para o exterior”. Se o veículoautomotor ficar na mesma unidade federativa, nãoincidirá a qualificadora, pois essa elementar integra oaspecto material dessa especial figura qualificada;igualmente, o simples furto de uso continua atípico.

Sintetizando, os furtos de veículos automotores,em geral, não são atingidos pela nova qualificadoraacrescentada pela referida lei. Em outros termos, astradicionais e costumeiras subtrações de veículosautomotores, que perturbam o quotidiano docidadão, não serão alcançadas pela novaqualificadora se não vierem, efetivamente, “a sertransportados para outros Estados ou para o

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exterior”. Com efeito, a incidência da qualificadora,nos termos legais, exige que o veículo tenhaultrapassado os limites territoriais do Estado-membroou do próprio território nacional, pois se trata deelementar objetiva espacial.

Essa qualificadora cria um problema sério sobre omomento consumativo da nova figura delitiva.Afinal, pode um tipo penal apresentar dois momentosconsumativos distintos, um no momento dasubtração e outro quando ultrapassar a fronteira deum Estado federado ou do próprio País? Com efeito,quando o agente pratica a subtração de um veículoautomotor, em princípio é impossível saber, comsegurança, se será transportado para outro Estadoou para fora do território nacional. Assim, essaqualificadora somente se consuma quando o veículoingressa efetivamente em outro Estado ou emterritório estrangeiro. Na verdade, não basta que asubtração seja de veículo automotor. É indispensávelque este “venha a ser transportado para outroEstado ou para o exterior”, atividade que poderácaracterizar um posterius em relação ao crime anteriorjá consumado. Nessas circunstâncias, é impossível,em regra, reconhecer a tentativa da figura qualificadaquando, por exemplo, um indivíduo é preso, nomesmo Estado, dirigindo um veículo furtado.

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Teria sido mais feliz a redação do § 5º se tivesse,por exemplo, se utilizado do tradicional elementosubjetivo do injusto, isto é, prevendo, como especialfim de agir, a venda ou transporte “para outroEstado ou para o exterior”. Como se sabe, o especialfim de agir, embora amplie o aspecto subjetivo dotipo, não integra o dolo nem se confunde com ele.Efetivamente, os elementos subjetivos especiais doinjusto especificam o dolo, sem com ele se confundir.Não é necessário que se concretizem, sendosuficiente que existam no psiquismo do autor.

Paradoxalmente, fugindo completamente àtradição brasileira em relação aos crimes contra opatrimônio, a nova “qualificadora” deixou decominar a pena pecuniária. Assim, diante doprincípio da reserva legal, não se pode imaginarque a supressão seja decorrência de “meroesquecimento”, que, aliás, ainda que tenha ocorrido,será irrelevante. Resultado: não há previsão legal depena de multa para essa hipótese.

Não apenas a subtração de veículo automotor,para uso, continua sendo uma figura atípica como asubtração de componentes do veículo, como pneus,rodas, motor, acessórios etc. não tipifica o furtoqualificado do § 5º, uma vez que a eles o texto legalnão se refere. Restará, logicamente, a configuração

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do furto normal.Realizamos, apenas, uma análise sucinta das

principais inovações trazidas pela lei epigrafada.

17.1 Furto de uso: intenção de restituir

Nosso Código Penal de 1940 criminaliza somentea subtração com animus definitivo da coisa alheia(art. 155). Ao contrário do direito romano, seguidopelo Código Criminal do Império, o furto de uso nãose inclui nas condutas tipificadas pelo Código ora emvigor. O próprio Von List, em seu tempo, járeconhecia o acerto dessa orientação dogmática,afirmando: Quanto mais se desenvolveu a ideiamoderna do furto, tanto menos se faz compatível como uso indevido, a que falta inteiramente a intenção deassenhoreamento. O natimorto Código Penal de 1969criminalizava o furto de uso, nos seguintes termos:“Se a coisa não fungível é subtraída para fim de usomomentâneo e, a seguir, vem a ser imediatamenterestituída ou reposta no lugar onde se achava: Pena— detenção, até 6 (seis) meses, ou pagamento nãoexcedente a 30 (trinta) dias-multa”.

Ocorre o denominado furto de uso quandoalguém, indevidamente, subtrai coisa alheiainfungível para utilizá-la momentaneamente,

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restituindo-a, na íntegra, à esfera de disponibilidadedo sujeito passivo105. Conduta que satisfaça essascaracterísticas não excede os limites do ilícito civil.Constitui, em outros termos, figura atípica perante oatual Código Penal.

O furto de uso também possui elementosnormativo e subjetivo. O elemento objetivocaracteriza-se pela pronta restituição; o subjetivo,pelo fim especial de uso momentâneo. A locução“para si ou para outrem”, caracterizadora doelemento subjetivo especial do tipo, constituielementar subjetiva definidora do propósito deassenhorear-se em definitivo da res furtiva.Exatamente esse especial fim de agir distingue asubtração tipificada no art. 155 do CP e o conhecido“furto de uso”. Neste, sem sombra de dúvida, afinalidade especial deve ser o uso momentâneo dares e não seu apossamento definitivo, embora, emambos, esteja presente o dolo, constituído pelavontade consciente de subtrair coisa alheia móvel.Para adequar-se à descrição típica do crime de furto éinsuficiente que o agente pretenda apenas usar,momentaneamente, a coisa alheia; é indispensávelque o animus furandi, isto é, a intenção de apoderar-se em definitivo, seja o móvel de sua ação.

De modo geral se exigem, para reconhecer o crime

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de furto de uso, os seguintes requisitos: a)devolução rápida, quase imediata, da coisa alheia; b)restituição integral e sem dano do objeto subtraído;c) devolução antes que a vítima constate asubtração; d) elemento subjetivo especial: fimexclusivo de uso.

A coisa deve ser restituída integralmente, isto é,intacta em si mesma e em seus acessórios, no própriolocal em que fora subtraída. Assim, a restituição inintegro é elemento constitutivo do furto de uso. Osimples abandono da res é ato possessórioincompatível com a ação de quem pretendia apenasusar, na medida em que o abandono ocorre quando oproprietário ou possuidor, renunciando à posse, sedesfaz da coisa. Nesse sentido já pontificava NélsonHungria, afirmando que: “A res deve ser devolvida alocal em que seja exercível o imediato poder dedisposição do dono: se o agente a deixa alhures, semqualquer aviso ao proprietário, assume o risco deque não se opere a restituição (pouco se lhe dá queesta se realize ou não), e a hipótese se equipara à doladrão que, depois de assenhorear-se da coisa,resolve abandoná-la, o que não o exime de respondera título de furto”106.

A subtração de veículo alheio, por exemplo, parausá-lo em fuga de perseguição policial, não exclui o

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elemento subjetivo do furto, não apenas porque omotivo é irrelevante à tipificação desse crime, mastambém porque o propósito de evadir-se tornaevidente a ausência da intenção de restituí-lo.Incumbe ao réu demonstrar a inexistência de dolo nofurto de uso, especialmente se o objeto material dasubtração não for por ele restituído ou deixado nolocal em que foi subtraído. Flavio Martins sintetiza,com precisão, os contornos dessa figura típica, nosseguintes termos: “A restituição da coisa subtraída,portanto, depois do uso momentâneo, é elementoindispensável para a configuração do furto de uso.Mas não basta; deve ser imediata. Isso porque, se acoisa não for imediatamente devolvida, demonstraráo animus do agente em exercer qualidades deproprietário sobre a coisa, fato que caracteriza o furtopropriamente dito (‘... para si...’ — art. 155, CP)”107.Usar um veículo, sem autorização do dono oupossuidor, quer para fugir da polícia, querdevolvendo-o danificado, é, como sustentaGuilherme de Souza Nucci, “o modo que o autorpossui de demonstrar a sua franca intenção dedispor da coisa como se não pertencesse a outrem.Além disso, é preciso haver imediata restituição, nãose podendo aceitar lapsos temporaisexagerados”108.

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Logicamente, havendo a subtração de um veículopara dar uma volta, sendo devolvido, pouco tempodepois, batido ou danificado, ou ainda, com razoávelconsumo de combustível, não se pode negar quehouve diminuição no patrimônio da vítima; nessescasos, caracterizou-se o crime de furto.

18. Furto de energia: equiparação a coisa móvel

O Código Penal brasileiro, a exemplo do CódigoPenal Rocco de 1930 (art. 624), equiparou a coisamóvel a energia elétrica ou qualquer outra quetenha valor econômico. Essa opção do legislador de1940 fundamentou-se na divergência doutrinal sobrea qualificação de “coisa” atribuída à energia elétrica;nessa linha, negava-se a possibilidade de admitir atipificação de furto à apropriação de energia.Partidário dessa corrente, Fontán Balestra109afirmava que a energia elétrica não tem“corporalidade”, característica essencial das coisas,e, por essa razão, não podia integrar a noção jurídicade coisa, objeto material de furto. O direito civil podesocorrer-se da analogia para equiparar a eletricidadeà coisa; não o pode, contudo, o direito penal, que oveda, ao menos in malam partem, sustentava

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Balestra.Objetivando evitar a impunidade da subtração de

energia ou, no mínimo, o debate sobre o tema,muitos códigos dos países ocidentais adotaram aequiparação de uma coisa a outra. Foi o queocorreu, como destaca Weber Martins Batista, “naAlemanha, com a lei de 9-4-1900, na Suíça, com a de24-1902, na Espanha, com a lei de 10-1-1941 etc.”110.

Como destaca Luiz Regis Prado, “a energia deveser suscetível de apossamento, podendo serseparada da substância ou matéria a que está ligada,ou ainda, de sua fonte geradora”111. No entanto,nem todo uso indevido de energia elétrica vem a seadequar à conduta tipificada como furto (art. 155, §3º). Na verdade, a energia elétrica pode ser desviadaantes ou depois do medidor oficial da companhiaenergética. Quando esse “desvio” ocorre antes domedidor oficial, em nossa concepção, configura aefetiva subtração de energia elétrica, que, legalmente,é equiparada a coisa móvel, tipificando-se o crime defurto. A figura do furto pressupõe uma ligaçãoclandestina, desde a origem, ilícita. Ademais, essasubtração nada tem que a torne “qualificada”,amoldando-se, por isso, com perfeição, à figura dofurto simples, ao contrário do que normalmente se

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tem entendido. Seria demais, além de suportar uma“ficção” de coisa, ainda agravar exageradamente uma“subtração” simples.

Contudo, quando o desvio da energia ocorreapós o medidor, o agente, para “subtraí-la”,necessita fraudar a empresa fornecedora, induzindo-a a erro, causando-lhe um prejuízo em proveitopróprio. A ligação da energia continua oficial; ofornecedor, ludibriado, acredita que a estáfornecendo corretamente, desconhecendo oestratagema adotado pelo consumidor. Enfim, nessahipótese, com certeza, a conduta amolda-se à figurado estelionato. A ligação lícita, preexistente, afastauma conduta cujo verbo nuclear é “subtrair coisaalheia móvel”, que pressupõe a inexistência da possedo objeto subtraído.

Mas o dispositivo em exame equipara a coisamóvel, além da energia elétrica, também qualqueroutra que tenha valor econômico!!!

A Exposição de Motivos justificou-se da seguinteforma: “Para afastar qualquer dúvida, éexpressamente equiparada à coisa móvel e,consequentemente, reconhecida como possívelobjeto de furto ‘a energia elétrica ou qualquer outraque tenha valor econômico’. Toda energiaeconomicamente utilizável suscetível de incidir no

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poder de disposição material e exclusiva de umindivíduo (como, por exemplo, a eletricidade, aradioatividade, a energia genética dos reprodutoresetc.) pode ser incluída, mesmo do ponto de vistatécnico, entre as coisas móveis, a cujaregulamentação jurídica, portanto, deve ficar sujeita”(item n. 56).

Passadas seis décadas, pode-se ampliar o rolexemplificativo da Exposição de Motivos, lembrando,por exemplo, da energia solar, térmica, luminosa,sonora, mecânica, atômica etc. Sobre a energiagenética, tão em voga, Magalhães Noronha jádestacava que o esperma do reprodutor é coisa tantocomo o leite que se ordenha. Assim, concluíaNoronha apesar da diferente forma de apoderar-se,no caso por meio da cobertura da fêmea,inegavelmente se deve concluir que a hipótese éadequada ao caput do art. 155. Deve-se,evidentemente, considerar que Magalhães Noronhanão conheceu as técnicas de inseminação artificial,in vitro, proveta etc. Na verdade, o modo ou formade “subtrair” a energia genética não altera, em tese,sua tipificação criminal.

Essa equiparação de energia a coisa apresentadois aspectos que são, pode-se dizer, no momento,tormentosos: “furto” de sinal de TV paga e natureza

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da “subtração” de energia: permanente ouinstantâneo.

Primeiramente se deve decidir a natureza docrime de subtrair energia, na medida em que háinúmeras espécies de energia: algumas delas podemcaracterizar crime permanente e outras, quem sabe,crime continuado. Em relação à energia elétrica, amais comum, a ligação clandestina e o usoprolongado (dias, meses e até anos) caracterizamcrime permanente ou crime continuado? Aimportância da solução dessa questão reside nadiferença da punibilidade de uma e outra situação,pois, no caso de configurar crime continuado,incidirá a majoração prevista no art. 71 do CódigoPenal.

Como tivemos oportunidade de definir, “ocorrecrime continuado quando o agente, mediante mais deuma conduta (ação ou omissão), pratica dois ou maiscrimes da mesma espécie que, pelas condições detempo, lugar, maneira de execução e outrassemelhantes, devem os subsequentes ser havidoscomo continuação do primeiro. São diversas ações,cada uma em si mesma criminosa, que a lei considera,por motivos de política criminal, como um crimeúnico”112. Há, portanto, reiteração da ação inicial.Por outro lado, “permanente é aquele crime cuja

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consumação se alonga no tempo, dependente daatividade do agente, que poderá cessar quando estequiser (cárcere privado, sequestro). Crimepermanente não pode ser confundido com crimeinstantâneo de efeitos permanentes (homicídio,furto), cuja permanência não depende dacontinuidade da ação do agente”113. O que sealonga no tempo não são os efeitos, mas a atividadedo agente consumadora da infração penal. Comefeito, no crime permanente, embora a ação praticadaseja única, ela não se esgota na execução, comoocorre nos crimes instantâneos, mas se prolonga notempo. Assim, na subtração de energia elétrica,considera-se consumado o crime quando o agentefaz a ligação e começa a usufruir da energia, mas elecontinua a consumar-se enquanto perdurar a fruiçãoda res, sem solução de continuidade, enquanto nãofor interrompida. Logo, estamos perante um crimepermanente, cuja consumação se protrai no tempo.

Assim, a pena a ser imposta não pode sofrer aincidência da majorante do art. 71, uma vez que setrata de crime de ação única, cuja consumação sealonga no tempo, ao contrário do crime continuado,que se constitui de condutas reiteradas.

O segundo aspecto, igualmente importante,refere-se ao “furto” de sinal de TV paga, de que, por

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sua importância e extensão, nos ocuparemos emtópico próprio.

18.1 Furto de energia e furto de sinal de TV paga

A “modernidade” tem sido fértil no oferecimentode novas situações, comportamentos inimaginados,valores impensados, enfim, uma gama de novosvalores surge todos os dias, desafiando aoperacionalidade e o dinamismo do sistema jurídico.No aspecto criminal, no entanto, essa dinamicidadeapregoada e, por vezes, até desejada, encontra-selimitada pelos dogmas que são, em última instância,garantidores do Estado Democrático de Direito,como, por exemplo, os princípios da reserva legal eda tipicidade estrita.

Mais recentemente, a exemplo do que acontececom a eletricidade, constatou-se que não é incomumpessoas interceptarem, clandestinamente, sinal detelevisão a cabo, utilizando-o sem o respectivopagamento. Essa conduta imoral, antiética e, admita-se, ilícita tem sido definida por grande campanhapublicitária, como furto qualificado. Essa definição,afinal, “patrocinada” pelos publicitários, poderia serrespaldada no marco de um direito penal daculpabilidade?

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O art. 155, § 3º, equipara a coisa móvel “a energiaelétrica ou qualquer outra que tenha valoreconômico”. Certamente, “sinal de TV a cabo” não éenergia elétrica; deve-se examinar, por conseguinte,seu enquadramento na expressão genérica “qualqueroutra” contida no dispositivo em exame. A locução“qualquer outra” refere-se, por certo, a “energia”que, apenas por razões linguísticas, ficou implícita naredação do texto legal; mas, apesar de suamultiplicidade, seja ela energia solar, térmica,luminosa, sonora, mecânica, atômica, genética, entreoutras, inegavelmente “sinal de TV” não é, e nem seequipara a “energia”, seja de que natureza for. Naverdade, energia se consome, se esgota, diminui epode inclusive terminar, ao passo que “sinal detelevisão” não se gasta, não diminui, mesmo quemetade do País acesse o sinal ao mesmo tempo, elenão diminui, ao passo que, se fosse energia elétrica,entraria em colapso.

Não se pode adotar interpretação extensiva parasustentar que o § 3º equiparou a coisa móvel “aenergia elétrica ou qualquer outra coisa”, quando naverdade se refere a “qualquer outra energia”. Se apretensão do legislador fosse essa, equiparar coisamóvel a coisa que tenha valor econômico, poderia terutilizado uma forma mais clara, por exemplo:

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“equipara-se à coisa móvel qualquer outra que tenhavalor econômico”.

Afora o fato de, em não sendo energia, não poderser objeto material do crime de furto, o “sinal detelevisão” tampouco pode ser subtraído, pois, comojá afirmamos, subtrair significa retirar, surrupiar, tiraràs escondidas a coisa móvel de alguém. Ora, quemutiliza clandestinamente “sinal de televisão” não oretira e tampouco dele se apossa, não havendoqualquer diminuição do patrimônio alheio que, emúltima instância, é o bem jurídico protegido no crimede furto. Nesse sentido, sustenta João EduardoGrimaldi da Fonseca, com precisão: “Não hádesfalque no patrimônio, o prejuízo decorre do que aempresa — em virtude da utilização indevida do sinalque retransmite — deixa de receber, não do quedesta se subtrai”114.

Por outro lado, subtrair não é a simples retiradada coisa do lugar em que se encontrava; énecessário, a posteriori, sujeitá-la ao poder dedisposição do agente, e, na hipótese, o usoclandestino de “sinal de televisão” não apresentaaquele elemento subjetivo de apossamento para siou para outrem.

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19. Erro jurídico-penal no crime de furto: erro detipo e de proibição

Quem subtrai coisa que erroneamente supõe sersua encontra-se em erro de tipo: não sabe quesubtrai coisa alheia. Porém, quem acredita ter odireito de subtrair coisa alheia — v. g., o credorperante o devedor insolvente — incorre em erro deproibição.

Erro de tipo é o que recai sobre circunstância queconstitui elemento essencial do tipo. É a falsapercepção da realidade sobre um elemento do crime,alheia, por exemplo. É a ignorância ou falsarepresentação de qualquer dos elementosconstitutivos do tipo penal. Indiferente que o objetodo erro se localize no mundo dos fatos, dosconceitos ou das normas jurídicas. Importa, isso sim,que faça parte da estrutura do tipo penal115. Assim,por exemplo, não se pode falar em crime de furtoquando o agente, equivocadamente, pensa que acoisa é sua, ou acredita piamente que a coisa não temdono ou é abandonada ou, em outros termos, nãosabe que se trata de coisa alheia.

Erro de proibição, por sua vez, é o que incidesobre a ilicitude de um comportamento. O agentesupõe, por erro, ser lícita sua conduta. O objeto do

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erro não é, pois, nem a lei, nem o fato, mas ailicitude, isto é, a contrariedade do fato em relação àlei. O agente supõe permitida uma conduta proibida;faz um juízo equivocado daquilo que lhe é permitidofazer em sociedade. No erro de proibição, enfim, osujeito sabe o que faz, mas supõe erroneamente quesua ação é permitida. Assim, por exemplo, o credorque, não conseguindo receber seu crédito dodevedor, subtrai-lhe o valor correspondente,acreditando ter o direito de fazê-lo.

Convém destacar, desde logo, que não estamosfalando de “simulacro de erro”, de meras alegaçõesdefensivas, mas de erro verdadeiro, concreto,efetivo, ou seja, é necessário que haja motivo paraconduzir alguém a erro, que este se fundamente emfatos ou circunstâncias reais, plausíveis, concretos,positivos. Somente esse tipo de erro, reconhecido noprocesso, leva à exclusão do dolo, que é elementosubjetivo do tipo e, por extensão, exclui a própriatipicidade, mesmo o erro evitável, na medida em quenão há previsão de modalidade culposa.

O erro de tipo essencial sempre exclui o dolo,permitindo, quando for o caso, a punição pelo crimeculposo (não há previsão de furto culposo), já que aculpabilidade permanece intacta. O erro de tipoinevitável exclui, portanto, a tipicidade, não por falta

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do tipo objetivo, mas por carência do tipo subjetivo.No crime de furto haverá, porém, a atipicidade, porexclusão do dolo, mesmo quando se trate de erroevitável, ante a ausência de previsão de modalidadeculposa. O erro de proibição, por sua vez, quandoinevitável, exclui a culpabilidade, impedindo apunição a qualquer título, em razão de não havercrime sem culpabilidade116. Se o erro de proibição éevitável, a punição se impõe, sempre por crimedoloso (ou melhor, sem alterar a natureza do crime —doloso ou culposo), mas com pena reduzida, pois,como afirma Cerezo Mir, “a culpabilidade,reprovabilidade pessoal da conduta antijurídica, ésempre menor no erro de proibição evitável”117.

20. Pena e ação penal

No furto simples a pena é de reclusão de um aquatro anos; no furto noturno é majorada em umterço; no privilegiado, pode ter a reclusãosubstituída por detenção, diminuída de um a doisterços ou substituída por multa; no furtoqualificado, a pena cominada é exatamente o dobroda pena da figura simples, qual seja, dois a oito anos

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de reclusão; e, na nova qualificadora (§ 5º), areclusão será de três a oito anos.

A pena de prisão será cumulativa com a de multa,exceto no furto privilegiado, em que aquela pode sersubstituída por esta, e na hipótese do § 5º, em que areclusão foi cominada isoladamente.

Haverá isenção de pena se for praticado contraascendente, descendente ou cônjuge (na constânciada sociedade conjugal).

A natureza da ação penal é públicaincondicionada, salvo nas hipóteses do art. 182,quando será condicionada à representação.

1 A pena pecuniária foi longamente aplicada naAntiguidade, conforme deixa claro a própria Bíblia Sagrada(Samuel, II, 12,6; Êxodo, XXI e XXII; Levítico XXIV).2 Magalhães Noronha, Direito Penal; Parte Especial, 15. ed.,São Paulo, Saraiva, 1979, v. 2, p. 221.3 No mesmo sentido: Luiz Regis Prado, Curso de DireitoPenal brasileiro; Parte Especial, v. 2, São Paulo, Revista dosTribunais, 2000, v. 2, p. 367; Weber Martins Batista, O furto

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e o roubo no direito e no processo penal, 2. ed., Rio deJaneiro, Forense, 1997, p. 23.4 Francesco Carrara, Programa de Derecho Criminal,Bogotá, Temis, 1973, § 2.279.5 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 4. ed., Riode Janeiro, Forense, 1980, v. 7, p. 17.6 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 221. Nomesmo sentido, Damásio de Jesus, Direito Penal, 22. ed.,São Paulo, Saraiva, 1999, v. 2, p. 30; Heleno Cláudio Fragoso,Lições de Direito Penal; Parte Especial, 10. ed., Rio deJaneiro, Forense, 1995, v.1, p. 293.7 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 301.8 Observar o disposto no art. 1.263 do Código Civil.9 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e noprocesso penal, cit., p. 27.10 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 20.11 Nesse sentido, ver Damásio de Jesus, Direito Penal, cit.,v. 2, p. 303.12 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 21.13 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 20.14 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 223.15 Bento de Faria, Código Penal brasileiro (comentado);

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Parte Especial, Rio de Janeiro, Record, 1961, v. 4, p. 44;Carlos Xavier, Tratado de Direito Penal brasileiro , 1942, v.7, p. 34.16 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 18 e 19; Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal;cit., v. 1, Parte Especial, Rio de Janeiro, Forense, 1988, p. 316.17 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 302; PauloJosé da Costa Jr., Comentários ao Código Penal; ParteEspecial, São Paulo, Saraiva, 1988, v. 2, p. 197.18 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, p. 19.19 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 3, p. 367.20 O Projeto Alcântara Machado admitia o crime de furtopraticado pelo próprio dono da coisa móvel (art. 350, § 1º).21 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 3, p. 369.22 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal; ParteEspecial, 11. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1995, v. 1, p. 186.23 Apud Weber Martins Batista, O furto e o roubo nodireito e no processo penal, cit., p. 4.24 Apud Weber Martins Batista, O furto e o roubo nodireito e no processo penal, cit., p. 5; Francesco Antolisei,Manuale di Diritto Penale; Parte Speciale, Milano, 1954, v.1, p. 189.25 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e no

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processo penal, cit., p. 33.26 Idem, ibidem.27 Cezar Roberto Bitencourt, Erro de tipo e erro deproibição — uma análise comparativa, 2. ed., São Paulo,Saraiva, 2000, p. 95.28 Juan Córdoba Roda, El conocimiento de laantijuridicidad en la teoría del delito, Barcelona, 1962, p.37.29 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 234.30 Questão tormentosa é a dos tradicionais furtos emsupermercados, cuja definição fica adstrita aos detalhes decada caso, por exemplo: “Quem retira mercadoria de umestabeleci-mento e chega a sair do local, ocultando-a fora da esfera devigilância dos empregados da loja, comete furto consumadoe não meramente tentativa” (TACrimSP, AC, rel. Des. LuizAmbra, RT, 700:332); “Furto de mercadorias à venda emsupermercado, em conluio com funcionária em serviço decaixa por onde passariam as mercadorias cuja possedefinitiva era pretendida — Registro de custos emimportância muito inferior ao montante de mercadoriasapresentadas no momento — Pretensão criminosaobstaculada por fiscal funcionário que tudo percebeu,efetuando a apreensão da mercadoria e nota de caixa —Delito que se mantém, assim, no campo da tentativa” (TARJ,AC, rel. Des. Monteiro de Carvalho, RT, 717:414); “Há mera

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tentativa de furto quando, embora a res tenha deixado aposse da vítima, esta não se tornou desvigiada, visto que oofendido não a perdeu de sua visão” (TACrimSP, AC, rel.Des. Lopes da Silva, RT, 725:588); “Crime impossível —Descaracterização — Réus que praticam furto emestabelecimento comercial — Vigilância ocasional depoliciais — Prisão por estes à saída do estabelecimento —Inidoneidade relativa desse meio — Tentativacaracterizada — Sentença condenatória mantida —Vigilância ocasional de policiais sobre a ação delituosa. Faltade repercussão sobre a potencialidade do meio executório,considerado em si mesmo. Mera inidoneidade relativa dessemeio” (TACrimSP, AC, rel. Des. Ricardo Dip, RT, 721:450).31 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 27.32 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 306.33 Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de direito penal , 8.ed., v. 1, p. 374.34 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 28 e 29.35 O natimorto Código Penal brasileiro de 1969, nacontramão da história, transformava o furto durante orepouso noturno em crime qualificado se “praticado durantea noite”, adotando o critério físico-astronômico.36 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 239 e 240.37 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 242.

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38 Em sentido contrário, Luiz Regis Prado, Curso de DireitoPenal brasileiro; Parte Especial, São Paulo, Revista dosTribunais, 2000, v. 2, p. 371.39 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 311.40 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 243.41 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal;Parte Geral; 6. ed., São Paulo, Saraiva, v. 1.42 STJ, RE, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 9 fev.1998.43 STJ, REsp, rel. Min. Vicente Leal, RSTJ, 85:361; RT,734:655.44 RT, 734:737.45 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 7, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 374.46 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 38.47 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e noprocesso penal, cit., p. 114.48 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 42: “Os obstáculos podem ser externos ou internos,ativos (offendicula, fios elétricos de uma campainha dealarma e, em geral, dispositivos automáticos de segurança),ou passivos (muros, paredes, vidraças, portas, grades, redesou telas metálicas, aparelhos antifurto de automóveis, selosde chumbo, etc. etc.)”.

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49 Galdino Siqueira, Tratado de Direito Penal ; ParteEspecial, Rio de Janeiro, Konfino, 1947, t. 4, p. 458.50 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e noprocesso penal, cit., p. 117: “Em regra, quanto maior aviolência empregada ou mais difícil o obstáculo superado,mais acentuada a audácia e temibilidade que infunde oagente. No furto simples, resta à vítima, como consolo, aideia de que o fato não teria ocorrido se tivesse, de algummodo, protegido a coisa. Quando, no entanto, a proteçãonão foi suficiente para evitar o furto, pois o ladrão superouos obstáculos defensivos e logrou subtrair a coisa, é grandea sensação de insegurança, de impotência da vítima”.51 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 245. Pelapertinência e precisão das considerações críticas de WeberMartins, que subscrevemos integralmente, merecem sertranscritas, in totum: “Noronha está certo na crítica que faz àredação do dispositivo, não, na interpretação do mesmo. Aspalavras ‘subtração da coisa’ — como diz Hungria — podemsersubstituídas por ‘à sua execução’, pois se referem a todafase de execução do crime, e não apenas à apreensão doobjeto. Sendo assim, enquanto não se consumar o furto,enquanto o ladrão não apreender a coisa e lograr tirá-la daesfera de vigilância do dono ou possuidor, a violência porele praticada qualifica ao furto. No mesmo sentido, Damásiode Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 322; Heleno Fragoso,

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Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p. 197.De acordo com esse entendimento, que está correto, pode-se substituir ‘subtração da coisa’ por ‘à sua execução’, oupor ‘ao seu cometimento’. Assim, o dispositivo examinadocorresponde, na realidade, como o afirma Noronha, a ‘se ocrime é cometido’. Melhor teria sido, portanto, que o item I,do § 4º, em análise, se limitasse à expressão ‘comdestruição ou rompimento de obstáculo’”.52 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 40 e 41; Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal,cit., v. 1, p. 197.53 No mesmo sentido, Luiz Regis Prado, Curso de DireitoPenal brasileiro, cit., v. 3, p. 374.54 Damásio de Jesus, Direito Penal, v. 2, p. 323.55 Damásio de Jesus, Direito Penal, v. 2, p. 322.56 Fernando de Almeida Pedroso, Apropriação indébita,estelionato e furto qualificado pelo emprego de fraude:distinção típica entre as espécies, RT, 697:261, nov. 1993.57 Damásio de Jesus, Direito Penal, v. 2, p. 323.58 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 43.59 Guilherme Souza Nucci, Código Penal comentado, 2. ed.,São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 435.60 Fernando de Almeida Pedroso, Apropriação indébita...,Revista cit., p. 263.

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61 Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa.62 Francesco Carrara, Programa de Derecho Criminal; ParteEspecial, Bogotá, Temis, 1974, v. 4, n. 6, p. 207.63 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 44.64 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e noprocesso penal, p. 152.65 Sebastian Soler, Derecho Penal argentino, 3. ed., BuenosAires, Tipográfica Editora Argentina, 1970, v. 4, p. 222.66 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e noprocesso penal, p. 161: “A punga, no entanto, é o crime doprofissional, da pessoa que faz desse tipo de furtoverdadeiro meio de vida. O adestramento ao longo dos anostraduz grande intensidade do dolo”.67 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 251.68 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 325.69 Hungria entendia que, nas duas hipóteses, o furto seriaqualificado pelo meio fraudulento. Esse entendimento, veniaconcessa, está absolutamente superado (Comentários aoCódigo Penal, cit., v. 7, p. 46).70 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 46 e 47.71 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 251.72 Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p. 199.73 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 325 e 326.

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74 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e noprocesso penal, cit., p. 189.75 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e noprocesso penal, cit., p. 189.76 Acórdão unânime da 2ª Turma do STF, rel. Min. DjaciFalcão, j. 16-1979, RTJ, 95:1.242.77 Acórdão unânime do TACrimSP, 4 ª Câm., j. 1º-2-1979,JTACrimSP 57/235.78 Veja-se o que afirmamos sobre essa teoria: “5.1 Conceitorestritivo de autor — Segundo esta teoria, autor é aqueleque realiza a conduta típica descrita na lei, isto é, o quepratica o verbo núcleo do tipo: mata, subtrai, falsifica etc.Para esta teoria, ao contrário do conceito extensivo de autor,nem todo o que interpõe uma causa realiza o tipo penal, pois‘causação não é igual a realização do delito’. As espécies departicipação, instigação e cumplicidade, serão, nestaacepção, ‘causas de extensão da punibilidade’, visto que pornão integrarem a figura típica constituiriam comportamentosimpuníveis.Realizar a conduta típica é objetivamente distinto defavorecer a sua realização. Deduz-se daí, por si só, queautoria e participação também devem ser distinguidasatravés de critérios objetivos. Por isso, segundo Jescheck, oconceito restritivo de autor necessita ser complementadopor uma teoria objetiva de participação, que pode assumirdois aspectos distintos:

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a) teoria objetivo-formalEmbora sem negar a importância do elemento causal, destacaas características exteriores do agir, isto é, a conformidadeda ação com a descrição formal do tipo penal. Esta teoriaatém-se à literalidade da descrição legal e define como autoraquele cujo comportamento se amolda ao círculo abrangidopela descrição típica e, como partícipe, aquele que produzqualquer outra contribuição causal ao fato.b) teoria objetivo-materialNem sempre os tipos penais descrevem com clareza o injustoda ação, dificultando a distinção entre a autoria eparticipação, especialmente nos crimes de resultado. Ateoria objetivo-material procurou suprir os defeitos daformal-objetiva considerando a maior perigosidade quedeve caracterizar a contribuição do autor em comparaçãocom a do partícipe; em outras palavras, considerando amaior importância objetiva da contribuição do autor emrelação à contribuição do partícipe. No entanto, adesconsideração do aspecto subjetivo e a dificuldadeprática de distinguir causa e condição ou mesmo dedistinguir causas mais ou menos importantes levou adoutrina alemã a abandonar a teoria objetivo-material e aadotar expressamente a teoria restritiva de autor, sob ocritério formal-objetivo (§ 25, I).Apesar de distinguir autoria e participação, a teoria restritivade autor, mesmo complementada com a teoria objetiva de

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participação, não contempla a figura do autor mediato e,eventualmente, casos de coautoria em que não haja umacontribuição importante” (Cezar Roberto Bitencourt, Manualde Direito Penal, cit., 6. ed., v. 1).79 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, cit.,v. 1.80 Cezar Roberto Bitencourt: “O Código Penal de 1940, emsua versão original, adotou a teoria monística ou unitária daação, evitando, assim, uma série de questões quenaturalmente decorreriam das definições de autores,partícipes, auxílio necessário, auxílio secundário,participação necessária, etc. A Reforma Penal de 1984permanece, no entanto, acolhendo essa teoria. Procurou,contudo, atenuar os seus rigores distinguindo com precisãoa punibilidade de autoria e participação. Estabeleceu algunsprincípios disciplinando determinados graus departicipação. Adotou, como regra, a teoria monística,determinando que todos os participantes de uma infraçãopenal incidem nas sanções de um único e mesmo crime e,como exceção, a concepção dualista, mitigada, distinguindoa atuação de autores e partícipes, permitindo uma adequadadosagem de pena de acordo com a efetiva participação eeficácia causal da conduta de cada partícipe, na medida daculpabilidade perfeitamente individualizada.Na verdade, os parágrafos do artigo 29 aproximaram a teoriamonística da teoria dualística ao determinar a punibilidade

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diferenciada da participação. Por outro lado, como dizRené Ariel Dotti, a referência à culpabilidade no final doreferido artigo ‘é uma proclamação de princípio que iluminatodo o quadro do concurso e introduz uma ‘cláusulasalvatória’ contra os excessos a que poderia levar umainterpretação literal e radicalizante da teoria monística pura’”(Cezar Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde, Teoriageral do delito, São Paulo, Saraiva, 2000, p. 486 e 487).81 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 46 e 47. No mesmo sentido, Sebastian Soler, DerechoPenal argentino, cit., v. 4, p. 236.82 Hans Welzel, Derecho Penal alemán, Santiago, Ed.Jurídica de Chile, 1987, p. 154 e 155.83 H. H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal , p. 937; HansWelzel, Derecho Penal alemán, p. 155.84 Ernest von Beling, Esquema de Derecho Penal. Ladoctrina del delito tipo, trad. Sebastian Soler, BuenosAires, Depalma, 1944.85 Giuseppe Bettiol, Direito Penal, São Paulo, Revista dosTribunais, 1977, v. 1, p. 247.86 Cezar Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde,Teoria geral do delito , cit., p. 499: “Ocorre a instigaçãoquando o partícipe atua sobre a vontade do autor, no caso,do instigado. Instigar significa animar, estimular, reforçaruma ideia existente. O instigador limita-se a provocar aresolução criminosa do autor, não tomando parte nem na

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execução nem no domínio do fato; induzir significa suscitaruma ideia. Tomar a iniciativa intelectual, fazer surgir nopensamento do autor uma ideia até então inexistente. Estaforma de instigação os autores têm denominado de‘determinação’, que nós preferimos chamá-la deinduzimento”.87 Bitencourt e Muñoz Conde, Teoria geral do delito , p.500: “Esta é a participação material, em que o partícipeexterioriza a sua contribuição através de um comportamento,de um auxílio. Pode efetivar-se, por exemplo, através doempréstimo da arma do crime, de um veículo para deslocar-secom mais facilidade, de uma propriedade etc. Enfim, nacumplicidade o partícipe contribui materialmente para aprática do crime”.88 Sebastian Soler, Derecho Penal argentino, cit., v. 4, p.240.89 Sebastian Soler, Derecho Penal argentino, cit., v. 4, p.257.90 Heleno Fragoso, Lições de direito penal, cit., v. 1, p. 199;Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 325.91 Jescheck, Tratado de Derecho Penal, cit., p. 920.92 Veja-se o que afirmamos sobre essa teoria em Manual deDireito Penal, cit., 6. ed., v. 1: “5.1. Conceito restritivo deautor — Segundo esta teoria, autor é aquele que realiza aconduta típica descrita na lei, isto é, o que pratica o verbonúcleo do tipo: mata, subtrai, falsifica etc. Para esta teoria, ao

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contrário do conceito extensivo de autor, nem todo o queinterpõe uma causa realiza o tipo penal, pois ‘causação não éigual a realização do delito’. As espécies de participação,instigação e cumplicidade, serão, nesta acepção, ‘causas deextensão da punibilidade’, visto que por não integrarem afigura típica constituiriam comportamentos impuníveis.Realizar a conduta típica é objetivamente distinto defavorecer a sua realização. Deduz-se daí, por si só, queautoria e participação também devem ser distinguidasatravés de critérios objetivos. Por isso, segundo Jescheck, oconceito restritivo de autor necessita ser complementadopor uma teoria objetiva de participação que pode assumirdois aspectos distintos:a) teoria objetivo-formalEmbora sem negar a importância do elemento causal, destacaas características exteriores do agir, isto é, a conformidadeda ação com a descrição formal do tipo penal. Esta teoriaatém-se à literalidade da descrição legal e define como autoraquele cujo comportamento se amolda ao círculo abrangidopela descrição típica e, como partícipe, aquele que produzqualquer outra contribuição causal ao fato.b) teoria objetivo-materialNem sempre os tipos penais descrevem com clareza o injustoda ação, dificultando a distinção entre a autoria eparticipação, especialmente nos crimes de resultado. Ateoria objetivo-material procurou suprir os defeitos da

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formal-objetiva considerando a maior perigosidade quedeve caracterizar a contribuição do autor em comparaçãocom a do partícipe; em outras palavras, considerando amaior importância objetiva da contribuição do autor emrelação à contribuição do partícipe. No entanto, adesconsideração do aspecto subjetivo e a dificuldadeprática de distinguir causa e condição ou mesmo dedistinguir causas mais ou menos importantes levou adoutrina alemã a abandonar a teoria objetivo-material e aadotar expressamente a teoria restritiva de autor, sob ocritério formal-objetivo (§ 25, I).Apesar de distinguir autoria e participação, a teoria restritivade autor, mesmo complementada com a teoria objetiva departicipação, não contempla a figura do autor mediato e,eventualmente, casos de coautoria em que não haja umacontribuição importante”.93 Reconhecida a participação de menor importância, aredução se impõe. Será, porém, facultado ao juiz reduzi-la emmaior ou menor grau, se constatar maior ou menorintensidade volitiva do partícipe, maior ou menorculpabilidade deste. Poderá efetuar a redução no sentidoinverso da intensidade da culpabilidade: maiorcensurabilidade, menor redução; menor censurabilidade,maior redução.94 Hans Welzel, Derecho Penal alemán, cit., v. 4, p. 155.95 Basileu Garcia, Instituições de Direito Penal, São Paulo,

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Max Limonad, 1982, v. 1, t. 1, p. 425.96 Lenio Luiz Streck, O “crime de porte de arma” à luz daprincipiologia constitucional e do controle deconstitucionalidade: três soluções à luz da hermenêutica,Revista de Estudos Criminais do ITEC, 1:61, 2001.97 Ver o Capítulo III deste volume, item n. 2, onde definimoso bem jurídico protegido no crime de roubo.98 Lenio Luiz Streck, parecer na Apelação Criminal n.70000284455, da 5ª Câmara Criminal, Rel. Amilton Bueno deCarvalho, que adotou integralmente o parecer como razão dedecidir (Revista de Estudos Criminais do ITEC, 1:120-31,2001).99 Relatando o Acórdão n. 70000284455, da 5ª CâmaraCriminal do TJRGS, que acolheu integralmente, porunanimidade, o parecer antes referido de Lenio Luiz Streck(Revista de Estudos Criminais do ITEC, 1:125).100 “Em síntese, há que se ter claro que o EstadoDemocrático de Direito, muito mais do que uma fórmula oumodelo de Estado, é uma proposta civilizatória; é um ‘plusnormativo’, vinculando a um todo principiológico o agir dosdemais entes estatais” (Lenio Streck, O “crime de porte dearma” à luz da principiologia constitucional, p. 59).101 Lenio Luiz Streck, O “crime de porte de arma” à luz daprincipiologia..., Revista cit., p. 62.102 Idem, ibidem.

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103 Especificamente sobre essa inconstitucionalidade nosmanifestamos, rapidamente, nas breves anotações quefizemos para nosso Código Penal comentado (São Paulo,Saraiva, 2002), que já se encontrava no prelo, in verbis: “11.Inconstitucionalidade: individualização da pena — Acominação de pena nos limites mínimo e máximo de 3 (três) a4 (quatro) anos viola o princípio da individualização dapena, caracterizando verdadeira tarifação penal(taxatividade absoluta das penas), eliminada pelo CódigoNapoleônico de 1810 (ver, nesse sentido: Andrei ZencknerSchmidt, O princípio da legalidade penal no EstadoDemocrático de Direito, Porto Alegre, Livr. do AdvogadoEd., 2001, p. 263; Salo de Carvalho, na apresentação damesma obra de Andrei Z. Schmidt). Esses parâmetros — trêsa quatro — impedem a individualização judicial da pena,consagrada no texto constitucional. Ademais, édesproporcional a elevação do mínimo de 1 (um) para 3(três) anos, e, no próprio art. 342, que é similar, foi mantidoos limites de um a três anos. No caso concreto, deve-sedeclarar essa inconstitucionalidade e aplicar o limite mínimoda cominação anterior”.104 Para brindar o leitor, transcrevemos a essência domagnífico parecer de Lenio Streck, que foi adotado, comorazão de decidir pelo acórdão da lavra de Amilton Bueno deCarvalho, in verbis: “Tenho, pois, que fere a Constituição —entendida em sua principiologia (materialidade) — a

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previsão legal do Código Penal que determina aDUPLICAÇÃO da pena toda vez que o furto for cometidopor duas ou mais pessoas, o que, aliás, acarreta um paradoxoem nosso sistema penal. Entre tantas distorções que existemno Código Penal (e nas leis esparsas), este é um ponto quetem sido deixado de lado nas discussões daquilo que hojedenominamos de ‘necessária constitucionalização do direitopenal’. Vale frisar, nesse sentido, que no recente Congressode Direito Penal e Processual Penal ocorrido em Curitiba nosdias 1, 2 e 3 de setembro de 1999, a questão atinente àdiscrepância entre as diversas qualificadoras do CódigoPenal veio à baila, em debate promovido entre AmiltonBueno de Carvalho, Salo de Carvalho, Afranio Jardim, JamesTubenshlak e o Procurador de Justiça signatário. Aconclusão apontou para a urgente — e necessária —releitura das majorações de pena decorrentes dasqualificadoras e das causas de aumento de pena, tendo porbase o princípio da proporcionalidade.Com efeito, esse paradoxo decorre do fato de que, enquantono furto a qualificadora do concurso de pessoas tem ocondão de duplicar a pena, no roubo a majorante (causa deaumento de pena), neste caso de concurso de agentes, é de(apenas — sic) 1/3, podendo ir no máximo até a metade.Atentemo-nos para a discrepância: tanto no furto como noroubo, o concurso de agentes qualifica; no primeiro, a penadobra; no segundo, a pena fica acrescida de 1/3. Ora, no

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furto a presença de mais de uma pessoa não coloca emrisco a integridade física da vítima, e, sim, facilita o agirsubtraente; já no roubo, a presença de mais pessoas colocaem risco sobremodo a integridade física da vítima. Nãoobstante isto, o Código Penal valoriza mais a coisa(propriedade privada) que a vida/integridade física.Por isto, é necessário fazer uma (re)leitura constitucional dotipo penal do furto qualificado (por concurso de pessoas) àluz do princípio da proporcionalidade, que é ínsito eimanente à Constituição Federal. Para tanto, mediante umainterpretação conforme à Constituição, e levando em conta oprincípio da isonomia constitucional, há que se redefinir anorma do art. 155, par. 4º, IV, do Código Penal. Necessáriaobservação: entendo, a partir da doutrina de FriedrichMüller, Eros Roberto Grau e H. G. Gadamer, que a NORMA ésempre o resultado da interpretação de um TEXTO jurídico— nesse sentido, meu livro Hermenêutica Jurídica e(m)Crise, Livraria do Advogado, 1999.Não se está a propor aqui — e até seria despiciendo alertarpara este fato — que o Judiciário venha a legislar,modificando o teor do dispositivo do Código Penal queestabelece a duplicação da pena nos casos de furtoqualificado por concurso de pessoas. Na verdade, trata-se,nada mais nada menos, do que elaborar uma RELEITURA dalei sob os parâmetros da devida proporcionalidade previstana Constituição Federal. O mecanismo apto para tal é

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o da INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO,que se originou da Alemanha, que vem sendo utilizado peloSupremo Tribunal Federal já há mais de 10 anos.Ou seja, o texto da Lei (CP) permanece com sua literalidade;entretanto, a norma, fruto da interpretação, é que exsurgiráredefinida em conformidade com a Constituição. Dessemodo, analogicamente, o aumento de pena decorrente doconcurso de pessoas (circunstância especial de aumentode pena) do roubo (art. 157, par. 2 º, II), que é de 1/3 até ametade, torna-se aplicável ao furto qualificado porconcurso de agentes.E não se diga que o concurso de pessoas nas duashipóteses não tem a mesma natureza jurídica. O que muda étão somente a denominação: no caso do furto, o concursode pessoas é chamada de qualificadora; no caso do roubo, aparticipação de mais de duas pessoas é chamada de causade aumento de pena... Não se olvide que, a uma, ambos ostipos penais pretensamente protegem o mesmo bem jurídico(o patrimônio), e, a duas, muito embora o roubo seja umcrime bem mais grave, paradoxalmente o nosso sistema alçaa participação de mais de uma pessoa à condição dequalificadora com uma majoração de pena bem menor...De maneira bem mais simples, pode-se dizer que, para o‘legislador’ brasileiro, cometer um furto mediante aparticipação de mais de uma pessoa é circunstância maisgravosa do que cometer um roubo em circunstâncias

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semelhantes!!! E parece óbvio que o moderno direito penal eo contemporâneo direito constitucional não podemcompactuar com tais anomalias. Desnecessário referir queuma norma tem dois âmbitos: vigência e validade (Ferrajoli).Pode ela ser vigente e não ser válida. No caso dos autos, odispositivo legal (texto) em questão, que estabelece aduplicação da pena, é vigente; entretanto, sua validade deveser aferida na confrontação com o princípio daproporcionalidade e o da isonomia.Dito de outro modo, no caso sob exame, a teoria garantistade Ferrajoli pode oferecer um importante e fundamentalcontributo para o deslinde da controvérsia. Com efeito, emtendo os textos jurídicos sempre dois âmbitos — vigência evalidade, uma norma somente será válida se seu conteúdoestiver em conformidade com a Constituição, entendida emsua materialidade e substancialidade. Ora, o legislador(ordinário) não é livre para estabelecer leis e tipos penais. Ogrande problema é que, mesmo com o advento de uma novaConstituição, milhares de leis continuam ‘em vigor’ nosistema. Isto ocorre porque, de forma positivista, o juristatradicional confunde vigência com validade. Por isto, ascorrentes críticas do Direito apontam para a necessáriafiltragem hermenêutico-constitucional do sistema jurídico,fazendo com que todo o ordenamento fique contaminadopelo ‘vírus’ constitucional. A questão é tão grave que ogrande jurista Jiménez de Azúa chegou a propor que,

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quando da promulgação de uma nova Constituição, todosos Códigos deveriam ser refeitos, para evitar o mau vezo dese continuar a aplicar leis não recepcionadas ourecepcionadas apenas em parte pelo novo topos devalidade, que é texto constitucional.No caso em tela — e para tanto estou acompanhado damoderna teoria constitucional (Canotilho, Hesse, Müller,Bonavides, Ribas Vieira, Guerra Filho, Bandeira de Mello,Clèmerson Clève, L. R. Barroso, Souto Maior Borges,somente para citar alguns) —, enquanto o poderencarregado de fazer as leis não elaborar as necessáriasreadaptações legislativas, cabe ao Poder Judiciário, em suafunção integradora e transformadora, típica do EstadoDemocrático de Direito, efetuar as correções das leis,utilizando-se para tal dos modernos mecanismoshermenêuticos, como a interpretação conforme àConstituição (Verfassungskonforme Auslegung ), a nulidadesem redução de texto e a declaração dainconstitucionalidade das leis incompatíveis com aConstituição, para citar alguns. É o caso dos autos: o textoda lei (art. 155, par. 4º, IV) continua vigente; sua validade,porém, é que vem confortada por uma interpretaçãoconstitucional, mediante o uso analógico — para os casosde furto qualificado por concurso de agentes — dopercentual de acréscimo decorrente da majorante doconcurso de pessoas no roubo. Além de obedecer o

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princípio da isonomia, estar-se-á fazendo a readequação danorma ao princípio da proporcionalidade” (Lenio Luiz Streck.Parecer transcrito na Apelação n. 70000284455, da 5ª CâmaraCriminal do TRJRGS, Revista de Estudos Criminais do ITEC,1:122-5, 2001).105 Para aprofundar os estudos sobre o tema recomenda-sea leitura de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, Dofurto de uso, Rio de Janeiro, Forense, 1986.106 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v.7, p. 24/25.107 Flavio Martins Alves Nunes Jr., O furto de uso,disponível em www.direitocriminal.com.br.108 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal comentado,cit., p. 427.109 Fontán Balestra, Tratado de Derecho Penal , BuenosAires, 1969, t. 5, p. 440.110 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito eno processo penal, cit., p. 103.111 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro;Parte Especial, São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 2, 2000,p. 373; Guilherme de Souza Nucci, Código Penalcomentado, cit., p. 432: “Energia é a qualidade de um sistemaque realiza trabalhos de variadas ordens, como elétrica,química, radiativa, genética, mecânica, entre outras”.112 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 6.

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ed., v. 1.113 Cezar Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde,Teoria geral do delito, cit., p. 26.114 João Eduardo Grimaldi da Fonseca, O “furto” de sinal detelevisão a cabo, Boletim do IBCCrim, 103:18, jun. 2001.115 Cezar Roberto Bitencourt e Francisco Muñoz Conde,Teoria geral do delito, cit., p. 406.116 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, cit.,v. 1.117 José Cerezo Mir, O tratamento do erro de proibição noCódigo Penal, RT, 643:400, 1989.

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CAPÍTULO II - FURTO DE COISA COMUM

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos do crime. 3.1. Sujeito ativo. 3.2.Sujeito passivo. 4. Tipo objetivo:adequação típica. 4.1. Sócio que furta daprópria sociedade. 5. Tipo subjetivo:adequação típica. 6. Consumação etentativa. 6.1. Consumação de furto decoisa comum. 6.2. Tentativa de furto decoisa comum. 7. Classificaçãodoutrinária. 8. Causa especial deexclusão da antijuridicidade. 9. Pena eação penal.

Furto de coisa comumArt. 156. Subtrair o condômino, coerdeiro ou

sócio, para si ou para outrem, a quemlegitimamente a detém, a coisa comum:

Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois)anos, ou multa.

§ 1º Somente se procede medianterepresentação.

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§ 2º Não é punível a subtração de coisa comumfungível, cujo valor não excede a quota a que temdireito o agente.

1. Considerações preliminares

No Código Penal de 1890, o furto de coisa comumnão recebia um tratamento autônomo independente.Era abrangido pela seguinte previsão: “O crime defurto se cometerá ainda que a coisa pertença aherança ou comunhão em estado de indivisão” (art.334). Na verdade, o furto de coisa comum, comofigura autônoma, continua desconhecido em muitaslegislações modernas, que não o distinguem dafigura simples.

O Código Penal de 1940, a exemplo do CódigoPenal Rocco, de 1930 (art. 627), tipifica o furto decoisa comum como crime de natureza especial,atribuindo-lhe sanção consideravelmente inferior,comparada ao tipo simples. Não deixa de ser, mutatismutandis, uma espécie de furto privilegiado.

2. Bem jurídico tutelado

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Trata-se de modalidade especial do crime de furto,distinguindo-se deste pela especial relação existenteentre os sujeitos ativo e passivo e pelo objeto dasubtração, que deve ser comum a ambos os sujeitos.Em outros termos, bem jurídico tutelado são a posselegítima e a propriedade de coisa comum, isto é,pertencente aos sujeitos ativo e passivo,simultaneamente.

3. Sujeitos do crime

3.1 Sujeito ativo

Tratando-se de crime próprio, sujeito ativosomente pode ser o condômino, coerdeiro ou sócioda coisa comum. Essa condição do sujeito ativo éelementar do tipo e, como tal, comunica-se acoautores e partícipes.

Damásio de Jesus não distingue sócio de pessoajurídica regularmente constituída de sócio de simplessociedade de fato, porque, argumenta, “como a leifala em ‘sócio’, não fazendo qualquer distinçãoquanto à sua natureza, é irrelevante que a sociedadeseja legalmente constituída ou de fato”1.

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Se o sujeito ativo está, no entanto, na posse dacoisa comum, o crime será o de apropriaçãoindébita (art. 168 do CP), e não o de furto de coisacomum.

3.2 Sujeito passivo

Sujeito passivo, considerando-se a naturezaespecial do crime, são o condômino (coproprietário),coerdeiro ou sócio, ou qualquer outro possuidorlegítimo2. Se a subtração operar-se contra possuidorou detentor ilegítimo, não se tipificaria o furto decoisa comum, mas sim o furto previsto no art. 155.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A ação típica, a exemplo do artigo anterior, é“subtrair”; apenas o objeto material do crime a sersubtraído, em vez de coisa alheia, deve ser coisacomum, de quem legitimamente a detém. O conceitode subtração é exatamente o mesmo que procuramosexternar quando examinamos crime de furto.Logicamente, para tipificar-se o furto de coisacomum, faz-se necessário que esta se encontre

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legitimamente na detenção de outrem; encontrando-se, contudo, na posse do agente, o crime será o deapropriação indébita (art. 168); havendo, porém,emprego de violência ou grave ameaça, o crime seráo de roubo, a despeito de sua natureza comum.

O objeto material é a coisa móvel. Imóvel, aexemplo do furto e do roubo, não pode ser objetodesse crime. A coisa móvel tem de ser comum, isto é,de propriedade comum. Se for fungível, ou seja, sepuder ser substituída por outra coisa de mesmaespécie, quantidade e qualidade (art. 85 do CC), asubtração será impunível (art. 156, § 2º, do CP),desde que não exceda o valor da quota do agente, adespeito de revestir-se do caráter de ilícita. Tratando-se, porém, de coisa infungível, mesmo que o valor dacoisa subtraída não supere o da quota individual, oagente responderá por furto de coisa comum.

Enfim, para incidir essa espécie de “excludente deantijuridicidade especial”, é indispensável queconcorram, simultaneamente, dois requisitos legais:a) que a coisa comum seja fungível; b) que seu valornão ultrapasse a quota a que o sujeito ativo temdireito (art. 156, § 2º).

Condomínio é a propriedade, posse ou direito emcomum, isto é, exercido por dois ou mais indivíduossimultaneamente; coerdeiros são herdeiros de um

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mesmo espólio; sócio é uma das pessoas que,mediante contrato, obrigam-se a unir esforços e benspara a consecução de um fim comum. Cada sócio,herdeiro ou condômino tem seu direito limitado pelodireito dos demais; logo, subtraindo a coisa comum,lesa o direito dos outros. Preciso e insuperável era omagistério de Hungria: “Na communio pro indivisoda propriedade de uma coisa, cada comunheirodispõe de uma cota ideal in toto et in qualibet parte,e, assim, se um deles subtrai a coisa, não estásubtraindo coisa alheia, mas, ao mesmo tempo,alheia e própria, em cada uma de suas partículas”3.

4.1 Sócio que furta da própria sociedade

Questiona-se se o sócio pode ser sujeito ativo docrime de furto de coisa pertencente a sociedaderegularmente constituída. Sociedade irregular nãotem personalidade jurídica e, portanto, se confundecom a figura dos sócios.

Para uma corrente, o sócio pode subtrair coisapertencente a pessoa jurídica, na medida em que osconceitos do direito civil e do direito comercial nãosão recepcionados pelo direito penal, e o patrimônioque serve a sociedade é patrimônio comum dos

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sócios4.O sócio que furta da sociedade — pessoa jurídica

— comete o crime do art. 155, e não o furto de coisacomum. O patrimônio pertence exclusivamente àsociedade e não aos sócios, pelo menos diretamente.Nesse sentido também se manifestava HelenoFragoso, para quem, “em tal hipótese, o patrimônioda sociedade não constitui patrimônio dos sócios,sendo ela titular exclusiva do mesmo. Em que pese aautorizada opinião de Hungria, VII, 46, a subtraçãode bens que integram o patrimônio da sociedadepraticada pelo sócio, que não tem a posse dosmesmos, constitui furto (art. 155), assim como aapropriação indébita daqueles que em sua possetiverem será o crime do art. 168, CP”5. Há divergênciadoutrinário-jurisprudencial.

A dúvida sobre a condição de sócio, herdeiro oucondômino constitui questão prejudicial (art. 92 doCPP), que deve ser dirimida fora do juízo criminal,segundo a organização judiciária de cada Estado. Aregra é que seja da competência do Juizado deFamília e Sucessões. Nesse caso, deve ser suspensaa instrução criminal enquanto se resolve a questãoprejudicial.

Questão a ser dirimida refere-se aos bens

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adquiridos durante a conhecida união estável, seestariam incluídos nos chamados bens em“condomínio”. No matrimônio, observado o regimede bens adotado, não resta dúvida de que se fazpresente o instituto do condomínio, relativo aosbens comuns (todos, no regime da comunhãouniversal, e dos aquestos, nos demais regimes). Naconstância da sociedade conjugal, pela natureza darelação, não se pode falar em crime de furto. Equando, excepcionalmente, isso puder ocorrer, oagente será isento de pena (art. 181). Essa figuradelitiva, em princípio, somente poderá surgir se oscônjuges estiverem judicialmente separados e, nessecaso, somente se procede mediante representaçãodo cônjuge ofendido (art. 182, I, do CP).

Na novel união estável, contudo, é indispensávelque se faça prova irrefutável não só de suaexistência, mas particularmente de seu caráter estável(art. 226, § 3º, da CF).

Ainda que se configure, eventualmente, qualquerdas figuras previstas no § 4º do art. 155, sãoinaplicáveis as qualificadoras no furto de coisacomum. Havendo violência, contudo, contra apessoa, o crime não será este, mas o de roubo, e semqualquer atenuação especial, independentemente danatureza comum do objeto material da subtração.

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5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo, que éseu elemento subjetivo geral, e pelo especial fim deagir, que é seu elemento subjetivo especial. O dolo éconstituído pela vontade consciente de subtraircoisa comum, isto é, que seja objeto de comunhão,seja com sócio, condômino ou coerdeiro.

O elemento subjetivo especial do tipo, por suavez, é representado pelo fim especial de apoderar-seda coisa subtraída, para si ou para outrem. Éindispensável, por fim, que o agente saiba que setrata de coisa comum.

Quando, no entanto, o agente, por erro, supuserque a coisa comum é alheia, responderá igualmentepelo crime de furto comum. Essa interpretação sejustifica porque não se poderia, por erro, atribuir-lhea responsabilidade por um crime mais grave queaquele que efetivamente cometeu. Contudo, sesubtrair coisa própria imaginando que era comum,não responderá por crime algum. Estar-se-á diante doque se chama de crime putativo, que, evidentemente,crime não é.

6. Consumação e tentativa

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6.1 Consumação de furto de coisa comum

Consuma-se o crime de furto de coisa comum coma retirada da coisa da esfera de disponibilidade davítima (coproprietária ou copossuidora),assegurando-se, consequentemente, a possetranquila, ainda que passageira, por parte do agente;enfim, consuma-se quando a coisa sai da posse davítima ingressando na do agente; oassenhoreamento ocorre quando a coisa comum saiefetivamente da vigilância ou disponibilidade doofendido.

Apesar da necessidade de a res sair dadisponibilidade da vítima e estar na posse tranquilado agente, também é possível que, em tese, ocorra aconsumação do furto, sendo o agente preso emflagrante. Nesses casos, como já referido, não hápossibilidade material, por parte do ofendido, deexercer o poder de disposição da coisa, pois ignoraseu paradeiro.

6.2 Tentativa de furto de coisa comum

O furto de coisa comum, como crime material,admite a tentativa. Quando a atividade executória forinterrompida, no curso da execução, por causas

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estranhas à vontade do agente, configura-se a formatentada. Em outros termos, quando o processoexecutório for impedido de prosseguir, antes de oobjeto da subtração ser deslocado da esfera devigilância e disponibilidade da vítima para a possetranquila do agente, não se pode falar em crimeconsumado. Consuma-se o crime no momento emque a vítima não pode mais dispor da posse oupropriedade da coisa subtraída.

Caracteriza-se o crime tentado, enfim, quando ocrime material não se consuma por circunstânciasalheias à vontade do agente, não chegando a resfurtiva a sair da esfera de vigilância do dono e,consequentemente, não passando para a possetranquila daquele. Se o agente teve a posse tranquilad a res furtiva, apesar do pouco tempo, de formatotalmente desvigiada, é indiscutível a ocorrência dofurto consumado, sendo, portanto, irrelevante otempo de duração da disponibilidade da coisa.

As peculiaridades, restrições e limitações são asmesmas examinadas no dispositivo anterior, paraonde remetemos o leitor.

7. Classificação doutrinária

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Trata-se de crime próprio (aquele que exigecondição especial do sujeito ativo — sócio,condômino ou coerdeiro); de dano (consuma-seapenas com lesão efetiva ao bem jurídico tutelado);material (que causa transformação no mundoexterior, consistente na diminuição do patrimônio davítima); comissivo (é da essência do próprio verbonuclear, que só pode ser praticado por meio de umaação positiva; logicamente, por meio da omissãoimprópria também pode ser praticado, nos termos doart. 13, § 2º) ; doloso (não há previsão legal para afigura culposa); de forma livre (pode ser praticadopor qualquer meio, forma ou modo); instantâneo (aconsumação opera-se de imediato, não se alongandono tempo); unissubjetivo (pode ser praticado, emregra, apenas por um agente); plurissubsistente(pode ser desdobrado em vários atos que, noentanto, integram uma mesma conduta).

8. Causa especial de exclusão da antijuridicidade

A subtração de coisa fungível que não ultrapassaa quota a que o agente tem direito não é punível (art.156, § 2º), consoante disciplina específica dodispositivo em exame.

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Pode-se questionar, afinal: estamos diante deisenção de pena ou de exclusão deantijuridicidade? Determinada corrente sustentaque se trata de isenção de pena; outra, que aprevisão legal é causa de exclusão daantijuridicidade6.

Na verdade, a redação do § 2º do art. 156apresenta uma sutileza que altera profundamente anatureza de sua previsão. Com efeito, se odispositivo legal afirmasse que “o agente não épunível”, como faz em inúmeros artigos do CódigoPenal, estaríamos, certamente, diante de umasituação cristalina de isenção de pena. No entanto,não foi essa a previsão legal; ao contrário, prevêreferido dispositivo que “não é punível asubtração...”. Ora, subtração impunível significasubtração lícita, permitida indiferente ao direitopenal. Portanto, como conclui, lucidamente, Damásiode Jesus, trata-se de fato lícito, isto é, de “causa deexclusão da antijuricidade e não de isenção depena”7.

Es sa excludente especial (as gerais ou comunsestão relacionadas no art. 23), para configurar-se,exige os seguintes requisitos: a) fungibilidade dacoisa comum; b) valor não superior à quota a que o

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agente tem direito.Tratando-se de coisa infungível, é irrelevante que

o agente tenha direito a quota superior ao valorsubtraído: o crime estará tipificado. Igualmente, aindaque se trate de coisa fungível, se o valor subtraídofor superior à quota a que o sujeito tem direito, ocrime também estará tipificado. Assim, afungibilidade da coisa comum e seu limite da quotasão elementares limitadoras da excludente especialsob exame.

9. Pena e ação penal

A pena cominada ao furto de coisa comum éalternativa: de detenção, de seis meses a dois anos,ou multa. A natureza da ação penal é públicacondicionada à representação do ofendido ou dequem tenha qualidade para representá-lo.

1 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 332.

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2 Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p. 337.3 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 48.4 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 49.5 Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p. 338.6 A segunda posição é defendida, com acerto, por Damásiode Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 332 e 333.7 Damásio, Direito Penal, cit., v. 2, p. 333.

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CAPÍTULO III - ROUBO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos do crime. 3.1. Sujeito ativo. 3.2.Sujeito passivo. 4. Tipo objetivo:adequação típica. 5. Modus operandi:mediante violência ou grave ameaça ouqualquer outro meio. 5.1. Violência física(vis corporalis). 5.2. Grave ameaça (viscompulsiva). 5.2.1. Idoneidade da graveameaça. 5.2.2. Simulação de arma e armade brinquedo. 5.3. Qualquer outro meiode redução da resistência. 5.4. Violênciaou grave ameaça para fugir sem a coisa.6. Espécies de roubo: próprio eimpróprio. 6.1. Roubo próprio. 6.2.Roubo impróprio. 6.3. Roubo próprio eimpróprio: distinção. 7. Objeto materialdo crime de roubo. 8. Tipo subjetivo:adequação típica. 9. Roubo majorado(“qualificado”, § 2º). 9.1. Se a violênciaou ameaça é exercida com emprego dearma (I). 9.1.1. O emprego de arma debrinquedo e a Súmula 174 do STJ. 9.2.

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Se há concurso de duas ou maispessoas (II). 9.3. Em serviço detransporte de valores e o agenteconhece essa circunstância (III). 9.4.Roubo de veículo automotor que venhaa ser transportado para outro Estado oupara o exterior (IV). 9.5. Roubo deveículo automotor com sequestro davítima (V). 9.6. Elevação da pena mínimano roubo qualificado. 10. Eventualpresença de duas causas de aumento.11. Consumação e tentativa. 11.1.Consumação do crime de roubo. 11.2.Tentativa do crime de roubo. 12.Classificação doutrinária. 13. Rouboqualificado pelo resultado: lesão graveou morte. 13.1. Pela lesão corporalgrave. 13.2. Pelo resultado morte:latrocínio. 13.2.1. Resultado mortedecorrente de grave ameaça: não tipificalatrocínio. 13.3. Morte de comparsa:inocorrência de latrocínio. 14. Tentativade latrocínio: pluralidade de alternativas.15. Latrocínio com pluralidade devítimas. 16. Concurso do crime de roubocom o de quadrilha. 17. Pena e ação

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penal. 17.1. Inconstitucionalidade daproibição de progressão de regime noscrimes hediondos.

Capítulo II

DO ROUBO E DA EXTORSÃO

Roubo

Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si oupara outrem, mediante grave ameaça ou violência apessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio,reduzido à impossibilidade de resistência:

Pena — reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos,e multa.

§ 1º Na mesma pena incorre quem, logo depoisde subtraída a coisa, emprega violência contrapessoa ou grave ameaça, a fim de assegurar aimpunidade do crime ou a detenção da coisa parasi ou para terceiro.

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§ 2º A pena aumenta-se de um terço até metade:

I — se a violência ou ameaça é exercida comemprego de arma;

II — se há o concurso de duas ou mais pessoas;

III — se a vítima está em serviço de transporte devalores e o agente conhece tal circunstância;

IV — se a subtração for de veículo automotorque venha a ser transportado para outro Estado oupara o exterior;

• Inciso IV acrescentado pela Lei n. 9.426, de24 de dezembro de 1996.

V — se o agente mantém a vítima em seu poder,restringindo sua liberdade.

• Inciso V acrescentado pela Lei n. 9.426, de 24de dezembro de 1996.

§ 3º Se da violência resulta lesão corporalgrave, a pena é de reclusão, de 7 (sete) a 15

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(quinze) anos, além de multa; se resulta morte, areclusão é de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, semprejuízo da multa.

• § 3º com redação determinada pela Lei n.9.426, de 24 de dezembro de 1996.

• A Lei n. 8.072/90, em seu art. 6º, aumentou apena mínima do latrocínio para vinte anos (art.157, § 3º, in fine).

1. Considerações preliminares

Durante longo período da história o roubo foitratado como furto, embora, na essência, não deixede ser uma espécie de “furto agravado” pelo modusoperandi, isto é, distingue-se do furto apenas peloemprego da “violência ou grave ameaça contra apessoa” ou ainda pela utilização de qualquer outromeio que impossibilite a resistência da vítima.

Na Idade Média, o roubo não foi ignorado pelosdireitos romano e germânico, que, guardadas asproporções, contribuíram com sua evolução: para odireito germânico a violência empregada em sua

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execução era o fator preponderante do crime deroubo, ao passo que o direito romano, mais preciso,reconhecia que a maior gravidade da infração penalsituava-se na existência de ofensa a duasobjetividades jurídicas distintas: de um lado apatrimonial e, de outro, a ofensa à pessoa (liberdadee integridade).

Os Códigos sardo, toscano e Zanardelli admitiamo crime de roubo, embora confundissem a violênciacontra a coisa (típica do furto violento) e a contra apessoa, exclusiva do roubo1. As OrdenaçõesFilipinas, com precária e prolixa linguagem, criminalizavam o crime de roubo como infração penalautônoma (Livro V, Título LXI).

Os três Códigos Penais brasileiros (CódigoCriminal de 1830, Código Republicano de 1890 e oatual Código Penal de 1940) não ignoraram aexistência de distinções entre furto e roubo. OCódigo Criminal do Império retrocedeu em relação àsOrdenações Filipinas ao não distinguir a violênciacontra a coisa e contra a pessoa, equiparando-as nocrime de roubo2. Sem grande melhora, o CódigoRepublicano disciplinou o crime de roubo nos arts.356 a 358.

Somente o atual Código Penal purificou a figura

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do crime de roubo, ao afastar dela a violência contraa coisa, que, com acerto, vai alojar-se no crime defurto qualificado. A grave ameaça a pessoa foiinovação acrescentada pelo atual diploma legal, alémde equiparar-lhe, genericamente, a impossibilidade dea vítima resistir ou defender-se.

2. Bem jurídico tutelado

Trata-se de crime complexo, tendo comoelementares constitutivas a descrição de fatos que,isoladamente, constituem crimes distintos; protege,com efeito, bens jurídicos diversos: o patrimônio,público ou privado, de um lado, e a liberdadeindividual e a integridade física e a saúde, que sãosimultaneamente atingidos pela ação incriminada.Com efeito, separando-se as condutas, podem-seidentificar, com facilidade, dois crimes distintos:contra o patrimônio, como gênero, são protegidas,como espécie, a posse, a propriedade e a detenção, aexemplo do que ocorre com o crime de furto; contra apessoa, como gênero, são protegidas a liberdadeindividual (quando praticado mediante graveameaça) e a integridade física e psíquica do serhumano, como espécies.

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Sintetizando, são bens jurídicos protegidos peloart. 157 e seus parágrafos, além do patrimônio(posse, propriedade e detenção), a liberdadeindividual (constrangimento ilegal), a integridadefísica (lesão corporal) e a vida das pessoas (morte,no latrocínio).

3. Sujeitos do crime

3.1 Sujeito ativo

Sujeito ativo, a exemplo do crime de furto, podeser qualquer pessoa (crime comum), menos oproprietário, por faltar-lhe a elementar coisa “alheia”.Se este praticar a subtração poderá responder porexercício arbitrário das próprias razões,dependendo das circunstâncias e do elementosubjetivo que orientar sua conduta, além de incorrernas sanções correspondentes à violência empregada.

3.2 Sujeito passivo

Sujeito passivo também pode ser o proprietário, opossuidor e, eventualmente, o mero detentor da

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coisa, ou até mesmo terceiro que sofra a violência. Osujeito passivo da violência ou da ameaça pode serdiverso do sujeito passivo da subtração; podeocorrer, com efeito, que a violência seja empregadanão contra o proprietário ou possuidor da coisaalheia, mas contra terceiro. Nessa hipótese, haverádois sujeitos passivos: um em relação ao patrimônioe outro em relação à violência, ambos vítimas deroubo, sem, contudo, dividir a ação criminosa, quecontinua única. As duas vítimas — do patrimônio eda violência — estão intimamente ligadas peloobjetivo final do agente: subtração e apossamentoda coisa subtraída.

4. Tipo objetivo: adequação típica

O roubo nada mais é que o furto “qualificado”pela violência à pessoa. Por mais que se queirainovar na definição do crime de roubo, a despeito donomen iuris próprio e de pena autônoma, não sepode negar sua similitude com um furto qualificadopelo emprego de violência ou grave ameaça à pessoaou de qualquer outro meio para impossibilitar suaresistência. Esse já era o magistério do velho Carrara,para quem “o roubo vem a ser uma forma mais odiosa

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que o furto cometido na presença do dono, e essaodiosidade decorre da maior audácia ao sacar-lhe osobjetos, não apenas à sua vista, mas dele próprio oude suas mãos”3.

Aliás, não constituiria nenhum paradoxocientífico-dogmático se o legislador optasse pelacriação de uma qualificadora especial do crime defurto, cominando-lhe a sanção correspondente àviolência a pessoa. Com efeito, a opção do legisladorbrasileiro pela concepção autônoma do crime deroubo tem fundamento mais político-criminal quecientífico, embora facilite didaticamente suacompreensão, estudo e aplicação. Não era outra aorientação de Hungria, que preconizava: “À parte omeio violento ou impeditivo da resistência da vítima,coincide o roubo com o furto, pois é, também,subtração de coisa alheia móvel, com o fim de tê-la oagente para si ou para outrem, sendo desnecessário,assim, repetir-se aqui, o que já dissemos, a talrespeito, quando tratamos do furto”4. Fazendonossas as palavras de Hungria, evitaremos, dentrodo possível, a repetição desnecessária do que, aquiaplicável, dissemos lá, quando tratamos do crime defurto.

O Código Penal de 1940 adotou, em termos de

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furto e de roubo, o sistema seguido pela Alemanha e,particularmente, pela Itália, classificando como roubosomente a subtração cometida com emprego deviolência ou grave ameaça à pessoa; e como furtoqualificado a subtração praticada com violência àprópria coisa. Com efeito, o núcleo típico é,igualmente, subtrair, para si ou para outrem, coisaalheia móvel. O roubo distingue-se do furtoexclusivamente pela violência, real ou ficta, utilizadacontra a pessoa. No furto qualificado pela destruiçãoou rompimento de obstáculo a violência é praticadacontra a coisa; no roubo, é contra a pessoa. Enfim,tudo o que dissemos a respeito do crime de furto,com exceção do meio usado, aplica-se ao crime deroubo.

Para a configuração do roubo, é irrelevante que osujeito ativo o pratique com a intenção de vingar-seda vítima ou de terceiro; basta que o faça com aintenção de apossar-se da coisa para si ou paraoutrem. É irrelevante a razão ou o motivo pelo qualpretende apoderar-se da res, desde que de algumaforma represente alguma vantagem ou interesse (nãogostamos da expressão “lucro”, porquejuridicamente tem significado próprio, que nemsempre se confunde com o gozo, proveito ouvantagem que a subtração de uma coisa alheia pode

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trazer).O objeto material no crime de roubo é duplo,

como duplos também podem ser os sujeitospassivos: são a coisa alheia móvel e a pessoa, quenão precisa ser, necessariamente, a mesma quesofreu a violência pessoal e a subtração da coisamóvel. O roubo pode ser próprio ou impróprio.

5. Modus operandi: mediante violência ou graveameaçaou qualquer outro meio

A violência, elemento estrutural do crime deroubo, é distinta da violência do furto qualificado(art. 155, § 4º, I); neste, a violência é empregadacontra a coisa; naquele, contra a pessoa5. Aviolência, no roubo, pode ser imediata ou mediata:imediata, contra o dono (detentor, posseiro oupossuidor); mediata, contra terceiro.

A subtração opera-se por meio da grave ameaça,da violência à pessoa ou depois de havê-la reduzido,por qualquer meio, à impossibilidade de resistência.Trata-se, ao contrário do furto, de tipo especialcujos meios executórios são nele especificados.Aliás, o uso dos meios, qualquer deles, como

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elementares constitutivas integra a figura típica doroubo, caracterizando seu emprego, por si só, o inícioda execução desse crime. Logicamente,desnecessário afirmar, desde que o uso da violênciaou grave ameaça vise à subtração da coisa.

5.1 Violência física (vis corporalis)

Violência física à pessoa consiste no emprego deforça contra o corpo da vítima. Para caracterizar essaviolência do tipo básico de roubo é suficiente queocorra lesão corporal leve ou simples vias de fato,na medida em que lesão grave ou morte qualifica ocrime. Vias de fato são a violência física sem dano àintegridade corporal.

O termo “violência”, empregado no texto legal,significa a força física, material, a vis corporalis, coma finalidade de vencer a resistência da vítima. Essaviolência pode ser produzida pela própria energiacorporal do agente, que, no entanto, poderá preferirutilizar outros meios, como fogo, água, energiaelétrica (choque), gases etc. A violência pode serempregada pela omissão, submetendo, por exemplo,o ofendido a fome ou sede com a finalidade de fazê-lo ceder à vontade do agente. A violência poderá serimediata, quando empregada diretamente contra o

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próprio ofendido, e mediata, quando utilizada contraterceiro ou coisa a que a vítima esteja diretamentevinculada.

Não é indispensável que a violência empregadaseja irresistível: basta que seja idônea para coagir avítima, colocá-la em pânico, amedrontá-la, suficiente,enfim, para minar sua capacidade de resistência.

Violentos empurrões e trombadas tambémcaracterizam o emprego de violência física,necessária e suficiente para caracterizar o crime deroubo. Contudo, aqueles empurrões ou trombadas,tidos como leves, utilizados apenas com a finalidadede desviar a atenção da vítima não têm sidoconsiderados idôneos para caracterizar o crime deroubo.

5.2 Grave ameaça (vis compulsiva)

Ameaça grave (violência moral) é aquela capaz deatemorizar a vítima, viciando sua vontade eimpossibilitando sua capacidade de resistência. Agrave ameaça objetiva criar na vítima o fundadoreceio de iminente e grave mal, físico ou moral, tantoa si quanto a pessoas que lhe sejam caras. Éirrelevante a justiça ou injustiça do mal ameaçado,na medida em que, utilizada para a prática de crime,

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torna-a também antijurídica.“Mediante grave ameaça” constitui forma típica

da “violência moral”; é a vis compulsiva, que exerceforça intimidativa, inibitória, anulando ou minando avontade e o querer do ofendido, procurando, assim,inviabilizar eventual resistência da vítima. Naverdade, a ameaça também pode perturbar,escravizar ou violentar a vontade da pessoa, como aviolência material. A violência moral podematerializar-se em gestos, palavras, atos, escritos ouqualquer outro meio simbólico. Mas somente aameaça grave, isto é, aquela que efetivamenteimponha medo, receio, temor na vítima, e que lhe sejade capital importância, opondo-se a sua liberdade dequerer e de agir.

O mal ameaçado pode consistir em dano ou emsimples perigo, desde que seja grave, impondo medoà vítima, que, em razão disso, sinta-se inibida, tolhidaem sua vontade, incapacitada de opor qualquerresistência ao sujeito ativo. No entanto, édesnecessário que o dano ou perigo ameaçado àvítima seja injusto, bastando que seja grave. Naverdade, a injustiça deve residir na ameaça em si enão no dano ameaçado.

O mal prometido, a título de ameaça, além defuturo e imediato, deve ser determinado, sabendo o

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agente o que quer impor. Nesse sentido, referindo-seà natureza do mal prometido, Magalhães Noronha,pontificava: “Compreende-se que o mal deva serdeterminado, pois indefinível e vago não terágrandes efeitos coativos; verossímil também, ouseja, que se possa realizar e não fruto de merafanfarronice ou bravata; iminente, isto é, suspensosobre o ofendido: nem em passado, nem em futurolongínquo, quando, respectivamente, não teria forçacoatora, ou esta seria destituída do vigor necessário;inevitável, pois, caso contrário, se o ofendido puderevitá-lo, não se intimidará; dependente, via de regra,da vontade do agente, já que, se depende da deoutrem, perderá muito de sua inevitabilidade”6.Enfim, esses são os requisitos que, em tese, a ameaçagrave deve apresentar; esses meios não são nemabsolutos nem numerus clausus, podendo, no casoconcreto, apresentar-se alguns e outros não, semdesnaturar a gravidade da ameaça. É indispensávelque a ameaça tenha idoneidade intimidativa, isto é,que tenha condições efetivas de constranger avítima.

5.2.1 Idoneidade da grave ameaça

O aferimento da eficácia da ameaça é de caráter

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puramente subjetivo, sofrendo, certamente,influência direta de aspectos como nível cultural,idade, sexo, condição social, estado de saúde etc. Aeficácia virtual da ameaça deve ser avaliadaconsiderando-se o nível médio (de difícil aferição)dos indivíduos com a mesma condição ou padrão davítima (Manzini). Assim, não se deve excluir a prioria idoneidade da ameaça, ainda que, de plano, pareçamirabolante, pois há pessoas, dominadas porcrendices, que são facilmente impressionáveis.Oportuna a seguinte decisão do Tribunal de Justiçade São Paulo: “Se a vítima se sentiu atemorizada,porque o acusado fazia menção de sacar da cinturauma arma, a ameaça, portanto, existiu, o quecaracteriza o roubo simples, não sendo caso dedesclassificação para furto por arrebatamento”7.

5.2.2 Simulação de arma e arma de brinquedo

A simulação de estar armado ou a utilização dearma de brinquedo, quando desconhecida ou nãopercebida pela vítima, constituem grave ameaça,suficientemente idônea para caracterizar o crime deroubo. O pavor da vítima, especialmente naatualidade, quando a população urbana andadominada pelo medo coletivo, impede que realize

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uma atenta observação para constatar a realidadedas coisas.

Na realidade, são irrelevantes os meios utilizadospelo sujeito ativo — reais ou imaginários — paraamedrontar a vítima: mostrar que porta uma arma,fingir que a tem consigo ou simplesmente ameaçar deagressão têm a mesma idoneidade para amedrontarpessoas normais. Não importa, inclusive, asinceridade da ameaça: basta que a vítima se sintaamedrontada e, em consequência, impossibilitada dereagir à ação criminosa.

O assalto de inopino, surpreendendo a(s)vítima(s), afirmando tratar-se de assalto e exigindo aentrega dos pertences, constitui grave ameaça,mesmo sem mostrar armas. A atemorização da vítima,que é subjetiva, decorre das própriascircunstâncias da abordagem e do próprio pavorque, atualmente, domina a população. Oordenamento jurídico de 1940 conheceu apenas a“voz de prisão”; a violência urbana do final doséculo encarregou-se de popularizar a similar “voz deassalto”, que, pode-se afirmar, constitui,inegavelmente, um neologismo do termo “ameaça”, eé idôneo para caracterizar a grave ameaça.

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5.3 Qualquer outro meio de redução da resistência

Aqui, para descrever o meio possível de executaro roubo, após relacionar duas hipóteses casuísticas,o legislador adotou, como em tantas outrasoportunidades, uma fórmula genérica, que não seconfunde com interpretação analógica, aliásinadmissível em sede de criminalização.

Essa fórmula genérica objetiva tipificar qualqueroutro meio utilizado que se assemelhe à violência(real ou moral) e que por ela não seja abrangida, masque tenha o condão de deixar a vítima à mercê dosujeito ativo. Enfim, à violência ou grave ameaça éequiparado todo e qualquer meio pelo qual o sujeitoativo — sem empregar violência ou incutir medo —consegue evitar que a vítima ofereça resistência oudefesa, por exemplo, o uso de soníferos, anestésicos,narcóticos, hipnose, superioridade numérica ousuperioridade física (considerável)8.

Convém destacar, porém, que o outro “qualquermeio” referido no art. 157 tem natureza excludente,isto é, não é similar nem se confunde com violênciaou grave ameaça, caso contrário seria desnecessárioequipará-los. Assim, poderá ter qualquer outranatureza, produzir qualquer outra sensação (que nãoseja medo ou temor), minar a resistência da vítima,

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paralisá-la ou imobilizá-la, mas nunca poderáassemelhar-se a violência ou grave ameaça. Enfim, seo mencionado “qualquer outro meio” assemelhar-seou confundir-se com qualquer delas se tornarádesnecessária a “generalidade”, pois terá idoneidadepor si próprio para integrar a gravidade representadapela violência ou grave ameaça.

Esses outros meios devem ser empregados sub-reptícia ou fraudulentamente, isto é, sem violênciafísica ou grave ameaça, caso contrário estariamincluídos nas outras duas alternativas; devem,contudo, ter capacidade para reduzir ou diminuir aresistência da vítima. Estão abrangidas pelaexpressão “qualquer outro meio” as ações químicas,estranhas ameaças, que restrinjam ou anulem aconsciência, como o emprego de inebriantes,entorpecentes ou similares, ou até mesmo a máquinada verdade ou pílulas da confissão, destinadas aviolentar a vontade e a liberdade do ofendido,levando-o a declarar o que pretendia calar.

Magalhães Noronha exemplificava comoqualquer outro meio “a ação dos narcóticos,anestésicos, do álcool e mesmo da hipnose. Sãoprocessos físico-psíquicos porque atuam sobre ofísico da pessoa, mas produzem-lhe anormalidadepsíquica, vedando-lhe a resistência à ação do

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agente”9. Como se tutela a liberdade pessoal, emsentido amplo, o agente, empregando determinadosmeios, como os acima citados, impõe sua vontade àvítima, eliminando-lhe a liberdade de querer e de agir,também protegidas por este dispositivo.

Alguns Códigos alienígenas fazem referênciaexpressa a “outros meios”; outros não, como o atualCódigo espanhol (art. 237). A solução do nossoCódigo Penal tem a vantagem de ampliar a definiçãoda subtração violenta e afastar eventual dificuldadeem aceitar algumas hipóteses que caracterizem aredução à impossibilidade de resistência da vítima,tais como hipnose, entorpecentes, álcool, ou mesmoquando o meio violento contra a pessoa é usadoindiretamente. O Superior Tribunal de Justiça jádecidiu, por exemplo, que a dissimulação dos réuscomo policiais para a subtração de coisa móvelcaracteriza o crime de roubo10.

Tais meios devem ser usados ardilosamente, àsescondidas, desacompanhados, evidentemente, deviolência ou grave ameaça; caso contrário, serãoestas e não aqueles que integrarão a definição típicado crime de roubo11. Se, no entanto, a própria vítimase coloca em condições de incapacidade de oferecerresistência, o crime que tipificará eventual subtração

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não será o de roubo, mas certamente o de furto,cometido aproveitando-se da oportunidade criadapela vítima ou por quem vigiasse a res.

Por fim, a violência, física ou moral, pode serdirigida tanto contra o detentor da coisa, sendo ounão proprietário, como contra terceiro que,eventualmente, perturbe o sujeito ativo. Logo, osujeito passivo da violência pode ser um e o sujeitopassivo do dano patrimonial outro, sem que, porisso, se caracterize mais de um crime.

Deve ser especificado na denúncia em queconsistiu o meio que levou a vítima à incapacidadede resistência.

5.4 Violência ou grave ameaça para fugir sem acoisa

Constitui verdadeira vexata quaestio o fato de osujeito ativo que já se apossou da coisa alheia,sendo surpreendido com ela, empregar violência ougrave ameaça para fugir sem a coisa. Como setipificará essa conduta? Tentativa de roubo?Tentativa de furto? Concurso dos crimes de furtotentado com o que for praticado contra a pessoa?

Alguns identificam na hipótese o rouboimpróprio na forma tentada; outros, concurso de

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tentativa de furto com crime contra a pessoa.Acreditamos que, tecnicamente, a segunda hipóteseé a mais sustentável.

De roubo impróprio — tentado ou consumado —certamente não se trata. Não se pode ignorar que atipificação dessa infração penal exige não apenas a“violência” imediatamente posterior ao apossamentod a res, mas também, e cumulativamente, o objetivode assegurar a impunidade e/ou a detenção da coisa.Logo, a ausência de qualquer das elementares, sejada violência, seja da finalidade especial, impede aconfiguração de roubo, próprio ou impróprio,consumado ou tentado. Na verdade, como destacaWeber Martins Batista, com acerto, “o agente quisfurtar a coisa, começou a fazê-lo, não esperava sersurpreendido e, como isso aconteceu, desistiu daprática do furto e tentou fugir”12. Enfim, a ausênciado elemento subjetivo especial do tipo impede aconfiguração do roubo impróprio.

Inegavelmente um dos objetivos do emprego demeio violento, no roubo impróprio, é, nos termos dalei, assegurar a impunidade do crime. No entanto,incorre em grave equívoco quem sustenta que hároubo impróprio quando o agente, ao sersurpreendido subtraindo a coisa alheia, desiste deconsumá-la e emprega violência ou grave ameaça

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para garantir a fuga. Na verdade, assegurar aimpunidade do crime significa empregar a violênciapara garantir a subtração que acaba de fazer, da qualnão desistiu; mas não o caracteriza aquela“violência” utilizada após ter desistido doapossamento da coisa, empregando-a tão somentepara fugir, sem esta. Enfim, a violência utilizada nafuga, para não ser preso por tentativa de furto, nãocaracteriza roubo impróprio. Somente o configuraquando, surpreendido, o agente não desiste do crimee emprega a violência com o objetivo de fugir com acoisa, mesmo que não o consiga.

Assim, por exemplo, o indivíduo que ingressa emum veículo para subtrair-lhe o toca-fitas,surpreendido pelo dono, desistindo da subtração,tenta escapar, lutando com um terceiro, mas sem otoca-fitas. Não vemos outra tipificação possível quenão a tentativa de furto em concurso com crimecontra a pessoa (lesões corporais leves, graves,homicídio etc.). Nesse sentido já era o magistério deHeleno Fragoso: se a subtração é apenas tentada e oagente, na fuga, emprega violência, haverá concursomaterial de tentativa de furto e do crime que forpraticado contra a pessoa (lesões corporais,homicídio etc.)13.

Uma coisa é empregar violência para não ser

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preso pela tentativa de furto, após desistir da resfurtiva; outra é utilizar a violência objetivando fugircom a coisa, que caracteriza a conduta emolduradano § 1º do art. 157.

Mais simples, ao menos aparentemente, é aconduta de quem foge com a coisa sem violência ougrave ameaça a pessoa. Assim, a atitude daquele queprocura desvencilhar-se da vítima que o agarra, semagredi-la ou ameaçá-la, constitui crime de furto e nãoo de roubo. Essa atitude de desvencilhar-se, aindaque com algum esforço, não constitui a violênciarequerida como elementar do crime de roubo.

6. Espécies de roubo: próprio e impróprio

O atual Código Penal brasileiro, a exemplo damaioria dos Códigos alienígenas, distingue roubopróprio e impróprio. A violência no crime de roubopode ocorrer antes, durante ou após a subtração dacoisa alheia móvel; em outros termos, pode serempregada no início da ação, no apossamento dacoisa, quando a subtração já está consumada, e, porfim, ainda, quando objetiva assegurar a impunidadedo crime. Pois é exatamente esse elemento temporalda utilização da violência que distingue a

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propriedade ou impropriedade do roubo.

6.1 Roubo próprio

No roubo próprio (caput) a violência ou graveameaça (ou a redução da impossibilidade de defesa)são praticadas contra a pessoa para a subtração dacoisa. Os meios violentos são empregados antes oudurante a execução da subtração, pois representam,em outros termos, o modus operandi de realização dasubtração de coisa alheia móvel, que, aliás, é a únicae fundamental diferença que apresenta em relação aocrime de furto. Pratica roubo e não furto o agenteque, além de impedir a vítima de prosseguir em seucaminho, manda-a, em tom intimidativo, ficar quieta,não reagir e lhe passar o dinheiro e o relógio,logrando assim subtrair tais coisas, pois, nessascircunstâncias, ademais da violência indireta, tambémhouve grave ameaça.

Discordamos, nesse sentido, do entendimento deLuiz Regis Prado, para quem a violência empregadadurante a subtração também caracterizaria o rouboimpróprio. Pelo menos essa é a conclusão quetiramos de sua seguinte afirmação, referindo-se aroubos próprio e impróprio: “Este se dá quando aviolência ou grave ameaça são praticadas

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concomitantemente ou após a subtração, com o fimde assegurar a impunidade do delito ou detenção dacoisa, enquanto aquele caracteriza-se quando oagente emprega a violência ou a grave ameaça, parasó depois efetuar a subtração, o apoderamento dacoisa propriamente dita”14 (grifamos“concomitantemente”). Com efeito, a locuçãotemporal “logo depois”, constante do § 1º, tipificadordo roubo impróprio, impede que se admita a práticada violência “concomitantemente com a subtração”.Ora, uma das distinções básicas entre uma e outraespécies de roubo reside exatamente no momento doemprego da violência ou grave ameaça. Ademais, oemprego da violência somente poderá ter comofinalidade imediata assegurar o êxito doempreendimento — impunidade e/ou detenção dacoisa — se for praticada após a subtração, comoexige o § 1º, caso contrário não passará de simplesmeio de execução da própria subtração, quecaracteriza o roubo próprio, nos termos do caput doart. 157. No entanto, a bem da verdade, mais adiante,o próprio Regis Prado, de modo conclusivo, afirmaque o meio executivo violento “é utilizadoimediatamente após o apossamento da coisa”15.Enfim, essa inegável contradição do ilustre penalistadeve ser produto de simples lapso, admissível em um

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trabalho de fôlego como é o seu exemplar Curso deDireito Penal.

6.2 Roubo impróprio

No roubo impróprio a violência ou grave ameaçasão praticadas, logo depois da subtração, paraassegurar a impunidade do crime ou a detenção dacoisa subtraída. Não há roubo impróprio sem asubtração anterior da coisa móvel, seguindo-se agrave ameaça ou violência para garantir a detençãoda res furtiva. Essa modalidade está capitulada no §1º do art. 157. São exemplos típicos de rouboimpróprio aquele em que o sujeito ativo, já seretirando do portão com a res furtiva, alcançado pelavítima, abate-a (assegurando a detenção) ou, então,já na rua, constata que deixou um documento nolocal, que o identificará e, retornando para apanhá-lo,agride o morador que o estava apanhando(garantindo a impunidade)16.

São duas ordens de razões que fundamentam,segundo o texto legal, a violência posterior àsubtração como elementar do roubo impróprio:assegurar a impunidade do crime ou a detenção dacoisa para si ou para outrem. A elementar “assegurara impunidade” deve, necessariamente, receber

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interpretação relativa, isto é, não pode representar,tecnicamente, o sentido que, dogmaticamente, sepode emprestar a essa expressão, mas apenas osentido de o agente poder desvencilhar-se deempecilhos que lhe dificultem a fuga, impedir, aomenos momentaneamente, sua prisão, complicar seureconhecimento pessoal etc. Nessa primeirahipótese, a detenção ou posse precária da res já estágarantida, sendo, portanto, desnecessária aviolência. Por outro lado, “assegurar a detenção”,segunda hipótese, refere-se ao simples êxitomomentâneo da ação delituosa, isto é, que lhepermita ausentar-se do local na posse da coisasubtraída, não mais que isso.

No roubo impróprio, ao contrário do roubopróprio, não há previsão legal, como executivo, dautilização de “qualquer outro meio”, limitando-se aoemprego de violência ou grave ameaça. Rechaçamos,assim, o entendimento daqueles que admitem“outros meios”, além de violência ou grave ameaça,na caracterização do roubo impróprio. É inadmissívelqualquer interpretação extensiva ou analógica paraincluir, como elementar típica, meio que a lei nãoprevê, ampliando o jus puniendi estatal e ferindo oprincípio da tipicidade taxativa.

Assim, em nossa concepção, a eventual utilização

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desse “recurso” — qualquer outro meio — após asubtração não tipifica o crime de roubo, próprio ouimpróprio. O crime patrimonial, certamente, será o defurto, podendo, logicamente, haver concurso comoutro. Nesse particular, é irrelevante que a omissãolegislativa tenha sido voluntária ou involuntária,como discutiam Hungria e Magalhães Noronha17.

A locução “logo depois de subtraída a coisa”,constante do § 1º do art. 157, fixa os limites temporaisdo roubo impróprio. Assim, a violência ou graveameaça devem ser empregadas em seguida, logodepois, imediatamente, logo após a subtração dacoisa alheia. A expressão “logo depois” tem sentidopróprio no sistema criminal brasileiro, que a utiliza emalguns dispositivos, sendo os mais tradicionais osda definição de flagrância (art. 302, II, do CPP) equase flagrância (art. 302, III). Acreditamos que sedeva dar, em direito penal, interpretação semelhanteàquela elaborada na seara do direito processualpenal18, pela similitude de situações. Em outrostermos, “logo depois” de subtraída a coisa nãoadmite decurso de tempo entre a subtração e oemprego da violência, ou seja, o modus violentosomente é caracterizador do roubo se for utilizadoaté a consumação do furto que o agente pretendiapraticar (posse tranquila da res, sem a vigilância da

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vítima). Superado esse momento, o crime estáconsumado e, consequentemente, não pode sofrerqualquer alteração; portanto, eventual violênciaempregada constituirá crime autônomo, em concursocom furto consumado.

Assim, comete roubo impróprio tanto quemapanha a coisa móvel e, surpreendido, empregaviolência ou grave ameaça, no momento da surpresa(acaba de cometer o crime — art. 302, II, do CPP),como quem, perseguido, as emprega logo após asubtração da coisa móvel (art. 302, III). Necessário,contudo, que a utilização da violência ou graveameaça vise assegurar a impunidade ou garantir adetenção da coisa subtraída. No entanto, esserequisito temporal — imediatidade — não pode seranalisado fora do caso concreto, rompendo ocontexto da ação de subtrair com o da violênciaposterior.

Manzini, comentando o Código Penal italiano queutiliza expressão semelhante — “immediatamentedopo” — afirmava: “O requisito da imediatidadeobriga que entre o momento em que se verificou asubtração e aquele do uso de violência ou da ameaçanão haja intercorrido um tempo suficiente ou não setenha verificado um evento idôneo a romper ao nexode contextualidade da ação complexa; isto é, a

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violência ou a ameaça deve ser usada na flagrânciaou na quase flagrância do furto”19.

Em síntese, dois marcos delimitam a existência doroubo impróprio: a tomada ou subtração da coisa e aviolência antes de o agente colocar-se a “bomrecato”, como referia Hungria. Antes ou durante oapossamento da coisa alheia, o emprego da violênciacaracteriza roubo próprio; depois de subtraída eretirada da esfera de vigilância do dono, desfrutandoo agente de sua posse tranquila, não se pode maisfalar em roubo, próprio ou impróprio, mas em furto,em concurso com outro crime contra a pessoa. Osmomentos seguintes à posse tranquila, que sucede asubtração da coisa, são, por conseguinte, o limitefinal da existência do roubo impróprio.

6.3 Roubo próprio e impróprio: distinção

A distinção fundamental entre roubo próprio eroubo impróprio reside, basicamente, no momento ena finalidade do emprego da violência ou graveameaça, ou seja, as diferenças são temporais eteleológicas, além dos meios utilizáveis, maisrestritos no roubo impróprio. Assim, quando osujeito ativo pratica a violência (em sentido amplo)antes da subtração ou durante ela, responde por

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roubo próprio; quando, porém, após apanhar a coisaalheia, emprega violência ou grave ameaça, respondepor roubo impróprio.

No roubo próprio o modus operandi violento éutilizado antes ou durante a subtração, constituindoo meio de executá-la; no roubo impróprio, queinicialmente configurava um furto, após a subtraçãoda coisa é empregada violência ou grave ameaçapara assegurar a impunidade do crime ou garantir adetenção da coisa; o roubo próprio, por sua vez,pode ser praticado por meio da grave ameaça, daviolência física ou de qualquer outro meio quereduza a vítima à impossibilidade de resistência.Constata-se que o roubo impróprio não admite o“meio genérico” de execução, limitando-se àviolência ou grave ameaça. A eventual utilizaçãodesse “recurso” — qualquer outro meio — após asubtração não tipifica o crime de roubo, próprio ouimpróprio. O crime, certamente, será o de furto,podendo configurar-se concurso de crimes, quandoos “quaisquer outros meios” posteriormenteutilizados constituírem, por si sós, crime.

7. Objeto material do crime de roubo

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Tratando-se de crime complexo, é natural que oroubo possua mais de um objeto material, no caso, apessoa humana e a coisa alheia móvel. Apluralidade de objetos materiais desse crime amplia adificuldade de se verificar a ocorrência de crimeimpossível pela impropriedade do objeto, na medidaem que, havendo idoneidade de qualquer dosobjetos materiais, será suficiente para se considerar oinício de execução da conduta típica. Nesseaspecto, corrigimos a afirmação equivocada quefizemos na edição anterior.

Assim, ao contrário do que afirmamosanteriormente, não se trata de roubo impossívelquando o sujeito ativo emprega violência contra avítima para subtrair-lhe os pertences, quando esta osesqueceu em sua residência; a impossibilidade doroubo, entretanto, se caracteriza quando o sujeitoativo emprega violência contra cadáver para subtraireventuais valores que estejam consigo. Na primeirahipótese, a inexistência de “coisa alheia móvel” nãoimpede a tipificação de roubo, em razão de existiremdois bens jurídicos tutelados (coisa alheia móvel epessoa humana); na segunda, cadáver não é pessoa,faltando-lhe, portanto, essa elementar. Neste caso, aimpossibilidade do roubo decorre da absolutaimpropriedade do objeto. No primeiro, mantém-se a

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tipicidade em razão da violência contra a pessoa.

8. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo, que éseu elemento subjetivo geral, e pelo especial fim deagir, que é seu elemento subjetivo especial. O doloconstitui-se, por sua vez, pela vontade consciente desubtrair coisa alheia, isto é, que pertença a outrem. Énecessário que o agente saiba que se trata de coisaalheia, isto é, tenha conhecimento ou consciência daexistência da elementar normativa “alheia”. Éindispensável, enfim, que o dolo abranja todos oselementos constitutivos do tipo penal, sob pena deconfigurar-se o erro de tipo, que, por ausência dedolo (ou dolo defeituoso), afasta a tipicidade, salvose se tratar de simulacro de erro.

O elemento subjetivo especial do tipo, por suavez, é representado pelo especial fim de apoderar-seda coisa subtraída, para si ou para outrem. Aausência desse animus apropriativo (finalidade deapossamento) desnatura a figura do crime de furto.Logicamente, quando essa circunstância se fizerpresente, haverá uma espécie de inversão do ônusda prova, devendo o agente demonstrar, in concreto,

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que a finalidade da subtração era outra e não a deapoderar-se da coisa, para si ou para outrem.

N o roubo impróprio, por sua vez, há doiselementos subjetivos especiais do tipo: a finalidadede apossamento da coisa alheia, normal do roubopróprio, e mais o especial fim de assegurar aimpunidade ou a detenção da coisa subtraída. Essacircunstância era reconhecida por Heleno Fragoso,que afirmava: “Como, no roubo impróprio, sucedem-se as ações de subtrair para si ou para outrem eempregar violência ou grave ameaça para assegurara impunidade ou a posse da coisa, o tipo subjetivorequer não só o dolo próprio do furto e violênciapessoal, como também os elementos subjetivosdados pelo fim de agir (dolo específico)”20.

Como esse tipo penal não exige a finalidade delocupletar-se, são desnecessários os motivos ou aintenção de lucro para configurar-se o crime deroubo, próprio ou impróprio.

9. Roubo majorado (“qualificado”, § 2º)

Embora alguns doutrinadores não façam distinção

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entre majorantes e qualificadoras ou, pelos menos,não lhe atribuam relevância, não abrimos mão daprecisão terminológica, especialmente porque grandeparte de nossos leitores é de acadêmicos de Direito,que necessitam, desde logo, de boa orientação. Porisso convém registrar que as circunstânciasenunciadas no § 2º do art. 157 constituem simplesmajorantes ou, se preferirem, causas de aumento depena. As qualificadoras constituem verdadeirostipos penais — derivados —, com novos limites,mínimo e máximo, enquanto as majorantes, comosimples causas modificadoras da pena, somenteestabelecem sua variação, mantendo os mesmoslimites, mínimo e máximo. Ademais, as majorantesfuncionam como modificadoras somente na terceirafase do cálculo da pena, ao contrário dasqualificadoras, que fixam novos limites, maiselevados, dentro dos quais será estabelecida a pena-base. Assim, o elenco constante do § 4º do art. 15521constitui-se de qualificadoras, ao passo que orelacionado no dispositivo sub examen configurasimples majorante. Façamos, a seguir, uma análiseindividualizada destas.

9.1 Se a violência ou ameaça é exercida com

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emprego de arma (I)

Segundo a dicção do texto legal, é necessário oemprego efetivo de arma, sendo insuficiente osimples portar. Para Luiz Regis Prado, no entanto, “ésuficiente para a caracterização da majorante que osujeito ativo porte a arma ostensivamente, de modoque ameace a vítima, vale dizer, não é imprescindívelque venha a fazer uso do instrumento para praticar aviolência ou grave ameaça, sob pena deesvaziamento da ratio legis”22. Divergimos desseentendimento, uma vez que a tipificação legalcondiciona a ser a violência ou grave ameaça“exercida” com o “emprego de arma”, e “empregá-la”significa uso efetivo, concreto, real, isto é, autilização da arma no cometimento da violência. Nãoera outro o magistério de Sebastian Soler que, aocomentar o Código Penal argentino, com previsãosemelhante ao nosso, pontificava: “A lei exige que oroubo tenha sido cometido com armas, o que nãoquer dizer que o ladrão apenas as tenha, razão pelaqual acreditamos sinceramente infundado levantardúvidas a esse respeito ante o texto de nossa lei.Outras leis, não a nossa, merecem censura por referir-se ao mero fato de portá-la”23.

A inidoneidade lesiva da arma (de brinquedo,

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descarregada ou simplesmente à mostra), que podeser suficiente para caracterizar a ameaça tipificadorado roubo (caput), não tem o mesmo efeito paraqualificá-lo, a despeito do que pretendia aequivocada Súmula 174 do STJ, em boa horarevogada, atendendo a súplica unânime da doutrinanacional24. O fundamento dessa majorante resideexatamente na maior probabilidade de dano que oemprego de arma (revólver, faca, punhal etc.)representa e não no temor maior sentido pelavítima25. Por isso, é necessário que a arma apresenteidoneidade ofensiva, qualidade inexistente em armadescarregada, defeituosa ou mesmo de brinquedo.Enfim, a potencialidade lesiva e o perigo que umaarma verdadeira apresenta não existem nosinstrumentos antes referidos. Pelas mesmas razões,não admitimos a caracterização dessa majorante como uso de arma inapta a produzir disparos, isto é,inidônea para o fim a que se destina.

Em síntese, a maior probabilidade de danopropiciada pelo emprego de arma amplia o desvalorda ação, tornando-a mais grave; ao mesmo tempo, aprobabilidade de maior êxito no empreendimentodelituoso aumenta o desvalor do resultado,justificando-se a majoração de sua punibilidade.

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9.1.1 O emprego de arma de brinquedo e a Súmula174 do STJ

Na mesma linha de pensamento, o emprego de“arma de brinquedo” tipifica o roubo, mas não otorna qualificado ou majorado, pois, como jáafirmamos, a razão de ser da qualificadora reside namaior potencialidade lesiva e no maior perigo que aarma verdadeira produz, e não na maior intimidaçãosentida pela vítima. Esse sentimento, que serve paracaracterizar a grave ameaça tipificadora do roubo,não produz o mesmo efeito para majorá-lo, sob penade incorrer-se em grosseiro bis in idem.

A velha doutrina, de décadas passadas, queatribuía conteúdo subjetivo à majorante, admite suacaracterização com o simples emprego de “arma debrinquedo”. Nélson Hungria, eterno defensor detodas as mazelas do Código Penal de 1940, admitindoum caráter subjetivo baseado na intimidação davítima, respaldado nas antigas lições de Maggiore eManzini, afirmava que “a ameaça com uma armaineficiente (ex.: revólver descarregado) ou fingida(ex.: um isqueiro com feitio de revólver), masignorando a vítima tais circunstâncias, não deixa deconstituir a majorante, pois a ratio desta é aintimidação da vítima, de modo a anular-lhe a

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capacidade de resistir”26. No entanto, essa superadaorientação não encontra nenhuma repercussão namoderna doutrina penal (Damásio de Jesus, HelenoFragoso, Weber Martins Batista, Luiz Regis Prado,Luiz Flávio Gomes, Guilherme de Souza Nucci, entretantos outros), que, à unanimidade, rechaçainterpretações extensivas, abrangentes ouanalógicas. Contudo, nossos tribunais superiores(STF e STJ), em incompreensível conservadorismo,continuaram acolhendo aquela vetusta orientação27,ignorando que o fundamento da majorante, aocontrário do que imaginava Hungria, não é aintimidação da vítima, mas a lesividade e o perigorepresentados pela arma verdadeira.

Foi nessa linha que o Superior Tribunal deJustiça, na contramão da história, resolveu sumularessa orientação (1996), divorciada dos sãosprincípios democráticos e jurídicos orientadores deum direito penal da culpabilidade, nos seguintestermos: “Nos crimes de roubo, a intimidação feitacom arma de brinquedo autoriza o aumento da pena”(Súmula 174).

Não entraremos na discussão sobre ofundamento da majorante, relativamente à mens legisou mens legislatore, que são irrelevantes a partir da

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publicação do texto legal, uma vez que se deveanalisar o que a lei diz e não o que poderiampretender seus criadores. A lei exige o emprego dearmas, e “arma de brinquedo” não é arma, masbrinquedo. Nessa concepção, acompanha-nosAndrei Zenckner Schmidt ao afirmar: “Creio quequalquer pessoa, ao ser indagada acerca dosignificado de uma arma de brinquedo, diria que setrata de um brinquedo, e não de uma arma; umequívoco metodológico, contudo, permitiu um dosnossos mais elevados tribunais afirmar que ‘arma debrinquedo’ é ‘arma’ (Súmula 174 do STJ)” 28. Comefeito, não se pode confundir o “emprego de armafictícia”, que é idôneo para ameaçar e, porconseguinte, para tipificar o crime de roubo, comemprego efetivo de arma verdadeira que qualifica ocrime.

Na verdade, a doutrina reconhece a existência deapenas duas espécies de armas, próprias eimpróprias. Ignoram-se, como destaca WeberMartins Batista, as razões que levaram o notávelMinistro Nélson Hungria a criar, valendo apenaspara essa espécie de roubo, uma terceira classe dearmas, aquelas que não são capazes de ofenderfisicamente, de ferir ou de matar, mas que podem,pelo engano, infundir medo29.

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Como o legislador não se socorreu de nenhumafórmula genérica, equiparando à arma “qualquerobjeto capaz de intimidar”, é impossível admitirmajoração do roubo ameaçado com brinquedo comose fosse com arma. O próprio princípio da tipicidadeimpede essa interpretação extensiva. Aliás, o próprioHungria sustentava, ardorosamente, que “a lei penaldeve ser interpretada restritivamente quandoprejudicial ao réu, e extensivamente, no casocontrário”30.

Menos mal que o próprio Superior Tribunal deJustiça, por intermédio de suas duas Turmas comjurisdição em matéria criminal, capitaneado peloMinistro Félix Fischer, movimentou-se no sentido derevogar a indigitada Súmula 174. Devemos saudar asensibilidade, inteligência e, principalmente, bom-senso de nossos ministros.

9.2 Se há concurso de duas ou mais pessoas (II)

Como no furto, é a concorrência de duas ou maispessoas na prática do crime, ainda que qualquerdelas seja inimputável, que pode tipificar estamajorante no roubo. É indispensável, a nosso juízo, aparticipação efetiva na execução material do crime.Aplica-se aqui, aliás, tudo o que escrevemos sobre a

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punibilidade do concurso de pessoas naqualificadora do crime de furto, para onde remetemoso leitor, evitando-se, assim, a desnecessáriarepetição.

9.3 Em serviço de transporte de valores e o agenteconhece essa circunstância (III)

Esta majorante pretende ampliar a tutela penaldaqueles que, por ofício, dedicam-se ao transportede valores. Além de a vítima encontrar-se realizandoo serviço de transporte de valores, é necessário queo agente saiba dessa circunstância, pois o objetivoda lei é tutelar exatamente a segurança dessetransporte. Assim, o que caracteriza essa majorantenão é a natureza móvel dos valores, mas o ofício dosujeito passivo, isto é, encontrar-se em serviço detransporte de valores. O desconhecimento dessacircunstância pelo agente afasta o fundamentopolítico da majorante, tornando-a juridicamenteinaplicável, sem falar na indispensabilidade de todosos atos e circunstâncias serem,contemporaneamente, abrangidos pelo dolo, sobpena de exclusão da tipicidade (erro de tipo). Porisso, se o agente assaltar a vítima ignorando que estatransporta valores, não se caracteriza a majorante,

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respondendo aquele, por conseguinte, pelo roubocomum.

O s valores podem consistir em dinheiro ouqualquer outro bem valioso passível de sertransportado, tais como títulos, joias, ouro, pedraspreciosas etc., desde que suscetível de serconvertido em dinheiro, como sustentava Bento deFaria31. Os frequentes assaltos aos “carros-fortes”constituem essa qualificadora. Nélson Hungriadestacava, há seis décadas, que esse tipo de crimeera frequente nos Estados Unidos, por obra degangsters, lembrando apenas um exemplobrasileiro32. Não podia imaginar aquele pensador ainversão total que os tempos se encarregariam deconsagrar.

Sujeito passivo desta majorante não pode ser, emhipótese alguma, o proprietário dos “valorestransportados”. A majorante é estar a vítima “emserviço de transporte de valores”; como “serviço”sempre se presta a outrem, e não a si próprio, issosignifica que os valores transportados por quem seencontra em “serviço” não são próprios, mas deterceiro, que é o dono ou proprietário de taisvalores33. Logo, sendo roubado o próprio dono ouproprietário, quando se encontra transportando

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valores, não incide a majorante.

9.4 Roubo de veículo automotor que venha a sertransportado para outro Estado ou para oexterior (IV)

A Lei n. 9.426, de 24 de dezembro de 1996,acrescentou duas majorantes ao crime de roubo,quais sejam, roubo de veículo automotor que venhaa ser transportado para outro Estado ou para oexterior e restrição da liberdade da vítima (art. 157,§ 2º, IV e V).

Seguindo a política criminal capitalista, para aqual o patrimônio é muito mais valioso que a própriavida, que orientou a inclusão do § 5º no art. 155, a Lein. 9.426/96 transformou a mesma conduta de subtrairautomotores em majorante do crime de roubo, com ainclusão do inciso IV no § 2º do art. 157. Para aconfiguração dessa nova majorante, no entanto, aexemplo do que ocorre no crime de furto, não bastaque a subtração seja de veículo automotor. Éindispensável, a exemplo da similar figura de furto,que este “venha a ser transportado para outroEstado ou para o exterior”, atividade que poderácaracterizar um posterius em relação ao crime anteriorjá consumado.

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Quando, porém, essa majorante concorrer comqualquer das demais previstas no mesmo parágrafo— que será a regra nesse tipo de crime —, perderá,praticamente, sua razão de ser, pois acabaráfuncionando somente como circunstância judicial(art. 68, parágrafo único), uma vez que não previstacomo agravante. Afinal, pontifica Damásio de Jesus:“Ora, o crime de roubo de veículo automotor,geralmente automóvel, ainda que para transportepara outro Estado ou para o exterior, normalmente écometido com emprego de arma e mediante concursode pessoas (art. 157, § 2º, I e II). Diante disso, o novotipo surtirá pouco efeito prático...”34.

9.5 Roubo de veículo automotor com sequestro davítima (V)

No inciso V, representando a segunda “novamajorante” do crime de roubo, consta o seguinte: “seo agente mantém a vítima em seu poder,restringindo sua liberdade”.

Essa previsão, de todas as novidades trazidas poruma lei não muito feliz (Lei n. 9.426/96), parece-nos amais adequada. No entanto, a restrição da liberdadepoderá, dependendo das circunstâncias, assumir anatureza de outro crime, como, v. g., os dos arts. 148

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e 159, em concurso com o crime de roubo35, namedida em que priva a vítima de sua liberdade ou, atémesmo, configurar outro crime mais grave,absorvendo, no caso o roubo, por exemplo, aextorsão mediante sequestro (art. 159). Por isso épreciso cautela na análise dessa questão, sob penade deixar-se praticamente impune o crime desequestro. Assim, quando o “sequestro”(manutenção da vítima em poder do agente) forprat icado concomitantemente com o roubo deveículo automotor ou, pelo menos, como meio deexecução do roubo ou como garantia contra açãopolicial, estará configurada a majorante aquiprevista. Agora, quando eventual “sequestro” forpraticado depois da consumação do roubo deveículo automotor, sem nenhuma conexão com suaexecução ou garantia de fuga, não se estará diante damajorante especial, mas se tratará de concurso decrimes36, podendo, inclusive, tipificar-se, como járeferimos, a extorsão mediante sequestro: oextorquido é o próprio “sequestrado”.

Não é outra a preocupação de Damásio de Jesus,que, após considerar a, praticamente, inocuidade danova majorante — visto que dificilmente deixa de viracompanhada de outra majorante prevista no mesmoparágrafo —, conclui que a majoração deve ser

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interpretada da seguinte forma: “a) sequestrocometido como meio de execução do roubo ou contraa ação policial: incide o art. 157, § 2º, afastado oconcurso de crimes; b) sequestro praticado depoisda subtração (sem conexão com a execução ou com aação policial): concurso de crimes”37.

Concordamos, em princípio, com essa conclusãodamasiana. Quanto à primeira hipótese mencionada,nenhum reparo a fazer; quanto à segunda, contudo,recomendamos mais prudência em sua avaliação.Damásio não sugere que crimes poderiam concorrercom o roubo na hipótese sugerida. Sustentamos que,nos casos popularmente conhecidos como“sequestro-relâmpago”, cometidos diariamente nasprincipais capitais brasileiras, onde a vítima écolocada em porta-malas de veículos, pelas mãos demarginais perigosos, que percorrem horas a fio osmais variados bairros da cidade, ameaçandogravemente a vítima, exigindo-lhe (extorquindo) maisbens ou valores, às vezes violentando-assexualmente, e cujo resultado final é absolutamenteimprevisível e completamente aleatório, configura-secrime mais grave que a simples majorante darestrição da liberdade da vítima. A moldura legaladequada para esse tipo de conduta, cujo resultadomais ou menos grave não passa de mero detalhe

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acidental ou circunstancial do evento, a nosso juízo,é o art. 159 do Código Penal, ou seja, extorsãomediante sequestro. Esta, por ser mais grave,absorve o crime de roubo, afastando,consequentemente, o concurso com esse crime.

9.6 Elevação da pena mínima no roubo qualificado

No roubo qualificado pelo resultado lesãograve, a reclusão será de sete (aumentada pela Lein. 9.426/96) a quinze anos; se for morte(latrocínio), será de vinte a trinta anos, como já

previa a redação anterior38. Antes da vigênciadessa lei, na hipótese de lesão grave, a penamínima prevista era de cinco, e não sete anos dereclusão. Foi um aumento isolado, sem nenhumajustificativa lógica, política ou técnica, na medidaem que não fez o mesmo em relação ao latrocínio.Igualmente, não estendeu à extorsão (art. 158) asnovas majorantes incluídas no § 2º do art. 157, ouseja, aquelas acrescentadas nos incisos IV e V do §2º.

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10. Eventual presença de duas causas de aumento

Havendo a incidência de mais de uma causa deaumento, três correntes disputam a preferência dosespecialis tas: a) deve-se proceder somente a umaumento, fundamentado numa das causas existentes— se houver mais de uma majorante, as demaispodem ser consideradas como agravantes ou, nãohavendo previsão legal, como simples circunstânciasjudiciais (art. 59), valorável na fixação da pena-base;b) o aumento, quando variável (v. g., um sexto adois terços, ou um terço até metade) , deve serproporcional ao número de causas incidentes —assim, configurando-se somente uma majorante, oaumento pode limitar-se ao mínimo; incidindo,contudo, mais de uma, a elevação deve ser maior,podendo atingir inclusive o máximo da majoraçãopermitida, v. g., até metade, dois terços etc. Essa temsido a orientação preferida pelos tribunais superiores— STF e STJ39; c) a existência de mais de umacausa de aumento não significa, por si só, aelevação da pena na mesma proporção — ojulgador, exercendo seu poder discricionário, podeoptar por um único aumento, pois o que deve serconsiderado é a gravidade do meio empregado ou domodus operandi, e não o número de incisos do § 2º

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que se possa configurar.O legislador da reforma de 1984 pretendeu

eliminar todas as dificuldades apresentadas peladosimetria penal, que se instalara sob a égide doCódigo Penal anteriormente vigente, alimentadas, ébem verdade, pela disputa entre Nélson Hungria eRoberto Lyra, cada um patrocinando umentendimento. Com efeito, concorrendo mais de umacausa de aumento ou de diminuição “previstas naparte especial, pode o juiz limitar-se a um só aumentoou a uma só diminuição, prevalecendo, todavia, acausa que mais aumente ou diminua” (art. 68,parágrafo único, do CP)40. Esse, enfim, é o parâmetrolegal, e o aplicador não se pode distanciardemasiadamente dessa orientação, sob pena deviolar o princípio da individualização da pena.

Por isso, em nossa concepção, o ideal é reunir asduas primeiras correntes que citamos anteriormente,ou seja: proceder apenas a um aumento (aplicandosomente uma majorante na segunda fase dadosimetria penal) (1ª), mas proceder a essa variaçãoproporcional ao número de causas de aumentoincidentes (2ª), isto é, a maior ou menor elevaçãoacompanhará tanto a intensidade quanto aquantidade de majorantes. Assim, concorrendo umamajorante, a elevação da pena, em princípio, deve ser

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o mínimo previsto; se, no entanto, apresentar-se maisde uma (v. g., roubo duplamente majorado — comemprego de arma e em concurso de pessoas), a únicamajoração deverá assumir nível mais elevado. Nadaimpede, porém, que se prefira adotar apenas umamajorante, aplicável na segunda fase do cálculo depenas, utilizando-se as demais como agravantesgenéricas ou mesmo como circunstâncias judiciais,conforme o caso. Essa variante sugerida atende aoEstado Democrático de Direito e ao princípio daindividualização da pena, amparando-se numa duplafinalidade utilitária penal, ou seja: além do “máximode bem-estar” para os “não desviados”, deve-sealcançar também o “mínimo de mal-estar” necessárioaos “desviados”, seguindo a orientação de umdireito penal mínimo e garantista.

Nesse particular, as duas novas majorantes —incisos IV e V do § 2º — pouco ou quase nadaacrescentaram, na medida em que, como jádestacamos, concorrendo duas ou mais causas deaumento (majorantes), pelo entendimento majoritário,defende-se atualmente a aplicação somente de umadessas majorantes, devendo funcionar as demaiscomo circunstâncias agravantes ou, na ausência deprevisão legal, podendo ser reconhecidas comomeras circunstâncias judiciais. Assim, as duas novas

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majorantes raramente ganharão aplicação prática,uma vez que, na maioria das vezes, o crime de roubojá apresentará uma majorante, quer pelo emprego dearma, quer pelo concurso de pessoas. Como as duasnovas majorantes não são relacionadas no art. 61 doCódigo Penal, restar-lhes-á funcionar como simplescircunstâncias judiciais, via de regra.

11. Consumação e tentativa

11.1 Consumação do crime de roubo

A consumação do crime de roubo se perfaz nomomento em que o agente se torna possuidor da resfurtiva, subtraída mediante violência ou graveameaça, independentemente de sua posse mansa epacífica. Ademais, para a configuração do roubo, éirrelevante que a vítima não porte qualquer valor nomomento da violência ou grave ameaça, visto tratar-se de impropriedade relativa e não absoluta doobjeto, o que basta para caracterizar o delito em suamodalidade.

O roubo próprio consuma-se com a retirada dacoisa da esfera de disponibilidade da vítima. Vem-se

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firmando o entendimento sobre a desnecessidade deposse tranquila, mesmo passageira, do agente. Oroubo impróprio consuma-se com o emprego daviolência ou grave ameaça à pessoa, após asubtração.

O roubo é crime complexo, cuja unidade jurídicase completa pela reunião de dois crimes distintos:constrangimento ilegal (CP, art. 146) e furto (art. 155).O crime de roubo se consuma no momento em que oagente se apodera da res subtraída mediante graveameaça ou violência. Para consumar-se, édesnecessário que saia da esfera de vigilância doantigo possuidor, sendo suficiente que cesse aclandestinidade ou a violência. É igualmenteirrelevante a ausência de prejuízo decorrente darestituição do bem, bastando que este seja retiradoda esfera de disponibilidade da vítima, ficando naposse tranquila, ainda que passageira, dodelinquente. O entendimento jurisprudencial quevem predominando, inclusive no Pretório Excelso,tem como consumado o roubo tão só pela subtraçãodos bens da vítima, mediante violência ou graveameaça, ainda que, ato contínuo, o próprio ofendidodetenha o agente e recupere a res.

O crime de roubo consuma-se no momento emque o assaltante realiza a subtração plena da res,

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mesmo que pouco tempo depois seja preso emflagrante presumido.

Sendo o roubo crime complexo, sua consumaçãosomente se opera quando plenamente realizadas asinfrações penais que o integram, isto é, tanto aviolência ou grave ameaça à pessoa quanto asubtração patrimonial. Caso contrário, haverá apenastentativa de roubo próprio, quando o agente, porexemplo, após praticada a violência contra a vítima, éimediatamente perseguido, preso e a coisa érecuperada pela vítima, pois o agente não tem, emnenhum momento, a posse tranquila da res. Noentanto, pequenos detalhes têm levado a decisõesdíspares sobre o momento consumativo do crime deroubo, próprio ou impróprio. Nesse sentido, veja-seo seguinte acórdão do STJ: “Tem-se por consumadoo delito de roubo quando é a coisa retirada comviolência da posse e vigilância da vítima, aindaquando o agente tenha sido preso instantes depoiscom o produto do crime”41.

11.2 Tentativa do crime de roubo

Quanto ao roubo próprio, é tranquila aadmissibilidade da tentativa. Em relação ao rouboimpróprio há duas correntes: 1) é inadmissível a

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tentativa; 2) é admissível quando, após a subtração,o agente é preso ao empregar a violência ou graveameaça. Para as duas correntes, se a subtração forapenas tentada e houver violência ou grave ameaçana fuga, haverá furto tentado em concurso com crimecontra a pessoa, e não roubo tentado.

Como crime complexo, o início da execuçãocoincide com a prática da ameaça ou da violência, ouainda com o uso de qualquer outro meio para inibir avítima, objetivando a subtração da coisa. O uso dequalquer desses meios integra a descrição típica doroubo, caracterizando o início da execução. Logo,responde por tentativa de roubo o agente que,apontando um revólver para a vítima, determina quesaia de seu veículo, pois, assim, já ingressou na faseexecutiva do crime de roubo.

A inexistência de objeto de valor em poder davítima não descaracteriza a figura típica prevista noart. 157 do Código Penal, porquanto o roubo émodalidade de crime complexo, cuja primeira ação —a violência ou grave ameaça — constitui início deexecução.

Na dosimetria penal, para a redução da pena, nocaso de tentativa de roubo (parágrafo único do art.14 do CP), não devem ser levadas em consideraçãoas circunstâncias judiciais, mas o iter criminis, isto é,

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o caminho propriamente percorrido na elaboração doempreendimento criminoso.

12. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (aquele que não exigequalquer condição especial do sujeito ativo); dedano (consuma-se apenas com lesão efetiva ao bemjurídico tutelado); material (que causatransformação no mundo exterior, consistente nadiminuição do patrimônio da vítima e/ou ofensa a suaintegridade física ou corporal); comissivo (é daessência do próprio verbo nuclear, que só pode serpraticado por meio de uma ação positiva); doloso(não há previsão legal para a figura culposa); deforma livre (pode ser praticado por qualquer meio,forma ou modo); instantâneo (a consumação opera-se de imediato, não se alongando no tempo);unissubjetivo (pode ser praticado, em regra, apenaspor um agente); plurissubsistente (pode serdesdobrado em vários atos, que, no entanto,integram uma mesma conduta).

13. Roubo qualificado pelo resultado: lesão grave ou

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morte

O § 3º do art. 157 dispõe: “Se da violência resultalesão corporal grave, a pena é de reclusão, de 7 (sete)a 15 (quinze) anos, além de multa; se resulta morte, areclusão é de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, semprejuízo da multa”.

As duas hipóteses elencadas no dispositivo emexame caracterizam condições de exasperação dapunibilidade em decorrência da efetiva maiorgravidade do resultado. Comparando o texto legalcom outras previsões semelhantes do Código Penal— “se da violência resulta lesão corporal grave” ou“se resulta morte” —, constata-se que, pela técnicalegislativa empregada, pretendeu o legislador criarduas figuras de crimes qualificados pelo resultado,para alguns, crimes preterdolosos.

A exemplo do que ocorre com a lesão corporal denatureza grave, a morte, em princípio, deve decorrerde culpa. Contudo, normalmente, o resultado maisgrave — lesão ou morte — é produto de culpa, quecomplementaria a conhecida figura do crimepreterdoloso — dolo no antecedente e culpa noconsequente, como a doutrina gosta de definir. Ter-se-ia, assim, o crime patrimonial executado,dolosamente, com violência, acrescido de um

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resultado mais grave, resultante de culpa, a lesãograve ou a morte da vítima. Essa, pelo menos, é aestrutura clássica do crime preterdoloso. A regra,repetindo, é que, nesses crimes, o resultadoagravador seja sempre produto de culpa. Contudo,na hipótese em apreço, a extrema gravidade dassanções cominadas uniu o entendimento doutrinário,que passou a admitir a possibilidade,indistintamente, de o resultado agravador poderdecorrer tanto de culpa quanto de dolo, direto oueventual.

Há outra unanimidade sobre esses resultadosagravadores: a impossibilidade de o agenteresponder pelo resultado mais grave, sem culpa,especialmente a partir da reforma penal de 1984.

A locução “lesão corporal de natureza grave”deve ser interpretada em sentido amplo, paraabranger tanto as lesões graves (art. 129, § 1º)quanto as gravíssimas (art. 129, § 2º). Ademais, alesão corporal tanto pode ser produzida na vítima dares furtiva quanto em qualquer outra pessoa quevenha a sofrer a violência. As qualificadoras — lesãograve ou morte — aplicam-se às modalidades deroubo próprio e impróprio. No entanto, a lesãocorporal de natureza leve (art. 129, caput) éabsorvida pelo crime de roubo, constituindo a

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elementar normativa “violência física”. Assim, quem,ao subtrair coisa alheia móvel, fere, sem gravidade, avítima não responde por dois crimes — roubo e lesãocorporal leve; a lesão corporal leve constitui apenasa elementar exigida pelo tipo descritivo do crime deroubo.

A segunda parte do § 3º do art. 157 tipifica ocrime conhecido como latrocínio (o Código Penalnão utiliza essa terminologia), que é matar alguémpara subtrair coisa alheia móvel.

A Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, definiu olatrocínio como crime hediondo, excluído de anistia,graça, indulto, fiança e liberdade provisória, comcumprimento de pena integralmente em regimefechado. Nesses casos, a prisão temporária é detrinta dias, e, em caso de condenação para apelar, oSupremo Tribunal Federal vem fazendo nos últimosanos uma tentativa de constitucionalizar o direitopenal, assegurando o direito de apelar emliberdade a todo acusado que se encontrarrespondendo a processo criminal nessa condição.

As “majorantes” do § 2º, porém, não se aplicamao latrocínio. As causas especiais de aumento depena previstas para os crimes de roubo, inscritas no§ 2º do art. 157 do CP, não são aplicáveis emnenhuma das hipóteses contidas no § 3º.

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Dito isso, podemos examinar, individualmente,cada uma das “qualificadoras” pela gravidade doresultado.

13.1 Pela lesão corporal grave

A lesão grave qualificadora do roubo é aquelatipificada nos §§ 1º e 2º do art. 129, que,necessariamente, deve decorrer, pelo menos, deculpa do agente (art. 19). Assim, se, ao praticar umroubo, o sujeito ativo causar lesões corporais leves,não responderá por elas, que ficam absorvidas peloroubo, subsumidas na elementar violência. Contudo,se essas lesões forem de natureza grave (§§ 1º e 2º— graves ou gravíssimas), responderá pelo crime doart. 157, § 3º, primeira parte, independentemente detê-las produzido dolosa ou culposamente. Éindispensável, evidentemente, que a gravidade dalesão seja comprovada mediante perícia.

Pode-se afirmar, com certa segurança, quedoutrina e jurisprudência não discrepam quanto àaplicação do disposto no § 3º tanto ao roubopróprio quanto ao impróprio; é indiferente que oagente produza o resultado mais grave na vítima(lesão grave ou morte) para cometer a subtração,durante sua execução ou após sua realização. É

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desnecessário que a vítima da violência seja a mesmada subtração da coisa alheia, desde que haja conexãoentre os dois fatos; nesse caso, tratando-se de vítimada violência distinta daquela da subtração, haverádois sujeitos passivos, sem desnaturar a unidade docrime complexo, que continua único.

Sintetizando, é indiferente que o resultado maisgrave seja voluntário ou involuntário, justificando-sea agravação da punibilidade desde que esseresultado não seja produto de caso fortuito ou forçamaior, ou seja, desde que decorra, pelo menos deculpa; aplica-se, indistintamente, tanto ao roubopróprio quanto ao impróprio. Ademais, a violênciatanto pode ser praticada contra a vítima da subtraçãocomo contra terceira pessoa, como acontecenormalmente no roubo comum.

13.2 Pelo resultado morte: latrocínio

A morte da vítima é a qualificadora máxima destecrime. Tudo o que dissemos sobre o rouboqualificado pelas lesões corporais graves aplica-seao roubo com morte. Exatamente como na lesãograve, a morte pode resultar em outra pessoa quenão a dona da coisa subtraída, havendo, igualmente,dois sujeitos passivos. Poderia o legislador ter

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adotado o nomen juris “latrocínio”; não o fez,provavelmente, porque preferiu destacar que, adespeito dessa violência maior — lesão grave oumorte —, o latrocínio continua sendo roubo, isto é,um crime, na essência, de natureza patrimonial.

Observando-se a sistemática de nosso CódigoPenal, constata-se que o art. 157, § 3º, pretendeutipificar um crime preterdoloso, uma vez que alocução utilizada, “se resulta”, indica, normalmente,resultado decorrente de culpa, e não meio deexecução de crime, no caso roubo próprio ouimpróprio. No entanto, como já referimos no tópicoanterior, a severidade das penas cominadas não seharmoniza com crime preterdoloso. Procurandominimizar a inocuidade congênita da estruturatipológica em apreço, a doutrina passou a sustentar apossibilidade de o resultado morte ser produto dedolo, culpa ou preterdolo42, indiferentemente.

Toda sanção agravada em razão de determinadaconsequência do fato somente pode ser aplicada aoagente se este houver dado causa, pelo menosculposamente. Com o latrocínio não é diferente,aplicando-se integralmente o consagrado princípionulla poena sine culpa, e rechaçando-secompletamente a responsabilidade objetiva. Noentanto, não se pode silenciar diante de um erro

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crasso do legislador, que equiparou dolo e culpa,pelo menos quanto às consequências nesse casoespecífico. Na verdade, o evento morte, no latrocínio,tanto pode decorrer de dolo, de culpa ou depreterdolo, e se lhe atribuir a mesma sanção com agravidade que lhe é cominada (20 a 30 anos dereclusão), o que agride o bom-senso e fere asistemática do ordenamento jurídico brasileiro. Este,nos crimes culposos, releva o desvalor do resultado,destacando, fundamentalmente, o desvalor da ação,v. g., no homicídio doloso (6 a 20 anos) e no culposo(1 a 3 anos).

Enfim, uma coisa é matar para roubar ou paraassegurar a impunidade ou o produto do crime;outra, muito diferente, é provocar esses mesmosresultados involuntariamente. As consequências,num plano de razoabilidade, jamais poderão ser asmesmas, como está acontecendo com estedispositivo. Nesse particular, recomendamos, veniaconcessa, ao prezado leitor uma passagem d’olhosno que escrevemos a respeito quando abordamos aslesões corporais graves e gravíssimas no segundovolume desta mesma obra.

A diversidade de vítimas fatais não altera atipificação criminosa, continuando a configurarlatrocínio único, sem concurso formal, cujo número

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de vítimas deve ser avaliado na dosagem de pena,nos termos do art. 59.

A maior dificuldade no tratamento desses crimesreside na definição da tentativa, que tem sido objetode imensa controvérsia e complexidade, grande parteem decorrência da deficiente técnica legislativa, quetem dificultado as soluções estritamente jurídicas.

13.2.1 Resultado morte decorrente de graveameaça: não tipifica latrocínio

Em relação à tipificação do crime de latrocínio,merece destaque a elementar típica da violência, umavez que, examinando o caput do art. 157 e o texto deseu § 3º, definidor desse crime, constata-se uma sériadistinção: no caput, tipifica-se o emprego da “graveameaça ou violência a pessoa”; e no parágraforeferido, o resultado agravador deve resultar de“violência”. Essas redações estão muito claras nosrespectivos textos legais, não exigindo nenhumesforço demonstrativo, o que permite não nosalongarmos sobre o assunto. Por outro lado, tambémé desnecessário discorrer longamente sobre osdistintos significados das locuções “grave ameaça”e “violência a pessoa”, que, aliás, já foramtrabalhadas neste mesmo capítulo. Assim, a vexataquaestio limita-se à diferença de tipificação entre o

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crime de roubo, comum, normal, se assim se podereferir, e aquele qualificado pelo resultado,emoldurado no § 3º.

A violência contida no § 3º é somente a física (viscorporalis), e não a moral (vis compulsiva). Oresultado agravador — lesão grave ou morte — paratipificar a figura insculpida no dispositivo em examedeve, necessariamente, “resultar” de violência, que,como demonstramos à saciedade (itens 5.1 e 5.2), nãose confunde com grave ameaça, especialmente nasistemática adotada em nosso Código Penal. Assim,por exemplo, no caso de alguém que é assaltado e,mesmo sem o emprego de violência física, assusta-se com a presença de arma, sofrendo um enfarto evindo a falecer, não se tipifica o crime de latrocínio.Nessa hipótese, a alternativa legal surge por meio doconcurso de crimes: roubo e homicídio; este poderáser doloso ou culposo, dependendo dascircunstâncias fáticas, do elemento subjetivo etc.

Entendimento contrário, satisfazendo-sesimplesmente com a relação causal entre o roubo eo resultado mais grave, sem examinar o pressupostod a elementar violência, não resiste ao crivo dosprincípios da tipicidade estrita e da reserva legal,representando, quanto ao excesso, autênticaresponsabilidade objetiva, totalmente afastada pela

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reforma penal de 1984 e pela Constituição Federal de1988.

13.3 Morte de comparsa: inocorrência delatrocínio

A morte de qualquer dos participantes do crime(sujeito ativo) não configura latrocínio. Assim, se umdos comparsas, por divergências operacionais,resolve matar o outro durante um assalto, não háfalar em latrocínio, embora o direito proteja a vidahumana, independentemente de quem seja seutitular, e não apenas a da vítima do crime patrimonial.Na realidade, a morte do comparsa, nascircunstâncias, não é meio, modo ou forma deagravar a ação desvaliosa do latrocínio, quedetermina sua maior reprovabilidade. A violênciaexigida pelo tipo penal está intimamente relacionadaaos sujeitos passivos naturais (patrimonial oupessoal) da infração penal, sendo indispensável essarelação causal para configurar o crime preterdolosoespecialmente agravado pelo resultado.

No entanto, convém ter cautela ao analisar essasquestões, pois também aqui tem inteira aplicação oerro quanto à pessoa (art. 20, § 3º, do CP). Se oagente, pretendendo matar a vítima, acaba matando o

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coautor, responderá pelo crime de latrocínio, como setivesse atingido aquela; logo, é latrocínio. Nãohaverá latrocínio, por sua vez, quando a própriavítima reage e mata um dos assaltantes. A eventualmorte de comparsa em virtude de reação da vítima,que age em legítima defesa, não constitui ilícito penalalgum, sendo paradoxal pretender, a partir de umaconduta lícita da vítima, agravar a pena dos autores.

14. Tentativa de latrocínio: pluralidade dealternativas

Há inúmeras correntes sobre as diferentespossibilidades fático-jurídicas das formas tentadasdo crime de latrocínio. Tratando-se de crimecomplexo, cujos crimes-membros são o roubo e amorte, surgem grandes dificuldades interpretativasquando algum de seus componentes não seconsuma. Sem sombra de dúvida, porém, quando nãose consumar nem a subtração nem a morte, atentativa será de latrocínio. Ocorrendo somente asubtração e não a morte, admite-se igualmente atentativa de latrocínio. Quando se consuma somentea morte, e não a subtração, as divergências começama aparecer.

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Sem pretender esgotar as inúmeras possibilidadesadmitidas pela doutrina e pela jurisprudência,passamos a elencar algumas: 1) homicídio esubtração consumados: é pacífico o entendimento deque há latrocínio consumado; 2) homicídioconsumado e subtração tentada: há diversascorrentes: a) latrocínio consumado (Súmula 610); b)tentativa de latrocínio; c) homicídio qualificadoconsumado em concurso com tentativa de roubo; d)apenas homicídio qualificado; 3) homicídio tentadoe subtração consumada: são apresentadas duass oluções : a) tentativa de latrocínio (STF); b)tentativa de homicídio qualificado (pela finalidade);4) homicídio tentado e subtração tentada: tentativade latrocínio (STF). Vejamos algumas hipóteses:

a) Homicídio consumado + roubo tentadoLatrocínio — Tentativa — Configuração —

“Frente à teoria finalista, descabe falar em tentativade roubo quando o agente haja tentado subtraircerto bem da vítima cuja morte foi objetivadamediante disparos de arma de fogo — Precedente:habeas corpus 48.952/SP, relatado pelo MinistroAntonio Neder perante a Jurisprudência 61/321”(STJ, HC 73.924-5, rel. Min. Marco Aurelio, DJU, 20set. 1996, p. 34537).

Latrocínio — Tentativa — “O fato de não se

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haver chegado à subtração da res é inidôneo aconcluir-se pela simples tentativa de rouboqualificado, uma vez verificada a morte da vítima. Afigura do roubo não pode ser dissociada da alusiva àmorte. Precedentes: habeas corpus 62.074/SP e65.911/SP, relatados pelos Ministros SydneySanches e Carlos Madeira perante a Primeira eSegunda Turmas, com arestos veiculados nosDiários da Justiça de 5 de outubro de 1984 e 20 demaio de 1988, respectivamente” (STJ, HC 73.597-5,rel. Min. Marco Aurelio, DJU, 13 set. 1996, p. 33233;RT, 736:553).

“Tratando-se de latrocínio, crime complexo, acircunstância de não se haver consumado um doscrimes-membros não tem força para fragmentar aunidade dessa espécie de crime. O tipo qualificado semantém invariável: subtração, acompanhada pelamorte, consumada ou tentada” (TAPR, AC, rel. Des.Antonio Lopes de Noronha, RT, 731:636).

b) Homicídio tentado + roubo tentado =tentativa de latrocínio

Latrocínio — Tentativa — Caracterização —Vítima que foge da cena do crime — Réu que fazvários disparos contra esta, errando o alvo —Crime patrimonial que não se consumou porcircunstâncias alheias à vontade dos agentes —

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“Como a violência característica do roubo setraduziu, com clareza e nitidez, numa tentativa dehomicídio, o crime a reconhecer é o latrocíniotentado” (TACrimSP, AC 935.381, rel. Des. RégioBarbosa, RT, 720:480).

c) Homicídio tentado + roubo consumadoLatrocínio — Tentativa — Subtração

consumada — Homicídio tentado —Desclassificação de roubo qualificado —Inadmissibilidade — Aplicação e inteligência dosarts. 157, § 3º, e 14, do CP — “Ocorrendo subtraçãoconsumada e homicídio tentado sucedeu a tentativade latrocínio, crime complexo, cujo elementosubjetivo é um só, o dolo, sendo que o resultado,morte tentada ou consumada, opera apenas comosimples critério legal de fixação da reprimenda, nãopara classificação de roubo qualificado” (TACrimSP,AC, rel. Des. Aroldo Viotti, RT, 727:536).

d) Roubo e latrocínio tentado“Latrocínio tentado. Extensão da condenação ao

corréu que não efetuou os disparos contra a vítima.No crime de latrocínio tentado, a condenação devese estender ao corréu que não efetuou os disparoscontra a vítima, pois a violência foi empregada paraassegurar a impunidade de ambos” (TACrimSP, AC1209387-7, rel. Des. Amador Pedroso, j. 7-8-2000).

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“Roubo e latrocínio tentado. Continuidadedelitiva. Unificação de penas. Impossibilidade.Roubo e latrocínio são crimes do mesmo gênero masnão da mesma espécie, impossibilitando oreconhecimento da continuidade delitiva” (STJ, HC12.182-SP, rel. Min. Félix Fischer, DJU, 18 set. 2000).

15. Latrocínio com pluralidade de vítimas

Apesar de o latrocínio ser um crime complexo,mantém sua unidade estrutural inalterada, mesmocom a ocorrência da morte de mais de uma dasvítimas. A pluralidade de vítimas não configuracontinuidade delitiva e tampouco qualquer outraforma de concurso de crimes, havendo, na verdade,um único latrocínio. A própria orientação doSupremo Tribunal Federal firmou-se no sentido deque a pluralidade de vítimas não implica apluralidade de latrocínios43. Não se pode ignorarque o crime-fim inicialmente pretendido foi o deroubo e não um duplo ou triplo latrocínio, ou melhor,não duas ou três mortes. A ocorrência de mais deuma morte não significa a produção de mais de umresultado, que, em tese, poderia configurar oconcurso formal de crimes. Na verdade, a eventual

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quantidade de mortes produzidas em um único rouborepresenta a maior ou menor gravidade dasconsequências, cuja valoração tem sede nadosimetria penal, por meio das operadoras do art. 59do Código Penal.

Embora para a configuração do § 3º do art. 157 doCP seja secundária a ocorrência da subtraçãopatrimonial, e o fundamental seja, por excelência, anota de violência contra a pessoa, durante atentativa ou a consumação do roubo, é a danosidadesocial que essa conduta produz ou pode produzirque fundamenta a exacerbada punição contida nodispositivo. Mas essa “retribuição” pública já estácontida na sanção cominada.

16. Concurso do crime de roubo com o de quadrilha

A cumulação da qualificadora do crime de roubo— emprego de arma — com a qualificadora dequadrilha armada exige elaborada reflexão. O crimede quadrilha é autônomo, independe dos demaiscrimes que vierem a ser cometidos pelo bando. Trata-se de crime permanente, que se consuma com o atoda associação ou formação de quadrilha em simesmo; sua unidade perdura a despeito dos diversos

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crimes-fins cometidos pelos integrantes do grupocriminoso: não se dissocia e não se alia a outrasinfrações penais, mantendo a unidade eindividualidade típicas.

A condenação por quadrilha armada nãoabsorve nenhuma das cláusulas especiais deaumento da pena de roubo previstas no art. 157, § 2º,I, II e III, do Código Penal. Tanto os membros de umaquadrilha armada podem cometer o roubo sememprego de armas quanto cada um deles podepraticá-lo em concurso com terceiros, todosestranhos ao bando.

17. Pena e ação penal

No roubo simples a pena é de reclusão, de quatroa dez anos (caput e § 1º); no roubo majorado(qualificado) a pena é elevada de um terço atémetade; no roubo qualificado pelo resultado —lesão grave — a reclusão será de sete (aumentadapela Lei n. 9.426/96) a quinze anos; se for morte(latrocínio), será de vinte a trinta anos. Em todas ashipóteses, a pena de prisão será cumulativa com a demulta.

A ação penal, como não poderia deixar de ser, é,

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em qualquer hipótese, de natureza públicaincondicionada. A competência para julgar o crimede latrocínio, a despeito de um dos crimes-membrosser contra a vida, é da competência do juiz singular.E s s a opção político-criminal foi feita pelolegislador brasileiro de 1940 e tem sido respeitadapela legislação posterior, pela doutrina ejurisprudência brasileiras.

17.1 Inconstitucionalidade da proibição deprogressão de regime nos crimes hediondos

O Supremo Tribunal Federal, em sua constituiçãoplenária, através do Habeas Corpus 82.959, declaroua inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da Lei n.8.072/90 (Lei dos crimes hediondos), que previa ocumprimento da pena em regime integralmentefechado nos crimes hediondos e assemelhados, comvoto histórico do Ministro Gilmar Mendes.

Dois aspectos fundamentais merecem destaquenesse julgamento tão esperado pela comunidadejurídica especializada: (a) o reconhecimento dosistema progressivo e o da individualização da penaco mo direitos e garantias fundamentais, e (b) ae f i c á c i a erga omnes de declaração deinconstitucionalidade em controle difuso ou aberto

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(art. 102, I, a, da CF), limitada pelo efeito ex nunc. Oprimeiro aspecto esclarece os limites reservados aolegislador ordinário: o sistema progressivo decumprimento da pena é uma garantia constitucional.O legislador ordinário pode disciplinar aindividualização da pena nas fases legislativa,judicial e executória, mas não pode excluí-la emnenhuma dessas etapas, sob pena de violar essepreceito fundamental. Exatamente aí reside ainconstitucionalidade do dispositivo questionadoque obrigava o cumprimento integral da pena emregime fechado, nos crimes hediondos eassemelhados. Seria inócuo, por conseguinte, incluira individualização da pena entre os direitos e asgarantias fundamentais e, ao mesmo tempo, permitirque o legislador ordinário, a seu alvedrio, pudessesuprimir ou anular seu conteúdo.

O segundo aspecto, não menos importante, foi oefeito erga omnes que o STF atribuiu à sua decisãoem julgamento de controle difuso deconstitucionalidade; aplicou, por analogia, odisposto no art. 27 da Lei n. 9.868/99, que se refere ajulgamento de hipóteses de controle concentradoou abstrato de constitucionalidade (ADIn ou ADC).Com essa decisão, o STF entendeu que, em setratando de controle incidental ou difuso, aquela

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Corte Suprema pode estender os efeitos da decisão aoutras situações processuais suscetíveis de seremalcançadas pelo reconhecimento in concreto deinconstitucionalidade, orientando-se, nesse sentido,em nome da segurança jurídica e do excepcionalinteresse social, que são conceitos igualmenteabrangidos pelo marco constitucional.

Essa decisão — com eficácia erga omnes e efeitoex nunc — permite que os réus, em outrosprocessos, que ainda se encontrem em fase recursalou executória (cuja pena ainda não tenha sidointegralmente cumprida), possam igualmente serbeneficiados pelo sistema progressivo, desde queseus requisitos sejam examinados, casuisticamente,pelo juiz competente. Referida decisão não está, porconseguinte, limitada ao processo objeto de exameno Habeas Corpus 82.959, e tampouco permite queoutros juízes ou tribunais recusem seu cumprimentoinvocando como obstáculo o disposto no inciso Xdo art. 52 da Constituição Federal44. Essa decisão,na realidade, tornou sem objeto a competência doSenado Federal, como destaca Luís Roberto Barroso:“A verdade é que, com a criação da ação genérica deinconstitucionalidade, pela EC n. 16/65, e com ocontorno dado à ação direta pela Constituição de1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-

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se um anacronismo. Uma decisão do Pleno doSupremo Tribunal Federal, seja em controleincidental ou em ação direta, deve ter o mesmoalcance e produzir os mesmos efeitos. Respeitada arazão histórica da previsão constitucional, quandode sua instituição em 1934, já não há mais lógicarazoável em sua manutenção”45. Em sentidosemelhante, veja-se o magistério doconstitucionalista Ministro Gilmar Mendes, in verbis:“A amplitude conferida ao controle abstrato denormas e a possibilidade de que se suspenda,liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos,com eficácia geral, contribuíram, certamente, para quese quebrantasse a crença na própria justificativadesse instituto, que se inspirava diretamente numaconcepção de separação de Poderes — hojenecessária e inevitavelmente ultrapassada. Se oSupremo Tribunal pode, em ação direta deinconstitucionalidade, suspender, liminarmente, aeficácia de uma lei, até mesmo de uma EmendaConstitucional, por que haveria a declaração deinconstitucionalidade, proferida no controleincidental, valer tão somente para as partes?”46.

Enfim, somente poderá ser negada a progressãoem processos similares, cuja pena ainda não tenhasido integralmente cumprida, se o juízo competente

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cons tatar, in concreto, o não atendimento dosrequisitos legais exigidos para a progressão.

Finalmente, a Lei n. 11.464 de 27 de março de 2007,seguindo a orientação consagrada pelo SupremoTribunal Federal, minimiza os equivocados excessosda Lei n. 8.072/90, alterando os parágrafos do seu art.2º, com as seguintes inovações:

a) o cumprimento da pena iniciará em regimefechado; b) a progressão nos crimes hediondosocorrerá após o cumprimento de dois quintos (2/5),sendo o apenado primário, e de três quintos (3/5), sereincidente; c) em caso de sentença condenatória, ojuiz decidirá fundamentadamente se o réu poderáapelar em liberdade.

1 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, p.389.2 “Art. 269 — Roubar, isto é, furtar fazendo violência àpessoa ou às coisas. Penas. No gráo máximo — oito annosde galés e multa de 20% do valor roubado. No gráo medio —quatro annos e meio idem e multa de 12% do valor roubado.No gráo mínimo — um anno idem e multa de 5% do valor

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roubado”.3 Francesco Carrara, Programa de Derecho Criminal, v. 6(IV), p. 191.4 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 54.5 Para aprofundar, ver Rosario de Vicente Martinez, El delitode robo con fuerza en las cosas, Valencia, Tirant lo Blanch,1999; Silvia Valamaña Ochaita, El tipo objetivo de robo confuerza en las cosas, Madrid, Centro de Publicaciones delMinisterio de Justicia, 1993.6 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 163.7 TJSP, rel. Juiz Celso Limongi, RT, 701:305.8 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e noprocesso penal, cit., p. 215.9 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 163 e 164.10 “A violência física às vítimas, bem como a dissimulaçãodos réus como policiais para subtração de coisa móvel,caracterizam o crime de roubo” (STJ, RE 118657/PR, rel. Min.Cid Flaquer Scartezzini, j. 17-2998).11 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 56; Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito eno processo penal, cit., p. 215.12 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e noprocesso penal, cit., p. 230.13 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.

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1, p. 208.14 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 392.15 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 393.16 Os exemplos são de Magalhães Noronha, Direito Penal,cit., v. 2, p. 262.17 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 56; Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 262 e263.18 Fernando da Costa Tourinho Filho, Manual de ProcessoPenal, São Paulo, Saraiva, 2001, p. 442.19 Manzini, Trattato di Diritto Penale italiano , Torino,UTET, 1952, v. 9, p. 370.20 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 208 e 209.21 “A pena é de reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa,se crime é cometido: I — com destruição ou rompimento deobstáculo à subtração da coisa; II — com abuso deconfiança, ou mediante fraude, escalada ou destreza; III —com emprego de chave falsa; IV — mediante concurso deduas ou mais pessoas.”22 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 394.23 Sebastian Soler, Derecho Penal argentino, cit., v. 4, p.

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266.24 A postura do STJ, ao revogar a malfadada Súmula 174,reconhecendo o equívoco que seu conteúdo representava, éuma demonstração de grandeza, que só enaltece essarespeitável Corte Superior de Justiça.25 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 341.26 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 58.27 Heleno Fragoso já lamentava que o STF aceitasse esseentendimento (Lições de Direito Penal, 11. ed., Rio deJaneiro, Forense, 1995, v. 1, p. 209).28 Andrei Zenckner Schmidt, O princípio da legalidadepenal, no Estado Democrático de Direito, cit., p. 189.29 Weber Martins Batista, O furto e o roubo no direito e noprocesso penal, p. 254.30 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 86.31 Bento de Faria, Código Penal comentado, cit., v. 4, p. 63.32 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 58.33 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 263.34 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 343.35 “Privando as vítimas de sua liberdade de locomoçãodurante várias horas, e, obrigando-se a ir do local onde seencontravam para outro, bem distante, praticaram

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sequestros, sem nenhuma vinculação com os roubos emconcurso material” (STJ, rev. rel. Min. Denser de Sá, RT,726:626); “Estando totalmente exaurido o roubo, uma vezque os agentes já haviam se apoderado do veículo, asupressão da liberdade de locomoção do ofendidoconfigurou o sequestro, em concurso material com oprimeiro” (TJSP, AC, rel. Juiz Jarbas Mazzoni, RT, 735:575).36 Guilherme de Souza Nucci destaca três hipóteses deroubo com restrição da liberdade da vítima: “a) o agentesegura a vítima por brevíssimo tempo, o suficiente paratomar-lhe o bem almejado (ex.: disposto a tomar o veículo davítima, o agente ingressa no automóvel unicamente para,alguns quarteirões depois, colocá-la para fora; b) o agentesegura a vítima por tempo superior ao necessário ouvalendo-se de forma anormal para garantir a subtraçãoplanejada (ex.: subjugando a vítima, o agente, pretendendolevar-lhe o veículo, manda que entre no porta-mala (sic),rodando algum tempo pela cidade, até permitir que sejalibertada ou o carro seja abandonado); c) o agente, além depretender subtrair o veículo, tem a nítida finalidade de privara liberdade do ofendido, para sustentar qualquer outroobjetivo, embora na grande parte das vezes seja parasubtrair-lhe outros bens. Para tanto, roda com a mesma pelacidade — na modalidade que hoje se chama ‘sequestrorelâmpago’ — almejando conseguir saques em caixaseletrônicos, por exemplo. Na primeira hipótese, cremos não

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estar configurada a causa de aumento — afinal, o tipo penalfala em ‘manter’ o que implica sempre uma duração de temporazoável; na segunda, está a circunstância de aumentopresente; na terceira, trata-se de roubo seguido de sequestroem concurso” (Código Penal comentado, cit., p. 447).37 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 344.38 “Art. 157, § 3º — Se da violência resulta lesão corporalgrave, a pena é de reclusão de 7 a 15 anos, além da multa; seresulta morte, a reclusão é de 20 a 30 anos, sem prejuízo damulta.”39 STF, 1ª Turma, HC 77.187/SP, rel. Min. Sydney Sanches, j.30-6998, DJU, 16 abr. 1999, p. 27; STJ, 5ª Turma, HC 9.219/SE,rel. Min. Edson Vidigal, j. 8-6999, DJU, 16 ago. 1999, p. 85.40 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, v. 1,p. 524.41 STJ, RE, rel. Min. Dias Trindade, DJU, 12 mar. 1990, p.1712.42 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, v. 1, p.210.43 Precedentes do STF: HC, rel. Min. Carlos Velloso, RT,734:625); HC 75006/SP, rel. Min. Maurício Corrêa, j. 27-5997.44 ADPF 54, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 1º-2-2007.45 Luís Roberto Barroso, O controle de constitucionalidadeno Direito Brasileiro, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 92.46 Gilmar Ferreira Mendes, Direitos fundamentais e controle

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de constitucionalidade, 3. ed., São Paulo, Saraiva, 2004, p.266.

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CAPÍTULO IV - EXTORSÃO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Aextorsão mediante grave ameaça e ocrime de ameaça do art. 147. 4.2.Obtenção de indevida vantagemeconômica: especial fim de agir. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6. Extorsãomajorada: coautoria e emprego de armas.6.1. Se a extorsão é cometida por duasou mais pessoas. 6.2. Com emprego dearma. 7. Omissão da Lei n. 9.426/96:majorantes relativas a veículoautomotor. 8. Extorsão qualificada: lesãograve ou morte. 9. Roubo e extorsão:semelhanças e dessemelhanças. 9.1.Roubo e extorsão: são crimes da mesmaespécie. 10. Extorsão mediante restriçãode liberdade. 10.1 Extorsão medianterestrição de liberdade qualificada peloresultado. 10.2 A gravidade dasemelhança entre roubo e extorsão

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especial. 10.3 A desproporcionalcominação de penas entre roubo eextorsão especial. 10.4 Violação doprincípio da proporcionalidade einconstitucionalidade das sançõescominadas. 11. Crimes de extorsão e deconstrangimento ilegal: conflitoaparente de normas. 12. Consumação etentativa. 12.1. Consumação. 12.2.Tentativa. 13. Classificação doutrinária.14. Pena e ação penal.

Extorsão

Art. 158. Constranger alguém, medianteviolência ou grave ameaça, e com o intuito de obterpara si ou para outrem indevida vantagemeconômica, a fazer, tolerar que se faça ou deixar defazer alguma coisa:

Pena — reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos,e multa.

§ 1º Se o crime é cometido por duas ou mais

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pessoas, ou com emprego de arma, aumenta-se apena de um terço até metade.

§ 2º Aplica-se à extorsão praticada medianteviolência o disposto no § 3º do artigo anterior.

§ 3o Se o crime é cometido mediante a restriçãoda liberdade da vítima, e essa condição énecessária para a obtenção da vantagemeconômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12(doze) anos, além da multa; se resulta lesãocorporal grave ou morte, aplicam-se as penasprevistas no art. 159, §§ 2o e 3o, respectivamente.

• § 3º acrescentado pela Lei n. 11.923, de 17 deabril de 2009.

1. Considerações preliminares

A despeito de a extorsão, como crime autônomo,ser produto das modernas legislações, pode serreconhecido como seu antecedente, no direitoromano, o crimen repetundarum, que era a cobrança

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indevida praticada por funcionário público oumagistrado, mediante ameaça. No período imperialsurge, “como crime extraordinário, a concussio (D,47, 12), que podia ser pública ou privada. Concussiopublica era o fato de alguém simular autoridade ouexercício de função pública, para extorquir dinheiroou valores. A concussio privata ou crimen minariera a ameaça de ação pública para obter vantagempatrimonial”1.

O s práticos, com seu extraordinário trabalhointerpretativo, ampliaram esses conceitos paraadmitir o crime sempre que houvesse emprego deameaça para a obtenção de vantagem, pelo temor quese infundia à vítima.

O Código Penal francês (napoleônico) deu início àcodificação da extorsão (art. 400), quando fossepraticada pela força, violência ou coação, cujapunição era com trabalhos forçados.

A extorsão não recebeu assento nas OrdenaçõesFilipinas. O Código Penal republicano, de 1890, foi oprimeiro diploma brasileiro a recepcionar o crime deextorsão em nosso ordenamento jurídico.

2. Bem jurídico tutelado

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Os bens jurídicos protegidos na criminalização daextorsão, que também é crime complexo, a exemplodo crime de roubo, são a liberdade individual, opatrimônio (posse e propriedade) e a integridadefísica e psíquica do ser humano. Constata-se que aextorsão pode produzir uma multiplicidade deresultados: de um lado, a violência sofrida pelavítima, que se materializa no constrangimento físicoou psíquico causado pela conduta do sujeito ativo;de outro lado, a causação de prejuízo alheio, emrazão da eventual obtenção de indevida vantagemeconômica, que, como veremos, pode até não seconcretizar, sendo suficiente que tenha sido o móvelda ação.

A extorsão é muito semelhante ao crime de roubo,oferecendo, inclusive, grande dificuldade práticapara definir, in concreto, se determinado fato podeser classificado como roubo ou como extorsão,especialmente nos chamados “assaltos a mãoarmada”. Em verdade, não apenas o modus operandide ambos é assemelhado mas também os bensjurídicos protegidos na definição da extorsão sãoexatamente os mesmos que elencamos ao abordar ocrime de roubo.

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3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo, a exemplo do crime de roubo, podeser qualquer pessoa, sem a exigência de qualquercondição especial (crime comum); é quem constrangea vítima a agir, ativa ou passivamente, com o intuitode obter vantagem patrimonial ilícita para si ou paraterceiro.

Sujeito passivo também pode ser qualquerpessoa, inclusive quem sofre o constrangimento semlesão patrimonial. O sujeito passivo da violência ouda ameaça pode ser diverso do sujeito passivo daperda patrimonial; assim, pode ser que a violênciarecaia sobre uma pessoa e que outra sofra a perdapatrimonial. Nessa hipótese, haverá dois sujeitospassivos: um em relação ao patrimônio, e outro emrelação à violência, ambos vítimas de extorsão.

Por fim, a própria pessoa jurídica pode ser vítimado crime de extorsão. Seus representantes legaispodem ser coagidos a fazer, tolerar ou deixar de fazeralguma coisa desejada pelo sujeito passivo.

4. Tipo objetivo: adequação típica

Extorsão é o ato de constranger alguém, mediante

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violência ou grave ameaça, com o fim de obtervantagem econômica indevida, para si ou paraoutrem, a fazer, tolerar que se faça ou deixar de fazeralguma coisa.

A conduta tipificada é constranger (coagir,obrigar), que tem o mesmo sentido daqueleempregado na definição do crime deconstrangimento ilegal (art. 146). Mediante violência(física, real) ou grave ameaça (vis compulsiva,violência moral), por sua vez, tem o mesmosignificado das locuções idênticas contidas no art.157, que tipifica o roubo.

A finalidade do constrangimento, na extorsão, éobter indevida vantagem econômica, para si ou paraoutrem, distinguindo-se, nesse particular, doviolento exercício arbitrário das próprias razões,porque, neste, a vantagem pretendida é, em princípio,legítima (art. 345 do CP).

A conduta do agente objetiva constranger avítima a: a) fazer; b) tolerar que se faça ou c) deixarde fazer alguma coisa. Na primeira hipótese, medianteviolência ou grave ameaça (de morte, por exemplo), osujeito constrange a vítima a depositar determinadovalor em sua conta bancária; na segunda, com oemprego de violência (física ou moral), constrange avítima a permitir que use seu automóvel em

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determinada viagem; na última, o constrangimentoviolento é para impedir a vítima de praticardeterminada conduta ou determinado ato, porexemplo, cobrar-lhe um crédito pessoal. Por fim, alocução utilizada pelo texto legal, “qualquer coisa”,como ação, tolerância ou omissão correspondenteda coagida (constrangida a fazer, tolerar ou deixarde fazer qualquer coisa), tem o significadoabrangente de “qualquer fato” a ser praticado pelosujeito passivo em consequência doconstrangimento sofrido.

Os meios ou formas de execução são a violênciafísica ou moral (grave ameaça), devidamenteanalisadas quando estudamos o crime de roubo.Tudo o que lá se disse a respeito aplica-se aquinaturalmente, sendo desnecessária, portanto, suarepetição. Advirta-se que a violência empregadadeve conter gravidade suficiente para criar umaespécie de coação, isto é, ter idoneidade suficientepara determinar ao sujeito passivo a necessidade defazer ou não fazer a ação desejada pelo agente. Pode-se acrescentar, ademais, que o meio utilizado maisfrequentemente na prática do crime de extorsão é,sem dúvida, a grave ameaça, sendo indiferente queo mal prometido pelo agente seja, em si mesmo,justo ou injusto, conforme o examinaremos no

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próximo tópico.

4.1 A extorsão mediante grave ameaça e o crime deameaça do art. 147

Não se pode confundir a grave ameaça, meioexecutivo do crime de extorsão, com o crime deameaça descrito no art. 147; neste, é necessário queo mal ameaçado seja injusto; naquele, é indiferenteque seja justo ou injusto. Na verdade, ainda que setenha, em princípio, o direito de infligir um mal aalguém, a ameaça de fazê-lo, quando feita como meiode praticar um crime, torna-o ilegal. Contudo,recomenda-se cautela na análise dessa questão paraevitar equívocos. Como afirmava Hungria, “é preciso,porém, não confundir o caso em que o mal é, em simesmo, justo e injusta a vantagem pretendida, e o emque, injusto o mal, é justa a vantagem pretendida: noprimeiro, há extorsão; no segundo, não,apresentando-se o crime de violento ‘exercícioarbitrário das próprias razões’ (art. 345). Assim, seráeste o crime cometido, v. g., pelo proprietário queobtém do ladrão, sob ameaça de morte, a restituiçãoda res furtiva, já na sua posse tranquila”2.

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4.2 Obtenção de indevida vantagem econômica:especial fim de agir

A vantagem pretendida pelo agente, para suacaracterização, deverá ter, necessariamente, naturezaeconômica, sob pena de se configurar outra infraçãopenal ou simplesmente não se tipificar infração penalalguma. A vantagem deve ser indevida, isto é,injusta, ilegítima, não devida e econômica. Qualqueroutra vantagem não apreciável economicamente nãocaracteriza esse tipo penal. O constrangimento deveser para obrigar a fazer, tolerar que se faça ou nãofazer alguma coisa, desde que o “intuito” do agenteseja a obtenção de alguma vantagem econômica,para si ou para outrem, mesmo que não a consiga. Sea vantagem visada pelo sujeito ativo não foreconômica, poderá configurar constrangimentoilegal (art. 146), deixando, em princípio, de tipificarcrime contra o patrimônio.

A vantagem econômica buscada na extorsão émais abrangente que a do furto ou roubo,alcançando, por exemplo, não apenas a coisa alheiamóvel, mas todo interesse ou direito patrimonialalheio. A tipificação do crime de extorsão pretendeproteger o patrimônio em geral e não apenas a posseou propriedade de coisa móvel, como ocorre com oscrimes de furto e roubo. Enfim, qualquer que seja a

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vantagem econômica (patrimonial) pretendida pelosujeito ativo, satisfaz a elementar normativa exigidapelo tipo penal em exame. É desnecessário que aexigência da vantagem seja imperativa, sendosuficiente que insinuada, desde que a ação deconstranger seja praticada mediante violência ougrave ameaça.

Aspecto interessante desse crime é que, adespeito de ser crime patrimonial, a vantagemeconômica, na estrutura tipológica, exerce papel,pode-se dizer, secundário, tanto que não é objeto dodolo, mas do elemento subjetivo especial do tipo.

Segundo o magistério de Luiz Regis Prado, o “atojuridicamente nulo (art. 145, CC), que nenhumbenefício de ordem econômica possa produzir, nãoconfigura a extorsão (crime impossível porimpropriedade do objeto — art. 17), restando apenaso constrangimento ilegal (art. 146, CP)”3. Esseentendimento segue a orientação de MagalhãesNoronha, que, após destacar a natureza patrimonialda extorsão e afirmar que, não havendo lesão contrao patrimônio, faltará objetividade jurídica do delito,afirma: “A nosso ver, não cometeria delito deextorsão quem obrigasse um menor de 16 anos aassinar um documento de dívida, por ser o atopraticado por pessoa absolutamente incapaz (Cód.

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Civil, art. 5º), como também não cometeria extorsãoquem coagisse outrem a firmar documento, no qualprometesse tornar-se seu escravo, pois seria ilícito oobjeto do ato (Cód. Civil, art. 145, n. II). Nesses,como nos outros casos do art. 145 da lei civil, hácrime impossível, por absoluta impropriedade doobjeto”4.

Temos dificuldade em aceitar esse entendimento,a despeito da autoridade de seu autor, na medida emque o intuito de obter indevida vantagemeconômica constitui tão somente um elementosubjetivo especial do tipo, que não se confunde como dolo e, como tal, não precisa consumar-se. Comefeito, como tivemos oportunidade de afirmar, “oespecial fim ou motivo de agir, embora amplie oaspecto subjetivo do tipo, não integra o dolo nemcom ele se confunde, uma vez que, como vimos, odolo esgota-se com a consciência e a vontade derealizar a ação com a finalidade de obter o resultadodelituoso, ou na assunção do risco de produzi-lo”5.

Na verdade, o especial fim de obter indevidavantagem econômica não traduz o dolo (este simdeve materializar-se no fato típico) que animou aconduta do agente. Os elementos subjetivosespeciais do tipo, como é o caso do intuito de obter

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indevida vantagem econômica, especificam o dolo,sem necessidade de se concretizar, sendo suficienteque existam no psiquismo do autor.

O dolo no crime de extorsão é constituído pelavontade consciente de usar da violência ou graveameaça para constranger alguém a fazer, tolerar quese faça ou deixar de fazer alguma coisa. No entanto, aobtenção de vantagem econômica constitui somentea finalidade ou intenção adicional de obter umresultado ulterior ou uma ulterior atividade, distintaportanto da realização ou consumação do tipo penal.A obtenção da vantagem econômica, com efeito, éuma finalidade ou ânimo que vai além da realizaçãodo tipo. Portanto, a eficácia ou ineficácia doconstrangimento para a obtenção de tal vantagemeconômica é irrelevante.

A orientação de Magalhães Noronha, emborasuperada, apresenta, pelo menos, certa coerência, namedida em que classifica a extorsão como crimematerial, exigindo, para sua consumação, ofensa aopatrimônio6. Para Luiz Regis Prado, porém, trata-sed e crime formal7, sendo, portanto, irrelevante aobtenção da vantagem econômica.

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5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo,representado pela vontade consciente de usar daviolência, real ou moral, para constranger alguém afazer, tolerar ou deixar de fazer alguma coisa.

Esse elemento subjetivo geral é acrescido doelemento subjetivo especial do tipo, constituído peloespecial fim de obter indevida vantagem econômica,para si ou para outrem. Foi analisado melhor no item4.2 (Obtenção de indevida vantagem econômica:especial fim de agir).

6. Extorsão majorada: coautoria e emprego de armas

A extorsão, cujo parentesco com o crime deroubo poder-se-ia qualificá-los como “irmãosgêmeos”, consagra praticamente as mesmasmajorantes deste; diz-se praticamente pelo fato detratar-se de apenas duas das, hoje, cinco causas deaumento previstas para o roubo, quais sejam, ser ocrime “cometido por duas ou mais pessoas, ou comemprego de arma”. A própria majoração para os doiscrimes é a mesma: de um terço até metade.

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6.1 Se a extorsão é cometida por duas ou maispessoas

Ao contrário do furto e do roubo, a redação doartigo exige que o crime seja “cometido por duas oumais pessoas”. Por isso, na extorsão é indispensávela presença e efetiva participação, na execuçãomaterial do fato, de duas ou mais pessoas, ainda quequalquer delas seja inimputável. Não basta paraconfigurar a majorante a simples participação emsentido estrito (instigação e cumplicidade).

Mantendo coerência com a orientação quesustentamos longamente ao examinar o crime defurto, repetido no roubo, discordamos doentendimento de Luiz Regis Prado, segundo o qual,nessa majorante, no crime de extorsão, “édispensável que todos estejam presentes no locusdelicti, exigindo-se somente os requisitos inerentesao tema de concurso de pessoas (art. 29 do CP)”8. Anosso juízo, é absolutamente indispensável acontribuição efetiva de mais de uma pessoa nocometimento de qualquer desses crimes, masespecialmente no de extorsão, onde o Código Penal émuito mais enfático referindo-se, aliás, a ser o crime“cometido por duas ou mais pessoas”.

Na verdade, não se pode esquecer de que

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concurso de pessoas é gênero do qual decorrem asespécies coautoria e participação, cujos conceitosexaminamos ao fazer o estudo do crime de furto, paraonde remetemos o leitor. Em nossa concepção,quando o texto legal refere-se taxativamente a ser ocrime “cometido por duas ou mais pessoas” está,inegavelmente, fazendo uma opção limitadora pelacoautoria, excluindo, dessa forma, a meraparticipação em sentido estrito. Por isso é necessárioque as “duas ou mais pessoas” realizemmaterialmente a conduta delituosa, sendoinsuficiente a mera instigação ou cumplicidade(participação em sentido estrito), especialmenteconsiderando o fundamento político-criminal damajorante (dificulta defesa da vítima, maiorperigosidade etc.). Convém recordar que coautoria éa realização conjunta, por mais de uma pessoa, damesma infração penal. É a atuação consciente deestar contribuindo na realização comum de umainfração penal. Todos participam da realização docomportamento típico, sendo desnecessário quetodos pratiquem o mesmo ato executivo9.

6.2 Com emprego de arma

Segundo o texto legal, para a tipificação desta

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majorante a extorsão deve ser cometida comemprego de arma; é indispensável, portanto, oemprego efetivo de arma, sendo insuficiente portá-laou simplesmente ostentá-la (§ 1º), o que, nessescasos, poderia configurar apenas a grave ameaça. Emoutros termos, a infração penal deve ser “cometidacom emprego de arma”, o que significa o uso real,efetivo e concreto desse instrumento.

A necessidade do emprego efetivo de arma nocometimento do crime é tão flagrante que o próprioSuperior Tribunal de Justiça, no infeliz episódio desumular como majorante o emprego de “arma debrinquedo”, fê-lo, contudo, somente em relação aoroubo, sem estendê-la à extorsão. Desnecessária,portanto, qualquer consideração, neste momento, arespeito da possibilidade de arma de brinquedopoder majorar a pena, que, a exemplo do roubo, pode,no máximo, caracterizar ameaça, elementar típica daextorsão.

7. Omissão da Lei n. 9.426/96: majorantes relativasa veículo automotor

O roubo e a extorsão sempre receberam o mesmotratamento nas esferas legislativa, doutrinária e

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jurisprudencial: as mesmas penas, as mesmasmajorantes e as mesmas qualificadoras. Essetratamento minimizou eventuais equívocos nadefinição jurídica do fato, que, muitas vezes, é dedifícil distinção. A partir da Lei n. 9.426/96, o roubopassou a ter um tratamento mais duro, enquanto aextorsão não recebeu as duas novas majorantes do §2º do art. 157, quais sejam, subtração de veículoautomotor que venha a ser transportado para outroEstado ou para o exterior (inciso IV) e o agentemanter a vítima em seu poder, restringindo sualiberdade (inciso V).

8. Extorsão qualificada: lesão grave ou morte

Na extorsão praticada com violência (na qual nãose inclui a grave ameaça), o § 2º manda aplicar o § 3ºdo art. 157, que dispõe: “Se da violência resulta lesãocorporal grave, a pena é de reclusão, de 7 (sete) a 15(quinze) anos, além de multa; se resulta morte, areclusão é de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, semprejuízo da multa”.

As duas hipóteses elencadas, como no roubo,caracterizam condições de exasperação dapunibilidade em razão da maior gravidade do

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resultado. Na extorsão, como referimos no estudo doroubo, pretendeu o legislador criar duas figuras decrimes qualificados pelo resultado, para alguns,crimes preterdolosos.

A extorsão qualificada pela morte da vítimatambém foi qualificada como crime hediondo (art. 9ºda Lei n. 8.072/90).

Enfim, a exemplo do que o próprio dispositivolegal faz, remetemos o leitor para o que dissemos arespeito das qualificadoras quando abordamos ocrime de roubo, para não sermos repetitivos.

9. Roubo e extorsão: semelhanças e dessemelhanças

No roubo e na extorsão, o agente empregaviolência ou grave ameaça para submeter a vontadeda vítima. No roubo, o mal é iminente, e o proveito écontemporâneo; na extorsão, o mal prometido éfuturo, e futura também é a vantagem que o agenteobjetiva. No roubo, o agente toma a coisa, ou obrigaa vítima (sem opção) a entregá-la; na extorsão, avítima pode, em princípio, optar entre acatar a ordeme oferecer resistência. Em outros termos, comoafirmava Frank, o ladrão subtrai; o extorsionário fazcom que se lhe entregue a coisa. Questionando os

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diversos critérios apontados como diferenciadoresdos dois crimes, Nélson Hungria destacava oseguinte: “No roubo, há uma contrectatio; naextorsão, há uma traditio”.

Doutrina e jurisprudência procuram extremardiferenças entre roubo e extorsão: havendo ato davítima no despojamento de bens, será extorsão; nãohavendo ato da vítima, será roubo. No roubo oagente subtrai a coisa mediante violência; naextorsão, a vítima a entrega ao agente. Eventualequívoco de interpretação não causa prejuízoconsiderável, na medida em que as penas são iguais.No estelionato, diferentemente, a vítima é enganadacom fraude; na extorsão, é coagida com violência realou ficta.

Mas as distinções entre roubo e extorsão nemsempre são assim tão claras, haja vista a grandedesinteligência que reina em doutrina ejurisprudência sobre a espécie de ambos, conformeexaminaremos a seguir.

9.1 Roubo e extorsão: são crimes da mesma espécie

Haveria no Código Penal brasileiro algum tipopenal mais semelhante, em seus elementosestruturais, que roubo e extorsão? É por demais

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frequente a dúvida sobre a correta capitulação entreum e outra; quando não, um nível jurisdicional adotauma capitulação e outro dá qualificação diversa aomesmo fato, no mesmo processo; aliás, o próprioHungria interpreta equivocadamente, ao qualificar deextorsão, o “assalto” exemplificado por Von Liszt,que, inegavelmente, constitui roubo10; se o saudosopenalista vivesse os tempos atuais, talvez nãoincorresse nesse equívoco. Assim, qual seria a razãode, invariavelmente, os tribunais brasileiros, a partirdos superiores11, afirmarem, singelamente, que nãosão crimes da mesma espécie, além da finalidade decumularem as sanções penais? Alguém do meio, como mínimo de senso jurídico, teria alguma dificuldadeem admitir que o popular “assalto” é uma das tantasmodalidades de crime de roubo? Pois mesmo nessescasos a jurisprudência consegue vacilar. A títulopuramente ilustrativo, transcrevemos a ementa de umacórdão, sem qualquer preferência, pois poderia serqualquer outro dos milhares sobre o mesmo tema:“No assalto, é irrelevante que a coisa venha a serentregue pela vítima ao agente ou que este asubtraia. Trata-se de roubo. Constrangido o sujeitopassivo a entrega do bem não pode ser consideradoato livremente voluntário, tornando tal conduta denenhuma importância no plano jurídico”12.

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Preferimos citar esse acórdão porque faz a opçãocorreta, isto é, segundo os preceitos legais — éroubo —, mas demonstra implicitamente adivergência sobre a capitulação da conduta, tantoque o relator teve de demonstrar que “assalto”tipifica roubo e não extorsão. Como sustentar, então,sem incorrer em paradoxos, que roubo e extorsãonão são crimes da mesma espécie? Por certo, não hánenhuma razão técnico-jurídica, dogmática oucientífica para negar essa obviedade, a não ser aadoção de uma política-criminal exasperadora, nalinha do movimento de “lei e ordem”, incompatívelcom um moderno Estado Democrático de Direito.

N a extorsão há constrangimento, medianteviolência ou grave ameaça, de mal posterior visandoa futura vantagem, ao passo que no roubo o mal éimediato e o prejuízo é atual. Neste crime, o agentesubtrai, ele próprio, mediante violência ou graveameaça, a coisa de quem a detém, ao passo que naextorsão é a vítima que é constrangida a entregá-la,geralmente em intervalo de tempo irrelevante entre acoação daquele e a “ação” desta. Aliás, para ossaudosistas, o velho Hungria, com a majestade desempre, estabelecia, com brilho invulgar, a distinçãodas duas infrações, nos seguintes termos: “Há entrea extorsão e o roubo (aos quais é cominada pena

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idêntica) uma tal afinidade que, em certos casos,praticamente se confundem. Conceitualmente, porém,a distinção está em que, na extorsão, diversamentedo roubo, é a própria vítima que, coagida, se despojaem favor do agente”13. No entanto — prossegueHungria —, “do ponto de vista prático, tanto faz queo agente tire a carteira ou que esta lhe seja entreguepela vítima”.

Mas se o fundamento da miopia jurídica queacode alguns tribunais reside realmente na ânsia demajorar a pena, talvez seja menos comprometedor,tecnicamente, refugiar-se na subjetividade dagraduação da pena, em vez de continuar negando oóbvio ao afirmar que — roubo e extorsão não sãocrimes da mesma espécie, evitando a condição dopior cego, isto é, daquele que não quer enxergar. Pelomenos, na dosimetria penal, podem elevar a pena atéo triplo, considerando-se que ambos os crimes sãopraticados com violência ou grave ameaça (art. 71,parágrafo único). Mesmo que a exasperação penalseja um pouco forçada, seria, digamos, juridicamentemenos constrangedor, mantendo a linha verbal daextorsão.

Para encerrar este tópico, afirmar que roubo eextorsão não são crimes da mesma espécie, depoisde tudo isso, é, mutatis mutandis, como conclui

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lapidarmente Hungria, “o dizer-se que no roubo aviolência e a locupletação se realizam no mesmocontexto de ação, enquanto na extorsão há um lapsode tempo, ainda que breve, entre uma e outra, édistinguir onde a lei não distingue. Tanto pode haverextorsão com violência atual e futura (e é o caso maisfrequente), quanto com violência e locupletaçãocontemporâneas”14. Assim, afirmar que extorsão eroubo não são crimes da mesma espécie é distinguironde a lei não distingue, e, para agravar a situaçãodo réu, absolutamente inadmissível.

10. Extorsão mediante restrição de liberdade

Ao tratarmos do disposto no art. 157, § 1º, incisoV, referindo-nos ao popular “sequestro relâmpago”,antes da atual Lei n. 11.923/09, manifestamo-nosqualificando-o como uma modalidade de extorsãomediante sequestro, nos seguintes termos:

“Sustentamos que, nos casos popularmenteconhecidos como ‘sequestro relâmpago’, cometidosdiariamente nas principais capitais brasileiras, onde avítima é colocada em porta-malas de veículos, pelasmãos de marginais perigosos, que percorrem horas afio os mais variados bairros da cidade, ameaçando

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gravemente a vítima, exigindo-lhe (extorquindo) maisbens ou valores, às vezes as violentandosexualmente, e cujo resultado final é absolutamenteimprevisível e completamente aleatório, configura-secrime mais grave que a simples majorante darestrição da liberdade da vítima. A moldura legaladequada para esse tipo de conduta, cujo resultado,mais ou menos grave, não passa de mero detalheacidental ou circunstancial do evento, a nosso juízo,é o art. 159 do Código Penal, ou seja, extorsãomediante sequestro. Esta, por ser mais grave,absorve o crime de roubo, afastando,consequentemente, o concurso com esse crime”15.

O novo texto legal, no entanto, preferiu tipificá-lo,como uma modalidade de extorsão especial,acrescentando, o § 3º no art. 158, com a seguinteredação: “Se o crime é cometido mediante arestrição da liberdade da vítima, e essa condição énecessária para a obtenção da vantagemeconômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12(doze) anos, além da multa; se resulta lesãocorporal grave ou morte, aplicam-se as penasprevistas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente.”(Lei n. 11.923/2009). A partir dessa previsão legalpoderemos ter infrações penais “com restrição daliberdade da vítima necessárias”, e não necessárias,

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paradoxalmente.Embora não nos pareça ser a tipificação mais

adequada — considerando-se que há um sequestropara extorquir — o legislador optou pelo termomédio, isto é, nem pela extorsão mediante sequestro(art. 159), nem pela extorsão simples do caput do art.158, mas por uma figura especial de extorsão, qualseja, extorsão com sequestro da vítima, ou, comopreferimos denominá-la, extorsão medianterestrição de liberdade. Dessa forma, o novo textolegal pôs termo à divergência relativa à tipificaçãodessa conduta delituosa, que passou a ser o grande“terror” da vida urbana, e reclamava uma definiçãoprecisa de sua adequada moldura típica, em respeitoà função taxativa da tipicidade estrita.Desnecessário repetir a grande semelhança queexiste entre os crimes de sequestro e cárcere privado(art. 148), roubo (art. 157), extorsão (158) e extorsãomediante sequestro (159), a despeito dasconsideráveis diferenças das sanções cominadas.Apesar de o “sequestro relâmpago” poder — antesda Lei n. 11.923 — agasalhar-se, segundo algumascorrentes doutrinário-jurisprudenciais, ora no crimede roubo, ora no de extorsão e ora no de extorsãomediante sequestro, fazia-se necessária umatipificação específica, para se afastar a insegurança

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jurídica que rondava a todos.A interpretação do novo § 3º deve,

necessariamente, ser conjunta com a previsão docaput, resultando assim: “constranger medianterestrição da liberdade da vítima, e essa condiçãoseja necessária para a obtenção da vantagemeconômica”. Em outros termos, essa novel figuradelituosa deve apresentar os seguintes elementos: a)constrangimento ilegal; b) especial fim de obtervantagem econômica; c) restrição da liberdade davítima como condição necessária. O verbo nuclear“constranger” integra a nova figura delitiva, e“mediante violência ou grave ameaça”, constante docaput, encontram-se implícitos na elementar“mediante restrição da liberdade”, que é uma dasmodalidades mais graves de violência, devidamentecriminalizada. Mas é necessário que oconstrangimento ilegal tenha a finalidade de obtervantagem econômica indevida, e que ocorramediante restrição da liberdade da vítima, que sejacondição indispensável para sua concretização.

A restrição da liberdade da vítima, comocondição necessária para a obtenção da vantagemeconômica, é elementar indispensável para acaracterização dessa infração penal. No entanto, arestrição da liberdade poderá, dependendo das

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circunstâncias, assumir a natureza de outro crime,como, por exemplo, os dos arts. 148, 157, § 2º, incisoV, e 159, na medida em que priva a vítima de sualiberdade ou pode, até mesmo, configurar outro crimemais grave, absorvendo, no caso, o roubo ou aprópria extorsão, como, por exemplo, a extorsãomediante sequestro (art. 159, § 3º). Por isso é precisocautela na análise dessa questão, sob pena de deixar-se praticamente impune o crime de sequestro. Assim,quando o “sequestro” (manutenção da vítima empoder do agente) for praticado concomitante com oroubo, ou, pelo menos, como meio de execução doroubo ou como garantia contra ação policial,estará configurada essa infração penal, própria ouimprópria, ou mesmo a sua majorante constante noinciso V do art. 157. Agora, quando eventual“sequestro” for praticado depois da consumação doroubo de veículo automotor, por exemplo, semnenhuma conexão com sua execução ou garantia defuga, não se estará diante da majorante especial (§2º, inciso V, do art. 157), mas tratar-se-á de concursode crimes (roubo e a nova extorsão); pode, inclusive,tipificar a extorsão mediante sequestro, quando, porexemplo, exigir que a vítima mantenha contato comterceiros para assegurar-lhe a vantagem econômica,como condição de sua liberação.

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No entanto, se a restrição da liberdade davítima, imposta pelo agente, “não for indispensávelpara a prática da ação”, o crime tipificado não seadequará ao disposto neste § 3º, podendo, narealidade, tipificar o crime de roubo, próprio ouimpróprio, ou a extorsão simples prevista no caputdo art. 158. Nesse sentido, passamos a ter a“restrição da liberdade da vítima, como condiçãonecessária”, ou como condição desnecessária ousupérflua da figura típica. Poderá ocorrer asseguintes situações: a) não necessitando dacolaboração da vítima para apoderar-se da coisapretendida, restringe sua liberdade de locomoçãovisando somente garantir o êxito da empreitada(subtração ou fuga), configurará roubo, próprio ouimpróprio, dependendo das circunstâncias; b)quando, no entanto, o agente necessitar da restriçãoda liberdade da vítima, para a obtenção da vantagemeconômica, priva-a de sua locomoção, pelo temponecessário e, como condição para consegui-la,configurará a extorsão mediante restrição deliberdade (sequestro relâmpago). Em outros termos,não é a simples restrição da liberdade da vítima quecaracterizará essa extorsão especial, mas será suanecessidade como condição para obter a vantagemeconômica pretendida, pois, sendo desnecessária,

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configurará outra infração penal.Finalmente, considerando que a lei penal mais

benéfica retroage, nos termos do art. 5º, inciso XL, daConstituição Federal, deverão ser revistos todos oscasos que possam, eventualmente, ter sido punidosmais gravemente. Situação semelhante pode terocorrido com aqueles casos em que se interpretoucomo extorsão mediante sequestro. Dessa forma,deve-se verificar, casuisticamente, qual ainterpretação que fora dada à situação fática, agoracriminalizada, como modalidade de extorsão, que,normalmente, era considerada como extorsãomediante sequestro (art. 159).

10.1 Extorsão mediante restrição de liberdadequalificada pelo resultado

Resultando do “sequestro relâmpago” lesãocorporal grave ou morte, aplica-se as mesmas penasprevistas para os casos de extorsão mediantesequestro que atinjam os mesmos resultados (art.159, §§ 2º e 3º). Constata-se que, nessa previsão, osmesmos resultados — lesão corporal grave ou morte— sofrem punição bem mais grave que a prevista no§ 2º para a forma qualificada da extorsão tipificadan o caput deste artigo. Em outros termos, para

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hipótese do § 2º, comina-se a mesma pena do rouboqualificado pelo resultado (sete a quinze anos dereclusão se resulta lesão corporal e vinte a trintaanos se resulta morte, além da pena de multa); para ahipótese do parágrafo terceiro, que ora examinamos,comina-se a mesma pena da extorsão mediantesequestro (dezesseis a vinte e quatro anos, se resultalesão corporal grave e vinte e quatro a trinta anos, seresulta morte, além da multa). Podemos achar, e narealidade achamos, que as sanções cominadas sãoexageradamente graves, mas não deixam deapresentar uma certa coerência com a previsãoconstante da 1ª metade do § 9º, que comina penaintermediária entre roubo e extorsão mediantesequestro. Mas essa coerência intrínseca, noentanto, não salva a irrazoabilidade de seu conteúdo,que examinaremos.

Questão que poderá apresentar certadesinteligência refere-se à natureza do crimeextorsão mediante restrição de liberdadequalificada pelo resultado (§ 3º, 2ª parte), que sofrea cominação das mesmas penas da extorsão mediantesequestro qualificada (art. 159, §§ 2º e 3º): afinal, essaextorsão qualificada pelo resultado (§ 3º, 2ª parte)pode ser adjetivada de crime hediondo? Para LuizFlavio Gomes e Rogério Sanches, essa cominação

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penal converte-a em crime hediondo, in verbis: “nãosendo extorsão mediante sequestro, em regra não háque se falar em crime hediondo, salvo quando ocorreo resultado morte (extorsão com resultado morte écrime hediondo). No caso de lesão grave, não é crimehediondo (por falta de previsão legal)”16.

Venia concessa , temos dificuldade em aceitaresse entendimento, por esbarrar no princípio dareserva legal. Com efeito, nesse sentido, aconhecida lei dos crimes hediondos (Lei n. 8.072/90)relaciona (numerus clausus), dentre outras, asseguintes infrações: “III — extorsão qualificada pelamorte (art. 158, § 2º); IV — extorsão mediantesequestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§1º, 2º e 3º”). De notar-se que a norma repressivaespecifica não apenas o nomen iuris das infraçõespenais classificadas como crimes hediondos, comotambém indica os respectivos dispositivos legais(artigos, parágrafos e incisos), dentre os quais, àevidência, não se encontra o § 3º, que é novo,evidentemente. Invocar-se, por outro lado, que ocrime igualmente é de extorsão e que o resultadomorte também é igual, o que justificaria o seureconhecimento como crime hediondo, viola afunção da taxatividade do princípio da tipicidade,além implicar a aplicação de analogia in malan

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partem, que é inadmissível. Por fim, tampouco podeser invocado o aspecto de cominar as sançõesprevistas nos §§ 2º e 3º do art. 159, que é definidocomo crime hediondo. Convém destacar, enfim, que aprevisão da segunda parte do § 3º não converte estecrime em extorsão mediante sequestro, apenascomina as penas que lhe são correspondentes, sematribuir-lhe, por óbvio, a mesma natureza. E essacominação, inquestionavelmente, não tem o condãode alterar a espécie de infração penal e, por essamesma razão, não o transforma em crime hediondo,por falta de previsão legal expressa.

Em síntese, a extorsão mediante restrição daliberdade da vítima, qualificada pelo resultadomorte, não pode ser reconhecida como crimehediondo, por absoluta falta de previsão legal, e pelaimpossibilidade da adoção de analogia in malanpartem, a despeito do respeitável entendimento emsentido contrário. O que a lei determina é somente aaplicação das mesmas penas, nada mais. Em outrostermos, a cominação das penas da extorsãomediante sequestro qualificada, não converte,nesse crime, a extorsão mediante restrição daliberdade qualificada pelo resultado morte.

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10.2 A gravidade da semelhança entre roubo eextorsão especial

Não há no Código Penal brasileiro tipos penaismais assemelhados, em seus elementos estruturais,que roubo e extorsão, tanto que, não raro, surge adúvida sobre a correta capitulação entre um e outra,recebendo capitulações diversas, nos dois graus dejurisdição, o mesmo fato num mesmo processo.Nesse sentido, o que já era difícil acabou ficandomuito pior. A agravação dessa semelhança reside,fundamentalmente, na diversidade de punição, quenão é pouca coisa, posto que mera questãointerpretativa pode resultar em aplicação de pena 50por cento acima, considerando-se o mínimo legalcominado (quatro anos para o roubo, e seis para osequestro relâmpago) que, convenhamos, tambémnão é pouca coisa.

No entanto, a desinteligência anterior, naquelassituações limítrofes, não ultrapassava as questõesterminológicas, na medida em que recebiam —roubo e extorsão — a mesma cominação penal(quatro a dez anos de reclusão); a consequência maisgrave, nesse caso, residia no histórico equívocojurisprudencial, que sempre insistiu tratarem-se —extorsão e roubo — de crimes de espéciesdiferentes, com o objetivo exclusivo de negar a

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continuidade delitiva. Agora, no entanto, o eventualerro ou equívoco interpretativo terá consequênciasmuito mais graves, como deixam patente as sançõescominadas.

Criticando o conteúdo do novo § 3º, João PauloMartinelli17 afirma, com acerto, que se a restrição daliberdade da vítima é condição necessária para anova configuração delituosa, já existe equivalentelegal para o sequestro relâmpago, pois, “Quemobriga uma pessoa a sacar dinheiro para entregar-lhecomete crime de roubo com a restrição de liberdade,podendo, ainda, incidir outra majorante, se houveruso de arma. Não enxergamos haver extorsão, pois afinalidade do agente é a subtração de coisa alheiamóvel, no caso, o dinheiro”. Essa leitura de Martinellié dogmaticamente incensurável, pois, afora oaspecto conceitual, onde a distinção entre roubo eextorsão é fácil de explicar; faticamente, no entanto,é muito difícil constatá-la, em razão da grande cargade subjetividade que a orienta.

Com efeito, tanto no roubo quanto na extorsão oagente emprega violência ou grave ameaça parasubjugar a vontade da vítima; no roubo, o mal éiminente, e o proveito é contemporâneo; na extorsão,o mal prometido é, de regra, futuro imediato, comofutura também é teoricamente a vantagem que o

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agente objetiva. No roubo, o agente toma a coisa, ouobriga a vítima (sem opção) a entregá-la; naextorsão, afirma-se que a vítima pode, em princípio,optar entre acatar a ordem ou oferecer resistência,embora a prudência recomende, nestes temposbicudos, não resistir. Mas não se pode negar quetodo esse magistério clássico, que nos vem dadoutrina tradicional, ou está superada ou éinaplicável no denominado sequestro relâmpago,que, por ser relâmpago, exige uma satisfação imediatae, nesse aspecto, confunde-se ainda mais com ocrime de roubo. Na realidade, essa faculdade ouopção referida à extorsão, que teria ou não aliberdade de entregar a coisa ou objeto exigido peloagente, é praticamente inexistente, pois todos osindicadores, ante a gravidade da violênciageneralizada, determinam que se acate a ordem doextorquidor ou extorsionário, sob pena de pagar coma própria vida eventual rebeldia no atendimento doque lhe é determinado.

Que faculdade seria essa de a vítima escolher oudecidir atender a exigência do assaltante a essepreço? À evidência, trata-se de uma das hipóteses dadenominada coação irresistível, em que a vítima nãotem alternativa senão submeter-se à vontade doextorquidor. Aliás, estamos diante de uma “vontade

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viciada” que equivale à inexistência de vontade,decorrente de uma coação irresistível. Com efeito,coação irresistível é tudo o que pressiona a vontadeimpondo determinado comportamento, eliminandoou reduzindo o poder de escolha. Na coação moralirresistível existe vontade, embora seja viciada18,isto é, não é livremente formada pelo agente. Nascircunstâncias em que a ameaça é irresistível não éexigível que o agente se oponha a essa ameaça,especialmente quando corre risco de vida ou à suaintegridade física ou de sua família. Se isso vale paraos acusados em geral, com igual razão deve servirpara demonstrar que a vítima não entrega a coisalivremente, mas mediante coação que, nascircunstâncias, não podia resistir.

Nesse sentido, encontra-se completamentesuperada aquela velha máxima de Frank, segundo aqual o ladrão subtrai; o extorsionário faz com quese lhe entregue a coisa, pois, em verdade, tambémn o roubo, muitas vezes, o ladrão (assaltante) faz avítima entregar-lhe a coisa desejada, como destaca,lucidamente, Martinelli19: “A distinção entre roubo eextorsão baseada apenas no comportamento doagente e da vítima é insuficiente. Dizer que o caso éde extorsão porque a vítima é quem age não satisfaza problemática. Se assim o fosse, quando a vítima

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entregar seu veículo mediante ameaça tambémdeveria ser o crime de extorsão, o mesmo valendopara a hipótese daquele que enfia a mão no bolso,abre a carteira e entrega o dinheiro exigido. Em ambasas situações, houve um comportamento ativo davítima, e nem por isso teremos extorsão”.

Historicamente se tem dito que havendo ato davítima no despojamento de bens, será extorsão; nãohavendo ato da vítima, será roubo; que no roubo oagente subtrai a coisa mediante violência; naextorsão, a vítima a entrega ao agente para nãosofrer violência, e que eventual equívoco deinterpretação não causaria prejuízo considerável, namedida em que as penas eram iguais. No entanto, asdistinções entre roubo e extorsão nem sempre sãoassim tão precisas, haja vista a grandedesinteligência que reina em doutrina ejurisprudência sobre a espécie de ambos, havendo,não se pode ignorar, uma zona gris, onde as duasfiguras se confundem, sendo difícil precisar comsegurança a sua identificação. Paradigmático, nessesentido, o seguinte acórdão, já mencionado: “Noassalto, é irrelevante que a coisa venha a serentregue pela vítima ao agente ou que este asubtraía. Trata-se de roubo. Constrangido o sujeitopassivo a entrega do bem não pode ser considerado

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ato livremente voluntário, tornando tal conduta denenhuma importância no plano jurídico”20. Não seignorou, nesse julgamento, a distinção entre roubo eextorsão, apenas o julgador considerou irrelevante amáxima de que ladrão subtrai a coisa no roubo, e avítima a entrega na extorsão.

No sistema anterior, essa dificuldade nãoapresentava maiores consequências, na medida emque a sanção aplicável na extorsão era exatamente amesma do roubo, ao contrário do que passa a ocorrercom a nova definição legal. Na realidade, confundem-se os aspectos temporais nos crimes de roubo eextorsão de tal modo que não mais se pode afirmarque violência e locupletação, num e noutra, realizam-se em contextos diferentes. Tanto pode haverextorsão com violência e vantagem atuais, comoroubo com violência e locupletação contemporâneas,que é exatamente o caso do “sequestro relâmpago, esomente essa fugacidade temporal, nem sempreconstatável, não pode justificar a absurda elevaçãodas sanções cominadas, nos limites que destacamosadiante. Com efeito, qual é a diferença entre o assaltoem que o indivíduo, apontando uma arma (mesmobranca), exige que a vítima entregue-lhe a carteira(roubo), e a restrição da liberdade desta, exigindo-lhea entrega do cartão eletrônico e sua senha

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(sequestro relâmpago)? Em nenhuma das hipóteses avítima dispõe da liberdade de escolha de entregar ounão o objeto exigido pelo assaltante, ou seja, oatendimento da exigência do ladrão ou extorsionárionão resulta da deliberação da vítima, como imaginavaa antiga doutrina, mas decorre da imposição dascircunstâncias, cujo desatendimento, em ambos oscasos, pode provocar resultados imprevisíveis eirreversíveis, como, v. g., a própria morte.

Pois bem, essa identidade de ação, causa econsequências, impede que se imponha sanções ao“sequestro relâmpago” tão absurdamente superioresàs previstas para o crime de roubo, por violar ossagrados princípios da proporcionalidade,razoabilidade, a culpabilidade e da dignidadehumana, decorrendo daí sua insconstitucionalidade,pois como sustentava Hungria, “Tanto pode haverextorsão com violência atual e futura (e é o caso maisfrequente), quanto com violência e locupletaçãocontemporâneas”21.

10.3 A desproporcional cominação de penas entreroubo e extorsão especial

O Poder Legislativo não pode atuar de maneiraimoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo

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revele deliberação absolutamente divorciada dospadrões de razoabilidade assegurados pelo nossosistema constitucional, afrontando diretamente oprincípio da proporcionalidade, como demonstrauma singela comparação entre as sanções cominadasa algumas infrações penais semelhantes.

O roubo que, como acabamos de demonstrar, éuma espécie de irmão siamês do crime de extorsão(sendo o paradigma ideal para esta análise), recebe acominação em três marcos diferentes de penas22: a)roubo simples (caput): quatro a dez anos; b)qualificado pela lesão corporal grave (§ 3º, 1ª parte):sete a quinze anos; c) qualificado pelo resultadomorte (§ 3º, 2ª parte): vinte a trinta anos. Previsãoque, convenhamos, já é um exagero, comparando-sea o homicídio qualificado, por exemplo, com penaprevista de doze a trinta anos, numa clarademonstração de que, para o legislador brasileiro, opatrimônio é mais valorizado que a própria vidahumana.

As penas previstas para a extorsão (art. 158,caput) — que agora se justifica adjetivá-la desimples — são exatamente as mesmas cominadas aocrime de roubo, inclusive as relativas às figurasmajoradas (§ 1º) e às qualificadas em decorrência delesão corporal ou morte (§ 2º). Essa paridade no

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tratamento das consequências penais de ambasfiguras eliminam por completo eventual interpretaçãoequivocada, que as situações fático-limítrofes nosproporcionam, com alguma frequência, comodemonstramos alhures.

No entanto, as penas cominadas ao “sequestrorelâmpago”, injustificadamente, quer pela natureza dainfração, quer pela gravidade de suas consequênciasmateriais, quer por razões político-criminaisrespaldadas pelo Estado Democrático de Direito,r e c e b e m, desproporcionalmente, a seguintecominação: a) modalidade simples: seis a doze anos(§ 3º, 1ª parte); b) qualificada pela lesão corporalgrave (§ 3º, 2ª parte): dezesseis a vinte e quatro anos;c) qualificada pelo resultado morte (§ 3º, 2ª parte):vinte e quatro a trinta anos. Em outros termos, apena mínima prevista para o “sequestro relâmpago”,qualificado pelo resultado lesão grave (16 anos), ésuperior à pena máxima cominada para o crime deroubo com o mesmo resultado (15 anos), e a penamáxima (24 anos) desse mesmo resultado (lesãograve) é superior à máxima prevista para o crime dehomicídio (20 anos); aliás, a pena mínima (§ 3º, 2ªparte), pasmem, aplicável para o eventual resultadomorte (24 anos), é igualmente superior à máximaprevista para o homicídio. Supera-se, assim, todos os

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limites toleráveis da razoabilidade exigidos por umEstado Democrático de Direito, que tem como norte orespeito aos princípios da dignidade humana e daproporcionalidade.

Os princípios da proporcionalidade e darazoabilidade não se confundem, embora estejamintimamente ligados e, em determinados aspectos,completamente identificados. Na verdade, há que seadmitir que se trata de princípios fungíveis e que,por vezes, utiliza-se o termo “razoabilidade” paraidentificar o princípio da proporcionalidade, adespeito de possuírem origens completamentedistintas: o princípio da proporcionalidade temorigem germânica, enquanto a razoabilidade resultada construção jurisprudencial da Suprema Cortenorte-americana. Razoável é aquilo que tem aptidãopara atingir os objetivos a que se propõe, sem,contudo, representar excesso algum.

Pois é exatamente o princípio da razoabilidadeque afasta a invocação do exemplo concreto maisantigo do princípio da proporcionalidade, qual seja, a“lei do talião”, que, inegavelmente, sem qualquerrazoabilidade, também adotava o princípio daproporcionalidade. Assim, a razoabilidade exercefunção controladora na aplicação do princípio daproporcionalidade. Com efeito, é preciso perquirir se,

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nas circunstâncias, é possível adotar outra medidaou outro meio menos desvantajoso e menos gravepara o cidadão.

10.4 Violação ao princípio da proporcionalidade einconstitucionalidade das sanções cominadas

A Declaração dos Direitos do Homem e doCidadão, de 1789, já exigia expressamente que seobservasse a proporcionalidade entre a gravidadedo crime praticado e a sanção a ser aplicada, inverbis: “a lei só deve cominar penas estritamentenecessárias e proporcionais ao delito” (art. 15). Noentanto, o princípio da proporcionalidade é umaconsagração do constitucionalismo moderno(embora já fosse reclamado por Beccaria), sendorecepcionado pela Constituição Federal brasileira, emvários dispositivos, tais como: exigência daindividualização da pena (art. 5º, XLVI), proibição dedeterminadas modalidades de sanções penais (art. 5º,XLVII), admissão de maior rigor para infrações maisgraves (art. 5º, XLII, XLIII e XLIV).

Desde o Iluminismo procura-se eliminar, dentrodo possível, toda e qualquer intervençãodesnecessária do Estado na vida privada doscidadãos. Nesse sentido, ilustra Mariângela Gama de

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Magalhães Gomes, afirmando: “No entanto, oconceito de proporcionalidade como um princípiojurídico, com índole constitucional, apto a nortear aatividade legislativa em matéria penal, vem sendodesenvolvido, ainda hoje, a partir dos impulsospropiciados, principalmente, pelas obras iluministasdo século XVIII e, posteriormente, pela doutrina dodireito administrativo”23. Com efeito, as ideias doIluminismo e do Direito Natural diminuíram oautoritarismo do Estado, assegurando ao indivíduoum novo espaço na ordem social. Essa orientação,que libertou o indivíduo das velhas e autoritáriasrelações medievais, implica necessariamente a recusade qualquer forma de intervenção ou puniçãodesnecessária ou exagerada. A mudança filosófica deconcepção do indivíduo, do Estado e da sociedadeimpôs, desde então, maior respeito à dignidadehumana e a consequente proibição de excesso.Nessa mesma orientação filosófica inserem-se osprincípios garantistas, como o da proporcionalidade,o da razoabilidade, da lesividade e o da dignidadehumana.

O modelo político consagrado pelo EstadoDemocrático de Direito determina que todo o Estado— em seus três Poderes, bem como nas funçõesessenciais à Justiça — resulta vinculado em relação

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aos fins eleitos para a prática dos atos legislativos,judiciais e administrativos. Em outros termos, toda aatividade estatal é sempre vinculadaaxiomaticamente pelos princípios constitucionaisexplícitos e implícitos. As consequências jurídicasdessa constituição dirigente são visíveis. A primeiradelas verifica-se pela consagração do princípio daproporcionalidade, não apenas como simplescritério interpretativo, mas como garantialegitimadora/limitadora de todo o ordenamentojurídico infraconstitucional. Assim, deparamo-noscom um vínculo constitucional capaz de limitar osfins de um ato estatal e os meios eleitos para que talfinalidade seja alcançada. Conjuga-se, pois, a uniãoharmônica de três fatores essenciais: a) adequaçãoteleológica: todo ato estatal passa a ter umafinalidade política ditada não por princípios dopróprio administrador, legislador ou juiz, mas sim porvalores éticos deduzidos da Constituição Federal —vedação do arbítrio (Übermassverbot); b)necessidade (Erforderlichkeit): o meio não podeexceder os limites indispensáveis e menos lesivospossíveis à conservação do fim legítimo que sepretende; c) proporcionalidade “stricto sensu”:todo representante do Estado está obrigado, aomesmo tempo, a fazer uso de meios adequados e de

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abster-se de utilizar recursos (ou meios)desproporcionais24.

O campo de abrangência, e por que não dizer deinfluência do princípio da proporcionalidade, vaialém da simples confrontação das consequênciasque podem advir da aplicação de leis que nãoobservam dito princípio. Na verdade, modernamentea aplicação desse princípio atinge o exercícioimoderado de poder, inclusive do próprio poderlegislativo no ato de legislar. Não se trata,evidentemente, de questionar a motivação interna davoluntas legislatoris, e tampouco de perquirir afinalidade da lei, que é função privativa doParlamento. Na realidade, a evolução dos tempos temnos permitido constatar, com grande frequência, ouso abusivo do “poder de fazer leis had hocs”,revelando, muitas vezes, contradições,ambiguidades, incongruências e falta derazoabilidade, que contaminam esses diplomas legaiscom o vício de inconstitucionalidade. Segundo omagistério do Ministro Gilmar Mendes25, “a doutrinaidentifica como típica manifestação do excesso depoder legislativo a violação do princípio daproporcionalidade ou da proibição de excesso(Verhältnismässigkeitsprinzip; Übermassverbot),que se revela mediante contraditoriedade,

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incongruência e irrazoabilidade ou inadequação entremeios e fins. No Direito Constitucional alemão,outorga-se ao princípio da proporcionalidade(Verhältnismässigkeit) ou ao princípio da proibiçãode excesso (Übermassverbot) qualidade de normaconstitucional não escrita, derivada do Estado deDireito”.

Esses excessos precisam encontrar, dentro dosistema político-jurídico, alguma forma ou algummeio de, se não combatê-los, pelo menos questioná-los. A única possibilidade, no Estado Democráticode Direito, sem qualquer invasão das atribuições daesfera legislativa, é por meio do controle deconstitucionalidade exercido pelo Poder Judiciário.“A função jurisdicional nesse controle — adverte odoutrinador argentino Guillermo Yacobucci —pondera se a decisão política ou jurisdicional emmatéria penal ou processual penal, restritiva dedireitos, está justificada constitucionalmente pelaimportância do bem jurídico protegido e ainexistência, dentro das circunstâncias, de outramedida de menor lesão particular”26. O exame dorespeito ou violação do princípio daproporcionalidade passa pela observação eapreciação de necessidade e adequação daprovidência legislativa, numa espécie de relação

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“custo-benefício” para o cidadão e para a própriaordem jurídica. Pela necessidade deve-se confrontara possibilidade de, com meios menos gravosos,atingir igualmente a mesma eficácia na busca dosobjetivos pretendidos; e, pela adequação espera-seque a providência legislativa adotada apresenteaptidão suficiente para atingir esses objetivos. Nessalinha, destaca Gilmar Mendes27, a modo deconclusão: “em outros termos, o meio não seránecessário se o objetivo almejado puder seralcançado com a adoção de medida que se revele aum só tempo adequada e menos onerosa. Ressalte-seque, na prática, adequação e necessidade não têm omesmo peso ou relevância no juízo de ponderação.Assim, apenas o que é adequado pode sernecessário, mas o que é necessário não pode serinadequado — e completa Gilmar Mendes — dequalquer forma, um juízo definitivo sobre aproporcionalidade da medida há de resultar darigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre osignificado da intervenção para o atingido e osobjetivos perseguidos pelo legislador(proporcionalidade em sentido estrito)”.

Em matéria penal, mais especificamente, segundoHassemer, a exigência de proporcionalidade deveser determinada mediante “um juízo de ponderação

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entre a carga ‘coativa’ da pena e o fim perseguidopela cominação penal”28. Com efeito, pelo princípioda proporcionalidade na relação entre crime e penadeve existir um equilíbrio — abstrato (legislador) econcreto (judicial) — entre a gravidade do injustopenal e a pena aplicada29. Ainda segundo a doutrinade Hassemer, o princípio da proporcionalidade não éoutra coisa senão “uma concordância material entreação e reação, causa e consequência jurídico-penal,constituindo parte do postulado de Justiça: ninguémpode ser incomodado ou lesionado em seus direitoscom medidas jurídicas desproporcionadas”30.

Ante todo o exposto, por mais que se procuresalvar o texto legal, tentando dar-lhe umainterpretação conforme a Constituição Federal, nãovemos, contudo, outra alternativa razoável, que nãoa declaração de inconstitucionalidade do preceitosecundário da nova infração penal, conhecido como“sequestro relâmpago”.

11. Crimes de extorsão e de constrangimento ilegal:conflito aparente de normas

A extorsão, pode-se afirmar, é uma espécie do

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gênero crime de constrangimento ilegal (art. 146).Na verdade, o constrangimento ilegal é“qualificado” pela especial intenção de obterindevida vantagem econômica, que, aliás, é a únicadiferença relevante na estrutura típica dos doiscrimes; afinal, exatamente por essa razão — a ação deconstranger — é transportada do Título dos Crimescontra a Pessoa para o Título dos Crimes contra oPatrimônio.

Na verdade, estamos diante do denominadoconflito aparente de normas, que, nesse caso,resolve-se pelo princípio da especialidade31. Comefeito, considera-se especial uma norma penal, emrelação a outra geral, quando reúne todos oselementos desta, acrescidos de mais alguns,denominados especializantes. Isto é, a normaespecial (crime de extorsão) acrescenta elementopróprio (intuito de obter indevida vantagemeconômica) à descrição típica prevista na normageral (crime de constrangimento ilegal). Assim,pode-se concluir, toda conduta que realiza o tipo docrime especial realiza também, necessariamente, otipo do geral, enquanto o inverso não é verdadeiro.

Para sintetizar, com esse elemento especializante— intuito de obter indevida vantagem econômica —,não há nenhuma dificuldade para solucionar esse

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“conflito aparente de normas”.

12. Consumação e tentativa

12.1 Consumação

Consuma-se a extorsão com o comportamento davítima, isto é, fazendo, tolerando que se faça oudeixando de fazer alguma coisa, desde que a açãoconstrangedora do sujeito ativo tenha sido movidapela finalidade de obter vantagem econômicaindevida. Enfim, para a consumação é desnecessáriaa efetiva obtenção de vantagem patrimonial, pois aextorsão se consuma com o resultado doconstrangimento, isto é, com a vítima sendoconstrangida a fazer, omitir ou tolerar que se faça.

A eventual obtenção de vantagem patrimonial, seocorrer, representará tão somente o exaurimento daextorsão que já estava consumada. Reforçando, aextorsão consuma-se no exato momento em que avítima, com comportamento positivo ou negativo,faz, deixa de fazer ou tolera que se faça alguma coisa.Nesse sentido, merece ser transcrito o entendimentode Guilherme de Souza Nucci32, com o qual estamos

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de pleno acordo, quando sustenta que o crime deextorsão compõe-se de três estágios, in verbis: “1º) oagente constrange a vítima, valendo-se de violênciaou grave ameaça; 2º) a vítima age, por conta disso,fazendo, tolerando que se faça ou deixando de fazeralguma coisa; 3º) o agente obtém a vantagemeconômica almejada. Este último estágio é apenasconfigurador do seu objetivo (‘com o intuito de...’),não sendo necessário estar presente para concretizara extorsão”.

12.2 Tentativa

Independentemente da concepção material ouformal do crime de extorsão, a tentativa é admissível.Cumpre destacar que, ainda que as demaiselementares estejam todas presentes, a extorsão nãoestará consumada se a vítima, em razão doconstrangimento sofrido, não se submeter à vontadedo autor, fazendo, tolerando ou deixando de fazeralguma coisa.

Para sintetizar, o simples constrangimento, apesarde tratar-se de crime formal, sem a atuação da vítima(fazendo, tolerando ou deixando de fazer algumacoisa), não passa de tentativa.

A eventual prisão em flagrante do agente no

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momento em que recebe a “vantagem econômica”não configura a tentativa, pois a extorsão, comovimos, já estará consumada. Nessa linha, pode-selembrar o seguinte acórdão do STJ, relatado peloMinistro Edson Vidigal: “No delito de extorsão, nãohá reconhecer simples tentativa, mas crimeconsumado, quando o agente chega a recebervantagem econômica indevida, mesmo que,posteriormente, tenha sido obrigado a devolvê-la,com a pronta intervenção da polícia”33. Convém, noentanto, nesse tipo de situação, ter cautela para nãoadmitir como válida a figura do “flagranteprovocado” (ou crime de ensaio), que não seconfunde com “flagrante esperado”. Aquele(flagrante provocado) foi sumulado (n. 145) peloSupremo Tribunal Federal, sustentando que não hácrime quando a preparação do flagrante pela políciatorna impossível sua consumação. Este (flagranteesperado) é perfeitamente lícito e não impede ailicitude da conduta. Examinando essa questão, paraevitar equívocos, procuramos precisar essesconceitos, que, por sua pertinência, acreditamosmereçam ser aqui transcritos: “Ocorre o flagrantepreparado, que diríamos melhor flagrante esperado,quando o agente, por sua exclusiva iniciativa,concebe a ideia do crime, realiza os atos

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preparatórios, começa a executá-los e só nãoconsuma seu intento porque a autoridade policial,que foi previamente avisada, intervém para impedir aconsumação do delito e prendê-lo em flagrante.Constata-se que não há a figura do chamado agenteprovocador. A iniciativa é espontânea e voluntáriado agente. Há início da ação típica. E a presença daforça policial é a ‘circunstância alheia à vontade doagente’, que impede a consumação.

Já o flagrante provocado, que para nós nãopassa de um crime de ensaio, tem outra estrutura eum cunho ideológico totalmente diferente. Neste, noflagrante provocado, o delinquente é impelido àprática do delito por um agente provocador(normalmente um agente policial ou alguém a seuserviço). Isso ocorre, por exemplo, quando aautoridade policial, pretendendo prender odelinquente, contra o qual não tem provas, mas quesabe ser autor de vários crimes, provoca-o paracometer um, com a finalidade de prendê-lo. Arma-lheuma cilada. Isso é uma representação; o agente, semsaber, está participando de uma encenação teatral.Aqui, o agente não tem qualquer possibilidade deêxito na operação (crime impossível). Constata-se apresença decisiva do agente provocador”34.

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13. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (aquele que não exigequalquer condição especial do sujeito ativo); dedano (consuma-se apenas com lesão efetiva ao bemjurídico tutelado); formal35, uma vez que seconsuma, como vimos, independentemente dorecebimento da vantagem patrimonial pretendida,isto é, com a ação de constranger e a ação (ativa oupassiva) da vítima; comissivo (é da essência dopróprio verbo nuclear — “constranger”, que só podeser praticado por meio de uma ação positiva); doloso(não há previsão legal para a figura culposa); deforma livre (pode ser praticado por qualquer meio,forma ou modo); instantâneo (a consumação opera-se de imediato, não se alongando no tempo);unissubjetivo (pode ser praticado, em regra, apenaspor um agente); plurissubsistente (pode serdesdobrado em vários atos, que, no entanto,integram a mesma conduta).

14. Pena e ação penal

N a extorsão simples a pena é de reclusão, dequatro a dez anos; na majorada a pena é elevada de

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um terço até metade; na qualificada pelo resultadolesão grave, a reclusão será de sete a quinze anos; sefor morte, será de vinte a trinta anos. Em todas ashipóteses a pena de prisão será cumulativa com a demulta.

No entanto, as penas cominadas ao “sequestrorelâmpago”, injustificadamente, recebem,desproporcionalmente, os seguintes limites: a)modalidade simples: seis a doze anos (§ 3º, 1ª parte);b) qualificada pela lesão corporal grave (§ 3º, 2ªparte): dezesseis a vinte e quatro anos; c) qualificadapelo resultado morte (§ 3º, 2ª parte): vinte e quatro atrinta anos. Em outros termos, a pena mínimaprevista para o “sequestro relâmpago”, qualificadopelo resultado lesão grave (16 anos), é superior àpena máxima cominada para o crime de roubo com omesmo resultado (15 anos), e a pena máxima (24anos) desse mesmo resultado (lesão grave) ésuperior à máxima prevista para o crime de homicídio(20 anos); aliás, a pena mínima (§ 3º, 2ª parte),pasmem, aplicável para o eventual resultado morte(24 anos), é igualmente superior à máxima previstapara o homicídio.

A ação penal, como não poderia deixar de ser,pela gravidade desse crime, é de natureza públicaabsoluta, isto é, incondicionada.

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1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 215.2 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 69.3 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 405.4 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 275.5 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, cit., v.1, p. 212-215.6 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 279 e 280.7 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 406.8 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 407.9 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 7. ed.,v. 1, p. 387.10 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 66 e 67.11 “Os crimes de roubo e extorsão não são crimes da mesmaespécie. Por isso, não ensejam continuidade delitiva, mas

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concurso material. Precedentes do STF. Revisão julgadaimprocedente” (STF, Rev. 5.013-9, rel. Min. Carlos Velloso,DJU, 30 ago. 1996, p. 30606); “Os crimes de roubo e extorsãonão são crimes da mesma espécie, pelo que não ensejamcontinuidade delitiva, mas, sim, concurso material” (STJ, HC10375/MG, rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU, 22 nov.1999).12 TACrimSP, AC 882.591, rel. Penteado Navarro, RT,718:429.13 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 66. “No roubo o agente subtrai ele mesmo, medianteviolência ou ameaça, a coisa de quem a detém, mas naextorsão é a vítima quem a entrega mediando, geralmente,intervalo de tempo entre o meio coativo e a ação doofendido, que deve fazer, deixar de fazer ou tolerar que sefaça alguma coisa, o que não acontece no roubo”(TACrimSP, AC, rel. Des. Raul Motta, JTACrimSP, 95:192);“O delito de concussão diferencia-se da extorsão,principalmente, pelo modo de execução, ou seja, neste últimoilícito penal, o agente utiliza-se de violência, física ou moral— grave ameaça, para obter o seu propósito, enquanto quena concussão a exigência da indevida vantagem se fazutilizando-se, exclusivamente, da autoridade do cargo queocupa, sem que tenha que haver, necessariamente, aviolência física ou a promessa de mal injusto” (TAMG, AC306.289-1, rel. Juiz Alexandre V. de Carvalho, j. 22-8-2000).

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14 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 67.15 Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal ,Parte Especial, 5. ed., São Paulo, Saraiva, 2009, v. 3, p. 86.16 Luiz Flavio Gomes e Rogério Sanches, Sequestrorelâmpago deixou de ser crime hediondo: lei 11.923/2009é mais favorável ao réu. Disponível em:http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20090420144538510. Consulta em: 9 out. 2009.17 João Paulo Orsini Martinelli, Projeto de lei que tipifica o“sequestro relâmpago” aprovado pelo senado. Disponívelem: http://www.ibccrim.org.br/site/noticias/conteúdo.php?notid+13263. Consulta em: 8-10-2009.18 Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal ,Parte Geral, 14. ed., São Paulo, Saraiva, 2009, v. 1, p. 387.19 João Paulo Orsini Martinelli, Projeto de lei que tipifica o“sequestro relâmpago” aprovado pelo senado. Disponívelem: http://www.ibccrim.org.br/site/noticias/conteúdo.php?not id+13263. Consulta em: 8-10-2009.20 TACrimSP, AC 882.591, rel. Penteado Navarro , RT,718:429.21 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal..., p. 67.22 Consideramos desnecessário ficarmos repetindo aexistência da pena de multa, considerando-se que todos oscrimes contra o patrimônio (Título II do Código Penal)

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trazem cumulada a previsão da pena de multa.23 Mariângela Gama de Magalhães Gomes, O Princípio daProporcionalidade, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003,p. 40-41.24 Ver Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, 6.ed., São Paulo, Malheiros, 1994, p. 3567.25 Gilmar Mendes, Direitos Fundamentais e Controle deConstitucionalidade, 3. ed., São Paulo, Saraiva, 2004, p. 47.26 Guillermo Yacobucci, El Sentido de los PrincipiosPenales, Buenos Aires, Depalma, 1998, p. 339.27 Gilmar Mendes, Direitos Fundamentais e Controle deConstitucionalidade..., p. 50.28 Winfried Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal,trad. de Francisco Muñoz Conde e Luís Arroyo Sapatero,Barcelona, Bosch, 1984, p. 279.29 Luiz Régis Prado, Curso de Direito Penal Brasileiro,Parte Geral, 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p.122.30 Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal..., p. 279.31 Tratando do princípio da especialidade, tivemosoportunidade de afirmar: “A regulamentação especial tem afinalidade, precisamente, de excluir a lei geral e, por isso,deve precedê-la. O princípio da especialidade evita ao bis inidem, determinando a prevalência da norma especial emcomparação com a geral, e pode ser estabelecido in

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abstracto, enquanto os outros princípios exigem oconfronto in concreto das leis que definem o mesmo fato”(Manual de Direito Penal, 6. ed., v. 1, p. 130).32 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal Comentado,cit., v. 2, p. 451.33 STJ, RE 100640/PR, rel. Min. Edson Vidigal, DJU, 17 mar.1997.34 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 7.ed., v. 1, p. 370.35 “A extorsão é delito formal que se perfaz com o efetivoconstrangimento de alguém a fazer, deixar de fazer ou tolerarque se faça algo, não dependendo da obtenção de vantagemeconômica para a sua consumação” (STJ, RE 125040/SP,STJ, rel. Min. Gilson Dipp, j. 11-4-2000).

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CAPÍTULO V - EXTORSÃO MEDIANTESEQUESTRO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos do crime. 3.1. Sujeito ativo. 3.2.Sujeito passivo. 4. Tipo objetivo:adequação típica. 4.1. (Ir)relevância danatureza ou espécie da vantagemvisada. 4.2. Vantagem devida: outratipificação. 5. Tipo subjetivo: adequaçãotípica. 6. Extorsão qualificada: modusoperandi. 6.1. Duração do sequestro eidade da vítima. 6.2. Cometido porbando ou quadrilha. 7. Extorsãomediante sequestro qualificada peloresultado: lesão grave ou morte. 7.1. Seresulta lesão corporal de natureza grave.7.2. Se resulta a morte. 8. Delaçãopremiada: favor legal antiético. 9. Crimehediondo. 10. Consumação e tentativa.11. Classificação doutrinária. 12. Pena eação penal.

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Extorsão mediante sequestro

Art. 159. Sequestrar pessoa com o fim de obter,para si ou para outrem, qualquer vantagem, comocondição ou preço do resgate:

Pena — reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.• Caput com redação determinada pela Lei n.

8.072, de 25 de julho de 1990.

§ 1º Se o sequestro dura mais de 24 (vinte equatro) horas, se o sequestrado é menor de 18(dezoito) ou maior de 60 (sessenta) anos, ou se ocrime é cometido por bando ou quadrilha:

Pena — reclusão, de 12 (doze) a 20 (vinte) anos.• § 1º com redação determinada pela Lei n.

10.741, de 1º de outubro de 2003.

§ 2º Se do fato resulta lesão corporal denatureza grave:

Pena — reclusão, de 16 (dezesseis) a 24 (vinte e

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quatro) anos.• § 2º com redação determinada pela Lei n.

8.072, de 25 de julho de 1990.

§ 3º Se resulta a morte:

Pena — reclusão, de 24 (vinte e quatro) a 30(trinta) anos.

• § 3º com redação determinada pela Lei n.8.072, de 25 de julho de 1990.

§ 4º Se o crime é cometido em concurso, oconcorrente que o denunciar à autoridade,facilitando a libertação do sequestrado, terá suapena reduzida de um a dois terços.

• § 4º com redação determinada pela Lei n.9.269, de 2 de abril de 1996.

1. Considerações preliminares

A extorsão mediante sequestro, sem sombra de

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dúvida, é a modalidade de extorsão que apresentamaior gravidade, que teria sido inspirada por antigocostume de guerra de exigir pagamento pelo resgatede prisioneiros1. A prática mais ou menos frequente,em alguns países, na primeira metade do séculopassado, recomendou sua tipificação como crimemais grave. Desnecessário, por óbvio, destacar afrequência rotineira e insuportável com que essecrime passou a ser praticado no Brasil em fins doséculo XX, justificando-se sua maior punibilidadepela gravidade dos danos que pode produzir.

O Código Criminal do Império não disciplinou aextorsão mediante sequestro. O Código Penalrepublicano de 1890 adotava uma definiçãodefeituosa e insatisfatória (art. 362). O natimortoCódigo Penal de l969 previa a mesma infração penal,segundo alguns, com evidente superioridade técnica,nos termos seguintes: “Extorquir ou tentar extorquir,para si ou para outrem, mediante sequestro depessoa, indevida vantagem econômica”.

2. Bem jurídico tutelado

Os bens jurídicos protegidos na criminalização daextorsão mediante sequestro, a exemplo dos crimes

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de roubo (art. 157) e extorsão (art.158), são aliberdade individual, o patrimônio (posse epropriedade) e a integridade física e psíquica do serhumano. Constata-se que a extorsão mediantesequestro também pode produzir uma multiplicidadede danos: de um lado a violência sofrida pela vítima,que se materializa no constrangimento físico oupsíquico causado pela conduta do sujeito ativo; deoutro lado, a causação de prejuízo alheio, em razãoda eventual obtenção indevida de “qualquervantagem”, que, como veremos, pode até não seconcretizar, sendo suficiente que tenha sido o móvelda ação.

Trata-se, na verdade, de um crime complexo, istoé, pluriofensivo, a exemplo do roubo e da extorsão.No entanto, embora se trate de crime de naturezaessencialmente patrimonial (codificado no capítulorelativo a essa espécie de bens jurídicos), asupressão da liberdade é o fundamento maior dasensível majoração da sanção penal dessa infraçãocriminal. Aliás, nem poderia ser diferente,considerando-se o extraordinário valor da liberdadeinserta entre os direitos e garantias individuaisfundamentais. O patrimônio, na verdade, afastado oaspecto do sequestro, já encontraria proteção penalsuficiente na tipificação dos crimes de roubo e

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extorsão.

3. Sujeitos do crime

3.1 Sujeito ativo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, semcondição especial, uma vez que se trata de crimecomum. A pessoa jurídica não reúne condiçõesnecessárias para, mesmo no futuro, praticar esse tipode crime.

Eventual relação de parentesco não garante osbenefícios das escusas absolutórias consagradasnas disposições finais deste Título, em razão daviolência ou grave ameaça a pessoa (art. 183).

3.2 Sujeito passivo

Sujeito passivo também pode ser qualquerpessoa, inclusive quem sofre o constrangimento semlesão patrimonial. Assim, a vítima do sequestro podeser diversa da pessoa que sofre ou deve sofrer alesão patrimonial. Haverá, nesse caso, duas vítimas,uma do patrimônio e outra da privação de

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liberdade, mas ambas do mesmo crime de extorsãomediante sequestro. Tudo o que se disse sobre bemjurídico, sujeito ativo e sujeito passivo no crime deextorsão (art. 158) aplica-se à extorsão mediantesequestro.

A pessoa jurídica não pode ser sequestrada, maspode ser constrangida a pagar o resgate, podendo,em consequência, também ser sujeito passivo destecrime.

4. Tipo objetivo: adequação típica

De plano, ao examinar-se esta infração penal, numprimeiro momento, depara-se com certa perplexidade:o nomen juris não encontra correspondência noverbo nuclear contido no tipo penal, especialmentetendo-se em consideração o artigo anterior (art. 158):este dispositivo — extorsão — utiliza o verbo“constranger”, ao passo que naquele (art. 159) —extorsão mediante sequestro — o verbo nuclear é“sequestrar”, em nada se distinguindo do crime desequestro previsto no art. 149 do Código Penal, nocapítulo que cuida dos crimes contra a pessoa.

Contudo, a complexidade dessa construçãotipológica recomenda cautela em sua interpretação.

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Para sua melhor compreensão, acreditamosinsuficiente considerar apenas os preceitos primárioe secundário da norma, quais sejam, a tipificação daconduta proibida e a respectiva sanção, comonormalmente se faz em obediência ao princípio datipicidade estrita. Na verdade, não se pode esquecero nomen juris que o legislador atribuiu a esse tipopenal — extorsão mediante sequestro —, deixandoclaro que se trata de modalidade especial do crimed e extorsão tipificado no artigo anterior.Subscrevemos, nesse sentido, o magistério deHungria, para quem “não é outra coisa que aextorsão qualificada pelo caráter especial do fatoconstitutivo da violência ou do meio empregado paratornar premente ou eficaz a ameaça. Já aqui, aextorsão não tem como lastro o constrangimentoilegal na sua forma simples (art. 146), mas o sequestrode pessoa (artigo 148)”2.

Com efeito, a conduta tipificada é sequestrar, istoé, reter, arrebatar, retirar alguém de circulação, contraa sua vontade, privando-o da liberdade. Oselementos constitutivos do crime de extorsãomediante sequestro são: retirada de alguém decirculação, dissentimento expresso ou implícito,finalidade especial de obter qualquer vantagem,como condição ou preço do resgate.

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O sequestro pode ser longo ou breve,indiferentemente, desde que tenha idoneidade paraproduzir na vítima a certeza de que a supressão desua liberdade não será passageira e está, no mínimo,condicionada à satisfação da exigência apresentadapara o resgate. A elasticidade do tempo de privaçãoda liberdade é circunstância que o legisladorconsiderou para a dosagem de pena.

O legislador não repetiu, neste artigo, a distinçãoentre sequestro e cárcere privado, como fez no art.148, que foi objeto de exame no segundo volumedesta obra. Estamos com Magalhães Noronha3,nesse particular, quando sustenta a irrelevânciadessa falta de distinção, na medida em que cárcereprivado constitui forma mais grave de privação daliberdade do que o simples sequestrar, e, quando odireito penal pune o menos, pune também o mais.Assim, sequestrar ou encarcerar, indiferentemente,tipificam o crime, constituindo somente modusoperandi distinto de praticá-lo.

O sequestro objetiva conseguir qualquervantagem como condição ou preço do resgate, ouseja, como contrapartida da liberação dosequestrado.

Embora exista alguma divergência, em nossaconcepção o tipo penal não exige que a vantagem

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seja indevida, nem que seja econômica. Mas, pelaimportância do tema, é recomendável que sejaexaminado em tópicos específicos.

O fim especial de obter qualquer vantagem nemsempre é anterior ao ato material de sequestraralguém. Essa ação pode ter sido motivada porqualquer outra razão, mas posteriormente, enquantoperdurar a privação de liberdade, o agente passa acondicionar a libertação do sequestrado ou refém àsatisfação de qualquer vantagem, como reza o textolegal. Nesse caso, configura-se a chamadaprogressão criminosa.

4.1 (Ir)relevância da natureza ou espécie davantagem visada

Não desconhecemos, a despeito de nossaconvicção, a velha divergência reinante sobre anecessidade de interpretar a elementar “qualquervantagem” como indevida vantagem econômica.Nessa linha, Magalhães Noronha professava: “OCódigo fala em qualquer vantagem, não podendo oadjetivo referir-se à natureza desta, pois ainda aqui,evidentemente, ela há de ser, como no art. 158,econômica, sob pena de não haver razão para odelito ser classificado no presente título”4. Reforça

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esse entendimento Heleno Cláudio Fragoso, com oseguinte argumento: “A ação deve ser praticada paraobter qualquer vantagem como preço ou condiçãodo resgate. Embora haja aqui uma certa imprecisão dalei, é evidente que o benefício deve ser de ordemeconômica ou patrimonial, pois de outra forma esteseria um crime contra a liberdade individual”5. LuizRegis Prado, na atualidade, acompanha essaorientação, acrescentando: “No que tange àvantagem descrita no tipo, simples interpretação dodispositivo induziria à conclusão de que não devaser necessariamente econômica. Contudo, outrodeve ser o entendimento. De fato, a extorsão estáencartada entre os delitos contra o patrimônio, sendoo delito-fim, e, no sequestro, apesar de o próprio tiponão especificar a natureza da vantagem, pareceindefensável entendimento diverso”6.

Preferimos, contudo, adotar outra orientação,sempre comprometida com a segurança dogmática datipicidade estrita, naquela linha que o próprioMagalhães Noronha gostava de repetir de que “a leinão contém palavras inúteis”, mas também nãoadmite — acrescentamos — a inclusão de outras,não contidas no texto legal. Coerente, jurídica etecnicamente correto o velho magistério de Bento deFaria, que pontificava: “A vantagem — exigida para

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restituição da liberdade ou como preço do resgate,pode consistir em dinheiro ou qualquer outrautilidade, pouco importando a forma da exigência”7.Adotamos esse entendimento8, pelos fundamentosque passamos a expor.

Com efeito, os tipos penais, desde a contribuiçãode Mayer9, não raro trazem em seu bojodeterminados elementos normativos, que encerramu m juízo de valor. Convém destacar, no entanto,como tivemos oportunidade de afirmar, que “oselementos normativos do tipo não se confundem comos elementos jurídicos normativos da ilicitude.Enquanto aqueles são elementos constitutivos dotipo penal, estes, embora integrem a descrição docrime, referem-se à ilicitude e, assim sendo,constituem elementos sui generis do fato típico, namedida em que são, ao mesmo tempo,caracterizadores da ilicitude. Esses elementosespeciais da ilicitude, normalmente, sãorepresentados por expressões como‘indevidamente’, ‘injustamente’, ‘sem justa causa’,‘sem licença da autoridade’ etc.”10.

Curiosamente, no entanto, na descrição dessetipo penal — extorsão mediante sequestro —,contrariamente ao que fez na constituição do crime

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anterior (extorsão), que seria, digamos, o tipo-matrizdo “crime extorsivo”, o legislador brasileiro nãoinseriu na descrição típica a elementar normativaindevida vantagem econômica. Poderia tê-laincluído, não o fez, certamente não terá sido poresquecimento, uma vez que acabara de descrevertipo similar, com sua inclusão (art. 158). Preferiu, noentanto, adotar a locução “qualquer vantagem”, semadjetivá-la, provavelmente para não restringir seualcance.

Com efeito, a nosso juízo, a natureza econômicada vantagem é afastada pela elementar típicaqualquer vantagem, que deixa clara sua abrangência.Quando a lei quer limitar a espécie de vantagem, usao elemento normativo indevida, injusta, sem justacausa, como destacamos nos parágrafos anteriores.Assim, havendo sequestro, para obter qualquervantagem, para si ou para outrem — não importandoa natureza (econômica ou não) ou espécie (indevidaou não) —, como condição ou preço do resgate,estará caracterizado o crime de extorsão mediantesequestro. Por fim, são absolutamente equivocadasas afirmações de Fragoso (seria apenas um crimecontra a liberdade individual) e Magalhães Noronha(sob pena de não haver razão para o delito serclassificado no presente título), se a vantagem não

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for econômica11.Esquecem esses doutrinadores que a extorsão

mediante sequestro é um crime pluriofensivo, e“qualquer vantagem” exigida pelo tipo é alternativa,como “condição” ou “preço” do resgate. Secondição e preço tivessem, nessa hipótese, o mesmosignificado, a previsão dupla seria supérflua e inútil,circunstância essa rejeitada pelos estudiosos. Aliás,o próprio Magalhães Noronha encarregava-se dedefini-los: “Temos que como condição de resgate alei refere-se particularmente ao caso em que o fim doagente seja especialmente obter uma coisa,documento, ou ato, em troca da libertação dosequestrado. Preço do resgate dirá, em especial, dahipótese em que a vantagem se concretize emdinheiro”. Essa definição, na verdade, não deixa deser um tanto quanto contraditória com a posiçãoassumida por Noronha. Assim, por exemplo, alunoque sequestra filho do professor antes da provafinal, exigindo, como condição do resgate, suaaprovação, não apresenta outra adequação típicaque aquela descrita no art. 159. É um grandeequívoco afirmar que, nessa hipótese, estar-se-ádiante do crime de sequestro descrito no art. 148 doCP, ignorando que tal infração penal não exigenenhuma motivação especial; esta, se existir, poderá

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tipificar outro crime. Com efeito, ao examinarmos essecrime (sequestro), fizemos a seguinte consideração:“Não se exige nenhum elemento subjetivo especialdo injusto que, se houver, poderá configurar outrocrime; se a privação da liberdade objetivar aobtenção de vantagem ilícita, caracterizará o crimed e extorsão mediante sequestro (art. 159); se afinalidade for libidinosa, poderá configurar crimecontra a dignidade sexual (art. 215) etc. Se, noentanto, a finalidade for atentar contra a segurançanacional, constituirá crime especial, tipificado no art.20 da Lei de Segurança Nacional (Lei n. 7.170, de142983). Se for praticado por funcionário público,constituirá o crime de violência arbitrária (art. 322). Seo sequestro for meio para a prática de outro crime,será absorvido pelo delito-fim”12.

4.2 Vantagem devida: outra tipificação

Para uma parte da doutrina, seguindo a orientaçãode Hungria, se a vantagem for devida, haverá crimede sequestro (art. 148) em concurso com exercícioarbitrário das próprias razões (art. 345)13. Ignora,contudo, que, quando a lei assim o deseja, refere-seexpressamente a “vantagem indevida”, como no caso

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da extorsão pura e simples. Magalhães Noronha, omais acerbo e qualificado crítico de Nélson Hungria,com acerto, afirmava: “Se confrontarmos o artigo emestudo com o precedente — ‘... obter... indevidavantagem econômica...’ (art. 158) e ‘... obter...qualquer vantagem...’ (art. 159) — parece-nos que alei aqui admite, seja ela indevida ou devida.Comparando-se, pois, os dois dispositivos eatentando-se a que a lei não contém palavrasinúteis, conclui-se que ela, neste passo, refere-se àlegitimidade ou ilegitimidade do proveito”14.

Por outro lado, Hungria equivoca-se duplamentequando afirma que a vantagem há de ser indevida,pois, se for legítima, existirá exercício arbitrário daspróprias razões em concurso com sequestro15, quaissejam, crimes com penas de quinze dias a um mês dedetenção (art. 345) e um a três anos de reclusão.Curiosamente, o crime-fim seria menos grave que ocrime-meio, invertendo a ordem natural das coisas;afora a circunstância de, como demonstramosanteriormente, o sequestro do art. 148 não exigirespecial fim de agir. Ademais, o fato de visarsatisfação de pretensão ilegítima, por si só, não ésuficiente para afastar a tipicidade do exercícioarbitrário das próprias razões ou, em outros termos, alegitimidade da pretensão visada não é decisiva para

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tipificar esse crime. Na verdade, a solução dessavexata quaestio deve ser encontrada por meio doconflito aparente de normas, chegando-seinevitavelmente à conclusão de que quem, mesmopara satisfazer pretensão legítima, sequestra alguém,exigindo como condição do resgate a execuçãodaquela pretensão, pratica o crime de extorsãomediante sequestro (art. 159). A ilegitimidade, paraconcluir, como o próprio Hungria afirma, em outrapassagem, “resulta de ser exigida como preço dacessação de um crime”.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo geral do tipo é o dolo,representado pela vontade consciente de sequestraralguém. Como em todos os crimes, na extorsãomediante sequestro a vontade e a consciência doagente devem abranger todos os elementosconstitutivos do crime, sob pena de afastar-se aadequação típica.

O elemento subjetivo especial do tipo éconstituído pelo fim especial de obter qualquervantagem, para si ou para outrem, como preço oucondição do resgate. Essa finalidade especial é o

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que distingue esse crime do de sequestro. Aliás, esseelemento subjetivo pode surgir mesmo após o agenteter sequestrado a vítima; basta que passe a exigirdeterminada vantagem como condição ou preço dalibertação da vítima ou refém. Assim, por exemplo,responde por esse crime o agente que, para chamar aatenção das autoridades para seu problema,“sequestra” um veículo coletivo, fazendo ospassageiros de reféns e, posteriormente, durante anegociação com as autoridades, exige determinadacondição ou pagamento para libertá-los.

Não há previsão de modalidade culposa. Aliás,pela natureza dessa infração, não admitimos sequer apossibilidade de ser praticada por meio de doloeventual.

6. Extorsão qualificada: modus operandi

A doutrina nacional, de modo geral, tem utilizado,equivocadamente, a terminologia “agravantesespeciais” ao referir-se às figuras qualificadas daextorsão mediante sequestro, que vem desde NélsonHungria e Bento de Faria, passando por MagalhãesNoronha, Heleno Fragoso e Paulo José da Costa Jr.,e sobrevive com Damásio de Jesus e Luiz Regis

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Prado16.Na verdade, embora alguns doutrinadores não

façam distinção entre majorantes e qualificadorasou, pelos menos, não lhe atribuam relevância, jádestacamos em inúmeras oportunidades que nãoabrimos mão da precisão terminológica. Por isso,convém registrar que as circunstâncias enunciadasnos parágrafos do art. 159, ao contrário do que setem afirmado, são autênticas qualificadoras. Asqualificadoras constituem verdadeiros tipos penais— derivados, é verdade —, com novos limites,mínimo e máximo, enquanto as majorantes, comos imples causas modificadoras da pena, somenteestabelecem sua variação, mantendo os mesmoslimites, mínimo e máximo. Ademais, as majorantesfuncionam como modificadoras somente na terceirafase do cálculo da pena, ao contrário dasqualificadoras, que fixam novos limites, maiselevados, dentro dos quais será estabelecida a pena-base. Façamos, a seguir, uma análise individualizadadestas.

6.1 Duração do sequestro e idade da vítima

Desnecessário frisar que a privação da liberdadeé consequência material e direta dessa infração

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penal. Contudo, embora se saiba que asconsequências do crime, como moduladoras da pena(art. 59), não se confundem com a consequêncianatural tipificadora do crime praticado, não se podeignorar que a privação da liberdade, em qualquercircunstância, será mais ou menos grave naproporção direta de sua duração. Logo, quanto maislonga, mais danosa, mais grave e mais destruidora detodos os atributos pessoais, éticos e morais queformam a personalidade humana. Nessa linha, um diade prisão ou de cativeiro equivale a uma eternidade.

Por isso, justifica-se que a duração do sequestrosuperior a vinte e quatro horas qualifique o crime,determinando sanção consideravelmente superioràquela cominada no caput do art. 159.

A idade da vítima inferior a dezoito anos, porsua vez, é qualificadora que tem fundamentopolítico-criminal coerente com a mesma política quefundamenta a imputabilidade penal somente paramaiores de dezoito anos. Na verdade, os menores dedezoito anos são pessoas em formação, quenecessitam mais de orientação que de punição, namedida em que suas características pessoais estãoem desenvolvimento e são extremamente sensíveis ainfluências externas.

Por outro lado, desnecessário enfatizar que os

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filhos, especialmente os menores, são os bens maisvaliosos de qualquer ser humano; nessascircunstâncias, o agente sabe que, sequestrandofilhos menores, os pais, desesperados, ficamextremamente vulneráveis e dispostos a satisfazerqualquer exigência imposta. E exatamente nissoreside a maior desvalia, quer da ação, quer doresultado; nesse sentido, sustenta Regis Prado, comacerto, que “essa majorante, a seu turno, atua namedida do injusto, implicando maior desvalor daação, já que a qualidade da vítima afasta apossibilidade de produção do resultado. O aumentodo desvalor da ação, in casu, está lastreado nãoapenas na suposta vulnerabilidade da vítima, mastambém na acentuada periculosidade da ação”17.

O Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003)aproveitou para acrescentar ao rol das qualificadorasdeste parágrafo a circunstância de a vítima ser maiorde sessenta anos — na data do fato, acrescentamosnós. No entanto, não se pode negar que a simplescondição de tratar-se de vítima maior de sessentaanos de idade ser fundamento para qualificar o crimefere os princípios da razoabilidade e daproporcionalidade, especialmente quando se tem,como cominação da figura qualificada, pena entredoze e vinte anos. Todavia, por opção do legislador,

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está aí essa nova figura que, em termos de políticacriminal, só nos faz lamentar o equívoco legislativo.Assim, agora mais do que nunca, é indispensáveltoda a cautela no exame da circunstância de o sujeitoativo ter efetivo e comprovado conhecimento de quea vítima tinha mais de sessenta anos na data do fato.

Inquestionavelmente, tanto a maior duração dosequestro (mais de 24 horas) e consequente privaçãoda liberdade da vítima como sua menoridade (menosde 18 anos), e agora também “velhice”, ampliam tantoo desvalor da ação quanto o desvalor do resultado,que justificam, na ótica do legislador, sua maiorpenalização (art. 159, § 1º).

6.2 Cometido por bando ou quadrilha

A prática de qualquer crime por quadrilha oubando eleva a gravidade do injusto pelo acentuadodesvalor da ação e do resultado, e, no caso deextorsão mediante sequestro, constitui qualificadora,recebendo sanção autônoma, de doze a vinte anosde reclusão.

A definição de quadrilha ou bando é aqueladada pelo art. 288. Assim, é indispensável que haja areunião de mais de três pessoas para praticar crimes.Se no entanto, objetivarem praticar um único crime,

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ainda que sejam mais de três pessoas, não tipificaráquadrilha ou bando, cuja elementar típica exige afinalidade indeterminada.

Na verdade, a estrutura central do núcleo dessecrime reside na consciência e vontade de os agentesorganizarem-se em bando ou quadrilha, com o fimespecial — elemento subjetivo especial do injusto —e imprescindível de praticar crimes. Formação dequadrilha ou bando é crime de perigo comum eabstrato, de concurso necessário e de caráterpermanente, inconfundível, pelo menos para osiniciados, com o concurso eventual de pessoas. Éindispensável que os componentes do bando ouquadrilha concertem previamente a específica práticad e crimes indeterminados, como objetivo e fim dogrupo.

Não se pode deixar de deplorar o uso abusivo,indevido e reprovável como se tem agido noquotidiano forense a partir do episódio Collor deMello, denunciando-se, indiscriminadamente, porformação de quadrilha, qualquer concurso de maisde três pessoas, especialmente nos chamados crimessocietários, em autêntico louvor à responsabilidadepenal objetiva, câncer tirânico já extirpado doordenamento jurídico brasileiro. Essa prática odiosabeira o abuso de autoridade (abuso do poder de

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denunciar)18.Na realidade, estamos querendo demonstrar que é

injustificável a confusão que rotineiramente se temfeito entre concurso eventual de pessoas (art. 29) eassociação criminosa (art. 288). Com efeito, não sepode confundir aquele — concurso de pessoas —,que é associação ocasional, eventual, temporária,para o cometimento de um ou mais crimesdeterminados, com esta — quadrilha ou bando —,que é uma associação para delinquir, configuradorado crime de quadrilha ou bando, que deve serduradoura, permanente e estável, cuja finalidade é ocometimento indeterminado de crimes. Aconfiguração típica do crime de quadrilha ou bandocompõe-se dos seguintes elementos: a) concursonecessário de, pelo menos, quatro pessoas; b)finalidade específica dos agentes de cometer crimesindeterminados (ainda que acabem não cometendonenhum); c) estabilidade e permanência daassociação criminosa19. Em outros termos, aformação de quadrilha ou bando exige, para suaconfiguração, união estável e permanente decriminosos voltada para a prática indeterminada devários crimes.

Para concluir, invocamos o ensinamento do

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Ministro Sepúlveda Pertence, cujo talento e brilhoinvulgar incontestáveis autorizam que se reproduza asua síntese lapidar: “Mas, data venia, isso nada tema ver com o delito de quadrilha, que pode consumar-se e extinguir-se sem que se tenha cometido um sócrime, e que pode constituir-se para a comissão deum número indeterminado de crimes de determinadotipo, ou dos crimes de qualquer natureza, que sefaçam necessários para determinada finalidade, comoé o caso que pretende a denúncia neste caso. Pelocontrário, a associação que se organize para acomissão de crimes previamente identificados, maisinsinua coautoria do que quadrilha”20.

Por tudo isso, a qualificadora de bando ouquadrilha somente se configura quando realmented e quadrilha se tratar, caso contrário estar-se-ádiante de concurso de pessoas (art. 29), que nãotipifica a figura qualificada em exame.

7. Extorsão mediante sequestro qualificada peloresultado: lesão grave ou morte

O art. 159 dispõe: “§ 2º Se do fato resulta lesãocorporal de natureza grave: Pena — reclusão, de 16(dezesseis) a 24 (vinte e quatro) anos. § 3º Se resulta

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a morte: Pena — reclusão, de 24 (vinte e quatro) a 30(trinta) anos”.

As duas hipóteses elencadas caracterizamcondições de exasperação da punibilidade emdecorrência da maior gravidade do resultado. Aexemplo do que ocorre com os crimes de roubo e deextorsão, “se resulta lesão corporal grave” ou “seresulta morte”, pune-se a título de crime qualificadopelo resultado, para alguns, crimes preterdolosos.

Normalmente, o resultado mais grave — lesão oumorte — é produto de culpa, que complementaria aconhecida figura do crime preterdoloso — dolo noantecedente e culpa no consequente, como adoutrina gosta de definir. Ter-se-ia, assim, o crimecontra a liberdade (sequestro) executado,dolosamente, acrescido de um resultado mais grave,resultante de culpa, a lesão grave ou a morte davítima. Essa, pelo menos, é a estrutura clássica docrime preterdoloso.

7.1 Se resulta lesão corporal de natureza grave

A regra, repetindo, é que, nesses crimes, oresultado agravador seja sempre produto de culpa.Contudo, na hipótese em apreço, a extrema gravidadedas sanções cominadas uniu o entendimento

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doutrinário que passou a admitir a possibilidade,indistintamente, de o resultado agravador poderdecorrer tanto de culpa quanto de dolo, direto oueventual.

A locução lesão corporal de natureza gravedeve ser interpretada em sentido amplo, paraabranger tanto as lesões graves (art. 129, § 1º)quanto lesões gravíssimas (art. 129, § 2º). Ademais, alesão corporal grave tanto pode ser produzida navítima do sequestro como na vítima da extorsão ouem qualquer outra pessoa que venha a sofrer aviolência.

Sintetizando, é indiferente que o resultado maisgrave seja voluntário ou involuntário, justificando-sea agravação da punibilidade, desde que esseresultado não seja produto de caso fortuito ou forçamaior, ou seja, decorra, pelo menos, de culpa.

7.2 Se resulta a morte

A morte da vítima é a qualificadora máxima dessecrime. Exatamente como na lesão grave, a morte poderesultar em outra pessoa que não a sequestrada,podendo existir dois sujeitos passivos.

Observando-se a sistemática do nosso Código

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Penal, constata-se que o art. 157, § 3º , pretendeutipificar um crime preterdoloso, já que a locuçãoutilizada “se resulta” indica, normalmente, resultadodecorrente de culpa, e não meio de execução decrime. No entanto, como já referimos no tópicoanterior, a severidade das penas cominadas não seharmoniza com crime preterdoloso. Procurandominimizar a iniquidade congênita da estruturatipológica em apreço, a doutrina passou a sustentar apossibilidade de o resultado morte poder ser produtode dolo, culpa ou preterdolo21, indiferentemente.

Toda sanção agravada em razão de determinadaconsequência do fato somente pode ser aplicada aoagente se houver dado causa, pelo menos,culposamente. Com a extorsão mediante sequestronão é diferente, aplicando-se integralmente oconsagrado princípio nulla poena sine culpa;rechaça-se, assim, completamente aresponsabilidade objetiva. No entanto, não se podesilenciar diante de um erro crasso do legislador, queequiparou dolo e culpa, pelo menos quanto àsconsequências, nesse caso específico. Na verdade, oevento morte tanto pode decorrer de dolo, de culpaou de preterdolo, e atribuir-lhe a mesma sanção coma gravidade que lhe é cominada (24 a 30 anos dereclusão) agride o bom-senso e fere a sistemática do

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ordenamento jurídico brasileiro, que, nos crimesculposos, releva o desvalor do resultado,destacando, fundamentalmente, o desvalor da ação.

A Lei n. 8.072/90 definiu a extorsão mediantesequestro como crime hediondo, excluído de anistia,graça, indulto, fiança e liberdade provisória, comcumprimento de pena integralmente em regimefechado. Nesses casos, a prisão temporária é detrinta dias, e, em caso de condenação para apelar,segundo a questionada Lei n. 8.072/90, a regra éinvertida: somente recolhimento à prisão (art. 9º, §§1º e 2º). No entanto, a Lei n. 11.464, de 27 de março de2007, seguindo a orientação consagrada peloSupremo Tribunal Federal (HC 82.959), minimiza osequivocados excessos da Lei n. 8.072/90, alterandoos parágrafos do seu art. 2º, e determina que ocumprimento da pena inicie em regime fechado, ouseja, consagra o sistema progressivo de regimes depena.

8. Delação premiada: favor legal antiético

Delação premiada consiste na redução de pena(podendo chegar, em algumas hipóteses, até mesmoa total isenção de pena) para o delinquente que

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delatar seus comparsas, concedida pelo juiz nasentença final condenatória, desde que sejamsatisfeitos os requisitos que a lei estabelece. Trata-sede instituto importado de outros países22,independentemente da diversidade de peculiaridadesde cada ordenamento jurídico e dos fundamentospolíticos que o justificam.

A Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90), emseu art. 7º, introduziu um parágrafo (§ 4º) no art. 159do Código Penal, cuja redação estabelecia umaminorante23 (causa de diminuição de pena) em favordo coautor ou partícipe do crime de extorsãomediante sequestro praticado por quadrilha oubando que denunciasse o crime à autoridade,facilitando, assim, a libertação do sequestrado.Dessa forma, premiava-se o participante delator quetraísse seu comparsa com a redução de um a doisterços da pena aplicada. Por essa redação, para quefosse reconhecida a configuração da cognominada“delação premiada” era indispensável que a extorsãomediante sequestro tivesse sido cometida porquadrilha ou bando e que qualquer de seusintegrantes, denunciando o fato à autoridade,possibilitasse a libertação da vítima.

Posteriormente, a Lei n. 9.269/96 ampliou as

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possibilidades da “traição premiada” ao conferir ao §4º a seguinte redação: “se o crime é cometido emconcurso, o concorrente que o denunciar àautoridade, facilitando a libertação do sequestrado,terá sua pena reduzida de um a dois terços”. A partirdessa nova redação, tornou-se desnecessário que ocrime de extorsão tenha sido praticado por quadrilhaou bando (que exige a participação de, pelos menos,quatro pessoas), sendo suficiente que haja concursode pessoas, ou seja, é suficiente que doisparticipantes, pelo menos, tenham concorrido para ocrime, e um deles tenha delatado o fato criminoso àautoridade, possibilitando a libertação dosequestrado. Enfim, com essa retificação legislativade 1996 iniciou-se a proliferação da “traiçãobonificada”, defendida pelas autoridades comogrande instrumento de combate à criminalidadeorganizada, ainda que, contrariando esse discurso, oúltimo diploma legal referido tenha afastadoexatamente a necessidade de qualquer envolvimentode possível organização criminosa.

Com efeito, a eufemisticamente denominadadelação premiada, que foi inaugurada noordenamento jurídico brasileiro com a Lei dos CrimesHediondos (Lei n. 8.072/90, art. 8º, parágrafo único),proliferou em nossa legislação esparsa, atingindo

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níveis de vulgaridade; assim, passou a integrar asleis de crimes contra o sistema financeiro (art. 25, §2º, da Lei n. 7.492/86), crimes contra o sistematributário (art. 16, parágrafo único, da Lei n.8.137/90), crimes praticados por organizaçãocriminosa (art. 6º da Lei n. 9.034/95), crimes delavagem de dinheiro (art. 1º, § 5º, da Lei n. 9.613/98)e a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (art. 13da Lei n. 9.807/99). O fundamento invocado é aconfessada falência do Estado para combater a dita“criminalidade organizada”, que é mais produto daomissão dos governantes ao longo dos anos do quepropriamente alguma “organização” ou“sofisticação” operacional da delinquênciamassificada. Na verdade, virou moda falar crimeorganizado, organização criminosa e outrasexpressões semelhantes, para justificar aincompetência e a omissão dos detentores do poder,nos últimos quinze anos, pelo menos. Chega a serparadoxal que se insista numa propalada sofisticaçãoda delinquência; num país onde impera aimprovisação e tudo é desorganizado, como se podeaceitar que só o crime seja organizado? Quem sabe oPoder Público, num exemplo de funcionalidade,comece combatendo o crime desorganizado, já quecapitulou ante o que resolveu tachar de crime

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organizado; pelo menos combateria a criminalidadede massa, devolvendo a segurança à coletividadebrasileira, que tem dificuldade até mesmo de transitarpelas ruas das capitais. Está-se tornando intolerávela inoperância do Estado no combate à criminalidade,seja ela massificada, organizada ou desorganizada,conforme nos têm demonstrado as alarmantesestatísticas diariamente.

Como se tivesse descoberto uma poção mágica, olegislador contemporâneo acena com a possibilidadede premiar o traidor — atenuando a suaresponsabilidade criminal — desde que delate seucomparsa, facilitando o êxito da investigação dasautoridades constituídas. Com essa figura esdrúxulao legislador brasileiro possibilita premiar o “traidor”,oferecendo-lhe vantagem legal, manipulando osparâmetros punitivos, alheio aos fundamentos dodireito-dever de punir que o Estado assumiu com acoletividade.

Não se pode admitir, sem qualquerquestionamento, a premiação de um delinquente que,para obter determinada vantagem, “dedure” seuparceiro, com o qual deve ter tido, pelo menos, umarelação de confiança para empreenderem algumaatividade, no mínimo, arriscada, que é a prática dealgum tipo de delinquência. Estamos, na verdade,

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tentando falar da moralidade e justiça da posturaassumida pelo Estado nesse tipo de premiação. Qualé, afinal, o fundamento ético legitimador dooferecimento de tal premiação? Convém destacarque, para efeito da delação premiada, não sequestiona a motivação do delator, sendo irrelevanteque tenha sido por arrependimento, vingança, ódio,infidelidade ou apenas por uma avaliação calculista,antiética e infiel do traidor-delator. Venia concessa ,será legítimo o Estado lançar mão de meios antiéticose imorais, como estimular a deslealdade e traiçãoentre parceiros, apostando em comportamentosdessa natureza para atingir resultados que suaincompetência não lhe permite através de meios maisortodoxos? Certamente não é nada edificanteestimular seus súditos a mentir, trair, delatar oudedurar um companheiro movido exclusivamentepela ânsia de obter alguma vantagem pessoal, seja deque natureza for.

No entanto, a despeito de todo essequestionamento ético que atormenta qualquercidadão de bem, a verdade é que a delação premiadaé um instituto adotado em nosso direito positivo.Falando em peculiaridades diversas, lembramos quenos Estados Unidos o acusado — como umatestemunha — presta compromisso de dizer a

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verdade e, não o fazendo, comete crime de perjúrio,algo inocorrente no sistema brasileiro, em que oacusado tem o direito de mentir, sem que isso lheacarrete qualquer prejuízo, conforme lhe assegura aConstituição Federal. Essa circunstância, por si só,desvirtua completamente o instituto da delaçãopremiada, pois, descompromissado com a verdade eisento de qualquer prejuízo ao sacrificá-la, obeneficiário da delação dirá qualquer coisa queinteresse às autoridades na tentativa de beneficiar-se. Essa circunstância retira eventual idoneidade quesua delação possa ter, se é que alguma delação podeser considerada idônea.

Por outro lado, a legislação brasileira é omissa emdisciplinar o modus operandi a ser observado nacelebração desse “acordo processual”. Na realidade,a praxis tem desrecomendado não apenas o institutoda delação como também as próprias autoridadesque a têm utilizado, bastando recordar, apenas parailustrar, a hipótese do doleiro da CPI dos Correios edo ex-assessor do atual Ministro Palocci, que foraminterpelados e compromissados a delatar, na caladada noite e/ou no interior das prisões, enfim, nascircunstâncias mais inóspitas possíveis, sem lhesassegurar a presença e orientação de um advogado,sem contraditório, ampla defesa e o devido processo

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legal.A delação premiada constante do § 4º do art. 159

é causa de obrigatória redução de pena, desde queo crime tenha sido cometido em concurso de pessoase a contribuição do delator seja eficaz, isto é, leve aefetiva libertação da vítima sequestrada. O texto legalé taxativo ao dizer que o denunciante “terá sua penareduzida” de um a dois terços. A delação, noentanto, que deve ser endereçada à autoridade(Delegado de Polícia, Ministério Público ou Juiz deDireito), está vinculada à efetiva libertação da vítima,ou seja, é indispensável a relação de causa e efeito: alibertação da vítima deve, necessariamente, decorrerda contribuição efetiva do delator. A simplesvontade, ainda que acompanhada da ação efetiva dodelator, é insuficiente para justificar a redução depena. Em outros termos, é indispensável que acontribuição do delator, com sua conduta dealcaguete, seja eficaz no contexto em que sedesenvolve o processo libertatório do ofendido.Como destaca Alberto Silva Franco24, “a conduta dodelator deve ser relevante do ponto de vista objetivoe voluntária, sob o enfoque subjetivo. Isso significa,de um lado, que cabe ao delator o fornecimento dedados concretos que, causal e finalisticamente,conduzam à libertação do sequestrado”.

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A delação premiada, a despeito da ausência deprevisão legal, deve ser voluntária, isto é, produtoda livre manifestação pessoal do delator, sem sofrerqualquer tipo de pressão física, moral ou mental,representando, em outras palavras, intenção oudesejo de abandonar o empreendimento criminoso,sendo indiferentes as razões que o levam a essadecisão. Não é necessário que seja espontânea,sendo suficiente que seja voluntária: háespontaneidade quando a ideia inicial parte dopróprio sujeito; há voluntariedade, por sua vez,quando a decisão não é objeto de coação moral oufísica, mesmo que a ideia inicial tenha partido deoutrem, como da autoridade, por exemplo, ou mesmoresultado de pedido da própria vítima. O móvel,enfim, da decisão do delator — vingança,arrependimento, inveja ou ódio — é irrelevante paraefeito de fundamentar a delação premiada.

A definição do quantum a reduzir deve vincular-se a critério objetivo que permita justificar a maior oumenor redução de pena dentro dos limitesestabelecidos de um a dois terços. Um dos critériossugeridos, segundo Silva Franco25, é o maior oumenor tempo levado para a liberação do sequestrado.Mas esse pode ser apenas um dos critérios a seremconsiderados, havendo outros mais relevantes,

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como, por exemplo, a maior ou menor facilidadeencontrada pela autoridade para libertar a vítima e,especialmente, a maior ou menor contribuição dodelator para a libertação daquela. Em síntese, aredução da pena aplicada será tanto maior quantomais relevante for a contribuição da delação para alibertação do sequestrado: maior contribuiçãoequivale a maior redução; menor contribuiçãosignificará menor redução, mantendo-se umaautêntica proporcionalidade nessa relação de causa eefeito.

Não afastamos, por fim, a aplicação cumulativa daminorante constante do § 4º, ora em exame, com a doparágrafo único do art. 8º da Lei n. 8.072/90, porqueas duas previsões legais visam objetivos distintos:na primeira hipótese, a finalidade é a libertação dosequestrado; na segunda, o objetivo é odesmantelamento da quadrilha ou bando. Por isso, secom a mesma delação o delator propiciar que sedesbarate uma quadrilha e, ao mesmo tempo,possibilite libertar a vítima, fará jus, certamente, àincidência das duas minorantes.

9. Crime hediondo

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Tanto a figura simples quanto as qualificadas sãoconsideradas crimes hediondos. Sobre crimeshediondos, vide nota ao § 3º do art. 157, pois tudoque lá dissemos tem aplicação aqui. A pena serámajorada de metade se a vítima a) não for maior dequatorze anos; b) for alienada ou débil mental (se oagente souber disso); c) não puder, por qualquercausa, oferecer resistência.

10. Consumação e tentativa

Consuma-se esta infração penal com o sequestroda vítima, isto é, com a privação de sua liberdade;consuma-se no exato momento em que a vítima ésequestrada, isto é, quando tem sua liberdade de ir evir suprimida, mesmo antes do pedido de resgate.

A consumação no crime de extorsão mediantesequestro não exige que a vantagem econômica sejaalcançada. Basta que a pessoa seja privada de sualiberdade e que a intenção de conseguir vantagemeconômica indevida seja externada. Assim éirrelevante o fato de a vítima ser posta em liberdadeante o insucesso da exigência. Trata-se de crimepermanente, e sua consumação se opera no local emque ocorre o sequestro, com o objetivo de obter o

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resgate, e não no da entrega deste.Eventual recebimento do resgate constituirá

apenas exaurimento do crime, que apenas influirá nadosagem final da pena.

A maior dificuldade no tratamento desses crimesreside na definição da tentativa, que tem sido objetode imensa controvérsia e complexidade, grande parteem decorrência da deficiente técnica legislativa, quetem dificultado as soluções estritamente jurídicas.

É admissível, em princípio, a tentativa, desde queo agente inicie a ação de sequestrar a vítima, embora,in concreto, às vezes seja de duvidosa configuração.Não se pode, no entanto, falar em tentativa deextorsão mediante sequestro se o agente, emboranão obtendo a vantagem pretendida, praticou todosos atos para a consumação do crime.

11. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (aquele que não exigequalquer condição especial do sujeito ativo);formal26, uma vez que se consuma, como vimos,independentemente do recebimento da vantagempatrimonial pretendida (resgate), isto é, consuma-se

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com a ação de sequestrar a vítima; comissivo (é daessência do próprio verbo nuclear — “sequestrar”—, que só pode ser praticado por meio de uma açãopositiva); só excepcionalmente pode ser comissivo-omissivo, ou seja, quando o agente estiver nacondição de garantidor e não impedir que osequestro ocorra (art. 13, § 2º, do CP); doloso (nãohá previsão legal para a figura culposa); de formalivre (pode ser praticado por qualquer meio, forma oumodo); permanente (a consumação alonga-se notempo); unissubjetivo (pode ser praticado, em regra,por um único agente); plurissubsistente (pode serdesdobrado em vários atos que, no entanto, integrama mesma conduta).

12. Pena e ação penal

As penas aplicáveis são as seguintes: a) caput:reclusão, de oito a quinze anos; b) § 1º: reclusão, dedoze a vinte anos; c) § 2º: reclusão, de dezesseis avinte e quatro anos; d) § 3º: reclusão, de vinte equatro a trinta anos. A minorante da delação permitea redução de um a dois terços da pena aplicada (§ 7ºda Lei n. 8.072/90). Referida lei suprimiu a pena demulta, que era cumulativa.

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A ação penal, não poderia ser diferente, é públicaincondicionada. A autoridade policial deve agir exofficio.

1 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 284;Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7, p.73; Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 411.2 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 2,p. 72.3 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 286.4 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 287.5 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 367.6 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 413.7 Bento de Faria, Código Penal brasileiro comentado; ParteEspecial, 3. ed., Rio de Janeiro, Record, 1961, v. 5, p. 63.8 Cezar Roberto Bitencourt, Código Penal comentado, cit.,p. 697.9 Luís Jiménez de Asúa, Principios de Derecho Penal — la

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ley y el delito, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1990, p. 238.10 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal;Parte Geral, 7. ed., São Paulo, Saraiva, 2002, v. 1, p. 342.11 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 367; Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p.287.12 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal;Parte Especial, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 2002, v. 2, p. 445.13 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 72.14 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 287.15 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 72.16 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 73; Bento de Faria, Código Penal brasileiro comentado,cit., v. 5, p. 63; Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2,p. 289; Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p.368; Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal;Parte Especial, São Paulo, Saraiva, 1988, v. 2, p. 223; DamásioE. de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2; Luiz Regis Prado, Cursode Direito Penal brasileiro, cit., v. 2, p. 414.17 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 415.18 Esse lamento é do doutrinador, convém destacar,porquanto para o advogado é um campo fértil para o exitoso

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exercício profissional de alta rentabilidade. Portanto, aosdesavisados, não vai nessa crítica nenhuma mágoa pessoalou profissional; pelo contrário.19 STF, HC 72.992-4, rel. Min. Celso de Mello, DJU, 14 nov.1996, p. 44469.20 STF, HC 71.168-8, rel. Min. Sepúlveda Pertence, RT,717:249.21 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 210.22 Código Penal espanhol, arts. 376 e 579, n. 3; Código Penalitaliano, arts. 289bis e 630, e Leis n. 304/82, 34/87 e 82/91;Código Penal português, arts. 299, n. 4, 300, n. 4, e 301, n. 2;Código Penal chileno, art. 8º; Código Penal argentino, art.217; Código Penal colombiano, arts. 413/418, entre outros.23 “§ 4º Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, ocoautor que denunciá-lo à autoridade, facilitando alibertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um adois terços.”24 Alberto Silva Franco, Crimes Hediondos, 4. ed., SãoPaulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 251.25 Alberto Silva Franco, Crimes Hediondos, cit., p. 253.26 “A extorsão é delito formal que se perfaz com o efetivoconstrangimento de alguém a fazer, deixar de fazer ou tolerarque se faça algo, não dependendo da obtenção de vantagemeconômica para a sua consumação” (STJ, RE 125040/SP, rel.

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Min. Gilson Dipp, j. 11-4000).

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CAPÍTULO VI - EXTORSÃO INDIRETA

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos do crime. 3.1. Sujeito ativo. 3.2.Sujeito passivo. 4. Tipo objetivo:adequação típica. 5. Tipo subjetivo:adequação típica. 6. Classificaçãodoutrinária. 7. Consumação e tentativa.8. Pena e ação penal.

Extorsão indireta

Art. 160. Exigir ou receber, como garantia dedívida, abusando da situação de alguém,documento que pode dar causa a procedimentocriminal contra a vítima ou contra terceiro:

Pena — reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, emulta.

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1. Considerações preliminares

A proteção contra a usura encontra seusantecedentes mais remotos na Lei das XII Tábuas1,secundada pela Igreja, que passou a considerá-lapecado.

Luiz Regis Prado destaca, com acerto, que,“embora a doutrina considere a figura estranha ànossa legislação, invocando-se como antecedentehistórico unicamente o art. 197 do Projeto Sá Pereira,é oportuno observar que o Código Penal de 1890 jádispunha sobre delito análogo, no artigo 362, § 2º”2.

Sobre a extorsão indireta, a Exposição de Motivosdo Código Penal de 1940, da lavra do MinistroFrancisco Campos, faz a seguinte afirmação:“Destina-se o novo dispositivo a coibir os torpes eopressivos expedientes a que recorrem, por vezes, osagentes da usura, para garantir-se contra o risco dodinheiro mutuado. São bem conhecidos essesrecursos, como, por exemplo, o de induzir onecessitado cliente a assinar um contrato simuladode depósito ou a forjar no título de dívida a firma dealgum parente abastado, de modo que, não resgatadaa dívida no vencimento, ficará o mutuário sob apressão da ameaça de um processo por apropriaçãoindébita ou falsidade” (item n. 57). Esse crime pode

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ser praticado, normalmente, por agiotas, embora parasua configuração não seja indispensável a existênciad e usura. É suficiente, em princípio, que o sujeitoativo procure garantir-se, exigindo do devedordocumento que possa dar causa a processo criminalcontra si ou contra terceiro. A lei procura, com efeito,impedir que credores inescrupulosos (nãonecessariamente agiotas ou usurários) aproveitem-sedo desespero de eventuais devedores para extorquir-lhes compromissos documentais idôneos para,havendo inadimplemento, instaurar procedimentocriminal contra o devedor ou terceira pessoa.

2. Bem jurídico tutelado

A extorsão indireta é mais um daqueles crimespluriofensivos, na medida em que os bens jurídicosprotegidos neste dispositivo são o patrimônio e aliberdade individual do sujeito passivo: aquele,diretamente; esta, secundariamente. A natureza dodocumento exigido pelo sujeito ativo representa,inegavelmente, risco potencial à liberdade do sujeitopassivo.

Na verdade, poder-se-ia considerar esses doisbens jurídicos, vistos isoladamente — patrimônio e

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liberdade —, sob uma outra ótica, digamos, maisespecífica, definindo com precisão o verdadeiro bemjurídico protegido pelo dispositivo em exame, qualseja, a regularidade das relações entre credor edevedor. Assim, o bem jurídico stricto sensu é anormalidade e moralidade das relações entre devedore credor.

3. Sujeitos do crime

3.1 Sujeito ativo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, mesmonão sendo agiota, a despeito do conteúdo daExposição de Motivos, que se referiuespecificamente aos “agentes da usura”. Não setrata, por evidente, de crime próprio, podendo serpraticado por qualquer pessoa que, para garantir umcrédito, mesmo não usurário, abuse da situação deoutrem, exija documento que possa resultar emprocedimento criminal. Enfim, embora possa serpreferentemente praticada por agiotas, a extorsãoindireta não lhes é exclusiva, isto é, não se trata deuma espécie de usura.

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3.2 Sujeito passivo

Sujeito passivo também pode ser qualquerpessoa, geralmente o devedor, na medida em que,inegavelmente, é necessária a existência de umarelação de débito e crédito (garantia de dívida).Ademais, a exemplo das outras formas de extorsão, épossível a existência de pluralidade de vítimas: aação pode ser realizada contra o devedor, mas odocumento exigido ou entregue pode incriminarterceiro.

A lei protege, em outros termos, toda e qualquerpessoa contra todo e qualquer credor,independentemente da existência de juros, legais ouilegais.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A configuração desse tipo penal pressupõe aexistência dos seguintes requisitos: a) exigência ourecebimento de documento que possa dar causa aprocesso penal contra a vítima ou terceiro; b)existência de relação creditícia; c) abuso da situaçãode necessidade do sujeito passivo.

A ação tipificada consiste em exigir ou receber

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documento que possa dar causa a procedimentocriminal, contra a vítima ou contra terceiro. O textolegal equipara exigência a recebimento, tipificandocrime de conteúdo variado, ou, como preferemalguns, de ação múltipla. Na primeira hipótese há aimposição de uma situação ou conditio sine quanon; na segunda, há a aceitação de uma proposiçãode iniciativa do próprio devedor, que entrega odocumento comprometedor; naquela, há umaatividade positiva, uma imposição do credor; nesta, osujeito ativo do crime aquiesce em receber odocumento que o próprio devedor toma a iniciativade entregar-lhe.

É necessário que esse “acordo” entre credor edevedor não passe de uma simulação, que parecemais uma espécie de coação que qualquer outracoisa. É irrelevante que se trate de dívida existenteou se refira a dívida futura.

Qualquer das ações tipificadas deve ser realizadapara obter garantia de dívida, abusando dasituação de alguém. Como afirmava Heleno Fragoso,“este crime ocorre quando o devedor não temgarantias para oferecer ao credor, funcionando odocumento recebido ou exigido como segurança dopagamento. O fundamento ou a razão de ser dadívida é inteiramente irrelevante”3.

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O documento, público ou particular, deve serentendido em sentido estrito; tem de ter conteúdocriminalmente comprometedor, capaz de dar margema procedimento criminal. Esse tipo penal tem osentido de proteger o indivíduo contra a chantagem.O documento pode encerrar a confissão de um crimeefetivamente praticado, pode ser a delação de alguémde sua família etc.

A existência da dívida ou sua legitimidade nãoexclui o crime, pois sua ilicitude reside na naturezacriminalmente comprometedora do documentoexigido, concomitante com a situação difícil em que avítima se encontra. Em outros termos, ilícito não é ocrédito, mas a garantia exigida. Por isso, para aconfiguração do crime definido no art. 160 do CódigoPenal, é indispensável que, além da exigência ourecebimento de documento que possa dar lugar aprocedimento criminal contra a vítima ou terceirapessoa, haja abuso da situação ou condiçãonecessitada de alguém. Não se trata da simplescondição de devedor, mas sim de sua situação depenúria, decorrente de suas dificuldades prementes,que deixam a vítima vulnerável. Nesse sentido,merece destaque a consideração que faziaMagalhães Noronha, in verbis: “Denominou oCódigo esta figura criminal extorsão indireta, e

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dentre os característicos que a distinguem cumpreapontar primeiramente o estado angustioso, denecessidade da vítima que, por ele coagida, resigna-se à entrega da garantia ilegal”4. O agente nãoprecisa ter concorrido para o estado aflitivo davítima, sendo suficiente que se aproveite dessasituação.

Não é necessário que o documento se refira àprática de crime inexistente, cuja autoria a vítimaatribua a si ou a terceiro. O crime existirá mesmoquando, em garantia de dívida, a vítima é obrigada afirmar documento confessando a autoria de crimeque efetivamente executou5.

De posse do “documento”, o credor, isto é, osujeito ativo do crime de extorsão indireta, está emcondições de provocar a instauração ou o início deum procedimento criminal, independentemente de odevedor, isto é, a vítima, poder demonstrar ainautenticidade do documento, a coação ocorrida, asimulação que o documento representa, enfim, suainocência.

O recebimento puro e simples de cheque semfundos como garantia de dívida não é suficiente paracaracterizar o crime de extorsão indireta,especialmente a partir do momento em que se

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pacificou o entendimento de que cheque dado emgarantia de dívida não constitui ordem depagamento e, por extensão, não constitui aquelamodalidade de estelionato (art. 171, § 2º, VI, do CP).Todavia, se essa garantia do cheque sem fundosresultar de exigência abusiva do credor, que seprevalece de uma situação aflitiva de seu devedor,em estado de insolvência, poder-se-á estar diante dafigura típica descrita no art. 160 do CP. Esseentendimento baseia-se na própria descrição típica,que se refere a “procedimento criminal”. Este, aocontrário de processo criminal, abrange também asinvestigações preliminares, muitas vezes necessáriaspara se descobrir a natureza do cheque emitido;pode-se afirmar, em outros termos, que, a despeitodo atual entendimento a respeito do cheque dado emgarantia, ele é potencialmente idôneo para dar causaa procedimento criminal, não sendo recomendável,assim, deixar o devedor juridicamente desprotegido.Nesse sentido, estamos de acordo com o magistériode Magalhães Noronha, que sustentava: “Basta,então, potencialidade; é suficiente ser apto a essefim. Não se exige, é bem de ver, que o procedimentoseja iniciado, pois o fim do agente é conservá-locomo um mal iminente sobre o devedor, no caso denão ser solvido o débito. É, assim, condição

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indispensável, que ele possa fundamentar oprocesso-crime. Mesmo no caso de ser justo oprocedimento criminal, contra a vítima, se o agenteretém o documento que dará origem ao processo,para garantir a dívida, somos de parecer que não seexcluirá o delito. O processo, em relação ao agente, éinjusto, porque injusto o fim que o move”.

O simples pedido feito a policiais para que cobremuma dívida, por si só, não configura crime algum. Aameaça de processar, feita por advogado, caso aoutra parte não cumpra obrigação assumida nãoconstitui extorsão indireta, aliás não constitui crimealgum. Por fim, não nos parece que a condutatipificada tenha a gravidade que o Código lheempresta, mostrando-se, na prática, de difícilocorrência.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O dolo é representado pela vontade conscientede exigir ou receber documento como garantia dedívida, abusando da situação de alguém. O agentedeve ter consciência da necessidade ou aflição davítima (situação) e de que o documento pode darcausa a procedimento criminal. É irrelevante a

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natureza da dívida, se legítima ou ilegítima, sendosuficiente que o sujeito ativo exija o documentoreferido no tipo penal para garanti-la.

É necessário, igualmente, o elemento subjetivoespecial do tipo, constituído pelo especial fim deagir, no caso, garantir, abusivamente, dívidaexistente ou futura, da qual o sujeito ativo é credor.

6. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (aquele que não exigequalquer condição especial do sujeito ativo); dedano (consuma-se apenas com lesão efetiva ao bemjurídico tutelado); formal6 (na modalidade de exigir),uma vez que se consuma, como vimos,independentemente do recebimento efetivo dodocumento exigido; comissivo (é da essência dospróprios verbos nucleares — “exigir” e “receber” —,que só podem ser praticados por meio de uma açãopositiva); doloso (não há previsão legal para a figuraculposa); de forma livre (pode ser praticado porqualquer meio, forma ou modo); instantâneo (aconsumação opera-se de imediato, não se alongandono tempo); unissubjetivo (pode ser praticado, emregra, apenas por um agente); unissubsistente, na

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modalidade de exigir (não pode ser fracionado);plurissubsistente (pode ser desdobrado em váriosatos, que, no entanto, integram a mesma conduta).

7. Consumação e tentativa

Na modalidade de exigir, crime formal, consuma-se a extorsão indireta com a simples exigência, sendoimpossível, teoricamente, a interrupção do itercriminis; nessa modalidade, consuma-se a extorsãoainda que não ocorra a traditio do documentoexigido pelo sujeito ativo. Trata-se de crime de dano,que é inerente à apropriação, acarretadora, por si só,de diminuição do patrimônio do ofendido. Na formad e receber, crime material, consuma-se com oefetivo recebimento, que, eventualmente, pode serinterrompido, isto é, impedido por causa estranha àvontade do agente, sendo possível, nesse caso, atentativa. É admissível a tentativa.

8. Pena e ação penal

As penas cominadas, cumulativamente, são areclusão, de um a três anos, e multa, muito inferiores

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àquelas cominadas em qualquer das outrasmodalidades de extorsão. Como nessa infração penalo modus operandi não inclui a violência ou graveameaça, o desvalor da ação é consideravelmentemenor, justificando-se, no caso, sua menorpunibilidade.

A ausência de violência ou grave ameaça tornapossível, em princípio, a aplicação de penasubstitutiva, desde que os demais requisitosobjetivos e subjetivos estejam presentes.

A natureza da ação penal, a exemplo das demaismodalidades de extorsão, é pública incondicionada,desnecessária, portanto, a manifestação da vítima.

1 “Os juros de dinheiro não podem exceder de uma onça,isto é, 1/12 do capital por ano (unctariu foenus), o que dá8,1/3 por cento por ano; se se calcula sobre o ano solar de 12meses, segundo o calendário já introduzido por Numa (apena contra o usurário que ultrapassa o limite é doquádruplo)” (inciso XVIII da Tábua VIII).2 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 420.

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3 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 372.4 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 293.5 No mesmo sentido, Heleno Cláudio Fragoso, Lições deDireito Penal, cit., v. 1, p. 373.6 “A extorsão é delito formal que se perfaz com o efetivoconstrangimento de alguém a fazer, deixar de fazer ou tolerarque se faça algo, não dependendo da obtenção de vantagemeconômica para a sua consumação” (STJ, RE 125040/SP, rel.Min. Gilson Dipp, j. 11-4-2000).

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CAPÍTULO VII - DA USURPAÇÃO

1ª SeçãoAlteração de limites

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 5.1.Elemento subjetivo especial: paraapropriar-se de coisa móvel alheia. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Pena e açãopenal.

Capítulo III

DA USURPAÇÃO

Alteração de limitesArt. 161. Suprimir ou deslocar tapume, marco,

ou qualquer outro sinal indicativo de linhadivisória, para apropriar-se, no todo ou em parte,

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de coisa imóvel alheia:Pena — detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, e

multa.§ 1º Na mesma pena incorre quem:

Usurpação de águasI — desvia ou represa, em proveito próprio ou de

outrem, águas alheias;Esbulho possessório

II — invade, com violência a pessoa ou graveameaça, ou mediante concurso de mais de duaspessoas, terreno ou edifício alheio, para o fim deesbulho possessório.

• V. arts. 1.210 a 1.213 do Código Civil.

§ 2º Se o agente usa de violência, incorretambém na pena a esta cominada.

§ 3º Se a propriedade é particular, e não háemprego de violência, somente se procede mediantequeixa.

1. Considerações preliminares

O legislador brasileiro reuniu neste dispositivo as

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poucas prescrições penais por meio das quaisprotege a propriedade imobiliária, especialmente emrelação aos crimes patrimoniais, que, por sua próprianatureza, são menos suscetíveis de sofrer algumalesão jurídica dessa natureza1. Com efeito,historicamente, a propriedade imobiliária temrecebido melhor e mais eficaz proteção no âmbito dodireito privado. A experiência demostra que a própriaautoridade policial fica perplexa quando surge algumcaso envolvendo a usurpação de propriedadeimobiliária, havendo sempre muitosquestionamentos, muitas dúvidas, inúmerasquestões jurídicas que devem ser resolvidas no juízocível etc. Com efeito, aqui surge com grandedestaque a feição subsidiária do direito penal,justificada não apenas pela essência e naturezadeste, mas, fundamentalmente, por sua ineficiênciadiante do próprio conflito imobiliário.

Mas o Código Penal de 1940, cuja Parte Especialpermanece em vigor, a despeito da proteção civil,estendeu também sua proteção ao bem imóvel, pelomenos em algumas hipóteses restritas. Sob adenominação genérica de usurpação, o Código Penalcriminaliza neste art. 161 três figuras similares deinfrações contra a propriedade imóvel, quais sejam:a) alteração de limites; b) usurpação de águas; c)

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esbulho possessório.A alteração de limites já era criminalizada desde

o direito hebraico e o primitivo direito romano.Heleno Fragoso lembrava que “os antigos davamaos marcos imobiliários o caráter de coisa sagrada,como refere Foustel de Coulanges, estando eles soba proteção do deus Terminus. Penas pecuniáriasforam mais tarde aplicadas para o fato de tornarincertos os limites, substituindo o imperadorAdriano tais penas pela relegação ou trabalhosforçados, dependendo da condição do réu (D, 47,21)”2.

O Código Criminal do Império (1830) e o CódigoPenal de 1890 também disciplinaram essa matéria,embora ainda não tivessem sua fisionomia individualbem definida.

Esse tipo penal, na verdade, além de proteger aalteração de limites de propriedade imóvel,criminaliza também a “usurpação de águas” e o“esbulho possessório”.

2. Bem jurídico tutelado

Neste dispositivo não se cuida da coisa móvel,

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mas da imóvel. Os bens jurídicos protegidos são aposse e a propriedade imobiliária3. Nélson Hungria,a nosso juízo, equivocadamente, adotavaentendimento restritivo, isto é, afastava a possecomo objeto da proteção penal. Nesse sentido,afirmava Hungria: “O que a lei protege com aincriminação da alteração de limites (como em todasas outras formas de usurpação) é a propriedade, enão a posse. Esta é protegida como um meio deproteção à propriedade (porque faz presumir odomínio por parte de quem a exerce)”4.

Magalhães Noronha, assumindo posiçãoradicalmente contrária à de Hungria, não apenasadmitia a proteção da posse como sustentava queesta era a prioridade imediata da proteção penal, eapenas por extensão a propriedade também resultaprotegida. A precisão do magistério de Noronhamerece ser transcrita, in verbis: “O objeto específicoda tutela do dispositivo é a posse da coisa imóvel; éela a objetividade imediata que se tem em vista.Protegendo-a, protege também a lei a propriedade,pois a posse é a propriedade exteriorizada, atualizada.Mas, como no furto, tem preeminência no plano daproteção legal a posse, ainda que entre em conflitocom a propriedade. Se no Direito Civil o possuidorpode intentar ação possessória contra o proprietário,

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razão maior existe para o Direito Penal protegeraquele, quando o ato do segundo apresenta carátermais grave, invadindo a órbita do ilícito penal”5.Constata-se que a argumentação de MagalhãesNoronha é irrefutável e, por isso mesmo, está maispróxima do entendimento majoritário da doutrinamais recente, com a ressalva apenas de queprioritariamente é protegida a propriedade imóvel, aposse que a ela corresponde, isto é, na ordeminversa da orientação sustentada por MagalhãesNoronha.

Protege-se, com efeito, a inviolabilidade dopatrimônio imobiliário, que, a despeito de nãopoder ser objeto de subtração, como no furto e noroubo, pode ser, indevidamente, invadido, ocupadoou deteriorado, restringindo ou anulando o livre usoe gozo do proprietário ou possuidor, além do livreexercício de sua posse tranquila.

Ante a omissão legal, é irrelevante que a posse oupropriedade refira-se a imóvel público ou particular,embora o próprio Código dispense tratamentodiferenciado segundo a natureza da propriedade: se apropriedade for particular, somente se procedemediante queixa (§ 3º); a contrario sensu, tratando-se de imóvel público, a ação penal é públicaincondicionada.

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3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeitos ativo e passivo são os proprietários epossuidores de imóveis; logicamente, ativo quandopratica a ação alteradora de limites imobiliários, epassivo quando sofre seus efeitos. Carrara, Hungriae Fragoso6 só admitiam o proprietário do imóvellimítrofe, isto é, o proprietário lindeiro, como sujeitoativo, na medida em que somente este podiaacrescer ao seu a diferença alterada. Mas, a nossojuízo, o possuidor também pode ser sujeito ativo (aaquisição via usucapião é uma realidade), pois podealterar marcos e tapumes objetivando ampliar suaposse, invadindo, assim, o imóvel vizinho.

A despeito da existência de entendimento emsentido contrário, em princípio estamos diante decrime próprio, pois somente o vizinho do imóvellindeiro, proprietário ou possuidor, pode praticá-lo; eessa característica é, inegavelmente, uma condiçãoespecial exigida pelo tipo penal, pois somente estespodem beneficiar-se com a alteração dos limitesdivisórios entre imóveis limítrofes. Opondo-se aentendimento7, que admitia a possibilidade de futuroproprietário do imóvel lindeiro poder praticar o crimede alteração de limites, Nélson Hungria refutou-ocom o seguinte argumento: “A possibilidade de

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usurpação subordinada à futura aquisição do imóvelvizinho é uma possibilidade condicionada,incompatível com o crime de alteração de limites.Quando a lei se refere ao fim de apropriação,evidentemente está a exigir que a ele corresponda apossibilidade de uma apropriação imediata, e nãosujeita a condição futura, pois, de outro modo,estaria considerando como realidade atual umsimples e mesmo incerto projeto”8.

Paulo José da Costa Jr., no entanto, sustenta que,além do proprietário lindeiro, o arrendatário, opossuidor e até mesmo um futuro comprador podeser sujeito ativo desse crime. Nesse sentido,completa Paulo José: “O proprietário, para ampliarsua propriedade. O arrendatário, para usufruir de umaporção superior à arrendada. O possuidor porque, aorequerer o usucapião, o fará com vistas a umapropriedade maior. E o futuro comprador porque,pelo mesmo preço, mediante um deslocamento doslimites primitivos, obterá uma área maior”9. Temosdificuldades, no entanto, em admitir essaabrangência da legitimidade ativa sustentada porCosta Jr. Na verdade, o acerto em relação aoproprietário e ao possuidor não se estende aoarrendatário, e a própria justificativa desnuda essaimpossibilidade: com efeito, em relação a este Costa

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Jr. justifica afirmando que o arrendatário praticá-lo-ia“para usufruir de uma porção superior à arrendada”.No entanto, “usufruir de porção maior” não pode, emhipótese alguma, ser interpretado como “apropriar-se”. E essa distinção no fim especial exigido pelo tipopenal, absolutamente inexistente, no móvel da açãodo arrendatário impede que este possa ser sujeitoativo desse crime. Contudo, em relação ao futurocomprador, excepcionalmente, admitimos apossibilidade de figurar sujeito ativo.

Questão interessante é sobre a possibilidade de ocondômino ser sujeito ativo do crime de alteração delimites. Na verdade, na copropriedade ou condomíniopro indiviso, onde há composse sobre todo oimóvel, marcada pela indivisão de fato e de direito, àevidência, é impossível o crime de alteração delimites, pela absoluta impropriedade do objeto (art. 17do CP). No entanto, desde que se trate decondomínio pro diviso, acreditamos que não hánenhuma dificuldade10, na medida em que a“divisão” é provisória e sujeita a posterior divisãojudicial. Com efeito, neste, os condôminos delimitamsuas partes, tácita ou expressamente, a “possuir” nacoisa comum parte certa e determinada. Há, narealidade, comunhão sine compossessione, uma vezque cada coproprietário tem posse sobre parte certa

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do imóvel, tendo direito, inclusive, aos interditosproprietários, quer contra estranhos, quer contra osoutros condôminos (arts. 1.199 e 1.314 do CC).Assim, o coproprietário que remover sinaisdivisórios no condomínio pro diviso, com o fim deapropriar-se de parte sobre a qual outro condôminoexerce sua posse, pratica esse crime.

Por fim, quanto ao sujeito passivo somentepodem ser, igualmente, o proprietário e o possuidor,não havendo, nesse particular, qualquer divergênciadoutrinária.

4. Tipo objetivo: adequação típica

São elementos integrantes do crime de alteraçãode limites: a) existência de tapume, marco ouqualquer outro sinal indicativo de linha divisória; b)sua supressão ou deslocamento; c) fim de apropriar-se de coisa alheia imóvel. Os objetos das açõesincriminadas são tapume, marco ou qualquer outrosinal indicativo de linha divisória.

As ações tipificadas são suprimir e deslocartapume, marco ou qualquer outro sinal indicativo dalinha divisória de propriedade imóvel. Suprimirsignifica eliminar, destruir, fazer desaparecer. A

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consequência da ação de “suprimir” deve serapagar, fazer desaparecer por completo ademarcação da linha divisória, inviabilizando que sepossa constatar onde esta se localizava. Por isso nãocaracteriza supressão o simples ato de arrancartapumes ou marcos de uma cerca, sem tapar osrespectivos buracos existentes no solo, que sãodenunciadores da linha divisória. Ação como essapoderá, no máximo, caracterizar o crime de dano, oumesmo de furto, na hipótese de haver subtração domaterial extraído.

Deslocar, por sua vez, tem o significado deafastar, remover, isto é, mudar de um lugar para outrosinal divisório (marco, tapume etc.) de propriedadeimobiliária. Nesse caso, não desaparecem como nocaso da supressão, mas são deslocados para outrospontos, outros lugares, induzindo à conclusão deque a linha divisória é outra que não a real. Éirrelevante, para a configuração do crime, que ossinais possam ser, com facilidade, recolocados nosmesmos lugares ou substituídos por outros nasmesmas condições. A conduta já se aperfeiçoou, e ocrime já se consumou. Em outros termos, a“supressão” apaga completamente a linha divisória,enquanto o “deslocamento” remove os sinais paraoutro ponto, indicando a linha divisória

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incorretamente. A simples colocação de novosmarcos, sem a supressão dos anteriores, emprincípio, não tipifica o crime.

A diferença, juridicamente considerável, nãoreside na espécie de marco ou tapume, mas namodalidade de ação, isto é, na supressão ou nodeslocamento do sinal divisório, seja de quenatureza for: naquela o sinal desaparece, emdefinitivo; neste, é simplesmente removido; emqualquer dessas modalidades, tipifica-se o crime dealteração de limites, e ainda que o sujeito pratiqueas duas ações, isto é, primeiro desloque e depoissuprima os sinais, o crime será único, pois se trata deinfração de conteúdo variado.

Os sinais divisórios, enfim, podem assumir asseguintes formas: a) tapumes são cercas, muros ouquaisquer meios físicos utilizados para separar oucercar imóveis; b) marcos são sinais materiais, tocos,pedras, estacas, piquetes indicativos da divisória.Nélson Hungria dava a seguinte definição a marcos etapumes: “Tapume, no sentido estrito que lhe atribuio art. 161, caput, é toda cerca (sebe viva ou seca,cerca de arame, tela metálica, etc.) ou muro (de pedra,tijolos, adobes, cimento armado) destinado aassinalar o limite entre dois ou mais imóveis. Marco étoda coisa corpórea (pedras, piquetes, postes,

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árvores, tocos de madeira, padrões, etc.) que,artificialmente colocada ou naturalmente existente empontos da linha divisória de imóveis serve, também,ao fim de atestá-la permanentemente (ainda que nãoperpetuamente)”. E, por fim, c) qualquer outro sinalindicativo de linha divisória representa uma fórmulagenérica para abranger qualquer meio, modo ouforma de sinais divisórios de imóveis, tais comovalas, regos, sulcos, trilhas, cursos d’água, entreoutros. Assim, tapumes e marcos são enumeraçõespuramente exemplificativas. É desnecessário que setrate de sinal permanente ou contínuo, sendosuficiente que tenha idoneidade para demarcar oslimites da propriedade imobiliária.

Por fim, também é irrelevante que os sinaistenham sido produto de convenção entre as partesou resultado de decisão judicial; basta que sejamindicadores efetivos das lindes dos referidosimóveis.

É fundamental que se tenha presente anecessidade, para configurar as condutas tipificadas,de que haja supressão ou deslocamento de sinaisdivisórios; dessa forma, não há crime na simplescolocação de outros sinais indicativos de limitesdivisórios, mesmo que invada o terreno vizinho, senão houver supressão ou deslocamento dos marcos

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originais, não indo além de meros ilícitos civis(turbação da posse). Contudo, se a colocação denovos marcos produzir alterações que a lei proíbe,tornar confusos ou irreconhecíveis os marcosoriginais, admitimos que se configurará o crime emexame. Aceitamos, assim, embora com cautela,eventuais decisões pretorianas que admitem comotípicas as condutas que causem confusão oudificuldade de monta para a observação da linhalimítrofe de imóveis contíguos.

Há entendimento de que a ação deve ser mais oumenos clandestina e deve ser apta a confundir oslimites vigentes. Por essa razão, a alteração delimites, embora se trate de propriedade imóvel,dificilmente pode ter por objeto as construçõesimobiliárias, cuja alteração é constatada de imediato.

A despeito de tratar-se de bem imóvel, nãodescurou o legislador em adjuntar-lhe o elementonormativo “alheio”, a exemplo do que fez em relaçãoà tutela da coisa móvel, que também deve ser alheia.Relativamente a esse elemento normativo, aplica-seaqui tudo o que dissemos a seu respeito quandoabordamos os crimes de furto e de roubo.

A eventual ocorrência de esbulho possessório,após a alteração de limites, absorve este, que temnatureza subsidiária.

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5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo do tipo é o dolo,representado pela vontade consciente de alterar oudeslocar tapume ou marco indicativo de linhadivisória de imóvel, produzindo a alteração naslinhas divisórias dos imóveis. É indispensável que osujeito ativo tenha consciência não apenas da ação,mas também da existência e função dos marcosdivisórios e de suas funções.

Não há previsão de modalidade culposa. O errode tipo, se ocorrer, afasta a tipicidade, e, na ausênciade modalidade culposa, é irrelevante tratar-se de erroevitável ou inevitável.

5.1 Elemento subjetivo especial: para apropriar-sede coisa móvel alheia

Além do dolo, exige-se o elemento subjetivoespecial do tipo, constituído pelo especial fim deapropriar-se, no todo ou em parte, de imóvel alheio.É exatamente essa finalidade específica que distinguea ação de outras infrações penais. Assim, porexemplo, se o agente objetivar a simples apropriaçãodos marcos ou tapumes, o crime será o de furto (art.155); se a finalidade for somente de destruí-los, ou

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seja, causar prejuízos, sem qualquer intenção dealterar limites e de apropriar-se do imóvel, o crimeserá de dano (art. 163); se a alteração se produzir napendência de processo judicial, objetivando induzir ojuiz ou perito a erro, o crime será de fraudeprocessual (art. 347); se, finalmente, a conduta doagente tiver por objetivo somente restaurar a linhalegítima, o crime tipificado será de exercícioarbitrário das próprias razões (art. 345).

Apropriar-se não tem o significado de adquirir apropriedade ou o dominus, na medida em que aaquisição de propriedade imóvel é um ato complexo,que exige o registro do título aquisitivo em Cartóriodo Registro Especial. Procura-se, na verdade, impediro apossamento ou apoderamento ilegítimo dapropriedade imóvel alheia, isto é, proibir a posseadquirida ilicitamente. Apropriar-se tem, pois, nestedispositivo, o sentido de apossar-se.

Objeto do fim especial somente pode ser imóvelpor natureza (art. 79 do CC/2002), isto é, aquele quepode ser dividido, demarcado, cujos limites lindeirospodem ser representados por marcos, tapumes ouqualquer sinal divisório. Estão excluídos dessaproteção legal os chamados imóveis por ficção.Assim, estão excluídos os imóveis por acessão físicaartificial, por acessão intelectual e por

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determinação legal (arts. 43, II e III, do CC/16 e 80do CC/2002).

É desnecessário, por fim, o proveito pessoal, poiso verbo “apropriar-se” não tem esse sentidorestritivo, podendo, na verdade, resultar proveitopara outrem.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se a alteração de limites com a efetivasupressão ou deslocamento do marco, tapume ouqualquer outro sinal indicativo da linha divisória,sendo irrelevante alcançar ou não o objetivo deapropriar-se da propriedade alheia imóvel. Emverdade, como já afirmamos, a apropriação constituio especial fim de agir, que, como elemento subjetivoespecial do injusto, não precisa concretizar-se, sendosuficiente que tenha sido o móvel orientador da açãodo agente. Como destacava Magalhães Noronha, a“communis opinio dos tratadistas tem comoconsumado o crime tão só com a remoção ousupressão dos lindes”11. Em realidade, essa éefetivamente a realidade das coisas, como deixa claroa própria redação do artigo e, particularmente, onomen iuris do art. 161: alteração de limites.

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Eventuais consequências decorrentes daalteração de limites — uso, fruição ou exploração dapropriedade — não ultrapassam os lindes doexaurimento do crime, situando-se nos limitesextensivos do dano experimentado pela vítima.

A admissão da tentativa não é tema dos maispacíficos, havendo profundas divergências. Noentanto, mesmo para os que classificam como crimeformal, é admissível a tentativa, pois o sujeitopassivo pode ser surpreendido quando inicia aretirada dos diversos sinais indicativos da linhadivisória, sendo interrompido durante a faseexecutória, que outra coisa não é senão uma figuratentada (art. 14, II, do CP).

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime próprio (porque exige condiçãoespecial do sujeito ativo); de dano (consuma-seapenas com lesão efetiva ao bem jurídico tutelado);formal, na medida em que, embora descreva umresultado, não necessita de sua produção paraconsumar-se; comissivo (é da essência do próprioverbo nuclear, que só pode ser praticado por meio deuma ação positiva); doloso (não há previsão legal

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para a figura culposa); de forma livre (pode serpraticado por qualquer meio, forma ou modo);instantâneo (a consumação opera-se de imediato,não se alongando no tempo); unissubjetivo (podeser praticado, em regra, apenas por um agente);plurissubsistente (pode ser desdobrado em váriosatos, que, no entanto, integram a mesma conduta).

8. Pena e ação penal

As penas cominadas são a detenção, de um a seismeses, e multa, cujos limites não são maisestabelecidos em cada tipo penal. A ação penal, porsua vez, é pública incondicionada. Contudo,tratando-se de propriedade particular e não havendoemprego de violência, a ação penal será de exclusivainiciativa privada.

Quando examinarmos a figura do esbulhopossessório, a última deste dispositivo,procederemos a melhor análise desses dois aspectos.

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1 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 297: “Arazão de o Direito Penal proteger menos o imóvel epreocupar-se mais com os móveis encontra sua explicaçãoem que o ato delituoso contra estes é muito mais irreparáveldo que contra aquele. O furto da coisa móvel opera-se pelacontrectatio, pela remoção da coisa por sua apreensão, aqual, realizada, frustra frequentemente a recuperação pelodono. Este há de satisfazer-se com a reparação civil, quandopossível, o que raras vezes acontece, e com a pena impostaao delinquente, que será reparação moral, se se quiser”.2 Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p. 376.3 Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p. 376;Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 379; Luiz RegisPrado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit., v. 2, p. 427.4 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 89. Nessa linha, Hungria prosseguia: “Assim, se o agenteé proprietário de ambos os prédios contíguos, estandoarrendado um deles, não comete usurpação, ainda que o fimseja o de diminuir a área arrendada (o fato não será mais queum ilícito civil, isto é, um atentado possessório nãopenalmente reprovado). É necessário que o possuidor doprédio que se pretende usurpar exerça a posse ut dominusou, pelo menos, a título de exercício de um direito real(usufruto, enfiteuse, anticrese). No mesmo caso dearrendamento de um dos prédios contíguos, sendo estespertencentes ao mesmo dono, não existirá o crime, se a

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alteração de limites é praticada pelo locatário, para o fim deaumentar a área locada, pois não há intenção de usurpar apropriedade, mas apenas a posse”.5 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 298.6 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 88: “Ora, a possibilidade de usurpação subordinada àfutura aquisição de imóvel vizinho é uma possibilidadecondicionada, incompatível com o crime de alteração delimites...”. No mesmo sentido, Heleno Fragoso, Lições deDireito Penal, cit., v. 1, p. 377.7 Giulio Crivellari, Dei reati contra la proprietà, Itália, 1887,p. 626.8 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 89.9 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal, 6.ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 491.10 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 492.11 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 303.

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CAPÍTULO VIII

2ª SeçãoUsurpação das águas

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Pena e açãopenal.

1. Considerações preliminares

A usurpação de águas encontra seusantecedentes mais remotos no direito romano, quecriminalizava a abertura de aquedutos. O desvio deáguas foi objeto de preocupação do legisladoritaliano, que elaborou o Código Zannardelli (1889 —art. 422). O Código Penal Rocco (1930) ampliou adisposição quanto ao proveito, permitindo quepudesse ser tanto do autor como de outrem (art.

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622)1.O Código Criminal brasileiro de 1830 não tipificou

essa infração penal, que foi recepcionada peloprimeiro Código Penal republicano (1890), com aseguinte redação: “Si para desviar do seu curso aguade uso publico ou particular. Penas — de prizãocellular por um a seis mezes e multa de 5 a 20 0/0 dodamno causado”.

A usurpação de águas tipifica crime autônomo edistinto daquele capitulado no caput do art. 161,especialmente em relação a seu objeto material. Aopção do Código Penal por disciplinar as três figurasde forma distinta e autônoma permite melhor examedogmático, embora, até por isso, apresente maioresdeficiências estruturais.

2. Bem jurídico tutelado

Bem jurídico protegido aqui também são a posse ea propriedade imobiliárias, enfatizandoparticularmente o direito sobre o uso das águas porseu titular. Protege-se aqui o direito real doproprietário, e não simplesmente um direito pessoalou obrigacional.

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Protege-se, com efeito, uso, gozo ou exploraçãodas águas, segundo sua destinação. São protegidasas águas consideradas imóveis (art. 79 do CC),enquanto parte líquida do solo, uma vez que asmóveis ou mobilizadas recebem a proteção dos arts.155 e 157. Não são apenas as águas que já seencontram na propriedade da vítima, mas tambémaquelas cujo curso natural por lá deva passar. Assim,a ação de desviar ou represar impede o uso e gozo dequem tem esse direito.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, não seexigindo qualquer qualidade ou condição especial doagente; mesmo o proprietário que, dentro de seusdomínios, altera o curso ou saída das águas (art. 71,§ 1º, do Código de Águas) pode ser sujeito ativodesse crime. É perfeitamente admissível o institutodo concurso de pessoas, sem qualquer restriçãoespecial.

Sujeito passivo, por sua vez, é quem tem a posseou o direito de utilização das águas, ou, melhor dito,é quem pode sofrer o prejuízo em decorrência dodesvio ou represamento do curso d’água. Sujeito

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passivo, à evidência, pode ser tanto pessoa físicaquanto pessoa jurídica.

4. Tipo objetivo: adequação típica

As condutas tipificadas são desviar ou represar.Desviar significa alterar ou mudar o curso das águasfluentes ou estagnadas; represar, conter ouinterromper o curso das águas, impedindo queprossigam seu fluxo natural. Pressuposto fático éque as águas se encontrem na posse, isto é, no uso egozo de alguma pessoa, física ou jurídica. Assim,estão excluídas dessa proteção legal a res nullius(res communes omnium).

O objeto material da proteção penal são as águas.Como destaca, com acerto, Paulo José da Costa Jr.,“o bem tutelado não é a água, que pode serlegitimamente retirada, com bombas ou manualmente,em quantidade reduzida. O que se tutela são aságuas, consideradas em seu complexo como bensimóveis, podendo ser correntes ou estagnadas,contínuas ou intermitentes, perenes ou temporárias,públicas ou privadas, ou mesmo do subsolo”2. Emoutros termos, objeto material da proteção legal sãoas águas em estado natural, fluentes ou estagnadas,

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concebidas como coisa imóvel.Alheias não são apenas as águas que não

pertencem ao agente, mas também as comuns, ouseja, aquelas sobre as quais todos tenham direito. Emoutros termos, alheias são também as águas de usocomum. Na verdade, não pode ser consideradaalheia apenas a porção de água que se encontre noslimites da propriedade da vítima. O Código de Águas(arts. 71 e 72) e o Código Civil (arts. 1.288 e 1.290)prescrevem direitos e obrigações aos proprietáriosde imóveis atravessados por águas correntes,proibindo a alteração no ponto de saída das águasremanescentes. Nessa linha, o art. 71 do Código deÁguas prescreve: “Os donos ou possuidores deprédios atravessados ou banhados pelas correntes, ecom aplicação tanto para a agricultura como para aindústria, contanto que o refluxo das mesmas águasnão resulte prejuízo aos prédios que ficamsuperiormente situados, e que inferiormente não sealtere o ponto de saída das águas remanescentes,nem se infrinja o disposto na última parte doparágrafo único do art. 69” (Dec. n. 24.643/34).

As águas, segundo o Código de Águas (Decreton. 24.643, de 10-7-1934), podem ser públicas ouprivadas: aquelas destinadas ao uso coletivo, eestas destinadas à satisfação das necessidades e

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interesses individuais.São águas públicas: os mares territoriais, golfos,

baías, enseadas e portos; correntes, lagos e canais,navegáveis ou flutuáveis; as fontes e reservatóriospúblicos. Públicas, enfim, são somente as águasperenes, embora não percam essa característica sesecarem eventualmente durante determinadaestiagem forte (art. 3º do Dec. n. 24.643/34). Destacao mesmo decreto que as águas assoladas pela secatambém são consideradas públicas, de uso comum(art. 5º). São comuns as correntes não navegáveis ouflutuáveis e que não formem correntes de tal natureza(art. 7º). São águas particulares: todas as nascentes etodas as águas que se situem em imóveis particulares(desde que não sejam classificadas como águaspúblicas ou comuns — art. 8º). Ainda sãoconsiderados particulares os lagos ou lagoas que sesituem apenas em um imóvel particular e sejamapenas por ele cercados (art. 2º, § 3º).

São protegidas tanto as águas represadas quantoa s correntes, isto é, aquelas que passam oupassariam pelo imóvel do sujeito passivo, a despeitodo silêncio de nosso Código Penal. Ademais, comodestacava Heleno Fragoso, “o mesmo se diga daságuas perenes ou temporárias, contínuas ouintermitentes e, inclusive, a água do subsolo e a água

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estagnada, já que desviar significa mudar o leito daságuas”3.

A simples extração de água não configura essecrime, podendo, eventualmente, como coisamobilizada, tipificar furto, desde que reúna osrequisitos exigidos pelo tipo penal.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo geral é o dolo, constituídopela vontade consciente de impedir a posse deoutrem sobre as águas a que tem direito, desviando-as ou represando-as.

O elemento subjetivo especial do tipo éconstituído pelo especial fim de obter proveito parasi ou para outrem. E, como o elemento subjetivoespecial não precisa consumar-se, é suficiente queexista na mente do sujeito ativo. Em outros termos, éirrelevante para a configuração do tipo penal que oagente consiga obter algum proveito para si ou paraterceiro.

Contudo, se o agente desvia ou represa águasalheias, com o propósito exclusivo de causar prejuízoà vítima, isto é, sem a intenção de obter qualquer

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vantagem ou proveito para si ou alguém, não sepoderá falar desse crime, mas tão somente do dano(art. 163)4. Com efeito, embora o especial fim de agirnão integre o dolo, ele o aperfeiçoa e o complementa,e essa finalidade especial é exatamente o diferencialque determina a tipificação modeladora da condutapraticada.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime de usurpação de águas noexato momento em que o sujeito ativo efetua odesvio ou o represamento, ainda que não obtenha oproveito desejado, tratando-se, pois, de crime formal.Alguns autores exigem a obtenção do proveitopretendido (Celso Delmanto).

Na primeira figura, formal e instantânea, consuma-se no momento do desvio, ao passo que na segunda,represar, material e permanente, a consumaçãoprotrai-se no tempo, ou seja, enquanto durar orepresamento.

A admissibilidade da figura tentada não é assuntopacífico na doutrina. No entanto, desviar ou represaráguas alheias são condutas que envolvem alguma

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complexidade e, inegavelmente, admitemfracionamento, ou seja, são ações que, em seu cursoexecutório, podem ser interrompidas porcircunstâncias alheias à vontade do agente. Logo,essa interrupção do iter criminis, involuntariamente,configura a tentativa.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (porque não exigecondição especial do sujeito ativo), ao contrário daalteração de limites; de dano (consuma-se apenascom lesão efetiva ao bem jurídico tutelado); formal(1ª figura), na medida em que, embora descreva umresultado, não necessita de sua produção paraconsumar-se; material (2ª figura) (necessariamentedeixa vestígios; aliás, é impossível crime permanentenão deixar vestígios); comissivo (é da essência dopróprio verbo nuclear, que só pode ser praticado pormeio de uma ação positiva); doloso (não há previsãolegal para a figura culposa); de forma livre (pode serpraticado por qualquer meio, forma ou modo);instantâneo (1ª figura) (a consumação opera-se deimediato, não se alongando no tempo); permanente(2ª figura) (pois sua execução protrai-se no tempo, na

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medida em que represar implica demora,permanência); unissubjetivo (pode ser praticado, emregra, apenas por um agente); plurissubsistente(pode ser desdobrado em vários atos, que, noentanto, integram a mesma conduta).

8. Pena e ação penal

As penas cominadas são a detenção, de um a seismeses e multa, cujos limites não são maisestabelecidos em cada tipo penal. Se houve empregode violência, haverá concurso material com a infraçãopenal que aquela tipificar.

A ação penal, por sua vez, é públicaincondicionada. Contudo, tratando-se depropriedade particular e não havendo emprego deviolência, a ação penal será de exclusiva iniciativaprivada (art. 161, § 3º).

1 Vincenzo Manzini, Trattato di Diritto Penale italiano ,Torino, Utet, 1952, v. 9, p. 435.

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2 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 493.3 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 382 e 383.4 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 383.

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CAPÍTULO IX

3ª Seção - Esbulho possessórioEsbulho possessório

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos do crime. 3.1. Sujeito ativo. 3.2.Sujeito passivo. 4. Tipo objetivo:adequação típica. 4.1. Violência àpessoa ou grave ameaça ou concursode mais de duas pessoas. 4.2. Esbulhocivil e esbulho penal. 4.3. Esbulho deimóvel do SFH. 5. Tipo subjetivo:adequação típica. 6. Consumação etentativa. 7. Usurpação em concursocom violência. 8. Pena e ação penal. 8.1.Penas cominadas. 8.2. Pena e açãopenal.

1. Considerações preliminares

O esbulho possessório, como crime, foiabsolutamente desconhecido no direito antigo,

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recebendo proteção somente no direito privado. Comefeito, deve-se aos Códigos toscano (art. 426) esardo (art. 687) a criação dessa figura no âmbitocriminal, onde recebeu o nomen juris de turbatopossesso1.

Nossos Códigos Penais do século XIX nãoconheceram esse delito, tratando-se, porconseguinte, de figura penal bastante recente e comfeição própria, distinta do instituto similardisciplinado no Código Civil brasileiro. Realmente,neste, é necessário que a vítima seja desalojada daposse, condição absolutamente desnecessária emnossa legislação penal, sendo suficiente que a perdada posse constitua o fim especial do agente.

A previsão ora em exame inspirou-se no CódigoPenal Rocco (1930), que, ao contrário do brasileiro,criminalizava a turbação de “pacífica posse alheia deimóveis” (art. 634). Convém destacar que o CódigoPenal brasileiro silenciou quanto à figura da simplesturbação da posse, embora, deva-se reconhecer, emtodo esbulho sempre ocorre turbação; no entanto, seessa turbação não tiver, pelo menos, o propósito dedesalojamento da posse, a conduta será atípica.

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2. Bem jurídico tutelado

Os bens jurídicos protegidos são a posse dapropriedade imobiliária. Prioritariamente, protege-se aposse da coisa imóvel; embora também proteja-se apropriedade, deve-se ressaltar que se tutela a posseindependentemente da propriedade, podendo-se,aliás, contrapor a esta. Como destacava, com acerto,Magalhães Noronha, “pois se a proteçãopossessória é outorgada ao proprietário-possuidor,não há como não dispensá-la também ao possuidornão proprietário, até contra o proprietário”.

São tuteladas igualmente a integridade e a saúdefísica e mental do sujeito passivo, na medida em queo crime pode ser praticado com violência ou graveameaça à pessoa. O modus operandi ofende,paralelamente, esses aspectos da pessoa humana,que são abundantemente protegidos no Título quecuida dos crimes contra a pessoa. Essa proteçãomúltipla de bens jurídicos distintos permite que sepossa classificá-lo como espécie de crime complexo.

3. Sujeitos do crime

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3.1 Sujeito ativo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, comexceção do proprietário ou condômino, a despeito dealgum entendimento, a nosso juízo equivocado, emsentido contrário. Em outros termos, sujeito ativo équalquer pessoa que venha a invadir, justamente,terreno ou edifício que se encontre na posse legítimade outrem.

Para Magalhães Noronha, o proprietário pode sersujeito ativo do crime de esbulho possessório,quando o pratica contra possuidor que estejaexercendo a posse direta legitimamente2. Contudo,não se pode esquecer da elementar normativa“alheio”, contida pelo tipo penal quando se refere a“terreno ou edifício alheio”3; com certeza, na ação doproprietário que invade seu próprio imóvel falta aelementar “alheio”, exigida pela descrição típica. Pelamesma razão, o condômino de imóvel pro indivisonão pode ser sujeito ativo de esbulho possessórioem relação ao possuidor, por faltar-lhe, comoafirmamos, a elementar normativa “alheio”.

O concurso de pessoas, no crime de esbulho,pode desempenhar dois papéis distintos, a saber: seconcorrerem apenas dois sujeitos para a prática docrime, estar-se-á diante do concurso eventual de

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pessoas, nos termos do art. 29 do CP. Contudo,havendo concurso de mais de duas pessoas,converte-se no denominado concurso necessário,que, nesse caso, configura elementar da estruturatípica do crime, perdendo sua natureza de eventual.Na verdade, a descrição típica exige o emprego deviolência ou grave ameaça à pessoa, ou,alternativamente, concurso de mais de duas pessoas.Enfim, a ausência das duas elementares impede atipificação do esbulho, mesmo que haja invasão dapropriedade imóvel.

3.2 Sujeito passivo

Sujeito passivo do esbulho possessório é quemse encontra na posse do terreno ou edifício invadido,seja o proprietário ou seja, a qualquer título, opossuidor do imóvel (enfiteuta, usufrutuário,arrendatário, locatário, titular de servidão etc.),conforme reconhece a doutrina4. Em outros termos,sujeito passivo é todo aquele que, no Direito civil,pode valer-se das ações possessórias.

4. Tipo objetivo: adequação típica

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São elementos constitutivos do crime de esbulho:a) invasão de prédio (terreno ou edifício); b) empregode violência ou grave ameaça, ou concurso de maisde duas pessoas; c) fim especial de esbulhar.

A ação tipificada é invadir, que significa penetrar,ingressar, introduzir-se violenta ou hostilmente; noentanto, o mesmo verbo pode significar entrar ouintroduzir clandestinamente. Pode-se, na verdade,invadir determinado lugar não através de violência,mas ardilosa, astuciosa ou sorrateiramente. Afinal,essa possibilidade variada de interpretações levou olegislador a definir com precisão o sentido queestava emprestado ao verbo “invadir”,acrescentando somente que a invasão medianteviolência, grave ameaça ou com o concurso de maisde duas pessoas, com finalidade esbulhativa, seriaobjeto de proibição penal.

Com efeito, o esbulho possessório pode serexecutado com violência real (física) ou ficta (graveameaça) ou com a participação de, no mínimo, trêsp e s s o a s . Esbulho é a perda da posse, odesalojamento do possuidor. Assim, a invasãopacífica, isto é, sem violência de qualquer natureza,não é tipificada como crime; quem invade imóvelalheio, ainda que com a finalidade de esbulhar, massem empregar violência ou grave ameaça e sem fazê-

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lo mediante o concurso de mais de duas pessoas,não comete o crime de esbulho. A ilicitude desse tipode comportamento encontra resposta no CódigoCivil.

Esbulho, com o sentido de ocupação, que é aconcepção penalística do instituto, não encerra,necessariamente, a ideia de perpetuidade. Com efeito,nem sempre o esbulhador tem a intenção de instalar-se em definitivo no imóvel invadido, sem, contudo,descaracterizar o esbulho.

4.1 Violência à pessoa ou grave ameaça ouconcurso de mais de duas pessoas

A forma de execução, alternativa, com violência(vis corporalis) ou grave ameaça (vis compulsiva),ou mediante concurso de mais de duas pessoas. Naprimeira hipótese, exige-se violência à pessoa e não àcoisa. Na segunda, exige-se a participação de mais deduas pessoas; a nosso juízo, na concepção dolegislador, a reunião de mais de duas pessoas paraprática do esbulho representa uma espécie deviolência presumida.

Enfim, tudo o que dissemos sobre violência ougrave ameaça quando examinamos o crime de roubotem aqui inteira aplicação, sendo, portanto,

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desnecessário repeti-lo. Contudo, relativamente aoconcurso de pessoas, necessitamos algumasconsiderações, na medida em que, para caracterizar-se o esbulho sem violência ou grave ameaça, faz-senecessário o mínimo de três pessoas.

Quando o esbulho for praticado por meio doconcurso de mais de duas pessoas não se configurao concurso eventual de pessoas (coautoria ouparticipação), uma vez que se trata de elementartípica do modus faciendi da execução criminal, aindaque essa reunião de pessoas seja produto deeventualidade. Nesse caso, o concurso necessário,que não é circunstância qualificadora ou majoradorada pena, mas integra o próprio conteúdo dadescrição típica, constitui elementar caracterizadora,pode-se dizer, de uma espécie de violênciapresumida.

Para alguns autores (Magalhães Noronha,Fragoso, Regis Prado)5, esbulho sem violência exige,no mínimo, quatro pessoas (o autor e mais três).Parece-nos insustentável essa orientação, cujaexigência, adaptando-se o elemento subjetivo, jápoderia caracterizar uma quadrilha. Hungria, com aclarividência de sempre, sustenta ser suficiente onúmero de três concorrentes. Na verdade, o textolegal não exige que o invasor conte com o concurso

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de mais de duas pessoas, mas que a invasão sejaexecutada mediante o concurso de mais de duaspessoas.

Sem maiores considerações, que nos parecemdesnecessárias, adotamos a orientação minoritária,admitindo a suficiência de um mínimo de trêspessoas para configurar o crime de esbulho, quandoeste for praticado sem violência física ou graveameaça.

4.2 Esbulho civil e esbulho penal

Embora o Código Penal se utilize da definição deesbulho oferecida pelo direito civil, com ela não seconfunde. Na verdade, na concepção do CódigoCivil, a caracterização do esbulho exige que opossuidor perca a posse, isto é, seja dela afastado,ao passo que, para o Código Penal, é suficiente que afinalidade de esbulhar constitua o especial fim deagir, que, como todos sabemos, não precisaconcretizar-se. Nessa linha discordamos frontalmentedaqueles que sugerem, de lege ferenda, paraequiparar-se à previsão do Código Civil, acriminalização da simples turbação6.

O direito penal, no caso, é mais protetivo,

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satisfazendo-se com a simples existência do elementosubjetivo especial do tipo: o fim de esbulhar. Narealidade, há, pode-se afirmar, certa inversão depapéis dos dois ramos do direito, na medida em queo direito penal deve manter seu caráter subsidiário eintervir somente quando outros meios de controlesocial não funcionem. Em outros termos, somenteuma ofensa mais grave do bem jurídico que deveriaencontrar proteção no direito penal; no entanto,nesse caso, usando a linguagem do Código Civil, as imples turbação da posse já é criminalizada comoesbulho, enquanto para o direito civil é necessárioque a vítima seja desalojada da posse para configurartal esbulho. Nessas circunstâncias, estamos diantede uma injustificada criminalização, com evidenteviolação do princípio da ultima ratio.

4.3 Esbulho de imóvel do SFH

Se o imóvel esbulhado foi ou é objeto definanciamento do Sistema Financeiro da Habitação,incorrerá no esbulho possessório definido na LeiEspecial (art. 9º da Lei n. 5.741/71). Se o agentedesocupar o imóvel espontaneamente, antes dequalquer medida coativa, será isento de pena.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que não

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há esbulho possessório de unidade do SistemaNacional de Habitação quando a ocupação se dánaturalmente, por força de contrato celebrado com aCaixa Econômica Federal. O fato de ter o ocupante setornado, posteriormente, inadimplente não configurao esbulho possessório do art. 161 do Código Penal,nem o do art. 9º da Lei n. 5.741/717.

Na hipótese de invasão de terras da União,Estados ou Municípios, ver a Lei n. 4.947, de 6 deabril de 1966, art. 20.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo elementosubjetivo geral, que é o dolo, representado pelavontade livre e consciente de invadir violentamenteterreno ou edifício alheio8, além do elementosubjetivo especial do tipo, constituído pelo especialfim de praticar o esbulho possessório, ou seja, opropósito de colocar a vítima para fora do imóvel eocupá-lo. Assim, quando a invasão tiver comopropósito a simples turbação da posse, a condutaserá atípica, pois lhe faltará o especial fim deesbulhar, como exemplifica Paulo José da Costa Jr.:

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“se a invasão se der para colher frutos, forçar umaservidão de passagem, ou mesmo cortar algumasárvores, não estará caracterizado o crime. Configura aconduta uma turbação, não prevista em lei”9.

Não há previsão de modalidade culposa.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime de esbulho com a simplesinvasão, ainda que o esbulho não se concretize.Trata-se de crime formal; o esbulho, se ocorrer,representará apenas o exaurimento do crime, que jáse consumara com a efetiva invasão do imóvel.

Admite-se, em tese, a tentativa quando o sujeitoativo não consegue entrar no imóvel porcircunstâncias alheias a sua vontade.

7. Usurpação em concurso com violência

O § 2º do art. 161 determina que, se o sujeito ativo“usa de violência, incorre também na pena a estacominada”. Dois aspectos, fundamentalmente,demandam alguma reflexão: trata-se de concurso de

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crimes (que modalidade)? Qual sistema de aplicaçãode penas deve ser adotado?

Inicialmente, deve-se registrar que essa previsãosomente é aplicável quando a “violência empregada”constituir em si mesma crime, caso contrário nãohaverá para ela pena cominada. Por outro lado, deve-se ter presente que o uso de violência ou graveameaça, como tal, é elementar constitutiva do crimede esbulho. Nesse tipo penal, mesmo fora daviolência presumida (concurso de mais de duaspessoas), somente a violência que constituir em simesma crime excederá a mera função de elementarconstitutiva do esbulho. Nesse caso, a pena doesbulho deve ser cumulada com a penacorrespondente à infração penal constituída pelaviolência.

Qualquer das três figuras — alteração de limites,usurpação de águas ou esbulho possessório —praticada com uso de violência que constitua em simesma crime configura, certamente, concurso decrimes. No entanto, não se trata de concursomaterial10, como reiteradamente tem repetido adoutrina nacional. Em momento algum o texto legalsugeriu que se trata de concurso material, nãopassando de equivocada interpretação doutrinária.Não se pode esquecer que o que caracteriza o

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concurso material de crimes não é a pluralidade deinfrações, como ocorreria na hipótese em exame, massim a pluralidade de condutas, que, em princípio,não ocorre na ação única de invadir violentamenteimóvel alheio.

Ocorre o concurso material quando o agente,mediante mais de uma conduta (ação ou omissão),pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não. Narealidade, tem-se confundido concurso material decrimes com sistema do cúmulo material deaplicação de penas, o qual recomenda a soma daspenas de cada crime11, que são coisasabsolutamente distintas. O Código Penal utiliza osistema do cúmulo material de penas nas hipótesesde concurso material de crimes e concurso formalimpróprio (arts. 69 e 70, caput, segunda parte).

Assim, os crimes de usurpação previstos no art.161 praticados com violência que constitua em simesma crime configuram, em regra, concurso formal,quando forem objeto de ação de uma única e mesmaação, ainda que dividida em vários atos.

8. Pena e ação penal

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8.1 Penas cominadas

As penas cominadas são cumulativas nas trêsfiguras (alteração de limites, usurpação de águas eesbulho possessório): detenção, de um a seis mesese multa. Se o agente empregar violência responderátambém pelo crime correspondente, aplicando-se oprincípio do cúmulo material de penas. Ficamabsorvidas as vias de fato.

8.2 Pena e ação penal

Na propriedade particular e sem violência àpessoa (real), a ação penal é de exclusiva iniciativaprivada (§ 3º). Na hipótese contrária, a ação penal épública incondicionada.

1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 384.2 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 311.3 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 434.

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4 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 384.5 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 312;Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 385; Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro,cit., v. 2, p. 435.6 Julio Fabbrini Mirabete, Direito Penal, São Paulo, Atlas,1987, v. 2, p. 236. Na verdade, essa equivocada orientaçãovem desde Magalhães Noronha, quando os tempos eramoutros e se via o Direito Penal com outra função (MagalhãesNoronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 310).7 STJ, RHC 1636-0, rel. Min. Flaquer Scartezzini, DJU, 18maio 1992, p. 6986.8 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 495.9 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 496.10 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 314;Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7, p.94; Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 381.11 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 6.ed., v. 1, p. 526.

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CAPÍTULO X - SUÃPRESSO OU ALTERAÇÃO DE

MARCA EM ANIMAIS

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Somenteem animais já marcados. 4.2. Concursocom outros crimes. 4.3. Elementarestípico-normativas: “indevidamente” e“alheio”. 4.4. Significado e limite daslocuções “gado” ou “rebanho”. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Pena e açãopenal.

Supressão ou alteração de marca em animais

Art. 162. Suprimir ou alterar, indevidamente, emgado ou rebanho alheio, marca ou sinal indicativode propriedade:

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Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três)anos, e multa.

• V. art. 64 do Decreto-Lei n. 3.688/41 (Lei dasContravenções Penais).

1. Considerações preliminares

A supressão ou alteração de marca em animais,como infração penal, era completamentedesconhecida da legislação brasileira anterior, namedida em que o Código Criminal do Império (1930) eo Código Penal republicano de 1890 não seocupavam dessa infração penal especificamente.

Na verdade, o dispositivo em exame tem comoantecedente o Projeto Sá Pereira, que, num primeiromomento, considerava espécie de furto a conduta dequem “ferra, contraferra, assinala ou contra-assinalaanimal alheio” (art. 217). Posteriormente, referidodispositivo recebeu a seguinte redação: “Cometeráfurto o que ferrar ou contraferrar animal alheio comoutra marca, que não a do próprio dono, salvo se otiver feito a seu mando, ou de seu preposto” (art.186, § 2º). O Projeto Alcântara seguiu, com pequena

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variação, a mesma orientação do Projeto Sá Pereira,embora classificasse a mesma infração penal comovariante da apropriação indébita. Posteriormente, noentanto, a Comissão Revisora houve por bemrestringir o dispositivo para, incluindo-o na figura dausurpação, limitar sua abrangência à supressão oualteração de marca (ou sinal indicativo depropriedade) em animais de gado ou rebanhoalheio. A limitação operou-se em dois aspectos:excluiu-se a marcação de animais desmarcados, deum lado, e, de outro, a incriminação estácondicionada a animal integrante de gado ourebanho. Essa cautela levou em consideração quesomente quando violada a precaução do proprietáriorepresentada pela marca dos animais se justifica acriminalização da conduta.

2. Bem jurídico tutelado

Ao contrário das outras figuras de usurpação, noart. 162 o objeto da tutela penal não é a propriedadeimobiliária. Os bens jurídicos protegidos são a possee a propriedade de semoventes (bois, vacas,cavalos, carneiros, porcos etc., constitutivos degado ou rebanho), que são considerados, para o

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direito penal, coisas móveis, embora, para o direitocivil, possam, eventualmente, ser tratados comoimóveis (art. 43, III, do CC/16), por acessãointelectual, quando, por exemplo, imobilizados numprédio, para sua exploração industrial.

Convém destacar que o bem jurídico protegidonão é a marca ou sinal do animal em si mesmos, poisaqueles são apenas o meio de proteger ou identificara propriedade deste. Por isso, quem adquire animaise suprime ou altera a marca ou sinal que estestraziam, identificadores do proprietário anterior, nãocomete crime algum. Ademais, essa conduta nãoseria “indevida”, e os animais não mais seriam“alheios”. Mas, nesse caso, já se estariamexaminando elementos especiais da ilicitudeintegrantes da tipicidade.

O objeto material sobre o qual recai a açãodelituosa, por sua vez, é a marca ou sinal indicativode propriedade. Assim como na indústria e nocomércio a marca protege o produto, no animal elatem a mesma finalidade, advertindo a todos quanto aquem ele pertence.

3. Sujeitos ativo e passivo

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Sujeito ativo pode ser pessoa, sem condiçãoespecial, tratando-se, portanto, de crime comum.Acreditamos que o detentor em nome de outremtambém pode ser sujeito ativo desse crime.Exemplifica, com acerto, Luiz Regis Prado, “oadministrador que dolosamente suprime a marca dogado ou rebanho, com o propósito de dificultar aidentificação da propriedade, excluindo a hipóteseem que usurpa a marca e inverte o título de posse, jáque nesse caso ter-se-á apropriação indébita”1.

Sujeito passivo, igualmente, pode ser qualquerpessoa, física ou jurídica, desde que dona dosanimais objeto da ação.

4. Tipo objetivo: adequação típica

As condutas tipificadas são suprimir e alterar.Suprimir significa fazer desaparecer, retirar; alterarquer dizer modificar, transformar, mudar, em gado ourebanho alheios, indevidamente, marca ou sinalindicativos de propriedade. Enfim, qualquer das duasações consiste em modificar o estado de fato anteriorrelativamente à sinalização indicativa do animal. Coma ação de alterar não é necessária mudança completada marca, sendo suficiente para a tipificação do crime

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a mudança de algum traço que a desfigure.Marca ou sinal são meios identificadores da

origem e propriedade de animais. Os proprietáriosrurais, no entanto, são criativos na utilização deoutros símbolos ou figuras para identificar suasmarcas. Por isso, além da marca, pode ser objeto daação qualquer outro sinal que identifique apropriedade, normalmente localizado nos chifres ouno focinho do animal.

4.1 Somente em animais já marcados

A conduta incrimina a supressão ou alteraçãosomente de animais já marcados, sendo atípica aconduta executada em animais ainda nãoassinalados, isto é, “não marcados”. As condutas“suprimir” e “alterar” não deixam dúvida,pressupõem a existência de marca ou sinal, poissomente se pode suprimir ou alterar algo existente.Nesse sentido, equivocava-se Magalhães Noronhaquando sugeria que o crime poderia ser praticadomesmo em animal desmarcado2.

Marca é o distintivo caracterizador dapropriedade; normalmente é constituída pelas iniciaisdo proprietário; em outros termos, marca é a

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caracterização do animal com ferro candente ou,modernamente, com a utilização de algumasubstância química. Sinal, além da marca, também éobjeto material da ação incriminada. Sinal é todo equalquer distintivo artificial, que não se confundacom a marca, normalmente localizado no focinho ounos chifres dos animais.

Embora a Lei n. 4.7143, de 29 de junho de 1965,regule as dimensões e a localização das marcas emanimais, bem como seu registro, sua observância éirrelevante para a configuração do crime, sendosuficiente que possam ser reconhecidas comoidentificadores da propriedade alheia. Com efeito, éindiferente que a marca ou sinal tenham sidoregistrados em órgão próprio, como prevê a Lei n.4.714/65, para caracterizar o crime, pois o que seprotege penalmente não é a marca em si ou por simesma, mas seu sentido, indicativo da propriedadealheia. É suficiente que simbolizem a propriedade dealguém e venham a ser, indevidamente, suprimidosou alterados. Contudo, convém ter presente que amarca, por si só, não constitui prova incontestávelda propriedade, até porque existem animais nãomarcados cuja propriedade é incontestável, ouanimais marcados que podem não pertencer ao donoda marca.

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4.2 Concurso com outros crimes

A alteração ou supressão de marcas em animaisalheios não se confunde com outros crimes, como ofurto, por exemplo, porque não há subtração da coisaalheia; com a apropriação indébita (mesmo quandose encontre em sua posse), porque ainda não há aefetiva apropriação; com o estelionato, porque a“fraude” não é seguida pela obtenção imediata eefetiva de vantagem ilícita.

Contudo, se qualquer das condutas descritas noart. 162 for meio para a prática de outro crime, comofurto, estelionato, apropriação indébita, aquele ficaráabsorvido, o que não impede, a nosso juízo, eventualconcurso com outro crime. Na verdade, a subtraçãodos animais (furto) e posterior alteração da marcaoriginam o concurso de crimes, embora, em regra,tenha sido considerado post factum impunível.

Da mesma forma, quem compra os animais e alteraa marca para colocar a sua não pratica o crime, nãoapenas por ter o direito de fazê-lo, mas também porfaltar a elementar “alheio”.

4.3 Elementares típico-normativas:“indevidamente” e “alheio”

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A ação de alterar ou suprimir marca ou sinaldeve incidir sobre animais alheios, isto é, nãopertencentes ao sujeito ativo, sendo irrelevante quese encontrem em propriedade da vítima, do sujeitoativo ou de terceiro.

O elemento normativo indevidamente caracterizatipo aberto. Assim, quando autorizada ou permitida aalteração ou supressão da marca ou sinal, ainda quecontrariada pelo proprietário, não constitui crime,faltando-lhe a elementar normativa, “indevidamente”.Situação semelhante ocorre com quem adquire umrebanho, por exemplo, e suprime a marca anterior,apondo a sua; evidentemente se trata decomportamento atípico, pois, pode-se afirmar, aalteração ou supressão, nesse caso, é legítima, ouseja, devida.

4.4 Significado e limite das locuções “gado” ou“rebanho”

Questão relevante, porém, será interpretar osentido ou abrangência dos coletivos gado ourebanho contidos no texto legal, que ao longo dotempo têm recebido definições díspares, das quaisdestacamos algumas, começando pela emitida porNélson Hungria: “Por gado ou rebanho se entende

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toda pluralidade gregária de quadrúpedes quecostumam ser criados ou mantidos em pastos,campos, retiros ou currais. Quando os animais sãode grande porte (bois, cavalos, muares), fala-se emgado; quando de pequeno porte (carneiros, cabritos,porcos etc.), prefere-se o termo rebanho”4. ParaMagalhães Noronha, “gado é substantivo que indicaanimais geralmente criados nos campos eempregados nos serviços da lavoura, para finsindustriais, comerciais ou consumo doméstico.Rebanho, particularmente, designa porção de gadolanígero, de animais guardados por pastor; masindica também reunião, multidão, ajuntamento deanimais”5. Para Bento de Faria, por sua vez, “gado— é denominação que inculca os animais geralmentecriados no campo e destinados ao consumo e aserviços industriais ou comerciais; rebanho — é amultidão de — gado”6.

Resumindo, gado ou rebanho são sinônimos que,genericamente, significam uma pluralidade deanimais quadrúpedes (bois, vacas, cavalos,carneiros, ovelhas etc.). Na verdade, a nosso juízo, overdadeiro sentido de gado ou rebanho, se apresentaou não significado distinto, parece-nos irrelevante. Oque importa efetivamente é que ambos são

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substantivos coletivos, isto é, implicam mais de umanimal. No entanto, isso não quer dizer que para aconfiguração do crime seja necessário que asupressão ou alteração de marca ou sinal devaocorrer em mais de um animal, mas que o animal quetiver a marca alterada ou suprimida deve integrar orebanho ou gado de alguém7. Assim, a alteração ousupressão de marca em apenas um animal que seencontre isolado não tipifica esse crime, porque, emtais circunstâncias, o animal pode ser facilmenteidentificado, pois somente quando integra umrebanho pode existir o perigo de passar àpropriedade alheia8.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo geral é o dolo, representadopela vontade livre e consciente de alterar ou suprimirmarca ou sinal em animais alheios. O sujeito ativo,além da vontade de produzir o resultado da alteraçãoou supressão da identificação do gado ou rebanhoalheio, deve, obrigatoriamente, ter consciência deque se trata de animal pertencente a outrem, e,ademais, de que essa ação é indevida, isto é,

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desautorizada, ilegítima, não permitida. Odesconhecimento de qualquer das duascircunstâncias — alheia ou indevida — podecaracterizar erro de tipo e, por extensão, afastar atipicidade em razão da vontade viciada.

Implicitamente, há a exigência do elementosubjetivo especial do tipo, constituído pelo especialfim de provocar dúvida sobre a propriedade dosanimais. Como sustentava Magalhães Noronha, “énecessário que o agente tenha o escopo deapoderar-se dos semoventes: ele suprime ou altera amarca, para depois irrogar a propriedade”9. Nesseparticular, a redação primitiva do Projeto do CódigoPenal de 1940 era mais clara, pois destacavaexpressamente o elemento subjetivo especial doinjusto, nos seguintes termos: “para dele (isto é, dogado ou rebanho) se apropriar, no todo ou em parte”.Com essa supressão da redação final, para configuraro crime, é suficiente criar a possibilidade deusurpação da propriedade de animais alheios.

Por isso, como afirmava Fragoso, praticarqualquer das condutas tipificadas por ódio, vingançaou provocação poderia tipificar crime de dano, mascertamente não essa infração penal.

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6. Consumação e tentativa

Consuma-se com a simples supressão oualteração de marca ou sinal, independentemente dasconsequências, ainda que o fato se dê em relação aapenas um animal, desde que integrante de algumrebanho. Admitimos a consumação em um únicoanimal, ao contrário do entendimento de parte dadoutrina10, pois a expressão “em gado ou rebanhoalheio” não significa que a ação deve incidir sobreuma coletividade animal, como se chega a afirmar,mas simplesmente que deve tratar-se de animalpertencente a gado ou rebanho alheio, isto é,pertencente a outrem.

É admissível, em princípio, a tentativa, quando,por exemplo, mesmo realizando qualquer dascondutas descritas no tipo penal, o sujeito ativo, porcircunstâncias alheias a sua vontade, não produz oresultado pretendido. Nessa linha, MagalhãesNoronha11 afirmava que as ações de suprimir oualterar são fragmentáveis, podendo o agente serobstado de prosseguir antes de consumar sua ação.

7. Classificação doutrinária

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Trata-se de crime comum (porque não exigecondição especial do sujeito ativo); formal, namedida em que, embora descreva um resultado, nãonecessita de sua produção para consumar-se;comissivo (é da essência dos próprios verbosnucleares, que só podem ser praticados por meio deuma ação positiva); doloso (não há previsão legalpara a figura culposa); de forma livre (pode serpraticado por qualquer meio, forma ou modo);instantâneo (a consumação opera-se de imediato,não se alongando no tempo); unissubjetivo (podeser praticado, em regra, apenas por um agente);plurissubsistente (pode ser desdobrado em váriosatos, que, no entanto, integram a mesma conduta).

8. Pena e ação penal

Aplicam-se, cumulativamente, as penascominadas de detenção, de seis meses a três anos, emulta. A ação penal é pública incondicionada,sendo desnecessária qualquer manifestação doofendido, a despeito da disponibilidade dopatrimônio.

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1 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 441.2 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 316: “Domesmo modo, pode praticar-se o crime, tendo por objetoanimal desmarcado, apondo o delinquente sua marca”.3 A Lei n. 4.714/65 determina que o gado bovino somentepode ser marcado a ferro candente na cara, no pescoço e nasregiões localizadas abaixo da linha que liga as articulaçõesfêmuro-rótolo-tibial e úmero-rádio-cubital, com o objetivo depreservar a utilidade máxima do couro (art. 1º). Determinaque a marca não pode ultrapassar uma região circular cujodiâmetro não supere 11 cm.4 Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7, p. 98.5 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 318.6 Bento de Faria, Código Penal brasileiro comentado, cit.,v. 5, p. 73.7 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 393.8 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 393.9 Magalhães Noronha, Direito Penal, v. 2, p. 317.10 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 360.

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11 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 318.

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CAPÍTULO XI - DO DANO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6. Danoqualificado. 6.1. Com violência à pessoaou grave ameaça. 6.1.1. Dano praticadocom violência: concurso material decrimes ou cúmulo material de penas. 6.2.Com emprego de substância inflamávelou explosiva, se o fato não constituicrime mais grave. 6.3. Contra opatrimônio da União, Estado, Município,empresa concessionária de serviçospúblicos ou sociedade de economiamista. 6.4. Por motivo egoístico ou comprejuízo considerável para a vítima.6.4.1. Por motivo egoístico. 6.4.2. Comprejuízo considerável. 7. Consumação etentativa. 8. Classificação doutrinária. 9.Pena e ação penal.

Capítulo IV

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DO DANO

Dano

Art. 163. Destruir, inutilizar ou deteriorar coisaalheia:

Pena — detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, oumulta.Dano qualificado

Parágrafo único. Se o crime é cometido:

I — com violência à pessoa ou grave ameaça;

II — com emprego de substância inflamável ouexplosiva, se o fato não constitui crime mais grave;

III — contra o patrimônio da União, Estado,Município, empresa concessionária de serviçospúblicos ou sociedade de economia mista;

• Inciso III com redação determinada pela Lei

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n. 5.346, de 3 de novembro de 1967.

IV — por motivo egoístico ou com prejuízoconsiderável para a vítima:

Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 3 (três)anos, e multa, além da pena correspondente àviolência.

1. Considerações preliminares

A tutela penal do dano remonta à Antiguidadequando era considerado crime privado (damnuminjuria datum). Era previsto na Lei de Aquilia e naLei das XII Tábuas1. O objeto material do crime dedano, em Roma, limitava-se às coisas imóveis, salvoo dano produzido em animais, que já era punidodesde a Lei das XII Tábuas. A peculiaridade especialé que o crime de dano era punido tanto a título dedolo quanto de culpa. Esses critérios foram mais oumenos mantidos no direito intermédio.

O reconhecimento do crime de danoindistintamente tanto para bens imóveis quanto para

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bens móveis já é produto da modernidade, queafastou também o princípio aquiliano, que paraesse crime não fazia distinção entre dolo e culpa. Apartir de então, o dano culposo restou relegado paraa órbita do ilícito civil, onde deverá encontrar areparação adequada. O dano foi igualmente“separado dos crimes de perigo extensivo, deixandoestes o quadro dos crimes patrimoniais, paraconstituírem uma classe autônoma, sob a rubricaespecial de ‘crimes de perigo comum’ ou ‘crimescontra a incolumidade pública’”2.

Nas Ordenações Filipinas o dano integrava váriostítulos esparsos no Livro V, criminalizando açõesrelativas ao corte de árvores (Título LXXV) e à mortede animais (Título LXXV)3. O Código Criminal doImpério (1830) disciplinou o crime de dano (art. 266),distinguindo aquele praticado contra bens públicos eo cometido contra bens particulares (art. 178).Equiparou, equivocadamente, ao crime de dano aalteração de limites e o esbulho possessório (art.267). O Código Penal de 1890 (republicano)contemplou o dano em diversos dispositivos (arts.326 a 329) e, a exemplo do diploma anterior, mantevea distinção entre o dano contra bens públicos eparticulares, além de também considerar dano aalteração de limites e a usurpação de águas.

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Finalmente, o Código Penal de 1940, cuja ParteEspecial ainda se encontra em vigor, com técnicasuperior, afastou os equívocos cometidos em razãoda semelhança do dano com outras figuras penais. Oatual diploma legal disciplina o dano nas seguintesespécies: dano simples (art. 163); dano qualificado(art. 163, parágrafo único); introdução ou abandonode animais em propriedade alheia (art. 164); danoem coisa de valor artístico, arqueológico ouhistórico (art. 165); alteração de localespecialmente protegido (art. 166).

Preferimos, no entanto, por razões puramentedidáticas, examinar em capítulos separados cadafigura delituosa, com exceção do dano simples equalificado, não havendo nenhuma razão paraabordá-los separadamente.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é o patrimônio, públicoou privado, tanto sob o aspecto da posse quanto dapropriedade. Nesta previsão legal, ao contrário damaioria das infrações contra o patrimônio, não existeo animus lucrandi, que apenas eventual eexcepcionalmente pode existir, desde que seja

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indireto ou mediato.O elemento normativo “alheia” contido no tipo

penal significa tanto a coisa que pertence a outremcomo a que se encontra na posse de terceiro.

O objetivo da norma é preservar a integridade e aintegralidade dos bens ou interesses para oproprietário ou possuidor, abrangendo não apenas ovalor substancial como também a utilidade quepossam ter para estes (que não deixa de ser valor).Nessa linha já pontificava Manzini, afirmando que:“O objeto específico da tutela penal, em relação aocrime de dano do art. 635, é o interesse públicoconcernente à inviolabilidade do patrimôniomobiliário ou imobiliário, ofendido por fato quesuprime ou diminui a utilização ou o preço da coisaalheia...”4.

O objeto material do crime de dano é coisa alheia,móvel ou imóvel e corpórea. Corpórea, pois somenteesta pode ser fisicamente danificada; deve seralheia, pois, tratando-se de patrimônio, tem naturezade bem disponível, e dele o proprietário pode dispor,usar e gozar; ademais, a res nullius e a res derelictanão podem ser objeto do crime de dano.

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3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, semqualquer condição especial. O proprietário da coisa,móvel ou imóvel, como regra, não pode ser sujeitoativo do crime de dano, mesmo que esta se encontrelegitimamente em poder de terceiro (locatário,comodatário, depositário etc.)5. O tipo penal emexame pune o dano produzido sobre coisa alheia ecoisa própria, evidentemente, não pode serconsiderada alheia. O possuidor, por sua vez, podeser sujeito ativo do crime de dano, deteriorando,inutilizando ou destruindo a propriedade de terceiro,que mantém sua posse indireta.

O titular da nua propriedade ou do domíniodireto, no entanto, poderá ser sujeito ativo do crimede dano contra o usufrutuário ou enfiteuta. Ocondômino, igualmente, pode ser sujeito ativo dodano que destrói, inutiliza ou deteriora a coisacomum, exceto se se trata de coisa fungível e nãoultrapassar a quota a que tem direito, a exemplo doque ocorre com o furto de coisa comum.

Sujeito passivo, normalmente, é o proprietário,mas não está excluído o possuidor da coisa(aquisições com alienações fiduciárias, reservas dedomínios, longas posses mansas e pacíficas etc.).

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4. Tipo objetivo: adequação típica

A conduta tipificada é destruir (eliminar, fazerdesaparecer), inutilizar (tornar imprestável, inútil) oudeteriorar (estragar, arruinar)6. O objeto material docrime de dano é coisa alheia, corpórea, que pode sermóvel ou imóvel. O dano produzido pode ser total ouparcial. A coisa perdida também pode ser objeto docrime de dano, pois continua sendo alheia. Aimaterialidade do dano moral o exclui da esfera deproteção penal, restando confinado ao âmbito daresponsabilidade civil.

N a destruição, a coisa deixa de existir em suaindividualidade, ainda que subsista a matéria que acompõe (por exemplo: matar um animal, estilhaçaruma vidraça), ou também quando venha adesaparecer, tornando-se inviável sua recuperação.N a inutilização, a coisa não é destruída; perdesomente a adequação ao fim a que se destinava,desaparecendo sua utilidade, sem perdercompletamente sua individualidade. Deteriorar tem osignificado de estragar, enfraquecer sua essência,diminuindo seu valor ou utilidade, sem destruí-la ouinutilizá-la. Na deterioração a coisa sofre uma avariasubstancial, embora não se desintegre totalmente,restando apenas diminuída sua utilidade ou seu valor

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econômico7. Pelo poder de síntese de MagalhãesNoronha, vale a pena ser transcrito seu magistério:“A destruição diz respeito, em geral, à ação que recaisobre a coisa de modo que a faça perder a essênciaou forma primitivas; atentando contra sua existência.A deterioração implica, em especial, ideia deadulteração. A coisa não é destruída, não se lhe tira aexistência, porém torna-se menos própria ao fim aque é destinada, piora-se ou altera-se sua condiçãoou estado. A inutilização vai além da deterioração,por isso que produz o efeito de tornar estéril a coisa,de tirar a sua utilidade. Não é mister serem integrais:a danificação parcial é também crime”8. Enfim,qualquer das condutas incriminadas (conteúdovariado) implica diminuição de valor e de utilidadeda coisa alheia.

Como o dano é um crime contra o patrimônio, oresultado danoso deve sempre ser de naturezapatrimonial, representado pela perda ou diminuiçãode valor econômico ou de utilidade. No entanto, ésuficiente que a coisa alheia tenha valor de uso,independentemente de eventual valor pecuniário. Adiminuição da utilidade da coisa, a despeito daausência de valor comercial, será o bastante paracaracterizar o dano penalmente criminalizado. Foradessas hipóteses, isto é, se não houver prejuízo para

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o ofendido, não se pode falar em crime de dano.Decorrendo da ação do agente melhoria que eleve

o valor ou a utilidade da coisa alheia, não se podefalar em crime. Ora, a ação incriminada é exatamentecontrária à que aumenta o valor econômico ou autilidade da coisa alheia. No entanto, não se podenegar que a intervenção alheia em uma obra de arte,uma criação artística, ao desnaturá-la, ainda que,teoricamente, a tenha melhorado, pode, em termosautorais, representar sim um prejuízo, ao retirar-lhe aautenticidade e a originalidade, danificando, enfim,uma criação que é, ninguém desconhece, protegidapor lei. Exemplo clássico nesse sentido é o lembradopor Magalhães Noronha, do pintor ou escultor quefaz na obra de outro modificações que a aperfeiçoamou a aprimoram. Em princípio, não comete crime dedano; no entanto, não se pode ignorar a violação daautenticidade e originalidade da obra, além doaspecto subjetivo, uma vez que, como destacavaMagalhães Noronha, “a questão, aliás, estáestreitamente ligada ao dolo do agente, circunstânciaa que juristas que andam às testilhas, neste ponto,não atentam”9.

Normalmente, os autores, quando abordam ocrime de dano, olvidam-se de examinar a necessidaded o nexo causal entre a ação do sujeito ativo e o

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dano, uma vez que aquela será a causa e este oresultado, independentemente.

A doutrina ao longo do tempo tem criticado afalta de tipificação da ação de fazer desaparecercoisa alheia, quando não houver perecimento10.Contrariamente, no entanto, Hungria, adotandoposicionamento não seguido pela maioria,comparava o fazer desaparecer com destruição e,nesse sentido, pontificava: “Como tal também seentende, por força de compreensão, o fazerdesaparecer uma coisa, de modo a tornar inviável asua recuperação (ex.: atirando-a a um abismoimpraticável)”11. Essa postura de Hungria levou àseguinte crítica fulminante de Magalhães Noronha:“Se assim fosse, a lei teria sido redundante nosdispositivos invocados (referia-se aos arts. 305 e356). Dando-nos razão, o Código vindouro, ao tratardo delito, diz taxativamente: ‘Destruir, inutilizar,deteriorar ou fazer desaparecer coisa alheia (art.175)’”12.

Na verdade, com inteira razão, MagalhãesNoronha reclamava da deficiência da descrição docrime de dano, pois também produz odesaparecimento da coisa, que, entretanto, não seenquadra na redação do artigo13. Imagine-se que

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alguém, para prejudicar outrem, faz desaparecer umobjeto de valor deste. Furto não é, pois não há oanimus furandi. Não se pode negar, contudo, que háofensa ao patrimônio do ofendido, que se vê privadodaquele objeto valioso. Será dano? Inegavelmente,sim! Mas se enquadraria no enunciado do art. 163 denosso Código Penal? À evidência que não. Vejamos,pois: não se pode afirmar que o agente destruiu oobjeto, que o deteriorou ou o inutilizou. Não odestruiu, porque o objeto continua a existir;certamente não o deteriorou; e não o inutilizou,porque ele continua com a mesma utilidade quetinha, e dela desfrutará quem dele se apossar.

O eventual “desaparecimento” que pode decorrerda “destruição” não se confunde com o fazerdesaparecer, pois naquela hipótese há operecimento da coisa, ou seja, sua desintegraçãomaterial, seu desmanche, sua decomposição, que temcomo consequência a imprestabilidade, algo queinocorre com a ação de fazer desaparecer, pois acoisa alheia permanece intacta, inteira, completa,perfeitamente útil para a finalidade a que se destina.Por isso, deve-se saudar a previsão do Anteprojetode Código Penal, que acrescenta essa figura nadescrição do crime de dano, com a seguinte redação:“Art. 192. Destruir, inutilizar, deteriorar ou fazer

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desaparecer coisa alheia”.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo do crime de dano é o dolo,representado pela vontade livre e consciente decausar prejuízo a terceiro, não havendo fim especialde agir, em que pese o entendimento de Hungria14.Em nossa concepção, é desnecessário o“concomitante propósito de prejudicar oproprietário” ou possuidor do bem ou interessedanificado15. A produção de dano é criminalizadaporque gera um prejuízo desautorizado a terceiro.Enfim, é necessário que o dano seja um fim em simesmo.

São, em princípio, irrelevantes os motivos quelevaram o agente a produzir o dano; o próprio fim delucro, desde que indireto e eventual, pode orientar aconduta do agente. Não se pode negar, é verdade,que nem sempre o crime de dano é alheio a umafinalidade ou proveito econômico, desde que nãoconstitua um fim especial e imediato, mas desde queseja a consequência natural, indireta ou mediata daação do agente. Ou seja, o proveito econômico não

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deve ser um fim em si mesmo, mas decorrente deoutro acontecimento, embora por ele produzido. Paraexemplificar, nada melhor que trazer à colaçãoaqueles casos sugeridos por Hungria: “... no caso doferreiro que destrói o alambique do fabricante deaçúcar, na esperança de obter a encomenda de outro;ou no do aficionado do turf que envenena o cavalofavorito, para aumentar a probabilidade de êxito docavalo que apostou; ou mesmo no do indivíduo quecorta árvore secular do prédio vizinho paraproporcionar melhor vista e, portanto, maior valor aopróprio prédio”16.

No entanto, o especial fim de agir, quando for omóvel orientador da conduta do agente, poderádesnaturar o crime de dano, dando-lhe outrafisionomia, especialmente porque não se podeolvidar que o dano pode ser, e frequentemente é,meio de execução ou elementar de outro crime. Naverdade, desde que o dano deixe de ser um fim em simesmo, passando a ser meio ou modo para executarou realizar outro crime, desconfigura-se como crimeautônomo, passando a integrar uma figura complexaou progressiva de outra infração penal. Passando-seuma vista d’olhos em nosso Código Penal,encontrar-se-ão inúmeros exemplos do queacabamos de afirmar: furto com destruição ou

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rompimento de obstáculo (art. 155, § 4º, I);destruição de tapumes (art. 161); sabotagem (art.202, in fine); violação de sepultura com violência àcoisa (art. 210); destruição de prova documental(art. 305) etc.

Por outro lado, o dano pode constituir elementarde outros tipos penais, especialmente aqueles queintegram o rol das infrações penais contra aincolumidade pública (que acarretam perigocomum), tais como incêndio, inundação, explosão,desmoronamento.

Por fim, quando o dano for causado para evitarou impedir a prova de autoria de outro crimepatrimonial (v. g., furto, roubo, apropriação indébitaetc.), praticado pelo mesmo agente, será absorvidopor aquele. O dano, convém destacar, é sempreabsorvido, nunca absorvente.

6. Dano qualificado

O modus operandi, no crime de dano, podeapresentar particularidades que representam maiorgravidade na violação do patrimônio alheio,tornando a conduta mais censurável e, por issomesmo, merecedora de maior punibilidade, quer pelo

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maior desvalor da ação, quer pelo maior desvalor doresultado.

Essas particularidades podem assumir diversosgraus de intensidade, recebendo, de acordo com suagravidade, a qualificação de agravantes, majoranteso u qualificadoras. Observando o princípio dareserva legal, optou-se por estabelecer taxativamenteaquelas circunstâncias que, por sua gravidade,tornam o crime qualificado, e que, a rigor,constituem novo tipo penal, derivado mas autônomo,com novos parâmetros sancionatórios, bem maisgraves, distintos da figura fundamental — danosimples.

A graduação do injusto penal observa sua maiorou menor danosidade, que é representada, comodissemos, ora pelo desvalor da ação, ora pelodesvalor do resultado. Inegavelmente, areprovabilidade é maior por parte de quem utilizameios de excepcional gravidade para produzir maiordano ao patrimônio alheio (emprego de substânciainflamável ou explosiva); ou emprega violência àpessoa ou grave ameaça, por meio das quais o“dano” vai além do simples patrimônio para atingir aprópria pessoa humana; outras vezes, o objetomaterial do dano assume maior dimensão, comoocorre com o patrimônio público etc.

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A presença de apenas uma delas é suficiente paraqualificar o crime, mudando sua capitulação e,substancialmente, sua punição; eventual concursode duas ou mais qualificadoras não modifica a penaabstratamente cominada; contudo, deve serconsiderada na medição da pena, ou seja, uma delas,a mais grave ou mais bem comprovada nos autos,servirá para estabelecer a pena-base, fixando o marcodo tipo penal derivado (qualificado), enquanto asdemais devem ser trabalhadas na operaçãodosimétrica da pena, visando encontrar o resultadodefinitivo.

Nesse crime, as qualificadoras, com exceção domotivo egoístico, são de natureza objetiva e, porconseguinte, comunicam-se aos coautores, nostermos do art. 30 do Código Penal. Nas figurasqualificadas a pena de multa é aplicadacumulativamente com a pena privativa de liberdade,ao contrário das figuras simples, em que as mesmaspenas são aplicadas alternativamente. Façamos, aseguir, uma análise individualizada dessaselementares definidoras de novo tipo penal, o danoqualificado.

6.1 Com violência à pessoa ou grave ameaça

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O fundamento político-criminal da qualificadorareside na maior gravidade do injusto, pois essemodus operandi — com violência ou grave ameaça— amplia consideravelmente o desvalor da ação,justificando sua maior punibilidade. Ao praticar ocrime, dessa forma, o agente ofende outros bensjurídicos, como a liberdade individual ou aincolumidade pública, podendo, inclusive, constituircrime autônomo mais grave.

Somente a violência contra a pessoa qualifica odano. A violência e a grave ameaça podem serexercidas contra outra pessoa que não a proprietáriaou possuidora do bem danificado. A violência ougrave ameaça tanto podem ser utilizadas durante aexecução do crime como para assegurar suaconsumação. Somente a empregada após aconsumação do dano não o qualifica.

Tanto a violência quanto a grave ameaça devemvisar a prática do dano, isto é, devem ser o meioutilizado para a produção do prejuízo. Por isso, nãose pode reconhecer a qualificadora quando evidenteque a violência praticada não teve a finalidade depossibilitar a prática do crime de dano, nem foiexercida pelo agente como meio para assegurar suaexecução. Se, por exemplo, o agente, após praticadoo dano, sendo surpreendido pela vítima, agride-a,

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produzindo-lhe lesões corporais, não se tratará dedano qualificado pela violência ou grave ameaça.Nessa hipótese, responde pelo crime de danosimples em concurso material com o crime de lesõescorporais.

No entanto, não há necessidade de que o sujeitopassivo da violência seja o mesmo do dano, sendosuficiente a existência de relação de causa e efeito oude meio e fim entre ambos. O crime de dano, enfim,pode ser, eventualmente, daqueles que se poderiamchamar de crime de dupla subjetividade passiva,quando são vítimas, ao mesmo tempo, doisindivíduos, titulares de bens jurídicos distintos.

De plano, deve-se destacar que a ameaça (art.147) e as vias de fato (art. 21 da LCP) são absorvidasp e lo dano qualificado descrito neste dispositivo(art. 163, parágrafo único, I).

Mais uma vez, neste dispositivo, o legisladorequiparou a violência à grave ameaça, dando-lhes,juridicamente, a mesma importância.

Violência à pessoa consiste no emprego de forçacontra o corpo da vítima, e não contra o própriopatrimônio que está sendo objeto do dano. Paracaracterizá-la é suficiente que ocorra lesão corporalleve ou simples vias de fato. O termo “violência”empregado no texto legal significa a força física,

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material, a vis corporalis. A violência pode serproduzida pela própria energia corporal do agente,que, no entanto, poderá preferir utilizar outros meios,como fogo, água, energia elétrica (choque), gasesetc.

Ameaça grave (violência moral) é aquela capaz deatemorizar a vítima, viciando-lhe a vontade,impossibilitando sua capacidade de resistência. Agrave ameaça objetiva criar na vítima o fundadoreceio de iminente e grave mal, físico ou moral, tantoa si quanto a pessoas que lhe sejam caras. Éirrelevante a justiça ou injustiça do mal ameaçado,na medida em que, utilizada para a prática de crime,torna-se também antijurídica.

Mediante grave ameaça constitui forma típica da“violência moral”, é a vis compulsiva, que exerceforça intimidativa, inibitória, anulando ou minando avontade e o querer do ofendido, procurando, assim,inviabilizar eventual resistência da vítima. Naverdade, a ameaça também pode perturbar,escravizar ou violentar a vontade da pessoa, como aviolência material. A violência moral podematerializar-se em gestos, palavras, atos, escritos ouqualquer outro meio simbólico. Mas somente aameaça grave, isto é, aquela ameaça queefetivamente imponha medo, receio, temor na vítima,

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e que lhe seja de capital importância, opondo-se asua liberdade de querer e de agir.

O mal ameaçado pode consistir em dano ou emsimples perigo, desde que seja grave, impondo medoà vítima, que, em razão disso, sente-se inibida,tolhida em sua vontade, incapacitada de oporqualquer resistência ao sujeito ativo. No entanto, édesnecessário que o dano ou perigo ameaçado àvítima seja injusto, bastando que seja grave. Naverdade, a injustiça deve residir na ameaça em si enão no dano ameaçado.

6.1.1 Dano praticado com violência: concursomaterial de crimes ou cúmulo material depenas

Quando da violência empregada para produzir odano resultarem lesões corporais, haverá aaplicação cumulativa das penas correspondentesao dano qualificado pela violência e as decorrentesdas lesões corporais.

Registramos, desde logo, que consideramosgrande equívoco afirmar que a violência implicaconcurso material de crimes17, pois se ignora averdadeira natureza desse concurso. O festejadoHeleno Fragoso também incorria nesse deslize

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quando afirmava: “Haverá sempre concurso materialentre o dano e o crime resultante da violência,aplicando-se cumulativamente as penas”18.

O fato de determinar-se a aplicação cumulativade penas não significa que se esteja reconhecendoaquela espécie de concurso, mas apenas que seadota o sistema do cúmulo material de penas19, queé outra coisa.

Com efeito, o que caracteriza o concurso materialde crimes não é a soma ou cumulação de penas,como prevê o dispositivo em exame, mas apluralidade de condutas, pois no concurso formalimpróprio, isto é, naquele cuja conduta única produzdois ou mais crimes, resultantes de desígniosautônomos, as penas também são aplicadascumulativamente. Ora, esse comando legal — art.163, parágrafo único —, determinando a aplicaçãocumulativa de penas, não autorizou o intérprete aconfundir o concurso formal impróprio com oconcurso material. Na verdade, concurso de crimese sistema de aplicação de penas são institutosinconfundíveis; o primeiro relaciona-se à teoria docrime, e o segundo, à teoria da pena. Por isso aconfusão é injustificável20.

Concluindo, o art. 163, parágrafo único, não criou

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uma espécie sui generis de concurso material, masadotou tão somente o sistema do cúmulo materialde aplicação de pena, a exemplo do que fez emrelação ao concurso formal impróprio (art. 70, 2ªparte). Assim, quando a violência empregada naprática do crime de dano constituir em si mesmaoutro crime, havendo unidade de ação e pluralidadede crimes, estaremos diante de concurso formal decrimes. Aplica-se, nesse caso, por expressadeterminação legal, o sistema do cúmulo material deaplicação de pena, independentemente da existênciad e desígnios autônomos. A aplicação de penas,mesmo sem a presença de desígnios autônomos,constitui uma exceção de penas prevista para oconcurso formal impróprio. Mas esta é uma normagenérica, prevista na Parte Geral do Código Penal(art. 70, 2ª parte); aquela constante do dispositivo emexame (art. 163, parágrafo único) é norma específicacontida na Parte Especial do diploma legal, onde seindividualizam as normas genéricas ao destiná-las acada figura delituosa.

No entanto, a despeito de tudo o que acabamosde expor, nada impede que, concretamente, possaocorrer concurso material do crime de dano comoutros crimes violentos, como acontece comquaisquer outras infrações, desde que, é claro, haja

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“pluralidade de condutas e pluralidade decrimes”21, mas aí, observe-se, já não será mais ocaso de unidade de ação ou omissão, caracterizadorado concurso formal.

6.2 Com emprego de substância inflamável ouexplosiva, se o fato não constitui crime maisgrave

A utilização de substância inflamável ouexplosiva deve ser meio para a prática do crime dedano. É necessário que a substância inflamável ouexplosiva seja utilizada como meio de execução docrime, pois o próprio texto legal diz “com empregode...”.

A subsidiariedade dessa qualificadora é expressa:“se o fato não constitui crime mais grave”, uma vezque qualquer delas — substância inflamável ouexplosiva — pode ser utilizada para a prática decrimes contra a incolumidade pública (arts. 250 a259). Assim, o crime de dano fica excluído pelo crimemais grave, do qual é subsidiário. Nesses termos, seo fato é acompanhado de perigo comum, o crimeúnico a ser reconhecido será o de incêndio, o deexplosão etc.

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A própria natureza das substâncias, inflamávelou explosiva, por si só já é suficiente para justificar aagravação da censura da conduta que as utiliza comomeio para a prática de qualquer crime, inclusive o dedano. “O gravame — destacava Magalhães Noronha— aplica-se, já porque a posse dessas substânciasestá sujeita a licença especial, já porque seu empregoproduz maiores danos e, finalmente, porque elasdespertam grande receio ou temor na população, porisso mesmo sendo mais intenso o alarma socialconsequente ao crime”22. Nesse particular,concordamos integralmente com o magistério de LuizRegis Prado quando afirma: “A utilização desubstância inflamável ou explosiva é umacircunstância de natureza mista, influindodiretamente não só na magnitude do injusto, comotambém na culpabilidade”23.

A locução utilizada pelo legislador, “com empregode”, deixa claro que a qualificadora se configuraquando o agente emprega as substâncias inflamáveisou explosivas na execução do crime, isto é, qualquerdas duas deve ser usada como meio, perigoso que é,para a prática do crime.

6.3 Contra o patrimônio da União, Estado,

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Município, empresa concessionária deserviços públicos ou sociedade de economiamista

Qualifica o dano ser o crime cometido contra opatrimônio da União, Estado, Município, empresaconcessionária de serviços públicos ou sociedadede economia mista (redação determinada pela Lei n.5.346, de 3-1967).

O conceito de patrimônio público das pessoasjurídicas de direito público mencionadas nodispositivo em exame não se confunde com aqueleconcebido pelo Código Civil. Somente aqueles bensefetivamente pertencentes ao “patrimônio público”podem ser objeto dessa qualificadora, inclusive ascoisas de uso público comum ou especial.

O patrimônio de empresa concessionária deserviços públicos ou de sociedade de economiamista recebe a tutela penal, não apenas porintegrarem, lato sensu, o interesse público, masfundamentalmente porque a eles se estendeexpressamente a previsão legal (art. 163, parágrafoúnico, III).

Não será qualificado o crime de dano praticadocontra o patrimônio de empresa pública oufundação instituída pelo Poder Público. Por definição

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legal, empresa pública é “a entidade dotada depersonalidade jurídica de direito privado, compatrimônio próprio e capital exclusivo da União,criada por lei para a exploração de atividadeeconômica que o Governo seja levado a exercer, porforça de contingência ou de conveniênciaadministrativa, podendo revestir-se de qualquer dasformas admitidas em direito” (art. 5º, II, do Decreto-Lei n. 200/67, com redação do art. 1º do Decreto-Lein. 900/69).

O mesmo Decreto-Lei n. 900/69 esclarece, em seuart. 3º, que as fundações instituídas por lei federalnão constituem entidades da administração indireta,aplicando-se-lhes, entretanto, quando recebamsubvenções ou transferências à conta do orçamentoda União, a supervisão ministerial (arts. 19 e 26 doDecreto-Lei n. 200/67).

A s coisas locadas ou usadas pelos órgãospúblicos, que não são de sua propriedade, nãoqualificam o dano24, exatamente porque nãointegram o patrimônio público, nos limites estritos datipicidade penal.

O fundamento político criminal para qualificar ocrime de dano quando praticado contra patrimôniopúblico decorre da própria natureza desses bens,que a todos pertencem e de ninguém recebem

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cuidado e atenção especial, sendo,consequentemente, mais vulneráveis à açãopredatória de vândalos e outros infratores dequalquer natureza.

6.4 Por motivo egoístico ou com prejuízoconsiderável para a vítima

Os motivos são a fonte propulsora da vontadehumana, quer se orientem para o bem, quer para omal. Motivo é o impulso psicológico que projeta oindivíduo para o crime, é a razão determinante do atodelituoso25. Os motivos que podem levar à práticado crime podem ser morais, imorais, sociais ouantissociais. Quando os motivos têm natureza moralou social, a conduta humana violadora da ordemjurídica é digna de menor reprovabilidade social; noentanto, quando a motivação tiver natureza imoral ouantissocial a reprovabilidade será naturalmentesuperior, podendo majorar e até qualificar eventualinfração penal cometida.

Para qualificar o crime de dano, como as duasúltimas figuras, o legislador brasileiro elegeu ummotivo e uma consequência, que considerouagravarem sobremodo a censurabilidade dessainfração penal, um subjetivo, outra objetiva: motivo

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egoístico ou prejuízo considerável para a vítima.

6.4.1 Por motivo egoístico

De plano, convém destacar que o dispositivo queestamos examinando não tem a pretensão de punirou criminalizar o egoísmo, que é um sentimentopessoal e, de certa forma, não deixa de ser, dentro dedeterminados limites, algo necessário para a vidasocial, pois em sua base não deixa de ser um reflexodo instinto de conservação. Por isso, a locuçãoutilizada pelo Código Penal deve ser interpretadacomo motivo antissocial, uma vez que nem todoegoísmo tem essa conotação.

Motivo egoístico não é qualquer impulsoantissocial característico de todo crime de dano.Egoístico é somente o motivo que se prende a futurointeresse, econômico ou moral26. Assim, comoexemplificava Hungria, a danificação do trabalho ouequipamento de um concorrente para vencer acompetição ou para valorizar seu similar. Motivoegoístico, no magistério irretocável de MagalhãesNoronha, “É o egoísmo exacerbado, que, nasatisfação dos interesses individuais, lesa, ofende eextingue os interesses dos semelhantes. É oexagerado amor ao bem próprio. É o egocentrismo,

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em que o eu é o centro de todo o interesse, é afinalidade de toda ação do indivíduo que, parasatisfazê-lo, calca aos pés os interesses e direitos dopróximo”27.

Motivo egoístico não se vincula à satisfação dequalquer sentimento menos nobre, tal como ódio,despeito, inveja ou desprezo, sob pena de confundir-se com o dano simples, que, normalmente, émotivado por algum sentimento dessa ordem.

Nessa modalidade de dano qualificado podeaparecer, excepcionalmente, o animus lucrandi.

6.4.2 Com prejuízo considerável

O prejuízo considerável deve ser aferido emrelação ao patrimônio do ofendido, que não deixa deser um critério extremamente relativo, na medida emque um dano de grande monta, genericamenteconsiderado, pode não representar “prejuízoconsiderável para a vítima” possuidora de grandefortuna; por outro lado, pequeno dano, nas mesmascircunstâncias, pode destruir economicamentealguém de pouquíssimas posses. Não era outro oentendimento de Hungria, que, a seu tempo, jáprofessava: “O caráter de gravidade objetiva, comose depreende da letra da lei, é referível à condição de

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fortuna da vítima (um prejuízo patrimonial que nãotenha maior relevo para um homem abastado, podeser considerável para um operário)”28.

No entanto, ainda assim, deve-se reconhecer, é ocritério mais justo, por vincular o dano causado aopatrimônio do ofendido; além de respeitar o modernoprincípio da proporcionalidade, relaciona-se àcapacidade de suportabilidade deste. Ademais, essaé a determinação legal: prejuízo considerável para avítima.

Segundo Fragoso e Hungria, somente seconfigurará a qualificadora do prejuízo considerávelse houver dolo em relação a esse prejuízo grave, istoé, se o agente o quis (tendo dele consciência) ou,pelo menos, assumiu o risco de produzi-lo29.

7. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com o efetivo dano causado,isto é, com a destruição, inutilização oudeterioração da coisa alheia. O dano é crimematerial, que só se configura quando há prejuízopara a vítima, decorrente da diminuição do valor ouda utilidade da coisa destruída, inutilizada ou

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deteriorada. Por isso faz-se necessária acomprovação pericial do resultado danoso, sob penade não se tipificar a figura delituosa. Mesmo que adestruição seja parcial, desde que torne imprestável acoisa ou a inutilize, é suficiente para consumar ocrime que a intenção do agente fosse a destruiçãototal.

O dano é crime de ação múltipla ou de conteúdovariado. Assim, mesmo que o agente, num primeiromomento, deteriore a coisa alheia e, insatisfeito comesse resultado, inutilize-a para seus fins normais e,por fim, a destrua, haverá somente um crime. Essadeterminação enfurecida no agir demolidor do agentedeverá ser avaliada na dosimetria penal,particularmente no exame da censurabilidade daconduta (culpabilidade) e consequências do crime.

Como crime material que é, o dano admite atentativa, quando o agente é interrompido na açãoque executava objetivando a deterioração,inutilização ou destruição de coisa alheia.Consideramos temerário afirmar que há tentativaquando o agente não obtém o resultado pretendido,uma vez que o resultado parcial já é suficiente paraconsumar o crime de dano. Na verdade, a tentativasomente pode configurar-se quando o estrago nãofor relevante.

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8. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (porque não exigecondição especial do sujeito ativo); material, porexcelência, na medida em que produz um resultadonaturalístico; doloso (não há previsão legal para afigura culposa), embora também seja ilícito, devendobuscar sua reparação na esfera civil; de forma livre(pode ser praticado por qualquer meio, forma oumodo); instantâneo (a consumação opera-se deimediato, não se alongando no tempo); unissubjetivo(pode ser praticado, em regra, apenas por umagente); plurissubsistente (pode ser desdobrado emvários atos, que, no entanto, integram a mesmaconduta), isto é, seu iter criminis pode serfracionado em vários atos, permitindo,consequentemente, a tentativa.

9. Pena e ação penal

Na figura simples aplica-se, alternativamente,pena de detenção, de um a seis meses, ou multa; naqualificada, cumulativamente, detenção, de seismeses a três anos, e multa. A ação penal é deiniciativa privada na figura simples (caput) e na

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figura qualificada na hipótese do parágrafo único, IV.Nas outras três hipóteses de formas qualificadas(parágrafo único, I, II e III) a ação penal é públicaincondicionada (art. 167).

1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 395.2 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 102.3 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 395.4 Vincenzo Manzini, Trattato di Diritto Penale italiano ,1947, v. 8, p. 433.5 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 396 e 397; Nélson Hungria, Comentários ao CódigoPenal, p. 106. Em sentido contrário posiciona-se Luiz RegisPrado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit., v. 2, p. 448:“Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, inclusive oproprietário em caráter excepcional, como, por exemplo,quando causa danos a seu imóvel com o objetivo de forçar asaída do arrendatário ou parceiro (delito comum)”.6 O Anteprojeto de Código Penal, Parte Especial,

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procurando suprir grave lacuna do atual diploma, inseriu nadefinição do crime de dano a conduta de fazer desaparecercoisa alheia, além de ampliar o limite máximo da penacominada, de seis meses para um ano de detenção, nosseguintes termos: “Art. 192: Destruir, inutilizar, deteriorar oufazer desaparecer coisa alheia: Pena — detenção de um mêsa um ano, ou multa”. Alterações também são sugeridas aodano qualificado, relativamente ao dano contra opatrimônio público. É suprimida a qualificadora quando odano é praticado por motivo egoístico. A pena cominada, emseu limite máximo, é reduzida de três para dois anos dedetenção.7 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 397; Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit.,v. 7, p. 105; Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penalbrasileiro, cit., v. 2, p. 448.8 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 321.9 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 322.10 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 397; Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p.322; Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro,cit., v. 2, p. 448.11 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 105.12 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 323.13 Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação

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ou monumento urbano configura o crime do art. 65 da Lei n.9.605/98, cuja pena de detenção é de três meses a um ano emulta. Se se tratar de monumento ou coisa tombada emvirtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, apena é de seis meses a um ano de detenção e multa.14 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 108.15 “O crime de dano exige, para a sua configuração, apenaso dolo genérico” (STF, HC 73189/MS, rel. Min. CarlosVelloso, 0000492). Em sentido contrário já se manifestou oSTJ, a nosso juízo equivocadamente: “Para a caracterizaçãodo crime de dano é essencial a presença do dolo específico,seja o animus nocendi, a atuação dirigida à produção deprejuízo ao patrimônio alheio, não se configurando o delitoquando a ação danosa foi realizada para a consecução deoutro objetivo” (STJ, RE 115.531/SP, rel. Min. Vicente Leal,DJU, 16 jun. 1997). Essa ementa contém um erro e um acerto:Erra quando afirma que o crime de dano exige doloespecífico; acerta quando sustenta que “não se configura odelito quando a ação danosa foi realizada para a consecuçãode outro objetivo”. São coisas distintas.16 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 102.17 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 450.18 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.

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1, p. 401. No mesmo erro incorria Magalhães Noronha(Direito Penal, cit., v. 2, p. 327).19 Ver o que dissemos sobre o sistema do cúmulo materialde penas em Manual de Direito Penal, 7. ed., v. 1, p. 562.20 Ver algo semelhante que escrevemos sobre o mesmo temano v. 2 do nosso Manual de Direito Penal, p. 381, 422 e 423.21 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, v. 1,p. 562.22 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 327.23 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 451.24 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 452.25 Pedro Vergara, Os motivos determinantes no DireitoPenal, Rio de Janeiro, 1980, p. 563 e 564.26 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 111.27 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 328.28 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 111.29 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito penal, v. 1, p.403; Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v.7, p. 111.

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CAPÍTULO XII - INTRODUÇÃO OU ABANDONODE ANIMAIS EM PROPRIEDADE ALHEIA

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Semconsentimento de quem de direito. 4.2.Ocorrência efetiva de prejuízo. 4.3.Prejuízo: condição objetiva dapunibilidade ou elementar típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Questõesespeciais. 9. Pena e ação penal.

Introdução ou abandono de animais em propriedadealheia

Art. 164. Introduzir ou deixar animais empropriedade alheia, sem consentimento de quem dedireito, desde que do fato resulte prejuízo:

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Pena — detenção, de 15 (quinze) dias a 6 (seis)meses, ou multa.

• V. art. 64 do Decreto-Lei n. 3.688/41 (Lei dasContravenções Penais).

1. Considerações preliminares

Os Códigos Penais de 1830 e 1890 não tipificavamo crime de “introdução ou abandono de animais empropriedade alheia”, embora a matéria já tivesse sidoobjeto de regulamentação pelas OrdenaçõesFilipinas, no Livro V, Título LXXXVII1.

Nosso Código Penal de 1940 inspirou-se nosprecedentes italianos, como os Códigos Zanardelli esardo, que disciplinaram esse crime, por vez primeira,como figura autônoma, punindo o dano causado poranimais em propriedade alheia, além da denominadapastagem abusiva. O Código Penal Rocco, de 1930,recepcionou essa figura delitiva, dando-lhe contornosemelhante àquele que, posteriormente, seriaadotado pelo legislador brasileiro de 1940.

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2. Bem jurídico tutelado

O s bens jurídicos protegidos neste dispositivocontinuam sendo a posse e a propriedade imóvel,rural ou urbana, que constituem aspectos dopatrimônio, especialmente contra dano causado poranimais em plantações e terrenos cultivados. Ganhamespecial relevo os danos causados por essa forma aplantações ou a qualquer espécie de terrenoscultivados.

Bento de Faria destacou, com absoluto acerto,que a locução “propriedade” não é empregada notipo penal com o significado de domínio, mas com oobjetivo de indicar o terreno do prédio rústico ouurbano, cultivado ou não, passível de ser danificadopor animais2.

Protegendo o patrimônio, inegavelmente, oCódigo tutela também o domínio, mas não apenaseste, indo além para alcançar também a posse, mesmodesacompanhada daquele, como ocorre em outroscrimes patrimoniais. Consequentemente, comodestacava lucidamente Magalhães Noronha, “a lei,falando em propriedade alheia, refere-se não só aoimóvel, ao terreno no domínio pleno de outrem, comotambém àquele que, por justo título, se acha naposse alheia, como nos casos de enfiteuse, usufruto

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etc.”3.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, comexceção, em princípio, do proprietário. Sujeito ativo équem realiza a conduta descrita no tipo penal.

Embora não seja pacífico, acreditamos que oproprietário também pode ser autor desse crimequando, por alguma razão, a posse direta estiver comterceiro4, por exemplo, havendo arrendamento rural,se o proprietário introduz seus animais, quedanificam a plantação do arrendatário5. A correntecapitaneada por Nélson Hungria entende que, nessahipótese, poderia configurar-se crime de dano ou atémesmo de furto6. Não comungamos desseentendimento exatamente porque interpretamos alocução “propriedade alheia” com aquele sentidomais abrangente defendido por Bento de Faria.Socorre-nos, igualmente, Magalhães Noronha, quepontificava: “Sendo a posse, destacada do domínio,protegida pela disposição penal, segue-se que oproprietário pode ser sujeito ativo do crime, uma vezque o terreno ou imóvel esteja na posse justa de

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outrem”7. Achando-se, no entanto, o imóvel nopleno domínio do proprietário, evidentemente queeste não pode ser sujeito ativo desse crime.

Aquela solução aventada por Hungria e Fragoso— crime de dano — parece-nos possível quando oagente for condômino do imóvel invadido e oprejuízo resultar de dano a plantações ou coisaspertencentes somente a outro condômino.

Sujeito passivo é o possuidor ou proprietário,havendo posse justa daquele ou quando for tambémproprietário do imóvel onde os animais foramintroduzidos.

4. Tipo objetivo: adequação típica

As condutas tipificadas são introduzir (fazerentrar, fazer penetrar) ou deixar (abandonar, soltar,largar) animais em propriedade alheia. É necessárioque, por exigência expressa do tipo penal, não hajaconsentimento do ofendido e, ademais, decorraefetivo prejuízo. Esses são os elementos estruturaisda figura típica que passamos a examinar.

O tipo penal pune a introdução ou o abandono deanimais em propriedade alheia, sem consentimento

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de quem de direito, causando efetivo prejuízo.A primeira conduta proibida é introduzir, que,

como já referimos, significa levar para dentro, fazerentrar, providenciar a penetração de animais empropriedade alheia, desautorizadamente, causandodano a alguém. É irrelevante que os animais estejamsozinhos, acompanhados pelo sujeito ativo ou poralguém a seu mando. A proibição penal é de que osanimais sejam introduzidos, de qualquer forma, semconsentimento de quem de direito. Trata-se, como seconstata, de crime de forma livre, isto é, pode serpraticado por qualquer meio, modo ou forma.Contudo, convém destacar a advertência semprelúcida de Magalhães Noronha, que pontificava: “...não se pode falar em abandono quando o agentedeixa os animais nas vizinhanças do terreno, demodo que eles para aí se dirigem; não é isso deixaranimais em propriedade alheia. É, porém,introdução. Mais ardilosa ou astuta, mas sempreintrodução, pois a lei não distingue os modos que seoperam”8.

A segunda conduta criminalizada caracteriza oabandono, que é representado pelo verbo “deixar”,que significa deixar, abandonar, soltar, consentir.Nessa hipótese, a introdução dos animais não foicriminosa; logo, podem eles ter ingressado

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clandestinamente, isto é, sem o conhecimento de seudono, ou ter sido introduzidos com o consentimentode quem de direito.

Na primeira hipótese, os animais são levados oulhes é facilitado o ingresso em propriedade alheia; nasegunda, encontrando-se, à revelia do dono, osanimais em propriedade alheia, ou com oconsentimento do proprietário do imóvel, são alideixados intencionalmente9. Na primeira figura, osanimais são introduzidos criminosamente; nasegunda, seu abandono é que caracteriza o crime.Naquela, o sujeito ativo tem a iniciativa de levar osanimais à propriedade alheia; na segunda, abandona-os em propriedade alheia, após nela haveremingressado, sem seu conhecimento.

4.1 Sem consentimento de quem de direito

A introdução ou abandono de animais deveocorrer “sem consentimento de quem de direito”.Heleno Fragoso sustentava: “Trata-se de expressãosupérflua, que foi eliminada no atual CP italiano,posto que constasse do Código Zanardelli. É claroque o consentimento descriminaria a ação, já que setrata de bem jurídico disponível”10. Contrariamente,

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para Hungria, “Não se trata de uma cláusulasupérflua: quer significar que o consentimentodescriminante tanto pode ser dado pelo dono doterreno (ou mandatário autorizado) quanto pelopossuidor legítimo, seja ou não titular de direito real(locatário, comodatário, depositário judicial,usufrutuário, enfiteuta, credor anticrético,promitente-comprador imitido na posse, etc.), e maisque, outorgado o consentimento, não haverá ilícitopenal, por mais insólito ou grave que tenha sido odano”11.

Luiz Regis Prado, por sua vez, definiu a locuçãosem consentimento de quem de direito da seguinteforma: “Embora presente no tipo, diz respeito àantijuridicidade. Sua ausência torna a conduta nãosó atípica como permitida”12. Como o consentimentopode ter funções e significados diversos, mesmoquando constante do tipo penal, justifica-se que sefaça uma pequena digressão a respeito.

Com efeito, examinando esses aspectos doconsentimento da vítima do crime, fizemos asseguintes considerações: “No entanto, ao seexaminar a natureza e importância do consentimentodo ofendido, deve-se distinguir aquelas situaçõesque caracterizam exclusão de tipicidade das que

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operam como excludentes de antijuridicidade. Naverdade, se fizermos uma análise, ainda quesuperficial, constataremos que em muitas figurasdelituosas, de qualquer Código Penal, a ausência deconsentimento faz parte da estrutura típica como umacaracterística negativa do tipo. Logo, a presença deconsentimento afasta a tipicidade da conduta que,para configurar crime, exige o dissenso da vítima,como, por exemplo, a invasão de domicílio (art. 150),a violação de correspondência (art. 151) etc. Outrasvezes, o consentimento do ofendido constituiverdadeira elementar do crime, como ocorre, porexemplo, no aborto consentido (art. 126). Nessescasos, o consentimento é elemento essencial do tipopenal”13.

O tipo penal que ora analisamos traz em suaconstrução típica a locução “sem consentimento dequem de direito”, adequada exatamente à últimahipótese a que nos referimos, ou seja, constituielementar típica, nesse caso, como característicanegativa expressa da figura típica. A ausência deconsentimento de quem de direito aqui é elementardo tipo; a presença (do consentimento) afasta atipicidade da conduta. Enfim, se o sujeito passivoconsentir na introdução dos animais, a conduta dosujeito ativo será atípica, isto é, indiferente para o

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direito penal.Afasta-se, categoricamente, a natureza

justificante do consentimento do tipo em exame, quepoderá existir, é verdade, quando decorrer devontade juridicamente válida do titular de um bemdisponível; nesse caso, inexistirá contrariedade ànorma jurídica. Com efeito, consentimento doofendido com o condão de afastar a antijuridicidadede uma conduta é aquele que se impõe de fora paradentro, para excluir a ilicitude, sem integrar aconduta típica, como poderia acontecer, por exemplo,nos crimes de cárcere privado (art. 148), furto (art.155), dano (art. 163) etc.

4.2 Ocorrência efetiva de prejuízo

A superveniência de prejuízo é condiçãoindispensável à configuração do crime, constituindo,segundo alguns14, condição objetiva depunibilidade. A ausência de prejuízo — danoeconomicamente apreciável — impede aconfiguração típica do crime. Na verdade, ainocorrência de prejuízo impede a própria tipificaçãoda conduta, na medida em que “resultar prejuízo” éelementar típica do crime. Por isso a falta de prejuízo,antes de ser mera condição objetiva de punibilidade,

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afasta a tipicidade da conduta, não se podendo falarem punibilidade de comportamento atípico.

O prejuízo a que se refere o tipo penal em exame édistinto daquele decorrente da simples introdução ouabandono de animais. Caso contrário, seriaabsolutamente desnecessário prevê-lo comoelementar típica do crime de introdução ouabandono de animais em propriedade alheia. Convémdestacar, contudo, que a intenção do agente nãodeve ser o dano, mas introduzir ou abandonaranimais em propriedade alheia, cuja consequência é aprodução de prejuízo. Se, no entanto, o agenteobjetivar especificamente a produção de dano, ocrime será aquele capitulado no art. 163 (dano). Se,por fim, pretender alimentar seus animais com apastagem da propriedade alheia, deixará de existir odano em si mesmo, passando a caracterizar-se ocrime de furto, com verdadeira subtração de coisaalheia.

4.3 Prejuízo: condição objetiva da punibilidade ouelementar típica

O prejuízo exigido pelo tipo penal em exame, aocontrário do entendimento da maioria — NélsonHungria, Heleno Fragoso, Damásio de Jesus e, mais

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recentemente, Luiz Regis Prado —, que afirma tratar-se de condição objetiva de punibilidade, é elementoconstitutivo do crime; é, como referimosrepetidamente, uma elementar do tipo, e, como tal,sua ausência não afasta apenas a punibilidade, masa própria tipicidade do comportamento.

Na verdade, convém ter presente que a condiçãoobjetiva da punibilidade é extrínseca ao crime,estranha, portanto, à tipicidade, à antijuridicidade e àculpabilidade; é, poder-se-ia dizer, um posterius docrime, está fora dele. A condição objetiva dapunibilidade deve encontrar-se fora de qualquerrelação causal com a conduta humana. “Se ela seencontra — afirmava Bettiol — em relação dependência causal com a ação, no sentido que possaser considerada como efeito, ainda que remoto daação, tal evento não se poderá considerar condiçãode punibilidade, mas será elemento constitutivo dofato”15.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo do crime de introdução ouabandono de animais em propriedade alheia é o dolo,constituído pela vontade livre e consciente de

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introduzir ou deixar animais em propriedade alheia. Énecessário que o sujeito ativo tenha conhecimentode que a propriedade é alheia.

Não há necessidade de elemento subjetivoespecial do tipo, ante a ausência de previsão legal. Aexistência de eventual elemento subjetivo especialpode alterar a figura delitiva. Embora indispensável aprodução de prejuízo para a tipificação do crime,visto que aquele constitui elementar do tipo penal,convém destacar que, se houver por parte do agentea intenção de causar prejuízo, o crime será o dedano, previsto no art. 163. Alguns julgados,equivocadamente, têm exigido o animus deprejudicar16. O fim de prejudicar está ínsito naprópria ação do agente, mais especificamente nodolo, pois seria ingênuo imaginar o dolo de introduzirou abandonar animais em propriedade alheia semproduzir qualquer dano ou prejuízo; por outro lado,se a intenção do agente for alimentar os animais naplantação alheia, o crime será o de furto17 e não estedo art. 164. Constata-se, enfim, que o elementosubjetivo deve ser distinto do de danificar ousubtrair pastagem ou qualquer nutriente do imóvelinvadido.

Não há previsão de modalidade culposa. Se o

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comportamento do agente for negligente ouimprudente, caracterizando um agir culposo, não seconfigura o crime de introdução ou abandono deanimais, pois este pressupõe sempre a existência dedolo.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime de introdução ou abandonode animais em propriedade alheia somente com oefetivo prejuízo, ou seja, com a diminuição dopatrimônio da vítima. Trata-se de crime material, istoé, que exige resultado naturalístico.

Não se pode ignorar que o tipo penal condicionaa tipificação criminosa a “desde que do fato resulteprejuízo”. Essa exigência típica impõe como condiçãoa produção de um dano superior àquele mínimonatural e próprio da simples introdução ou abandonode animais em propriedade alheia, quer com seuandar, quer com o estar ou meras passadas. Se essedano fosse suficiente à configuração do crime, nãose teria exigido expressamente a produção deprejuízo, porque aquele lhe é inerente.

Não comungamos do entendimento majoritário18

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da doutrina, que nega a possibilidade da tentativano crime de introdução ou abandono de animaisbasicamente porque o tipo exige a produção deprejuízo para consumar-se. Essa orientação, que foicapitaneada por Nélson Hungria, peca pelasimplicidade silogística. Dizia Hungria, seguidofielmente pelos demais: “É condição objetiva docrime a superveniência de prejuízo. Se este nãoocorre, não se poderá reconhecer, sequer, tentativa,pois, diversamente do dano no seu tipo fundamental,não é exigido, aqui, o animus nocendi”19. Osilogismo não se sustenta em si mesmo,independentemente de questionarmos a afirmação deque a causação de prejuízo constitui condiçãoobjetiva da punibilidade, com o que nãoconcordamos.

Em primeiro lugar, a configuração ou não detentativa não tem qualquer relação com condiçõesextrínsecas do crime, como é o caso de umacondição objetiva da punibilidade, por exemplo, odecreto da falência da empresa, para que o falidopossa responder por crimes falimentares. Por outrolado, mesmo como elementar do crime, que é nossaorientação, a exigência do prejuízo para consumar-se a infração não inviabiliza o reconhecimento datentativa; pelo contrário, facilita sua identificação,

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pelo menos na modalidade de introduzir animais empropriedade alheia. Assim, por exemplo, se o agenteé surpreendido, e interrompido, por alguém nomomento em que está efetuando a introdução dosanimais em propriedade alheia, não se pode negarque já iniciou o iter criminis, cuja intervenção,circunstância alheia à vontade do agente, impede aconsumação. Na verdade, o que caracteriza a figurada tentativa não é a existência ou inexistência decondição objetiva de punibilidade, mas ainterrupção do processo executório porcircunstâncias alheias à vontade do agente; porexemplo, “o agressor é seguro quando estádesferindo os golpes na vítima para matá-la”20. Emsegundo lugar, a inexigência de dolo de prejuízo(que seria um elemento subjetivo especial do tipo,inexistente no crime em exame) tampouco é motivopara afastar a tentativa. Com efeito, se houvesseesse dolo o crime seria o de dano, desnaturandoaquela infração penal. Mas não se pode esquecerque o dolo genérico é constituído pela vontade econsciência da realização de todos os elementosconstantes do tipo penal, entre os quais se inclui oprejuízo. Ninguém seria ingênuo a ponto de imaginarque uma pessoa introduza animais em plantaçãoalheia e ignore que dessa ação voluntária possa

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decorrer prejuízo a outrem, ou, em outros termos, nãotenha representado mentalmente a possibilidade daocorrência desse prejuízo. Essa representaçãoconsciente basta para que o dolo genérico abranja aelementar causação de prejuízo. Seria, talvez, na linhada orientação que combatemos, o único crimematerial plurissubsistente a não admitir tentativa,afrontando não apenas os fundamentos dogmáticos,mas a própria lógica do sistema, pois todos aquelesautores reconhecem que se trata de crime material eplurissubsistente.

Enfim, o fundamento mais forte para se sustentar,na atualidade, a impossibilidade de tentativa no crimed e introdução ou abandono de animais é oargumento de autoridade, isto é, apenas porque, aseu tempo, Nélson Hungria adotou essa orientação.No entanto, embora Hungria seja reconhecido portodos nós como o Papa do Direito Penal Brasileiro,ele também era falível e, vez por outra, equivocava-se.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (porque não exigecondição especial do sujeito ativo); material, por

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excelência, na medida em que não apenas exigeresultado material como inclui a produção doresultado como elementar do tipo penal; comissivo,na modalidade “introduzir” (é da essência do próprioverbo nuclear, que só pode ser praticado por meio deuma ação positiva; “omissivo”, na modalidade“deixar”, que só pode concretizar-se por meio de um“não fazer”; doloso (não há previsão legal para afigura culposa); de forma livre (pode ser praticadopor qualquer meio, forma ou modo); instantâneo (aconsumação opera-se de imediato, não se alongandono tempo); unissubjetivo (pode ser praticado, emregra, apenas por um agente); plurissubsistente(pode ser desdobrado em vários atos, que, noentanto, integram a mesma conduta), isto é, seu itercriminis pode ser fracionado, especialmente na formad e introduzir, permitindo, consequentemente, atentativa.

8. Questões especiais

Questiona-se se apenas um animal poderiatipificar o delito, em razão de o artigo falar emanimais. Adotamos o entendimento21 segundo oqual o vocábulo “animais” é genérico, não sendo

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exigível a pluralidade para configurar o crime. Ésuficiente que a ação seja praticada com apenas umanimal, de pequeno ou grande porte, para tipificar ainfração penal, desde que resulte prejuízo. Nessalinha, Nélson Hungria concluía: “Com o vocábuloanimais (no plural), o texto legal quer apenasdesignar o genus, e não uma indispensávelpluralidade: basta a introdução ou abandono de umsó animal que seja. De outro modo, poderia seriludida a incriminação, cuidando o agente de evitarque nunca estivesse introduzindo ou abandonando,em vezes sucessivas, mais de um animal”22.

Se a penetração de animais decorrer de culpa, odono responderá somente pelos danos causados, naesfera cível. Por isso, temos dificuldade em aceitar oentendimento que admite a tipificação desse crimequando, por omissão, os animais invadempropriedade alheia e destroem a plantação23. Aforma omissiva somente pode ocorrer na modalidade“deixar animais”, que é tipificada como a segundafigura criminosa.

Quando o dano for meio ou consequência deoutro crime, será absorvido por este. Como crime quedeixa vestígio, a introdução ou abandono de animaisé indispensável auto de exame de corpo de delito

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(art. 158 do CPP).

9. Pena e ação penal

As penas cominadas, alternativamente, sãodetenção, de quinze dias a seis meses, ou multa.

A ação penal é de exclusiva iniciativa privada(art. 167 do CP). O direito de queixa caberá não só aoproprietário do imóvel, mas também ao possuidor,quando o bem jurídico violado for somente a posse.

1 A redação do dispositivo nas Ordenações era a seguinte:“Por se evitarem os danos, que se nas propriedades fazemcom gados e bestas, e para que cada hum seja senhorlivremente do seu, mandamos que qualquer pessoa, queacintemente metter, ou mandar metter gados e bestas, empãs, vinhas, olivaes, ou pomares no tempo em que sãoCoimeiros, pelas Posturas das Cameras, sendo-lhe provadodentre de seis mezes, pela primeira vez seja degradado trezmezes fóra da Villa, e Termo. E pela segunda vez seis mezespara Castro Marim. E pela terceira hum anno para Africa. E

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mais por cada vez pagará o dano que fizer, e coimas,segundo as Posturas da Camera”.2 Bento de Faria, Código Penal brasileiro (comentado), cit.,v. 4, p. 102.3 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 330.4 Em sentido contrário, Heleno Cláudio Fragoso, Lições deDireito Penal, cit., v. 1, p. 404.5 Nesse sentido, Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penalbrasileiro, cit., v. 2, p. 457.6 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 113.7 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 331.8 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 331.9 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 112.10 Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p. 405e 406.11 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 112.12 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 458.13 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 7.ed., v. 1, p. 251.14 Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p. 405.15 Giuseppe Bettiol, Diritto Penale, cit., p. 141.

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16 RT, 202:385; RF,152:417.17 Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p. 406.18 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 458; Heleno Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 405; Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal,cit., v. 7, p. 112.19 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 112.20 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 7.ed., v. 1, p. 365.21 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 405.22 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 112.23 TAMG, AC, rel. Des. Sebastião Maciel, RT, 567:379.

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CAPÍTULO XIII - DANO EM COISA DE VALORARTÍSTIVO, ARQUEOLÓGICO OU HISTÓRICO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Pena e açãopenal.

Dano em coisa de valor artístico, arqueológico ouhistórico

Art. 165. Destruir, inutilizar ou deteriorar coisatombada pela autoridade competente em virtude devalor artístico, arqueológico ou histórico:

Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois)anos, e multa.

1. Considerações preliminares

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O Código Criminal do Império de 1830 e o CódigoPenal Republicano de 1890 não previam infraçãopenal semelhante à descrita no atual art. 165. Apenasmais recentemente se tem procurado proteger epreservar coisas e lugares que se destacam por seusvalores artístico, histórico ou arqueológico. AsConstituições brasileiras, a partir da de 1934,começaram a impor deveres especiais, nesse campo,ao Poder Público1.

A infração penal (art. 165) do Código Penal de1940 foi inspirada no Código Penal Rocco de 1930(art. 733), que previa, como contravenção penal, odano a coisa própria, isto é, praticado peloproprietário, de valor arqueológico, histórico ouartístico.

O art. 165, contudo, foi revogado tacitamente peloart. 62, I, da Lei n. 9.605/98 (Lei dos CrimesAmbientais), que regula completamente a mesmamatéria, punindo com reclusão de um a três anos emulta2. Trata-se, com efeito, de lei especial e lei geral(lex especialis derrogat lex generalis). Mantemos,sucintamente, os dados abaixo, em razão dairretroatividade da nova lei3.

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2. Bem jurídico tutelado

Embora a tutela penal continue a se referir aodano causado em coisa alheia, este dispositivo sedestina a uma parcela especial da propriedade, nãonecessariamente patrimônio público, qualificador docrime de dano (art. 163, parágrafo único, III), masdaquela que, por alguma razão, assume um carátersocial e público de importância tal que acaba sendotombada pela autoridade competente em virtude devalor artístico, arqueológico ou histórico.

Se em 1940 já se justificava essa proteção penal àpropriedade, com muito mais razão a partir da atualConstituição Federal (1988), que outorgouexpressamente uma função social à propriedade(arts. 184 e 186). A tutela penal, agora elevada aoplano constitucional, impede sua utilização de formaindiscriminada contra o interesse coletivo.Indiscutivelmente, a propriedade não se reveste, nolimiar do terceiro milênio, daquele cunho romanísticode caráter soberano e discricionário, que, em algumascircunstâncias, até poderia compreender uma quaseilimitada facultas abutendi. Nessa linha, mantém-seperfeitamente atualizado o magistério de então deHungria, que professava: “No sentido de vinculá-laa o bonum commune omnium, criaram-se-lhe

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múltiplas restrições, que chegam a assumir, porvezes, o caráter de autênticas servidões legais. Entretais restrições se inclui a concernente aos bens derelevante valor estético ou histórico, sejamproduzidos pelo homem, sejam naturais”4.

Bem jurídico protegido é a inviolabilidade dopatrimônio histórico, arqueológico ou artístico peloque representa e pela expressão que assume nacoletividade. Como destacava Magalhães Noronha,“Claro é que se tutela igualmente o patrimôniomobiliário ou imobiliário, o domínio ou a posse dacoisa, como dano, pois o atentado contra aquelevalor intelectual só pode ser causado peladanificação física ou material desta. O dano entãoproduzido atinge dois objetos jurídicos: o bemimaterial (representado pela vinculação da coisa àhistória do País, ou pelo predicado artístico, ou pelaantiguidade) e o material (ofendendo agora aopatrimônio no sentido vulgar, ferindo o domínio ou aposse da coisa)”5. Com efeito, o dispositivo emexame protege os aspectos materiais e imateriais dacoisa tombada, especialmente porque o danorepresenta a lesão, in concreto, do patrimônio, esomente lesando este pode atingir aquele valorimaterial expresso pela concepção ideal e subjetivada população. À evidência, esse patrimônio, em seu

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conjunto, está abrangido, como afirma Regis Prado,pelo conceito amplo de ambiente6.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,independente de qualidade ou condição especial,uma vez que se trata de crime comum. Nesse crime,ao contrário da orientação que adotamos em relaçãoao dano, o proprietário também pode ser sujeitoativo, quando produz dano a coisa que lhe pertence,mas que fora tombada em razão de seu valor artístico,arqueológico ou histórico. Nessa figura, ao contráriodaquela tipificada no art. 163, não há a elementarcoisa alheia, permitindo, assim, que o dominustambém possa ser sujeito ativo desse crime. Otombamento de determinado bem ou coisa, comefeito, cria restrições ao direito de domínio em proldo interesse público que seu valor artístico,arqueológico ou histórico requer.

Sujeito passivo é pessoa jurídica de direitopúblico interno, União, Estado ou Município,primariamente, já que o crime lesa seu patrimôniocultural; e, secundariamente, o particular,proprietário ou possuidor, quando este for

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proprietário da coisa tombada/danificada. Naverdade, o possuidor pode ser também sujeitopassivo porque o tombamento não impede que acoisa possa ser onerada com penhor ou anticrese.

4. Tipo objetivo: adequação típica

As condutas tipificadas são as mesmas do crimede dano — destruir, inutilizar ou deteriorar coisatombada em virtude de seu valor artístico,arqueológico ou histórico; assim, tudo o quedissemos sobre essas condutas naquele capítuloaplica-se aqui. Esses os bens que recebem especialproteção penal. “Cobre com sua tutela coisas queinteressam a todos, que se integram na vida daNação, como índices de sua origem, civilização ecultura. São reminiscências do passado,testemunhos do presente e vaticínios do futuro. Sãobens que pertencem a todas as idades e a todoindivíduo, pelo valor artístico, raridade, vetustez, oupredicado histórico”7.

Quem destrói, inutiliza ou deteriora bens públicos,mesmo integrantes de monumentos arqueológicos,pré-históricos ou do patrimônio cultural, que nãotenham sido formalmente tombados pela autoridade

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competente, responde pelo crime de danoqualificado (art. 163, parágrafo único, III, do CP), enão por este.

Questão que tem sido objeto de divergência éaquela sobre a tipificação correta de dano produzidoem coisa pública e tombada. Afinal, seria danoqualificado (art. 163, parágrafo único, III) ou seria odano em coisa tombada descrito no art. 165? ParaMagalhães Noronha, o crime será o de danoqualificado (art. 163, parágrafo único, III), cuja pena émais grave do que a do presente artigo, sendo otombamento mera circunstância para a dosagem dapena. Para Nélson Hungria8, por sua vez, tratando-sede coisa pública e tombada, o dano contra elaconfigurará concurso formal dos dois crimes —aquele do dano qualificado e o deste dispositivo.Regis Prado, na atualidade, segue o entendimento deHungria.

O objeto material será exclusivamente coisa móveltombada pela autoridade competente em virtude devalor artístico, arqueológico ou histórico. Por isso,coisa danificada que ainda se encontre em processode tombamento não tipificará esse crime. Algumasdecisões de nossos tribunais, equivocadamente, têmadmitido típica a conduta contra coisa cujo processode tombamento ainda não finalizou. Tombamento é o

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ato do Poder Público (União, Estado ou Município)por meio do qual “declara o valor cultural de coisasmóveis ou imóveis, inscrevendo-as no respectivoLivro de Tombo, sujeitando-as a um regime especialque impõe limitações ao exercício da propriedade,com a finalidade de preservá-las”9. Constata-se quepodem ser objeto material desse crime tanto móveisquanto imóveis, públicos ou particulares.

Por fim, não basta para configurar o crime quedeterminada coisa se encontre formalmentetombada. Faz-se necessário que apresente,concomitantemente, valor arqueológico ou artístico.Nélson Hungria já criticava, com acerto, a exageradapreocupação em transformar algumas “cidadesmortas” em monumentos nacionais, afirmando:“Atualmente, no Brasil, há uma excessivapreocupação em se transformar cidades mortas ouescombros mais ou menos inexpressivos emmonumentos nacionais. Difundiu-se um verdadeiroculto à ruína. É bem de ver, porém, que o juízo penalnão está adstrito à eventual elasticidade de critérioda autoridade administrativa incumbida dotombamento”10.

O entendimento de Hungria continua mais atualdo que nunca, pois ninguém desconhece o esforço

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nem sempre justificado de determinadosadministradores públicos em conseguirtombamentos, nem sempre orientados porsentimentos os mais nobres11.

Furto de coisa móvel, tombada, não tipifica essainfração penal, mas o crime de furto, cujacompetência é da Justiça Federal. Dano amonumentos arqueológicos ou pré-históricos,patrimônio nacional, mas sem tombamento, nãotipifica o crime, mas o dano qualificado do art. 163,parágrafo único, III (Lei n. 3.924/61). Desconhecendoo agente a condição de tombada da coisa quedanifica, caracterizar-se-á o crime de dano (art. 163).

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo é o dolo, constituído pelavontade livre e consciente de danificar, isto é,destruir, inutilizar ou deteriorar coisa tombada pelaautoridade competente.

Para o reconhecimento do dolo, é indispensávelque o agente saiba que a coisa danificada é tombadaou, de qualquer forma, protegida por seu valorartístico, arqueológico ou histórico; o eventual

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desconhecimento dessa condição afasta aadequação típica exigida pelo art. 165. O dano, porconseguinte, também nessa figura especial exige aconsciência e a vontade de destruir, inutilizar oudeteriorar a coisa tombada, restando impunível aconduta culposa.

O desconhecimento do tombamento podeocasionar erro de tipo, excluindo a tipicidade dessamodalidade especial de dano, evidentemente, emcaráter residual e subsidiário, o crime de danotipificado no art. 163.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com o efetivo dano causado,isto é, com a efetiva destruição, inutilização oudeterioração de coisa de valor artístico,arqueológico ou histórico. Trata-se de crimematerial, que só se configura quando há prejuízodecorrente da diminuição do valor ou da utilidaded a coisa tombada destruída, inutilizada oudeteriorada. Por isso faz-se necessária acomprovação pericial do resultado danoso, sob penade não se tipificar a figura delituosa. Mesmo que adestruição seja parcial, é suficiente para consumar o

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crime, ainda que a intenção do agente fosse adestruição total.

A exemplo do dano, trata-se de crime de açãomúltipla ou de conteúdo variado; assim, mesmo queo agente, num primeiro momento, deteriore a coisaalheia, insatisfeito com esse resultado, inutilize-apara seus fins normais e, por fim, a destrua, haverásomente um crime. Essa determinação no agir doagente deverá ser avaliada na aplicação da pena,particularmente no exame da censurabilidade daconduta (culpabilidade) e das consequências docrime.

Como crime material que é, a demolição de coisatombada admite a tentativa, quando o agente éinterrompido na ação que executava objetivando adeterioração, inutilização ou destruição da coisa.Consideramos temerário afirmar que há tentativaquando o agente não obtém o resultado pretendido,uma vez que o resultado parcial já é suficiente paraconsumar esse crime.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (porque não exigecondição especial do sujeito ativo); material, por

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excelência, na medida em que produz um resultadonaturalístico; doloso (não há previsão legal para afigura culposa), embora o dano culposo também sejailícito, devendo buscar sua reparação na esfera civil;de forma livre (pode ser praticado por qualquer meio,forma ou modo); instantâneo (a consumação opera-se de imediato, não se alongando no tempo);unissubjetivo (pode ser praticado, em regra, apenaspor um agente); plurissubsistente (pode serdesdobrado em vários atos, que, no entanto,integram a mesma conduta), isto é, seu iter criminispode ser fracionado, permitindo, consequentemente,a tentativa.

8. Pena e ação penal

As penas cominadas para o crime de dano emcoisa de valor artístico, arqueológico ou históricos ão , cumulativamente, detenção, de seis meses adois anos, e multa.

A ação penal é de natureza públicaincondicionada, devendo, em consequência, aautoridade competente agir de ofício. A natureza dobem jurídico protegido — coisa de valor artístico,arqueológico ou histórico — recomenda essa opção

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do legislador de 1940.

1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 407.2 “Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar: I — bemespecialmente protegido por lei, ato administrativo oudecisão judicial; II — arquivo, registro, museu, biblioteca,pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei,ato administrativo ou decisão judicial.” Trata-se, como seconstata, de uma tipificação mais abrangente, mas queinegavelmente inclui as figuras contidas no art. 165 do CP.3 Cezar Roberto Bitencourt, Código Penal comentado,anotações ao art. 165; Luiz Regis Prado, Curso de DireitoPenal brasileiro, cit., v. 2, p. 464.4 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 113 e 114.5 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 336. Napágina anterior, Magalhães Noronha fundamentava: “Cobrecom sua tutela coisas que interessam a todos, que seintegram na vida da Nação, como índices de sua origem,civilização e cultura. São reminiscências do passado,testemunhos do presente e vaticínios do futuro. São bens

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que pertencem a todas as idades e a todo indivíduo, pelovalor artístico, raridade, vetustez, ou predicado histórico”.6 Luiz Regis Prado, Crimes contra o ambiente, São Paulo,Revista dos Tribunais, 1998, p. 187; Érika Mendes deCarvalho, Tutela do patrimônio florestal brasileiro , SãoPaulo, Revista dos Tribunais, 1999, p. 89 e 90.7 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 335.8 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 337 e 338;Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7, p.116; Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro,cit., v. 2, p. 463.9 José Eduardo Ramos Rodrigues, Tombamento epatrimônio cultural — dano ambiental: prevenção,reparação e repressão, 1993, p. 181.10 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 117.11 Referindo-se ao proprietário da coisa particular tombada,Hungria fazia a seguinte ressalva: “Não é vedado,entretanto, ao juiz penal (em face ao disposto no art. 141, §4º, da Constituição [referia-se à Constituição de 1946])reconhecer e declarar, se for o caso, o caráter arbitrário ouilegal do tombamento, de modo a excluir a criminosidade dofato, se o agente é o próprio dono da coisa” (Comentáriosao Código Penal, cit., v. 7, p. 116).

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CAPÍTULO XIV - ALTERAÇÃO DE LOCALESPECIALMENTE PROTEGIDO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Questõesespeciais. 9. Pena e ação penal.

Alteração de local especialmente protegido

Art. 166. Alterar, sem licença da autoridadecompetente, o aspecto de local especialmenteprotegido por lei:

Pena — detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano,ou multa.

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1. Considerações preliminares

A fonte originária do crime em exame encontra-sena Constituição de 1937, cujo art. 134 continha aseguinte previsão: “Os monumentos históricos,artísticos e naturais, assim as paisagens ou os locaisparticularmente dotados pela natureza, gozam daproteção e dos cuidados especiais da Nação, dosEstados e dos Municípios. Os atentados contra elescometidos serão equiparados aos cometidos contra opatrimônio nacional”.

Em sede constitucional, os locais merecedores deespecial proteção, sob o aspecto cultural, encontramresguardo em dispositivo específico: “Constituempatrimônio cultural brasileiro os bens de naturezamaterial e imaterial, tomados individualmente ou emconjunto portadores de referência à identidade, ànação, à memória dos diferentes grupos formadoresda sociedade brasileira, nos quais se incluem: (...) V— os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico,paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,ecológico e científico” (art. 216, V, da CF/88).Constata-se que esse dispositivo constitucional nãose encontra no capítulo que disciplina o meioambiente, mas naquele que regula a cultura. Poressa razão, a interpretação da legislação

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infraconstitucional deverá atentar para esse novoenfoque da natureza do bem jurídico tutelado, cujaessência é cultural e não ambiental.

Desnecessário destacar que os Códigos Criminaisanteriores (1830 e 1890) não se ocuparam dessainfração penal, que somente foi recepcionada noCódigo Penal de 1940, que secundou a Constituiçãode 1937.

O disposto no art. 166 foi revogado tacitamentepelo art. 63 da Lei n. 9.605/98 (Lei dos CrimesAmbientais), que disciplina completamente aconduta incriminada, aliás de forma mais abrangente(lex especialis derrogat lex generalis)1. O novotexto legal tem a seguinte redação: “Alterar o aspectoou estrutura de edificação ou local especialmenteprotegido por lei, ato administrativo ou decisãojudicial, em razão de seu valor paisagístico,ecológico, turístico, artístico, histórico, cultural,religioso, arqueológico, etnográfico ou monumental,sem autorização da autoridade competente ou emdesacordo com a concedida”.

Provavelmente atento a esse novo dispositivo daLei dos Crimes Ambientais, o Anteprojeto deReforma da Parte Especial suprimiu o crimedisciplinado no art. 166 do Código de 1940.

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2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é o ambiente, sob seuaspecto cultural-estético, particularmente ainviolabilidade do patrimônio público culturalnacional. Essa proteção recai em coisas imóveis, deregra representadas por sítios, paisagens ouquaisquer espécies de locais bucólicos queembelezam determinados lugares e constituem bemcomum. A beleza ou estética que se protege podedecorrer da própria natureza ou ser especialmentecomplementada pela arte ou ofício do ser humano.

Hungria2 destacava a existência de umasemelhança (que denominava “íntimo parentesco”)muito grande entre essa infração penal e aquelaprevista no art. 165 (que se refere ao dano contracoisas de valor artístico). Em ambas, na verdade,protegem-se coisas que justificam sua conservaçãopelo embelezamento ou valorização estética queencerram. No entanto, há profundas diferenças entreas duas infrações penais, a começar pelo próprioobjeto material da proteção penal: o dispositivoanterior (art. 165) protege “coisas” de valor artístico,arqueológico ou histórico, ou seja, a proteçãodestina-se à coisa em si, a sua essência, enquantoeste (art. 166) tutela “local” especialmente protegido,

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isto é, não se preocupa com a essência, mas tãosomente com seu aspecto externo, com seu visual,sua estética, independentemente da substância. Paraa consumação do crime é suficiente a simplesalteração estética, sendo desnecessária a destruição,inutilização ou deterioração material exigida pelo art.165. O simples dano à forma já caracteriza o crime.Por fim, na proteção de local as coisas são sempreimóveis, ao contrário do dispositivo anterior, em quepodem ser tanto móveis quanto imóveis.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,independente de qualidade ou condição especial,pois se trata de crime comum. Nesse crime oproprietário também pode ser sujeito passivo,quando produz alteração de local que lhe pertence,mas que se encontra especialmente protegido por lei;a proteção legal de determinado local, com efeito, criarestrições ao direito de domínio em prol do interessepúblico.

Sujeito passivo é uma pessoa jurídica de direitopúblico interno, União, Estado ou Município,primariamente, uma vez que o crime lesa seu

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patrimônio; secundariamente, o particular,proprietário ou possuidor do local protegido.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A conduta tipificada é alterar, isto é, mudar,desfigurar local especialmente protegido por lei. Aalteração implica mudança do estado anterior oupreexistente33. É indispensável a existência deprevisão legal protegendo o local atingido. Faltandoo elemento normativo — sem licença da autoridadecompetente —, isto é, havendo licença especial deautoridade competente, não se configurará o delito.Não há necessidade de produção de dano, sendosuficiente a modificação de aspecto ou desfiguraçãodo visual. O objeto da ação será sempre constituídopor imóvel.

Para configurar-se o crime não é necessário que amodificação seja integral, pois a alteração parcialpode caracterizar a ação que o tipo penal proíbe. Afinalidade do tipo em exame é reforçar a preocupaçãodo legislador de proteger a aparência, o visual ou aconfiguração de determinado lugar, pelo querepresenta para a coletividade. O crime pode serexecutado por qualquer meio, ante a ausência de

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previsão legal, desde que se trate de localespecialmente protegido por lei.

Na linguagem de Magalhães Noronha, aspecto éa fisionomia de alguma coisa, é o modo com que elase apresenta a nossa vista. Local, por sua vez, naótica da lei, é sinônimo de lugar, que a lei proíbe sejaalterado.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo é o dolo, constituído pelavontade livre e consciente de alterar, isto é,modificar, desfigurar local especialmente protegidopor lei. Para a configuração do dolo é indispensávelque o agente saiba que o local alterado é protegidopor lei; eventual desconhecimento dessa condiçãoafasta a adequação típica exigida pelo art. 166,podendo levar o agente a responder,subsidiariamente, pelo crime de dano comum do art.163 (devendo-se observar a natureza da ação penal).

O desconhecimento da existência de especialproteção legal do local pode configurar erro de tipo,excluindo a atipicidade dessa modalidade especial dedano. Deve-se ter presente, à evidência, que, emcaráter residual e subsidiário, permanece o crime de

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dano tipificado no art. 163.Não há exigência de elemento subjetivo especial

do injusto. A conduta culposa é impunível.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime de alteração de localespecialmente protegido com a alteração efetiva deaspecto do local, causando modificação no mundoexterior. Faz-se necessário que a ação do agentealtere formalmente determinado local, que sejaprotegido por lei. Eventual consentimento daautoridade competente não só afasta a adequaçãotípica como também a própria antijuridicidade,passando a ser uma conduta lícita.

Admite-se, em tese, a tentativa, tratando-se, pois,de crime material, cuja execução admitefracionamento. A ação humana pode serinterrompida durante sua execução antes que aalteração pretendida pelo agente se concretize.

7. Classificação doutrinária

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Trata-se de crime comum (porque não exigecondição especial do sujeito ativo); material, namedida em que produz um resultado naturalístico;doloso (não há previsão legal para a figura culposa),embora o dano culposo também seja ilícito, devendobuscar sua reparação na esfera civil; de forma livre(pode ser praticado por qualquer meio, forma oumodo); instantâneo (a consumação opera-se deimediato, não se alongando no tempo); unissubjetivo(pode ser praticado, em regra, apenas por umagente); plurissubsistente (pode ser desdobrado emvários atos, que, no entanto, integram a mesmaconduta), isto é, seu iter criminis pode serfracionado, permitindo, consequentemente, atentativa.

8. Questões especiais

O atual Anteprojeto de Código Penal, ParteEspecial, suprimiu esse tipo penal. O Decreto-Lei n.25, de 30 de novembro de 1937, prevê o tombamentode sítios e paisagens. A denúncia precisa indicarqual a lei que protege especialmente o local. Adúvida sobre a existência de proteção legal podeconfigurar dolo eventual. A rigor, a objetividade

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jurídica, na essência, é a mesma do art. 165, sendodiferentes somente as condutas tipificadas.

9. Pena e ação penal

A pena cominada, pela redação original doCódigo Penal, era, alternativamente, detenção, deum mês a um ano, ou multa. A partir da vigência daLei Ambiental (Lei n. 9.605/98), a pena privativa deliberdade passou a ser de um a três anos de reclusão,agora cumulada com a pena de multa.

A ação penal é de natureza públicaincondicionada, devendo, em consequência, aautoridade competente agir de ofício. A natureza dobem jurídico protegido — local especialmenteprotegido por lei — recomenda essa opção dolegislador de 1940.

As diferentes modalidades de ação penal já foramanotadas em cada artigo deste capítulo. Ela é públicanos crimes de dano qualificado (art. 163, I, II e III),nas figuras previstas nos arts. 165 e 166. Nas figurasprevistas no art. 163, no inciso IV do seu parágrafoúnico e no art. 164, a ação é de exclusiva iniciativaprivada.

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1 Victor Eduardo Rios Gonçalves, Dos crimes contra opatrimônio, 5. ed., São Paulo, Saraiva, 2002 (Col. SinopsesJurídicas, v. 9).2 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 117.3 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 339.

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CAPÍTULO XV - DA APROPRIAÇÃO INDÉBITA

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos do crime. 3.1. Sujeito ativo. 3.2.Sujeito passivo. 4. Pressuposto daapropriação indébita. 5. Tipo objetivo:adequação típica. 6. Tipo subjetivo:adequação típica. 7. Consumação etentativa. 8. Classificação doutrinária. 9.Formas majoradas de apropriaçãoindébita. 9.1. Coisa recebida emdepósito necessário. 9.2. Qualidadepessoal do agente: tutor, curador,síndico, liquidatário, inventariante,testamenteiro ou depositário judicial.9.3. Em razão de ofício, emprego ouprofissão. 10. Apropriação, furto eestelionato. 11. Compra e venda,depositário infiel e apropriação indébita.12. Apropriação indébita e relaçãomandante-mandatário. 13. Pena e açãopenal. 14. Algumas questões especiais.

Capítulo V

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DA APROPRIAÇÃO INDÉBITA

Apropriação indébita

Art. 168. Apropriar-se de coisa alheia móvel, deque tem a posse ou a detenção:

Pena — reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, emulta.Aumento de pena

§ 1º A pena é aumentada de um terço, quando oagente recebeu a coisa:

I — em depósito necessário;

II — na qualidade de tutor, curador, síndico,liquidatário, inventariante, testamenteiro oudepositário judicial;

III — em razão de ofício, emprego ou profissão.• Publicado como § 1º o único parágrafo deste

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artigo.

1. Considerações preliminares

Os antecedentes mais remotos do crime deapropriação indébita remontam aos Códigos deHamurabi e de Manu, que, no entanto, puniam comofurto a apropriação de coisas perdidas, recebidas emdepósito, compradas sem contrato ou testemunhas,além da descoberta de tesouro. No entanto, até finsdo século XVIII, a apropriação indébita era somenteuma espécie do gênero furto. O direito romanodesconheceu até mesmo a distinção entreapropriação indébita e estelionato (furtum propriume furtum improprium), que somente mais tarde foielaborada pela doutrina alemã, por política criminal,ao pretender limitar o conceito do crime de furto,evitando a exacerbação de penas. Contudo, atipificação como crime autônomo, sob adenominação de abuso de confiança, foi obra dodireito francês, por meio do Código de 1791, sendorepetida pelo Código Napoleônico de 1810, o queacabou por influenciar outros Códigos europeus,como o português, o suíço e o sardo1.

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No Brasil, as Ordenações Filipinas não faziamdistinção entre furto e apropriação indébita. OsCódigos de 1830 (art. 258) e 1890 (art. 331) nãotiveram melhor sorte. O Projeto Sá Pereira seguiu odireito francês, adotando o nomem juris “abuso deconfiança”.

Na realidade, a atual terminologia, “apropriaçãoindébita”, foi uma opção correta, diga-se depassagem, do Projeto Alcântara Machado, semrestringir-se a um abuso de confiança. Exatamenteessa orientação foi a adotada pelo Código Penal de1940, com a seguinte definição: apropriar-se decoisa alheia móvel, de que tem a posse ou detenção.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é a inviolabilidade dopatrimonial, particularmente em relação àpropriedade. Na verdade, protege o direito depropriedade, direta e imediatamente, contra eventuaisabusos do possuidor, que possa ter a intenção dedispor da coisa alheia como se fosse sua2. Esse jáera o entendimento sustentado por Galdino Siqueira:“A transferência da coisa deve ser feita a títuloprecário, com a obrigação de restituí-la ou de fazer

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dela uso determinado, por isso que a apropriaçãoindébita é uma ofensa ao direito de propriedade enão ao direito de posse”3.

Acreditamos, no entanto, que o dispositivo emexame protege mais do que o simples direito depropriedade. Os direitos reais de garantia, como ousufruto e o penhor, também estão protegidospenalmente, uma vez que o usufrutuário, assim comoo devedor, pode apropriar-se indevidamente da res,violando o direito do nu-proprietário ou do credorpignoratício.

Ao contrário do que ocorre no crime de furto, aposse não recebe, por este dispositivo, a tutelajurídica.

O Código Penal brasileiro silenciou sobre aelementar abuso de confiança, ao contrário deinúmeros Códigos europeus, por influência do direitofrancês. Pode existir, e na maioria das vezes é normalque exista, uma relação de fidúcia na prática dessetipo de crime, mas, decididamente, não é elementoindispensável a sua configuração. É necessário esuficiente que a justa posse ou detenção exercidapelo agente, alieno domine, sobre a coisa alheia,preexista à ilícita apropriação.

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3. Sujeitos do crime

3.1 Sujeito ativo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa que tenhaa posse ou detenção legítima de coisa alheia móvel.O proprietário não pode ser sujeito ativo dessecrime; assim, sujeito ativo será sempre pessoadiversa do proprietário, seja possuidor ou detentor,independentemente de haver recebido a posse oudetenção de terceiro. O nu-proprietário, por exemplo,que vende a coisa que o usufrutuário, por algumarazão, lhe emprestara responderá pelo crime deestelionato; contudo, o usufrutuário que a aliena semo consentimento do nu-proprietário responde porapropriação indébita.

O condômino, sócio ou coproprietário tambémpode ser sujeito ativo de apropriação indébita, desdeque não se trate de coisa fungível e a apropriaçãonão exceda à quota que lhe cabe.

3.2 Sujeito passivo

Sujeito passivo é qualquer pessoa, física oujurídica, titular do direito patrimonial atingido pela

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ação tipificada; em regra, é o proprietário, e,excepcionalmente, o mero possuidor, quando aposse direta decorra de direito real (usufruto oupenhor), uma vez que se relacionam à propriedade.Assim, não apenas o dono da coisa pode ser sujeitopassivo de apropriação indébita como também otitular de direito real de garantia, como usufrutuárioou credor pignoratício.

4. Pressuposto da apropriação indébita

O pressuposto do crime de apropriação indébitaé a anterior posse lícita da coisa alheia, da qual oagente se apropria indevidamente. A posse, quedeve preexistir ao crime, deve ser exercida peloagente em nome alheio, isto é, em nome de outrem.

É necessário que o agente possa terdisponibilidade física direta ou imediata da coisaalheia subsequente à traditio voluntária, livre econsciente. Contudo, a essa disponibilidade materialnão deve corresponder a disponibilidade jurídica utidominus. O que o agente possuía alieno dominepassa a possuir causa dominii. “Dá-se umacontradictio entre causa possessionis veldetentionis e a superveniente conduta do agente em

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relação à coisa possuída ou detida”4. Com efeito,não há violação da posse material do dominus, pois acoisa alheia já se encontra no legítimo e desvigiadopoder de disponibilidade física do agente.

5. Tipo objetivo: adequação típica

A ação incriminada consiste em apropriar-se decoisa alheia móvel de que o agente tem a posse oudetenção. Apropriar-se é tomar para si, isto é,inverter a natureza da posse, passando a agir comose dono fosse da coisa alheia de que tem posse oudetenção. Na apropriação indébita, ao contrário dofurto e do estelionato, o sujeito passivo tem,anteriormente, a posse lícita da coisa. Recebe-alegitimamente.

Pressuposto do crime de apropriação indébita,reiterando, é a anterior posse lícita da coisa alheia,da qual o agente se apropria indevidamente. Comoafirmava Heleno Fragoso, “a posse que devepreexistir ao crime deve ser exercida pelo agente emnome alheio (nomine alieno), isto é, em nome deoutrem, seja ou não em benefício próprio”5. Querdizer, nesse crime, o dolo é subsequente, pois a

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apropriação segue-se à posse da coisa. Na verdade,no crime de apropriação indébita há uma alteração dotítulo da posse, uma vez que o agente passa a agircomo se dono fosse da coisa alheia de que tem aposse legítima. É fundamental a presença doelemento subjetivo transformador da natureza daposse, de alheia para própria. Ao contrário do crimed e furto, o agente tem a posse lícita da coisa.Recebe-a legitimamente. Muda somente o animusque o liga à coisa.

Este primeiro elemento — posse legítima de coisaalheia móvel —, sobre o qual se deve inverter oanimus rem sibi habendi, é indispensável a exame dacaracterização do crime de apropriação indébita. Emnão havendo a anterior posse legítima de coisaalheia móvel, não se pode falar em apropriaçãoindébita, onde a inversão do título da posse éfundamental.

No entanto, se o sujeito ativo age de má-fé,mantendo em erro a vítima, que entrega a coisa,ludibriada, pratica o crime de estelionato, e não o deapropriação indébita. Ao contrário, se a vontade depossuir a coisa, isto é, o animus, antecede a posse,que já é adquirida em nome próprio e não no deterceiro, não se configura apropriação indébita.

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6. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo é o dolo, constituído pelavontade livre e consciente de apropriar-se de coisaalheia móvel de que tem a posse em nome de outrem,ou, em outros termos, a vontade definitiva de nãorestituir a coisa alheia ou desviá-la de sua finalidade.

O dolo — que se encontra na ação — deveabranger todos os elementos configuradores dadescrição típica, sejam eles fáticos, jurídicos ouculturais. O autor, como afirma Claus Roxin, somentepoderá ser punido pela prática de um fato dolosoquando conhecer as circunstâncias fáticas que oconstituem6. Eventual desconhecimento de um ououtro elemento constitutivo do tipo constitui erro detipo, excludente do dolo. O dolo é, na espécie, comoafirma Fernando Fragoso, “a vontade deassenhorear-se de bem móvel (animus rem sibihabendi), com consciência de que pertence a outrem,invertendo o título da posse”7. Em outros termos, oagente deve ter vontade e consciência de apropriar-se de coisa alheia, isto é, de tomar para si coisa quenão lhe pertence. Essa é a representação subjetivaque deve abranger e orientar a ação do sujeito ativo.

No crime de apropriação indébita, como járeferimos, há uma inversão do título da posse, já que

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o agente passa a agir como se dono fosse da coisaalheia de que tem a posse legítima. É fundamental apresença do elemento subjetivo transformador danatureza da posse, de alheia para própria, comoelemento subjetivo especial do injusto, sob pena denão se configurar a apropriação indevida.

Afirma-se que, nesse crime, o dolo ésubsequente, pois a apropriação segue-se à posselícita da coisa. O dolo é, na espécie, como afirmaFernando Fragoso, “a vontade de assenhorear-se debem móvel (animus rem sibi habendi), comconsciência de que pertence a outrem, invertendo otítulo da posse”8. Contrariando esse entendimento,Heleno Fragoso sustentava que “não existe dolosubsequente... O dolo deve necessariamente dominara ação (ressalvada a situação excepcional de actiolibera in causa), e no caso se revela com aapropriação, ou seja, quando o agente inverte otítulo da posse”9.

Na verdade, embora pareça, não chegam a sercontraditórias as duas orientações; basta que seprocure emprestar maior precisão aos termosempregados, isto é, deve-se interpretaradequadamente o sentido da locução “dolosubsequente”. Explicando: não se desconhece que o

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dolo, necessariamente e sempre, tem de ser atual, istoé, contemporâneo à ação proibida. Se fosse anterior,estar-se-ia diante de um crime premeditado; se fosseposterior, de crime não se trataria, pois a condutapraticada não teria sido orientada pelo dolo. Comefeito, quando se fala em dolo subsequente não seestá pretendendo afirmar que o dolo é posterior àação de apropriar-se, como pode ter interpretadoHeleno Fragoso; logicamente, busca-se apenasdeixar claro que é necessário o animus apropriandiocorrer após a posse alieno nomine.

7. Consumação e tentativa

O momento consumativo do crime de apropriaçãoindébita, convém registrar de plano, é de difícilprecisão, pois depende, em última análise, de umaatitude subjetiva.

A consumação da apropriação indébita e, porextensão o aperfeiçoamento do tipo, coincidem comaquele momento em que o agente, por ato voluntárioe consciente, inverte o título da posse exercida sobrea coisa, passando a dela dispor como se proprietáriofosse. Contudo, a certeza da recusa em devolver acoisa somente se caracteriza por algum ato externo,

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típico de domínio, com o ânimo de apropriar-se dela.O animus rem sibi habendi, característico do

crime de apropriação indébita, precisa ficardemonstrado à saciedade. Se o agente não manifestaa intenção de ficar com a res e, ao contrário, a restituià vítima tão logo possível, o dolo da apropriaçãoindébita não se aperfeiçoa. A simples demora nadevolução da res, quando não existe prazo previstopara tanto, não caracteriza o delito de apropriaçãoindébita.

Consuma-se, enfim, com a inversão da naturezada posse, caracterizada por ato demonstrativo dedisposição da coisa alheia ou pela negativa emdevolvê-la.

Como crime material, a tentativa é possível,embora de difícil configuração. Hungria criticavaduramente a corrente contrária à admissibilidade datentativa nos termos seguintes: “Não acolhemos aopinião daqueles que entendem não ser possível atentativa de apropriação indébita. É ela configurávelnão apenas no exemplo clássico do mensageiro infielque é surpreendido no momento de violar o envelopeque sabe conter valores, senão também toda a vezque a apropriação encerra um iter ou, como dizHafter, se executa mediante um ato reconhecível abexterno (‘einen äusserlich erkennbaren Akt’), como,

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por exemplo, venda ou penhor”10.A despeito da dificuldade de sua comprovação, a

identificação da tentativa fica na dependência dapossibilidade concreta de se constatar aexteriorização do ato de vontade do sujeito ativo,capaz de demonstrar a alteração da intenção doagente de apropriar-se da coisa alheia. Não se podenegar a configuração da tentativa quando, porexemplo, o proprietário surpreende o possuidorefetuando a venda de coisa que lhe pertence esomente a intervenção daquele — circunstânciaalheia à vontade do agente — impede a tradição dacoisa ao comprador, desde que nenhum ato anteriortenha demonstrado essa intenção. MagalhãesNoronha e Heleno Fragoso, embora assumindo aexistência de controvérsia, reconhecem que, comocrime de dano, a apropriação indébita,doutrinariamente, admite a tentativa11.

8. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (aquele que não exigequalquer condição especial do sujeito ativo).Discordamos daqueles que classificam a apropriação

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indébita como crime próprio, pois não consideramosque o pressuposto da anterior posse legítima dacoisa possa ser considerado condição especial,capaz de qualificar a infração como crime próprio;material (exige resultado naturalístico, representadopela diminuição do patrimônio da vítima); comissivoou omissivo (pode ser praticado tanto por ação comopor omissão); doloso (não há previsão legal para afigura culposa); de forma livre (pode ser praticadopor qualquer meio, forma ou modo); instantâneo (oresultado opera-se de forma imediata, sem prolongar-se no tempo); unissubjetivo (pode ser praticado, emregra, apenas por um agente); plurissubsistente(pode ser desdobrado em vários atos, que, noentanto, integram a mesma conduta).

9. Formas majoradas de apropriação indébita

A apropriação indébita não apresentaestritamente figuras qualificadas12, mas prevêhipóteses de causas de aumento de pena(majorantes) no § 1º do art. 168, cuja elevaçãoobrigatória será em um terço. Tratando-se demajoração compulsória, deve-se examinar acaracterização dessas majorantes com mais rigor e de

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forma restritiva, como recomenda a dogmática penal.São as seguintes situações em que o agente recebe acoisa:

9.1 Coisa recebida em depósito necessário

O direito civil distingue o depósito em necessário(art. 647 do CC) e voluntário (art. 627). Para o direitopenal, pelo que deste dispositivo consta, o depósitovoluntário não recebe a mesma proteção penal; emoutros termos, essa posse, transformada,indevidamente, em domínio pelo depositário, poderácaracterizar apropriação indébita simples, semqualquer majoração especial.

O depósito necessário pode ser legal oumiserável. É legal quando decorre de expressaprevisão normativa, quando se pode escolher odepositário. Será miserável o depósito, por outrolado, quando feito em situações excepcionais, quereduzam, embora não anulem, a possibilidade deescolha do depositante (calamidade, como incêndio,inundação, naufrágio ou saque). O depósitonecessário, disciplinado no inciso I do § 1º do art.168, é apenas aquele conhecido como miserável, ouseja, levado pela necessidade de salvar a coisa daiminência de uma calamidade, ou, como define o

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próprio Código Civil, “o que se efetua por ocasião dealguma calamidade, como o incêndio, a inundação, onaufrágio ou o saque” (art. 647). Está excluído, porconseguinte, o depósito legal.

A apropriação do depósito legal pode configurarpeculato (quando se tratar de funcionário público)ou outro crime, que pode até ser a apropriaçãoindébita majorada por outro fundamento (e não pelodepósito necessário). A apropriação de depósitomiserável configura a majoração em exame (pordepósito necessário).

Depósito necessário significa que o sujeitopassivo não tem outra escolha, está obrigado aconfiar o objeto ou valor ao agente. Por isso odesvalor da ação é mais grave, sendo merecedor demaior reprovação, em razão da vulnerabilidade dosujeito passivo, que ficou à mercê do depositário.“Tal relação de dependência — destaca Regis Prado— impõe um dever maior de probidade deste. Assim,a infração penal praticada na referida circunstânciaacentua a gravidade do injusto, não só pelo maiordesvalor da ação, mas também pelos notórios efeitosdeletérios causados pela infração”13. Realmente, ofundamento da majoração especial da punição residena falta de liberdade de escolha do depositante, que,premido pelas circunstâncias, torna-se presa

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vulnerável. Em contrapartida, o dever de probidadedo depositário aumenta na mesma proporção, pelomúnus público que exerce, ainda que não se trate deuma função pública.

O Código Civil equiparou o depósito originado dehospedagem ao depósito necessário (art. 649). Nãose pode esquecer, contudo, que em direito penal nãoprevalecem as ficções do direito privado. Comefeito, os hospedeiros que se apropriarem dosobjetos dos hóspedes que lhes tenham sidoconfiados cometerão apropriação indébita. Amajorante que incidirá, no entanto, não será a dedepósito necessário, mas a de abuso de confiançano exercício de profissão (art. 168, § 1º, III, do CP)14.Não se deve confundir, ademais, o ato deempregados “afanarem” pertences dos hóspedes,uma vez que essa conduta constitui furto e nãoapropriação indébita.

9.2 Qualidade pessoal do agente: tutor, curador,síndico, liquidatário, inventariante,testamenteiro ou depositário judicial

Esse rol contido no inciso II é numerus clausus,não admitindo a inclusão de qualquer outra hipótesesemelhante, ou seja, não abrange pessoa que

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desempenhe função diversa das relacionadas nodispositivo, por exemplo, o administrador judicial,que administra os bens da recuperação judicial ou dafalência, sob pena de violar o princípio da reservalegal. O fundamento dessa majorante é o de que, nascondições elencadas, o sujeito ativo viola tambémdeveres inerentes ao cargo ou função quedesempenha, na verdade justificador de maiorreprovabilidade social. São funções que exigem maiorabnegação do indivíduo, que geram uma expectativade segurança e seriedade, provocando eventualconduta ilícita maior censura; por isso o crimepraticado caracteriza infidelidade a um múnuspúblico.

Tutor é alguém que, devidamentecompromissado, assume o dever de orientar, reger eeducar menor não sujeito ao pátrio poder, ou “poderfamiliar”, além de administrar seus bens. Curador équem exerce, basicamente, as mesmas funções, masem relação a pessoas maiores declaradas incapazes,que, por deficiência mental, não podemautoadministrar-se nem administrar seus bens. Tantotutor quanto curador devem ser judicialmenteconstituídos.

Síndico era a denominação que se dava aoencarregado da administração da falência, mais

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especificamente da massa falida, sob direção esuperintendência do juiz na antiga Lei de Falências(Decreto-lei n. 7.661/45). Atualmente, porém, a Lei deFalências (Lei n. 11.101/2005) denominaadministrador judicial a pessoa que exerce essafunção. O inventariante, por sua vez, administra oespólio até o final julgamento da partilha.Testamenteiro é aquele que é incumbido depromover o cumprimento de disposições de últimavontade do de cujus, isto é, seu testamento. Ospoderes e as obrigações do testamenteiro sãodisciplinados pelo Código Civil. Depositário judicialé o funcionário encarregado de receber em depósitoa guarda de móveis, joias, títulos de crédito, metaispreciosos, objeto de ações ou processos judiciais. Sefor funcionário público, responderá por peculato enão por apropriação indébita. Incorrerá, contudo, namajorante em exame se se tratar de particularnomeado pelo juiz.

Pois bem, em todas essas funções, a honestidadee a idoneidade moral assumem importânciatranscendental, e exatamente por isso a violaçãodesse dever justifica maior punição. Nesse sentido,já destacava Nélson Hungria: “A razão daqualificativa é evidente: a infidelidade do agente, emtais casos, envolve a traição a um múnus público”15.

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9.3 Em razão de ofício, emprego ou profissão

O fundamento da majorante deste inciso é omesmo do anterior, pois igualmente aqui o sujeitoativo viola deveres inerentes a sua qualidadeprofissional-funcional. Em outros termos, em razãoda natureza da atividade laborativa, o sujeito ativotem sua ação criminal facilitada, em razão daconfiança existente entre ele e a vítima.

Somente se configura qualquer das causas deaumento em exame se a conduta proibida forpraticada em razão de ofício, emprego ou profissão,sendo insuficiente que exista objetivamente aqualidade ou condição do sujeito ativo. Em outrostermos, é indispensável que a apropriação indébitase concretize por meio de ato característico de ofício,emprego ou profissão, já que, se não dermos umainterpretação restritiva a qualquer dessasagravantes, raras serão as hipóteses em que aapropriação indébita se apresentará sem aumento depena. O exemplo, nesse sentido, lembrado porMagalhães Noronha é definitivo: “Assim, se umapessoa paga a um ourives o serviço que lhe fez emuma joia, e não tendo ele troco, passa o dono maistarde para recebê-lo, o que não consegue,apropriando-se aquele da diferença, cometeapropriação indébita simples. Trata-se de pagamento

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de serviço, de remuneração própria de todo equalquer trabalho. Não é ele recebedor ou trocadorde dinheiro. Cometeria, entretanto, apropriaçãoindébita com a majorativa, se não restituísse a joiaentregue para conserto ou reparação, pois, nestecaso, ele a recebeu em razão de ofício”16.

Ofício refere-se à arte, mecânica ou manual,exigindo certo grau de habilidade ou conhecimento,embora possa ser empregado com o significado defunção pública. Entende-se por ofício qualquerocupação habitual consistente em prestação deserviços ou trabalhos manuais (artesão, alfaiate,cabeleireiro etc.). Emprego é a relação de ocupaçãoem atividade ou serviço particular e, como regra,implica um vínculo de subordinação ou dependênciaentre as partes. Profissão é toda e qualquer atividadehabitualmente desenvolvida pelo indivíduo com fimlucrativo. Não nos parece a definição mais adequadaa que considera profissão como “o exercício deocupação de natureza intelectual e independente”.Profissão, sintetizava Hungria, é um gênero do qualsão espécies o ofício e o emprego17.

10. Apropriação, furto e estelionato

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Na apropriação indébita, ao contrário do crimede furto ou estelionato, o agente tem a posse lícitada coisa. Recebeu-a legitimamente; muda somente oanimus que o liga à coisa. No entanto, se o agente arecebe de má-fé, mantendo em erro quem a entrega,pratica o crime de estelionato e não o de apropriação.

Com efeito, o que distingue a apropriaçãoindébita desses crimes é que com ela não se produzviolação da posse material do dominus: a coisa não ésubtraída ou ardilosamente obtida, pois já seencontra no legítimo poder de disponibilidade físicado agente. Enquanto nesses crimes a disponibilidadefática sobre a res é obtida com o próprio crime, naapropriação indébita essa disponibilidade físicaprecede ao crime. No furto, há uma subtração; noestelionato, uma obtenção fraudulenta; naapropriação indébita, uma arbitrária inversão danatureza da posse. No furto, o agente obtémtirando; no estelionato, enganando; na apropriaçãoindébita, aproveitando-se. Naqueles crimes há umdolus ab initio, enquanto na apropriação indébita odolo é subsequente.

11. Compra e venda, depositário infiel e apropriaçãoindébita

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A compra e venda é, inegavelmente, um institutoregulado pelo direito privado. O inadimplemento daobrigação assumida, em princípio, deve encontrarsolução nessa seara jurídica. Contudo, nem sempre oadimplemento ou inadimplemento de negócios, açõese obrigações permanecem nos limites estreitos dodireito obrigacional. Essas celebrações podem, porvezes, extrapolar os extremos do direito extrapenal(por exemplo, pelo emprego de fraude, má-fé etc.),invadindo os domínios territoriais do direitorepressivo. Porém, em se tratando de relaçãoobrigacional inadimplida, recomenda-se maiorcautela em sua avaliação no campo penal.

“A” e “B” celebram uma compra e venda deanimais; aquele vende a este. Celebrada a operação,pago o preço ajustado, de comum acordo, “A” retémem sua posse os animais vendidos. Solicitado,posteriormente, por “B”, resolve não lhe entregar osanimais, nem mesmo os que nasceram nesse período,sem apresentar um motivo justificável. Afinal,estamos diante de mero inadimplemento contratual?Estaria configurada a hipótese do depositário infiele, também, por conseguinte, qualquer possibilidadede tipificar algum crime contra o patrimônio?Passamos a examinar essa questão.

Considerando que, em direito penal, “posse” e

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“detenção” são expressões utilizadas comosinônimas, convém registrar a lição oferecida porHeleno Fragoso: “No que concerne à retenção, não éindispensável que seja o agente constituído emmora, mas o simples inadimplemento contratual nãodeve ser confundido com a apropriação indébita. Sehouver prazo convencionado para a restituição, nãohaverá crime antes de seu decurso, salvo se o agentepraticar ato que impeça a devolução. Se não houverprazo, basta a exigência inequívoca de restituição”18.Havendo razão legítima para a não devolução, nãohaverá crime, como é o caso do direito de retenção(arts. 644 e 681 do CC) ou de compensação (arts. 368e s. do CC).

Desconhecemos se a doutrina brasileira enfrentoudiretamente a questão. Magalhães Noronhatangenciou o problema, concluindo, com um exemploconfuso, pela inviabilidade da apropriação indébita,justificando que na compra e venda trata-se detransferência de domínio19. O próprio Hungriacriticou essa orientação de Noronha, lembrando que,pelo exemplo, o contrato não estava perfeito eacabado. No entanto, estamos nos ocupandosomente da posse direta pelo vendedor que vendeue transferiu o domínio e a posse indireta, recebendoo justo preço e dando quitação. Por isso, o exemplo

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de Noronha, no caso, é impertinente.Pressuposto do crime de apropriação indébita,

repetindo, é a anterior posse lícita da coisa alheia, daqual o agente se apropria indevidamente. Quer dizer,nesse crime, o dolo é subsequente, pois aapropriação segue-se à posse da coisa. Na verdade,no crime de apropriação indébita há uma inversão dotítulo da posse, uma vez que o agente passa a agircomo se dono fosse da coisa de que tem a posselegítima. É fundamental a presença do elementosubjetivo transformador da natureza da posse, dealheia para própria. Ao contrário do crime de furto, oagente tem a posse lícita da coisa. Recebe-alegitimamente. Muda somente o animus que o liga àcoisa.

A apropriação indébita é constituída pelosseguintes elementos: a) precedente, posse oudetenção; b) coisa alheia móvel; c) apropriação; d)dolo (genérico e específico).

Deve-se ter presente que a simples mora em“entregar” ou “restituir” ou a simples desídia noomitir não constitui por si só apropriação indébita.“É preciso, antes de tudo, não confundir comapropriação indébita os casos em que apenas caberecurso ao juízo civil”20.

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A antijuridicidade, ou ilicitude, como queiram,não é um instituto exclusivo do direito penal; aocontrário, é um conceito universal, válido para todasas esferas do mundo jurídico. Como destaca MuñozConde, “o Direito Penal não cria a antijuridicidade,senão seleciona, por meio da tipicidade, uma partedos comportamentos antijurídicos, geralmente osmais graves, cominando-os com uma pena”21. Naverdade, a antijuridicidade é qualidade de uma formade conduta proibida pelo ordenamento jurídico. Háum injusto penal específico, do mesmo modo que háu m injusto tributário, um injusto civil ouadministrativo específico etc.; porém, existe somenteuma antijuridicidade para todos os ramos do direito,por isso não se pode confundir injusto com ilicitude,pois esta é uma qualidade daquele. Todas asmatérias de proibição, reguladas nos diversossetores da seara jurídica, são também antijurídicaspara todo o ordenamento jurídico22.

Na verdade, um ilícito civil (ou administrativo)pode não ser um ilícito penal, mas a recíproca não éverdadeira, pois este terá de ser sempre típico. Comefeito, a inexistência do ilícito civil constituiobstáculo irremovível para o reconhecimentoposterior do ilícito penal, pois o que é civilmentelícito, permitido, autorizado, não pode ser, ao mesmo

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tempo, proibido e punido na esfera penal, maisconcentrada de exigências quanto à ilicitude(antijuridicidade). Imaginem-se dois círculosconcêntricos: o menor, o ilícito penal, maisconcentrado de exigências (tipicidade, elementosubjetivo etc.); o maior, o ilícito extrapenal, commenos exigências para sua configuração. O ilícitosituado dentro do círculo menor — penal — nãopode deixar de estar também dentro do maior, porquese localiza em uma área física comum aos doiscírculos, que possuem o mesmo centro; no entanto,não ocorre o mesmo com o ilícito situado no círculomaior — extrapenal —, cujo espaço periférico, muitomais abrangente, extrapola o âmbito do ilícito penal,salvo se for limitado pela tipicidade penal.

Nessa mesma linha de raciocínio, pode-seconstatar que a possibilidade de configurar-se ahipótese do “depositário infiel” não afasta, por si só,a possibilidade da tipificação de algum crime contra opatrimônio (furto, estelionato, apropriação indébitaetc.). Em realidade, em toda apropriação indébitaexiste, subsidiariamente, uma “infidelidadedepositária”. O inverso, contudo, não é verdadeiro.Em outros termos: não pode existir crime deapropriação indébita sem que se configure,simultaneamente, a infração civil de depositário

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infiel; inversamente, poderá haver infringência denorma civil (depositário infiel), ilicitude civil,portanto, sem que, contudo, ocorra fato delituoso.

Nélson Hungria, refletindo sobre as espécies de“depositários”, afirmava: “A infidelidade dodepositário legal (stricto sensu), que é sempre umfuncionário público, recebendo a coisa ‘em razão docargo’, constitui o crime de peculato (art. 312).Quanto ao depositário judicial, é ele contempladono inc. II, de modo que sua infidelidade éapropriação indébita qualificada, e não peculato; masisto, bem entendido, quando seja um particular”23.Enfim, essa passagem autografada por Hungria deixamuito clara a existência subjacente da figura dodepositário infiel nos crimes de peculato e deapropriação indébita, sem qualquer cogitação doafastamento dos tipos penais em razão da infraçãocivil. Algo semelhante, apenas para exemplificar,ocorre com o crime de dano (art. 163 do CP), que nãoé afastado pelo fato de também configurar ilícitocivil, a despeito de ser identificado o responsávellegal por sua reparação. Com efeito, o vendedor que,de comum acordo com o comprador, retarda aentrega da coisa, recusando-se a fazê-lo, quandoinstado, inverte a natureza da posse, ou seja, deixade possuir alieno nomine e integra os animais (que

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vendera e não entregara) em seu patrimônio,dispondo deles como se dono fosse, isto é, com opropósito de não entregá-los a quem de direito ou denão lhes dar o destino a que estava obrigado.

A partir da seguinte lição de Hungria poder-se-ádesenvolver melhor esse tema: “O reconhecimentoda apropriação indébita é uma quaestio facti a serresolvida, de caso em caso, pelo juiz, que, entretanto,não deve tomar a nuvem por Juno. Por vezes,denuncia-se ela re ipsa (ex.: venda da coisainfungível recebida em depósito ou locação); mas,outras vezes, faz-se necessária uma detidaapreciação das comprovadas circunstâncias. É demister que fique averiguado, de modo convincente, opropósito de não restituir ou a consciência de nãomais poder restituir. A abusiva retenção oudisposição da coisa pode não ser acompanhadadessa subjetividade”24.

Dessa passagem de Hungria se constata que,para ele, presentes os demais requisitos (posse oudetenção anterior legítima), é fundamental examinar asubjetividade, qual seja, o propósito de não restituirou a consciência de não poder fazê-lo, que, sepresente, pode configurar a apropriação indébita.Não é o mero inadimplemento de uma obrigação oua simples impontualidade de uma contraprestação

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que pode caracterizar a apropriação indébita, masserá a má-fé na inversão arbitrária da natureza daposse que transmudará de alieno domine para utidominus. Pois é exatamente essa má-fé quetransforma aquilo que seria um ilícito civil em umilícito penal, ou, nas próprias palavras de Hungria,“a abusiva retenção ou disposição da coisa”,acompanhada dessa subjetividade negativa,transforma simples ilícito civil em crime.

Situação semelhante à do vendedor que posterga,autorizadamente, a entrega da coisa ao comprador é asituação da apropriação indébita de coisa comum:ou seja, em ambas não há a entrega legítima da coisaao agente, pois ele já se encontra na posse direta dares. É a inversão da natureza da posse (de alienodomine para uti dominus) mantida pelo agente —vendedor no primeiro exemplo e possuidor comum,no segundo — que caracteriza a apropriaçãoindébita. Se a circunstância fática de o vendedorinadimplente não ter recebido a coisa de outrem, masdecorrer da propriedade que mantinha originalmente,fosse impeditivo da apropriação indébita, estatampouco poderia verificar-se na apropriação decoisa comum, cuja possibilidade é admitida portodos25. Aliás, o natimorto Código Penal de 1969previa expressamente o tipo penal de apropriação

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indébita de coisa comum (art. 181).Aliás, pode haver o crime de apropriação

indébita (por parte do comprador) — como denunciaMagalhães Noronha — na compra e venda comreserva de domínio, isto é, em que há tradição dacoisa (posse), mas não existe transferência dedomínio26. Por que o inverso não poderia serpossível? Apenas o vendedor teria direito a umaproteção especial a sua relação negocial (nãoesquecendo que a venda com reserva de domíniotransforma o comprador em fiel depositário, que, emnossa ótica, não afasta por si só a possibilidade decrime).

O abuso de confiança não constitui, no direitobrasileiro, elementar típica do crime de apropriaçãoindébita, como ocorria nas legislações que seguiramo antigo modelo francês. “A relação de fidúcia —destacava Nélson Hungria — pode intervir, e émesmo nota frequente do crime, importando, aliás,em casos especiais, condição de maiorpunibilidade; mas não deve ser consideradoelemento imprescindível: pode ocorrer o crime semque interfira abuso de confiança ou um fidem fallere,como, entre vários exemplos, no caso do ímprobonegotiorum gestor, ou em que o precedente poder dedisposição física da coisa tenha resultado ope legis.

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O que é necessário e suficiente é que à ilícitaapropriação preexista a justa posse ou detençãoexercida pelo agente, alieno nomine, sobre acoisa”27. Ora, é exatamente o que ocorre na comprae venda de animais, cuja entrega efetiva épostergada, de comum acordo, mantendo o vendedora posse direta, alieno nomine. A recusa, aposteriori, da entrega dos animais vendidos,inclusive daqueles que vieram a nascer, nãorepresenta simplesmente mero inadimplementocontratual a resolver-se na esfera civil. Caracteriza-se, na verdade, uma infidelidade convertedora, semjusta causa, de posse exercida alieno nomine em utidominus, uma vez que a posse mantida pelovendedor não era mais aquela posse corolário dodireito de propriedade, mas tão somente posseprovisória (direta e legítima) exercida em nome deterceiro (do comprador). Mais uma vez socorremo-nos do magistério de Hungria que, tratando doabuso de confiança ou infidelidade, conclui: “Se sepode falar, na espécie, em infidelidade, de modogenérico, é a do agente em relação ao título da posseou detenção, que ele converte, de ajustado,permitido ou tolerado poder de disponibilidade atítulo provisório ou precário, em poder dedisponibilidade uti dominus. O que ele possuía

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causa mandati, depositi, pignoris, commodati,locationis, etc., ou detinha como simples fâmulo daposse ou instrumental longa manus de outrem,passa a possuir causa dominii. Dá-se umacontradictio entre a causa possessionis veldetentionis e a superveniente conduta do agente emrelação à coisa possuída ou detida”28.

O objeto do contrato — animais determinados —não pode ser confundido com mútuo (o mutuário sefaz dono da coisa mutuada), já que não houvecláusula de entregar “objetos do mesmo gênero,qualidade e quantidade” (art. 645 do CC). Aliás, aobrigação é de entregar não só os animais vendidos,como todos aqueles que vieram a nascer ainda naposse do vendedor. Na verdade, há retenção decoisa alheia móvel, sem causa legítima, e isso ésuficiente para caracterizar o crime de apropriaçãoindébita; não se trata de mero inadimplementocontratual.

Logicamente, se houvesse o propósito de nãoentregar os animais objeto do contrato, quando desua celebração, o crime seria o de estelionato, masessa subjetividade teria de ser devidamentecomprovada. Porém, não se dispondo de elementossuficientes dessa subjetividade, não se pode falar emestelionato.

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12. Apropriação indébita e relação mandante-mandatário

A relação mandante-mandatário pode apresentaruma gama variada de situações, que pode ir dasimples infração ético-disciplinar, passando peloinadimplemento contratual (ilícito civil), até acaracterização de infração penal (estelionato,apropriação indébita etc.). Diante dessamultiplicidade de situações, é impossível estabelecerregras genéricas, visto que somente o casuísmopoderá indicar a natureza de eventual infração (civil,ética ou criminal).

A figura da apropriação indébita pressupõe aexistência de elemento subjetivo especial do injusto,ou seja, a tomada da coisa alheia em proveitopróprio. A existência de relação jurídica mandante-mandatário leva à conclusão da inexistência do dolo.O simples fato de o mandatário, por exemplo,depositar em conta bancária valor por eleadministrado não implica, necessariamente, ainversão do onus probandi, o que colocaria nosombros do agente a obrigação de fazer prova defato negativo — o de não haver praticado o crime —,mormente com a consequência de, não aimplementando, vir a ser condenado. Não se pode

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cogitar da prova da ausência da intenção deapropriar-se, porquanto inerente à razoabilidade quenorteia o procedimento-padrão.

Com efeito, não se pode esquecer que a figura daapropriação indébita exige um elemento subjetivoespecial do tipo, qual seja, tomar para si a coisa deque tem posse, com a intenção de não restituí-la oudesviá-la da finalidade para a qual a recebeu. Será daacusação, por certo, a obrigação de provar que osimples depósito bancário inverteu a natureza daposse.

Se o Estado-acusador não consegue trazer aosautos elementos convincentes a respeito daexistência de dolo na apropriação da coisa, isto é, senão há a indispensável certeza sobre a intenção finaldo agente (elemento subjetivo especial do injusto), aapropriação indébita não está configurada, e acomposição do litígio deve resolver-se na esfera dodireito privado.

Por outro lado, quando o advogado recebevalores, a título de pagamento parcial de honorários,para ajuizar ação, mas não o faz, incorre eminadimplência contratual civil e não no crime do art.168 do Código Penal, pois não recebeu taisimportâncias para restituí-las, pressupostofundamental da apropriação indébita.

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13. Pena e ação penal

A pena cominada, alternativamente, é dereclusão, de um a quatro anos, e multa. Pode sermajorada em um terço se ocorrerem as circunstânciasrelacionadas no § 1º.

A ação penal é pública incondicionada, salvonas hipóteses do art. 182, quando será condicionadaà representação. Haverá isenção de pena se forpraticado contra ascendente, descendente oucônjuge (na constância da sociedade conjugal).

14. Algumas questões especiais

Para a configuração do delito de apropriaçãoindébita é indispensável que o agente tenha obtidolegitimamente a posse ou a detenção da coisa semtransferência do domínio, de modo que se obrigue arestituí-la. Por essa razão, não a configura a posse demercadoria com opção de compra, hipótesecaracterizada de contrato de compra e venda, cujoinadimplemento acarreta mera infração contratual.

A mora ou simples descaso em devolver nãoconfiguram, por si só, apropriação indébita. Se oagente, na locação de coisa móvel, deixa de restituí-la

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no prazo convencionado, sem, contudo, revelaranimus rem sibi habendi, o fato constitui mero ilícitocivil e não apropriação indébita. Por fim, coisafungível, emprestada ou depositada, para serrestituída na mesma espécie, quantidade e qualidade,não pode, geralmente, ser objeto de apropriaçãoindébita.

1 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 127.2 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 415.3 Galdino Siqueira, Direito Penal brasileiro; Parte Especial,1924, p. 723.4 Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7, p. 129.5 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 416.6 Claus Roxin, Teoría del tipo penal, p. 171.7 Fernando Fragoso, Crime contra o sistema financeironacional — Lei 7.492/86, in Lições de Direito Penal, deHeleno Cláudio Fragoso, 10. ed., v. 1, p. 693.

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8 Fernando Fragoso, Crimes contra o sistema financeironacional, in Heleno Cláudio Fragoso, Lições de DireitoPenal, cit., v. 1, p. 68333.9 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 423.10 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 145.11 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 354;Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 420.12 Acreditamos desnecessário voltar a repetir as diferençasentre qualificadoras e majorantes, como fizemos em inúmeroscomentários a dispositivos referentes aos crimespatrimoniais.13 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 477.14 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 148.15 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 149.16 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 358.17 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 149.18 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 419.

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19 “Por transferir o domínio, é inadmissível a apropriaçãoindébita na compra e venda pura não sujeita a condiçãosuspensiva e que se reputa perfeita e acabada, uma vezacordados os contratantes no objeto e no preço (Cód. Civil[de 1916], art. 1.126), pouco importando que não tenhahavido ainda entrega da coisa ou pagamento do preço”(Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 354 e 355).20 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 135.21 Muñoz Conde, Teoria geral do delito, Porto Alegre,Sérgio A. Fabris, Editor, 1988, p. 85.22 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 7.ed., v. 1, p. 243.23 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 148.24 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 136.25 Heleno Claudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 422; Manzini, Trattato de Diritto Penale italiano , v. 9,p. 354.26 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 354 e 355.27 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 129.28 Idem, ibidem.

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CAPÍTULO XVI - APROPRIAÇÃO INDÉBITAPREVENCIÁRIA

Sumário: 1. Bem jurídico tutelado. 2.Sujeitos ativo e passivo. 3. Tipoobjetivo: adequação típica. 3.1.Pressuposto: contribuições recolhidas.3.2. Prazo e forma legal ou convencional:norma penal em branco. 4. Tiposubjetivo: adequação típica. 5. Figurasdo caput e do § 1º: distinção. 6. Deixarde recolher no prazo legal (§ 1º, I). 6.1.Pressuposto: que tenha sidodescontado de pagamento efetuado. 6.2.Antiga figura do art. 95, d. 7. Deixar derecolher contribuições devidas (§ 1º, II).7.1. Despesas contábeis ou custosrelativos a produtos e serviços. 7.2.Pressuposto: que tenham integrado oscustos. 8. Deixar de pagar benefíciodevido (§ 1º, III). 8.1. Pressuposto:reembolso realizado. 9. Consumação etentativa. 10. Classificação doutrinária.11. Causa extintiva da punibilidade. 11.1.Início da ação fiscal (antes). 11.2.

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Requisitos para extinção dapunibilidade. 11.3. Aplicação do art. 34da Lei n. 9.249/95. 12. Irretroatividade dalei nova (n. 9.983/2000). 13. Perdãojudicial ou pena de multa. 13.1. Valor depouca monta: inocuidade. 13.2. Princípioda insignificância: configurado. 13.3.Requisitos necessários ao perdãojudicial ou multa. 14. Crimes praticadosapós a Lei n. 9.983/2000: efeitospráticos. 15. Pena e ação penal.

Apropriação indébita previdenciária

Art. 168-A. Deixar de repassar à previdênciasocial as contribuições recolhidas doscontribuintes, no prazo e forma legal ouconvencional:

Pena — reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, emulta.

• Caput acrescentado pela Lei n. 9.983, de 14de julho de 2000.

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§ 1º Nas mesmas penas incorre quem deixar de:

I — recolher, no prazo legal, contribuição ououtra importância destinada à previdência socialque tenha sido descontada de pagamento efetuadoa segurados, a terceiros ou arrecadada do público;

II — recolher contribuições devidas àprevidência social que tenham integrado despesascontábeis ou custos relativos à venda de produtosou à prestação de serviços;

III — pagar benefício devido a segurado,quando as respectivas cotas ou valores já tiveremsido reembolsados à empresa pela previdênciasocial.

• § 1º acrescentado pela Lei n. 9.983, de 14 dejulho de 2000.

§ 2º É extinta a punibilidade se o agente,espontaneamente, declara, confessa e efetua opagamento das contribuições, importâncias ouvalores e presta as informações devidas àprevidência social, na forma definida em lei ou

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regulamento, antes do início da ação fiscal.• § 2º acrescentado pela Lei n. 9.983, de 14 de

julho de 2000.

§ 3º É facultado ao juiz deixar de aplicar a penaou aplicar somente a de multa se o agente forprimário e de bons antecedentes, desde que:

I — tenha promovido, após o início da açãofiscal e antes de oferecida a denúncia, o pagamentoda contribuição social previdenciária, inclusiveacessórios; ou

II — o valor das contribuições devidas, inclusiveacessórios, seja igual ou inferior àqueleestabelecido pela previdência social,administrativamente, como sendo o mínimo para oajuizamento de suas execuções fiscais.

• § 3º com redação dada pela Lei n. 9.983, de 14de julho de 2000.

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1. Bem jurídico tutelado

Bem jurídico protegido são as fontes de custeioda seguridade social, particularmente os direitosrelativos à saúde, à previdência e à assistência social(art. 194 da CF). São protegidas especialmente contraa apropriação indébita que pode ser praticada porquem tem o dever de recolher os tributos e taxas. É,em outros termos, a tutela da subsistência financeirada previdência social.

2. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo é o substituto tributário (caput),que, por lei, tem o dever de recolher do contribuinte erepassar as contribuições à previdência social.Sujeito ativo, nas figuras descritas no § 1º, é o titularde firma individual, os sócios solidários, os gerentes,diretores ou administradores que efetivamente hajamparticipado da administração da empresa,concorrendo efetivamente na prática da condutacriminalizada.

Sujeito passivo é o Estado, representado peloINSS (Instituto Nacional do Seguro Social), que é oórgão encarregado da seguridade social.

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3. Tipo objetivo: adequação típica

A conduta tipificada no caput é “deixar derepassar”, que tem o sentido de não transferir, nãorecolher ou não pagar à previdência social ascontribuições recolhidas ou descontadas doscontribuintes, no prazo e forma legal ouconvencional. Trata-se, na verdade, de apropriaçãoindébita previdenciária. Uma opção legislativa quetem a função política de eliminar a grande polêmicaque pairava sobre a natureza e espécie do crime queera previsto no art. 95, d, da Lei n. 8.212/91. Essenomen iuris abrange todas as figuras tipificadas nodispositivo em exame (caput e § 1º).

3.1 Pressuposto: contribuições recolhidas

Somente é possível repassar algo que se tenharecebido ou recolhido. O prefixo “re” tem,etimologicamente, esse sentido de repetição.Portanto, o sujeito ativo somente poderá repassar ascontribuições quando as houver recolhido, poissomente assim terá sua posse e, não as repassando,poderá apropriar-se.

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3.2 Prazo e forma legal ou convencional: normapenal em branco

Os prazos e as formas, legais ou convencionais,são estabelecidos em outros diplomas legais,tratando-se, portanto, de norma penal em branco. Porora, deve-se consultar a Lei n. 8.212/91, queestabelece os prazos e as formas para que o repasseseja feito.

4. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo geral é o dolo,representado pela vontade consciente de deixar derepassar à previdência social as contribuiçõesrecolhidas dos contribuintes. Tratando-se deapropriação indébita, é indispensável o elementosubjetivo especial do injusto, representado peloespecial fim de apropriar-se dos valorespertencentes à previdência social, isto é, o agente seapossa com a intenção de não restituí-los. Nessesentido, fica superada a posição anterior do STF e doTRF da 4ª Região, que, a nosso juízo, sob a égide dalegislação anterior, era inatacável. Revigora-se,assim, o entendimento que já adotavam o STJ e oTRF da 5ª Região, os quais já sustentavam a

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necessidade do elemento subjetivo especial.

5. Figuras do caput e do § 1º: distinção

A conduta tipificada no caput tem a finalidade depunir o substituto tributário, que deve recolher àprevidência social o que arrecadou do contribuinte, edeixou de fazê-lo (ver art. 31 da Lei n. 8.212/91). Já asfiguras descritas no § 1º destinam-se aocontribuinte-empresário, que deve recolher acontribuição que arrecadou do contribuinte.

6. Deixar de recolher no prazo legal (§ 1º, I)

“Deixar de recolher” significa não efetivar opagamento de contribuição ou outra importânciadestinada à previdência social que tenha sidodescontada de pagamento efetuado a segurados, aterceiros ou arrecadada do público. Essa figuracorresponde ao antigo art. 95, d, da Lei n. 8.212/91.

6.1 Pressuposto: que tenha sido descontado depagamento efetuado

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Pressuposto dessa infração é que o sujeito ativot e n h a descontado de pagamento efetuado asegurado, a terceiros ou tenha arrecadado dopúblico. Esse pressuposto deixa o sujeito ativo naposse do valor correspondente, e não o recolhendo,no prazo legal, apropria-se indevidamente de valorespertencentes à previdência.

6.2 Antiga figura do art. 95, “d”

A figura anterior não mencionava expressamenteque o desconto tivesse sido feito, embora parte dadoutrina e da jurisprudência sustentassem essanecessidade. Assim, a partir da atual lei, somente seconcretiza a apropriação previdenciária quando fordescontada a contribuição do segurado e oempregador deixar de repassá-la à previdência.

7. Deixar de recolher contribuições devidas (§ 1º, II)

Deixar de recolher contribuições que tenhamintegrado despesas contábeis ou custos relativos àvenda de produtos ou à prestação de serviços. Onão recolhimento dessa contribuição, desde quetenha integrado o cálculo dos custos, o que

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normalmente ocorre, configura a conduta descrita notipo em exame. Apresenta certa semelhança com oantigo art. 95, e, da Lei n. 8.212/91.

7.1 Despesas contábeis ou custos relativos aprodutos e serviços

A contribuição previdenciária devida peloempregador deve integrar as despesas contábeis oucustos relativos a produtos e serviços. O valorcorrespondente, por certo, é levado em consideraçãono cálculo para a fixação do preço do produto ou doserviço, tratando-se de despesa operacional (porexemplo, 20% sobre a folha de remuneração,acrescidos do percentual relativo ao seguro deacidente do trabalho).

7.2 Pressuposto: que tenham integrado os custos

Tendo integrado os custos, seu valorcorrespondente é recebido pelo empresário ouempregador e, nessas condições, adquire a possedos valores correspondentes. Não os recolhendo,apropria-se indebitamente.

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8. Deixar de pagar benefício devido (§ 1º, III)

Deixar de pagar significa não efetivar opagamento de benefício devido a segurado, cujosvalores ou cotas já tenham sido reembolsados àempresa pela previdência. Essa figura equivaleàquela prevista no art. 95, f, da Lei n. 8.212/91.

8.1 Pressuposto: reembolso realizado

Para a configuração dessa infração, épressuposto que a previdência social tenha efetuado“reembolso” à empresa e, tendo-o recebido, esta nãoo repassa ao segurado. Sem esse pressuposto, nãose poderia falar em apropriação indébita.

9. Consumação e tentativa

O momento consumativo, tratando-se deapropriação indébita, é de difícil precisão, poisdepende, em última análise, de uma atitude subjetiva.Consuma-se, enfim, com a inversão da natureza daposse, caracterizada por ato demonstrativo dedisposição da coisa alheia ou pela negativa emdevolvê-la. Como crime material, a tentativa é

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possível, embora de difícil configuração.

10. Classificação doutrinária

Trata-se de crime próprio (exige qualidade oucondição especial do sujeito ativo, o substitutotributário, no caso do caput) ; formal (para suaconsumação não se exige resultado naturalístico);omissivo (a ação tipificada implica abstenção deatividade — “deixar de”); instantâneo (aconsumação não se alonga no tempo, ocorrendo emmomento determinado); unissubjetivo (pode serpraticado por uma única pessoa, como a maioria doscrimes, que não são de concurso necessário) eunissubsistente (praticado em único ato, dificilmentepoderá caracterizar-se a figura tentada).

11. Causa extintiva da punibilidade

Extingue-se a punibilidade se o agente declara,confessa e efetua o pagamento devido antes doinício da ação fiscal, e ainda presta as informaçõesdevidas à previdência social. Frisado-se, sempre, quea “confissão” é da dívida, e nunca de crime, caso

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contrário violaria o princípio da presunção deinocência.

11.1 Início da ação fiscal (antes)

Não pode ser apenas o que dispõem o art. 243 eparágrafos do Decreto n. 3.048/99, com a simplesnotificação de lançamento do tributo. A ação fiscalsomente pode ser considerada iniciada a partir dacientificação pessoal do contribuinte de suainstauração, pois somente então se completa a“relação procedimental” da ação fiscal. Assemelha-se à denúncia espontânea do CTN (art. 138).

11.2 Requisitos para extinção da punibilidade

a ) Declara o valor devido (demonstra o totalarrecadado do contribuinte e não repassado); b)confessa o não recolhimento (admite não ter feito orecolhimento ou repasse na época e na formaprevistas em lei. Frise-se, “confissão de dívida”, tãosomente; não se trata de confissão de crime, pois, seassim fosse, seria inconstitucional); c) efetua opagamento (recolhe todo o devido, principalacrescido dos acessórios); d) presta as informaçõesdevidas (as informações que deve prestar à

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previdência são relativas ao débito em causa,somente); e) caráter espontâneo dos requisitos (aespontaneidade de toda e qualquer ação humana nãotem nem pode ter o significado de “arrependimento”,sob pena de assassinar o vernáculo, tampouco tem osentido de revelar vontade de colaborar com oEstado, mas apenas que o agente teve a iniciativa depraticar referidas condutas. Literalmente, háespontaneidade quando a iniciativa é do próprioagente, e voluntário é tudo que não for produto decoação, embora a iniciativa não tenha partido doagente que pode, inclusive, ter recebido (e aceito)sugestões, opiniões ou influências externas); f) antesdo início da ação fiscal (a ação fiscal somente podeser considerada iniciada a partir da cientificaçãopessoal do contribuinte de sua instauração, poissomente então se completa a “relaçãoprocedimental” da ação fiscal).

11.3 Aplicação do art. 34 da Lei n. 9.249/95

O STF considerava aplicável o disposto no art. 34(extinção da punibilidade) da lei referida à hipótesede não recolhimento de contribuiçõesprevidenciárias. Assim, a partir de agora poderásurgir o entendimento de que há duas hipóteses para

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a extinção da punibilidade: antes da instauração daação fiscal (com todos os requisitos já examinados) eantes do oferecimento da denúncia. É importantepara o Fisco oportunizar ao contribuinte orecolhimento total do tributo, que é, em últimainstância, a finalidade dessas leis arrecadadoras-criminalizadoras.

12. Irretroatividade da lei nova (n. 9.983/2000)

Pela lei anterior (n. 9.249/95), segundo o STF, opagamento extintivo da punibilidade podia ser feitoaté o recebimento da denúncia. A nova lei (n.9.983/2000), nesse particular, mais restritiva, é muitomais severa, pois admite a extinção da punibilidadesomente quando o pagamento for efetuado antes doinício da ação fiscal. Logo, é irretroativa, não seaplicando aos fatos ocorridos antes de sua vigência(14-10-2000).

13. Perdão judicial ou pena de multa

O § 3º cria uma hipótese sui generis: perdãojudicial ou multa! Caso a ação fiscal já tenha sido

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iniciada, ao pagamento de todo o débito podecorresponder somente uma ou outra dasconsequências referidas (está afastada a extinção dapunibilidade). As hipóteses são alternativas (perdãojudicial ou pena de multa), mas os requisitos sãocumulativos. Os operadores do art. 59 deverãorecomendar uma ou outra alternativa.

13.1 Valor de pouca monta: inocuidade

Que o valor do débito previdenciário(contribuição e acessórios) não seja superior aomínimo exigido pela própria previdência social paraajuizamento de execução fiscal. O perdão judicial,nos termos postos, é praticamente inócuo, uma vezque se limita a valores ínfimos: desde que não sejamsuficientes para justificar sua cobrança judicial (quejá foi definido em até 1.000 Ufir — Lei n. 9.441/97, art.1º).

13.2 Princípio da insignificância: configurado

Se o Fisco não tem interesse em cobrarjudicialmente o crédito tributário, não há, igualmente,fundamento para a imposição de sanções criminais.Prevê a nova lei, assim, o cabimento do perdão

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judicial ou da pena de multa isoladamente. A nossojuízo, em termos tributário-fiscais, configura-se, emsede criminal, o princípio de insignificância,excluindo-se a própria tipicidade.

13.3 Requisitos necessários ao perdão judicial oumulta

1) Primário (é aquele que nunca sofreu qualquercondenação irrecorrível); réu não reincidente, nalinguagem da reforma penal de 1984, é aquele quenão é primário, mas já desapareceram os efeitos dareincidência (art. 64, I, do CP); 2) bons antecedentes(quem não tem comprovadamente antecedentesnegativos, isto é, não tem condenação irrecorrível,fora das hipóteses da reincidência); 3) pagamentointegral do débito (contribuição previdenciária eacessórios); 4) pequeno valor da dívida (o valor dodébito previdenciário — contribuição e acessórios— não é superior ao mínimo exigido pela própriaprevidência social para o ajuizamento de execuçãofiscal).

14. Crimes praticados após a Lei n. 9.983/2000:efeitos práticos

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a) pagamento feito antes do início da ação fiscal:extingue a punibilidade;

b) pagamento após o início da ação fiscal (masantes do oferecimento da denúncia): admite perdãojudicial ou aplicação somente da multa (art. 168-A, §3º, I, do CP);

c) pagamento após o oferecimento da denúncia,mas antes de seu recebimento: admite a aplicação doarrependimento posterior (art. 16 do CP);

d) pagamento após o recebimento da denúncia:atenuante genérica (art. 65 do CP).

15. Pena e ação penal

As penas cominadas, cumulativamente, sãoreclusão, de dois a cinco anos, e multa. Na hipótesedo § 3º pode ser aplicada somente a pena de multa(ou concedido o perdão judicial). A ação penal épública incondicionada.

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CAPÍTULO XVII - APROPRIAÇÃO DE COISAHAVIDA POR ERRO, CASO FORTUITO OU

FORÇA DA NATUREZA

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5.Apropriação de tesouro. 6. Apropriaçãode coisa achada. 6.1. Elemento temporal:quinze dias. 7. Tipo subjetivo:adequação típica. 8. Classificaçãodoutrinária. 9. Consumação e tentativa.10. Minorante do pequeno valor noscrimes de apropriação indébita. 11. Penae ação penal.

Apropriação de coisa havida por erro, caso fortuitoou força da natureza

Art. 169. Apropriar-se alguém de coisa alheiavinda ao seu poder por erro, caso fortuito ou forçada natureza:

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Pena — detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano,ou multa.

Parágrafo único. Na mesma pena incorre:Apropriação de tesouro

I — quem acha tesouro em prédio alheio e seapropria, no todo ou em parte, da quota a que temdireito o proprietário do prédio;

Apropriação de coisa achada

II — quem acha coisa alheia perdida e dela seapropria, total ou parcialmente, deixando derestituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou deentregá-la à autoridade competente, dentro noprazo de 15 (quinze) dias.

1. Considerações preliminares

A Antiguidade desconheceu estas figurasespeciais de apropriação de coisa alheia. As

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Ordenações tampouco previram a apropriação decoisa havida por erro, caso fortuito ou força danatureza.

Somente no século XIX os Códigos europeuspassaram a contemplar essa figura penal (CódigoZanardelli, art. 420; Código austríaco, que vigorou naLombardia e no Vêneto)1. No direito brasileiro, empleno século XX, o Código Criminal do Império de1830 igualmente desconheceu essa figura penal.Somente com o Código Penal de 1890, já no períodorepublicano, foi criminalizada essa conduta, nosseguintes termos: “É crime de furto, sujeito àsmesmas penas e guardadas as distinções do artigoprecedente: 1º Apropriar-se alguém de coisa alheiaque venha ao seu poder por erro, engano, ou casofortuito”.

O atual Código Penal de 1940 tipifica essascondutas como espécie do gênero apropriaçãoindébita. Trata-se, com efeito, de modalidade maisbranda, cuja pena cominada é de um mês a um ano.Aqui, a coisa não é entregue licitamente ao agente,como na apropriação indébita comum, mas lhe vemàs mãos por erro, caso fortuito ou força da natureza.Na verdade, o legislador brasileiro inspirou-se noCódigo Penal Rocco, de 1930 (art. 637)2.

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2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é a inviolabilidade dopatrimônio, particularmente o direito de propriedade.O erro, o caso fortuito e a força da natureza podemtransferir a posse, mas, em princípio, não têmidoneidade para transmitir a propriedade. Nahipótese de apropriação de coisa achada, tutela-setambém a posse, pois o possuidor legítimo queperder a posse da coisa tem o direito de reavê-la (art.521 do CC/16).

A apropriação indébita prevista no artigo anteriordistingue-se das figuras constantes nestedispositivo basicamente pelo fundamento datransferência da posse.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, semqualquer condição especial. O proprietário nãopode ser sujeito ativo desse crime, que contém emsua estrutura típica as elementares “coisa alheia” e“prédio alheio”; assim, sujeito ativo será semprepessoa diversa do proprietário, seja possuidor oudetentor, independentemente de haver recebido a

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posse ou detenção de terceiro.O condômino, sócio ou coproprietário também

pode ser sujeito ativo de apropriação indébita, desdeque não se trate de coisa fungível e a apropriaçãonão exceda à quota que lhe cabe.

Sujeito passivo é, igualmente, qualquer pessoa,física ou jurídica, titular do direito patrimonialatingido pelas ações tipificadas; pode ser, inclusive,o sócio, o coerdeiro ou condômino. Na hipótese deapropriação de tesouro, sujeito passivo pode ser oproprietário do imóvel, bem como o enfiteuta que temo direito de uso e gozo pleno do imóvel. Na hipótesed e apropriação de coisa achada, sujeito passivopode ser, além do proprietário, o possuidor legítimo.

4. Tipo objetivo: adequação típica

O núcleo da ação tipificada é igual ao do art. 168,e tudo o que lá dissemos sobre o verbo nuclearaplica-se aqui. A forma, contudo, como o sujeitoativo entra na posse da coisa ou objeto alheio édiversa. A coisa alheia não é entregue ou confiadalicitamente ao agente, mas vem a seu poder por erro,caso fortuito ou força da natureza.

Erro pode ser entrega de uma coisa por outra,

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entregar à pessoa errada, supor a obrigação deentregar etc. Ao erro de quem transmite devecorresponder a boa-fé de quem a recebe. Em outrostermos, o erro pode incidir sobre a coisa, sobre apessoa a quem se entrega ou sobre a razão daentrega. No entanto, o erro sobre o valor da coisa ouseu preço é penalmente irrelevante. Caso fortuito é oevento acidental que acaba conduzindo determinadacoisa ou objeto a mãos indevidas; equivale,praticamente, a força maior, configurando, enfim,todos os fatos cujos efeitos não é possível evitar.Caso fortuito e força maior têm sido, historicamente,objeto de grande divergência doutrinária, que, noentanto, recusamo-nos a reproduzir neste espaço,por sua absoluta improdutividade, já que a doutrinaos tem equiparado ao atribuir-lhes os mesmosefeitos. Força da natureza, por sua vez, é energiafísica e ativa que pode provar mudança natural eviolenta das coisas e dos objetos. São exemplosdessa força o tufão, o terremoto, a enchente etc.

Acompanhamos, no particular, o magistério deNélson Hungria quando afirmava: “O dispositivolegal menciona o caso fortuito e a força da natureza,fazendo, a exemplo, aliás, do Código suíço, umadistinção que se pode dizer desnecessária, pois ocaso fortuito abrange todo e qualquer acontecimento

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estranho, na espécie, à vontade do agente e dodominus. Tanto é caso fortuito se a coisa alheia vemao meu poder em consequência da queda de umavião em meu terreno, quanto se foi trazida pelacorrenteza de uma enchente. Se bois alheios, pormero instinto de vagueação ou acossados pelo fogode uma queimada, entram nas minhas terras, ou sepeças de roupa no coradouro do meu vizinho sãoimpelidas por um tufão até meu quintal, tudo é casofortuito”3.

O erro na entrega da coisa deve ser espontâneo enão provocado, pois, nessa hipótese, configurar-se-áo crime de estelionato.

5. Apropriação de tesouro

A ação incriminada é apropriar-se de “tesouroachado”, isto é, assenhorear-se de tesouro achadoem prédio alheio, sem efetuar a divisão quedetermina a lei civil (meio a meio) com oproprietário do imóvel. O ato de achar deve ser umacontecimento fortuito, acidental, involuntário, sobpena de caracterizar crime de furto.

Achar tesouro significa encontrar um conjunto de

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coisas preciosas ou valiosas, em local pertencente aterceira pessoa. É indispensável, contudo, que esseconjunto de preciosidades seja encontradoacidentalmente, caso contrário não haverá aobrigação de dividi-lo com o proprietário (art. 1.265do CC). Com efeito, se for encontrado por algumpesquisador a mando do dono ou de terceiro nãoautorizado, pertencerá integralmente ao proprietáriodo imóvel, e sua “apropriação” constituirá crime defurto.

Tesouro é o depósito antigo de moeda ou coisaspreciosas, enterradas ou ocultas, de cujo dono nãose tem notícia4. Tesouro é, por definição, coisa semdono. O Código Civil, por sua vez, define tesourocomo “o depósito antigo de coisas preciosas, ocultoe de cujo dono não haja memória, [que] será divididopor igual entre o proprietário do prédio e o que acharo tesouro casualmente”. É indiferente que o tesourose encontre em móvel ou imóvel, desde que asdemais características do conceito jurídico detesouro estejam presentes. Característico do tesouroé o fato de ser desconhecido seu proprietário.

O tesouro pode estar escondido no solo ou emqualquer outro local, inclusive dentro de um móvel.Contudo, não o caracteriza o depósito natural depedras preciosas; ao contrário do “tesouro”, aquelas

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constituem acessório do solo e, como tais, mesmoque tenham sido descobertas acidentalmente,pertencem, por inteiro, ao dono do solo, ressalvadasas exceções legais.

P o r prédio deve-se entender qualquer imóvel,seja representado por terreno, seja por edifício.

6. Apropriação de coisa achada

A ação incriminada é, igualmente, apropriar-se,só que agora de coisa perdida. Não se podeconfundir coisa perdida com coisa esquecida.Aquela desapareceu por causa estranha (e, porvezes, ignorada) à vontade do proprietário oupossuidor, que desconhece seu destino ouparadeiro; a esquecida saiu da esfera dedisponibilidade por um lapso de memória e,teoricamente, o dono saberá onde encontrá-la ou,pelo menos, tem uma noção de lugar e tempo, onde equando a perdeu.

O que configura o crime não é o recebimento ouencontro — acidental —, mas a posteriorapropriação da coisa alheia, não a devolvendo ourecusando-se a restituí-la ao legítimo dono. Comefeito, no momento em que o sujeito se apossa da

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coisa achada não pratica nenhum ilícito (civil oucriminal), pois essa conduta não está proibida nosistema jurídico brasileiro. Na realidade, o crimenasce em momento posterior, ou seja, quando oagente deixa evidenciado o animus rem sibi habendi,isto é, quando motu proprio passa a se comportar,em relação à coisa achada, como se dono fosse.

Coisa perdida é a de que seu proprietário oupossuidor perdeu a disponibilidade ou custódia,ignorando onde ela se encontra. A simples perda dacoisa não implica a perda do domínio: perde-se aposse, mas não a propriedade. O objeto material é acoisa perdida, e não a abandonada nem a resnullius. Não se confunde com coisa perdida aescondida nem a que se encontra na esfera devigilância do dono, mesmo que este não tenhacondições de encontrá-la temporariamente (objetoperdido em algum de seus aposentos etc.).Tampouco se pode considerar perdida coisa que oproprietário ou possuidor esqueceu na posse deoutrem, pois poderá reclamá-la a qualquer momento.

É indispensável que a perda da coisa sejaacidental ou decorra de culpa do possuidor ouproprietário. Se for perdida por ação de quem,posteriormente, vier a “achá-la”, o crime será o defurto.

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A lei civil impõe a obrigação de devolver a coisaachada (art. 1.233 do CC), e o Código Penalcriminaliza a conduta de quem, no prazo de quinzedias, dolosamente não a devolve ou não a entrega àautoridade competente. A obrigação de restituí-la aoproprietário surge no momento em que este se tornaconhecido.

Se o agente supõe, por erro plenamentejustificado, que a coisa que encontrou estáabandonada e não perdida, não haverá dolo naapropriação (art. 20, § 1º, do CP).

Pratica o crime de apropriação de coisa achada,por exemplo, o titular de conta bancária que teveciência de dinheiro nela depositado que não lhepertencia, mas, mesmo assim, saca-o e não o restitui;configura-se, com efeito, o crime de apropriação decoisa havida por erro (art. 169, caput, do CP).

6.1 Elemento temporal: quinze dias

Esse elemento deve ser bem interpretado paraevitar confusões com sérios reflexos nasconsequências materiais desse equívoco. Éequivocada a afirmativa de que o legislador previuum prazo para o crime consumar-se, uma vez que oprazo de quinze dias constitui uma elementar típica.

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Sua previsão legal tem sentido apenas político-criminal, objetivando proporcionar ao indivíduotempo suficiente para efetuar a devolução ou entregada coisa alheia.

Somente se configura a apropriação de coisaachada após ultrapassado o prazo legal de quinzedias sem que o achador devolva a coisa ao dono oua entregue à Polícia. Assim, não excedida a faixa legalde quinze dias, nem se tipifica o crime.

A obrigação de devolver a res perdida, naverdade, surge desde o momento em que o agente aencontra e tem ciência desse estado da coisaencontrada. A autoridade competente que tiverconhecimento desse fato deve efetuar a busca eapreensão, embora crime não haja: a infração civilopera-se a partir do momento que o “achador” retéma coisa achada em seu poder; o crime, contudo,somente se configurará a partir do momento em quese completarem quinze dias sem a entrega da coisaachada à autoridade competente, pois somente apartir daí a apropriação se torna penalmenterelevante.

7. Tipo subjetivo: adequação típica

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O elemento subjetivo é o dolo, constituído pelavontade livre e consciente de apropriar-se de coisaalheia nas hipóteses referidas no dispositivo emexame.

Faz-se necessário o especial fim de obtervantagem em proveito próprio ou alheio. O elementosubjetivo na apropriação de tesouro é igualmente odolo, representado pela vontade de apropriar-se dele,e o especial fim da obtenção de vantagem,constituída pela metade a que faz jus o dono doprédio onde o tesouro foi encontrado.

Na apropriação de tesouro é indispensável que oagente tenha consciência da obrigação de dividir, emigualdade de condições, com o proprietário doprédio. O erro ou desconhecimento dessa obrigação— elementar típica — constitui erro de tipo, aocontrário do que afirmou, no passado,equivocadamente, Heleno Fragoso5.

O simples deixar de entregar a coisa achada àautoridade competente no prazo de quinze dias ou dedevolvê-la ao proprietário que se tornou conhecido éinsuficiente para tipificar o crime de apropriação decoisa achada; é indispensável que a omissão naentrega ou devolução seja orientada pelo animusrem sibi habendi.

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8. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (aquele que não exigequalquer condição especial do sujeito ativo);material (exige resultado naturalístico, representadopela diminuição do patrimônio da vítima); de formalivre (pode ser praticado por qualquer meio, forma oumodo); instantâneo (o resultado opera-se de formaimediata, sem prolongar-se no tempo); unissubjetivo(pode ser praticado, em regra, apenas por umagente); plurissubsistente (pode ser desdobrado emvários atos, que, no entanto, integram a mesmaconduta).

9. Consumação e tentativa

A consumação, como no artigo anterior, é dedifícil precisão, pois depende, em última análise, deuma atitude subjetiva. Consuma-se, enfim, com ainversão da natureza da posse, caracterizada por atodemonstrativo de disposição da coisa alheia comoprópria ou pela negativa em devolvê-la.

A consumação da apropriação de tesouro ou decoisa achada não ocorre no momento ou no lugar emque o tesouro ou a coisa foram encontrados, mas sim

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no momento em que o agente se apropria de taisobjetos. Na denúncia deve constar que foi superadoo prazo (15 dias) para devolução ou entrega da coisa.

Como crime material, a exemplo do que dissemosno capítulo anterior, a tentativa é, doutrinariamente,possível, embora de difícil configuração; apenascasuisticamente se poderá definir sua ocorrência.

A dificuldade concreta de sua comprovação nãoé, por si só, motivo suficiente para afastar apossibilidade de sua ocorrência. Não se desconhece,é verdade, que sua comprovação depende daobjetivação da subjetividade possessória do sujeitoativo; contudo, a exteriorização da intenção daquelepermitirá a valoração da natureza do animus com quemantém a coisa alheia. Luiz Regis Prado filia-se,modernamente, à corrente que não admite atentativa6

10. Minorante do pequeno valor nos crimes deapropriação indébita

Nos crimes de apropriação indébita, em suasdiversas modalidades (arts. 168, 168-A e 169), éaplicável a minorante prevista no art. 155, § 2º do

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Código, quando o criminoso for primário e depequeno valor a coisa apropriada. A definição doque é “coisa de pequeno valor” não tem ressonânciapacífica quer na doutrina quer na jurisprudência. Parase lhe dar interpretação mais adequada deve-se terem consideração as peculiaridades e ascircunstâncias pessoais e locais onde o fato épraticado.

O art. 170 determina que se aplique essadisposição às diversas espécies de apropriaçãoindébita7. Presentes esses dois requisitos, a pena dereclusão pode ser substituída pela de detenção,somente pela pena de multa ou apenas ser reduzidade um a dois terços. Em outros termos, o pequenodesvalor do resultado e a primariedade do agenterecomendam menor reprovação deste, determinando,em obediência ao princípio da proporcionalidade, aredução da sanção para adequá-la à menor gravidadedo fato, a exemplo do que ocorre no crime de furto.

A doutrina, em geral, tem definido como pequenovalor aquele cuja perda pode ser suportada semmaiores dificuldades pela generalidade das pessoas.“Ao rico — lembrava Magalhães Noronha —porque, talvez, nem perceberá sua falta; ao pobreporque, na sua penúria, de pouco lhe valerá”8.

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Embora nos desagrade a fixação de determinadoquantum, por sua relatividade, ante a necessidade deum paradigma, aceitamos a orientação majoritária,segundo a qual de pequeno valor é a coisa que nãoultrapassa o equivalente ao salário-mínimo.

Contudo, na seara tributária, a própria receitaencarregou-se de estabelecer valores muitosuperiores para os quais não admite a execução fiscal(no momento, fixados em R$ 5.000,00). Diante desseentendimento da receita, é natural que se considere,nos crimes fiscais ou tributários, não apenas“pequeno prejuízo”, mas valor insignificante, paraexcluir a própria tipicidade da conduta, segundo oprincípio da insignificância9.

Sintetizando, a primariedade e o pequeno valorda coisa alheia, nas modalidades de apropriaçãoindébita, permitem a substituição da pena dereclusão por detenção, reduzi-la de um a dois terçosou aplicar somente multa, em todas as diversasespécies de apropriação indébita, tipificadas nosarts. 168, 168-A e 169. Pequeno valor não seconfunde com pequeno prejuízo (art. 171, § 1º).

Para fins de aplicação do disposto no § 2º do art.155, invocado pelo art. 170, não se identificam“pequeno valor” da coisa alheia e “pequenoprejuízo” resultante da ação delituosa. Quando o

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legislador deseja considerar o prejuízo sofrido pelavítima, o faz expressamente, como no estelionato (art.171, § 1º). Assim, o valor da coisa alheia achada ouda contribuição previdenciária deve ser medido aotempo da apropriação, recordando-se sempre que elenão se identifica com o pequeno prejuízo que delaresultar.

Convém destacar, por fim, que tanto o art. 170como o § 2º do art. 155 autorizam a aplicação dobenefício da minorante quando o condenado forprimário e de pequeno valor o objeto do crime, semqualquer referência aos antecedentes.

11. Pena e ação penal

As penas cominadas são, alternativamente,detenção, de um mês a um ano, ou multa. O art. 170recomenda a especial redução da pena, em um terço,quando se tratar de agente primário e de pequenovalor a coisa apropriada. Coerente com o quesustentamos ao examinar o furto de pequeno valor,admitimos sua aplicação às hipóteses elencadas no §1º do art. 16810.

A ação penal é pública incondicionada, salvo

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nas hipóteses do art. 182, quando será condicionadaà representação.

1 Vicenzo Manzini, Trattato di Diritto Penale , cit., v. 9, p.857.2 Giuseppe Maggiore, Derecho Penal; Parte Especial, trad.José J. Ortega Torres, Bogotá, Temis, 1956, v. 5, p. 189.3 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 151.4 Tesouro, segundo o Código Civil de 1916, é “o depósitoantigo de coisas preciosas, oculto e de cujo dono não hajamemória”.5 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 438.6 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 488.7 “Art. 170. Nos crimes previstos neste Capítulo, aplica-se odisposto no art. 155, § 2º.”8 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 243.9 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 6. ed.,v. 1.

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10 Em sentido contrário é o magistério de Luiz Regis Prado,que não admite essa extensão. Equivoca-se, por outro lado,o mesmo autor quando sustenta a aplicabilidade da referidaredução “se primário e de bons antecedentes o acusado e depequeno valor a coisa apropriada” (sem grifo no original),visto que nenhum dos dispositivos invocados refere-se aantecedentes. Acreditamos, no entanto, que se deva apenasa um lapso redacional, que poderá ser corrigido em próximasedições (Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penalbrasileiro, cit., v. 2, p. 488).

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CAPÍTULO XVIII - ESTELIONATO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 3.1. Criança edébil mental: impossibilidade. 4. Fraudecivil e fraude penal: ontologicamenteiguais. 5. Tipo objetivo: adequaçãotípica. 5.1. Emprego de artifício, ardil ouqualquer outro meio fraudulento. 5.2.Induzimento ou manutenção da vítimaem erro. 5.3. Obtenção de vantagemilícita em prejuízo alheio: elementonormativo. 6. Vantagem ilícita:irrelevância da natureza econômica. 7.Tipo subjetivo: adequação típica. 8.Classificação doutrinária. 9.Consumação e tentativa. 10. Estelionatoe falsidade. 11. Estelionato privilegiado:minorante de aplicação obrigatória. 12.Figuras especiais de estelionato. 12.1.Disposição de coisa alheia como própria(I). 12.2. Alienação ou oneraçãofraudulenta de coisa própria (II). 12.3.Defraudação de penhor (III). 12.4.

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Fraude na entrega de coisa (IV). 12.5.Fraude para o recebimento deindenização ou valor de seguro (V). 12.6.Fraude no pagamento por meio decheque (VI). 12.6.1. Cheque pós-datadoe cheque especial. 12.6.2. Sujeitos ativoe passivo do crime. 13. Majoranteespecial do crime de estelionato. 14.Arrependimento posterior e as Súmulas246 e 554. 14.1. Reparação de danos e asSúmulas 246 e 554. 15. Algumasquestões especiais. 16. Pena e açãopenal. 17. Transcrição das principaissúmulas relativas ao estelionato.

Capítulo VI

DO ESTELIONATO E OUTRAS FRAUDES

Estelionato

Art. 171. Obter, para si ou para outrem,vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo oumantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil,ou qualquer outro meio fraudulento:

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Pena — reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, emulta.

§ 1º Se o criminoso é primário, e é de pequenovalor o prejuízo, o juiz pode aplicar a penaconforme o disposto no art. 155, § 2º.

§ 2º Nas mesmas penas incorre quem:Disposição de coisa alheia como própria

I — vende, permuta, dá em pagamento, emlocação ou em garantia coisa alheia como própria;Alienação ou oneração fraudulenta de coisa própria

II — vende, permuta, dá em pagamento ou emgarantia coisa própria inalienável, gravada deônus ou litigiosa, ou imóvel que prometeu vender aterceiro, mediante pagamento em prestações,silenciando sobre qualquer dessas circunstâncias;Defraudação de penhor

III — defrauda, mediante alienação nãoconsentida pelo credor ou por outro modo, a

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garantia pignoratícia, quando tem a posse doobjeto empenhado;Fraude na entrega de coisa

IV — defrauda substância, qualidade ouquantidade de coisa que deve entregar a alguém;Fraude para recebimento de indenização ou valor deseguro

V — destrói, total ou parcialmente, ou ocultacoisa própria, ou lesa o próprio corpo ou a saúde,ou agrava as consequências da lesão ou doença,com o intuito de haver indenização ou valor deseguro;Fraude no pagamento por meio de cheque

VI — emite cheque, sem suficiente provisão defundos em poder do sacado, ou lhe frustra opagamento.

§ 3º A pena aumenta-se de um terço, se o crime écometido em detrimento de entidade de direitopúblico ou de instituto de economia popular,assistência social ou beneficência.

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1. Considerações preliminares

O antigo direito romano desconhecia o crime hojedenominado estelionato. Era integrado ao dolusmalus que, juntamente com a fraus e o metus,constituía crime privado, produto de criaçãopretoriana. Na Grécia antiga a fraude era severamentereprimida.

No tempo do império (século II d. C.) aparece umafigura genérica do stelionatus (de stellio, quesignifica camaleão), uma espécie de crimeextraordinário, que abrangeria todos os casos em quecoubesse a actio doli, e que não se adequassem aqualquer outro crime contra o patrimônio1.

O Código Penal francês de 1810 incriminava aobtenção ou tentativa de obtenção de vantagempatrimonial, por meio de manobras fraudulentas (art.405). O estelionato recebeu nomes diversificados nosmais diversos países, embora em todos eles amanobra fraudulenta tenha sido a nota característicacomum; na Itália recebeu as denominações de frode(Código toscano) e truffa (Códigos Zanardelli eRocco); na Espanha, estafa; em Portugal, burla; na

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Alemanha, Betrug (engano).Nas Ordenações Filipinas, o estelionato

denominou-se “burla” ou “inliço” (Livro V, Título665), e lhe era cominada a pena de morte quando oprejuízo fosse superior a vinte mil-réis.

O Código Criminal do Império (1830) adotou onomen juris “estelionato”, prevendo várias figuras,além da seguinte descrição genérica: “todo equalquer artifício fraudulento, pelo qual se obtenhade outrem toda a sua fortuna ou parte dela, ouquaisquer títulos”. O Código Penal republicano(1890) seguiu a mesma orientação casuística,tipificando onze figuras de estelionato, incluindouma modalidade genérica, nos seguintes termos:“usar de artifício para surpreender a boa-fé deoutrem, iludir a sua vigilância, ou ganhar-lhe aconfiança; induzindo-o em erro ou engano por essese outros meios astuciosos, procurar para si lucro ouproveito”.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é a inviolabilidade dopatrimônio, particularmente em relação aos atentadosque podem ser praticados mediante fraude. Tutela-se

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tanto o interesse social, representado pela confiançarecíproca que deve presidir os relacionamentospatrimoniais individuais e comerciais, quanto ointeresse público de reprimir a fraude causadora dedano alheio2.

O crime de estelionato — destacava Manzini —“não é considerado como um fato limitado àagressão do patrimônio de Tício ou de Caio, masantes como manifestação de delinquência que violouo preceito legislativo, o qual veda o servir-se dafraude para conseguir proveito injusto com danoalheio, quem quer que seja a pessoa prejudicada emconcreto. O estelionatário é sempre um criminoso,mesmo que tenha fraudado em relações que, por simesmas, não merecem proteção jurídica, porque suaação é, em qualquer caso, moral e juridicamenteilícita”3.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo do crime de estelionato pode serqualquer pessoa, sem qualquer condição especial(crime comum). O concurso eventual de pessoas, emqualquer de suas formas (coautoria e participação),

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pode facilmente se configurar.Na descrição típica, o legislador destaca que a

vantagem indevida pode ser para si (o sujeito ativo)ou para outrem. Essa terceira pessoa pode sercoautor ou partícipe do crime, sendo alcançada peloconcurso de pessoas (art. 29 do CP). Contudo, nadaimpede que o “outrem”, beneficiário do produto doestelionato, seja terceiro estranho e insciente docrime, isto é, sem qualquer participação quer em seuplanejamento, quer em sua execução; se ignorar,inclusive, a origem criminosa da vantagem que se lheatribui, não será passível de punição.

Sujeito passivo pode ser, igualmente, qualquerpessoa, física ou jurídica; deve-se destacar que podehaver dois “sujeitos passivos”, quando, porexemplo, a pessoa enganada for diversa da que sofreo prejuízo (o empregado sofre o golpe (fraude) doagente, mas quem suporta o prejuízo da ação é oempregador). A vítima efetiva, na verdade, é quemsofre o dano material decorrente da ação, comodestacava Roberto Lyra: “Sujeito passivo da ação,do erro, é quem sofre sua materialidade; o patrimônioafetado pode ser de outrem, que experimenta oresultado, o prejuízo”4.

Em verdade, não se pode perder de vista que obem jurídico protegido é o patrimônio; assim, sujeito

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passivo é quem sofre a lesão patrimonial. Anecessidade do nexo causal entre a fraude e a lesãopatrimonial não significa, deve-se reconhecer, queambos devam ser suportados pela mesma pessoa.

O sujeito passivo deve, necessariamente, serpessoa(s) determinada(s). Tratando-se de pessoasindeterminadas, pode configurar-se crime contra aeconomia popular ou contra as relações de consumo.

3.1 Criança e débil mental: impossibilidade

Para a tipificação do crime de estelionato, éindispensável a existência de fraude, criando oumantendo alguém em erro. No entanto, para a vítimapoder ser enganada, é indispensável que tenhacapacidade de discernimento. Nesses casos, pode-se dizer, há impropriedade absoluta do “objeto” doerro, pois um dos elementos do estelionato é oemprego de meio fraudulento para enganar ou mantera vítima em erro; como esses incapazes não têmcapacidade de entender e de querer, não podem serludibriados; logo, tampouco podem ser sujeitospassivos desse crime.

Assim, se a vítima não tiver capacidade deautodeterminação, como a criança ou o débil mental,o crime será o do art. 173 do CP. Se, no entanto, não

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tiver capacidade natural de ser iludida, como, porexemplo, ébrio em estado de coma, o crime será o defurto5.

4. Fraude civil e fraude penal: ontologicamenteiguais

Nélson Hungria estabeleceu a seguinte distinçãoentre ilícito penal e ilícito civil: “Ilícito penal é aviolação da ordem jurídica, contra a qual, pela suaintensidade ou gravidade, a única sanção adequadaé a pena, e ilícito civil é a violação da ordem jurídica,para cuja debelação bastam as sanções atenuadas daindenização, da execução forçada ou in natura, darestituição ao status quo ante, da breve prisãocoercitiva, da anulação do ato, etc.”6 (grifos dooriginal).

Comerciar é a arte de negociar, de tirar vantagemeconômica do negócio ou qualquer transação que serealize; esse aspecto encerra um jogo de inteligência,de astúcia, uma espécie de brincadeira de esconde-esconde, donde resultou a expressão popular de que“o segredo é a alma do negócio”. Em outros termos,é normal, nas transações comerciais ou civis, certa

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dose de malícia entre as partes, que, com habilidade,procuram ocultar eventuais deficiências de seuproduto para, assim, realizar um negócio maislucrativo ou vantajoso. Não era outro oentendimento de Magalhães Noronha, quereconhecia: “Se assim não fosse, raro seria o negócioou a transação em que se não divisaria fraudepunível, pois, neles, são frequentes os pequenosardis, os ligeiros artifícios, os leves expedientesvisando a resultado rendoso”7.

A questão fundamental é, afinal, quando essamalícia ou habilidade ultrapassa os limites domoralmente legítimo para penetrar no campo doilícito, do proibido, do engodo ou da indução ao erro.

Na verdade, a ilicitude começa quando seextrapolam os limites da “malícia” e se utilizam oengano e o induzimento a erro para a obtenção devantagem, em prejuízo de alguém. No entanto,nessas circunstâncias, se estiver caracterizado oengano, a burla, ainda assim pode configurar-se nãomais que a fraude civil, que terá como consequênciaa anulação do “contrato”, com as respectivas perdase danos. Heleno Fragoso8 destacava um exemplomuito elucidativo: “Se alguém vende um automóvel,silenciando sobre defeito essencial (por exemplo:

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quebra da transmissão), isto será uma fraude civil,que anulará o contrato. Se alguém, todavia, vendeum automóvel sem motor, iludindo o adquirente,praticará um estelionato, ou seja, uma fraude penal”.Com efeito, atos maliciosos de comércio que nãoatingem o nível de burla, embora irregulares, nãoconstituem estelionato, para o qual é insuficiente ahabitual sagacidade do mundo dos negócios.

Como se distingue a fraude civil da fraudepenal? Há diferença essencial entre uma e outra?Existem critérios seguros para apurá-las?

Doutrina e jurisprudência por longo tempodebateram-se na tentativa de encontrar critériosseguros que permitissem detectar a distinção entreas espécies ou natureza da fraude. Carmignani,retrocedendo à concepção romana, afirmou que nafraude penal deveria existir grande perversidade eimpostura. A famosa teoria mise-en-scène, atribuída aum autor alemão, foi desenvolvida pelos franceses erecepcionada por Carrara (§ 2.344). Para osdefensores dessa concepção, a fraude civil poderevestir-se de simples mentira ou silêncio, enquantoa fraude penal exigiria determinada artificiosidadepara ludibriar a vítima. Essa teoria também perdeuatualidade e adeptos, pois a distinção da natureza dafraude não reside apenas no meio ou modo de

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execução9.Após demorada enumeração de teorias, Nélson

Hungria acaba concluindo: “O critério que nosparece menos precário é o que pode ser assim fixado:há quase sempre fraude penal quando, relativamenteidôneo (sic) o meio iludente, se descobre, nainvestigação retrospectiva do fato, a ideiapreconcebida, o propósito ab initio da frustração doequivalente econômico. Tirante tal hipótese de ardilgrosseiro, a que a vítima se tenha rendido porindesculpável inadvertência ou omissão de suahabitual prudência, o inadimplemento preordenadoou preconcebido é talvez o menos incerto dos sinaisorientadores na fixação de uma linha divisória nesseterreno contestado da fraude...”10.

Várias teorias, enfim, objetivas e subjetivas,pretenderam explicar a distinção entre as duasespécies de fraudes, civil e penal. Os argumentos, noentanto, não apresentaram suficientes econvincentes conteúdos científicos que ancorassemas conclusões que sugeriam, levando a modernadoutrina a recusá-las. Na verdade, não há diferençaontológica entre fraude civil e fraude penal, sendoinsuficientes todas as teorias que — sem negar-lhesimportância — procuraram estabelecer in abstracto

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um princípio que as distinguisse com segurança; nãose pode, responsavelmente, firmar a priori um juízodefinitivo sobre o tema. Fraude é fraude em qualquerespécie de ilicitude — civil ou penal —, repousandoeventual diferença entre ambas tão somente em seugrau de intensidade.

Na fraude civil objetiva-se o lucro do próprionegócio, enquanto na fraude penal se visa o “lucro”ilícito. A inexistência de dano civil impede que sefale em prejuízo ou dano penal11. Essa distinção,além de complexa, não é nada pacífica.

Não há critério científico que abstrata ouconcretamente distinga, com segurança, uma fraudeda outra!

Concluindo, somente razões político-criminaispodem justificar a separação, em termos de direitopositivo, entre fraude civil e fraude penal. Essaseleção, mesmo objetivando atender ao interessesocial, não pode adequar-se a um padrão abstrato deirretocável conteúdo e segurança científicos. Porisso, o máximo que se pode tolerar é a fixação decritérios elucidativos que permitam uma seguraopção do aplicador da lei.

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5. Tipo objetivo: adequação típica

A ação tipificada é obter vantagem ilícita (para siou para outrem), em prejuízo alheio, induzindo oumantendo alguém em erro, mediante artifício, ardilou qualquer outro meio fraudulento. A característicafundamental do estelionato é a fraude, utilizada peloagente para induzir ou manter a vítima em erro, coma finalidade de obter vantagem patrimonial ilícita.

No estelionato, há dupla relação causal:primeiro, a vítima é enganada mediante fraude, sendoesta a causa e o engano o efeito; segundo, novarelação causal entre o erro, como causa, e aobtenção de vantagem ilícita e o respectivo prejuízo,como efeito12. Na verdade, é indispensável que avantagem obtida, além de ilícita, decorra de erroproduzido pelo agente, isto é, que aquela sejaconsequência deste. Não basta a existência do errodecorrente da fraude, sendo necessário que da açãoresulte vantagem ilícita e prejuízo patrimonial.Ademais, à vantagem ilícita deve corresponder umprejuízo alheio.

A configuração do crime de estelionato exige apresença dos seguintes requisitos fundamentais: 1)emprego de artifício, ardil ou qualquer outro meiofraudulento; 2) induzimento ou manutenção da

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vítima em erro; 3) obtenção de vantagempatrimonial ilícita em prejuízo alheio (doenganado ou de terceiro). Façamos um sucintoexame de cada um.

5.1 Emprego de artifício, ardil ou qualquer outromeio fraudulento

Para enganar alguém, induzindo-o ou mantendo-o em erro, pode-se empregar artifício, ardil ouqualquer outro meio fraudulento. Artifício é todasimulação ou dissimulação idônea para induzir umapessoa ao erro, levando-a à percepção de uma falsaaparência da realidade; ardil é a trama, oestratagema, a astúcia; qualquer outro meiofraudulento é uma fórmula genérica para admitirqualquer espécie de fraude que possa enganar avítima. Com essa expressão genérica, torna-sedesnecessária a precisão conceitual de artifício eardil13, que são meramente exemplificativos dafraude penal, tratando-se de crime de forma livre.Significa poder afirmar, ademais, que, se o MinistérioPúblico imputar a prática do fato delituoso medianteartifício e, a final, a prova dos autos demonstrar quese trata de ardil, não haverá nenhum prejuízo para adefesa e tampouco se poderá afirmar que o Parquet

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pecou por desconhecimento técnico-dogmático.Não se deve esquecer, contudo, que a

interpretação em matéria penal-repressiva deve sersempre restritiva, e somente nesse sentido negativoé que se pode admitir o arbítrio judicial, sem serviolada a taxatividade do princípio da reserva legal.A seguinte expressão de Nélson Hungria ilustramuito bem esse raciocínio: “Não pode ser temido oarbitrium judicis quando destinado a evitar, prolibertate, a excessiva amplitude prática de umanorma penal inevitavelmente genérica”14.

É indispensável que o meio fraudulento sejasuficientemente idôneo para enganar a vítima, isto é,para induzi-la a erro. A inidoneidade do meio, noentanto, pode ser relativa ou absoluta: sendorelativamente inidôneo o meio fraudulento paraenganar a vítima, poderá configurar-se tentativa deestelionato; contudo, se a inidoneidade for absoluta,tratar-se-á de crime impossível, por absolutaineficácia do meio empregado (art. 17).

5.2 Induzimento ou manutenção da vítima em erro

Induzir tem o significado de o agente incutir oupersuadir alguém com sua ação. Examinando o

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significado desse verbo, na tipificação do crime deinduzimento ao suicídio, fizemos as seguintesconsiderações: “Induzir significa suscitar osurgimento de uma ideia, tomar a iniciativaintelectual, fazer surgir no pensamento de alguémuma ideia até então inexistente. Por meio da induçãoo indutor anula a vontade de alguém”15. Mutatismutandis, aplicam-se os mesmos conceitos para ocaso de estelionato. No entanto, nesta figura, não seemprega o verbo “instigar”, como faz naquele crimecontra a vida, preferindo o verbo “manter”, que querdizer que a vítima já se encontra em erro, limitando-seo agente, com sua ação fraudulenta, a não alterar osfatos. Contudo, se a conduta do agente formeramente omissiva ou não revestir-se de fraude,ainda que comissiva, não se poderá falar em crime deestelionato.

Erro é a falsa representação ou avaliaçãoequivocada da realidade. A vítima supõe, por erro,tratar-se de uma realidade, quando na verdade estádiante de outra; faz, em razão do erro, um juízoequivocado da relação proposta pelo agente. Aconduta fraudulenta do sujeito leva a vítima aincorrer em erro. “O agente coloca — ou mantém —a vítima numa situação enganosa, fazendo parecerrealidade o que efetivamente não é. Ex.: o autor finge

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manter uma agência de venda de carros, recolhe odinheiro da vítima, prometendo-lhe que entregará obem almejado, e desaparece”16.

Essa conduta delituosa pode concretizar-se deduas formas: induzindo a vítima a erro ou mantendo-a. Na primeira hipótese, a vítima, em razão doestratagema, do ardil ou engodo utilizado peloagente, é levada ao erro; na segunda, aquela já seencontra em erro, voluntário ou não, limitando-se aação do sujeito ativo a manter o ofendido nasituação equivocada em que se encontra.

Em outros termos, a obtenção da vantagem ouproveito ilícito decorre da circunstância de o agenteinduzir a vítima ao erro ou de mantê-la no estado deerro em que se encontra. Enfim, é possível que oagente provoque a incursão da vítima em erro ouapenas se aproveite dessa situação em que a vítimase encontra. De qualquer sorte, nas duasmodalidades comete o crime de estelionato. Mas,parece-nos importante destacar que, mesmo nasegunda hipótese, a conduta é comissiva, pois para“manter” o agente deve agir positivamente.

5.3 Obtenção de vantagem ilícita em prejuízoalheio: elemento normativo

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A conduta nuclear, por excelência, estárepresentada pelo verbo “obter”, isto é, conseguirproveito ou vantagem ilícita em razão de enganoprovocado no ofendido. Para a configuração doestelionato é indispensável que o agente obtenhaproveito indevido em prejuízo alheio. Exige o tipopenal a produção de duplo resultado (vantagemilícita e prejuízo alheio), que examinaremos logo aseguir.

Estamos diante de um crime que apresenta grandecomplexidade estrutural tipológica, pela riqueza deelementos objetivos, normativos e subjetivos que ocompõem, destacando-se, de plano, a duplicidade denexo causal e de resultados17.

A duplicidade de nexo causal está representadapor dupla relação de causa e efeito; num primeiromomento, funciona a fraude como causa, e o enganodecorrente do ardil, como efeito; no momentosubsequente, o erro consequente do engano, comocausa, e a obtenção da vantagem indevida e o danopatrimonial correspondente18 (esses doisrepresentando a segunda duplicidade). Trata-se, comefeito, de crime de resultado duplo, uma vez quepara se consumar exige a obtenção de vantagemilícita, de um lado, e a ocorrência efetiva de um

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prejuízo para a vítima, de outro. A ausência dequalquer desses resultados descaracteriza oestelionato consumado, restando, em princípio, afigura da tentativa.

Vantagem ilícita é todo e qualquer proveito oubenefício contrário à ordem jurídica, isto é, nãopermitido por lei. A obtenção da vantagem ilícita,ao contrário do que ocorre nos crimes de furto e deapropriação indébita, é elemento constitutivo doestelionato.

A simples imoralidade da vantagem éinsuficiente para caracterizar essa elementar típica.Prejuízo alheio, por sua vez, significa perda, dano,diminuição de lucro ou de patrimônio, pertencente aoutrem.

Há divergência doutrinário-jurisprudencial sobrea natureza da vantagem, isto é, se deve sernecessariamente econômica ou não. Esse aspecto,por sua complexidade, será abordado em tópicoespecífico.

À vantagem ilícita deve corresponder,simultaneamente, um prejuízo alheio; a ausência dequalquer dos dois descaracteriza o crime deestelionato. A ausência dessa correspondência, istoé, se o sujeito ativo obtiver a vantagem ilícita, masnão causar prejuízo a terceiro, faltará a elementar

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típica “em prejuízo alheio”. Nessa hipótese não sepode afirmar que houve estelionato; faz-senecessário que se examine a possibilidade teórica daocorrência da tentativa. Contudo, a ausência deprejuízo, por si só, não é suficiente para caracterizar atentativa, ao contrário do entendimento esposadopor Damásio de Jesus19.

Na verdade, somente a casuística pode oferecer-nos com mais segurança a resposta correta, mas, deplano, pode-se assegurar que é indispensável nessescasos examinar se a não ocorrência de prejuízoalheio foi provocada por causas estranhas àvontade do agente (art. 14, II). Ora, se esse elementoda tentativa não estiver presente não se pode falarna figura tentada de estelionato.

São indiferentes os meios utilizados pelo agentetanto para o induzimento da vítima em erro quantopara sua manutenção. Em qualquer das hipóteses énecessária uma influência decisiva no processo deformação de vontade da vítima, abrangendo osaspectos volitivos e intelectivos.

6. Vantagem ilícita: irrelevância da naturezaeconômica

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Embora discordemos do entendimento quesustentava Heleno Fragoso, convém destacar suacoerência doutrinário-dogmática, mantendo a mesmaorientação ao examinar duas elementaressemelhantes : qualquer vantagem — na extorsãomediante sequestro (art. 159) — e vantagem ilícita— no estelionato (art. 171); para Fragoso, tantonuma quanto noutra hipótese “a vantagem há de sereconômica”. Na primeira, dizia, “embora haja aquiuma certa imprecisão da lei, é evidente que obenefício deve ser de ordem econômica oupatrimonial, pois de outra forma este seria apenas umcrime contra a liberdade individual”20; na segunda,relativamente ao estelionato, mantendo suacoerência tradicional, pontificava: “por vantagemilícita deve entender-se qualquer utilidade ouproveito de ordem patrimonial, que o agente venha ater em detrimento do sujeito passivo sem que ocorrajustificação legal”21.

E s s a correção metodológico-interpretativa,porém, não constitui unanimidade na doutrinanacional, merecendo, ainda queexemplificativamente, ser examinada.

Com efeito, Magalhães Noronha, examinando ocrime de “extorsão mediante sequestro”, professava:

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“O Código fala em qualquer vantagem, não podendoo adjetivo referir-se à natureza desta, pois aindaaqui, evidentemente, ela há de ser, como no art. 158,econômica, sob pena de não haver razão para odelito ser classificado no presente título”22. Noentanto, o mesmo Magalhães Noronha, em suaanálise da elementar vantagem ilícita, contida nocrime de “estelionato”, parece ter esquecido queessa infração penal também está classificada noTítulo dos Crimes contra o Patrimônio, ao asseverarque: “Essa vantagem pode não ser econômica, e issoé claramente indicado por nossa lei, pois, enquantoque, na extorsão, ela fala em indevida vantagemeconômica, aqui menciona apenas a vantagem ilícita.É, aliás, opinião prevalente na doutrina”23. Nessalinha de Magalhães Noronha, com posição não muitoclara, Luiz Regis Prado, na atualidade, referindo-se à“extorsão mediante sequestro”, leciona: “No quetange à vantagem descrita no tipo, simplesinterpretação do dispositivo induziria à conclusão deque não deva ser necessariamente econômica.Contudo, outro deve ser o entendimento. De fato, aextorsão está encartada entre os delitos contra opatrimônio, sendo o delito-fim, e, no sequestro,apesar de o próprio tipo não especificar a natureza davantagem, parece indefensável entendimento

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diverso”24. Em relação ao “estelionato”, referindo-seà elementar vantagem ilícita, Regis Prado sustenta:“Prevalece o entendimento doutrinário de que areferida vantagem não necessita ser econômica, jáque o legislador não restringiu o seu alcance como ofez no tipo que define o crime de extorsão, no qualempregou a expressão indevida vantagemeconômica”25.

Constata-se que, ao contrário de Heleno Fragoso,que manteve interpretação coerente, MagalhãesNoronha e Regis Prado adotam entendimentocontraditório, na medida em que, em situaçõessemelhantes — “qualquer vantagem” e “vantagemilícita” —, adotam soluções díspares, comoacabamos de ver.

Examinando o mesmo tema, no crime de “extorsãomediante sequestro”, neste mesmo volume, fizemos aseguinte afirmação: “Preferimos, contudo, adotaroutra orientação, sempre comprometida com asegurança dogmática da tipicidade estrita, naquelalinha que o próprio Magalhães Noronha gostava derepetir de que “a lei não contém palavras inúteis”,mas que também não admite — acrescentamos — ainclusão de outras não contidas no texto legal.Coerente, jurídica e tecnicamente correto o velho

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magistério de Bento de Faria, que pontificava: “Avantagem — exigida para restituição da liberdade oucomo preço do resgate, pode consistir em dinheiroou qualquer outra utilidade, pouco importando aforma da exigência”26. Adotamos esseentendimento27, pelos fundamentos que passamos aexpor. (...) Curiosamente, no entanto, na descriçãodesse tipo penal — extorsão mediante sequestro —,contrariamente ao que fez na constituição do crimeanterior (extorsão), que seria, digamos, o tipo matrizdo “crime extorsivo”, o legislador brasileiro nãoinseriu na descrição típica a elementar normativaindevida vantagem econômica. Poderia tê-laincluído; não o fez. Certamente não terá sido poresquecimento, uma vez que acabara de descrevertipo similar, com sua inclusão (art. 158). Preferiu, noentanto, adotar a locução “qualquer vantagem”, semadjetivá-la, provavelmente para não restringir seualcance.

Por tudo isso, em coerência com o entendimentoque esposamos sobre a locução “qualquervantagem”, que acabamos de transcrever,sustentamos que a vantagem ilícita — elementar docrime de estelionato —, pelas mesmas razões, nãoprecisa ser necessariamente de natureza econômica.

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O argumento de que a natureza econômica davantagem é necessária, pelo fato de o estelionatoestar localizado no Título que disciplina os crimescontra o patrimônio, além de inconsistente, éequivocado. Uma coisa não tem nada que ver com aoutra: os crimes contra o patrimônio protegem ainviolabilidade patrimonial da sociedade em geral eda vítima em particular, o que não se confunde com avantagem ilícita conseguida pelo agente. Por isso,não é a vantagem obtida que deve ter naturezaeconômica; o prejuízo sofrido pela vítima é que deveter essa qualidade. Nesse particular, alteramos oentendimento manifestado no Código Penalcomentado28, sobre a ilogicidade de o prejuízoalheio ter natureza patrimonial e a vantagem ilícitapoder ser de qualquer natureza.

O prejuízo alheio, além de patrimonial, isto é,economicamente apreciável, deve ser real, concreto,não podendo ser meramente potencial. Prejuízo,destacava Magalhães Noronha29, é sinônimo dedano, e, como o crime é contra o patrimônio, essedano há de ser patrimonial. Aqui se justifica essainterpretação, pois está de acordo com o bem jurídicotutelado, que é a inviolabilidade do patrimônioalheio. Elucidativo, nesse particular, o magistério de

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Sebastian Soler30: “Prejuízo patrimonial não querdizer somente prejuízo pecuniário: a disposiçãotomada pode consistir na entrega de uma soma emdinheiro, de uma coisa, móvel ou imóvel, de umdireito e também de um trabalho que se entendaretribuído, ou de um serviço tarifado. Pode tambémconsistir na renúncia a um direito que positivamentese tem. Deve tratar-se, em todo caso, de um valoreconomicamente apreciável, sobre o qual incida odireito de propriedade no sentido amplo em que taldireito é entendido pela lei penal”.

Por fim, a vantagem tem de ser injusta, ilegal,indevida. Se for justa estará afastada a figura doestelionato, podendo configurar, em tese, exercícioarbitrário das próprias razões (art. 345 do CP).Quando a lei quer limitar a espécie de vantagem, usao elemento normativo indevida, injusta, sem justacausa, ilegal, como destacamos em inúmeraspassagens deste trabalho. Assim, havendo a fraudepara enganar e obter vantagem ilícita, para si ou paraoutrem, não importa a natureza (econômica ou não).Contudo, quanto à espécie é diferente: deve serinjusta.

Concluindo, a vantagem ilícita não precisa ternatureza econômica, mas deve, necessariamente, serinjusta, ao passo que o prejuízo alheio, em razão do

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bem jurídico violado, deve ser economicamenteapreciável.

7. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo geral do estelionato é odolo, representado pela vontade livre e conscientede ludibriar alguém, por qualquer meio fraudulento,para obter vantagem indevida, em prejuízo de outrem.Deve abranger não apenas a ação como também omeio fraudulento, a vantagem indevida e o prejuízoalheio. Hungria31, a seu tempo, já chamava a atençãopara esse aspecto: “Não existe o crime sem a vontadeconscientemente dirigida à astucia mala queprovoca ou mantém o erro alheio e à correlativalocupletação ilícita em detrimento de outrem”.

O dolo, na primeira figura, “induzir em erro”, deveanteceder o emprego do meio fraudulento e aprodução dos resultados “vantagem ilícita” e“prejuízo alheio”. Na segunda figura, “manter emerro”, o dolo é concomitante ao referido erro:constatada a existência do erro, o dolo consisteexatamente em sua manutenção32.

É necessário que o agente tenha consciência de

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que obtém uma vantagem indevida, visto que, se fordevida, legal ou justa não se cuidará de estelionato,mas, teoricamente, de exercício arbitrário das própriasrazões (art. 345). O erro sobre a justiça ou legalidadeda vantagem constitui erro de tipo, pois incide sobreuma elementar típica.

Não há previsão de modalidade culposa deestelionato, a despeito da possibilidade de alguémser induzido ou mantido em erro, por imprudência ounegligência.

Faz-se necessário, ainda, o elemento subjetivoespecial do tipo, constituído pelo especial fim deobter vantagem patrimonial ilícita, para si ou paraoutrem. A simples finalidade de produzir danopatrimonial ou prejuízo a alguém, sem visar aobtenção de proveito injusto, não caracteriza oestelionato.

8. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (não necessita dequalquer qualidade ou condição especial do sujeitoa t iv o ) ; material (exige resultado naturalístico,consistente em dano patrimonial); doloso (nãoadmite modalidade culposa); instantâneo (o

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resultado se produz de imediato; sua execução nãose alonga no tempo); de forma livre (pode serpraticado livremente, com qualquer meio escolhidopelo sujeito ativo); comissivo (somente pode serpraticado com uma conduta positiva,excepcionalmente comissivo-omissivo); de dano(consuma-se somente com o advento do resultadomaterial, isto é, com a efetiva lesão de um bemjurídico tutelado); unissubjetivo (pode ser cometidopor apenas um sujeito ativo); plurissubsistente(consistente em vários atos integrantes de umaconduta, admitindo, consequentemente, seufracionamento).

Discute-se sobre a possibilidade de o estelionatoapresentar-se, excepcionalmente, como crimepermanente, em especial no caso da utilização decertidões falsas para o recebimento de benefícios doINSS. Com acerto, no entanto, o Ministro MarcoAurélio concebeu-o como crime instantâneo comefeitos permanentes33. Em nossa concepção, comefeito, essa é a orientação correta, ou seja, via deregra o estelionato pode apresentar-se como crimeinstantâneo de efeitos permanentes e, na hipótese derepetição, quer com a utilização de certidões falsasperante o INSS, quer com o recebimento dosproventos, caracteriza-se somente crime continuado:

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repetição de ação não se confunde compermanência, a despeito do entendimento adotadopelo STJ no acórdão citado.

9. Consumação e tentativa

Consuma-se o estelionato, em sua formafundamental, no momento e no lugar em que oagente obtém o proveito a que corresponde oprejuízo alheio. Na verdade, é indispensável que avantagem obtida, além de indevida, decorra do erroproduzido pelo agente, isto é, que aquela sejaconsequência deste. Não basta a existência do errodecorrente da fraude, sendo necessário que da açãoresulte vantagem ilícita e prejuízo patrimonial deoutrem. Com efeito, à vantagem ilícita devecorresponder um prejuízo alheio, numa relação decausa e efeito. Em outros termos, não se pode falarem consumação sem a presença do binômio proveitoilícito-prejuízo alheio.

Tratando-se de crime material, que admite seufracionamento, é perfeitamente admissível atentativa, uma vez que o iter criminis pode serinterrompido, por causas estranhas à vontade doagente.

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Para o êxito da fraude é necessário que o meiofraudulento seja suficientemente idôneo paraenganar a vítima, isto é, para induzi-la a erro. Ainidoneidade do meio, no entanto, pode ser relativao u absoluta: sendo relativamente inidôneo o meiofraudulento para enganar a vítima, poderá configurar-se tentativa de estelionato, se estiverem presentes osdemais requisitos; contudo, se a inidoneidade forabsoluta, tratar-se-á de crime impossível (art. 17).

No estelionato, crime que requer a cooperação davítima, o início de sua execução se dá com o enganoda vítima. Quando o agente não consegue enganar avítima, o simples emprego de artifício ou ardilcaracteriza apenas a prática de atos preparatórios,não se podendo cogitar de tentativa de estelionato.Com efeito, não caracteriza estelionato a obtenção devantagem ilícita em prejuízo alheio, se, a despeito decomprovada a autoria, o meio empregado peloagente for ineficaz para induzir ou manter a vítima emerro.

10. Estelionato e falsidade

Há quatro orientações distintas quando o agentese utiliza do falsum como meio para a prática do

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estelionato: 1) O estelionato absorve a falsidade —quando esta for o meio fraudulento utilizado para aprática do crime-fim, que é o estelionato. O SuperiorTribunal de Justiça sumulou essa orientação, nosseguintes termos: “Quando o falso se exaure noestelionato, sem mais potencialidade lesiva, é poreste absorvido” (Súmula 17)34. 2) Há concursoformal entre estelionato e o crime de “falsum” —para essa corrente é indiferente a espécie ou naturezada falsidade: material, ideológica, documento públicoou particular, ou simples uso de documento falso(STF, RTJ, 117:70; TRF da 4ª Região, DJU, 5 set.1990, p. 20104). 3) O crime de falso prevalece sobre oestelionato — mas somente quando se tratar defalsidade de documento público, cuja pena é superiorà do estelionato (TRF da 2ª Região, DJU, 20 jul. 1993,p. 28577). 4) Há concurso material — para estacorrente é indiferente que a falsidade seja dedocumento público ou particular (TJSP, RJTJSP,85:366).

11. Estelionato privilegiado: minorante de aplicaçãoobrigatória

Embora semelhante à previsão do furto

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privilegiado, aqui se requer pequeno valor doprejuízo (171, § 1º), enquanto no furto se exigepequeno valor da “res furtiva”, necessitando,consequentemente, ser avaliado o efetivo prejuízosofrido pela vítima. O “pequeno prejuízo” deve serverificado, via de regra, por ocasião da realização docrime, e, na hipótese de tentativa, é aquele quedecorreria da pretendida consumação.

Para fins de aplicação do disposto no § 1º do art.171 do CP, não se identificam “pequeno prejuízo”causado à vítima e “pequeno valor” da res furtiva(art. 155, § 2º, do CP) resultante da ação delituosa.No crime de furto, o valor da res furtiva deve sermedido ao tempo da subtração, não se identificandocom o pequeno prejuízo que dela resultar. Como aprevisão legal, para essa infração, refere-se apequeno valor da coisa furtada, é irrelevante acircunstância de a vítima recuperar o bem subtraído enão sofrer prejuízo algum.

A s minorantes constituem direitos públicossubjetivos do réu, cuja admissão é obrigatória,estando presentes os dois requisitos legais(primariedade e pequeno prejuízo). Parareconhecimento da figura privilegiada, tempredominado o entendimento (mais liberal) de que olimite de um salário-mínimo não é intransponível.

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12. Figuras especiais de estelionato

Com o mesmo tratamento penal dispensado aotipo fundamental, o legislador de 1940 previumodalidades especiais de estelionato.Desnecessário dizer que cada figura apresentaalguma peculiaridade que a distingue do tipofundamental, sob pena de não haver razão para suaespecialidade.

O § 2º do art. 171, com efeito, prevê seismodalidades especiais de estelionato: disposição decoisa alheia como própria; alienação ou oneraçãofraudulenta de coisa própria; defraudação depenhor; fraude na entrega de coisa; fraude pararecebimento de indenização ou valor de seguro efraude no pagamento por meio de cheque.

Façamos, por ora, uma análise sucinta de cadauma dessas figuras especiais de estelionato.

12.1 Disposição de coisa alheia como própria (I)

Convém destacar, preliminarmente, que osmesmos elementos constitutivos do estelionato emsua modalidade fundamental também estão presentesnessa figura: emprego da fraude, em razão da qual osujeito passivo acredita que a coisa que lhe é

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oferecida pertence ao estelionatário, a incursão emerro da vítima, com a consequente vantagemindevida do agente e o correspondente prejuízo dealguém.

As condutas incriminadas são vender, permutar,dar em pagamento, em locação ou em garantiacoisa alheia como própria. Essa modalidade consistee m realizar qualquer dos atos jurídicosmencionados tendo por objeto coisa alheia como sefosse própria. Exige-se a má-fé do sujeito ativo ecorrespondente boa-fé do sujeito passivo; no caso,o comprador é enganado, além do proprietário, éclaro.

A disposição da coisa é inerente ao domínio, e sóo tem o proprietário, a quem o Código Civil confere,além do uso e gozo da coisa, sua disponibilidade.Podem ser objeto material desse crime tanto os bensmóveis quanto os imóveis. É necessário que a açãofísica esteja relacionada à coisa alheia: compra evenda, troca, dação em pagamento.

Consuma-se o crime, como o tipo básico, com aobtenção da vantagem ilícita e o prejuízo para avítima. Considerando-se tratar-se de crime material, atentativa é perfeitamente possível, já que o itercriminis pode ser interrompido.

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa; sujeito

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passivo é o comprador de boa-fé, enganado pelovendedor, incluindo também o próprio proprietárioda coisa. Exige-se antagônica relação desubjetividade: a má-fé do sujeito ativo versus a boa-fé do sujeito passivo.

Todos os demais elementos estruturais previstospara o tipo fundamental (caput do art. 171) aplicam-se aos tipos especiais, que não deixam de ser tiposderivados.

12.2 Alienação ou oneração fraudulenta de coisaprópria (II)

Nossos anteriores diplomas legais codificados(Ordenações Filipinas, Código Criminal de 1830 eCódigo Penal de 1890) já consagravam esse tipo decrime.

O que muda efetivamente, nesse tipo penal, é oobjeto material: em vez de ser coisa alheia, trata-sede coisa própria, impedida, por alguma razão, de seralienada. As ações incriminadas incidem sobre coisaprópria, gravada com ônus de inalienabilidade.Quando “todos os direitos” imanentes ao direito depropriedade reúnem-se na pessoa do proprietáriofala-se em dominium plenum. Nem sempre, porém, odono da coisa dispõe de todos esses atributos da

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propriedade, sendo uma das restrições possíveis ainalienabilidade, que pode decorrer de lei,convenção ou testamento. Outra restrição ao direitode propriedade, especialmente importante para odireito penal, é a indisponibilidade de coisa gravadade ônus, que nada mais é do que o desmembramentode alguns dos direitos que compõem o dominium.Pois esse desmembramento constitui ônus para oproprietário e, recaindo sobre a coisa, tem naturezareal e não simplesmente obrigacional; pode-se citarcomo exemplo a hipoteca, a anticrese e o penhor.Além dos direitos reais por natureza, entre outros,enfiteuse, superfície, servidões, usufruto.

Quem recebe a coisa, com qualquer desses ônus,desconhecendo a existência destes, é lesado em seudireito e fraudado em sua expectativa; sofre prejuízopatrimonial e é vítima do crime tipificado nodispositivo em exame.

A promessa de venda não é abrangida comoforma de crime nos conceitos de venda, permuta oudação em pagamento do art. 171, § 2º, do CP. Assim,o silêncio do promitente vendedor sobre o fato deestar o imóvel arrestado em execução, por exemplo,não tipifica o crime de alienação fraudulenta de coisaprópria. Essa proibição tipificada refere-seexpressamente ao ato de vender, que não se

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confunde com o mero compromisso de compra evenda (este não passa de obrigação de fazer). Sórecorrendo à analogia seria possível enquadrar apromessa de venda no art. 171, § 2º, II, do CP, mas aincriminação analógica é vedada pelo direito penalmoderno35.

Concretamente, porém, dependendo das demaiscircunstâncias, poderá caracterizar o tipofundamental descrito no caput. Com efeito, para finscriminais não há como confundir venda compromessa de compra e venda: a obrigação de fazer,que resulta da promessa, deve ser resolvida no juízocível, sendo estranho ao tipo penal, que no art. 171, §2º, II, exige para sua configuração o núcleo “vender”,sendo, portanto, diferentes seus conceitosnormativos e doutrinários.

O sujeito ativo, ao contrário da previsão do incisoanterior, é o dono da coisa, que está impedido — porlei, contrato ou testamento — de aliená-la; aliás,como se trata de crime próprio, só o dono da coisapode sê-lo. A coisa pode, também, ser gravada comônus impeditivo de alienação (v. CC/16, art. 674). Emqualquer das hipóteses, é necessário que o sujeitoat ivo iluda a vítima sobre a condição da coisa,silenciando sobre qualquer das circunstânciasenumeradas.

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Sujeito passivo é quem recebe a coisa nascondições enumeradas e, na última hipótese, tambémo promitente comprador.

12.3 Defraudação de penhor (III)

A ação tipificada é defraudar garantiapignoratícia mediante alienação (venda, troca,doação etc.) ou por outro modo (desvio, consumo,destruição, abandono etc.), sem consentimento docredor. Defraudar significa lesar, privar ou tomar umbem de outrem. Tipifica-se o estelionato, nessamodalidade, quando o devedor pignoratício, quetem a posse do objeto empenhado, “defrauda,mediante alienação não consentida pelo credor oupor outro modo, a garantia pignoratícia” (art. 171, III,do CP).

A alienação de lavoura de soja, por exemplo,constituída em garantia por meio de cédula ruralpignoratícia, sem o consentimento do credor,configura essa modalidade especial de estelionato.Ocorre a defraudação de penhor quando é feita aalienação do objeto empenhado (inciso III do 2º doart. 171 do CP) sem o consentimento do credor,independentemente de a espécie de depósito serregular ou irregular.

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A defraudação do penhor para aperfeiçoar-se emsua anatomia jurídica, geralmente prescinde doexame pericial; a exigência, além de estimular aimpunidade, seria verdadeira contradicta in re ipsa,considerando-se que é da natureza desse ilícito penalo desaparecimento da garantia real representada pelopenhor.

O consentimento do ofendido, representando aausência do elemento normativo do tipo, afasta atipicidade da conduta do sujeito ativo.

A penhora destinada a servir de garantia daexecução não se equipara à hipótese prevista noinciso III do § 2º do art. 171 do Código Penal, ondese cuida de fraude relativamente à coisa pertencenteou possuída pelo agente, mas vinculada, em garantiade débito, a um direito real (penhor). Esse crime,portanto, só se configura quando o objetoempenhado permanece em poder do devedor emdeterminadas situações, expressamente previstas nalei, por força da cláusula constituti, o que não é ocaso da penhora, que constitui simples atoprocessual de garantia do juízo.

Sujeito ativo é o devedor dono do objetoempenhado, que está na posse da coisa. Sujeitopassivo é o credor pignoratício.

Para a configuração do delito exige-se o dolo.

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Não se pode ver, por exemplo, na atitude do réu,vendendo parte de minguada safra, ante dificuldadesfinanceiras, o dolo de defraudar, mediante alienaçãonão consentida, a garantia pignoratícia.

12.4 Fraude na entrega de coisa (IV)

Em alguns tipos de penhor não há a entregaefetiva da coisa ao credor, verificando-se tãosomente a tradição ficta, por meio do constitutumpossessorium. Assim, enquanto o credor recebe aposse jurídica da coisa, o devedor mantém a possenatural. Esse aspecto ocorre no penhor agrícola,pecuniário, industrial e mercantil, conformeprocuramos demonstrar no exame da apropriaçãoindébita. Está excluído do dispositivo em exame openhor legal (art. 1.467 do CC), que só ocorre com atransferência de posse para o credor.

A ação tipificada é defraudar (trocar, adulterar,alterar). A fraude deve ter por objeto a substância(es s ência), qualidade (espécie) ou quantidade(número, peso ou dimensão). O sujeito ativo deve tera obrigação de entregar a coisa (obrigação legal,judicial ou contratual). Substância é a matéria ouessência que compõe alguma coisa; qualidade é oatributo ou propriedade de algo; quantidade é a

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medida de qualquer coisa.A simples falta de quantidade ou de qualidade

da coisa não constitui crime previsto no art. 171, § 2º,IV, do CP. Para que se componha o estelionato, comefeito, é imprescindível a ocorrência da fraude, abeneficiar o agente e a prejudicar o ofendido.

O estelionato, nessa modalidade, consistente dafraude na entrega de coisa, não se configura com asimples defraudação, mas com a efetiva traditio dacoisa ao destinatário. Assim, inexistindo esta,responde o agente pelo crime do art. 275 e não do art.171, § 2º, IV, ambos do CP.

Sujeito ativo é quem tem a obrigação jurídica deentregar a coisa, e com a obrigação de fazê-lo.Sujeito passivo é o destinatário da coisa, isto é,quem tem o direito de recebê-la.

Deve-se distinguir a emissão do cheque comocontraprestação da emissão relativa a dívida pré-constituída. Na primeira hipótese, estandoconfigurados o dolo e o prejuízo patrimonial, haveráo crime. Na segunda, não. A explicação é lógica esimples. Falta o dano patrimonial. O estelionato écrime contra o patrimônio, e, se a dívida já existia, aemissão da cártula, ainda que não honrada, nãoprovoca prejuízo algum ao credor36.

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12.5 Fraude para o recebimento de indenização ouvalor de seguro (V)

O bem jurídico protegido, nessa modalidade deestelionato, é o patrimônio do segurador. Asmodalidades de ação elencadas são taxativas,exigindo o tipo que o dano produzido seja idôneopara o recebimento da indenização ou valor deseguro. Como destaca Paulo José da Costa Jr., nessetipo penal há duas espécies de fraudes, executadascom o objetivo de receber a indenização do seguro:(1) destruição ou ocultação da coisa própria; (2)lesão do corpo, agravamento de lesão ou moléstiade que esteja acometido.

Destruir significa aniquilar, fazer desaparecer ouextinguir, total ou parcialmente; ocultar significaesconder ou encobrir coisa própria; lesar significaofender fisicamente, causar dano, danificar o própriocorpo ou a saúde, ou agravar as consequências delesão ou doença.

A fraude para recebimento de seguro é crimeformal, que não requer a ocorrência de dano efetivoem prejuízo do ofendido para consumar-se, algo queocorre pela simples conduta de ocultar. Assim, oemprego do meio fraudulento é necessário esuficiente para a caracterização do crime, desde quesua finalidade seja o recebimento da indenização do

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seguro (elemento subjetivo especial). Enfim,consuma-se o estelionato independentemente dorecebimento da indenização pretendida.

A locução “que deve entregar” constituielemento normativo37 integrante do tipo penal, aexemplo das locuções “que sabe” e “deve saber”,constantes das definições do crime de receptação,conforme demonstramos no exame daquela infraçãopenal.

O elemento subjetivo geral é o dolo, representadopela vontade consciente de praticar qualquer dascondutas descritas no tipo penal, com a finalidade dereceber indenização ou valor de seguro. O elementosubjetivo especial do tipo é exatamente a finalidadede receber a indenização ou o seguro; no entanto,reiterando, o fim não precisa ser atingido: basta queseja a finalidade desejada pelo agente.

Sujeito ativo é o proprietário da coisa ocultada oudestruída, ou o paciente da mutilação. Se o dano oulesão forem praticados sem o conhecimento dobeneficiário, responderá pelo crime de lesão corporaldolosa ou de dano38, normalmente em concurso como crime de estelionato simples (art. 171, caput).Sujeito passivo é o segurador, que responderá pelopagamento injusto do valor do seguro.

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Trata-se de crime próprio e de perigo. O eventualrecebimento do seguro pretendido representará osimples exaurimento do crime.

12.6 Fraude no pagamento por meio de cheque (VI)

Nossos dois Códigos anteriores — 1830 e 1890 —não conheceram essa modalidade de estelionato,cuja criação coube à Lei n. 2.591/12, então conhecidacomo Lei do Cheque. Foram cominadas as mesmassanções previstas para o crime de estelionato, para aemissão de cheques sem a correspondente provisãode fundos. Essa previsão foi recepcionada pelaConsolidação Piragibe. O Código Penal de 1940, cujaParte Especial permanece em vigor, acresceu àprevisão anterior a incriminação da conduta de“frustrar o pagamento de cheque”.

Duas são as figuras tipificadas: “emitir” e“frus trar”. Emitir tem o sentido de colocar emcirculação o cheque sem suficiente provisão defundos. Não se confunde com o simples ato depreenchê-lo ou assiná-lo.

Frustrar significa obstar o pagamento,bloqueando, retirando o saldo existente ou dandocontraordem e, dessa forma, evitar o pagamento docheque; mas somente a frustração indevida pode

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configurar crime. Para verificar-se essa segundafigura, no momento da emissão do título devemexistir fundos, caso contrário a conduta será aprimeira tipificada.

O emitente tem o direito de obstar o pagamentodo cheque, desde que fundado em motivo justo.Somente a frustração fraudulenta do pagamento decheque tipifica o crime em exame. Igualmente, afrustração de cheque pós-datado não configuracrime, pois esse tipo de cheque não é ordem depagamento, mas apenas uma garantia, substituindo ahistórica nota promissória.

A frustração do pagamento de cheque emitidocomo garantia de dívida não caracteriza fraude emsua emissão, pois o crime tipificado como estelionatoexige que a obtenção da vantagem ilícita em prejuízoalheio seja decorrente de induzimento ou mantençade alguém em erro, mediante artifício ou qualquermeio fraudulento.

Cheque é uma ordem de pagamento à vista. Trata-se de um título de crédito, cuja definição éencontrada no âmbito do direito comercial. Suavaloração é jurídica.

A suficiência de provisão de fundos (elementonormativo) consiste na existência de fundosdisponíveis em poder do sacado (banqueiro, em

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regra) que sejam suficientes para efetivar opagamento quando da apresentação do referidotítulo (art. 4º, § 1º, da Lei n. 7.357/85).

O agente que, visando a vantagem indevida,emite cheque falsificando a assinatura do titular daconta pratica crime de estelionato em sua formafundamental. Tratando-se de conta encerrada,igualmente se caracteriza o crime previsto no caputdo art. 171.

12.6.1 Cheque pós-datado e cheque especial

A característica fundamental desse título decrédito é ser uma ordem de pagamento à vista. Porisso, quando alguém recebe cheque para serapresentado em data futura, está recebendo ocheque descaracterizado em sua essência, travestidode mera promessa de pagamento. O cheque pós-datado desnatura a ordem de pagamento à vistaque esse instituto representa. Com efeito, chequeemitido em garantia de dívida, isto é, pós-datado(pré-datado, para alguns), representa uma promessade pagamento, a exemplo da nota promissória.

Eventual inexistência de fundos suficientesquando de sua apresentação não caracteriza,portanto, o estelionato definido no dispositivo em

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exame. Se não for compensado por falta de suficienteprovisão de fundos, constituirá somente um ilícitocivil39, e não chega ao status de crimes pela faltadaquela característica natural do cheque de serordem de pagamento à vista.

Aliás, a existência de avalista no cheque permitea presunção de que foi dado como garantia oupromessa, e não como ordem de pagamento.

Algo semelhante ocorre na hipótese de alguémque recebe um cheque sem fundos em substituição aoutro título de crédito, que não fora devidamenteresgatado. Não é possível alegar fraude ou má-fé doemitente, pois o credor confiou no devedor que jánão havia resgatado outro título; buscou, naverdade, outra garantia que lhe parecera mais eficaz,não havendo aí falar em crime, mas em simplesinfração civil. No entanto, se esse outro título foruma duplicata, acreditamos que o pagamento comcheque sem suficiente provisão de fundos pode,perfeitamente, caracterizar o crime de estelionato emexame, pois o credor está convencido de que estárecebendo o valor correspondente ao pagamento deseu crédito. Pode, com efeito, ser enganado, vendoser frustrada sua expectativa de receber seu crédito.Desnecessário frisar que não se configurará o crimese, também nessa hipótese, o cheque for pós-datado.

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Habitualmente as agências bancárias têm honradoo pagamento de cheques de clientes especiais,mesmo quando ultrapassam os limites contratados.A recusa, nesses casos, é eventual. Essaeventualidade não pode ser decisiva para tipificarcriminalmente a conduta do emitente. O estelionatopressupõe sempre a má-fé do agente, que, nessescasos, à evidência, não existe. Nesse sentido, aplica-se a Súmula 246 do STF, que tem o seguinteenunciado: “Comprovado não ter havido fraude, nãose configura o crime de emissão de cheque semfundos”.

12.6.2 Sujeitos ativo e passivo do crime

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa que emitaseu próprio cheque sem suficiente provisão defundos. Quando for utilizado cheque de terceiro,sem fundos suficientes, não se tipificará essainfração penal, mas a do caput, pois quem emite ocheque é outra pessoa. O endossante tampoucopode ser sujeito ativo desse crime, uma vez queendossar não se confunde com emitir. Também nãotem o endossante autoridade para frustrar opagamento de cheque emitido por outrem.

Sujeito passivo é o tomador, o beneficiário do

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cheque que, pela ausência de fundos, sofre o danopatrimonial, podendo ser, indiferentemente, pessoafísica ou jurídica.

13. Majorante especial do crime de estelionato

O estelionato não apresenta figuras qualificadas,mas prevê a majoração da pena, equivocadamenteconcebida pela doutrina como qualificadora,ignorando que, tecnicamente, majorante equalificadora não se confundem, comodemonstramos em várias passagens desta obra.

A pena aplicada deve ser majorada em um terço (§3º) se a infração for cometida em prejuízo deentidade de direito público ou de instituto deeconomia popular, assistência social oubeneficência (Súmula 24 do STJ).

O Banco do Brasil S/A, por exemplo, é umasociedade de economia mista, e, como tal, umaentidade de direito privado, ou seja, o Banco doBrasil é sociedade por ações de economia mista, quenão se confunde com “entidade de direito público”,referida no § 3º do art. 171. Em sede de direito penalmaterial, é inadmissível interpretação extensiva ouanalógica para agravar a situação do acusado,

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especialmente para incluir o que a lei não consagra.Não se pode invocar interesse indireto deste oudaquele ente ou órgão público, administrado por umaentidade de direito privado, para justificar aagravação da pena.

14. Arrependimento posterior e as Súmulas 246 e554

Sob a rubrica “arrependimento posterior”, areforma penal de 1984 (Lei n. 7.209/84) criou essaminorante, aplicável a determinados crimes,praticados sem violência ou grave ameaça à pessoa,quando houver reparação do dano ou restituiçãoda coisa antes do recebimento da denúncia ou daqueixa.

A despeito de todas as merecidas críticas querecebeu, trata-se de instituto moderno, que procurarelativizar a extraordinária importância que o direitopenal do século XX atribuiu aos crimes patrimoniais,tendo ganho interpretação liberal de doutrina ejurisprudência.

A configuração do arrependimento posterior,tecnicamente considerado, exige a presença dosseguintes requisitos:

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a ) Crime praticado sem violência ou graveameaça à pessoa — A violência contra a coisa,como ocorre no crime de furto qualificado ou dedano, não exclui a minorante.

b ) Reparação do dano causado pelo crime ourestituição da coisa — A reparação do dano deveser pessoal, completa e voluntária. A restituiçãotambém deve ser total. Se a restituição não forpessoal, completa e voluntária, constituirá somentecircunstância atenuante genérica, a ser consideradano momento da aplicação da pena.

Não é necessário que a reparação ou a restituiçãosejam espontâneas: basta que sejam voluntárias,podendo, pois, o agente ser convencido a reparar odano ou restituir a coisa. No entanto, não ocorrerá obenefício se o agente for obrigado, de qualquerforma, a indenizar ou restituir o objeto material,mesmo que por sentença judicial.

c ) A reparação ou restituição devem ocorrerantes do recebimento da denúncia ou da queixa —Ocorrendo a reparação ou a restituição após orecebimento da denúncia ou da queixa, funcionaráapenas como atenuante genérica (art. 65, III, b, infine, do CP)40.

A reparação do dano, a despeito da previsão legal

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em exame, pode corporificar outros institutos penais.No caso de peculato culposo, por exemplo, havendoa reparação do dano, se for anterior a sentençairrecorrível, extingue-se a punibilidade (art. 312, § 3º);se for posterior, reduzir-se-á a pena pela metade.

A maior benevolência da norma penal, nessahipótese de peculato culposo, tem o objetivo defacilitar e estimular o agente a repor o erário público,que a todos aproveita.

14.1 Reparação de danos e as Súmulas 246 e 554

As duas súmulas têm os seguintes enunciados:“Comprovado não ter havido fraude, não seconfigura o crime de emissão de cheque sem fundos”(245); “O foro competente para o processo ejulgamento dos crimes de estelionato, sob amodalidade da emissão dolosa de cheque semprovisão de fundos, é o do local onde se deu arecusa do pagamento pelo sacado” (554).

É desnecessário frisar que, no caso abrangidopela Súmula 554, o crime de estelionato já seconsumara, e o máximo que poderia ocorrer com opagamento antes da denúncia seria a incidência daminorante do art. 16, que prevê redução de pena. Noentanto, após a reforma penal, que criou a norma do

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art. 16 em análise, o Supremo Tribunal Federalcontinuou aplicando a Súmula 554, como no RHC62.912 (RT, 598:427). Referida súmula originou-se dadiscussão sobre a natureza do estelionato namodalidade de emissão de cheques sem suficienteprovisão de fundos, se, afinal, trata-se de crimematerial ou formal. Acabou prevalecendo oentendimento de que, como crime material, aconsumação ocorria com o efetivo prejuízo da vítimae só se verificava na agência bancária em queocorresse a recusa de pagamento, e não no local daemissão do cheque.

Constata-se que o fundamento é diferentedaquele que justificou a previsão do art. 16 antesreferido, e trata-se de construção pretoriana,sumulada, mais favorável ao agente. Por isso sempresustentamos41 que a súmula continua tendo aaplicação42 à hipótese restrita do art. 171, § 2º, VI; adisposição do art. 16 ficará para os demais casos.

15. Algumas questões especiais

O erro, artifício ou ardil devem preexistir àobtenção da vantagem ilícita. A enumeração legal do

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meio fraudulento é meramente exemplificativa,podendo ocorrer o estelionato por outrossubterfúgios. Deve existir uma relação causal entreo meio utilizado pelo sujeito ativo e o erro do lesado.

No furto praticado com fraude, o agente ilude avítima para facilitar a subtração da coisa. Paracaracterizar o estelionato, é irrelevante a má-fé davítima, isto é, a torpeza bilateral. Estelionato noexercício de comércio, sobrevindo a falência,constitui crime falimentar. Em caso de fraudeprocessual, ver o art. 347 do CP.

Há algumas fraudes especiais, disciplinadas emoutros diplomas legais, tais como: fraude em cédulasrurais hipotecárias — art. 21 do Decreto-Lei n.167/67; desvio de créditos e financiamentosgovernamentais ou incentivos fiscais — art. 3º da Lein. 7.134/83; fraude em relação aos benefícios da “LeiSarney” — art. 14, §§ 1º e 2º, da Lei n. 7.505/86. Arespeito de fraude no pagamento por meio decheque, vide as Súmulas 246, 521 e 554 do STF.

16. Pena e ação penal

As penas cominadas são a reclusão, de um acinco anos, e multa. Na hipótese do § 3º a pena será

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majorada em um terço; na figura do privilegiado,pode ter a reclusão substituída por detenção,diminuída de um a dois terços ou substituída pormulta.

A ação penal é pública incondicionada, salvonas hipóteses do art. 182, quando será condicionadaà representação. Haverá isenção de pena se forpraticado contra ascendente, descendente oucônjuge (na constância da sociedade conjugal).

17. Transcrição das principais súmulas relativas aoestelionato

Súmula 246 do STF: “Comprovado não terhavido fraude, não se configura o crime de emissãode cheque sem fundos”.

Súmula 521 do STF: “O foro competente para oprocesso e julgamento dos crimes de estelionato,sob a modalidade da emissão dolosa de cheque semprovisão de fundos, é o do local onde se deu arecusa do pagamento pelo sacado”.

Súmula 554 do STF: “O pagamento de chequeemitido sem provisão de fundos, após o recebimentoda denúncia, não obsta ao prosseguimento da açãopenal”.

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Súmula 17 do STJ: “Quando o falso se exaure noestelionato, sem mais potencialidade lesiva, é poreste absorvido”.

Súmula 24 do STJ: “Aplica-se ao crime deestelionato, em que figure como vítima entidadeautárquica a Previdência Social, a qualificadora do§3º do art. 171 do Código Penal”.

Súmula 48 do STJ: “Compete ao juízo local daobtenção da vantagem ilícita processar e julgar crimede estelionato cometido mediante falsificação decheque”.

Súmula 107 do STJ: “Compete à Justiça ComumEstadual processar e julgar crime de estelionatopraticado mediante falsificação de guias derecolhimento das contribuições previdenciárias,quando não ocorrente lesão à autarquia federal”.

1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 444.2 José Maria Rodriguez Devesa, Derecho Penal español;Parte Especial, p. 477.

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3 Vicenzo Manzini, Trattado di Diritto Penale , cit., v. 9, p.527.4 Roberto Lyra, Estelionato, in Repertório enciclopédico doDireito brasileiro, Rio de Janeiro, Borsoi, s.d., v. 21, p. 53.5 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 449; Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2.6 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 178.7 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 380.8 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 446.9 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 447: “Outros autores consideravam fraude penal a quefosse capaz de iludir o diligente pai de família (Giuliani), ouaquela que consistisse em artifícios fraudulentos, de modo aconstituir coação às faculdades intelectivas do lesado(Mittermaier). Merker e Puglia limitavam a fraude penal àshipóteses em que não fosse possível a reparação do dano, eGeib invocava o cuidado e a precaução que comumente sepõem nas transações, ensinando que a fraude penal seriasomente aquela capaz de iludir a prudência ordinária davítima”.10 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 191.11 José Frederico Marques, Estelionato, ilicitude civil e

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ilicitude penal, RT, 560:286.12 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 524.13 Guilherme de Souza Nucci estabelece com precisão essadistinção: “Artifício: é a astúcia, esperteza, manobra queimplica em engenhosidade. Ex.: o sujeito, dizendo-serepresentante de uma instituição de caridade conhecida,fazendo referência ao nome de pessoas conhecidas que, defato, dirigem a mencionada instituição, consegue coletarcontribuição da vítima, embolsando-a. (...) Ardil: é tambémartifício, esperteza, embora na forma de armadilha, cilada ouestratagema. No exemplo dado anteriormente, o agenteprepara um local com a aparência de ser uma agência devenda de veículos, recebe o cliente (vítima), oferece-lhe ocarro, recebe o dinheiro e, depois, desaparece. Trata-se deum ardil” (Guilherme de Souza Nucci, Código Penalcomentado, cit., p. 562).14 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 179.15 Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal , 3.ed., São Paulo, Saraiva, 2003.16 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal comentado, cit.,p. 561.17 Damásio de Jesus, Direito Penal, 22. ed., São Paulo,Saraiva, 1999, v. 1, p. 427.18 Nesse sentido, Paulo José da Costa Jr., Comentários ao

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Código Penal, cit., p. 524; Luiz Regis Prado, Curso deDireito Penal brasileiro, cit., v. 2, p. 501.19 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 1, p. 427.20 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 367.21 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 452.22 Magalhães Noronha, Direito penal, cit., v. 2, p. 287.23 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 390.24 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 413.25 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 501.26 Bento de Faria, Código Penal brasileiro comentado, cit.,v. 5, p. 63.27 Cezar Roberto Bitencourt, Código Penal comentado, p.697.28 Cezar Roberto Bitencourt, Código Penal comentado, cit.29 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 391.30 Sebastian Soler, Derecho Penal argentino, Buenos Aires,TEA, 1951, p. 356.31 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 225 e 226.32 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 375.33 STF, 2ª Turma, HC 80.349/SC, rel. Min. Marco Aurélio, j.

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182000, DJ, 4 maio 2001, ementário n. 2.039-3. Em sentidocontrário, admitindo o estelionato como crime permanente, oseguinte acórdão do STJ: “Tratando-se de estelionato derendas mensais, que dura no tempo, há permanência naconsumação (delito eventual), devendo o termo inicial daprescrição contar-se da cessação da permanência (art. 111,III, do CP) (5ª Turma, HC 12.914/SC, transcrito no acórdão doSTF que acabamos de citar).34 “Quando o falso é meio para alcançar o patrimônio alheio,perde sua autonomia, e integra o contexto do fim procurado.Assim, é absorvido, não mantendo autonomia. Há, apenas,uma exceção, enunciada na Súmula 17 do STJ, verbis:‘Quando o falso se exaure no estelionato, sem maispotencialidade lesiva, é por este absorvido’” (STJ, RE109.102/RS, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJU, 24 ago.1998).35 TJSP, HC, rel. Juiz Dirceu de Mello, RT, 625:280. Nomesmo sentido, o seguinte acórdão: “A venda, peloproprietário, de imóvel penhorado não tipifica o crime do art.171, § 2º, II, do CP — alienação fraudulenta de coisa própria— porque a penhora não torna a coisa inalienável, não agrava de ônus, ou seja, dos direitos reais elencados no art.674 do CC, e nem a faz litigiosa, isto é, pendente de litígiosobre a propriedade, conforme exige referido dispositivolegal” (TACrimSP, AC, rel. Des. Barbosa de Almeida, RT,640:311).

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36 STJ, RE, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ, 25 ago.1997.37 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal comentado, cit.,p. 567.38 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 534.39 STJ, 5ª Turma, RHC 8.840-BA, rel. Min. Felix Fischer, j.4999, DJ, 6 dez. 1999, p. 102.40 “Conforme reiterado entendimento jurisprudencial, ‘... oressarcimento do prejuízo antes do recebimento da denúncianão exclui o crime de estelionato cometido na suamodalidade fundamental (art. 171, caput, CP), apenasinfluindo na fixação da pena, nos termos do art. 16 do CP...’”(STJ, CComp 25.283/AC, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca,DJU, 22 nov. 1999).41 Cezar Roberto Bitencourt, Lições de Direito Penal, 2. ed.,Porto Alegre, Livr. do Advogado Ed., 1993, p. 27.42 No mesmo sentido: “O ressarcimento do prejuízo, antesdo oferecimento da denúncia, extingue a punibilidade emcrimes de estelionato na modalidade de emissão de chequessem suficiente provisão de fundos (CP, art. 171, § 2º, VI)”(STJ, HC 8.929/MG, rel. Min. Edson Vidigal, j. 5-8999).

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CAPÍTULO XIX - DUPLICATA SIMULADA

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1.Falsificação ou adulteração do livro deregistro de duplicatas. 5. Tipo subjetivo:adequação típica. 6. Consumação etentativa. 7. Classificação doutrinária. 8.Pena e ação penal.

Duplicata simulada

Art. 172. Emitir fatura, duplicata ou nota devenda que não corresponda à mercadoria vendida,em quantidade ou qualidade, ou ao serviçoprestado.

Pena — detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos,e multa.

• Caput com redação determinada pela Lei n.8.137, de 27 de dezembro de 1990.

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Parágrafo único. Nas mesmas penas incorreráaquele que falsificar ou adulterar a escrituração doLivro de Registro de Duplicatas.

• Parágrafo único com redação determinadapela Lei n. 5.474, de 18 de julho de 1968.

1. Considerações preliminares

A moldura desta figura penal, sem sombra dedúvida, é a que maior número de alteraçõesexperimentou no ordenamento jurídico brasileiro. Aduplicata simulada não foi recepcionada peloprimeiro Código Criminal brasileiro (1830). O CódigoPenal republicano, de 1890, introduziu no sistema doPaís essa figura típica, considerando-a, de formagenérica, uma espécie de estelionato (art. 338, n. 8).A antiga Lei de Falências considerou a emissãoirregular de duplicatas crime falimentar (art. 168 daLei n. 5.746/29). Posteriormente, a Lei n. 187/36ampliou o alcance desse tipo penal1 e suprimiu afalência como condição objetiva de punibilidade2.

O legislador de 1940 basicamente repetiu (art. 172)

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a redação da Lei n. 187/36, alterando apenas a sançãocominada para um a três anos de detenção. Essaredação, por sua vez, foi alterada pelo Decreto-Lei n.265, de 28 de fevereiro de 1967, que ampliou suaabrangência e alterou a sanção anterior (art. 5º)3. ALei n. 5.474/68 também alterou o conteúdo do art. 172do Código Penal4. O parágrafo único, porém, foimantido, com redação determinada pela Lei n.5.474/68.

A redação atual do art. 172 deve-se à Lei n.8.137/90, que novamente ampliou a abrangência doconteúdo daquele dispositivo, que disciplina aemissão de fatura, duplicata ou nota de venda, alémde voltar a majorar a sanção correspondente (caputcom redação determinada pela Lei n. 8.137/90, relativaa crimes contra a ordem tributária, econômica econtra as relações de consumo).

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é o patrimônio,particularmente as relações econômicas provenientesdo comércio, objetivando garantir a autenticidadedos institutos comerciais. Pretende proteger os

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interesses patrimoniais do sacado ou de quemeventualmente possa efetuar qualquer operaçãomercantil com o título fraudulento.

Trata-se, segundo Heleno Fragoso5, de crime deperigo para o patrimônio, que se apresenta por meiode uma falsidade documental; pretende-se evitarpossível dano que a emissão fraudulenta deduplicata cause, por se tratar de título circulável viaendosso.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo serão, em regra, os diretores,gerentes ou administradores de empresas,associações ou sociedades que praticarem a açãotipificada, sendo insuficiente a condição de sócio,diretor ou gerente. Sujeito ativo, na primeira figura, équem expede ou aceita duplicata fictícia ou falsa,isto é, que não corresponda a compra e vendaefetiva.

Convém destacar que, agora, não apenas aemissão de duplicata fraudulenta constitui essecrime, mas também a emissão de fatura ou nota devenda o tipificam (Lei n. 8.137/90).

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Tratando-se de pessoa jurídica, serão penalmenteresponsáveis seus diretores, administradores ougerentes, desde que tenham conhecimento da fraudee participem da decisão.

Não passará, contudo, de simples conivênciaimpunível se o sacado, previamente informado deque será expedida duplicata simulada, abstiver-se dedenunciar o sacador; na verdade, a simples ciênciada emissão irregular do título não o torna partícipe daação delituosa. O sacado que aceita o título,sabendo que é simulado, incorre no mesmo crime, nacondição de coautor (art. 29 do CP).

O endossatário e o avalista, por si sós, nãopodem ser sujeitos ativos desse tipo penal, a menosque ajam de comum acordo com o sujeito ativo.Nessa hipótese, também seriam abrangidos pelo art.29 do Código6. Na verdade, endossatário e avalistanão podem praticar a conduta de “emitir” osdocumentos referidos nesse tipo, mas tal aspectonão impede que possa ser alcançado pelo institutoconcurso eventual de pessoas, inclusive sob amodalidade da coautoria, e não apenas daparticipação stricto sensu. Essa possibilidade deconcorrerem para o crime em exame não impede quequalquer dos dois ou ambos pratiquem o crime deestelionato, se lesarem o tomador do título,

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descontando-o como legítimo, por exemplo7.Sujeito passivo é o recebedor, isto é, quem

desconta a duplicata, aquele que aceita a duplicatacomo caução, e também o sacado de boa-fé, quecorre o risco de ser protestado. Não é indispensável,registre-se, a participação na figura delituosa dapessoa contra quem a duplicata foi emitida. Havendocoautoria entre emitente e aceitante, sujeito passivoserá quem fez o desconto, e não o sacado.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A conduta incriminada consiste em emitir, quesignifica expedir ou colocar em circulação fatura,duplicata ou nota de venda que não corresponda àmercadoria vendida ou ao serviço prestado. O títulodeve ser simulado, isto é, não deve corresponder àvenda efetiva de bens ou à prestação de serviços.

Para que o crime se aperfeiçoe não é necessária aparticipação do sacado, uma vez que, após suaemissão, o emitente pode endossá-la, antes mesmodo aceite, transferindo, assim, sua propriedade.

A Lei n. 8.137/90 acrescentou à duplicata a faturaou nota de venda — elementos normativos do tipo

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—, criminalizando a emissão irregular de qualquerdesses “títulos”. Fatura ou nota de venda é odocumento no qual devem ser discriminadas asmercadorias vendidas ou os serviços prestados; emoutros termos, fatura ou nota de venda é a escritaunilateral do vendedor, que deve acompanhar asmercadorias objeto do contrato ao serem entreguesou expedidas. Fatura não é título de crédito, não écomercializável nem pode ser objeto de endosso, nãopassando, em verdade, de uma espécie de certidãode nascimento que deve acompanhar a mercadoriaou o serviço prestado. Duplicata é um título decrédito que deve ser sacado em correspondênciaestrita com fatura, com a finalidade de circularcomercialmente (art. 2º da Lei n. 5.474/68). Nota devenda, a nosso juízo, confunde-se com a fatura, poistem a mesma finalidade daquela, como já destacamosacima.

Com ou sem assinatura, verdadeira ou falsa, doaceitante, a emissão de duplicata a que nãocorresponde negócio enquadra-se no art. 172 doCódigo. A falsificação do aceite aposto emduplicata simulada não configura crime autônomo,pois está ínsita na figura típica do art. 172 do CP.

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4.1 Falsificação ou adulteração do livro de registrode duplicatas

Pratica o mesmo crime quem falsifica ou adulteraa escrituração do livro de registro de duplicatas(parágrafo único do art. 172). Falsificar, no casoespecífico, significa efetuar o lançamento de umtítulo fictício, isto é, que não tenha correspondênciana contraprestação que retrata; adulterar, por suavez, refere-se à alteração de um lançamento anteriorrelativo a um título válido ou verdadeiro.

Concorrendo com a emissão de duplicatasimulada, ficará absorvida a falsidade ou adulteraçãodo livro referido. Limita-se sua punição quando épraticada a falsidade ou adulteração, mas a duplicatanão chega a ser emitida.

No livro de registro de duplicatas o comerciantedeve obrigatoriamente escriturar, em ordemcronológica, todas as duplicatas emitidas, com todosos dados necessários para identificá-las. Porexpressa disposição legal, esse livro não pode conteremendas, rasuras, borrões ou entrelinhas (art. 19, §§2º e 3º, da Lei n. 5.474/68), exatamente para evitar afraude. Como, no entanto, pode ser substituído porqualquer sistema mecanizado, acaba facilitandoexatamente aquilo que pretendia inviabilizar, qualseja, a banalização da fraude.

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Subscrevemos integralmente a crítica autorizadade Luiz Regis Prado, quando afirma: “Não agiu compropriedade o legislador ao inserir a referida figurano artigo 172, já que aplica a ela toda a principiologiado delito de falsum, e a hipótese em questão é defalsidade de documento particular, equiparado adocumento público (art. 297, § 2º). Ademais, areferida conduta gravita em torno da expedição deduplicata, sendo absorvida pelo delito definido nocaput do crime em exame, por se tratar de antefato oupós-fato impunível”8.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo é o dolo constituído devontade conscientemente dirigida à emissão deduplicata simulada, fatura ou nota de venda que nãocorresponda à mercadoria vendida ou ao serviçoprestado. Em outros termos, o dolo consiste naemissão do título (fatura, duplicata ou nota devenda), com pleno conhecimento de que nãoencontra correspondência fática, isto é, sem acontrapartida da efetiva venda de mercadoria e daprestação de serviço correspondente. A consciênciadeve abranger, necessariamente, todos os elementos

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constitutivos do tipo penal.Não há previsão de modalidade culposa.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime de emissão de duplicatasimulada no momento em que o título é colocado emcirculação, independentemente de eventual prejuízodo sacado ou de terceiro; como crime formal,consuma-se com a simples emissão do título,independentemente de eventual prejuízo a terceiro.

A doutrina, de modo geral, tem negado apossibilidade da configuração da forma tentada docrime de emissão de duplicata simulada, porque setrata de crime formal e unissubsistente, nãoadmitindo fracionamento9. Contudo, quer-nosparecer, é muito arriscada uma afirmação negativa,quando a casuística oferece determinadas situaçõesque podem configurar perfeitamente a tentativa.Diante dessas circunstâncias, não afastamos, apriori, a possibilidade da ocorrência da tentativa, jáque se trata de crime fracionável, cujo iter criminispode, eventualmente, ser interrompido, porcircunstâncias alheias à vontade do agente.

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7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum, na medida em que nãoexige qualquer condição especial do sujeito ativo;formal, uma vez que, em tese, não exige resultadonaturalístico; comissivo (que só pode ser praticadomediante ação); doloso (não há previsão legal para afigura culposa); de forma livre (pode ser praticadopor qualquer meio, forma ou modo); instantâneo (oresultado opera-se de forma imediata, sem prolongar-se no tempo); unissubjetivo (pode ser praticado, emregra, apenas por um agente); plurissubsistente(eventualmente pode ser desdobrado em vários atos,que, no entanto, integram a mesma conduta).

8. Pena e ação penal

As penas cominadas, cumulativamente, sãoreclusão, de dois a quatro anos, e multa. As mesmaspenas são aplicadas para a figura tipificada noparágrafo único, relativas à falsificação do livro deregistro de duplicatas. A ação penal é públicaincondicionada, salvo nas hipóteses do art. 182,quando ficará condicionada à representação.

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1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 475 e 476.2 “Art. 32. Incorrerá na pena de prisão celular por um aquatro anos, além da multa de 10% sobre o respectivomontante, o que expedir duplicata que não corresponda auma venda efetiva de mercadorias entregues, real ousimbolicamente, e acompanhadas da respectiva fatura.”3 “Art. 5º A emissão ou o aceite de duplicatas que nãocorrespondam à venda efetiva de mercadorias, entreguesreal ou simbolicamente, ou a serviço realmente prestado,acompanhadas das respectivas faturas, sujeitarão ossignatários do título à pena de reclusão de um a cinco anos,além da multa equivalente ao respectivo valor, imposta atodos os coobrigados.”4 “Art. 172. Expedir ou aceitar duplicata que nãocorresponda, juntamente com a fatura respectiva, a umavenda efetiva de bens, ou a uma real prestação de serviço.Pena — detenção de 1 (um) a 5 (cinco) anos e multaequivalente a 20% sobre o valor da duplicata. Parágrafoúnico. Nas mesmas penas incorrerá aquele que falsificar ouadulterar a escrituração do Livro de Registro de Duplicatas.”5 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,

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p. 476.6 No mesmo sentido é o entendimento de MagalhãesNoronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 450.7 Nesse sentido, Heleno Cláudio Fragoso, Lições de DireitoPenal, cit., v. 1, p. 477.8 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 539.9 Em sentido contrário, ver Luiz Regis Prado, Curso deDireito Penal brasileiro, cit., v. 2, p. 538; Heleno CláudioFragos o, Lições de Direito Penal, cit., v. 1, p. 479;Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 451; NélsonHungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7, p. 265.

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CAPÍTULO XX - ABUSO DE INCAPAZES

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1.Necessidade, paixão ou inexperiência domenor. 4.2. Ato suscetível de produzirefeito jurídico. 4.3. Natureza do proveitoou vantagem. 5. Tipo subjetivo:adequação típica. 6. Consumação etentativa. 7. Classificação doutrinária. 8.Pena e ação penal.

Abuso de incapazes

Art. 173. Abusar, em proveito próprio ou alheio,de necessidade, paixão ou inexperiência de menor,ou da alienação ou debilidade mental de outrem,induzindo qualquer deles à prática de atosuscetível de produzir efeito jurídico, em prejuízopróprio ou de terceiro:

Pena — reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, emulta.

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1. Considerações preliminares

O direito antigo não criminalizava o abuso deincapazes como figura autônoma, preferindo integrá-lo em um conceito mais abrangente de estelionato eusura. O abuso de incapazes foi introduzido nalegislação pelo Código Penal francês de 1810(napoleônico), que disciplinava o abuso das paixões,necessidades ou fraquezas do menor, acabando porinfluenciar outras legislações europeias, querecepcionaram o abuso de incapazes incluindo-oentre os crimes contra o patrimônio.

O Código Penal de 1890 acolheu a novel figuranos seguintes termos: “Abusar, em próprio ou alheioproveito, das paixões ou inexperiência de menor,interdito ou incapaz, e fazê-lo subscrever ato queimporte efeito jurídico em dano dele ou de outrem,não obstante a nulidade do ato emanada daincapacidade pessoal”.

O natimorto Código Penal de 1969 retornava àfórmula da legislação antiga: “Abusar, em proveitopróprio ou alheio, da necessidade, paixão ouinexperiência de menor, ou da doença ou deficiênciamental de outrem, induzindo qualquer deles à práticade ato que produza efeito jurídico, em prejuízopróprio ou de terceiros”.

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O legislador brasileiro de 1940, ao tipificar oabuso de incapazes, inspirou-se no Código PenalRocco, de 1930.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é o patrimônio,especialmente aquele atribuído aos menores ouincapazes, com a finalidade de impedir todo equalquer abuso ou aproveitamento por parte dequem quer que seja, com ou sem escrúpulos. Odispositivo em exame procura garantir ainviolabilidade patrimonial, punindo quem,aproveitando-se da menoridade, alienação oudebilidade mental de alguém, leve-o a praticarcondutas com efeitos jurídicos em benefício do autorou de terceiro.

Considerando que se trata de crime contra opatrimônio, é indispensável que o ato praticado sejaidôneo para produzir efeitos patrimoniais. Contudo,por se tratar de crime formal, o dano precisa seconcretizar.

O estado das pessoas protegidas, no caso,menores e incapazes, as torna mais vulneráveis eexpostas a fraudes e burlas. Por essa razão, o Estado

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aumenta a vigilância e proteção ao patrimônio dessaspessoas. Assim, condutas que, em relação aosmaiores e capazes, poderiam, no máximo, caracterizarum ilícito civil, são elevadas à condição de crimesquando praticadas contra incapazes e menores.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,independentemente de ostentar alguma condição ouqualidade especial, ou seja, sujeito ativo é quemabusa de menor ou alienado ou débil mental,induzindo-o à prática de algum ato capaz de produzirefeito jurídico em prejuízo próprio ou de terceiro.

Sujeito passivo somente pode ser menor, alienadoou débil mental, ou, nos próprios termos do CódigoPenal, é o incapaz que, ostentando essa condição,for induzido a praticar ato suscetível de produzirefeito jurídico, em prejuízo próprio ou de outrem. Aenumeração do artigo é numerus clausus: menor,alienado ou débil mental. Considera-se menor, paraos efeitos aqui tratados, aquele com idade inferior adezoito anos, independente da menoridade civil. Pelonosso Código Penal, quem completa dezoito anos setorna penalmente responsável (art. 27)1. “O alienado

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de que fala a lei é o louco, ou seja, a pessoa privadade razão em virtude de perturbação psíquica. Débeismentais são, em geral, aqueles indivíduos portadoresde retardamento mental ou de parada nodesenvolvimento das funções psíquicas. Nestacategoria incluem-se os idiotas, os imbecis e osdébeis mentais propriamente ditos. É a esse conceitode anormais que a lei se refere”2.

4. Tipo objetivo: adequação típica

São elementos constitutivos do crime de abusode incapazes: a) menoridade ou alienação oudebilidade mental do sujeito passivo; b) abuso danecessidade, paixão ou inexperiência do menor ouda alienação ou debilidade mental de outrem; c)induzimento à prática de ato suscetível de efeitojurídico em detrimento da vítima ou de outrem; d)elemento subjetivo geral e especial do tipo.

A ação tipificada é abusar, isto é, prevalecer-seda inexperiência, paixão ou necessidade do menor oude sua condição de alienado ou débil mental parainduzi-lo, pela persuasão ou pela fraude, à prática deato suscetível de produzir efeitos jurídicos. Édesnecessária a fraude ou a indução a erro, sendo

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suficiente que o agente abuse da imaturidade ou dadebilidade da vítima.

A ação deve ser em proveito próprio ou alheio eem prejuízo do sujeito passivo ou de terceiro.

4.1 Necessidade, paixão ou inexperiência do menor

Necessidade, paixão e inexperiência do menor sãotratadas como sinônimos ou, pelo menos, comoexpressões que produzem no menor o mesmoresultado, ou seja, tornam-no mais vulnerável edesprotegido, carente de amparo e de proteção legal.E é exatamente dessas circunstâncias que o agentedeve abusar, quando se tratar de menor,fundamentando o desvalor da conduta criminalizada.Essas elementares, no entanto, são exigidas somenteem relação ao menor, e não quanto ao alienado oudébil mental.

Necessidade não quer dizer apenas aquilo que éindispensável, que é essencial, mas se refere aoestado de menor, a sua vulnerabilidade diante decarências típicas dessa situação frágil, merecedora demaior amparo do Estado; paixão e a emoção emestado crônico, que pode perdurar como sentimentomais profundo e monopolizante. Mas o sentido depaixão, neste dispositivo, significa a fragilidade do

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menor envolvido com um sentimento que lhe diminuias resistências, afasta as desconfianças, aumenta aconfiança no sujeito ativo, e é exatamente esseestado que torna mais desvaliosa a condutaincriminada; inexperiência, no caso, não se limita àtradicional definição de falta de prática ou dehabilidade em determinada função ou atividade: deveser examinada no sentido da imaturidade, daausência de conhecimentos gerais que permitamaquilatar adequadamente todas as circunstânciasque autorizem uma tomada de decisão no mundosocioeconômico ou, melhor dito, em toda e qualqueração, transação, atividade. O ordenamento jurídicopreocupa-se com as pessoas que não dispõem deconhecimento, maturidade e discernimento paraautodeterminar-se na vida social, limitando suasresponsabilidades e a validade de seus atos.

4.2 Ato suscetível de produzir efeito jurídico

O ato juridicamente nulo, em razão da absolutaincapacidade da vítima, pode ser objeto desse crime?Sustenta-se que se fosse admissível argumentar queo crime não se consuma em razão da incapacidadeabsoluta da vítima, não teria sentido a criminalizaçãocontida no dispositivo em exame3.

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No entanto, quando o ato praticado pela vítima éabsolutamente nulo e sem qualquer efeito jurídico,por causa diversa da incapacidade da vítima, não hácrime, pois esse tipo de ato não pode acarretarefeitos jurídicos, o que é uma elementar requeridapelo tipo legal.

4.3 Natureza do proveito ou vantagem

Questão interessante, convém destacar, é adefinição da natureza do proveito que o agente ativodeve pretender com a conduta praticada. Terá,necessariamente, natureza patrimonial,considerando-se que o tipo penal se encontra notítulo dos crimes contra o patrimônio?

Não nos parece que assim seja, pois, mesmo queproveito seja, por exemplo, de ordem puramentemoral, não afastará por si só a natureza patrimonialda infração penal. Nesse particular, é muito feliz ahipótese lembrada por Magalhães Noronha: “Secerto homem, inimigo de uma família, abusa daspaixões de menor, a ela pertencente, induzindo-o apraticar ato que lhe pode acarretar a ruína, sem quecom isso obtenha lucro, não deixa de praticar o crimeem análise. O delito é patrimonial, porque opatrimônio é que foi a objetividade jurídica

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atingida”4. Tem toda a razão Magalhães Noronha.Na verdade, para que o crime se consume éabsolutamente irrelevante que o sujeito ativoobtenha o proveito pretendido; embora de modogeral os crimes patrimoniais sejam materiais, o abusode incapazes é crime formal, e a obtenção deproveito, como elemento subjetivo especial doinjusto, não precisa verificar-se — basta que tenhaorientado a conduta do agente. Ora, se o proveitonão precisa verificar-se para o crime aperfeiçoar-se,não teria maior sentido exigir que aquele tivesse estaou aquela natureza. Nessa linha, adotamos aorientação que sustenta a desnecessidade de oproveito ser de natureza econômica ou patrimonial5.

Assim, devem-se distinguir com precisão duascoisas básicas: proveito e prejuízo. Não é necessárioque ambos tenham a mesma natureza, podendo umter cunho moral e outro econômico, sem qualquerrelevância típica. O “proveito” deve ser próprio oualheio; o prejuízo, igualmente, deve ser “próprio oude terceiro”. Mas acaba por aí a semelhança deproveito e prejuízo. A rigor, o que não pode deixar deter natureza econômica é o prejuízo da vítima ou deterceiro, e é exatamente em razão do prejuízo que sequalifica o crime patrimonial, e não segundo avantagem ou proveito obtido ou pretendido pelo

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sujeito ativo.Por fim, com a vedação legal de obter proveito,

nos termos em que o prescreve, é evidente que a leiestá se referindo a proveito injusto, isto é, semcausa, sem fundamento legal, indevido. O crime deabuso de incapazes integra o Capítulo do Estelionatoe Outras Fraudes. Embora de estelionato não se trate,não se pode negar que leva implícita em suadefinição forte carga de engodo, de ardil, abrangidapelo verbo “abusar”6. Ademais, seria umcontrassenso falar em fraude por parte de alguémque procura obter proveito justo.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é composto pelo dolo e peloelemento subjetivo especial do tipo constituído pelofim específico de obter indevido proveito para si oupara outrem. O dolo é representado pela vontadeconsciente de persuadir o menor ou incapaz apraticar ato que lhe seja prejudicial e idôneo aproduzir efeitos jurídicos. É indispensável que oagente tenha conhecimento da incapacidade davítima, seja em razão da menoridade, seja em razão daalienação ou debilidade mental. Nesse sentido,

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mantém-se atual o magistério de MagalhãesNoronha, que sustentava: “... age dolosamente odelinquente que, conhecendo as peculiarescondições da vítima, dela abusa, induzindo-a apraticar um ato ruinoso para ela ou para outrem. Oagente tem, pois, ciência do resultado e vontade dealcançá-lo, pondo, por isso, em ação os meios aptose hábeis”7.

Havendo dúvida sobre esse estado da vítima, oagente deve abster-se de agir, sob pena deresponder pelo crime por dolo eventual. Com efeito,a dúvida do sujeito ativo não afasta o dolo, pois,como sustentava Magalhães Noronha, “quemduvida não ignora e, se pratica o ato, arrisca-se. Nostermos da lei, arriscar é querer”8. Contudo, odesconhecimento do estado da vítima —menoridade, alienação ou debilidade mental — afastaa tipicidade da conduta, configurando erro de tipo.

Mas esse tipo penal não se satisfaz somente como dolo: exige algo mais, um plus, o elementosubjetivo especial do injusto, qual seja, o especialfim de agir, que, in casu, é representado pela locução“em proveito próprio ou alheio”. Na verdade, opreceito primário criminaliza a conduta de “abusar...em proveito próprio ou alheio”, ou seja, abusar com a

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finalidade de obter vantagem, para si ou para outrem.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime de abuso de incapazes nomomento e no lugar em que o incapaz pratica o ato aque foi induzido pelo sujeito ativo, desde quesuscetível de produzir efeitos jurídicos,independente da obtenção do proveito visado.

A tentativa é, teoricamente, admissível. Trata-sede uma das espécies de crime formal9 que, pelomenos em tese, pode ser fracionada sua faseexecutória, como reconhece Heleno CláudioFragoso10.

7. Classificação doutrinária

Este é um crime comum, não exigindo qualquercondição especial do sujeito ativo; formal, uma vezque, em tese, não exige resultado naturalístico;comissivo (que só pode ser praticado por meio deação); doloso (não há previsão legal para a figuraculposa); de forma livre (pode ser praticado por

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qualquer meio, forma ou modo); instantâneo (oresultado opera-se de forma imediata, sem prolongar-se no tempo; unissubjetivo (pode ser praticado, emregra, apenas por um agente); plurissubsistente(eventualmente pode ser desdobrado em vários atos,que, no entanto, integram a mesma conduta).

8. Pena e ação penal

As penas cominadas, cumulativas, são reclusão,de dois a seis anos, e multa. A ação penal é públicaincondicionada, salvo nas hipóteses do art. 182,quando será condicionada à representação.

1 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 266.2 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 434.3 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 459.4 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 461.

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5 Em sentido contrário, Heleno Cláudio Fragoso, Lições deDireito Penal, cit., v. 1, p. 486.6 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 265: “O crime de abuso de incapazes tem afinidade com oestelionato, mas dele difere em mais de um ponto. Emprimeiro lugar, trata-se de crime formal. Sua consumaçãonão está condicionada à efetividade do dano, bastando acriação do perigo de dano. Outro ponto de divergência estáem que não exige, necessariamente, o emprego de meiofraudulento para induzimento em erro, contentando-se coma persuasão pura e simples (persuasão que já é fraude, poisalcançada com abuso da condição de indefensabilidadepsíquica do sujeito passivo)”.7 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 460.8 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 460.9 “O delito de abuso de incapaz consuma-se com o só ato davítima, débil mental, de outorgar procuração para a venda deseus bens, embora a mesma não se tenha verificado. Trata-se de crime formal, de conduta e resultado, em que o tiponão exige sua produção. Basta que o ato seja apto a produzirefeitos jurídicos. E é evidente que a procuração porinstrumento público é idônea para esse fim” (STF, HC, rel.Min. Carlos Madeira, RT, 613:405).10 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 485.

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CAPÍTULO XXI - INDUZIMENTO AESPECULAÇÃO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Pena e açãopenal.

Induzimento à especulaçãoArt. 174. Abusar, em proveito próprio ou alheio,

da inexperiência ou da simplicidade ouinferioridade mental de outrem, induzindo-o àprática de jogo ou aposta, ou à especulação comtítulos ou mercadorias, sabendo ou devendo saberque a operação é ruinosa:

Pena — reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, emulta.

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1. Considerações preliminares

A maioria dos diplomas legais não trata destecrime de forma autônoma. Quando o fazem, integram-no ao crime de estelionato. Segundo HelenoFragoso, o presente dispositivo inspirou-se no art.158 do Código Penal suíço, e refere-seespecificamente ao chamado “jogo de bolsa”1. Masfoi Hungria que, com a argúcia de sempre,contextualizou bem o objetivo do crime em exame aoafirmar: “Trata-se, também aqui, de autêntico jogo,pois as partes contam somente, para o próprio lucro,com a eventual alta ou baixa dos preços, nopredeterminado momento da liquidação”2.

O Código Civil brasileiro estabelece: “Asdisposições dos arts. 814 e 815 não se aplicam aoscontratos sobre títulos de bolsa, mercadorias ouvalores, em que se estipulem a liquidaçãoexclusivamente pela diferença entre o preço ajustadoe a cotação que eles tiverem no vencimento doajuste”. Observando os dois textos legais — civil epenal —, Nélson Hungria, com muita propriedade,sentenciou: “Pode-se dizer, então, que o art. 174, oracomentado, cuida do induzimento do inexperiente,simplório ou pobre de espírito (ainda que não atinja ograu de debilidade mental) a qualquer forma de jogo

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(ilícito ou lícito)”3.O vacante Código Penal de 1969 chegou a

disciplinar essa infração nos seguintes termos:“Abusar, em proveito próprio ou alheio, dainexperiência ou da simplicidade ou inferioridademental de outrem, induzindo-o à prática de jogo ouaposta, ou especulação em títulos ou mercadorias,que lhe resulte danosa”. Mas esse diploma legal, quetransformava um crime de perigo em crime de dano,nunca chegou a entrar em vigor.

2. Bem jurídico tutelado

Como todas as infrações penais constantes dopresente Título, o patrimônio considerado lato sensué o bem jurídico protegido; contudo, cada figurapenal destaca determinada particularidade dasegurança patrimonial que merece maior atenção dolegislador. No presente caso, objetiva-se tutelar opatrimônio pertencente às pessoas simples,ignorantes ou inexperientes contra a burla, a fraudeou ardil simbolizados por apostas ou jogos e atémesmo pela especulação com títulos ou mercadorias.

Desnecessário enfatizar que as pessoas com as

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condições destacadas no tipo (simples, ignorantes einexperientes) não apresentam as mínimas condiçõesde obter êxito nesse tipo de atividade, em que estejaausente a má-fé do sujeito ativo.

Como se trata de crime de perigo (normalmenteos crimes contra o patrimônio são de dano), nestafigura o legislador penal procurou evitar a exposiçãoa perigo do patrimônio da vítima simples,inexperiente ou ignorante.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa capaz,sem qualquer condição especial, desde que abuse dainexperiência, simplicidade ou inferioridade mental davítima, induzindo-a a praticar qualquer das condutasdescritas no tipo penal em exame. Em outros termos,sujeito ativo é quem induz a vítima a jogo, aposta ouespeculação bolsista, podendo, inclusive, ser pessoadiversa daquela que contrata ou compete com avítima4.

Sujeito passivo é qualquer pessoa, maior oumenor, inexperiente, simples ou mentalmenteinferior. Neste caso, ao contrário do dispositivo

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anterior, não se refere a debilidade mental, massomente a inferioridade mental, sendo desnecessário,por conseguinte, que a vítima seja um anormal. Naprática, em nossa longa experiência profissional,nunca nos deparamos com um caso concreto em quea vítima apresentasse, comprovadamente essecaráter de inferioridade mental. Aliás, concretamenteessa terminologia fica sujeita a longas discussõessobre o que pode ser considerado inferioridademental, que acabará, inevitavelmente, com adefinição autoritária de um laudo psiquiátrico. Noentanto, essa raridade não significa que não possaocorrer, mas o mais comum é que tal exploraçãoocorra com menores, mulheres incultas e homensrústicos, enfim, pessoas simples, desacostumadas àshabilidades e malícias que tais atividades exigem paraque qualquer indivíduo possa ter alguma chance desucesso.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A ação tipificada é representada pelo verbonuclear “abusar”, que tem o sentido de prevalecer-se, aproveitar-se da inexperiência, simplicidade ouinferioridade mental de alguém, para induzi-lo à

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prática de jogo, aposta ou à especulação com títulosou mercadorias. Nesta última hipótese, deve tratar-sed e operação ruinosa, tendo o agente, ou devendoter, consciência dessa circunstância.

Jogo e aposta são espécies de um mesmo gênero:naquele, o ganho que se busca provém dedeterminada ação praticada pelo jogador; nesta, oevento independe, como regra, da participação dosapostadores, cujo resultado se vinculaexclusivamente ao fator sorte. É irrelevante que setrate de jogo lícito ou ilícito, considerando-se que afinalidade da norma é proteger o patrimônio depessoas incautas (inexperientes, ignorantes ouinferiores mentalmente). A elementar que deveprevalecer é exatamente essa inferioridade, que astorna hipossuficientes e justifica a proteção penal.

A ação deve ser em proveito próprio ou alheio.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo, comoelemento geral, e pelo elemento subjetivo especial doinjusto. O dolo é representado pela vontadeconsciente de induzir a vítima à prática do jogo,aposta ou especulação, aproveitando-se de sua

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inexperiência, simplicidade ou inferioridade mental. Éabsolutamente indispensável que o sujeito ativotenha conhecimento de que se trata de pessoa queapresenta uma das condições exigidas pelo tipopenal, ou seja, pessoa inexperiente, simples oumentalmente inferior. Evidentemente que eventualdúvida sobre a existência de qualquer dessascondições não beneficia o infrator, caracterizando odolo eventual5. Na verdade, havendo dúvida sobre aexistência das elementares, o agente deve abster-sede agir, pois, arriscando-se, assume o risco deinfringir a lei e deve responder por isso.

Em relação à especulação, o legislador brasileirovolta a utilizar, inadequadamente, a locução“sabendo ou devendo saber” que a operação éruinosa. Sobre o verdadeiro significado dessalocução, discorremos longamente, examinandooutros tipos penais, por exemplo, perigo de contágiovenéreo (art. 130), no segundo volume desta obra,para onde remetemos o leitor, a fim de não sermosrepetitivos6.

Em várias passagens do volume anteriorexternamos nosso repúdio ao recurso a expressõescomo “sabe ou deve saber” ou “sabendo oudevendo saber”, uma vez que no atual estágio do

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direito penal não podem mais identificar a espécie ounatureza do elemento subjetivo do tipo. Com efeito,“para a configuração do dolo exige-se a consciênciadaquilo que se pretende praticar. Essa consciência,no entanto, deve ser atual, isto é, deve estar presenteno momento da ação, quando ela está sendorealizada. É insuficiente, segundo Welzel, a potencialconsciência das circunstâncias objetivas do tipo,uma vez que prescindir da consciência atualequivale a destruir a linha divisória entre dolo eculpa, convertendo aquele em mera ficção”7.

Não admitimos, como já destacamos, que“devendo saber” possa traduzir-se em culpa oupresunção de dolo, como chegou a ser sustentadopor alguns eminentes doutrinadores pátrios8 dopassado. Não vemos nenhuma possibilidade depunir a modalidade do crime culposo, em razão des u a excepcionalidade. Por isso mesmo, seriaparadoxal admitir sua equiparação com o dolo.Concordamos com o entendimento de Regis Prado,segundo o qual “o correto é, portanto, que olegislador quis frisar que, ainda quando o agente nãotenha certeza do insucesso da especulação, conhecefatos que o autorizam a prognosticar o fracassodaquele empreendimento”9.

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O elemento subjetivo especial do injusto, por suavez, é constituído pelo fim especial de obter proveitopróprio ou alheio. Trata-se de crime de intenção,caracterizado pela locução “em proveito próprio oualheio”. Desnecessário destacar que o proveito,como elemento subjetivo especial do tipo, nãoprecisa concretizar-se, sendo suficiente que tenhasido o móvel da ação do agente.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se com a prática, pelo induzido, de jogo,aposta ou especulação na bolsa, independentementeda superveniência de eventual obtenção do proveitovisado. Não se pode perder de vista que se trata decrime contra o patrimônio sui generis, na medida emque se consuma independentemente de lesãopatrimonial, configurando, por conseguinte, crime deperigo. Alguns autores sustentam, inclusive, que ocrime estará consumado mesmo que a vítima obtenhalucro na operação que realizar, porque se trata decrime formal10. Parece-nos questionável esseentendimento majoritário, que, no mínimo, obscureceo elemento subjetivo do tipo. Pelo Código Penal de1969 esse crime passaria a ser material, exigindo o

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resultado de dano patrimonial para caracterizar aconsumação.

A tentativa é admissível, já que o processoexecutório pode ser fracionado. Somente o casuísmopermitirá a avaliação, in concreto, da possibilidadeou não da figura tentada.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum, não exigindo qualquercondição especial do sujeito ativo; formal, uma vezque, em tese, não exige resultado naturalístico;comissivo (que só pode ser praticado por meio deação); doloso (não há previsão legal para a figuraculposa); de forma livre (pode ser praticado porqualquer meio, forma ou modo); instantâneo (oresultado opera-se de forma imediata, sem prolongar-se no tempo); unissubjetivo (pode ser praticado, emregra, apenas por um agente); plurissubsistente(eventualmente pode ser desdobrado em váriosatos).

8. Pena e ação penal

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As penas cominadas, cumulativamente, sãoreclusão de um a três anos, e multa. A ação penal épública incondicionada, salvo nas hipóteses doart.182, quando será condicionada à representação.Heleno Fragoso já criticava, a seu tempo, a excessivagravidade da sanção cominada: “Tendo-se em vista aconfiguração técnica do delito (crime formal e deperigo), a pena é evidentemente excessiva”11.

1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 487.2 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 270.3 Idem, ibidem.4 Nesse sentido, veja-se o magistério de Nélson Hungria,Comentários ao Código Penal, cit., v. 7, p. 270:“Frequentemente, aliás, o agente não passa de umintermediário ou agenciador de outrem, limitando-se aauferir uma comissão percentual, e pode mesmo acontecerque aquele que monta o jogo, aceita a aposta ou contratacom o sujeito passivo jamais se tenha avistado com este e

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ignore, portanto, a sua condição pessoal”.5 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 489.6 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, v. 2,p. 206-14.7 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, cit., v.2, p. 209.8 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 465 e 466;Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7, p.271.9 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 551.10 Por todos, Heleno Cláudio Fragoso, Lições de DireitoPenal, cit., v. 1, p. 490.11 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 491.

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CAPÍTULO XXII - FRAUDE NO COMÉRCIO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Fraudeno comércio de metais ou pedraspreciosas (§ 1º). 5. Tipo subjetivo:adequação típica. 6. Consumação etentativa. 7. Pena e ação penal.

Fraude no comércioArt. 175. Enganar, no exercício de atividade

comercial, o adquirente ou consumidor:I — vendendo, como verdadeira ou perfeita,

mercadoria falsificada ou deteriorada;II — entregando uma mercadoria por outra:Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois)

anos, ou multa.§ 1º Alterar em obra que lhe é encomendada a

qualidade ou o peso de metal ou substituir, nomesmo caso, pedra verdadeira por falsa ou poroutra de menor valor; vender pedra falsa porverdadeira; vender, como precioso, metal de outra

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qualidade:Pena — reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e

multa.§ 2º É aplicável o disposto no art. 155, § 2º.

1. Considerações preliminares

Os autores invariavelmente têm afirmado que estainfração penal foi desconhecida como crimeautônomo no antigo direito penal, que preferia incluí-lo em um conceito mais abrangente de falsidade. OCódigo Penal francês de 1810 mais uma vez surgecomo a fonte moderna, pois previa “a fraude nocomércio de pedras e metais preciosos, ao lado dafraude sobre a natureza ou quantidade de quaisquermercadorias, além do uso de pesos ou medidasfalsos”1.

Os Códigos Penais italianos, a partir do séculoXIX, sempre trataram da fraude no comércio. AsOrdenações Filipinas também dispuseram sobre afraude no comércio de determinados segmentos,adotando uma individualização bem casuística.Embora o Código Criminal do Império, de 1830, nãotenha enfrentado diretamente o exame da matéria,

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integrou no estelionato “a troca das coisas que sedevem entregar por outras diversas”2. O CódigoPenal de 1890 igualmente disciplinava a fraudecomercial como integrante de estelionato (art. 338).Finalmente, o legislador de 1940 criou um tipo maisabrangente e menos casuístico, que passa a serobjeto de exame.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido, como todas as demaisinfrações deste Título do Código Penal, é opatrimônio, especialmente contra a fraude praticadana atividade comercial. Subsidiariamente, protege-setambém a moralidade das relações comerciais,buscando preservar a honestidade e a boa-fé quedevem orientar toda a atividade comercial, que é vitalpara a satisfação de grande parte das necessidadesmateriais da coletividade.

3. Sujeitos ativo e passivo

Esse é um tipo penal que já apresenta dificuldade

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na identificação de quem pode realmente ser sujeitoativo do crime. Com efeito, além de o nomen juris ser“fraude no comércio”, o conteúdo típico exige que oengano se opere no “exercício de atividadecomercial”. Há histórica divergência na doutrina,admitindo-se qualquer pessoa, sem condiçãoespecial3. Por essas razões sucintas, sujeito ativo sópode ser comerciante ou comerciário, diante daelementar do tipo, “no exercício da atividadecomercial”, mesmo que a atividade seja faticamenteexercida, pois, nesse caso, o crime será tipificado noart. 171, § 2º, IV, do CP.

Sujeito passivo, por sua vez, pode ser qualquerpessoa, desde que determinada e seja adquirente ouconsumidor. Sujeito passivo, enfim, é quem adquire acoisa ou mercadoria com um dos vícios mencionadosno tipo penal. Nada impede que o sujeito passivoseja comerciante, embora não seja necessária essaqualidade, pois, como já afirmamos, pode serqualquer pessoa (sendo qualquer pessoa, não estáafastado o próprio comerciante).

4. Tipo objetivo: adequação típica

Enganar, isto é, iludir adquirente ou consumidor,

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no exercício de atividade comercial, de duas formas:a) vendendo (não permutando, dando em pagamento,doando etc.), (I) como verdadeira ou perfeita,mercadoria falsificada ou deteriorada; b) entregandouma mercadoria por outra. O engano pode referir-se àsubstância, qualidade, quantidade ou procedência(II).

Na primeira figura, a ação incriminada consiste emenganar, vendendo mercadoria falsificada oudeteriorada como verdadeira ou perfeita. Deve tratar-se, portanto, de venda e não de permuta, dação ouentrega da mercadoria a qualquer outro título. Oobjeto material da ação é mercadoria, que pode sercoisa móvel ou semovente (art. 191 do CódigoComercial). Falsificada é a mercadoria adulterada aque o sujeito ativo dá a aparência de legítima ougenuína. Deteriorada é a mercadoria estragada, totalou parcialmente. A fraude requerida pelo tipo penalem exame consiste exatamente em apresentá-la comoperfeita ou verdadeira.

Na segunda modalidade, a conduta incriminadaconsiste em enganar o consumidor ou adquirenteentregando uma mercadoria por outra, ou seja, osujeito passivo adquire uma mercadoria e recebeoutra diversa daquela que havia comprado. Nessahipótese, há presunção da existência de uma relação

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obrigacional, na qual a mercadoria foi determinada eindividualizada, não podendo ser entregue outra emseu lugar. Embora a lei fale em “enganar” oadquirente ou consumidor, o que significa fraude,não é necessário que haja previamente um ardil,artifício ou meio fraudulento induzindo o compradorna aquisição da coisa. “O engano está na efetivação,na realização mesma da venda, nos fatosmencionados de vender e entregar”4. A fraude podereferir-se à substância da mercadoria (farinha porsal), à qualidade ou quantidade. Mesmo que sejafalsificada, se a vítima não foi enganada, sabendoque a mercadoria não é verdadeira, a conduta éatípica.

Alguns autores questionam se o art. 175 do CPnão teria sido revogado pela Lei n. 8.137/90 e pelodenominado Código de Defesa do Consumidor (Lein. 8.078/90). O art. 7º, IX, da Lei n. 8.137/90 dispõeque: “Constitui crime contra as relações deconsumo: vender, ter em depósito para vender ouexpor à venda ou, de qualquer forma, entregarmatéria-prima ou mercadoria, em condiçõesimpróprias ao consumo”. O art. 18, § 6º, da Lei n.8.078/90, por sua vez, esclarece que: “São imprópriosao uso e consumo: I — os produtos cujos prazos devalidade estejam vencidos; II — os produtos

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deteriorados, alterados, adulterados, avariados,falsificados, corrompidos, fraudados, nocivos à vidaou à saúde, perigosos ou, ainda, aqueles emdesacordo com as normas regulamentares defabricação, distribuição ou apresentação”.

Essa superposição de leis disciplinandopraticamente a mesma matéria recomenda prudência eaguda observação em seu exame, devendo-seobservar que o art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução àsNormas do Direito Brasileiro dispõe que lei posteriorrevoga a anterior quando disciplina inteiramente amatéria nela contida. Para Paulo José da Costa Jr.,todo o art. 175 do Código Penal foi revogado peloart. 7º, IX, da Lei n. 8.137/905. Para Luiz Regis Prado,estaria revogado somente o inciso I do art. 175:“Assim, se lei posterior, disciplinando os crimesperpetrados nas relações de consumo, tratou davenda pelo comerciante de mercadoria falsificada oudeteriorada, como se fosse verdadeira ou perfeita,não subsiste dúvida de que a norma anteriorencontra-se revogada”6. Não adotamos, veniaconcessa, nenhum desses entendimentos. Naverdade, exatamente em respeito àquela previsão daLei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro,consideramos que as leis posteriores não regularaminteiramente a mesma matéria, sendo, assim,

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impossível admitir a revogação tácita do dispositivoem exame do Código Penal. Com efeito,casuisticamente, devem-se confrontar os diversosdiplomas legais e resolver a questão por meio doconflito aparente de normas e aplicar, in concreto,aquela que contemplar todas as elementares típicas.

Por fim, se as mercadorias tiverem fim medicinalo u alimentício, a conduta poderá adequar-se àsdescrições dos arts. 272, § 1º, e 273, ambos doCódigo Penal, configurando crime contra a saúdepública e não contra o patrimônio.

4.1 Fraude no comércio de metais ou pedraspreciosas (§ 1º)

Aqui se trata de fraude no comércio específico demetais ou pedras preciosas, onde é fácil enganar ocomprador inexperiente, causando maiores danos,razão pela qual a pena também é mais grave. O valorelevado, por outro lado, dos objetos do comérciojustifica a maior punição das condutascriminalizadas. Em qualquer dos casos, está implícitaa exigência de prejuízo ao adquirente ou comprador.

São, na verdade, quatro hipóteses de figurasqualificadas: a) alterar qualidade ou peso de metalem obra encomendada ao agente; b) substituir

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pedra verdadeira por falsa ou por outra de menorvalor, também em obra encomendada ao agente; c)vender pedra falsa por verdadeira; d) vender, comoprecioso, metal de outra qualidade.

Nas duas primeiras hipóteses, a vítimaencomenda ao sujeito ativo a elaboração de umaobra com um metal determinado, platina, por exemplo,ou com determinada pedra. Na confecção, contudo, oagente substitui o material por outro metal inferior,no primeiro caso, traindo a confiança que aquela lhedepositara; no segundo, substitui a pedra verdadeirapor uma falsa ou por outra de menor valor. A açãoconsiste em enganar a vítima, alterando a qualidadeou o peso do metal empregado na obra executada, ousubstituindo pedra verdadeira por falsa ou por outrade valor inferior. Em qualquer das duas hipóteses éindispensável a configuração de prejuízo para oadquirente ou consumidor. Assim, não haverá crimese, por exemplo, a alteração ou substituição domaterial beneficiar o consumidor.

Por fim, nas duas últimas hipóteses, criminaliza-sea venda de pedra falsa por verdadeira (bijuteria porjoia, por exemplo) ou de metal de qualidade inferior(latão, zinco) como se precioso fosse (ouro, prata,platina). Essa transação, para tipificar o tipo penal,somente pode ser produto de venda e não de

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qualquer outra relação negocial, como doação, daçãoem pagamento, transação etc.

Todas as quatro hipóteses disciplinadas no § 1ºdo artigo em exame configuram crime material, esomente se consumam com a entrega e a aceitaçãodo objeto da transação.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo, diretoou eventual, representado pela vontade conscientede vender produto falsificado ou deteriorado,entregar uma mercadoria por outra ou, ainda, alterarou substituir metal ou pedra preciosa, no exercício deatividade comercial.

É indispensável que o sujeito ativo tenhaconsciência de que está enganando o adquirente ouconsumidor e que conheça as diferentes qualidadesou propriedades de cada produto; enfim, énecessário que o dolo abranja todos os elementosconstitutivos do tipo. O eventual desconhecimentode que entrega produto de menor valia ou pedra falsano lugar da verdadeira configurará erro de tipo, que,se justificável, excluirá a tipicidade.

Concluindo, não se configura a fraude no

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comércio sem a comprovação do tipo subjetivo, ouseja, o dolo abrangente de todas as elementarestípicas.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime de fraude no comércio com oengano efetivo do sujeito passivo, que se opera coma venda ou entrega da mercadoria ao adquirente ouconsumidor. Não se consuma antes de a mercadoriaencontrar-se em poder do sujeito passivo, para quese possa constatar o vício ou sua diversidade. Nessemomento e nesse lugar, consuma-se o crime, que ématerial.

É admissível a tentativa, diante da possibilidadede fracionamento dos atos executórios, ou seja,circunstâncias alheias à vontade do agente podemimpedir que consume seu intento.

7. Pena e ação penal

As penas cominadas para a modalidade simples(caput, I e II) são alternativas: detenção, de seis

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meses a dois anos, ou multa; para as figurasqualificadas, as penas são cumulativas: reclusão, deum a cinco anos, e multa.

A primariedade e o pequeno valor do objetomaterial permitem a substituição da pena de reclusãopor detenção, reduzi-la de um a dois terços ou aplicarsomente multa, aplicando o disposto no art. 155, § 2º,destacado expressamente no texto legal (§ 2º).

A ação penal, como é regra nos crimes contra opatrimônio, é pública incondicionada, dispensandoqualquer manifestação de interesse do ofendido.

1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 491.2 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 555.3 Sustentando tratar-se de crime comum, manifestava-seMagalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 467. Emsentido contrário, defendendo que somente comerciante oucomerciário podem praticá-lo, por todos, Nélson Hungria,Comentários ao Código Penal, cit., v. 7, p. 272 e 273:“Exercício de atividade comercial não quer dizer senão

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‘exercício profissional do comércio, por conta própria ou deoutrem’. Assim, repita-se: idôneo sujeito ativo de qualquerdas fraudes de que ora se trata é somente o comerciante oucomerciário. Se o agente não reveste tal qualidade oucondição, o fato será punível a título de ‘fraude nocomércio’. Caso o art. 175 não tivesse particularizado osujeito ativo das fraudes de que cogita, seria uma repetiçãoociosa do art. 171, § 2º, IV”.4 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 469.5 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 547.6 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 557, nota n. 4.

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CAPÍTULO XXIII - OUTRAS FRAUDES

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Pena e açãopenal.

Outras fraudesArt. 176. Tomar refeição em restaurante, alojar-

se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte semdispor de recursos para efetuar o pagamento:

Pena — detenção, de 15 (quinze) dias a 2 (dois)meses, ou multa.

Parágrafo único. Somente se procede medianterepresentação, e o juiz pode, conforme ascircunstâncias, deixar de aplicar a pena.

1. Considerações preliminares

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Trata-se de infração penal que não era prevista,como figura autônoma, pelo direito penal anterior;durante a vigência do Código de 1890, a doutrinadominante a concebia como estelionato.

Durante a Idade Média, a Itália já reprimia essamodalidade de conduta em algumas leis penais. AFrança, por sua vez, disciplinava a matéria desde1873, vindo a alterá-la em sucessivas oportunidades(1926 e 1937).

Os Projetos Sá Pereira e Alcântara Machado jádisciplinavam a matéria, como simples contravenção.A previsão do atual Código Penal de 1940 (ParteEspecial), segundo a doutrina, inspirou-se no CódigoPenal suíço de 1937 (art. 150)1.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é a inviolabilidade dopatrimônio de proprietários de hotéis, restaurantesou meios de transportes contra a lesão fraudulenta aque, com facilidade, são expostos nesse ramo deatividade. Criminaliza-se a conduta de contrairobrigação, seja consumindo alimentos e bebidas,seja alojando-se em hotéis, seja servindo-se de meio

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de transporte, sem dispor, no entanto, dos recursosnecessários para satisfazê-la. Ao lado desseinteresse privado existe, logicamente, o interessepúblico relativo à harmonia e à estabilidade da ordemjurídica2.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo é quem pratica qualquer das açõesproibidas pelo artigo em exame: tomar refeição emrestaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meiode transporte sem dispor dos meios necessários parapagá-los; sujeito ativo, à evidência, pode serqualquer pessoa, independente de qualidade oucondição especial, tratando-se, pois, de crimecomum. Como é a impossibilidade de cumprir aobrigação assumida que caracteriza a infração penal,há a presunção legal de tratar-se de sujeito ativocapaz de assumir tal obrigação. Assim, não poderáser sujeito ativo desse crime o incapaz, por faltar-sea responsabilidade necessária para assumir umaobrigação civil.

Sujeito passivo, por outro lado, pode ser pessoafísica ou jurídica. Nem sempre quem sofre o engano équem suporta o prejuízo. A pessoa enganada

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(garçom, motorista) pode ser diversa da que sofre oprejuízo, ou seja, pode existir mais de um sujeitopassivo de um único e mesmo crime. Pode ocorreraqui fenômeno semelhante ao estelionato, em que,muitas vezes, quem é ludibriado não é quem tem oprejuízo.

4. Tipo objetivo: adequação típica

O tipo penal prevê três espécies de condutaspuníveis: 1) tomar refeição em restaurante; 2)alojar-se em hotel; 3) utilizar-se de meio detransporte.

Tomar refeição em restaurante significa que aconduta deve ser realizada no estabelecimento, tantoque, se o sujeito ativo somente encomenda a refeiçãopara ser entregue em outro lugar, não pratica o crimeem exame, podendo, no entanto, incorrer no crime deestelionato. Alojar-se em hotel abrange todos osestabelecimentos similares destinados a acolherhóspedes, tais como hospedarias, albergues,pensões etc. Utilizar-se de meio de transporte tem osentido de coletivo, como ônibus, táxi, metrô etc.

Nas três hipóteses, é condição indispensável queo agente não disponha de recursos para efetuar o

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pagamento, consistindo a fraude exatamente no fatode o agente silenciar quanto à impossibilidade depagamento. A fraude consiste em o agente utilizar-sedos serviços relacionados sem dispor dos recursospara pagá-los, mas apresentar-se como se os tivesse;comporta-se como um cliente normal, honesto, quehonrará o compromisso assumido, induzindo osujeito passivo em erro. Em qualquer dasmodalidades, existe uma obrigação assumida que édescumprida.

Refeição inclui também bebidas; restaurantecompreende local para servir refeição (café, pensão,boite etc.); hotel abrange hospedarias, albergues epensões.

Concluindo, não haverá crime se a refeição nãofor tomada em restaurante, isto é, noestabelecimento, mas for encomendada para entregaem domicílio. O passageiro clandestino não praticaesse crime, que exige o descumprimento de umaobrigação assumida, mas sim o de estelionato.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo dessa infração penal érepresentado pelo dolo, que pode ser direto ou

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eventual, constituído pela vontade consciente depraticar qualquer das ações relacionadas no tipopenal. É indispensável que a consciência do agenteabranja todos os elementos constitutivos dadescrição legal, especialmente que não dispõe dosvalores necessários para pagar pela obrigação queacaba de assumir.

Eventual desconhecimento do agente do fato deque, por exemplo, encontra-se sem dinheiro quandose aloja em hotel, pede refeição ou toma um meio detransporte não configura o crime, por faltar-lhe aconsciência dessa circunstância. A tipicidade éafastada por erro de tipo.

6. Consumação e tentativa

A relevância jurídica de qualquer das condutassurge somente com o não pagamento das despesasefetuadas, ou seja, após a prática de qualquer dascondutas (refeição, alojamento ou transporte). Logo,estamos diante de um crime material3 , isto é, umcrime de dano, que somente se concretiza com aocorrência efetiva de prejuízo. Em outros termos, ocrime se consuma com a prática de qualquer dascondutas incriminadas: quando o agente toma (total

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ou parcialmente) a refeição; quando obtém oalojamento (mesmo que por tempo exíguo) ou seserve do transporte sem dispor de recursos paraefetuar o pagamento4.

Admite-se a tentativa, em que pesem algumasposições contrárias, como a de Magalhães Noronha,que afirmava: “Tão logo a vítima (sic) iniciou arefeição, alojou-se em hotel ou serviu-se de meio detransporte, não tendo recursos, ação incriminada jáse realizou”5. Esse entendimento não nos parecesustentável, na medida em que, inegavelmente,estamos diante de um crime cuja fase executóriaadmite fracionamento e, por conseguinte, tentativa.Nesse sentido, o exemplo sugerido por NélsonHungria é impecável: “Já tendo sido trazida arefeição, ou ao entrar o agente no quarto do hotel ouno veículo de transporte, é descoberto (por aviso deterceiro ou outra circunstância) o plano de burla,que, assim, se frustra”6.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum, na medida em que nãoexige qualquer condição especial do sujeito ativo;

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material, uma vez que, em tese, exige resultadonaturalístico; comissivo (que só pode ser praticadopor meio de ação); doloso (não há previsão legalpara a figura culposa); de forma livre (pode serpraticado por qualquer meio, forma ou modo);instantâneo (o resultado opera-se de forma imediata,sem prolongar-se no tempo); unissubjetivo (pode serpraticado, em regra, apenas por um agente);plurissubsistente (eventualmente pode serdesdobrado em vários atos, que, no entanto,integram a mesma conduta).

8. Pena e ação penal

As penas cominadas são, alternativamente,detenção, de quinze dias a dois meses, ou multa. Aação penal é pública condicionada à representaçãodo ofendido.

Perdão judicial: conforme as circunstâncias, ojuiz pode deixar de aplicar a pena.

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1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 498.2 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 474: “É ainviolabilidade patrimonial do bem tutelado e por isso a leiclassifica o delito como contra o patrimônio”.3 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 278. Em sentido contrário, sustentando tratar-se de crimeformal: Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal,cit., v. 1, p. 500.4 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 278.5 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 480.6 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 278.

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CAPÍTULO XXIV - FRAUDES E ABUSOS NAFUNDAÇÃO DE SOCIEDADE POR AÇÕES

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Fraudena fundação de sociedade por ações:crime subsidiário. 5. Tipo subjetivo:adequação típica. 6. Consumação etentativa. 7. Classificação doutrinária. 8.Fraude sobre as condições econômicasde sociedade por ações (§ 1º, I). 8.1.Bem jurídico tutelado. 8.2. Sujeitos ativoe passivo. 8.3. Tipo objetivo: adequaçãotípica. 8.4. Consumação e tentativa. 9.Falsa cotação de ações ou título desociedade (§ 1º, II). 9.1. Sujeitos ativo epassivo. 9.2. Tipo objetivo: adequaçãotípica. 9.3. Consumação e tentativa. 10.Empréstimo ou uso indevido de bens ouhaveres (§ 1º, III). 10.1. Sujeitos ativo epassivo. 10.2. Tipo objetivo: adequaçãotípica. 10.3. Consumação e tentativa. 11.Compra e venda de ações da sociedade

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(§ 1º, IV). 11.1. Sujeitos ativo e passivo.11.2. Tipo objetivo: adequação típica.11.3. Consumação e tentativa. 12.Caução de ações da sociedade (§ 1º, V).12.1. Sujeitos ativo e passivo. 12.2. Tipoobjetivo: adequação típica. 12.3.Consumação e tentativa. 13.Distribuição de lucros ou dividendosfictícios (§ 1º, VI). 13.1. Sujeitos ativo epassivo. 13.2. Tipo objetivo: adequaçãotípica. 13.3. Consumação e tentativa. 14.Aprovação fraudulenta de conta ouparecer (§ 1º, VII). 14.1. Sujeitos ativo epassivo. 14.2. Tipo objetivo: adequaçãotípica. 14.3. Consumação e tentativa. 15.Crimes de liquidante (§ 1º, VIII). 16.Crimes do representante da sociedadeestrangeira (§ 1º, IX). 16.1. Sujeitos ativoe passivo. 17. Crime de acionista:negociação de voto (§ 2º). 17.1. Sujeitosativo e passivo. 17.2. Tipo objetivo:adequação típica. 18. Pena e ação penal.

Fraudes e abusos na fundação ou administração desociedade por ações

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Art. 177. Promover a fundação de sociedade porações, fazendo, em prospecto ou em comunicaçãoao público ou à assembleia, afirmação falsa sobre aconstituição da sociedade, ou ocultandofraudulentamente fato a ela relativo:

Pena — reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, emulta, se o fato não constitui crime contra aeconomia popular.

§ 1º Incorrem na mesma pena, se o fato nãoconstitui crime contra a economia popular:

I — o diretor, o gerente ou o fiscal de sociedadepor ações, que, em prospecto, relatório, parecer,balanço ou comunicação ao público ou àassembleia, faz afirmação falsa sobre as condiçõeseconômicas da sociedade, ou ocultafraudulentamente, no todo ou em parte, fato a elasrelativo;

II — o diretor, o gerente ou o fiscal que promove,por qualquer artifício, falsa cotação das ações oude outros títulos da sociedade;

III — o diretor ou o gerente que tomaempréstimo à sociedade ou usa, em proveitopróprio ou de terceiro, dos bens ou haveres sociais,sem prévia autorização da assembleia geral;

IV — o diretor ou o gerente que compra ou

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vende, por conta da sociedade, ações por elaemitidas, salvo quando a lei o permite;

V — o diretor ou o gerente que, como garantiade crédito social, aceita em penhor ou em cauçãoações da própria sociedade;

VI — o diretor ou o gerente que, na falta debalanço, em desacordo com este, ou mediantebalanço falso, distribui lucros ou dividendosfictícios;

VII — o diretor, o gerente ou o fiscal que, porinterposta pessoa, ou conluiado com acionista,consegue a aprovação de conta ou parecer;

VIII — o liquidante, nos casos dos ns. I, II, III, IV,V e VII;

IX — o representante da sociedade anônimaestrangeira, autorizada a funcionar no País, quepratica os atos mencionados nos ns. I e II, ou dáfalsa informação ao Governo.

§ 2º Incorre na pena de detenção, de 6 (seis)meses a 2 (dois) anos, e multa, o acionista que, afim de obter vantagem para si ou para outrem,negocia o voto nas deliberações de assembleiageral.

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1. Considerações preliminares

Os antecedentes mais remotos da criminalizaçãode fraudes e abusos praticados em sociedades porações são do século XIX, mais precisamente de umalei francesa de 4 de julho de 1867, que somente foisubstituída um século depois, em 1966.

A repressão a esse tipo de fraude também foiobjeto de preocupação de outras legislaçõeseuropeias, especialmente na Itália e na Alemanha,que inseriram disposições específicas em seusCódigos Comerciais ou Civis, em leis especiais oumesmo nos Códigos Penais.

A matéria foi introduzida no Brasil pela Lei n.3.150, de 3 de novembro de 1882, que foi alteradapelo Decreto n. 164, de 1890, o qual acabouinspirando o Código Penal republicano, do mesmoano. “A legislação penal nessa matéria foi modificadacom o advento da lei sobre sociedade por ações, oDL n. 2.627, de 26 de setembro de 1940 (arts. 167-172). O CP de 1940, no art. 177, reproduziu,praticamente sem alterações, o que se continha nosarts. 168 e 171 do Dec. 2.627. A disposição do art.167, n. 8, que o CP não incorporara, ficou tacitamenterevogada, pois a nova lei cuidou integralmente damatéria. As contravenções dos arts. 169 e 170 do DL

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n. 2.627 estão revogadas com advento da nova leisobre sociedade por ações (Lei 6.404/76)”1. ODecreto n. 2.627/40 foi revogado pela última leicitada. Essa lei (n. 6.404/76) não cuida da matériapenal, que continua disciplinada pelo Código Penal.

A Lei n. 6.385/76 criou a Comissão de ValoresMobiliários, atribuindo-lhe competência parafiscalizar e inspecionar as sociedades por açõesabertas, aplicando penalidades pelos atos ilegais deadministradores e acionistas.

O legislador de 1940 trata, no art. 177, das fraudese abusos na fundação e administração de sociedadespor ações, que, como já mencionamos, são reguladaspela Lei n. 6.404/76, que é a lei especial mencionadapelo Código Civil de 2002, em seu art. 1.089. A Lei n.6.404/76, no entanto, a chamada Lei das SociedadesAnônimas, não contém matéria criminal, quecontinua a ser disciplinada no art. 177 do CódigoPenal.

No caput daquele dispositivo, trata-se da fraudena constituição da sociedade por ações, ao passoque nos incisos do § 1º se cuida das fraudespraticadas no funcionamento de tais sociedades.

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2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é o patrimônio,particularmente daqueles que investem emsociedades abertas, isto é, tutela-se o patrimônio dosacionistas contra a organização e a administraçãofraudulenta e abusiva das sociedades por ações.

O interesse dos acionistas apresenta-se por meiode um conjunto de princípios que se pode resumircomo veracidade e autenticidade das informações,dados, números sobre a constituição, funcionamentoe administração da sociedade, integridade do capitalsocial e funcionamento correto do mercado de títulomobiliário e, finalmente, atuação correta deadministradores e fiscais no interesse da sociedade.Todos esses aspectos, em outros termos,constituem, abstratamente, o patrimônio doacionista.

Convém destacar a absoluta insuficiência docombate, sob o aspecto criminal, ao excessivonúmero de fraudes praticadas, quer na constituição,quer na administração das sociedades de capitalaberto e, inclusive, no mercado mobiliário. Osmecanismos que se têm criado para reprimir osabusos e preservar os interesses dos acionistas emgeral e, particularmente, dos minoritários estão longe

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de satisfazer as necessidades mercadológicas.Por fim, a Lei de Economia Popular (Lei n.

1.521/51) criminaliza uma série de condutas quetambém podem adequar-se a vários dos tiposcontidos no art. 177 e seus incisos.

Há que ter muita cautela para constatar, inconcreto, qual dos dois diplomas legais deve seraplicado. O critério sugerido pela doutrina, de modogeral, é o de aplicar a Lei de Economia Popularsempre que a sociedade for organizada mediantesubscrição pública, apresentando cunhonitidamente popular2. Acreditamos, no entanto, quesomente o casuísmo poderá nos indicar a normaaplicável, questão que, a nosso juízo, deve sersolucionada pelo conflito aparente de normas.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo deve ser quem funda a sociedadepor ações. No caso, sujeitos ativos são osfundadores da sociedade, os primeiros subscritoresdo capital3, desde que façam afirmação falsa ouocultação fraudulenta. Podem concorrer para o crime(coautor ou partícipe), evidentemente, os que, não

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sendo fundadores, atuam em nome da instituiçãofinanceira que intermedeia a subscrição pública, porexemplo (art. 82 da Lei n. 6.404/76).

Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa que,por alguma razão, subscreva como acionista, sendovítima da afirmação falsa sobre a constituição dasociedade ou de ocultação fraudulenta de fatorelevante relativa à sociedade.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A primeira conduta criminalizada, contida nocaput do art. 177, tem a seguinte formulação:“Promover a fundação de sociedade por açõesfazendo, em prospecto ou em comunicação aopúblico ou à assembleia, afirmação falsa sobre aconstituição da sociedade, ou ocultandofraudulentamente fato a ela relativo”. Trata-se defraude na constituição de sociedade por ações,visando a atrair capitais e interessados noempreendimento.

Constata-se que, embora o caput criminalize umaconduta — promover —, prevê duas formas oumeios de executá-la: fazer afirmação falsa ou ocultarfato fraudulentamente.

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Afirmação falsa, obviamente, é aquela que nãocorresponde à realidade, aquela que é inverídica,fictícia, isto é, representada pela criação de fatosartificiais, inexistentes, distorcidos ou inidôneos, queatraiam investidores para a subscrição de capitalsocial. Essa falsidade informativa pode ocorrer devárias formas, como exemplificava MagalhãesNoronha, in verbis: “A simulação de subscrição ouentradas; a designação de pessoas de grandeconceito ou representação social, como ligadas àempresa; a mentira sobre o objeto em que recairáatividade da companhia; a afirmação mendaz sobreos recursos técnicos que ela possui para realizar suafinalidade; a assertiva mentirosa sobre a produção eo consumo de produtos, em desconformidade com asreais possibilidades da companhia etc.”4.

A segunda forma criminalizada da conduta de“promover a fundação de sociedade por ações” é aocultação fraudulenta de fato relativo à mencionadasociedade. Em outros termos, os fundadores dasociedade por ações ocultam informações reais,verdadeiras e relevantes da sociedade, enganandoos possíveis investidores.

É necessário que a informação (afirmação falsa ouocultação fraudulenta de fato) refira-se a fatorelevante, devendo possuir potencialidade lesiva.

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Assim, não tipifica esse crime informação ou omissãode comunicação de circunstância de conteúdo nãorelevante, incapaz de produzir ou causar umasituação de perigo de dano. A informação, segundoa exigência contida no caput, deve ser promovida emprospecto, em comunicação ao público ou àassembleia.

Sociedade por ações pode apresentar-se sob aforma de sociedade anônima ou em comandita porações; qualquer das duas satisfaz esse elementonormativo do tipo. A primeira “é a sociedade em queo capital é dividido em ações, limitando-se aresponsabilidade do sócio ao preço de emissão dasações subscritas ou adquiridas”; a segunda,sociedade em comandita por ações, “é aquela em queo capital é dividido por ações, respondendo osacionistas apenas pelo valor das ações subscritas ouadquiridas, mas tendo os diretores ou gerentesresponsabilidade subsidiária, ilimitada e solidária,pelas obrigações sociais”5.

Na hipótese de ocultação fraudulenta o crime éomissivo puro.

4.1 Fraude na fundação de sociedade por ações:crime subsidiário

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A Lei n. 1.521/51 (Lei de Economia Popular)criminaliza, em seu art. 3º, VII a X, fatos que tambémvêm a se adequar a diversas figuras típicaselencadas no art. 177 do CP. Com efeito, as infraçõespraticadas contra sociedades por ações constituem,em princípio, crimes contra a economia dasociedade; se não significam a mesma coisa, andampelo menos muito próximo, demandando extremacautela a busca da distinção. A subsidiariedade dafigura descrita no caput do dispositivo em exame éexpressa; assim, somente se tipificará esse crime “seo fato não constitui crime contra a economiapopular” (preceito secundário do art. 177, caput, doCP). A questão fundamental, afinal, passa a ser comoencontrar a melhor solução para esse aparenteconflito de normas.

Para Magalhães Noronha, a solução seria aseguinte: “Em se tratando de sociedade por ações,parece-nos necessário o exame de que o fato tenhalesado ou posto em perigo as pequenas economiasde um grande, extenso e indefinido número depessoas. Assim, se o fato é enquadrável no art. 177do Código e em dispositivos da Lei 1.521, de 1951,que substituiu o Decreto-lei 869, de 1938, mas se alesão real ou potencial atinge apenas a uma ou duasdezenas de pessoas ricas ou de magnatas que

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subscreveram todo o capital social, cremos quemuito mal o delito poderia ser considerado contra aeconomia do povo. Ao contrário, se a subscriçãofosse feita por avultado e extenso número depessoas que, com seus minguados recursos,subscreveram uma ou outra ação, a ofensapatrimonial seria dirigida contra a economia popular.Numa hipótese, temos pequeno grupo de pessoasprejudicado, noutra é, a bem dizer, o povo, tal onúmero de lesados que sofre o dano”6. Essaorientação também era destacada por Heleno CláudioFragoso, nos seguintes termos: “O critério em geralaceito pela doutrina e que se extrai da própria lei deeconomia popular é o de aplicar esta sempre que asociedade por ações for organizada por subscriçãopública, apresentando cunho nitidamente popular”.

Na atualidade, a partir da Lei n. 6.404/76, aabertura de capitais, a subscrição de ações, é semprepública, chegando ao conhecimento de, em tese,milhões de pessoas. Não nos agradam as sugestõesde Magalhães Noronha e Heleno Fragoso, poisambas pecam pela falta de cientificidade. Não sepodem inventar critérios casuísticos toda vez quesurgir o conflito aparente de normas, criandodivergências doutrinário-jurisprudenciais e gerandoinsegurança jurídica. Na verdade, a solução deverá

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ser, necessariamente, a tradicional, isto é, aquelaoferecida pelos princípios orientadores do conflitoaparente de normas.

Nesse caso, contudo, deve-se trabalhar com doisprincípios, ao contrário do que normalmente ocorre,quando a solução é encontrada com a utilização deapenas um deles. Com efeito, são aplicáveis osprincípios da subsidiariedade e da especialidade. Asubsidiariedade vem expressa no preceitosecundário do dispositivo em exame, como járeferimos. No entanto, para aplicar o princípio dasubsidiariedade é fundamental definir a espécie decrime que determinado fato constitui. Essa definiçãosomente poderá ser encontrada, com segurança, pormeio do princípio da especialidade. Considera-seespecial uma norma penal, em relação a outra geral,quando reúne todos os elementos desta, acrescidosde mais alguns, denominados especializantes. Istoé, a norma especial acrescenta elemento próprio àdescrição típica prevista na norma geral7. Assim,como afirma Jescheck, “toda a ação que realiza o tipodo delito especial realiza também necessariamente, aomesmo tempo, o tipo do geral, enquanto o inversonão é verdadeiro”8. Somente os fatos, in concreto,podem permitir o confronto analítico perante os doisdiplomas legais para atribuir-lhes a qualificação

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correta.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo, diretoou eventual, representado pela vontade conscientede promover a fundação de sociedade por açõesfazendo afirmação falsa sobre a constituição dasociedade ou ocultando fraudulentamente fatorelevante.

Alguns autores, como Damásio de Jesus, RegisPrado, Heleno Fragoso, entre outros, sustentam anecessidade da presença do elemento subjetivoespecial do injusto, que seria representado pelo fimespecial de constituir a sociedade por ações9.Embora numa visão simplista tenhamosacompanhado esse entendimento, em nosso CódigoPenal comentado10, acreditamos que essa não seja amelhor orientação; pelo menos não édogmaticamente sustentável. Com efeito, o que,segundo se tem afirmado, constituiria o fim especialdo injusto é exatamente o que caracteriza o dolo(vontade e consciência de constituir sociedade porações), ou seja, sem essa vontade consciente não se

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pode falar em dolo. Nesse sentido, reformulandonossa posição anterior, entendemos não existir omencionado elemento subjetivo especial do tipo,como destaca, lucidamente, Guilherme Nucci, aoafastar esse elemento subjetivo, in verbis: “Não sepode concordar com tal concepção, pois omencionado intuito de constituir a sociedade éconduta ínsita ao verbo do tipo ‘promover’, ou seja,gerar. Basta, pois, o dolo”11.

Não há previsão expressa de criminalização damodalidade culposa.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se com a afirmação falsa ou a ocultaçãofraudulenta, independentemente da efetivaconstituição da sociedade ou da ocorrência deefetivo prejuízo. Esse já era o entendimentosustentado por Magalhães Noronha: “Não se exige,para a consumação, resultado externo ou estranho àação do agente. Esta, por si só, é bastante paraintegralizar o delito”12. Assim, comunicada, pelosindicados na lei, a afirmação ou a omissão falsa, ocrime está consumado, mesmo que nenhuma ação

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seja subscrita, sendo suficiente a potencialidade daação. Trata-se, com efeito, de crime formal.

A tentativa, embora tecnicamente admissível naforma comissiva, é de difícil ocorrência. Algunsautores, seguindo a orientação de Nélson Hungria,não admitem a possibilidade de tentativa13. Na formaomissiva — ocultação fraudulenta —, à evidência, atentativa é impossível.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime próprio (aquele que exigesujeito ativo qualificado ou especial, no caso, osfundadores da sociedade aberta); subsidiário (opróprio texto legal ressalva: desde que o fato nãoconstitua crime contra a economia popular); formal(não exige resultado naturalístico, distinto da própriaconduta do agente); de perigo (para suaconsumação é suficiente a produção de perigo,sendo desnecessária a ocorrência de dano); doloso(não há previsão de modalidade culposa); comissivo(fazer afirmação implica ação); ou omissivo (“ocultarfato” é forma omissiva de “agir”); instantâneo (oresultado manifesta-se de pronto, não se alongandono tempo); unissubjetivo (pode ser praticado por

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apenas um indivíduo, embora admita normalmente oconcurso de pessoas); plurissubsistente (trata-se deinfração penal cujo iter criminis pode serfragmentado, isto é, sua execução pode compor-sede vários atos que integram a mesma ação).

8. Fraude sobre as condições econômicas desociedade por ações (§ 1º, I)

Em todos os incisos do § 1º a incriminação refere-se a abusos e fraudes relativos ao funcionamentodas sociedades por ações, ao contrário da previsãodo caput, que criminaliza a fraude na constituição dasociedade:

“O diretor, o gerente ou o fiscal de sociedade porações, que, em prospecto, relatório, parecer, balançoou comunicação ao público ou à assembleia, fazafirmação falsa sobre as condições econômicas dasociedade, ou oculta fraudulentamente, no todo ouem parte, fato a elas relativo”.

O princípio da subsidiariedade, expressamentemencionada no caput, aplica-se também em todas asfiguras tipificadas nos incisos do § 1º: se o fato nãoconstitui crime contra a economia popular.

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8.1 Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido pela previsão do inciso Ié exatamente o mesmo do caput do dispositivo, ouseja, o patrimônio alheio, particularmente daquelesque investem em sociedades abertas; em outrostermos, tutela-se o patrimônio dos acionistas contraa organização e a administração fraudulenta eabusiva das sociedades por ações. Damásio de Jesussugere que, secundariamente, “o legislador procuraproteger a veracidade das informações referentes aovalor das ações e outros títulos da sociedade”14.

8.2 Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo, tratando-se de crime próprio,somente pode ser o diretor, gerente, fiscal ouliquidante. O diretor é, normalmente, um dosprincipais acionistas, eleito pelo conselho deadministração ou pela assembleia geral. O gerente éo administrador, geral ou parcial, da empresa, nãonecessariamente acionista, podendo ser apenas umfuncionário contratado para gerir o empreendimento,com determinados poderes decisórios. Fiscal é omembro do conselho fiscal cujas atribuições podemser mais ou menos abrangentes, mas sempre

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definidas em estatuto. Destaca, com acerto, Damásiode Jesus: o rol não pode ser ampliado, ou seja, omembro do conselho administrativo, por exemplo,não pode cometer esse crime15. Liquidante, por fim,é a pessoa nomeada pela assembleia geral ou peloconselho de administração com a atribuição deproceder à dissolução da companhia, fixar a formaoperacional e dirigir sua execução, dispondo dospoderes que lhe são atribuídos pelos arts. 210 e 211da Lei n. 6.404/76.

A Lei das Sociedades Anônimas (Lei n. 6.404/76)considera administradores os membros da diretoria eos do conselho de administração. Contudo, comoreferida lei não contemplou matéria penal, permaneceinalterado o art. 177 do Código, seus parágrafos eincisos, que relacionam como sujeitos ativossomente diretor, gerente e fiscal. Por isso, éimpossível admitir como sujeitos ativos os membrosdo conselho de administração, ante a proibição deanalogia e interpretação extensiva em matéria penal.Referidos administradores poderão, no entanto, seralcançados por meio do concurso de pessoas, quersob a figura da coautoria, quer da participação emsentido estrito.

Sujeito passivo, a exemplo do que ocorre com aprevisão do caput, pode ser qualquer pessoa, física

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ou jurídica.

8.3 Tipo objetivo: adequação típica

A conduta tipificada é semelhante à do caput,“fazer afirmação falsa”, ao público ou à assembleia,sobre as condições econômicas da sociedade ou“ocultar fraudulentamente fato a elas relativo”.Diferentemente da previsão do caput, aqui a fraudenão é praticada na constituição de sociedade porações, mas em seu funcionamento. A afirmaçãofalsa ou a ocultação fraudulenta é relativa àscondições econômicas da sociedade já constituída.

O prospecto constante do texto legal, nesta figurapenal, refere-se ao aumento de capital mediantesubscrição pública16, pois a lei determina que seobserve, na elevação de capital que assim se realizar,o previsto para a constituição (arts. 170, § 6º, e 82,ambos da Lei n. 6.404/76). Relatório é o documentoelaborado pela administração sobre os negócios dasociedade e os principais fatos administrativos;juntamente com outros documentos, deverá serpublicado até cinco dias antes da assembleia geralordinária (art. 133 da Lei n. 6.404/76). Parecer é odocumento elaborado pelo conselho fiscal aosacionistas, e à assembleia geral em todas as

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oportunidades legalmente determinadas. Balanço é ademonstração financeira por excelência dasociedade, que apresenta o resultado da verificaçãode ativo e passivo. A Lei das Sociedades Anônimasalterou a terminologia adotada na legislação anterior,passando a denominar “demonstrações financeiras”o que a lei antecessora chamava de balanço. Porisso, já sustentava Fragoso, “onde a lei penal fala em‘balanço’, deveria agora falar em ‘demonstraçõesfinanceiras’. Na configuração do crime que oraexaminamos, a falsa afirmação e a ocultaçãofraudulenta devem recair sobre o balançopatrimonial. A falsidade que recaia sobre as demaisdemonstrações financeiras constituirá falsidadedocumental comum”17.

Além do prospecto, do relatório, do parecer e dobalanço, o texto legal refere-se, genericamente, aqualquer outra comunicação ao público ou àassembleia na qual se faça afirmação falsa sobre ascondições econômicas da sociedade ou ocultaçãofraudulenta de fato a elas relativo. É indispensávelque a falsidade ou a ocultação fraudulenta refira-sea fato relevante capaz de influir em decisões oudeliberações da assembleia e de quem tem interessena sociedade. Como destacava Hungria, as fraudescom o objetivo de alterar o balanço são as mais

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variadas possíveis, justificando-se, por conseguinte,a preocupação do legislador penal ao criminalizar taiscondutas.

Os demais dados do tipo são os mesmos docaput, sendo desnecessário reexaminá-los.

8.4 Consumação e tentativa

Consuma-se com a afirmação falsa ou a ocultaçãofraudulenta, contida em qualquer dos documentosreferidos, independente do efetivo prejuízo;consuma-se, enfim, com a expedição do prospecto,com a apresentação do relatório, parecer ou balançoou com a comunicação falsa ao público ou àassembleia.

A tentativa, embora tecnicamente admissível, éde difícil ocorrência, e, mesmo quando se configura,sua comprovação apresenta grande dificuldade.

9. Falsa cotação de ações ou título de sociedade (§ 1º,II)

Essa conduta já fora objeto do Código Penal de1890 (art. 340, n. 3). Trata-se da proibição de conduta

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que objetive criar mercados fictícios para avalorização dos títulos da sociedade ou, então, parafacilitar a baixa de sua cotação: o diretor, o gerenteou o fiscal que promove, por qualquer artifício,falsa cotação das ações ou de outros títulos dasociedade (§ 1º, II).

9.1 Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo, a exemplo do inciso anterior (crimepróprio), somente pode ser o diretor, gerente, fiscalou liquidante. Os demais membros do conselhodeliberativo não podem ser sujeito ativo desse crime,salvo se, concretamente, forem alcançados peloinstituto do concurso de pessoas (coautoria ouparticipação em sentido estrito).

Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, físicaou jurídica, independentemente da existência decondição ou qualidade especial. Concretamente,como regra, serão os sócios ou os terceiros quepossam, eventualmente, sofrer dano patrimonial emdecorrência da ação delituosa.

9.2 Tipo objetivo: adequação típica

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A conduta tipificada é promover, mediantequalquer artifício, falsa cotação de ações ou deoutros títulos de sociedade. Cotação falsa é a quenão corresponde ao valor regular do mercado,determinado pela “oferta e procura”. A falsa cotaçãodas ações produz indicação inverídica sobre asituação econômica de qualquer companhia,induzindo erro aos que transacionarem com aempresa. A falsa cotação tanto pode ser paraaumentar como para diminuir o valor das ações.

Esse crime só pode ser praticado em relação aempresas cujos títulos tenham cotação regular nomercado de ações, na medida em que somente estespodem ser objeto de cotação falsa ou correta.

O meio utilizado para promover a falsidade decotação pode ser qualquer artifício, ou seja, qualquerardil, falsidade, mentira, ficção, desde que tenhaidoneidade para enganar ou iludir o mercadoacionário. Em síntese, artifício é qualquer atividadelícita ou ilícita que possa alterar artificialmente acotação dos títulos, para mais ou para menos.

Os demais dados são os mesmos do caput.

9.3 Consumação e tentativa

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Como crime formal, a falsa cotação de ações outítulos de sociedade consuma-se independentementeda superveniência de qualquer dano proveniente dacotação falsa. Em outros termos, o crime consuma-seno momento em que o sujeito ativo obtém a falsacotação.

A tentativa é admissível, uma vez que o empregode artifício fraudulento idôneo constitui início daexecução, que, no entanto, pode não atingir acotação falsa pretendida18.

10. Empréstimo ou uso indevido de bens ou haveres(§ 1º, III)

O inciso III tipifica o abuso de diretor ou gerenteque toma empréstimo à sociedade ou usa, emproveito próprio ou de terceiro, dos bens ouhaveres sociais sem prévia autorização daassembleia geral. Esse crime apresenta algumasemelhança com o chamado de apropriaçãoindébita, embora seja específico em relação a diretorou gerente (crime próprio), que apenas usa ou tomapor empréstimo bens da sociedade a que serve. Agrande diferença da apropriação indébita resideexatamente na falta do animus apropriandi, pois o

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abuso do patrimônio alheio limita-se a seu usoindevido.

10.1 Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser o diretor, gerente ou oliquidante (crime próprio)19. Os demais membros doconselho deliberativo, a exemplo do inciso anterior,não podem ser sujeito ativo desse crime, salvo se,concretamente, forem alcançados pelo instituto doconcurso de pessoas (coautoria ou participação emsentido estrito). Na verdade, a lei penal não prevêcomo possíveis autores do crime os membros doconselho de administração, que a nova Lei dasSociedades por Ações inclui entre osadministradores da sociedade.

Sujeito passivo é a própria sociedade como umtodo, e individualmente seus acionistas, que sofremdiretamente uma perda patrimonial.

10.2 Tipo objetivo: adequação típica

As condutas tipificadas são tomar porempréstimo ou usar dos bens ou haveres sociais.Empréstimo é contrato pelo qual uma coisa é

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entregue com a obrigação de ser restituída emespécie e gênero (comodato e mútuo). Usar dos bens(móveis ou imóveis) ou haveres sociais (haveres emgeral, como títulos, dinheiro etc.), desde que o façaarbitrariamente, isto é, sem autorização da assembleiageral. Necessário que o bem usado, indevidamente,seja devolvido e que esse uso seja irregular, isto é,alheio aos interesses sociais.

O legislador pretendeu proteger a sociedadecontra os maus administradores, que usam seuscargos para obter vantagem indevida. Nesse sentido,o art. 154, § 2º, da Lei n. 6.404/76 proíbe que oadministrador se aproveite das facilidades de suasfunções, em prejuízo da companhia. O eventualreconhecimento ou autorização posterior daassembleia geral não tem o condão de afastar ocrime, que já está consumado.

As condutas tipificadas, enfim, devem ocorrer emproveito próprio ou alheio, e desautorizadamente,ou, nos termos da lei, “sem prévia autorização daassembleia geral”. É irrelevante a superveniência dedano ou prejuízo para a sociedade de acionistas. Ocrime de abuso na administração de sociedade porações (art. 177, § 1º, III, do CP) é formal, dispensandoa ocorrência de prejuízo concreto para suaconfiguração.

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Se, contudo, o sujeito ativo dispuser da coisaanimo domini, a infração penal terá outra coloração:estar-se-á diante do crime de apropriação indébitaagravado (art. 168, § 3º).

10.3 Consumação e tentativa

Como crime formal, ou seja, não exigindo efetivodano material, consuma-se com o empréstimo ou usode bens ou haveres da sociedade,independentemente da superveniência de prejuízo.

A tentativa é admissível, em princípio, ante apossibilidade de interrupção do iter criminis.Sustenta-se que, na figura representada pelo verbo“usar”, é impossível a tentativa, pois “o primeiro atode uso já consuma o delito”. No entanto, na figura detomar por empréstimo, a tradição do objeto materialpode ser impedida por circunstâncias alheias àvontade do agente.

11. Compra e venda de ações da sociedade (§ 1º, IV)

A Lei das Sociedades Anônimas (Lei n. 6.404/76)consagra o princípio fundamental de os

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administradores dessas sociedades não poderemnegociar com as próprias ações (art. 30). O CódigoPenal de 1890 já incriminava esse fato. O CódigoPenal de 1940, na mesma linha, incrimina: o diretorou o gerente que compra ou vende, por conta dasociedade, ações por ela emitidas, salvo quando alei o permite (§ 1º, IV).

11.1 Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser o diretor, gerente ou oliquidante (crime próprio). Os demais membros doconselho deliberativo, a exemplo do inciso anterior,não podem ser sujeito ativo desse crime, salvo se,concretamente, forem alcançados pelo instituto doconcurso de pessoas (coautoria ou participação emsentido estrito). A nova Lei das Sociedades porAções inclui os membros do conselho deadministração entre os administradores dasociedade. Contudo, a lei penal não prevê comopossíveis autores do crime os membros do referidoconselho.

Sujeito passivo é a própria sociedade como umtodo, e, individualmente, seus acionistas, que sofremdiretamente uma perda patrimonial.

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11.2 Tipo objetivo: adequação típica

O que se pune é a compra ou venda, pelasociedade, de suas próprias ações, salvo quando alei o autoriza, como ocorre na hipótese do art. 30 daLei n. 6.404/76. As condutas proibidas estãorepresentadas pelo verbos nucleares “comprar”(adquirir por meio oneroso) e “vender” (alienar ouceder por preço determinado). Essa proibiçãoabrange todas as formas de transações capazes deproduzir efeitos econômicos20. Comprar e vender,nesse caso, têm o sentido de qualquer negócio queproduza os efeitos econômicos de compra e venda.Na verdade, o art. 30 combinado com o art. 109, IV,ambos da Lei de Sociedades Anônimas (Lei n.6.404/76) proíbem a venda de ações pertencentes àprópria companhia, privativamente, isto é, semobservar o direito de preferência dos demaisacionistas.

Somente é proibida a compra ou venda efetuadapor conta da sociedade, e não a que for celebrada emnome ou por conta de terceiro. Por outro lado, oelemento normativo típico, “salvo quando a lei opermite”, significa que o ordenamento jurídico podedeterminar em situações expressas essa operação e,nesses casos, não apenas ficará afastada a

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antijuridicidade, mas a própria tipicidade, pelaausência de um elemento normativo típico21. Nessascircunstâncias, salvo hipóteses previstascasuisticamente na legislação, diretor, gerente eliquidante estão proibidos de comprar ou venderações em nome da sociedade.

Enfim, a compra ou venda das próprias açõespela companhia aberta deverá seguir,necessariamente, as normas expedidas pelaComissão de Valores Mobiliários, que poderásubordiná-la a prévia autorização em cada casoconcreto (art. 30, § 2º, da Lei n. 6.404/76). DestacavaNélson Hungria que “a ratio da incriminação é, nocaso de negociação das ações da própria sociedade,impedir a redução clandestina do capital social, emprejuízo da empresa ou da garantia oferecida aoscredores, ou evitar especulações no sentido da altaou baixa fictícia das ações, ou o ensejo a outraspossíveis fraudes”22.

Deve-se oportunizar aos acionistas,especialmente aos minoritários, o exercício do direitode preferência, consoante preceituam os arts. 109, IV,e 169 da Lei n. 6.404/76. Assegurar o direito depreferência na aquisição/subscrição de ações emquaisquer operações das quais possa advir a

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alteração da posição acionária, tem o objetivo clarode impedir indevida alteração do poder deliberativo,dentre outras consequências menos gravosas aosdireitos dos acionistas minoritários. Significa dizerque os acionistas têm preferência, na proporção desuas respectivas participações societárias, para aaquisição das ações nos casos de aumento docapital social. É o que se compreende da leituraconjunta dos arts. 109, IV, e 171 da Lei n. 6.404/76.Referidos dispositivos referem-se simplesmente aqualquer subscrição das próprias ações.

Importante aqui repisar que as ações, enquantomantidas em tesouraria, não têm direito a voto nem adividendos. A transferência destas ações sem apossibilidade do exercício do direito de preferênciaprejudica os acionistas minoritários, pois tem ocondão de diluir a sua participação societária frenteao bloco de controle (acionistas), e,consequentemente, do seu poder de deliberação.Admitir-se a inobservância do direito de preferênciana venda de ações mantidas em tesouraria seriaconferir à Diretoria condições de alterar as relaçõesde poder no âmbito interno, de acordo cominteresses próprios dos administradores e do blocode controle, através da modificação da posiçãoacionária, sem a anuência dos demais acionistas,

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prática inadmissível sob qualquer ponto de vista.A venda das ações mantidas em tesouraria, com

exclusão do direito de preferência, enquadra-setambém nos casos de infração ao dever de lealdade,conflito de interesses, abuso e desvio de poder.Estabelece o art. 154 que “o administrador deveexercer as atribuições que a lei e o estatuto lheconferem para lograr os fins e no interesse dacompanhia...”. Em outros termos, o dispositivocitado objetiva impedir que o administrador utilize-sedas prerrogativas do cargo que ocupa para buscarproveito próprio e do grupo a que pertence, emprejuízo dos demais acionistas, especialmente dosminoritários.

A venda das ações, sem observar o direito depreferência, também se enquadra como hipótese deutilização do poder de representação da Diretoriapara benefício próprio e do bloco de controle, o queé vedado por lei, de acordo com o disposto nos arts.155 e 156 da Lei n. 6.404/76. Com efeito, devem osadministradores, neste caso, a Diretoria, exercer suasfu n ç õ e s no interesse da sociedade. Negóciorealizado pautado pelo interesse do bloco decontrole e não o da sociedade, é flagrantementeilegal.

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11.3 Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com a compra ou venda, porconta da sociedade, das próprias ações,independentemente da produção de qualquerresultado econômico. A tentativa é, em tese,admissível.

12. Caução de ações da sociedade (§ 1º, V)

Este é o segundo dispositivo a incriminarcondutas que praticam abusos com as ações daprópria sociedade. O inciso IV proíbe a compra evenda das ações; este incrimina aceitar em garantiaas ações da própria sociedade: o diretor ou ogerente que, como garantia de crédito social,aceita em penhor ou em caução ações da própriasociedade.

12.1 Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser o diretor ou gerente e oliquidante (crime próprio). Sujeito passivo são aprópria sociedade e seus acionistas, a exemplo doque ocorre no inciso anterior.

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12.2 Tipo objetivo: adequação típica

A ação incriminada consiste em aceitar em penhoro u caução as ações da própria sociedade, emgarantia de crédito social. Para a configuração dessecrime, é necessário que a sociedade tenha crédito deacionista ou de terceiro, e que, como garantia dessecrédito, o sujeito ativo aceite as ações da própriasociedade. Ora, as ações nada mais são do quedívidas da sociedade para com os acionistas. Assim,recebendo em garantia as próprias ações, asociedade reuniria a posição incompatível de credorae fiadora, ao mesmo tempo, pois, como sustentavaFragoso, “é evidente que as próprias ações seriamsempre uma garantia fictícia para a sociedade”23. Asações de uma companhia, em outros termos, nadamais são que títulos representativos de dívida suapara com os acionistas.

Garantia de crédito social não se confunde coma caução prestada por diretores como “garantia degestão”, que é permitida.

12.3 Consumação e tentativa

Como crime formal, consuma-se com a aceitaçãodas ações em garantia de dívida, sendo indiferente a

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ocorrência efetiva de prejuízo. A tentativa éadmissível, pois a ação incriminada pode serfragmentada, contra a vontade do agente.

13. Distribuição de lucros ou dividendos fictícios (§1º, VI)

Aqui se incrimina a distribuição de lucros oudividendos fictícios nos seguintes termos: o diretorou o gerente que, na falta de balanço, emdesacordo com este, ou mediante balanço falso,distribui lucros ou dividendos fictícios.

13.1 Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo somente podem ser os diretores ougerentes da companhia (crime próprio). Nessa figura,o liquidante, ao contrário das hipóteses previstasnos incisos anteriores, não pode ser sujeito ativo(art. 177, § 1º, VIII). Acreditamos que os fiscais queaprovarem o balanço falso, mesmo sabendo dafalsidade24, somente poderão responder por essecrime, por meio do instituto do concurso de pessoas.

Sujeito passivo, também aqui, é a própria

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sociedade. Não nos parece que, nesta hipótese, osacionistas possam ser tidos como sujeitos passivos,pois acabam sendo beneficiados, mesmoinvoluntariamente, com distribuição irreal dedividendos.

13.2 Tipo objetivo: adequação típica

A ação incriminada consiste em distribuirdividendos que não correspondem a lucros efetivose que, portanto, constituem, em outros termos, lesãoao patrimônio da sociedade e, por extensão, de seusacionistas. A Lei das Sociedades por Açõesestabelece que a companhia somente pode pagardividendos à conta de lucro líquido no exercício, delucros acumulados e de reserva de lucros (art. 201 daLei n. 6.404/76).

Distribuir dividendos significa pagá-los oucreditá-los aos acionistas. Em qualquer sociedadecomercial, o lucro é apurado mediante balanço. Adistribuição dos dividendos e dos lucros, àevidência, somente pode ser feita de acordo com obalanço. A distribuição de dividendos sem aexistência de lucro correspondente procura daraparência de prosperidade, induzindo em erro ocomércio em geral, o sistema financeiro e o próprio

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mercado mobiliário. Essa fraude, além de prejudicar opatrimônio social, beneficia os próprios diretores edemais administradores, a quem o estatutogeralmente atribui participação nos lucros dacompanhia. Distribuição de lucro fictício induz osinvestidores a erro, fazendo-os supor a existência deuma situação financeira e patrimonial irreal dasociedade.

Na hipótese de balanço falso poderá haverconcurso material com o crime de falsidadeideológica (art. 299), se houver sido falsificado peloagente, ou então com o crime de uso de documentofalso (art. 304).

13.3 Consumação e tentativa

Como crime formal, consuma-se com adistribuição dos lucros ou dividendos semcorresponderem ao apurado em balanço. Tratando-sede crime formal, é irrelevante a obtenção devantagem ou a causação de prejuízo. A tentativa éadmissível.

14. Aprovação fraudulenta de conta ou parecer (§ 1º,

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VII)

O crime de aprovação fraudulenta de conta ouparecer está previsto nos seguintes termos: odiretor, o gerente ou o fiscal que, por interpostapessoa, ou conluiado com acionista, consegue aaprovação de conta ou parecer.

14.1 Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser o diretor, gerente ou fiscale o liquidante (crime próprio). Nesse crime, ospróprios fiscais aparecem como sujeito ativo, pois ascontas elaboradas pelos administradores dassociedades anônimas são submetidas a parecer doconselho fiscal.

Sujeito passivo são a própria sociedade e seusacionistas.

14.2 Tipo objetivo: adequação típica

Duas são as modalidades de condutas puníveis:por meio de interposta pessoa ou conluiado comacionista, conseguir aprovação de conta ouparecer. Interposta pessoa é o “testa de ferro” quecomparece para votar; acionista conluiado é o de má-

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fé, aliciado ou subornado. Na primeira figura, osadministradores ou fiscais cedem suas ações ao“testa de ferro” para que possam votar na assembleiapela votação das contas ou parecer; na segunda, ossujeitos ativos limitam-se a corromper acionistas quesão detentores de votos, evidentemente para quevotem segundo os interesses daqueles. O conluiocaracteriza a má-fé de todos os participantes. Dessaforma, quem, eventualmente, participar de boa-fé,isto é, desconhecendo a trama existente, nãoresponde pelo crime.

Obviamente, como destacava Nélson Hungria, ascontas ou pareceres devem estar em contraste com averdade, importando sua aprovação um dano ouperigo de dano ao interesse da sociedade ou deterceiro25.

Como se trata de crime de fraude, é necessárioque as contas ou pareceres estejam em desacordocom a realidade. O acionista conluiado e o “testa deferro”, ao contrário do que pensavam algunspenalistas26, serão coautores, abrangidos pelodisposto no art. 29 do Código Penal.

Cumpre destacar que a ação para anularassembleia prescreve em dois anos (art. 286 da Lei n.6.404/76).

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14.3 Consumação e tentativa

Consuma-se com a efetiva aprovação, ou seja,com a deliberação da assembleia. A tentativa éadmissível, quando a operação é interrompida, porexemplo, antes da aprovação da assembleia, porcircunstâncias alheias à vontade do agente.

15. Crimes de liquidante (§ 1º,VIII)

A sociedade por ações pode liquidar-se judicialou extrajudicialmente. Nessa atividade, o liquidantetambém pode cometer crime. O inciso VIII incriminaespecificamente a conduta do liquidante: oliquidante, nos casos dos incisos I, II, III, IV, V e VII.Com efeito, o liquidante pode ser igualmente sujeitoativo das figuras tipificadas nesses incisos, estandoexcluído somente da conduta descrita no n. VI.Enfim, para apurar os crimes que podem serpraticados pelo liquidante deve-se examinar oconteúdo de cada um daqueles tipos penais. Assim,as anotações que lá fizemos aqui se aplicam.

O sujeito ativo, evidentemente, é o liquidante desociedade por ações, e os sujeitos passivos são asociedade e os acionistas.

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16. Crimes do representante da sociedadeestrangeira (§ 1º, IX)

Ao representante de sociedade anônimaestrangeira autorizada a funcionar no Brasil sãoestendidas as incriminações dos incisos I e II do § 1º,além de incorrer nas mesmas penas do caput desteartigo se prestar falsas informações ao governo. Atipificação é a seguinte: o representante dasociedade anônima estrangeira, autorizada afuncionar no País, que pratica os atos mencionadosnos incisos I e II, ou dá falsa informação ao governo(§ 1º, IX).

Bens jurídicos protegidos, nesse dispositivo, sãoo patrimônio societário, como nas demais figuras,além da credibilidade e autenticidade dasinformações que devem ser prestadas ao Estado.

16.1 Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo somente pode ser o representantede sociedade anônima estrangeira em funcionamentono Brasil. Não significa que o sujeito ativo, nomomento da ação, deva encontrar-se em territórionacional; poderá praticar o crime a distância; aempresa é que deve encontrar-se em funcionamento

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no País.Sujeito passivo pode ser a sociedade anônima, os

acionistas, nas hipóteses dos incisos I e II, e, nahipótese da conduta de dar “falsa informação aogoverno”, o sujeito passivo é o Estado.

17. Crime de acionista: negociação de voto (§ 2º)

Nesse dispositivo, procura-se proteger a lisura e aretidão das assembleias gerais, criminalizando aconduta do acionista que negociar seu voto, nosseguintes termos: “Incorre na pena de detenção, de 6(seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, o acionista que,a fim de obter vantagem para si ou para outrem,negocia o voto nas deliberações de assembleiageral” (§ 2º). O voto é o instrumento pelo qual osacionistas manifestam seus interesses e vontadesperante o órgão máximo das sociedades anônimas,que é a assembleia geral.

17.1 Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo, à evidência, só pode ser o acionista(crime próprio). Outros eventuais participantes dessa

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infração penal somente poderão ser alcançados pormeio do instituto do concurso de pessoas (art. 29).

Sujeito passivo são a própria sociedade e osdemais acionistas que não intervieram, direta ouindiretamente, na prática desse crime.

17.2 Tipo objetivo: adequação típica

A conduta incriminada está representada peloverbo nuclear “negociar”, que tem o sentido decomprar, vender, comerciar, receber ou dar empagamento o voto nas deliberações da assembleiageral. Essa negociação proibida é aquela que tem afinalidade de obter vantagem para si ou paraoutrem. Pune-se, com efeito, a negociação, isto é, acompra, venda ou permuta de voto nas deliberaçõesde assembleia geral, mas somente aqueladesautorizada, indevida, ilegítima; embora nãoconste do texto legal esse elemento normativo, oelemento subjetivo especial do injusto deixa claro talaspecto.

Por outro lado, o “acordo de acionistas” passou aser permitido pela Lei n. 6.404/76. Como destacaDamásio de Jesus, “De ver-se que o art. 118 da Lei n.6.404, de 1976, admite o ‘acordo de acionistas’,inclusive no que diz respeito ao voto nas

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assembleias. Essa disposição, porém, não revogou o§ 2º do art. 177 do CP. Ela permite o acordo lícito, denatureza meramente política, nas deliberações dasassembleias gerais”27. No entanto, deve-se destacarque uma previsão não elimina a outra, pois sedistinguem em suas finalidades: a negociação, queconstitui crime, objetiva obter vantagem para si oupara outrem; o acordo de acionistas, autorizado pelaLei das Sociedades Anônimas, por sua vez, temfinalidade e natureza política e existe em função dosacionistas em geral e não para beneficiar um ou outroacionista em particular.

O tipo incriminador, em síntese, pune anegociação ilícita, mercenária, que visa à obtençãode vantagem ilegítima em prejuízo alheio ou deoutros acionistas, quando não da própria sociedade.Como afirma Guilherme de Souza Nucci28, anegociação proibida de voto pressupõe uma troca: ovoto em qualquer sentido para receber comocompensação uma vantagem qualquer.

18. Pena e ação penal

A s penas cominadas, cumulativamente, são

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reclusão, de um a quatro anos, e multa, se nãoconstituir crime contra a economia popular(subsidiariedade expressa). No crime de negociaçãode voto (art. 177, § 2º), as penas são mais brandas:detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

A ação penal é pública incondicionada, salvonas hipóteses previstas no art. 182, quando estarácondicionada à representação.

1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 514.2 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 284; Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal,cit., v. 1, p. 516.3 Rubens Requião, Curso de Direito Comercial, 8. ed., SãoPaulo, Saraiva, 1977, v. 2, p. 105.4 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 484.5 Fran Martins, Curso de Direito Comercial, p. 301 e 419.6 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 482 e 483.7 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 7. ed.,v. 1, p. 130.

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8 H. H. Jescheck, Tratado de Derecho Penal , trad. SantiagoMir Puig e Francisco Muñoz Conde, Barcelona, Bosch, 1981,p. 1035.9 Damásio de Jesus, Direito Penal, 22. ed., v. 2, p. 462; LuizRegis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit., v. 2, p.572; Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit.,v. 1, p. 519.10 Cezar Roberto Bitencourt, Código Penal comentado, cit.,p. 780.11 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal comentado, cit.,p. 585 e 586.12 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 485.13 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 283.14 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 463.15 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 463.16 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 285 e 286.17 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 521.18 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 465.19 “Sociedade comercial — Fraudes e abusos na fundaçãoou administração — Delito configurado em tese —Interventor de cooperativa agrícola que se utiliza, emproveito próprio e de terceiros, de dinheiro pertencente à

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sociedade, sem prévia autorização da assembleia geral —Pretendida ausência de justa causa para a ação penal —Inocorrência, bem como de inépcia da denúncia — Não éinepta a denúncia cuja descrição dos fatos é suficiente parapermitir o exercício da defesa. A qualificação jurídica do fatoé suscetível de modificação pelo juiz. Indemonstradas, pois,seja a inépcia da denúncia, seja a falta de justa causa,mantém-se a decisão denegatória de habeas corpus” (STF,HC, rel. Min. Décio Miranda, RT, 533:424).20 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 576.21 Heleno Cláudio Fragoso, a nosso juízo equivocadamente,sustentava que “estará excluída a ilicitude nos casos em quea lei permite a negociação com as próprias ações” (Lições deDireito Penal, cit., v. 1, p. 528).22 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 290.23 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 529.24 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 531.25 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 292.26 No mesmo sentido, Heleno Cláudio Fragoso, Lições deDireito Penal, cit., v. 1, p. 532.

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27 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 473.28 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal comentado, cit.

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CAPÍTULO XXV - EMISSÃO DECONHECIMENTO DE DEPÓSITO OU WARRANT

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4.Conhecimento de depósito e warrant. 5.Tipo objetivo: adequação típica. 5.1.Elemento normativo: em desacordo comdisposição legal. 6. Tipo subjetivo:adequação típica. 7. Consumação etentativa. 8. Pena e ação penal.

Emissão irregular de conhecimento de depósito ou“warrant”

Art. 178. Emitir conhecimento de depósito ouwarrant, em desacordo com disposição legal:

Pena — reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, emulta.

1. Considerações preliminares

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O Código Criminal do Império (1830)desconheceu completamente o crime de emissãoirregular de conhecimento de depósito ou warrant.A ausência da criminalização dessa mesma figurapenal permaneceu no Código Penal de 1890. Somenteo Decreto n. 1.102, de 21 de novembro de 1903, quedisciplinou as empresas de armazéns-gerais, trouxeas primeiras disposições penais. A Consolidação dasLeis Penais deu a seguinte definição para essainfração penal: incorrerão nas penas de prisãocelular por um a quatro anos os que emitirem ostítulos denominados de conhecimento de depósitoou “warrant”, em desacordo com as disposições dalei em vigor.

O legislador de 1940 inspirou-se nessedispositivo da Consolidação das Leis Penais,praticamente o reproduzindo.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido, a despeito de algumascontrovérsias, é inegavelmente o patrimônio,especialmente aquele representado pelos títulos deconhecimento de depósito ou warrant. Não ostítulos em si e tampouco a fé pública de que devem

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revestir-se títulos dessa natureza. A fé pública comobem jurídico protegido é objeto de outro Capítulo ede outro Título do Código Penal. Assim, somente porextensão, e secundariamente, pode-se admitir que afé pública se inclua no objetivo da proteção penalinsculpida no dispositivo em exame.

Os títulos em si mesmos encontrariam, com efeito,melhor proteção em outros Capítulos do CódigoPenal; contudo, a disponibilidade patrimonial(conhecimento de depósito) ou direito realpignoratício (warrant) que representam emprestam-lhes extraordinário valor patrimonial, e é exatamenteesse significado econômico que representa o objetoda proteção da norma penal. Trata-se, portanto, decrime patrimonial.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo é quem emite conhecimento dedepósito ou warrant em desacordo com disposiçãolegal; é, em regra, o depositário da mercadoria, quepode ser representado por qualquer pessoa, emnome da empresa de armazéns-gerais. Éperfeitamente possível a coautoria entre depositárioe depositante ou terceiro, desde que tenha ciência de

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participar na emissão irregular dos títulos.Sujeito passivo é o portador ou endossatário do

título1 que, normalmente, sofrerá o prejuízo de suairregularidade.

4. Conhecimento de depósito e warrant

Armazéns-gerais, segundo o art. 1º do Decreto n.1.102, de 21 de novembro de 1903, são aquelasempresas que têm a finalidade de guardar econservar e emitir títulos que as representem.Referidas empresas, com efeito, têm como fim: a)guardar e conservar mercadorias e produtosdepositados, independentemente de sua origem oudestino; b) emitir títulos característicos que asrepresentem, sendo negociáveis e endossáveis.

A relação contratual que se estabelece entrequem entrega as mercadorias e o armazém-geralchama-se depósito: quem deixa a mercadoria nosarmazéns-gerais é o depositante, e estes são osdepositários. Têm a obrigação de conservar osprodutos ou mercadorias que lhes são entregues emnome de outrem. O título correspondente é oconhecimento de depósito e o warrant. São, na

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verdade, dois títulos unidos, que podem, contudo,ser separados. Enquanto as mercadorias permanecemem depósito, os respectivos títulos entram emcirculação, podendo ser transferidos por endosso,conferindo ao portador o direito de livre disposiçãoda mercadoria correspondente.

O warrant e o conhecimento de depósito têmfunções distintas, individualmente considerados. Owarrant é título pignoratício, isto é, atribui a seuportador o direito real de penhor da mercadoria neleespecificada, até o limite do crédito mencionado noprimeiro endosso, garantindo o pagamento dessaimportância. O conhecimento de depósito, por suavez, é o título de propriedade da mercadoria. Atribuiao portador a disponibilidade da coisa; fica limitado,no entanto, pelo limite contido no endosso dowarrant. Resumindo, o adquirente dos títulos — (1)conhecimento de depósito e (2) warrant — torna-seproprietário não apenas deles, mas das própriasmercadorias que representam. Na verdade, a reuniãodos dois títulos em poder de um mesmo titularatribui-lhe as qualidades de proprietário e credor.

A importância, enfim, desses dois títulos justificaa tutela penal impedindo sua emissão irregular.

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5. Tipo objetivo: adequação típica

A conduta tipificada consiste em emitir, isto é,pôr em circulação conhecimento de depósito ouwarrant em desacordo com disposições legais queregem a matéria (Decreto n. 1.102/1903). A emissãodos referidos títulos é criminosa quando viola asdisposições legais, que continuam contidas novetusto decreto de 1903.

O conhecimento de depósito é título depropriedade da mercadoria, atribuindo ao portador adisponibilidade da coisa. O warrant, por sua vez, étítulo de garantia emitido sobre mercadoriadepositada em armazéns-gerais, de acordo com oconhecimento de depósito. Ambos são títulos quecirculam mediante endosso, e a posse dos doisgarante ao possuidor a propriedade da mercadorianeles mencionada.

Quando o depositário, isto é, o armazém-geral,desvia a mercadoria, pratica o crime de apropriaçãoindébita; quando, no entanto, a emissão falsa dewarrant e conhecimento de depósito serve paraobter empréstimo bancário, por exemplo, constituicrime-meio, sendo absorvido pelo estelionato, crime-fim2.

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5.1 Elemento normativo: em desacordo comdisposição legal

Primeiramente, deve-se destacar que o tipo penalem exame configura o que se chama de norma penalem branco, exigindo a complementação de normasdistintas, no caso, do Decreto n. 1.102/1903. Emoutros termos, somente compulsando a legislaçãorelativa ao conhecimento de depósito e “warrant”,ou seja, o decreto referido, poder-se-á saber se suaemissão obedeceu à disposição legal. A locução “emdesacordo com disposição legal” constitui elementonormativo do tipo. Se a emissão corresponder aosmandamentos legais, estar-se-á diante de fatoatípico, não havendo incidência da norma penal.

A emissão, segundo o decreto referido, é irregularquando3:

a) a empresa não está legalmente constituída (art.1º do Decreto n. 1.102/1903);

b) não houver autorização do governo federalpara a emissão (arts. 2º e 4º);

c) não existirem em depósito as mercadoriasmencionadas;

d) existir emissão de mais de um título para amesma mercadoria ou produto mencionados nostítulos;

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e) não se revestir o título das formalidades legais(art. 15).

6. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo, direto oueventual, representado pela vontade consciente deemitir conhecimento de depósito ou warrantirregularmente. Desnecessário destacar que o sujeitoativo tenha conhecimento de que a emissão do títuloestá em desacordo com as disposições legais.

7. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com a colocação emcirculação dos títulos, independentemente daprodução de prejuízo decorrente da emissão destes.Trata-se dos chamados crimes de consumaçãoantecipada4.

A doutrina, de modo geral, não tem admitido afigura da tentativa, classificando essa infração penalcomo unissubsistente.

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8. Pena e ação penal

As penas cominadas, cumulativamente, são areclusão, de um a quatro anos, e a multa.

A ação penal pública incondicionada, sendodesnecessária qualquer manifestação do ofendido.

1 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal comentado, cit.,p. 593.2 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 504.3 O art. 15 do Decreto n. 1.102/1903 estabelece os requisitosnecessários à emissão de “conhecimento de depósito” ouwarrant, que, se infringidos, pode tipificar o crime em exame:“Os armazéns gerais emitirão, quando lhes for pedido pelodepositante, dois títulos unidos, mas separáveis à vontade,denominados — conhecimento de depósito e warrant. § 1ºCada um destes títulos deve ter a ordem e conter, além dasua designação particular: 1) a denominação da empresa doarmazém geral e sua sede; 2) o nome, profissão e domicíliodo depositante ou de terceiro por este indicado; 3) o lugar eo prazo de depósito, facultando aos interessados acordarem,

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entre si, na transferência posterior das mesmas mercadoriasde um para outro armazém da emitente, ainda que seencontrem em localidade diversa da em que foi feito odepósito inicial. Em tais casos, far-se-ão, nos conhecimentose warrant respectivo, as seguintes anotações: a) local paraonde se transferirá a mercadoria em depósito; b) para os finsdo art. 26, § 2º, as despesas decorrentes da transferência,inclusive as de seguro por todos os riscos; 4) a natureza equantidade das mercadorias em depósito, designadas pelosnomes mais usados no comércio, seu peso, o estado dosenvoltórios e todas as marcas e indicações próprias paraestabelecerem a sua identidade, ressalvadas aspeculiaridades das mercadorias depositadas a granel; 5) aqualidade da mercadoria, tratando-se daquelas a que serefere o art. 12; 6) a indicação do segurador da mercadoria eo valor do seguro (art. 16); 7) a declaração dos impostos edireitos fiscais, dos encargos e despesas a que a mercadoriaestá sujeita, e o dia em que começará a correr asarmazenagens (art. 26, § 2º); 8) a data da emissão dos títulose a assinatura do empresário ou pessoa, devidamentehabilitada por este. § 2º Os referidos títulos serão extraídosde um livro de talão o qual conterá todas as declaraçõesacima mencionadas e o número de ordem correspondente.No verso do respectivo talão o depositante, ou terceiro poreste autorizado, passará recibo dos títulos. Se a empresa, apedido do depositante, os expedir pelo Correio, mencionará

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esta circunstância e o número e data do certificado doregistro postal. Anotar-se-ão também no verso do talão asocorrências que se derem com os títulos dele extraídos,como substituição, restituição, perda, roubo etc. § 3º Osarmazéns gerais são responsáveis para com terceiros pelasirregularidades e inexatidões encontradas nos títulos queemitirem, relativamente à quantidade, natureza e peso damercadoria”.4 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 477.

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CAPÍTULO XXVI - FRAUDE A EXECUÇÃO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7. Pena e açãopenal.

Fraude à execução

Art. 179. Fraudar execução, alienando,desviando, destruindo ou danificando bens, ousimulando dívidas:

Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois)anos, ou multa.

Parágrafo único. Somente se procede mediantequeixa.

1. Considerações preliminares

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Os antecedentes mais remotos dessa infraçãopenal podem ser encontrados antes da era cristiana,desde a Lei das XII Tábuas, que permitia ao credorinsatisfeito postular a insolvência do devedor. Pormeio desse ato se concedia ao credor o direito decustódia, período durante o qual poderia levar odevedor ao mercado; não surgindo pretendentes,poderia matá-lo ou vendê-lo como escravo. Aprisãopor dívida e o direito sobre a vida do devedorforam abolidos somente no ano326 a. C. (LexPoetelia Papiria).

Encontramos igualmente antecedentes dessecrime nas Ordenações Filipinas, no Livro V, TítuloXLVI1. O Código Criminal de 1890 contemplava essainfração penal com a seguinte redação: “O devedornão comerciante que se constituir em insolvência,ocultando ou alheando maliciosamente seus bens,ou simulando dívidas, em fraude de seus credoreslegítimos, será punido com a pena de prisão de seismeses a dois anos”. Esse diploma legal inseriareferida infração entre os crimes contra apropriedade pública e particular (Título XII).

Na legislação estrangeira, embora se encontremcrimes idênticos ou semelhantes, não existe umauniformidade: ora é classificado entre os crimescontra a propriedade, ora entre os crimes contra a

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administração da justiça. O legislador brasileiro de1940 preferiu incluir a fraude contra a execução noTítulo que trata dos crimes contra o patrimônio.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido, nesse tipo penal,também é o patrimônio, mais especificamente contramanobras ardilosas ou fraudulentas de devedoresque, na tentativa de inviabilizar a ação judicial deseus credores, procuram evitar a execução forçada.

Por outro lado, num plano secundário e reflexo, odispositivo em exame procura garantir o respeito àsdecisões judiciais e, por conseguinte, aadministração da justiça, cujo prestígio resultacomprometido quando suas decisões são impedidasde se executar por fraudes daqueles que foramcondenados. Enfim, tutela-se diretamente opatrimônio e, indiretamente, o respeito àadministração da justiça.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo será sempre o devedor demandado

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judicialmente. Nada impede que o sujeito ativo sejacomerciante, contrariamente ao que pensava HelenoFragoso2. Com efeito, o comerciante que praticarqualquer das constantes da descrição típica incorreránessa infração penal. Responderá por crimefalimentar somente se for decretada judicialmentesua falência, uma vez que o decreto de sua quebra écondição objetiva de punibilidade.

O crime de fraude à execução, conquanto própriono que diz respeito ao sujeito, pode admitir oconcurso de outras pessoas. Sujeito ativo não éapenas o devedor, pois pode ocorrer que terceiropratique a ação ilícita, subtraindo a coisa à execução,desviando-a, destruindo-a etc., insciente o devedor.

Sujeito passivo será o credor que acionajudicialmente o devedor ardiloso, isto é, o credor quepropõe a execução judicial, que se vê esvaziado pelafraude praticada pelo sujeito ativo.

4. Tipo objetivo: adequação típica

O crime consiste em fraudar execução, por meiode uma das condutas relacionadas no tipo penal,inviabilizando a constrição de bens, que foram

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desviados pelo sujeito ativo, impossibilitando, emoutros termos, a satisfação da pretensão demandada.Em outros termos, fraudar a execução significatornar impossível a execução judicial pelainexistência de bens sobre os quais possa recair apenhora.

O agente pode “fraudar a execução” alienandoseus bens, desviando-os, destruindo-os oudanificando-os ou, ainda, simulando dívidas.“Alienação” é todo ato de transferir o domínio debens a terceiros, abrangendo inclusive a própriacessão de direitos. Convém destacar, contudo, que aalienação, em sede de direito penal, não se presumefraudulenta juris et de jure. Como o direito penal nãoadmite presunções de nenhuma natureza, também afinalidade fraudadora da alienação deve sercomprovada. Nem toda alienação tem a finalidade defraudar eventual credor, mesmo que exista eventualdemanda judicial, pois pode ser necessária aalienação, ou economicamente conveniente aoagente. Assim, é fundamental detectar o elementosubjetivo que orientou a eventual alienação.Somente a alienação simulada, a título gratuito ou apreço vil, pode ser considerada, prima facie,fraudulenta. Enfim, a alienação por justo preço não écriminosa, desde que realizada sem o propósito de

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inviabilizar eventual penhora.Desvio de bens é todo comportamento ou

conduta que implique a inviabilização da penhorapela ausência de bens pertencentes ao agente, quepode configurar-se por inúmeras formas, tais comoocultação, simulação de transferência, remessa parao exterior etc.

N a destruição, a coisa deixa de existir em suaindividualidade, ainda que subsista a matéria que acompõe (por exemplo, matar um animal, estilhaçaruma vidraça), ou também quando vem a desaparecer,tornando-se inviável sua recuperação. Nainutilização, embora a coisa não seja destruída,perde a adequação ao fim a que se destinava,desaparecendo sua utilidade, sem perdercompletamente a individualidade. Assim, ainutilização também pode ser uma forma de destruir,para efeitos de fraude à execução, uma vez que, aocontrário do crime de dano, não faz aqui essadistinção.

Danificar significa avariar o patrimônio, diminuir-lhe o valor, causando-lhe certa deterioração.Deteriorar tem o sentido de estragar, enfraquecer aessência, diminuindo seu valor ou utilidade, semdestruí-la ou inutilizá-la. Na deterioração a coisasofre avaria substancial, embora não se desintegre

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totalmente, restando apenas diminuída sua utilidadeou seu valor econômico3.

Simular dívida, finalmente, significa assumirobrigação inexistente, admitir a execução de créditofictício. Nesse caso, sustentava Hungria, “énecessário que o crédito fictício (cujo titular écoautor do crime) provoque o concurso de credorese o rateio do ativo, em prejuízo dos credoreslegítimos. Antes disso, o que pode haver é simplestentativa”4.

Pressuposto do crime de fraude à execução éexatamente a existência de uma ação de execuçãojudicial cobrando o sujeito passivo. Com qualquerdas ações arroladas — alienando, desviando,destruindo ou danificando bens, ou simulandodívidas — deve tornar-se inviável a execução dadívida, pela inexistência ou insuficiência depatrimônio do agente.

A fraude à execução é crime de que só cogita alei penal na pendência de uma lide civil, que só temlugar após a citação do devedor para o processo deexecução. Execução é o processo instaurado paraexigir o cumprimento compulsório de um títulojudicial ou extrajudicial. Trata-se de um processo emque se procura, por meio da penhora de bens do

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executado, a satisfação do crédito do exequente. Aquestão é exatamente essa: a conduta tipificadaobjetiva impedir que o executado, por meiosfraudulentos, inviabilize a concretização da execução,isto é, satisfaça sua pretensão. Por isso, não nosparece correta a abrangência que se tem dado àlocução “fraude à execução” para alcançar oprocesso de conhecimento5. O direito penal nãoadmite interpretação extensiva; se o legisladorquisesse incluir os processos de conhecimento ecautelar, teria adotado outra terminologia menosrestritiva, como lide, ação, demanda, processojudicial etc. Não o fez, desautorizando, portanto, aointérprete fazê-lo.

Se o objeto da conduta praticada pelo agenterecair em bens impenhoráveis, não haverá crime.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo e peloelemento subjetivo especial do injusto. O dolo, diretoou eventual, é representado pela vontade conscientede fraudar a execução, praticando qualquer dascondutas elencadas no tipo penal. É indispensávelque o agente saiba que está sendo judicialmente

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executado. O desconhecimento dessa circunstânciapode configurar erro de tipo, afastando o dolo.

O elemento subjetivo especial do injusto consistena finalidade de prejudicar os credores. É irrelevanteque o agente pretenda obter vantagem econômica,vingar-se de alguém ou qualquer outro interesse.

6. Consumação e tentativa

O crime consuma-se no momento em que aexecução fraudada se torna inviável pela insolvênciado agente, decorrente de qualquer das açõestipificadas. Como se trata de crime material, qualquerdas ações praticadas pelo agente será atípica se, adespeito delas, continuar solvente. Restando-lhebens suficientes para garantir o juízo, não se poderáfalar em crime de fraude à execução.

A tentativa é perfeitamente admissível quando,por exemplo, o agente for impedido de consumarqualquer das ações tipificadas. Discordamos doentendimento manifestado por Regis Prado, segundoo qual haverá tentativa quando, “apesar dasmanobras fraudulentas, o devedor permanece combens ou valores suficientes para garantir a

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execução”6. Com efeito, como destacamos noparágrafo anterior, se a conduta do agente não afetarseu patrimônio, permanecendo a possibilidade defazer frente a demanda judicial, sua ação será atípica.Esse crime somente pode ocorrer em ação judicial naesfera cível, e é indispensável que o agente tenhaconhecimento da existência da ação ajuizada.

7. Pena e ação penal

As penas cominadas são, alternativamente,detenção, de seis meses a dois anos, ou multa. Aação penal é de exclusiva iniciativa privada (art. 179,parágrafo único). No entanto, quando o crime forcometido contra a União, Estado ou Município, aação penal é pública incondicionada7, nos termos doart. 24, § 2º, do CPP, acrescentado pela Lei n. 8.699,de 27 de agosto de 1993.

1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,

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p. 505.2 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 506: “Pressuposto do crime é que o agente não sejacomerciante, pois se o for, o crime será falimentar, desdeque, com base na insolvência fraudulenta, seja requerida edeclarada a falência”.3 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 397; Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit.,v. 7, p. 105; Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penalbrasileiro, cit., v. 2, p. 448.4 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 298.5 No mesmo sentido, com absoluto acerto, Guilherme SouzaNucci, Código Penal comentado, cit., p. 595.6 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 593.7 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 480.

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CAPÍTULO XXVII - RECEPTAÇÃO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica: receptaçãosimples. 4.1. Novas figuras da Lei n.9.426/96: receptação ou favorecimento.4.2. Receptação de receptação:possibilidade. 5. Significado dogmáticodas elementares: “sabe” e “deve saber”.5.1. Síntese dos postuladosfundamentais das teorias do dolo e daculpabilidade. 5.2. Sentido e função daselementares “sabe” e “deve saber” nadefinição do crime de receptação. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Receptaçãoqualificada: tipo autônomo ou derivado.8.1. Adequação típica: receptaçãoqualificada. 8.2. Receptação simples,receptação qualificada e princípio daproporcionalidade. 8.3. Elementonormativo da receptação qualificada: noexercício de atividade comercial ou

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industrial. 9. Tipo subjetivo: adequaçãotípica: dolo direto. 9.1. Elementosubjetivo especial do injusto: emproveito próprio ou alheio. 10.Receptação culposa. 11. Autonomia dareceptação: independência relativa. 12.“Autor de crime”: a culpabilidade não émero pressuposto da pena. 13. Perdãojudicial (§ 5º, 1ª parte). 14. Receptaçãoprivilegiada (§ 5º, 2ª parte). 15.Receptação majorada (§ 6º). 16. Pena eação penal.

Capítulo VII

DA RECEPTAÇÃO

ReceptaçãoArt. 180. Adquirir, receber, transportar,

conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio,coisa que sabe ser produto de crime, ou influir paraque terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte:

Pena — reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, emulta.

• Caput com redação determinada pela Lei n.

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9.426, de 24 de dezembro de 1996.

Receptação qualificada§ 1º Adquirir, receber, transportar, conduzir,

ocultar, ter em depósito, desmontar, montar,remontar, vender, expor à venda, ou de qualquerforma utilizar, em proveito próprio ou alheio, noexercício de atividade comercial ou industrial,coisa que deve saber ser produto de crime:

Pena — reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, emulta.

• § 1º com redação determinada pela Lei n.9.426, de 24 de dezembro de 1996.

§ 2º Equipara-se à atividade comercial, paraefeito do parágrafo anterior, qualquer forma decomércio irregular ou clandestino, inclusive oExercício em residência.

• § 2º com redação determinada pela Lei n.9.426, de 24 de dezembro de 1996.

§ 3º Adquirir ou receber coisa que, por suanatureza ou pela desproporção entre o valor e opreço, ou pela condição de quem a oferece, devepresumir-se obtida por meio criminoso:

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Pena — detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano,ou multa, ou ambas as penas.

• § 3º com redação determinada pela Lei n.9.426, de 24 de dezembro de 1996.

§ 4º A receptação é punível, ainda quedesconhecido ou isento de pena o autor do crime deque proveio a coisa.

• § 4º com redação determinada pela Lei n.9.426, de 24 de dezembro de 1996.

§ 5º Na hipótese do § 3º, se o criminoso éprimário, pode o juiz, tendo em consideração ascircunstâncias, deixar de aplicar a pena. Nareceptação dolosa aplica-se o disposto no § 2º doart. 155.

• § 5º acrescentado pela Lei n. 9.426, de 24 dedezembro de 1996.

§ 6º Tratando-se de bens e instalações dopatrimônio da União, Estado, Município, empresaconcessionária de serviços públicos ou sociedadede economia mista, a pena prevista no caput desteartigo aplica-se em dobro.

• § 6º acrescentado pela Lei n. 9.426, de 24 de

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dezembro de 1996.

1. Considerações preliminares

No período de Justiniano surgiu, de forma maisclara, o crime de receptação, dividido entrereceptação pessoal e receptação real. O receptadorrecebia o mesmo tratamento dispensado ao ladrão, ea receptação era considerada cumplicidadesubsequente. Na Idade Média foi mantida a disciplinado crime de receptação da pena, que, ao longo dotempo, foi atenuada para o receptador, resultado dotrabalho insistente dos “práticos”1.

A autonomia da receptação em relação ao crimeprecedente consolidou-se, na doutrina, no alvorecerdo século XIX, e seus antecedentes político-filosóficos podem ser creditados a Carpsóvio (séculoXVII). A partir desse período, a receptação passou ater como pressuposto não apenas um crimeespecificamente contra o patrimônio, mas qualquercrime que pudesse, indevidamente, acarretarvantagem patrimonial em prol do agente. No direitocodificado, contudo, coube a Feuerbach introduzi-lano Código bávaro de 1813, do qual foi seu autor

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intelectual. Afastou-se, a partir de então, o superadoentendimento segundo o qual a receptação era umaforma de cumplicidade, ante o paradoxo de admitir-se a participação em crime já consumado.

As Ordenações Filipinas previam o crime dereceptação, embora lhe cominassem a sançãocorrespondente ao crime originário (Livro V, Título65, § 2º). O Código Criminal do Império considerava areceptação como uma espécie de cumplicidadeposterior do crime precedente. O Penal de 1890manteve a orientação do Código anterior.

A Lei n. 9.426, de 24 de dezembro de 1996,publicada no DOU de 26 de dezembro de 1996 eretificada no de 15 de janeiro de 1997, acrescentou osdois primeiros parágrafos, renumerou os outrosquatro, com pequenas alterações, além de incluir nocaput do art. 180 os verbos-núcleo “transportar” e“conduzir”.

2. Bem jurídico tutelado

Bem jurídico protegido diretamente é opatrimônio, público ou privado. Admitimos que aposse também seja objeto da tutela penal, na medidaem que representa um aspecto importante do

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patrimônio, e, podendo ser objeto do crime de furtoou roubo, satisfaz a exigência de ser produto decrime precedente; não se pode negar, contudo, quea propriedade é o bem jurídico protegido porexcelência.

Objeto de receptação somente pode ser coisamóvel, embora o Código Penal não faça essaexigência expressa na descrição típica. Nessesentido, esclarecia Nélson Hungria que “um imóvelnão pode ser receptado, pois a receptação pressupõeum deslocamento da ‘res’, do poder de quemilegitimamente a detém para o receptador, de modo atornar mais difícil a sua recuperação por quem dedireito”2.

O ser humano, vivo, por exemplo, não pode serobjeto de receptação, pela simples razão de que nãose trata de coisa. A compra ou aquisição, a qualquertítulo, de cadáver, em princípio, tampouco pode serobjeto material de receptação, pois, em tese, nãoconstitui coisa, além de não possuir, via de regra,valor econômico; trata-se, na verdade, de crimecontra o respeito aos mortos (art. 211). No entanto,quando, eventualmente, o cadáver for propriedadede alguém, passando a ter valor econômico, pode serobjeto de receptação, como, por exemplo, algo quepertence a uma instituição de ensino para estudos

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científicos e é furtado; sendo objeto de furto, poderá,na sequência, ser também objeto de receptação.

Não podem ser objeto de receptação, por outrolado, aquelas mesmas coisas que também não podemser objeto do crime de furto, como as que nãopertencem a ninguém, tais como res nullius (coisaque nunca teve dono), res derelicta (coisa que jápertenceu a alguém, mas foi abandonada peloproprietário)3 e res commune omnium (coisa de usocomum, que, embora de uso de todos, como o ar, aluz ou o calor do sol, a água do mar e dos rios, nãopode ser objeto de ocupação em sua totalidade ou innatura). Para efeitos penais, constitui res derelictaqualquer objeto abandonado pelo dono e, como tal,por ele declarado sem valor econômico, ainda quepara terceiro possa ser valioso; apoderar-se de coisade ninguém — res nullius — constitui, para o direitoprivado, forma de aquisição da propriedade de coisamóvel (ocupação), algo impossível de ocorrerquando a coisa tem dono. E assim o é porque a coisasubtraída, para constituir objeto de furto, devepertencer a alguém e nas hipóteses antesmencionadas não pertence a ninguém.

O s direitos, reais ou pessoais, finalmente,tampouco podem ser objeto de furto, pois direitosnão se confundem com coisa. Contudo, os títulos ou

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documentos que os constituem ou representampodem ser furtados ou subtraídos de seus titularesou detentores; nesses casos, sendo produto decrime antecedente, podem igualmente ser objeto dereceptação.

O objeto material do crime de receptação há deser produto de crime, isto é, há de ser o resultado,mediato ou imediato, de um fato definido como crime.É irrelevante que tal produto haja sido substituídopor outro. Embora se reconheça certa controvérsiana doutrina, a verdade é que, perante nosso CódigoPenal, que se refere apenas a “produto de crime”,inegavelmente a coisa sub-rogada, representandoproduto de crime, também pode ser objeto dereceptação. A ilicitude do produto do crimeprecedente não desaparece, evidentemente, com asubstituição por qualquer outra coisa diretamenteobtida com aquele.

Por fim, não são produto de crime os instrumentasceleris. A razão é simples: esses instrumentos nãosão produto do crime; eventual aquisição, ocultaçãoou recebimento desses poderá configurar o crime defavorecimento pessoal (art. 348), se houver aintenção de auxiliar o autor do crime a subtrair-se àação da autoridade pública.

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3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,independente de qualidade ou condição especial,menos o coautor ou partícipe do crime anterior(participar do crime anterior, por exemplo, e a seguircomprar a parte dos demais), que seja pressupostoda receptação. A receptação para eventualparticipante do crime antecedente (coautor oupartícipe) constitui pós-fato impunível4.

O § 1º, porém, com a redação determinada pela Lein. 9.426/96, tipifica um crime próprio, que somentepode ser praticado por comerciante ou industrial,mesmo que a atividade comercial seja irregular ouclandestina.

Excepcionalmente, pode ser sujeito ativo oproprietário da coisa receptada5, quando, porexemplo, esta for objeto de garantia (v. g., penhor),encontrando-se em poder de terceiro. Afinal, aocontrário do que ocorre nas hipóteses de furto,roubo, dano ou apropriação indébita, onde empregaa locução coisa alheia, na descrição do crime dereceptação o legislador refere-se apenas a “coisa”,sem se preocupar com sua titularidade. Nesseparticular, a doutrina dominante não tem admitidoque o proprietário da coisa receptada possa

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eventualmente figurar como sujeito ativo do crime dereceptação.

Sujeito passivo será sempre o sujeito passivo docrime de que proveio a coisa, bem ou objeto dareceptação; em outros termos, o sujeito passivo docrime de receptação é o mesmo sujeito passivo docrime anterior.

4. Tipo objetivo: adequação típica: receptaçãosimples

A despeito de a receptação estartopograficamente situada no Título que trata doscrimes patrimoniais, não é necessário que o crimeprecedente seja contra o patrimônio. Contudo, emrazão do bem jurídico (patrimônio) que esse tipopenal tutela, é indispensável que o pressuposto dele(crime anterior) proporcione ao sujeito passivovantagem econômica, que a receptação se encarregade garantir ou assegurar.

Receptação é o crime que produz a manutenção,consolidação ou perpetuidade de uma situaçãopatrimonial anormal, decorrente de crime anteriorpraticado por outrem6.

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O Código Penal de 1940 disciplina duasmodalidades de receptação dolosa e uma culposa: a)a receptação própria consiste em adquirir(aquisição gratuita ou onerosa), receber (a qualquertítulo) ou ocultar (esconder), em proveito próprio oualheio coisa que sabe ser produto do crime; b) nareceptação imprópria (mediação para a receptação)a ação incriminada é influir (incentivar, estimular,aliciar, convencer) para que terceiro, de boa-fé, aadquira, receba ou oculte. É indispensável que oterceiro esteja de boa-fé, caso contrário seráigualmente autor da receptação. O terceiro de boa-fénão comete crime. Distinguiu, ainda, o legislador de1940, para dispensar-lhe um tratamento mais brando,a receptação culposa, que considerou uma espéciedo gênero receptare.

A receptação própria apresenta, segundo aversão original do Código Penal de 1940, asseguintes condutas: adquirir, receber ou ocultar (asinovações — transportar e conduzir — serãoexaminadas em tópico separado). Todas elas(incluindo as novidades) direcionam-se para umobjeto determinado pelo próprio tipo penal; não paraum objeto qualquer, mas um objeto que deveapresentar uma característica peculiar, que é o fatode tratar-se de coisa produto de crime. Essa

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procedência criminosa do objeto da receptaçãodefine sua natureza acessória, dependente,parasitária de outro crime, na linguagem de Hungria.

A primeira conduta incriminada está representadapelo verbo “adquirir”, que pode significar compra,permuta, troca, dação em pagamento, recebimento deherança. Como destacava Magalhães Noronha7,verifica-se o crime mesmo que o título não sejainjusto. Por exemplo, o herdeiro que, sabendo daorigem criminosa da coisa, a adquire por sucessão; ocredor que, para receber, aceita a coisa que sabe serproduto de crime etc. Aquisição é a obtenção dacoisa a título de domínio, em definitivo. Somente seaperfeiçoa com a efetiva tradição da coisa. Antes datraditio pode existir tentativa de receptação.

Na aquisição onerosa é indiferente que o preçopago seja vil ou justo. O preço vil, embora sejaindício legal da receptação culposa, é irrelevante nareceptação dolosa. A normalidade ou justeza dopreço, por si só, não afasta a possibilidade dareceptação dolosa, que, como veremos, repousa emoutros fundamentos.

A segunda figura tipificada está representadapelo verbo receber, que tem sentido maisabrangente; pode significar aceitar o que lhe éoferecido ou entregue; recolher o que lhe é devido,

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entrar na posse da coisa que lhe é entregue etc. Naversão de Hungria, recebimento é a tomada de posseda coisa entregue a qualquer outro título que nãoseja o de propriedade. Hungria8 exemplificava com“receber a coisa em depósito ou para guardá-la, ouem penhor, ou para usá-la, conservá-la, consumi-la”.Nesse exemplo de Hungria constata-se que já estáabrangido o “utilizar de qualquer modo”, bem como anovidade da receptação qualificada, “ter emdepósito”.

Por fim, a terceira figura da receptação própria éconstituída pelo verbo “ocultar”, que,ontologicamente, expressa a ideia de esconderfraudulentamente alguma coisa de alguém. Somentese oculta algo que deveria ser público ou doconhecimento geral. Ocultar é dissimular a posse oudetenção da coisa de origem criminosa, escondendo-a; é colocar a coisa em local onde seja difícilencontrá-la ou localizá-la. Tem razão Hungria emrechaçar o entendimento de que na ocultação estariaimplícita a aquisição ou recebimento da coisa, que,naturalmente, precederiam aquela. O seguinteexemplo de Hungria9 deixa esse aspecto muito claro:“Quem apreende, por exemplo, a coisa abandonadapelo ladrão para acobertar-se de suspeitas, e aoculta, para posteriormente entregar-lha, mediante

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recompensa, é, incontestavelmente, receptador, e, noentanto, não se pode dizer que tenha adquirido acoisa”.

Por fim, a denominada receptação imprópria,descrita na segunda parte do caput, está vazada nosseguintes termos: ou influir para que terceiro, deboa-fé, a adquira, receba ou oculte.

Para Magalhães Noronha10, o agente se conduzcomo mediador, pois o agente não executa as açõesincriminadas: apenas estimula o terceiro de boa-fé apraticá-las. Em sentido contrário posiciona-se PauloJosé da Costa Jr.11, sustentando que, ao influir queterceiro de boa-fé fique com a coisa produto decrime, não age como mediador, mas como autorintelectual do crime, que se aperfeiçoa mesmo quesua sugestão não seja aceita.

A solução a esse impasse é facilmente encontradacom a resposta à seguinte questão: afinal, qual é aconduta típica imputada ao sujeito ativo dareceptação imprópria? Resposta óbvia: influir! Ora,sendo essa a conduta incriminada, evidentemente arazão está com Paulo José da Costa Jr.: quem influinos termos tipificados não é simples mediador daação criminosa, mas verdadeiro e único autor dareceptação imprópria, até porque, o terceiro induzido

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a erro deve estar de boa-fé, caso contrário serácoautor da receptação.

Na receptação imprópria, a conduta de influir,que teoricamente representaria mera atividade departícipe, nesse tipo de crime constitui o núcleo dotipo penal. Assim, quem influir para que o terceiro deboa-fé pratique qualquer das ações elencadas nodispositivo legal não será partícipe, mas autor docrime de receptação, e o terceiro de boa-fé nãopratica crime algum. Não se pode esquecer que opartícipe não executa a conduta descrita no preceitoprimário da norma penal — no caso, influir —, masrealiza uma atividade secundária, que contribui,estimula ou favorece a execução da condutaproibida12.

A receptação é crime estritamente comissivo,sendo impossível praticá-lo mediante omissão, salvoa figura representada pelo verbo-núcleo “ocultar”.Quem não revela onde se encontra o produto decrime do qual não participou não comete crimealgum, a não ser que tenha o dever jurídico de fazê-lo (art. 13, § 2º).

Convém, finalmente, destacar a omissão dolegislador de 1996 relativamente à receptaçãoimprópria, contida na parte final do caput do art.180. Na verdade, o legislador olvidou-se de

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acrescentar à figura da receptação imprópria —representada pelo verbo “influir” — as condutas de“transportar” e de “conduzir”, as mesmas que foramintroduzidas na figura da receptação própria pelaLei n. 9.426/96. Assim, por exemplo, se alguém influirpara que terceiro de boa-fé transporte ou conduzacoisa que sabe ser produto de crime, praticará umaconduta penalmente irrelevante. Essa é apenas umadas tantas incoerências do legislador de reformaspontuais do Código Penal, que está sofrendopaulatina destruição em sua consistência sistemática.

A receptação descrita no caput apresenta acuriosidade de ser um tipo misto alternativo e, aomesmo tempo, cumulativo. Com efeito, se o agentepraticar cumulativamente as condutas de adquirir,receber, transportar, conduzir ou ocultar coisaproduto de crime, praticará um único crime,ocorrendo o mesmo se influir para que terceiro deboa-fé adquira, receba ou oculte coisa provenientede crime. Trata-se de crimes de ação múltipla ou deconteúdo variado. No entanto, se o agente praticaras duas espécies de receptação — própria eimprópria —, ou seja, primeiro adquirir coisa quesabe ser produto de crime e depois influenciar paraque terceiro de boa-fé faça o mesmo, cometerá doiscrimes; nessas modalidades, estamos diante de tipos

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mistos cumulativos, e não alternativos, como nascircunstâncias antes relacionadas.

4.1 Novas figuras da Lei n. 9.426/96: receptação oufavorecimento

Não se trata de profunda modificação conceitual,mas de simples ampliação de sua abrangência,incluindo no caput, ao lado das condutastradicionais — adquirir, receber, ocultar e influir —,novos núcleos típicos, que, em si mesmos, nãoapresentam nenhum conteúdo lesivo: transportar econduzir.

Como “presente de Natal” — dezembro de 1996—, o legislador brasileiro incluiu no caput do art. 180do CP mais duas condutas de “receptar”:transportar ou conduzir, além das novidadesincluídas nos §§ 1º e 2º, desfigurando a naturezajurídica e histórica da receptação. Dificilmentetransportar e conduzir poderão assumir a conotaçãosugerida pela definição de receptação de acarretar amanutenção, consolidação ou perpetuidade de umasituação patrimonial anormal, ou simplesmente doproveito econômico decorrente de crime anteriorpraticado por outrem.

O Código Penal de 1940 fez a distinção entre

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favorecimento e receptação: classificou o primeirocomo crime contra a administração da justiça e asegunda entre os crimes contra o patrimônio. Oanimus lucrandi é que distingue a receptação dofavorecimento.

Em verdade, a distinção entre receptação e crimede favorecimento data do início do século XIX, nomesmo período em que se difundiu a autonomia dareceptação em relação ao crime precedente. Areceptação pessoal recebeu a qualificação defavorecimento, e à receptação real atribuiu-se onomen juris de receptação13.

As condutas de “transportar” ou “conduzir”,enxertadas pela Lei n. 9.426/96, não implicam, emregra, aquele animus lucrandi próprio da receptação,constituindo verdadeira anomalia tipológica nodireito pátrio, simples amostra da criminosaretalhação do Código Penal a que se estáprocedendo com a inflação diária, desordenada edescriteriosa de leis esparsas, chamada de “reformaspontuais”. Essa nossa crítica à nova estrutura docrime de receptação não logrou unanimidade peranteos especialistas, como se pode observar da seguinteobservação: “... a simples introdução de condutasnovas, aliás típicas do comércio clandestino deautomóveis, não tem o condão de romper o objetivo

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do legislador de qualificar a receptação, alterando aspenas mínima e máxima que saltaram da faixa de 1 a 4anos para 3 a 8 anos”14. No entanto, reforçandonossa visão crítica, destacamos o magistério deRegis Prado, que, referindo-se à receptaçãoqualificada, assevera: “Não se pode olvidar que areferida norma foi estruturada num manifesto errotécnico de composição típica, já que o legisladorinseriu no § 1º do art. 180 um tipo penalindependente, sem atrelagem ao tipofundamental”15.

4.2 Receptação de receptação: possibilidade

É admissível receptação de receptação, ou seja, amesma coisa pode ser objeto material de sucessivasreceptações. Tanto é produto de crime o resultadodo crime originário como aquele que provém deintercorrente receptação. No entanto, se na cadeiacriminosa houver aquisição ou recebimento porterceiro de boa-fé, estará configurada uma soluçãoda continuidade do status ilícito criado pelo crimeoriginário. Essa anormalidade jurídica somenteseria mantida por meio de intercorrentes aquisiçõesde má-fé. Assim, quem adquire coisa que fora

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recebida ou adquirida por terceiro de boa-fé nãopratica crime de receptação, mesmo que saiba que acoisa provém de crime. Esse já era o entendimentoesposado por Maggiore, segundo o qual “não hácrime no caso de quem adquiria as coisas delituosasde um possuidor de boa-fé já que estas coisas emconsequência da posse de boa-fé perderam aqualidade de delituosas”16.

Nem sempre, contudo, a aquisição, recebimentoou ocultação de produto de crime constituireceptação, podendo, conforme as circunstâncias,tipificar outra infração penal. Quem adquire ourecebe, para guardar, por exemplo, moeda falsa, nãopratica receptação, mas o crime do art. 289, § 1º, doCP; quando o faz para tornar seguro o produto docrime, em auxílio a outrem, incorre em favorecimentoreal (art. 349).

A aquisição ou recebimento de coisas produto devários crimes caracteriza apenas uma receptação,desde que, logicamente, sejam adquiridas em umaúnica oportunidade, isto é, por meio de uma únicaação.

5. Significado dogmático das elementares: “sabe” e

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“deve saber”

O legislador brasileiro contemporâneo, ao definiras condutas típicas, continua utilizando as mesmastécnicas que eram adotadas na primeira metade doséculo XX, ignorando a extraordinária evolução dateoria geral do delito. Continua utilizando expressõescomo “sabe” ou “deve saber”, que, outrora, eramadotadas para identificar a natureza ou espécie dedolo. A adoção dessa técnica superada constituidemonstração evidente do desconhecimento doatual estágio da evolução do dolo e da culpabilidade.Ignora nosso legislador que a consciência dailicitude não é mais elemento do dolo, mas daculpabilidade, e que tal consciência, por construçãodogmática, não precisa mais ser atual, bastando queseja potencial, independente de determinação legal.A atualidade ou simples possibilidade deconsciência da ilicitude servirá apenas para definir ograu de censura, a ser analisado na dosagem depena, sem qualquer influência na configuração dainfração penal.

Essa técnica de utilizar em alguns tipos penais asexpressões “sabe” ou “deve saber” se justificava, nopassado, quando a consciência da ilicitude eraconsiderada, pelos causalistas, elemento

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constitutivo do dolo, a exemplo do dolus malus dosromanos, um dolo normativo. No entanto, essaconstrução está completamente superada, comosuperada está a utilização das expressões “sabe” e“deve saber” para distinguir a natureza ou espéciedo dolo, diante da consagração definitiva da teorianormativa pura da culpabilidade, a qual retirou odolo da culpabilidade, colocando-o no tipo, extraindodaquele a consciência da ilicitude e situando-a naculpabilidade, que passa a ser puramente normativa.

Para esclarecermos nossa crítica à equivocadautilização das expressões “sabe” e “deve saber” naconstrução dos tipos penais, precisamos fazer umapequena digressão sobre a evolução da teoria dodelito, particularmente em relação ao dolo e àculpabilidade. Com efeito, a teoria do delitoencontra no finalismo um dos mais importantespontos de sua evolução. Uma das mais carascontribuições da teoria finalista, que fora iniciadapelo normativismo neokantiano, foi a extração daculpabilidade de todos aqueles elementos subjetivosque a integravam até então, dando origem, assim, auma concepção normativa “pura” da culpabilidade, aprimeira construção verdadeiramente normativa, nodizer de Maurach.

Como se sabe, o finalismo desloca o dolo e a

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culpa para o injusto, retirando-os de sua tradicionallocalização, a culpabilidade, com o que a finalidade élevada ao centro do injusto. Como consequência, naculpabilidade concentram-se somente aquelascircunstâncias que condicionam a reprovabilidade daconduta contrária ao direito, e o objeto dareprovação repousa no próprio injusto17.

O conteúdo da culpabilidade finalista(normativa pura) exibe substanciais diferenças emrelação ao modelo normativo neokantiano, quemanteve dolo e culpa como seus elementos. Diga-semais uma vez que, enquanto na concepção causalistao dolo e a culpa eram partes integrantes daculpabilidade, no finalismo passam a ser elementos,não desta, mas do injusto. Também na correntefinalista inclui-se o conhecimento da proibição naculpabilidade, de modo que o dolo é entendidosomente como dolo natural (puramentepsicológico), e não como no causalismo, que eraconsiderado o dolus malus dos romanos, constituídode vontade, previsão e conhecimento da realizaçãode uma conduta proibida18.

5.1 Síntese dos postulados fundamentais das teoriasdo dolo e da culpabilidade

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Para melhor compreendermos a estrutura do doloe da culpabilidade e, particularmente, adesintegração e reestruturação de ambos, faz-senecessário, pelo menos, passar uma vista d’olhos naevolução das teorias do dolo e da culpabilidade.

A teoria extremada do dolo, a mais antiga, situao dolo na culpabilidade e a consciência da ilicitude,que deve ser atual, no próprio dolo. Defende aexistência de um dolo normativo, constituído devontade, previsão e conhecimento da realização deuma conduta proibida (consciência atual da ilicitude).Por isso, para essa teoria, o erro jurídico-penal,independentemente de ser erro de tipo ou erro deproibição, exclui sempre o dolo, quando inevitável,por anular ou o elemento normativo (consciência dailicitude) ou o elemento intelectual (previsão) dodolo. Equipara, assim, as duas espécies de erroquanto a seus efeitos19.

A locução “deve saber”, se for considerada comoindicativa de dolo — direto ou indireto —, revive, decerta forma, a superada teoria limitada do dolo, comsua “cegueira jurídica”, sugerida por Mezger, aorecriar uma espécie de “dolo presumido”. Naverdade, para relembrar, a teoria limitada do dolo foiapresentada como um aperfeiçoamento da teoriaextremada, e, procurando evitar as lacunas de

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punibilidade que esta possibilitava, equiparou ao“conhecimento atual da ilicitude” a “cegueirajurídica” ou “inimizade ao direito”.

Segundo Welzel20, o aperfeiçoamento da teoriaextremada do dolo foi buscado, sem sucesso, deduas formas: criando, de um lado, um tipo auxiliar de“culpa jurídica”, pela falta de informação jurídica doautor, e, de outro lado, pela relevância da “cegueirajurídica” ou “inimizade ao direito”, adotadas peloProjeto de Código Penal de 1936. Para Mezger, hácasos em que o autor do crime (normalmente umdelinquente habitual) demonstra desprezo ouindiferença tais para com os valores do ordenamentojurídico que, mesmo não se podendo provar oconhecimento da antijuridicidade, deve ser castigadopor crime doloso21.

De certa maneira, ainda que por via transversa,com essa “equiparação” ou “ficção”, Mezgersubstitui, na teoria limitada do dolo, oconhecimento atual da ilicitude pelo conhecimentopresumido, pelo menos nesses casos. Assim,Mezger, seu grande idealizador, introduziu,finalmente, o polêmico elemento denominadoculpabilidade pela condução de vida, criando,dessa forma, a possibilidade de condenação do

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agente não por aquilo que ele faz, mas por aquilo queé, dando origem ao combatido direito penal deautor.

No entanto, essa proposição de Mezger, depresumir-se o dolo quando a ignorância da ilicitudedecorresse de “cegueira jurídica” ou de“animosidade com o direito”, isto é, de condutasincompatíveis com uma razoável concepção dedireito ou de justo, não foi aceita, diante da incertezade tais conceitos22. A mesma sorte merece ter aexpressão “deve” ou “deveria saber”, que cria umaespécie de “dolo presumido”, dissimulador deautêntica responsabilidade objetiva, incompatívelcom a teoria do dolo; deve ela ser endereçada àsconstruções jurídicas que se utilizam de subterfúgioscomo as expressões antes referidas, por violarem oprincípio da culpabilidade.

No entanto, as teorias do dolo — extremada elimitada — caíram em desuso, ante a reforma penalalemã da segunda metade do século XX, que aderiuaos princípios fundamentais das teorias daculpabilidade. Não se pode perder de vista que ateoria estrita da culpabilidade parte dareelaboração dos conceitos de dolo e deculpabilidade. Empreendida pela doutrina finalista,com a qual surgiu, cujos representantes maiores

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foram Welzel, Maurach e Kaufmann, essa teoriasepara o dolo da consciência da ilicitude. Assim, odolo, em seu aspecto puramente psicológico — dolonatural —, é transferido para o injusto, passando afazer parte do tipo penal. A consciência da ilicitudee a exigibilidade de outra conduta passam a fazerparte da culpabilidade, num puro juízo de valor. Aculpabilidade passa a ser um pressuposto básico dojuízo de censura23.

Dolo e consciência da ilicitude são, portanto,para a teoria da culpabilidade, conceitoscompletamente distintos e com diferentes funçõesdogmáticas. Como afirma Muñoz Conde24, “oconhecimento da antijuridicidade, tendo naturezadistinta do dolo, não requer o mesmo grau deconsciência; o conhecimento da antijuridicidade nãoprecisa ser atual, pode ser simplesmente potencial...”.

5.2 Sentido e função das elementares “sabe” e“deve saber” na definição do crime dereceptação

Dolo é o conhecimento e a vontade da realizaçãodo tipo penal. Todo dolo tem um aspecto intelectivoe um aspecto volitivo. O aspecto intelectivo abrange

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o conhecimento atual de todas as circunstânciasobjetivas que constituem o tipo penal25. Para aconfiguração do dolo, exige-se a consciência daquiloque se pretende praticar. Essa consciência, noentanto, deve ser atual, isto é, deve estar presente nomomento da ação, quando ela está sendo realizada. Éinsuficiente, segundo Welzel, a potencialconsciência das circunstâncias objetivas do tipo,uma vez que prescindir da consciência atual equivalea destruir a linha divisória entre dolo e culpa,convertendo aquele em mera ficção26.

A previsão, isto é, a representação ouconsciência, deve abranger correta e completamentetodos os elementos essenciais do tipo, sejam elesdescritivos ou normativos. Mas essa previsãoconstitui somente a consciência dos elementosintegradores do tipo penal, ficando fora dela aconsciência da ilicitude, que, como já afirmamos,está deslocada para o interior da culpabilidade27.

É desnecessário o conhecimento da proibição daconduta, sendo suficiente o conhecimento dascircunstâncias de fato necessárias à composição dotipo. A Lei n. 9.426/96, ao disciplinar o crime dereceptação, utilizou as expressões “‘sabe’ serproduto de crime” (caput) e “‘deve’ saber ser

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produto de crime” (§ 1º do mesmo dispositivo). Avelha doutrina, ao analisar as expressões “sabe” e“deve saber”, via em ambas a identificação doelemento subjetivo da conduta punível: o dolodireto era identificado pela elementar “sabe” e odolo eventual pela elementar “deve saber” (algunsautores identificavam, nesse caso, a culpa)28. Aliás,foi provavelmente com esse sentido que se voltou autilizar essas expressões, já superadas, na Lei n.9.426/96.

Na hipótese do “sabe” — afirmavam osdoutrinadores —, há plena certeza da origemdelituosa da coisa. Nesse caso, não se trata de merasuspeita, que pode oscilar entre a dúvida e a certeza,mas há, na realidade, plena convicção da origemilícita da coisa receptada. Assim, a suspeita e adúvida não servem para caracterizar o sentido daelementar “sabe”. Logo — concluíam —, trata-se dedolo direto.

Na hipótese do “deve saber”, a origem ilícita doobjeto material, afirmavam, significa somente apossibilidade de tal conhecimento, isto é, a potencialconsciência da ilicitude do objeto. Nascircunstâncias, o agente deve saber da origem ilícitada coisa, sendo desnecessária a ciência efetiva:basta a possibilidade de tal conhecimento. Dessa

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forma, na mesma linha de raciocínio, concluíam, trata-se de dolo eventual29.

No entanto, essa interpretação indicadora dodolo, por meio do “sabe” ou “deve saber”,justificava-se quando vigia, incontestavelmente, ateoria psicológico-normativa da culpabilidade, quemantinha o dolo como elemento da culpabilidade,situando a consciência da ilicitude no próprio dolo.Contudo, a sistemática hoje é outra: a elementar“‘sabe’ que é produto de crime” significa terconsciência da origem ilícita do que estácomprando, isto é, ter consciência da ilicitude daconduta (elemento da culpabilidade normativa), e aelementar “deve saber”, por sua vez, significa apossibilidade de ter essa consciência da ilicitude.Logo, considerando que esse elemento normativo— consciência da ilicitude — integra a culpabilidade,encontrando-se, portanto, fora do dolo, somoslevados a concluir que as elementares referidas sãoindicativas de graduação da culpabilidade, e não dodolo, como entendia a velha doutrina.

Em contrapartida, a consciência do dolo — seuelemento intelectual —, além de não se limitar adeterminadas elementares do tipo, como “sabe” ou“deve saber”, não se refere à ilicitude do fato, mas asua configuração típica, devendo abranger todos os

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elementos objetivos, descritivos e normativos dotipo. Ademais, o conhecimento dos elementosobjetivos do tipo, ao contrário da consciência dailicitude, tem de ser atual, sendo insuficiente queseja potencial, sob pena de destruir a linha divisóriaentre dolo e culpa, como referia Welzel. Em sentidosemelhante manifesta-se Muñoz Conde30, afirmandoque: “O conhecimento que exige o dolo é oconhecimento atual, não bastando um meramentepotencial. Quer dizer, o sujeito deve saber o que faz,e não haver devido ou podido fazer”.

Na verdade, a admissão da elementar “devesaber” como identificadora de dolo eventual impedeque se demonstre in concreto a impossibilidade deter ou adquirir o conhecimento da origem ilícita doproduto receptado, na medida em que talconhecimento é presumido. E essa presunção legaloutra coisa não é que autêntica responsabilidadeobjetiva: presumir o dolo onde este não existe. Noentanto, reconhecendo-se a elementar “deve saber”como indicadora de potencial consciência dailicitude, isto é, como elemento integrante daculpabilidade, poder-se-á demonstrar, quando for ocaso, sua inocorrência ou mesmo a existência deerro de proibição, permitindo melhor adequação daaplicação da lei.

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Com efeito, ante a reelaboração efetuada porWelzel do conceito de consciência de ilicitude,introduzindo-lhe o dever de informar-se, flexibilizou-se esse elemento, sendo suficiente a potencialconsciência da ilicitude. No entanto, não basta,simplesmente, não ter consciência do injusto parainocentar-se. É preciso indagar se haviapossibilidade de adquirir tal consciência e, emhavendo essa possibilidade, se ocorreu negligênciaem não adquiri-la ou falta ao dever concreto deprocurar esclarecer sobre a ilicitude da condutapraticada31.

A expressão “deve saber”, como elementar típica,é pura presunção, incompatível com o direito penalda culpabilidade. Precisa-se, enfim, ter semprepresente que não se admitem mais presunçõesirracionais, iníquas e absurdas, pois, a despeito deexigir-se uma consciência profana do injusto,constituída dos conhecimentos hauridos emsociedade, provindos das normas de cultura, dosprincípios morais e éticos, não se pode ignorar ahipótese, sempre possível, de não se ter ou não sepoder adquirir essa consciência. Com efeito, nemsempre o dever jurídico coincide com a lei moral.Não poucas vezes o direito protege situaçõesamorais e até imorais, contrastando com a lei moral,

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por razões de política criminal, de segurança socialetc. Assim, nem sempre é possível estabelecer, apriori, seja o crime uma ação imoral32. A açãocriminosa poder ser, eventualmente, até moralmentelouvável (v. g., art. 121, § 1º, do CP). A norma penal,por sua particular força e eficácia, induz osdetentores do poder político a avassalar a tutela decertos interesses e finalidades, ainda quecontrastante com os interesses gerais do gruposocial.

Por derradeiro, constar de texto legal a atualidadeou potencialidade de consciência do ilícito é erroniaintolerável, uma vez que a ciência penal encarregou-se de sua elaboração interpretativa. A constataçãode sua atualidade ou mera possibilidadefundamentará a maior ou menor reprovabilidade daconduta proibida, a ser avaliada no momento deaplicação da pena, e jamais como identificadora dodolo no próprio tipo penal.

Concluindo, a previsão, isto é, o conhecimento,deve abranger todos os elementos objetivos enormativos da descrição típica. E esse conhecimentodeve ser atual, real, concreto, e não meramentepresumido. Agora, a consciência da ilicitude, essasim pode ser potencial, mas será objeto de análisesomente no exame da culpabilidade, que também é

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predicado do crime33.De todo o exposto, conclui-se que as elementares

“sabe” e “deve saber” não são — ao contrário quesustentava a antiga doutrina penal brasileira —indicativas da espécie de dolo (direto ou eventual),mas configuram tão somente elementos normativosdo tipo, que estabelecem a graduação da maior oumenor censura da conduta punível. Enfim, ignoramoscompletamente a existência das elementares “sabe” e“deve saber”, para efeito de classificação dasespécies de dolo, no crime de receptação dolosa, atéporque o dolo eventual não se compõe da simplespossibilidade de consciência (deve saber), comosustentava a teoria da probabilidade.

O grau de reprovação — para concluir — sobrequem age sem saber, apenas podendo saber, e sobrequem age efetivamente sabendo, isto é, conscienteda ilicitude da sua conduta, não pode ser o mesmo.Manifesta-se Jescheck34 admitindo uma diferençamaterial entre o atuar conscientemente contra odireito e a sua infração inconsciente, consequentede erro vencível. Não se pode reprovar quem nãosabia, mas apenas podia saber, igualmente a quemefetivamente sabia, isto é, a quem tinha a realconsciência da ilicitude. Sem dúvida alguma a

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conduta de quem tinha real consciência da ilicitude émuito mais censurável. E é em virtude dessadiferença no grau de reprovação que, emborapunindo-se quem age com consciência potencial,deve diminuir a pena aplicável, proporcionalmenteao menor juízo de reprovação. Diminui-se a penaaplicável, mas não se afasta a culpabilidade, que, nascircunstâncias, pode ser reconhecidamentediminuída.

6. Consumação e tentativa

A receptação própria (1ª figura) é crime materiale consuma-se com a efetiva tradição da coisaproveniente de crime.

N a receptação própria é perfeitamenteadmissível a tentativa, considerando-se tratar-se decrime material; por conseguinte, admite ofracionamento de sua fase executória. Deve-sedestacar que o simples acordo entre o ladrão e ofuturo receptador não constitui tentativa. Contudo,se esse acordo for celebrado antes da prática docrime anterior, poderá, em princípio, configurar aparticipação do pretenso receptador, como coautorou partícipe, dependendo das circunstâncias

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concretas (art. 29 do CP).A ação delitiva nas modalidades de transportar,

conduzir e ocultar configura crime permanente, cujaconsumação se protrai no tempo, possibilitando aprisão em flagrante, enquanto perdurar a ação. Nareceptação qualificada, além das mesmas condutasantes referidas, também ter em depósito e expor àvenda constituem crime permanente.

N a receptação imprópria (2ª figura), o crime éformal, consumando-se com a influência exercidapelo sujeito ativo, embora parte da jurisprudênciaentenda necessária a realização da conduta típicapelo induzido. Na verdade, ao descrever essa espéciede receptação, o Código Penal não exige que oterceiro de boa-fé acabe praticando a conduta a queo autor pretendeu induzi-lo. Assim, consuma-se areceptação imprópria com a simples influênciaexercida por aquele. Questão que merece cuidado é,contudo, o exame da idoneidade e eficácia do atopraticado para influenciar terceiro para adquirir,receber ou ocultar o produto de crime.

A tentativa, diante da natureza formal dessaespécie de receptação, é, teoricamente, inadmissível.

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7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum, na receptação própria,já que não exige qualquer qualificação ou condiçãoespecial do sujeito ativo; doloso, tanto nareceptação simples quanto na qualificada; culposo,com características peculiares, descrito no § 3º;material (receptação própria), por se tratar de crimeque deixa vestígios; formal (receptação imprópria),sendo desnecessária a produção do resultado;comissivo: as condutas implicam ações ativas;omissivo, na modalidade de “ocultar”; instantâneo,que se esgota com a ocorrência do resultado;permanente, nas formas de “transportar, conduzir,ocultar, ter em depósito e expor à venda”, cujaexecução se alonga no tempo; unissubjetivo,podendo ser praticado por um agenteindividualmente; plurissubsistente: na maioria dascondutas dolosas, vários atos compõem a condutapunível.

8. Receptação qualificada: tipo autônomo ou derivado

A Lei n. 9.426/96 deu nova redação ao § 1º do art.180, substituindo a receptação culposa por uma

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figura que recebeu a denominação de receptaçãoqualificada.

A simples inclusão no caput dos verbos“transportar” e “conduzir”, por si só, já desnaturoucompletamente o crime de receptação, que tem osentido de receptar, isto é, adquirir, receber ouocultar coisa de procedência criminosa (DicionárioAurélio). O paradoxo se completa com a inclusão dosdois primeiros parágrafos, que estariam mais bemsituados em um tipo penal autônomo, pois, comoassevera Alberto Silva Franco, força é convir que otipo, tal como foi estruturado, expressa umapéssima qualidade técnica de composição típica35.

Essas inovações, inclusive no plano de técnicalegislativa, estimularam o questionamento quanto àdenominação “receptação qualificada”. Na lição deDamásio de Jesus, “a Lei 42/99 atribuiu ao parágrafoa denominação ‘receptação qualificada’. Ocorre queo dispositivo contém uma norma de ampliação. Alémdisso, o crime de receptação, mesmo com a novaredação, não possui nenhum tipo qualificado. E o §1º, a que se refere o § 2º, não define figura típicaqualificada. Trata-se de uma figura penalindependente: contém verbos que não estãoprevistos no caput, repete outros e exige elementos

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subjetivos do tipo”36. Seguindo a mesma orientaçãomanifestou-se Alberto Silva Franco, para quem,“antes de mais nada, não se compreende que sedenomine ‘receptação qualificada’, não uma figuracriminosa derivada de um tipo básico mas, sim, umtipo com plena autonomia conceitual”37.

A qualificadora constitui verdadeiro tipo penal— tipo derivado —, com novos limites, mínimo emáximo, mais elevados, dentro dos quais serácalculada a pena-base. A qualificadora acrescentaelementos acidentais que alteram o tipo fundamental,com o fim de justificar a elevação da pena nelecominada. Essa, pode-se afirmar, é a construçãotipológica tradicional do nosso sistema jurídico.Contudo, isso não quer dizer que a falta de técnicalegislativa, com a inclusão de algumas condutasinexistentes no tipo fundamental e a inclusão deelementos normativos e subjetivos, seja suficientepara desnaturar conceitualmente a figura qualificadada receptação, assim denominada pelo legislador etopologicamente situada em parágrafo do artigodefinidor do tipo básico, que, a nosso juízo, ésuficiente para identificá-las. Socorre-nos GuilhermeNucci, que conclui: “Portanto, a simples introduçãode condutas novas, aliás típicas do comércioclandestino de automóveis, não tem o condão de

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romper o objetivo do legislador de qualificar areceptação, alterando as penas mínima e máxima quesaltaram da faixa de 1 a 4 anos para 3 a 8 anos”38.

Não se pode negar, enfim, que na tipificação dareceptação qualificada estão presentescircunstâncias especiais e acidentais — crimepróprio; elemento normativo — no exercício deatividade comercial ou industrial; além dos verbos-núcleo especiais, que justificam a elevação dacensura penal.

Finalmente, há outros aspectos relativos àreceptação qualificada que demandam maior reflexão,especialmente a hipótese de violação do princípioda proporcionalidade.

8.1 Adequação típica: receptação qualificada

A receptação qualificada é crime próprio,exigindo do sujeito ativo uma qualidade especial,qual seja, tratar-se de comerciante ou industrial, quedeve praticá-lo no exercício de seu misterprofissional, mesmo que irregular ou clandestino.Essa exigência legal não apenas reconhece a maiordesvalia da ação executada pelo agente como afastaa possibilidade de o cidadão comum, isto é, sem a

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qualificação especial mencionada, responderdiretamente por essa espécie de infração penal. Naverdade, esse somente poderá ser alcançado pormeio do concurso eventual de pessoas.

Na elaboração desse tipo penal, mais uma vez olegislador voltou a exceder-se ao elencar as condutasnucleares, representadas por doze verbos, mesmotratando-se de um tipo misto alternativo, isto é, deconteúdo variado. Os verbos nucleares são osseguintes: “adquirir, receber, transportar, conduzir,ocultar, ter em depósito, desmontar, montar,remontar, vender, expor à venda e utilizar”.

De modo geral, as condutas relacionadas nodispositivo em exame não trazem em seu bojo aquelaforça lesiva típica dos crimes mais graves do CódigoPenal (matar, extorquir, sequestrar, constranger etc.).Essas condutas podem inserir-se naquelas queFlorian39 denominava “moralmente inocentes”. Porisso, somente com o complemento de elementosnormativos e subjetivos poderão tornar-sepenalmente relevantes. Essa complementação, queestá contida no texto legal, é a “coisa... produto decrime”. No entanto, muitas vezes a descrição objetivada conduta proibida necessita não apenas deelementos normativos, como reconhecera Mayer40,

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mas também de elementos subjetivos, querepresentam estados anímicos orientadores daconduta executada pelo agente. Por isso, qualquerdas condutas descritas praticadas pelo sujeito ativodevem, necessariamente, ter como objetivo aobtenção de proveito, para si ou para outrem; emoutros termos, o agente deve agir com animuslucrandi.

Quanto ao sentido e ao conteúdo das locuções“sabe” e “deve saber”, que para nós são elementosnormativos, receberam nossas considerações emoutro tópico, e, como o próprio Damásio de Jesusreconhece, “esses elementos típicos não estãosituados no plano da vontade, pertencendo aointelecto. Nada têm que ver, pois, com o dolo, sejadireto ou eventual, ou com a culpa”41.

As condutas representadas pelos verboscontidos no caput foram examinadas em sedeprópria, para onde remetemos o leitor, evitando suarepetição.

Ter em depósito significa receber produto decrime, retendo-o e conservando-o, em proveitopróprio ou de terceiro. Esse depósito, recebido porcomerciante ou industrial, pode ser gratuito ouoneroso. Essa modalidade de conduta, de duvidosatécnica legislativa enquanto definidora de ação

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humana, afasta possível discussão sobre como acoisa produto de crime veio parar nas mãos dosujeito ativo, isto é, se houve aquisição, recebimentoou “qualquer outra forma” de utilização. Por outrolado, se facilita a repressão estatal, dificultasobremodo a defesa do imputado, na medida em queinverte o ônus da prova, tendo de demonstrar que, adespeito de tal produto encontrar-se em suasdependências, desconhecia sua origem ilícita, nãoautorizou nem tomou parte na ação de depositar e atéque não sabia da existência de tal depósito. Enfim,trata-se de uma figura que, ademais de constituircrime permanente, consagra indisfarçávelresponsabilidade objetiva.

Desmontar significa desarmar determinadomecanismo, invenção, veículo, computador ouqualquer outro aparato, separando-lhe asrespectivas peças, total ou parcialmente. Adesmontagem configura-se sem necessidade detornar o objeto desmontado inútil a sua finalidadeoriginal. A desmontagem não implica,necessariamente, o ato de ter em depósito, isto é,aquela pode ocorrer sem a existência deste, que, seexistir, não alterará a configuração típica, quecontinua sendo crime único (conteúdo variado). Oóbvio ululante nos ensina que somente pode ser

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desmontado algo que tenha sido montado, e que taisoperações se inserem em uma regra natural inversada ordem em que aparecem no tipo penal, ou seja,montar, desmontar e, finalmente, remontar; essa,enfim, é a ordem natural das coisas: montar,desmontar e remontar.

Montar significa encaixar ou arrumardeterminados componentes, cada qual em suaposição funcional, cujo somatório representará outroobjeto, artefato ou instrumento resultante doconjunto harmonioso de peças previamenteelaboradas normalmente para essa finalidade. Comoo objeto material da receptação, em qualquer desuas espécies, deve, necessariamente, ser produtode crime, fica-se a imaginar aquele exemplotradicional do furto continuado, em que o nubente,pretendendo casar-se e não dispondo dos recursosnecessários, vai subtraindo da indústria em quetrabalha peças individuais, que, ao final, montadas,garantem-lhe a geladeira de que necessita. Asdiversas subtrações efetuadas tipificam o conhecidofurto continuado. Quem, nas circunstâncias,podendo saber da origem criminosa das peças,montá-la, visando proveito próprio ou de terceiro,em princípio praticaria receptação qualificada. É umpouco complicado admitir essa tipificação,

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especialmente considerando a abismal sançãocominada (3 a 8 anos de reclusão); essa conduta,dependendo do tipo de material produto de crimeque é montado, está mais para favorecimento real(art. 349) do que para receptação qualificada, veniaconcessa. Enfim, a casuística, certamente, permitirá amelhor adequação típica, ficando apenas a lembrançada dificuldade pragmática.

Remontar, pela lógica do vernáculo, não podeseguir imediatamente após o ato de montar,especialmente quando se tem a locução desmontar,cujo significado acabamos de examinar. Explica-se:como remontar é “montar novamente”, não pode serremontado o que está montado, por isso destacamosa desordem em que esses três verbos estãoenunciados. Na verdade, à operação de “montar-desmontar” segue-se a de remontar, pelo menosquando o agente pretende refazer o que foradesfeito. Perdoe-nos o leitor, mas o excesso deverbos utilizados pelo legislador leva-nos, por vezes,a jogar um pouco com as palavras, como acabamosde fazer.

Vender ou expor à venda: devia ser proibido essetipo de construção tipológico-penal, pois acabacriando situações ridículas e não apenas inusitadas.1 ) Vender é alienar algo a alguém por um preço

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convencionado, trocar, no caso, por dinheiro a coisaproduto de crime; vender é comerciar, negociar oproduto do crime. Vender é transferir a outrem,mediante pagamento, a coisa obtida com o crimeanterior. 2) Expor à venda é colocar em exposição oobjeto material (produto de crime) para atraircomprador; é a exibição do corpus delicti para servendido.

Finalmente, utilizar (de qualquer forma) coisa quedeve saber ser produto de crime. Essa deve ser aordem direta do enunciado, para melhor compreendê-lo . Utilizar é fazer uso da coisa, empregá-la dequalquer modo. Também nesse particular a redaçãodo texto legal não é das mais felizes quando utiliza,depois de arrolar onze verbos, a expressão genérica“ou de qualquer forma utilizar...”. Essa generalizaçãoinfeliz pode conduzir a equívocos, como ocorre coma interpretação dada por Regis Prado, que, referindo-se à locução, conclui: “denota a necessidade deaplicação de interpretação analógica, de forma quequalquer conduta do comerciante ou do industrial, àsimilitude daquelas exemplificadamente expostaspelo legislador, que implicar em uso da coisa obtidacriminosamente, caracteriza o delito em epígrafe”42.

Na verdade, a expressão “ou de qualquer formautilizar” não guarda nenhuma relação de “similitude”

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com as outras onze condutas elencadas no textolegal, como parece ter interpretado Regis Prado. Narealidade, a locução “de qualquer forma” está sereferindo tão somente “ao modo de utilizar” a coisaproduto de crime, tratando-se de crime de formalivre; isto é, na modalidade de utilizar, pode serpraticado de qualquer modo que o agente eleger.Com efeito, a despeito dessa fórmula genérica, éinadmissível a adoção de analogia ou mesmo deinterpretação analógica em matéria repressivapenal. As condutas elencadas, quer no caput, querno § 1º, são taxativas, numerus clausus43, comoconvém ao direito penal da culpabilidade. Reforçanossa orientação o magistério de Silva Franco44, aosustentar que admitir que a referida locuçãosignifica a possibilidade de inclusão, no tipo, deoutras ações não consagradas no texto legalcorresponde a ofensa manifesta ao princípio dalegalidade, sob o enfoque da estrita reserva legal.

8.2 Receptação simples, receptação qualificada eprincípio da proporcionalidade

As alterações introduzidas pela Lei n. 9.426/96 nadefinição da receptação produziram efeitos além do

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desejado pelo legislador brasileiro, sendo objeto deprofundas divergências conceituais, comindesejáveis consequências prático-jurídicas.

A controvérsia pode ser resumida no seguinteenunciado: no caput — definidor de crime comum —o tipo penal exige a presença de dolo direto,representado pela locução típica “que sabe serproduto de crime”; na redação do § 1º — definidord e crime próprio — exige-se dolo eventual,representado pela locução “que deve saber serproduto de crime”. Assim, analisando essas duaslocuções sob uma ótica superada, que as consideradefinidoras do dolo, punir-se-ia de forma mais grave(3 a 8 anos de reclusão) a figura mais branda — do §1º, que só admitiria dolo eventual — em detrimentodo crime mais grave — caput, que exige dolo direto—, cuja pena se mantém de um a quatro anos dereclusão.

Alguns doutrinadores chegaram ao extremo desugerir a desconsideração da pena cominada no § 1º,aplicando-se aquela prevista para o caput do mesmoartigo. Segundo Damásio de Jesus, essa seria asolução “menos pior”, in verbis: “O preceitosecundário do § 1º deve ser desconsiderado, umavez que ofende os princípios constitucionais daproporcionalidade e da individualização legal da

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pena. Realmente, nos termos das novas redações,literalmente interpretadas, se o comerciante deviasaber da proveniência ilícita do objeto material, apena é de reclusão, de três a oito anos (§ 1º) ; sesabia, só pode subsistir o caput, reclusão de um aquatro anos. A imposição de pena maior ao fato demenor gravidade é inconstitucional, desrespeitandoos princípios da harmonia e daproporcionalidade”45.

Essa sugestão de Damásio de Jesus recebeuimportantes adesões doutrinárias, embora tenhaenfrentado a resistência dos tribunais46. No entanto,o sempre indefectível Alberto Silva Franco, comargumentação erudita, chancela o entendimentodamasiano nos seguintes termos: “A argumentaçãode Damásio Evangelista de Jesus, sobre o tema (op.cit., p. 6), é irrespondível: ‘se a pena, abstrata ouconcreta, de quem ‘sabe’, é mais censurável do que ado sujeito que ‘devia saber’, sendo comum nosistema da legislação penal brasileira descrever asduas situações subjetivas no mesmo tipo, não podiaa Lei 9.426/96, ferindo o princípio daproporcionalidade, inserir o ‘devia saber’, de menorcensurabilidade, em figura autônoma (§ 1º) com penade três a oito anos de reclusão, subsistindo o ‘sabia,de maior reprovabilidade, no caput, com pena de um

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a quatro anos. A proporcionalidade que indicaequilíbrio foi ferida. Não se observou, na palavra deSuzana de Toledo Barros, a ideia de ‘relaçãoharmônica entre dois valores’ (O princípio daProporcionalidade e o controle constitucional dasleis restritivas de direitos fundamentais, Brasília,Brasília Editora, 1996, p. 71). Se a lei nova, fugindo dosistema, desvinculou o ‘deve saber’ do ‘sabe’,colocando-os em dois tipos autônomos, a penaabstrata do ‘deve saber’ não pode ser mais grave doque a do ‘sabe’”47.

Outro segmento doutrinário48, embora comargumentação e concepção diversas da nossa, nãoendossa a orientação capitaneada por Damásio deJesus no sentido de criar um terceiro tipo penal dereceptação, um misto entre as previsões do caput ede seu § 1º: a união do preceito primário previsto no§ 1º com a previsão do preceito secundário docaput49. Sugere-se um tipo penal, diga-se depassagem, não previsto em lei, as condutas descritasem um dispositivo com a aplicação de penascominadas em outro, para condutas distintas:ilegalidade absurda, já que se trata de tipo penaldesconhecido do legislador penal.

Pois bem, assim, está posta a divergência.

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Constata-se, de plano, que a análise crítica limitou-seà comparação das locuções “sabe” e “deve saber”,ignorando completamente todos os demaiselementos constantes das duas estruturastipológicas, inclusive a classificação dos dois crimes,sendo um comum (caput) e outro próprio (§ 1º); odesvalor das ações e dos resultados tampouco foramobjeto de consideração, embora toda a crítica tenhasido centrada no princípio da proporcionalidade;as condutas distintas igualmente não foramavaliadas.

Percebe-se, mais uma vez, que o absurdo e, hoje,desnecessário uso das locuções “sabe” e “devesaber” na tipificação de condutas criminosas, comodemonstramos no tópico anterior, só serve paradificultar a interpretação e boa aplicação da lei penal.Não houvesse o legislador contemporâneo inseridotais expressões nas construções tipológicas, não seestaria perdendo tempo com discussão puramentedogmática, com sérios reflexos nas consequênciasjurídicas do crime.

Estamos de pleno acordo que, num EstadoDemocrático de Direito, está assegurado como umdos seus princípios materiais o daproporcionalidade, que impede a cominação oumesmo a aplicação de pena em flagrante contradição

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com a gravidade do fato. A aplicação de pena,nesses termos, viola não apenas o princípio daproporcionalidade, mas a própria dignidade dapessoa humana. Com efeito, o princípio daproporcionalidade exige o respeito à correlação entrea gravidade da pena e a relevância do dano ou perigoa que o bem jurídico protegido está sujeito, e,particularmente, a importância do próprio bemjurídico tutelado. No entanto, o juízo deproporcionalidade, in concreto, resolve-se por meiod e valorações e comparações. Contudo, nessarelação valorativa não se pode ignorar toda aconstrução tipológica, com seus diversos elementosobjetivos, subjetivos e normativos e,particularmente, desconsiderar o desvalor da ação eo desvalor do resultado, para fixar-se exclusivamentena comparação de duas locuções isoladas — “sabe”e “deve saber” — de duvidosa natureza, subjetivaou normativa50.

Com efeito, o tipo descrito no caput do art. 180retrata um crime comum (que pode ser praticado porqualquer pessoa), enquanto a descrição contida no §1º configura crime próprio, que exige uma qualidadeespecial do sujeito ativo, no caso, que se trate decomerciante ou industrial, e mais: que a condutacriminosa seja praticada “no exercício da atividade”

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profissional, mesmo que exercida irregular ouclandestinamente. Essa mudança da espécie de tipopenal — de comum para especial —, acrescida daexigência de que qualquer das condutas constantesdo enunciado típico deve ser praticada no exercíciode “atividade comercial ou industrial”, denota umdesvalor da ação muito superior àquele decorrentedas condutas contidas no caput do mesmo artigo.Na verdade, no exercício das referidas atividades, oindivíduo capta a confiança da sociedade em geral edo consumidor em particular; o sujeito ativo que seaproveita de sua atividade profissional (comercianteou industrial) para receptar coisa produto de crimeabusa da boa-fé do sujeito passivo, merecendo maiorcensura penal.

Por outro lado, as novas condutas acrescidaspela Lei n. 9.426/96, tais como desmontar, montar,remontar, vender, expor à venda , deixam clara apreocupação do legislador penal, a exemplo do quefez relativamente aos crimes de furto e de roubo deveículos automotores (arts. 155, § 5º — pena de 3 a 8anos de reclusão; 157, § 2º, IV), de combater a pragaque virou os furtos e roubos de veículosautomotores. Visivelmente essas condutas — típicasdo comércio “clandestino” de veículos — pretendemenfrentar com seriedade os conhecidos

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“desmanches” de carros, que criaram um mercadonegro estimulador dos ladrões especializados emnosso país e, por extensão, em toda a AméricaLatina. Nesse sentido, destaca, com acerto, RegisPrado: “No art. 180, § 1º, do Código Penal, olegislador, visando reprimir mais severamente aatuação de organização criminosa nos delitospatrimoniais, qualificou o delito de receptação, namodalidade dolosa, quando perpetrado no exercíciode atividade comercial ou industrial”. Nesse tipo dereceptação, com efeito, o desvalor do resultado,invariavelmente, também é superior ao da receptaçãotradicional, não se configurando, por todo o exposto,a pretendida ofensa ao princípio daproporcionalidade, a ponto de inviabilizar a aplicaçãolegal da sanção cominada, especialmente com todosos recursos que o Código Penal disponibiliza pormeio do instituto da dosimetria penal (arts. 59 e s.).Aliás, nesse sentido, é razoável a justificativa daExposição de Motivos sobre a necessidade de punircom maior severidade aquele que “faz da receptaçãoum comércio, ainda que clandestino, conduta demaior gravidade e dano social do que a receptaçãoindividual ou simples”. Ademais, “a grandeincidência — prossegue a Exposição de Motivos —da receptação na atualidade, fator preponderante na

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ampliação dos casos de furto e roubo, é a receptaçãoprofissional, que vem, em geral, acompanhada dodesmonte da coisa para venda dos componentes,dificultando sua identificação e recuperação. Nosdias de hoje, a receptação simples é insuficiente paracoibir a atividade dos chamados ‘desmanches’ deveículos, joias, computadores e outrosequipamentos. Daí a proposta da figura qualificadacom pena significativamente maior”.

Contudo, isso não quer dizer que estejamos deacordo com a exasperação exagerada da sançãocominada no § 1º, ora em exame, como deixamos claroquando do exame do crime de furto de veículosautomotores (art. 155, § 5º). No entanto, apenas nãochegamos ao ponto de considerá-la inconstitucional,como apregoa parte da doutrina.

A s s i m , venia concessa, consideramosequivocada, por carecedora de fundamentodogmático, a conclusão de que os tipos penaisdescritos no caput e no § 1º ferem o princípio daproporcionalidade porque, segundo entendem, afigura que admite dolo eventual recebe punição maisgrave que a outra, que admite dolo direto. Comodeixamos claro no tópico anterior, as elementares“sabe” e “deve saber”, de cunho normativo, nãoidentificam o dolo, que, a partir da teoria normativa

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pura da culpabilidade, é um dolo psicológico,despido de qualquer elemento normativo. Por isso,aquelas expressões não podem ter qualquer relaçãocom o elemento subjetivo que orienta a conduta doagente, especialmente porque o (des)conhecimento(saber ou não) representa apenas o elementointelectual do dolo, que, para aperfeiçoar-se,necessita também do elemento volitivo, que não estáabrangido por aquelas elementares.

Pode figurar nos tipos penais, ao lado do dolo,uma série de características subjetivas que osintegram ou os fundamentam. O próprio Welzelesclareceu que, “ao lado do dolo, como momentogeral e pessoal-subjetivo daquele, que produz econfigura a ação como acontecimento dirigido a umfim, apresentam-se, frequentemente, no tipoespeciais momentos subjetivos, que dão coloridonum determinado sentido ao conteúdo ético-socialda ação”51. Assim, o tomar uma coisa alheia é umaatividade dirigida a um fim por imperativo do dolo;no entanto, seu sentido ético-social será inteiramentedistinto se aquela atividade tiver como fim o usopassageiro ou se tiver o desígnio de apropriação.

Contudo, a excessiva utilização pelo legislador decategorias subjetivadoras da descrição típica, alémdo dolo propriamente dito, é uma forma disfarçada de

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ultrapassar, com roupagem de legitimidade, os limitestaxativos do princípio da reserva legal. Essaideologia subjetivadora na elaboração do preceitoprimário da norma penal, além de inadequada, éextremamente perigosa, pois esses estados anímicos,como ser egoísta, cruel ou malvado, entre outros,podem existir independentemente da relevância dalesão objetiva de bens jurídicos tutelados. E, nessascircunstâncias, quando a conduta é penalmenterelevante, a tipificação desses estados anímicospode conduzir à punição do ânimo, que éinadmissível no direito penal da culpabilidade52.Algo semelhante pode ocorrer com a utilização daslocuções “sabe” e “deve saber”, na medida em quenada têm que ver com o dolo, que não se limita aoaspecto puramente intelectivo “saber ou não saber”,como a própria definição do Código Penal deixamuito claro (art. 18, I). Assim, a concepção normativadessas locuções tem, entre outros, também o méritode evitar a exagerada subjetivação na definição decrimes.

8.3 Elemento normativo da receptação qualificada:no exercício de atividade comercial ouindustrial

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De qualquer sorte, todas as condutasrelacionadas no § 1º somente tipificarão a“receptação qualificada” se visarem a proveitopróprio ou alheio, no exercício de atividadecomercial ou industrial, seja ele regular, irregular ouclandestino.

A “fúria” cega as pessoas e embota o raciocínio,dificultando a avaliação adequada do sentido dostermos, expressões ou frases. O desejo de ser maisdrástico e mais abrangente, por vezes, pode, aomesmo tempo, tornar a previsão legal mais restritiva.Foi o que ocorreu nesse caso, pois nada impede queo agente transporte, conduza, desmonte, monte ouremonte — para ficar somente nas novidades —“coisa que deve saber ser produto de crime”, semfazê-lo, no entanto, “no exercício de atividadecomercial ou industrial”, regular ou irregular. Taiscondutas não se amoldariam à figura da receptaçãoqualificada.

Na verdade, no § 2º do art. 180, o legislador trazuma figura de equiparação, ampliando a abrangênciado crime próprio contido no § 1º. Incorpora aoconceito de atividade comercial “qualquer forma decomércio irregular ou clandestino, inclusive oexercido em residência”. A pretensão do legisladorfoi, inquestionavelmente, como reconhece Silva

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Franco53, “alargar a incidência da receptaçãoqualificada em relação às atividades de desmanchede veículos, realizadas, não apenas em oficinasregistradas, mas também em oficinas de fundo dequintal”. Com essa previsão, naquele crime próprio,que exige a condição especial de ser comerciante ouindustrial, alarga-se o tipo para admitir, como sujeitoativo, também aquele que pratica comércio irregular eaté clandestino.

Contudo, constata-se, mais uma vez, um lapso dolegislador, que, ao ampliar a abrangência desse crimepróprio, esqueceu-se de incluir quem exerceatividade industrial irregular ou clandestina, comofizera em relação à atividade comercial (§ 2º). Assim,quem praticar qualquer das condutas descritas no §1º, no exercício de atividade industrial, mas emcaráter irregular ou clandestino, não incorrerá nassanções da receptação qualificada; se a conduta foruma daquelas contidas no caput (receber,transportar, conduzir, ocultar ou influir), poderáresponder por receptação simples; caso contrário, sepraticar qualquer das demais condutas contidasexclusivamente no § 1º, sua atividade será atípica.

Mas a previsão legal, tal como é, limita-se aoexercício de atividade comercial ou industrial (aatividade comercial, mesmo irregular ou clandestina).

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Fora dessa hipótese, ou seja, quando o receptadornão se encontrar no exercício dessas atividades, aqualificadora não se tipificará.

9. Tipo subjetivo: adequação típica: dolo direto

A receptação dolosa, segundo a doutrinatradicional, contém duas espécies de dolo: a) oagente sabe que é produto de crime; b) devia saberque é produto de crime. Dessa distinção, origina-se adiversidade de elementos subjetivos: 1ª) (que sabe)ser produto de crime — dolo direto; 2ª) (que devesaber) ser produto de crime — dolo eventual. Járegistramos nosso desapreço por essa concepção,que, a nosso juízo, encontra-se superada.

Para analisar o elemento subjetivo do crime dereceptação dolosa — simples e qualificada —,tivemos de superar, preliminarmente, a divergênciasobre o sentido e função das elementares “sabe” ou“deve saber”, contidas no tipo, relativos ao grau deconsciência sobre o fato de tratar-se de produto decrime. Deixamos claro, no tópico anterior, que nãoconcordamos com a doutrina tradicional, queconsidera referidas elementares indicativas dasespécies de dolo (direto e eventual).

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Segundo a orientação que adotamos, ao contráriodo entendimento dominante, nenhuma das espéciesde receptação dolosa — previstas no caput e no §1º — admite dolo eventual. A impossibilidade dodolo indireto não decorre das elementares “sabe” e“deve saber” (que, como demonstramos, sãoelementos normativos indicadores do grau decensura), mas dos próprios verbos nucleares, que,por seus conteúdos semânticos, só aceitam o dolodireto54.

Afinal, como destaca Wessels, haverá doloeventual quando o autor não se deixar dissuadir darealização do fato pela possibilidade próxima daocorrência do resultado e sua conduta justificar aassertiva de que, em razão do fim pretendido, ele setenha conformado com a produção do resultado ouaté concordado com sua ocorrência, em vez derenunciar à prática da ação. Ora, em qualquer dascondutas contidas nas duas espécies de receptaçãodolosa, o agente — independente de saber ou deversaber da origem criminosa da coisa — quer oresultado de sua ação, e esse querer, essa vontadelivre e consciente, é caracterizadora de dolo direto enão de dolo eventual. O “dever saber” não tem omesmo significado da assunção do risco daprodução do resultado.

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O dolo será sempre direto — tanto na receptaçãosimples quanto na qualificada — e consistirá navontade livre e consciente de praticar quaisquer dascondutas descritas nos tipos em exame, isto é, dereceptar o produto de crime ou influir para queterceiro de boa-fé o recepte. Em outros termos, oreceptador, consciente e voluntariamente, realizauma ou mais das condutas proibidas. Age, nessahipótese, com dolo direto, pois a vontadeconsciente do agente é dirigida à realização do fatotípico. O objeto do dolo direto é o fim proposto(obtenção da coisa, em proveito próprio ou alheio),os meios escolhidos (crime de forma livre, qualquermeio que eleger) e os efeitos colaterais ousecundários (dano ou prejuízo ao proprietário,possuidor ou detentor da coisa) representados comonecessários à realização do fim pretendido.

Em relação ao fim proposto e aos meiosescolhidos, o dolo direto é de primeiro grau, e, emrelação aos efeitos colaterais, representados comonecessários, o dolo direto é de segundo grau. Osefeitos colaterais ou secundários são abrangidosmediatamente pela vontade consciente do agente,mas é sua produção necessária que os situa, também,como objeto do dolo direto: não é sua relação deimediatidade, mas a relação de necessidade, que o

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inclui no dolo direto.Não se pode esquecer que as elementares “sabe”

e “deve saber” não se confundem com dolo, poiseste se compõe de dois elementos, repetindo —intelectivo (consciência ou previsão) e volitivo(vontade) —, e a ausência de qualquer deles —volitivo ou intelectivo — é suficiente para impedir aconfiguração dolosa, tanto na forma direta quanto naeventual. Com efeito, a presença, in concreto, daselementares “sabe” e “deve saber” significa somentea atualidade ou potencialidade da consciência dailicitude, respectivamente, sem qualquer relevânciana definição ou constituição da espécie de dolo(direto ou indireto).

O dolo deve ser antecedente ou contemporâneo,não se admitindo o dolo subsequente. Não há dolosubsequente em direito penal. Quem adquire coisaalheia móvel de boa-fé e só posteriormente descobretratar-se de produto de origem criminosa não praticao crime de receptação. Poderá, contudo, praticar areceptação se, a partir desse conhecimento, procuraocultar tal aquisição.

Por fim, apenas para afastar alguns pruridos,convém lembrar que o Código Penal brasileiroequipara dolo direto e dolo eventual quanto a seusefeitos (art. 18, I), nos precisos termos da Exposição

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de Motivos, da lavra do Ministro Francisco Campos,in verbis: “O dolo eventual é, assim, plenamenteequiparado ao dolo direto. É inegável que arriscar-seconscientemente a produzir um evento vale tantoquanto querê-lo: ainda que sem interesse nele, oagente o ratifica ex ante, presta anuência ao seuadvento”. Até porque a consciência e a vontade,que representam a essência do dolo, também devemestar presentes no dolo eventual. Para que este seconfigure é insuficiente a mera ciência daprobabilidade do resultado ou a atuação conscienteda possibilidade concreta da produção desseresultado, como sustentam os defensores da teoriada probabilidade. É indispensável determinadarelação de vontade entre o resultado e o agente, e éexatamente esse elemento volitivo que distingue odolo da culpa55.

9.1 Elemento subjetivo especial do injusto: emproveito próprio ou alheio

Exige-se, ademais, o elemento subjetivo especialdo tipo, constituído pelo fim especial de obtervantagem, em proveito próprio ou alheio. Pois éexatamente esse fim especial que distingue areceptação do crime de favorecimento real (art. 349).

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Convém destacar que esse fim especial,configurador do elemento subjetivo do injusto, nãoprecisa concretizar-se, sendo suficiente que exista namente do sujeito ativo e que tenha sido a molapropulsora de sua ação delitiva. Esse especial fim deagir, embora amplie o aspecto subjetivo do tipopenal, não integra o dolo nem com ele se confunde,uma vez que o dolo esgota-se com a consciência e avontade de realizar a ação com a finalidade de obter oresultado criminoso. A finalidade especial do agirque integra determinadas definições delituosas,como é o caso da receptação dolosa, condiciona oufundamenta a ilicitude do fato, constituindo, assim,elemento subjetivo especial do crime, de formaautônoma e independente do dolo.

A ausência desse elemento subjetivo especialdescaracteriza o tipo penal, independentemente dapresença do dolo. Enquanto o dolo deve materializar-se no fato típico, o elemento subjetivo especial dotipo especifica o dolo, sem necessidade de seconcretizar, sendo suficiente que exista no psiquismodo autor56.

10. Receptação culposa

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O legislador penal de 1940, além de dominar umatécnica legislativa invejável, sempre primou pelaharmonia sistemática e pela estrutura metodológica.Tal qualidade do então legislador não impediu que,aqui ou acolá, fugisse de seus cuidados pragmáticose metodológicos, dificultando, por vezes, a própriainterpretação de alguns preceitos consagrados pelodiploma penal que elaborou. Essa situaçãoexcepcional também se faz presente na disciplina docrime de receptação, particularmente na definição desua modalidade culposa, fugindo completamente àtradição e ao método adotado na definição doscrimes culposos.

Com efeito, na Parte Geral do Código, quandotratou de definições, afirmou que se diz do crime“culposo, quando o agente deu causa ao resultadopor imprudência, negligência ou imperícia” (art. 18,II). Posteriormente, na Parte Especial, quando admite,pelo princípio da excepcionalidade, a infração penalem sua modalidade culposa (art. 18, parágrafo único),adota uma fórmula simples, repetidamente: se ohomicídio é culposo (art. 121, § 3º) ; se a lesão éculposa (art. 129, § 6º); se culposo o incêndio (art.250, § 2º); se o crime é culposo (art. 270, § 2º); se ocrime é culposo (art. 272, § 2º); se o crime é culposo(art. 273, § 2º); se o crime é culposo (art. 278,

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parágrafo único); se o crime é culposo (art. 280,parágrafo único). Essa é a regra, mantida ao longo detodo o Código, com variação mínima, servindo-sesempre do conceito que emitiu lá na Parte Geral.Afinal, surpreendentemente, no crime de receptação,o legislador mudou o método tradicional, afastou atécnica até então adotada e emitiu a seguintedefinição de receptação culposa: adquirir oureceber coisa que, por sua natureza ou peladesproporção entre o valor e o preço, ou pelacondição de quem a oferece, deve presumir-seobtida por meio criminoso (§ 3º).

O primeiro questionamento a fazer é: afinal, nestametodologia de definição, o legislador teriaabandonado a concepção de crime culposo queorientou basicamente todas as tipificações damodalidade culposa? Aqueles princípiosorientadores do crime culposo devem ser aplicadosnessa definição de receptação culposa?

Todos esses aspectos exigem algumaconsideração crítico-dogmática, que passamos afazer.

Culpa é a inobservância do dever objetivo decuidado manifestada em conduta produtora de umresultado não querido, objetivamente previsível. Aestrutura do tipo de injusto culposo é diferente da

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do tipo de injusto doloso: neste, é punida a condutadirigida a um fim ilícito, enquanto no injusto culposopune-se a conduta mal dirigida, normalmentedestinada a um fim penalmente irrelevante, quases empre lícito. O núcleo do tipo de injusto nosdelitos culposos consiste na divergência entre aação efetivamente praticada e a que devia realmenteter sido realizada, em virtude da observância dodever objetivo de cuidado.

A direção final da ação, nos crimes culposos,não corresponde à diligência devida, havendo umacontradição essencial entre o querido e o realizadopelo agente. Como afirma Cerezo Mir57, “o fimperseguido pelo autor é geralmente irrelevante, masnão os meios escolhidos, ou a forma de suautilização”. O agente que conduz um veículo e causa,de forma não dolosa, a morte de um pedestre realizauma ação finalista: conduzir o veículo. O fim daação — ir a um lugar determinado — é jurídico-penalmente irrelevante. O meio escolhido, o veículo,neste caso, também o é. No entanto, será jurídico-penalmente relevante a forma de utilização do meiose o agente, por exemplo, dirigir a uma velocidadeexcessiva.

Na verdade, mesmo nessa definiçãoassistemática da receptação culposa, é impossível

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ignorar os postulados fundamentais do crimeculposo. Assim, recomendamos que se adoteinclusive a definição emitida pelo legislador, na ParteGeral do Código Penal (art. 18, II), bem como asmodalidades de culpa, excluindo-se apenas aimperícia, ante a impossibilidade prática de suaocorrência.

Na realidade, os indícios específicos de culparelacionados pelo legislador demonstram anecessidade de cautela nas operações mencionadas.Esses indícios são os seguintes: a) natureza dacoisa; b) desproporção entre o valor e o preço; c)condição de quem oferece. Esses três requisitosexigem atenção do adquirente, cuja desconsideraçãoou má avaliação pode levar à presunção de culpa. Ainobservância desses requisitos representa, narealidade, a imprudência ou negligência do agente.Com efeito, a observância do dever objetivo decuidado, isto é, a diligência devida, constitui oelemento fundamental do tipo de injusto culposo,cuja análise constitui questão preliminar no exame daculpa. Na dúvida, no exame daqueles indícios,impõe-se o dever de abster-se da realização daconduta, pois quem se arrisca, nessa hipótese, agecom imprudência, e, sobrevindo um resultado típico,torna-se autor de um crime culposo, no caso, de

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receptação culposa.Os indícios relacionados no § 1º são de natureza

objetiva. É indispensável que se examine se haviacontraindícios razoáveis ou se o agente incidiu emerro invencível. Por isso, é indispensável investigar oque teria sido, in concreto, para o agente o dever decuidado. E, como segunda indagação, deve-sequestionar se a ação do agente correspondeu a essecomportamento “adequado”. Somente nessasegunda hipótese, quando negativa, surge areprovabilidade da conduta. A análise dessasquestões deve ser extremamente criteriosa, namedida em que a aparente falta de cautela, por si só,não implica necessariamente a violação do deverobjetivo de cuidado, pois o agente pode terfundadas razões para não duvidar da legitimidade daorigem da coisa, ainda que, a final, se comprove suaorigem criminosa. Nesses casos, a conduta é atípica.

11. Autonomia da receptação: independência relativa

A autonomia da receptação em relação ao crimeprecedente consolidou-se, na doutrina, no alvorecerdo século XIX, e seus antecedentes político-filosóficos podem ser creditados a Carpsóvio (século

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XVII). A partir desse período a receptação passou ater como pressuposto não apenas um crimeespecificamente contra o patrimônio, mas qualquercrime que pudesse, indevidamente, acarretarvantagem patrimonial em prol do agente.

No direito codificado, contudo, coube aFeuerbach introduzi-la no Código bávaro de 1813, doqual foi o autor intelectual. Afastou-se, a partir deentão, o superado entendimento segundo o qual areceptação era uma forma de cumplicidade, ante oparadoxo de admitir-se a participação em um crime jáconsumado.

O Código Penal brasileiro de 1940, embora ainclua entre os crimes patrimoniais, não se encontravinculado exclusivamente a eles: pode serpressuposto da receptação todo e qualquer crimeque possa proporcionar a seu autor algum proveitoeconômico, e que possa ser consolidado ougarantido, com animus lucrandi, pelo receptador.

A receptação, pode-se admitir, é um crimeacessório, consequente, ou, se se preferir, parasitáriode outro crime. Aliás, em sua tipificação legal constaa elementar “coisa... produto de crime”, significandoque, necessariamente, a receptação deve serprecedida de outro crime. Na verdade, embora, pordisposição legal, seja irrelevante a identidade ou

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responsabilidade penal do autor do fato criminosoanterior, é indispensável que se comprove aexistência material do crime de que proveio a coisaque se diz receptada.

Com efeito, como afirma o § 4º, a receptação épunível mesmo que seja desconhecido ou isento depena o autor do crime anterior, bastando a certeza deque a coisa é produto de crime. A inexistência decondenação do crime precedente é irrelevante, sendosuficiente a comprovação de sua existência, algo quepode ser feito no próprio processo que investiga areceptação.

Nesse sentido, sobre a necessidade decomprovação da existência efetiva do crimeprecedente, pode-se afirmar que a independência ouautonomia da receptação é relativa, isto é, ela nãoexiste por si só, sendo fruto de uma infração penal,com a qual está ontologicamente vinculada. Assim, amencionada autonomia da receptação repousa tãosomente em sua punibilidade, que é absolutamenteindependente da punibilidade do crime precedente, enão em sua configuração típica, que,ontologicamente, deve estar vinculada a outrainfração penal precedente.

A extinção da punibilidade do crime (art. 108 doCP) do qual proveio a coisa objeto de receptação ou

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a ausência de investigação ou processo criminal éindiferente para a punibilidade da receptação.

12. “Autor de crime”: a culpabilidade não é meropressuposto da pena

A redação do § 4º, prevendo a punibilidade dareceptação mesmo que “desconhecido ou isento depena o autor do crime de que proveio a coisa”, foiobjeto de grande debate na doutrina nacional. Acorrente capitaneada por Damásio de Jesus temsustentado que o crime é a ação típica eantijurídica, sendo a culpabilidade meropressuposto da pena58, e que, ademais, com essaredação do § 4º, o Código Penal estaria adotando omesmo entendimento.

A tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidadesão predicados de um substantivo, que é a condutahumana definida como crime. Não nos convence oentendimento dominante na doutrina brasileira,segundo o qual a culpabilidade, no atual estágio,deve ser tratada como mero pressuposto da pena, enão mais como integrante da teoria do delito.Assumindo essa orientação, Damásio de Jesus,pioneiramente, passou a definir o crime como a ação

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típica e antijurídica, admitindo a culpabilidadesomente como mero pressuposto da pena59.

A seguinte afirmação de Ariel Dotti teria levadoDamásio de Jesus a mudar seu entendimento sobre amatéria: “O crime como ação tipicamente antijurídicaé causa da resposta penal como efeito. A sançãoserá imposta somente quando for possível e positivoo juízo de reprovação que é uma decisão sobre umcomportamento passado, ou seja, um posteriusdestacado do fato antecedente”60. Essa afirmação deDotti leva-nos, inevitavelmente, a fazer algumasreflexões: a) seria possível a imposição de sanção auma ação típica, que não fosse antijurídica? b) poder-se-ia sancionar uma ação antijurídica que não seadequasse a uma descrição típica? c) a sanção penal(penas e medidas) não é uma consequência jurídicado crime?

Seguindo nessa reflexão, perguntamos: atipicidade e a antijuridicidade não seriam tambémpressupostos da pena? Ora, na medida em que asanção penal é consequência jurídica do crime, este,com todos os seus elementos, é pressupostodaquela. Assim, não somente a culpabilidade, masigualmente a tipicidade e a antijuridicidade sãopressupostos da pena, que é sua consequência.

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Aliás, nesse sentido, o saudoso Heleno Fragoso,depois de afirmar que “crime é o conjunto dospressupostos da pena”, esclarecia: “Crime é, assim, oconjunto de todos os requisitos geraisindispensáveis para que possa ser aplicável a sançãopenal. A análise revela que tais requisitos são aconduta típica, antijurídica e culpável...”61.

Welzel, a seu tempo, preocupado com questõessemânticas, pela forma variada com que penalistas sereferiam à culpabilidade normativa, frisou que “aessência da culpabilidade é a reprovabilidade”.Destacou ainda que, muitas vezes, também sedenomina “a reprovabilidade reprovação daculpabilidade e a culpabilidade juízo deculpabilidade”. “Isto não é nocivo — prosseguiaWelzel — se sempre se tiver presente o carátermetafórico destas expressões e se lembrar que aculpabilidade é uma qualidade negativa da própriaação do autor e não está localizada nas cabeças dasoutras pessoas que julgam a ação”62. Essa lição deWelzel, o precursor do finalismo, é lapidar edesautoriza inexoravelmente entendimentoscontrários quanto à definição de crime e à próprialocalização da culpabilidade.

Na realidade, a expressão “juízo de censura”

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empregada com o significado de “censura”, ou então“juízo de culpabilidade” utilizada como sinônimo de“culpabilidade”, têm conduzido a equívocos,justificando, inclusive, a preocupação de Welzel,conforme acabamos de citar. É preciso destacar, comefeito, que censurável é a conduta do agente, esignifica característica negativa da ação do agenteperante a ordem jurídica. E “juízo de censura” —estritamente falando — é a avaliação que se faz daconduta do agente, concebendo-a como censurávelou incensurável. Essa avaliação sim — juízo decensura — é feita pelo aplicador da lei, pelo julgadorda ação; por essa razão se diz que está na cabeça dojuiz. Por tudo isso, deve-se evitar o uso metafóricod e juízo de censura como se fosse sinônimo decensurabilidade, que constituindo a essência daculpabilidade, continua um atributo do crime. O juízode censura está para a culpabilidade assim como ojuízo de antijuridicidade está para aantijuridicidade. Mas ninguém afirma que aantijuridicidade está na cabeça do juiz!

Rosenfeld, em sua crítica contundente à teorianormativa, afirmou que a culpabilidade de umhomem não pode residir na cabeça dos outros.Mezger, respondendo a essa objeção de Rosenfeld,reconhece que “O juízo pelo qual se afirma que o

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autor de uma ação típica e antijurídica praticou-aculpavelmente refere-se, na verdade, a umadeterminada situação fática da culpabilidade, queexiste no sujeito, mas valoriza-se ao mesmo tempoesta situação considerando-a como um processoreprovável ao agente. Somente através desse juízovalorativo de quem julga se eleva a realidade de fatopsicológica ao conceito de culpabilidade”63. O juízode censura não recai somente sobre o agente, mas,especial e necessariamente, sobre a ação por estepraticada. Seguindo nessa linha, e aceitando a críticade Rosenfeld e a explicação de Mezger, Jiménez deAsúa reconhece que o fato concreto psicológicosobre o qual se inicia o juízo de culpabilidade é doautor e está, como disse Rosenfeld, em sua cabeça,mas a valorização para a reprovação quem a faz é umjuiz64. E Manuel Vidaurri Aréchiga, adotando omesmo entendimento, conclui que, quanto a isso,parece não haver dúvida, pois “o juiz não cria aculpabilidade”65. Aliás, em não sendo assim, cabeperguntar aos opositores: onde estarão aimputabilidade, a potencial consciência dailicitude e a exigibilidade de conduta diversa,elementos constitutivos da culpabilidade normativa?Estarão também na cabeça do juiz? Ora, fora da teseque sustentamos, essas indagações são

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irrespondíveis.Por derradeiro, para não deixar dúvida sobre a

natureza e a localização da culpabilidade, defendidapor Welzel, invocamos as próprias palavras destesobre sua concepção de delito: “O conceito daculpabilidade acrescenta ao da ação antijurídica —tanto de uma ação dolosa quanto de uma não dolosa— um novo elemento, que é o que a converte emdelito”66. Em sentido semelhante é a lição de MuñozConde, que, definindo o crime, afirma: “Estadefinição tem caráter sequencial, isto é, o peso daimputação vai aumentando à medida que passa deuma categoria a outra (da tipicidade àantijuridicidade, da antijuridicidade à culpabilidadeetc.), tendo, portanto, de se tratar em cada categoriaos problemas que lhes são próprios”. Essaconstrução deixa claro que, por exemplo, se do examedos fatos se constatar que a ação não é típica, serádesnecessário verificar se é antijurídica, muito menosse é culpável. Cada uma dessas característicascontém critérios valorativos próprios, comimportância e efeitos teóricos e práticos igualmentepróprios67.

Ora, é de uma clareza meridiana, uma ação típica eantijurídica somente se converte em crime com o

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acréscimo da culpabilidade.Não impressiona o argumento de que o Código

Penal brasileiro admite a punibilidade dareceptação mesmo quando “desconhecido ou isentode pena o autor do crime de que proveio a coisa” eque, como a receptação pressupõe que o objetoreceptado seja produto de crime, o legislador de1940 estaria admitindo crime sem culpabilidade.Convém registrar que em 1942, quando nossoCódigo entrou em vigor, ainda não se haviampropagado as ideias do finalismo welzeliano, queapenas se iniciava.

Ao contrário do que se imagina, essa políticacriminal adotada pelo Código de 1940 tem outrosfundamentos: 1º) de um lado, representa a adoçãodos postulados da teoria da acessoriedadelimitada, que também foi adotada pelo direito penalalemão em 1943, segundo a qual, para punir opartícipe, é suficiente que a ação praticada peloautor principal seja típica e antijurídica, sendoindiferente sua culpabilidade; 2º) de outro lado,representa a consagração da prevenção, na medidaem que pior que o ladrão é o receptador, pois aausência deste enfraquece o estímulo daquele; 3º)finalmente, o fato de o nosso Código prever apossibilidade de punição do receptador, mesmo que

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o autor do crime anterior seja isento de pena, nãoquer dizer que esteja se referindo, ipso facto, aoinimputável. O agente imputável, por inúmerasrazões, por exemplo, coação moral irresistível, erro deproibição, erro provocado por terceiro, pode serisento de pena68.

Concluímos com a afirmação irrefutável de CerezoMir: “Os diferentes elementos do crime estão numarelação lógica necessária. Somente uma ação ouomissão pode ser típica, só uma ação ou omissãotípica pode ser antijurídica e só uma ação ou omissãoantijurídica pode ser culpável”69.

13. Perdão judicial (§ 5º, 1ª parte)

N a receptação culposa, sendo o acusadoprimário, e considerando as circunstâncias, podeser concedido o perdão judicial (§ 5º, 1ª parte). Nascircunstâncias a que se refere referido parágrafo,além da primariedade, deve ser considerada a culpalevíssima e o pequeno prejuízo causado.

Perdão judicial é o instituto por meio do qual alei possibilita ao juiz deixar de aplicar a pena dianteda existência de circunstâncias expressamente

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determinadas (exs.: arts. 121, § 5º; 129, § 8º; 140, § 1º,I e II; 180, § 5º, 1ª parte; 242, parágrafo único; 249, §2º). Na legislação especial também se encontramalgumas hipóteses de perdão judicial.

Embora as opiniões dominantes concebam operdão judicial como mero benefício ou favor dojuiz, entendemos que se trata de direito públicosubjetivo de liberdade do indivíduo, a partir domomento em que preenche os requisitos legais.Como dizia Frederico Marques, os benefícios sãotambém direitos, pois o campo do status libertatis sevê ampliado por eles, de modo que, satisfeitos seuspressupostos, o juiz é obrigado a concedê-los.Ademais, é inconcebível que uma causa extintiva depunibilidade fique relegada ao puro arbítrio judicial.Deverá, contudo, ser negado quando o réu nãopreencher os requisitos exigidos pela lei.

No crime de injúria, a lei prevê o perdão judicialquando o ofendido age de modo reprovável, aprovocar diretamente, ou no caso de retorsãoimediata; no homicídio culposo e na lesão corporalculposa, se as consequências da infração atingirem opróprio agente de forma tão grave que a sançãopenal se torne desnecessária. Mesmo quando a leipossibilita o perdão judicial “conforme ascircunstâncias” ou “tendo em consideração as

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circunstâncias” (arts. 176, parágrafo único, e l80, § 5º,do CP), prevê requisito implícito, qual seja, apequena ofensividade da conduta, que, se estivercaracterizada, obrigará à concessão do perdão.

Enfim, se, ao analisar o contexto probatório, o juizreconhecer que os requisitos exigidos estãopreenchidos, não poderá deixar de conceder operdão judicial por mero capricho ou qualquer razãodesvinculada do referido instituto.

Para afastar a desinteligência das diversasinterpretações que existiam sobre a natureza jurídicada sentença que concede o perdão judicial, a reformapenal de 1984 incluiu-o entre as causas extintivas depunibilidade e explicitou na Exposição de Motivos(n. 98) que a sentença que o concede não produzefeitos de sentença condenatória. O acerto dainclusão do perdão judicial no art. 107, IX, não serepetiu ao tentar reforçar no art. 120 a natureza dasentença concessiva, propiciando a sobrevivênciado equivocado entendimento de que se trata desentença condenatória, que somente livra o réu dapena e do pressuposto da reincidência. A nossojuízo, referida sentença é, simplesmente, extintiva dapunibilidade, sem qualquer efeito penal, principal ousecundário.

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14. Receptação privilegiada (§ 5º, 2ª parte)

Na receptação dolosa é admissível o tratamentoprevisto para o furto privilegiado (art. 155, § 2º): aprimariedade e o pequeno valor da coisa produtode crime permitem substituir a pena de reclusão pordetenção, reduzi-la de um a dois terços ou aplicarsomente multa. A “privilegiadora”, presentes osrequisitos legais, aplica-se a qualquer das espéciesde receptação própria ou imprópria.

Com efeito, o § 2º do art. 155 prevê apossibilidade de reduzir a sanção cominada para ocrime de furto, quando se tratar de réu “primário e depequeno valor a coisa subtraída”. Em outros termos,o pequeno desvalor do resultado e a primariedadedo agente recomendam menor reprovação deste,determinando, em obediência ao princípio daproporcionalidade, a redução da sanção paraadequá-la a menor gravidade do fato.

Pois bem, os mesmos fundamentos político-criminais que recomendam a redução da censurapenal para o crime de furto, o legislador penalresolveu estendê-los para a receptação. Tudo o quese disse relativamente a sua aplicação no crime defurto deve estender-se, por determinação legal, aocrime de receptação.

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A primariedade, como primeiro requisitonecessário para a configuração da minorante,embora encerre um conceito negativo, não seconfunde com não reincidência, especialmente apartir da reforma penal de 1984 (Lei n. 7.209), queintroduziu um novo conceito, qual seja, “nãoreincidente”. Assim, a Parte Geral do Código adotaum critério distinto da Parte Especial: trabalha com osconceitos “reincidente” e “não reincidente”,enquanto a Parte Especial utiliza os conceitos“reincidente” e “primário”. Anteriormente,reincidente e primário constituíam definiçõesexcludentes: ou uma ou outra, tanto que se adotavao seguinte conceito: “primário é o não reincidente”.

A partir da reforma penal, essa concepção deixoude ser verdadeira, na medida em que passaram aexistir três, digamos, categorias: primário,reincidente e não reincidente. Com efeito, chama-seprimário quem nunca sofreu qualquer condenaçãoirrecorrível; reincidente, quem praticou um crimeapós o trânsito em julgado de decisão condenatória(em primeiro ou segundo grau), enquanto não tenhadecorrido o prazo de cinco anos do cumprimento ouda extinção da pena; não reincidente, comocategoria, é aquele que não é primário e tampoucoostenta a condição de reincidente (essa é definição

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exclusiva para o direito brasileiro, sendo inaplicável,genericamente, às legislações alienígenas). Não éreincidente, por exemplo, quem comete o segundo outerceiro crime antes do trânsito em julgado de crimeanterior; quem comete novo crime após o decurso decinco anos do cumprimento de condenação anteriorou da extinção da punibilidade etc.

Constata-se, enfim, que o termo “primariedade”tem, tecnicamente, um conceito bem delimitado.Eventuais condenações anteriores, por si sós, oumeros antecedentes criminais negativos não sãocausas impeditivas do reconhecimento da existênciadesse requisito, à luz do nosso ordenamento jurídicoem vigor. Tratando-se de norma criminal, não podeter interpretação extensiva, para restringir a liberdadedo cidadão.

O segundo requisito legal é que se trate de “coisade pequeno valor”, definição que está longe de serpacífica quer na doutrina, quer na jurisprudência.Como elemento normativo do tipo, para interpretá-loadequadamente, dever-se-á ter em consideração aspeculiaridades e as circunstâncias pessoais e locaisde onde o fato é praticado.

A doutrina, em geral, tem definido como pequenovalor aquele cuja perda pode ser suportada semmaiores dificuldades pela generalidade das pessoas.

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“Ao rico — lembrava Magalhães Noronha —porque, talvez, nem perceberá sua falta; ao pobreporque, na sua penúria, de pouco lhe valerá”70.Embora nos desagrade a fixação de determinadoquantum, por sua relatividade, ante a necessidade deum paradigma, aceitamos a orientação majoritária,segundo a qual de pequeno valor é a coisa que nãoultrapasse o equivalente ao salário-mínimo.

Contudo, na seara tributária, a própria ReceitaFederal encarregou-se de estabelecer valores muitosuperiores, para os quais não admite a execuçãofiscal (no momento, fixado em R$ 2.500,00). Diantedesse entendimento da Receita, é natural que seconsidere, nos crimes fiscais ou tributários, nãoapenas “pequeno valor”, mas valor insignificante,para excluir a própria tipicidade da conduta, segundoo princípio da insignificância71.

15. Receptação majorada (§ 6º)

Na receptação dolosa, quando o objeto materialconstituir-se de “bens e instalações do patrimônio daUnião, Estado, Município, empresa concessionáriade serviços públicos ou sociedade de economia

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mista”, justificará a majoração da reprovação penal.Em razão da natureza dos bens, pertencentes ao

Estado, agrava-se exageradamente a pena. Elevou-seo mínimo de um para dois anos de reclusão. Aliás,essa excessiva e injustificável exasperação penal jáera censurada pelo saudoso Hungria, que, referindo-se à equivocada redação original do Código de 1940,destacava: “Em código algum figura a receptaçãocom pena aprioristicamente mais grave do que adaqueles de que pode provir”, e prosseguia: “Nodireito brasileiro, a tradição constante foi no sentidoda menor punibilidade da receptação, em confrontocom o crime de que deriva”72.

16. Pena e ação penal

Na receptação dolosa simples, as sanções penaissão cumulativas: reclusão, de um a quatro anos, emulta; na qualificada, reclusão, de três a oito anos, emulta; na culposa, detenção, de um mês a um ano, oumulta, ou ambas (pode ser alternativa ou cumulativa),além de admitir-se o privilégio do art. 155, § 2º, se oréu for primário e as circunstâncias recomendarem;n a majorada, a pena do caput pode ser duplicada(Lei n. 9.426/96).

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A ação penal é pública incondicionada,ressalvadas as hipóteses do art. 182 do CódigoPenal.

1 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 311.2 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 304.3 Observar o disposto no art. 1.263 do Código Civil.4 Giuseppe Maggiore, Derecho Penal, cit., v. 5, p. 194.5 Nesse sentido veja o exemplo destacado por Damásio deJesus: “Suponha-se o caso de o sujeito realizar contrato depenhor com terceiro, entregando-lhe como garantia umrelógio, que venha a ser furtado. Imagine que o ladrãoofereça o relógio ao credor, que imediatamente percebe serde sua propriedade. Com a finalidade de frustrar a garantiapignoratícia, o proprietário compra, por baixo preço, o objetomaterial. Para nós, responde por delito de receptação, tendoem vista que está adquirindo, em proveito próprio, coisa quesabe ser produto de furto (art. 180, caput, 1ª parte)” (DireitoPenal, cit., v. 2, p. 484).6 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,

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p. 302.7 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 514.8 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 304.9 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 304.10 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 515.11 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 610.12 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, v. 1,p. 436.13 Lembrava Nélson Hungria que o Código Penal francês de1810 manteve-se fiel ao sistema anterior, assim como osCódigos Penais português e espanhol, que se mantiveramem vigor até quase o final do século XX. Os Códigosbrasileiros de 1830 e de 1890 também mantiveram essaorientação (Comentários ao Código Penal, cit., v. 7, p. 301 e302).14 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal comentado, cit.,p. 601.15 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 602 e 603.16 Giuseppe Maggiore, Derecho Penal, cit., v. 5, p. 1067.17 Mir Puig, Derecho Penal, cit., p. 470.18 Manuel Vidaurri Aréchiga, La culpabilidad en la

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doctrina jurídicopenal española (tese de doutorado,inédita), Universidad de Sevilla, p. 116.19 Muñoz Conde, El error en Derecho, Valencia, Tirant loBlanch, 1989, p. 26 e 31. Para maior aprofundamento dasteorias do dolo e da culpabilidade, ver Francisco de AssisToledo, Teorias do dolo e teorias da culpabilidade, RT, v.566, 1982; Jorge de Figueiredo Dias, O problema daconsciência da ilicitude em Direito Penal, 3. ed., Coimbra,Coimbra Ed., 1987, p. 150.20 Hans Welzel, El nuevo sistema del Derecho Penal — unaintroducción a la doctrina de la acción finalista, trad. JoséCerezo Mir, Barcelona, Ed. Ariel, p. 106.21 Mezger, em edições posteriores, explicou que “ahostilidade ao Direito é equiparável ao dolo em suasconsequências jurídicas, e não no seu conceito”, comoentenderam alguns (Edmund Mezger, Derecho Penal; ParteGeneral, México, Cardenas Editor y Distribuidor, 1985, p.251).22 Mezger fez essa sugestão em 1952, segundo JuanCórdoba Roda, El conocimiento de la antijuricidad en lateoría del delito, p. 62.23 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, cit.,v. 1, p. 355. “A teoria limitada da culpabilidade tem muitospontos em comum com a teoria extremada da culpabilidade.Ambas situam o dolo no tipo e a consciência da ilicitude naculpabilidade; adotam o erro de tipo como excludente do

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dolo, e admitem, quando for o caso, o crime culposo;defendem o erro de proibição inevitável como causa deexclusão da culpabilidade, sem possibilidade de punição aqualquer título (dolo ou culpa). Diferem somente notratamento do erro que incidir sobre as causas dejustificação” (Manual de Direito Penal, cit., v. 1, p. 356).24 Muñoz Conde, El error en Derecho, p. 33. Para maioresdetalhes, veja-se Welzel, El nuevo sistema de DerechoPenal, p. 112 e s.25 Welzel, Derecho Penal alemán, cit., p. 96.26 Idem, ibidem; no mesmo sentido, Gomez Benitez: “Omomento cognoscitivo compreende o conhecimento real ouatual (não somente potencial) da realização dos elementosdescritivos e normativos do tipo...” (Teoria jurídica deldelito — Derecho Penal; Parte General, Madrid, Civitas,1988, p. 205).27 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, cit.,v. 1, p. 235.28 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1; Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 5. ed.,1979, v. 5, p. 405; Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2,p. 148, todos analisando o art. 130 do Código Penal.29 Damásio de Jesus, em recente artigo publicado noBoletim do IBCCrim, n. 52, p. 5, mar. 1997.30 Muñoz Conde e Mercedes García Arán, Derecho Penal;Parte General, 2. ed., Valencia, Tirant lo Blanch, 1996, p. 285.

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31 Cezar Roberto Bitencourt, Teoria geral do delito , cit., p.206; Manual de Direito Penal, cit., v. 1, p. 352.32 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, cit.,v. 1, p. 350; Teoria geral do delito, cit., p. 205.33 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, cit.,v. 1, p. 294; Teoria geral do delito, cit., p. 152.3496 Jescheck, Tratado de Derecho Penal , cit., p. 628.Jescheck cita, na nota n. 19, Binding, o criador da teoria dodolo, que admitia a distinção “entre a oposição conscienteao Direito e à lei moral e a desatenção inconsciente daqueleou desta”.35 Alberto Silva Franco, Código Penal e sua interpretaçãojurisprudencial; Parte Especial, 7. ed., São Paulo, Revistados Tribunais, 2001, v. 2, p. 2967.36 Damásio de Jesus, Código Penal anotado, 11. ed., SãoPaulo, Saraiva, 2001, p. 673.37 Alberto Silva Franco, Código Penal e sua interpretaçãojurisprudencial, cit., v. 2, p. 2967.38 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal comentado, cit.,p. 601.39 Eugenio Florian, Trattato di Diritto Penale, Milano, 1910,v. 1, p. 308.40 Luis Jiménez de Asúa, Principios de Derecho Penal — laley y el delito, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1990, p. 238.41 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 488.

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42 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 604.43 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,6. ed., São Paulo, Saraiva, 2000, p. 609.44 Alberto Silva Franco, Código Penal e sua interpretaçãojurisprudencial, cit., v. 2, p. 2967.45 Damásio de Jesus, Código Penal anotado, 9. ed., SãoPaulo, Saraiva, 1999, p. 637.46 TACrimSP, 7 ª Câm. Crim., Ap. 1.275.895-4, j. 22-11-2001,rel. Des. Luiz Ambra; no mesmo sentido, TJSP, 2ª Câm. Crim.,HC 314.358-3, rel. Juiz Silva Pinto, j. 5-6-2000.47 Alberto Silva Franco, Código Penal e sua interpretaçãojurisprudencial, cit., v. 2, p. 2969.48 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 604 e 605; Guilherme de Souza Nucci, Código Penalcomentado, cit., p. 604.49 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 496.50 As elementares “sabe” e “deve saber”, constantes emalguns tipos penais do Código Penal brasileiro, configuram,em nossa concepção, elementares normativas, sem qualqueridentificação com o dolo (psicológico); devem seranalisadas em dois momentos: primeiro no exame datipicidade e, depois, superado positivamente este, naaplicação da pena, como aspecto da graduação da censurapenal. Para a corrente dominante, contudo, tais elementares

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teriam a função dogmática de identificar as espécies de dolo.51 Hans Welzel, Derecho Penal alemán, cit., p. 83.52 Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal ;Parte Geral, 8. ed., São Paulo, Saraiva, 2003, v. 1.53 Alberto Silva Franco, Código Penal e sua interpretaçãojurisprudencial, cit., v. 2, p. 2972.54 Confirmando essa nossa afirmação, ao examinar o crimede perigo de contágio venéreo (art. 130), na mesma linha deraciocínio, admitimos ora dolo direto, ora dolo eventual(Tratado de Direito Penal , 3. ed., São Paulo, Saraiva, 2003,v. 2).55 Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal , cit.,v. 1.56 Juarez Cirino do Santos, Direito Penal; Parte Geral, Riode Janeiro, Forense, 1985, p. 80.57 José Cerezo Mir, Curso de Derecho Penal español,Madrid, Tecnos, 1985, p. 279.58 Damásio de Jesus, Direito Penal, 20. ed., São Paulo,Saraiva, 1997, v. 1, p. 451-3.59 Damásio de Jesus, Direito Penal, 12. ed., São Paulo,Saraiva, 1988, v. 1, p. 133-396.60 René Ariel Dotti, O incesto, Curitiba, Dist. Ghignone,1976, p. 173.61 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v.1, p. 216.

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62 Hans Welzel, El nuevo sistema del Derecho Penal, cit., p.80.63 Edmund Mezger, Tratado de Derecho Penal , Madrid,Revista de Derecho Privado, 1935, p. 12.64 Luis Jiménez de Asúa, Tratado de Derecho Penal ,Buenos Aires, Losada, 1976, p. 179 e 228.65 Manuel Vidaurri Aréchiga, La culpabilidad, p. 83.66 Welzel, El nuevo sistema del Derecho Penal, cit., p. 79.67 Francisco Muñoz Conde e Mercedes García Arán,Derecho Penal, cit., p. 215.68 Ver, na mesma linha do nosso pensamento, Guilherme deSouza Nucci, Código Penal comentado, cit., p. 606-8.69 José Cerezo Mir, Curso de Derecho Penal español, cit., p.267; no mesmo sentido, Muñoz Conde e Mercedes GarcíaArán, Derecho Penal, cit., p. 215.70 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 243.71 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, 6.ed., v. 1.72 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 311 e 316.

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CAPÍTULO XXVIII - DISPOSIÇÕES GERAIS DOSCRIMES CONTRA O PATRIMÔNIO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Repercussão doEstatuto do Idoso nos crimespatrimoniais. 3. Imunidade penalabsoluta. 4. Imunidade relativa:condição de procedibilidade. 5. Exclusãode imunidade ou privilégio. 5.1.Concurso eventual de estranhos:coautoria ou participação.

Capítulo VIII

DISPOSIÇÕES GERAIS

Art. 181. É isento de pena quem comete qualquerdos crimes previstos neste título, em prejuízo:

I — do cônjuge, na constância da sociedadeconjugal;

II — de ascendente ou descendente, seja oparentesco legítimo ou ilegítimo, seja civil ounatural.

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Art. 182. Somente se procede medianterepresentação, se o crime previsto neste título écometido em prejuízo:

I — do cônjuge desquitado ou judicialmenteseparado;

II — de irmão, legítimo ou ilegítimo;III — de tio ou sobrinho, com quem o agente

coabita.Art. 183. Não se aplica o disposto nos dois

artigos anteriores:I — se o crime é de roubo ou de extorsão, ou, em

geral, quando haja emprego de grave ameaça ouviolência à pessoa;

II — ao estranho que participa do crime;III — se o crime é praticado contra pessoa com

idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.• Inciso III acrescentado pela Lei n. 10.741, de

1º de outubro de 2003.

1. Considerações preliminares

Por razões de ordem político-criminal, visando em

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primeiro plano a harmonia e a solidariedade família,as legislações penais, desde o direito romano,concederam imunidade penal, absoluta ou relativa,nos crimes patrimoniais praticados entre cônjuges ouparentes próximos. No direito romano sefundamentava essa orientação na concepção dacopropriedade-familiar, que não admita a actio furtiquando o autor fosse filho ou cônjuge do lesado1.Para os romanos a preservação da honorabilidade eramais importante do que punir incondicionalmente oscrimes patrimoniais, especialmente quando erampraticados infrafamília.

O Código Napoleônico de 1810 não se afastoudaquela orientação romana, admitindo a impunidadepara o crime de furto, desde que cometido entrecônjuges, ascendentes e descendentes.

Os dois Códigos Penais brasileiros do século XIX(1830 e 1890) previam a impunidade para os crimes defurto praticados entre parentes.

O atual Código Penal brasileiro (1940) adotou amesma orientação, seguindo a filosofia romana.Prioriza a harmonia e a integridade dos laçosfamiliares, assegurando a imunidade, absoluta ourelativa, de acordo com o nível de parentesco entreautor e vítima, disciplinada nos arts. 181 e 182.

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2. Repercussão do Estatuto do Idoso nos crimespatrimoniais

Quando tratou dos crimes em espécie praticadoscontra quem o legislador conceituou como idoso(pessoa com idade igual ou superior a 60 anos deidade), o estatuto determinou que referidas infraçõespenais são de ação pública incondicionada, “nãose lhes aplicando os arts. 181 e 182 do Código Penal”(art. 95). Embora, com algum esforço, se possacompreender a boa intenção do legislador, eespecialmente tentando salvar aquela superadamáxima de que a lei não tem palavras inúteis,concretamente, pode-se afirmar que não apenas aspalavras são inúteis como toda a previsão relativaaos dois artigos mencionados é absolutamentedesnecessária e supérflua. Com efeito, suprimindo-seessa previsão legal (art. 95), a situação continuaexatamente a mesma, ou seja, aquelas prescriçõesdos arts. 181 e 182 do Código Penal não se aplicamaos crimes tipificados no Estatuto do Idoso. Atradicional miopia do legislador brasileiro impediu-ode perceber que o conteúdo dos arts. 181 e 182 doCódigo Penal aplica-se exclusivamente aos crimescontra o patrimônio contidos no Título II da ParteEspecial do Código Penal, e, certamente, os crimesespeciais relativos ao idoso não têm natureza

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patrimonial. Na verdade, a nenhum outro crime, denatureza patrimonial ou não, aplica-se o disposto nosindigitados arts. 181 e 182 do CP.

Por outro lado, o mesmo Estatuto do Idoso, noseu art. 110, amplia as causas excludentes daquelasimunidades dos crimes contra o patrimônio,incluindo um terceiro inciso no art. 183 do CP, com aseguinte redação: “se o crime é praticado contrapessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta)anos”. Com essa previsão legal, é irrelevante que ocrime patrimonial seja praticado contra cônjuge,ascendente ou descendente, se o ofendido tiveridade igual ou superior a sessenta anos.

A despeito de pretender proteger o “idoso”, anosso juízo, é discriminatório taxar de “idoso”pessoa com sessenta anos de idade, especialmentequando a ciência tem comprovado o grande aumentona longevidade neste início de milênio. Com efeito,muitas pessoas, na faixa dos sessenta anos, nãodeixarão de se sentir, de certa forma, discriminadas,ao serem, por determinação legal, consideradas“idosas”.

3. Imunidade penal absoluta

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Trata-se de causas pessoais de exclusão de pena(escusas absolutórias), que funcionam, segundoHeleno Fragoso, como condições negativas depunibilidade do crime2. O fundamento que osromanos já utilizavam continua a justificar a políticacriminal adotada pelo legislador de 1940, ou seja, oEstado prefere renunciar ao ius puniendi parapreservar a paz social, por razões de política criminal.

O fato não perde sua ilicitude, sendo puníveis,por essa razão, eventuais estranhos que deleparticiparem. A escusa absolutória pessoal nãoexclui o crime: impede somente a aplicação de penaàs pessoas relacionadas no dispositivo (art. 181):

a ) Cônjuge, na constância da sociedadeconjugal — A primeira hipótese destina-se somenteaos cônjuges na constância da sociedade conjugal,excluindo-se o concubinato, companheirismo,casamento religioso, sem efeitos civis, a uniãoestável, bem como os cônjuges separados oudivorciados. A vigência do casamento é consideradaao tempo do crime e não ao tempo em que instauradaa ação penal ou julgada em primeiro ou segundograu.

O casamento posterior ao fato não tem efeitoextintivo da punibilidade, como ocorria nos crimessexuais, antes da alteração procedida pela Lei n.

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11.106/2005. Pela mesma razão, é irrelevante que,após o fato delituoso, sobrevenha separação judicialou divórcio: a imunidade judicial persistirá, porqueao tempo do fato havia a causa extintiva. No mesmosentido, a eventual anulação do matrimônio,independentemente da causa, não retroagirá para ofim de afastar a impunidade, salvo se ficarcomprovada a má-fé do sujeito ativo.

É indiferente o regime de bens do casamento ouque tenha sido celebrado no País ou no estrangeiro.Também é irrelevante que sobrevenha a morte docônjuge lesado.

b) Ascendente ou descendente, seja o parentescolegítimo ou ilegítimo, civil ou natural — Estasegunda hipótese dirige-se aos crimes praticados porascendente contra descendente e vice-versa, sejaqual for a natureza do parentesco (civil, natural,legítimo ou ilegítimo). Ascendentes e descendentessão os parentes vinculados uns aos outros em linhareta, tais como bisavô, avô, pai, filho, neto, bisnetoetc. Para se admitir a imunidade, nessa linha, não hágrau de limitação. Pela previsão do Código Penal,admitindo a relação de parentesco, civil ou natural, jáestaria incluída a filiação adulterina e incestuosa.Pelo Texto Constitucional de 1988, essa orientaçãofoi reforçada, ficando absolutamente proibida

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qualquer discriminação relativa à filiação: “Os filhos,havidos ou não da relação do casamento, ou poradoção, terão os mesmos direitos e qualificações,proibidas quaisquer designações discriminatóriasrelativas à filiação” (art. 277, § 6º, da CF).

O “parentesco afim”, como sogro, nora e genro,não é alcançado pela imunidade penal.

4. Imunidade relativa: condição de procedibilidade

No art. 182 o Código Penal trata das chamadasimunidades relativas, que não afastam apunibilidade do fato praticado, mas criamdeterminado obstáculo ao exercício da ação penal.Nas hipóteses relacionadas nesse dispositivo legal, aautoridade pública (autoridade policial ou MinistérioPúblico) de uma condição de procedibilidade —representação do ofendido — para instaurar a açãopenal.

Na verdade, não se trata de imunidade, absolutaou relativa, mas simplesmente de alteração daespécie de ação penal, condicionada àrepresentação do ofendido, desde que o crimepatrimonial tenha sido praticado em prejuízo docônjuge desquitado ou judicialmente separado;

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irmão, legítimo ou ilegítimo; tio ou sobrinho comquem o agente coabita.

Convém registrar, para evitar equívocos, que oscrimes de exclusiva iniciativa privada não sãoabrangidos pelo disposto no artigo em exame, que serestringe aos crimes de ação pública, pois naqueles ainiciativa da ação penal já depende da vontadeexclusiva da vítima.

As hipóteses destacadas são as seguintes:a ) Cônjuge desquitado ou judicialmente

separado — Embora o texto legal utilize aterminologia “desquitado”, deve-se dar-lheinterpretação contextualizada, uma vez que desde1977 o desquite foi substituído pela separaçãojudicial e pelo divórcio. Assim, essa condição deprocedibilidade é exigida quando o crimepatrimonial for praticado por ex-cônjuges, um contrao outro, que se encontrem separados ou divorciados.A separação de fato está excluída dessa relação,pois, nessa hipótese, estará configurada aimunidade absoluta disciplinada no art. 181, namedida em que a separação de fato não rompe,juridicamente, o vínculo matrimonial.

b ) Irmão, legítimo ou ilegítimo — É indiferenteque se trate de irmãos bilaterais (germanos) ouunilaterais. Se o dano for além do irmão, atingindo

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também algum estranho, desaparecerá a condição deprocedibilidade, mantendo a ação penal sua naturezajurídica normal de pública incondicionada.

c) Tio ou sobrinho com quem o agente coabita— Tio e sobrinho são parentes em linha colateral,ao contrário de ascendente e descendente, que o sãoem linha reta, ad infinitum.

A exigência legal para condicionar a ação penal àrepresentação do ofendido, nessa hipótese, é de quevítima e infrator coabitem sob o mesmo teto, comanimus duradouro, sendo insuficientes algumaspassagens esporádicas. Coabitar é morar junto, namesma casa, sob o mesmo teto. MagalhãesNoronha3 destacava que “coabitação é qualidadeque a lei requer entre os parentes; devem sercoabitantes, nada importando, todavia, que o crimese dê fora da residência comum, como quando, porexemplo, se acham em viagem, em cidade diferentedaquela onde têm coabitação”.

É necessário, segundo se presume do texto legal,que vítima e infrator convivam no momento do crime.A coabitação anterior ou posterior ao fato éindiferente para configurar a coabitação exigida.

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5. Exclusão de imunidade ou privilégio

A imunidade (art. 181) e a condição deprocedibilidade (art. 182) são afastadas emdeterminadas circunstâncias, que o legislador houvepor bem especificar no texto legal (art. 183).

Assim, a isenção prevista no art. 181, que éabsoluta, não se aplica quando o crime for de rouboou extorsão, quando houver emprego de violência apessoa ou grave ameaça ou quando a vítima formaior de sessenta anos. Nas mesmas circunstâncias,também é afastado o privilégio estabelecido no art.182 quanto à necessidade de representação.

Nas hipóteses de crime de roubo ou extorsão, ouquando, de qualquer forma, houver emprego deviolência ou grave ameaça, não se justificam osfavores concedidos pela lei. De forma genérica, pode-se afirmar: os “benefícios” ora em exame somente seaplicam às hipóteses de crimes patrimoniaispraticados sem violência ou grave ameaça à pessoa.

5.1 Concurso eventual de estranhos: coautoria ouparticipação

O concurso eventual de pessoas (art. 29) podeocorrer em qualquer espécie de crime, com ou sem

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responsabilidade penal de um ou maisintervenientes. Por outro lado, no concursusdelinquentium, as circunstâncias de caráter pessoalsomente se comunicam quando forem elementaresdo crime (art. 30).

As condições ou estado das pessoasrelacionadas nos arts. 181 e 182 não são elementosconstitutivos dos crimes patrimoniais de que tratam.Por essa razão, de forma simplificada, pode-se afirmarque as “imunidades” previstas nesses doisdispositivos não se comunicam ao estranho que,eventualmente, participe da prática dos crimes, deacordo com a regra geral estabelecida pelo art. 30,antes referido. No entanto, o próprio legisladorpreocupou-se em espancar qualquer dúvidainterpretativa possível e dispôs, expressamente, quea impunibilidade ou punibilidade relativa não seestende ao estranho.

1 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 324.2 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,

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p. 562.3 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 533.

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CAPÍTULO XXIX - VIOLAÇÃO DE DIREITOAUTORAL

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1.Inovações da Lei n. 10.695/2003. 5.Figuras qualificadas: majoração penal.5.1. Intuito de lucro é o fundamento damajoração penal. 5.2. Elementonormativo do tipo: sem autorização. 6.Repressão da ciberpirataria. 7. Tiposubjetivo: adequação típica. 8.Consumação e tentativa. 9.Classificação doutrinária. 10. Pena eação penal. 11. Algumas questõesespeciais.

TÍTULO III | DOS CRIMES CONTRA APROPRIEDADE IMATERIAL

Capítulo I

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DOS CRIMES CONTRA A PROPRIEDADEINTELECTUAL

Violação de direito autoralArt. 184. Violar direitos de autor e os que lhe

são conexos:Pena — detenção, de 3 (três) meses a 1 (um)

ano, ou multa.§ 1º Se a violação consistir em reprodução total

ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto,por qualquer meio ou processo, de obra intelectual,interpretação, execução ou fonograma, semautorização expressa do autor, do artista intérpreteou executante, do produtor, conforme o caso, ou dequem os represente:

Pena — reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos,e multa.

§ 2º Na mesma pena do § 1º incorre quem, com ointuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende,expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire,oculta, tem em depósito, original ou cópia de obraintelectual ou fonograma reproduzido comviolação do direito de autor, do direito de artistaintérprete ou executante ou do direito do produtorde fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia

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de obra intelectual ou fonograma, sem a expressaautorização dos titulares dos direitos ou de quemos represente.

§ 3º Se a violação consistir no oferecimento aopúblico, mediante cabo, fibra ótica, satélite, ondasou qualquer outro sistema que permita ao usuáriorealizar a seleção da obra ou produção pararecebê-la em um tempo e lugar previamentedeterminados por quem formula a demanda, comintuito de lucro, direto ou indireto, sem autorizaçãoexpressa, conforme o caso, do autor, do artistaintérprete ou executante, do produtor defonograma, ou de quem os represente:

Pena — reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos,e multa.

§ 4º O disposto nos §§ 1º, 2º e 3º não se aplicaquando se tratar de exceção ou limitação ao direitode autor ou os que lhe são conexos, emconformidade com o previsto na Lei n. 9.610, de 19de fevereiro de 1998, nem a cópia de obraintelectual ou fonograma, em um só exemplar, parauso privado do copista, sem intuito de lucro diretoou indireto.

• Artigo com redação determinada pela Lei n.10.695, de 1º de julho de 2003.

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1. Considerações preliminares

A violação de direito autoral não era objeto dedisciplina nas Ordenações Afonsinas e Manuelinas.O Código Criminal de 1830 criminalizava a violaçãode direitos autorais como uma forma sui generis docrime de furto (art. 261). O Código Penal de 1890, porsua vez, ampliou a proteção penal da violação dosdireitos autorais, fazendo-o em vários dispositivos. Olegislador de 1940 procurou sintetizar as previsõesdo diploma anterior.

Finalmente, o caput do art. 184 recebeu a redaçãodada pela Lei n. 6.895, de 17 de dezembro de 1980, eos §§ 1º e 2º receberam a redação da Lei n. 8.635, de16 de março de 1993, que acrescentou o § 3º, cujavigência durou até julho de 2003, com o advento daLei n. 10.695/2003.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é o direito autoral, que,na verdade, constitui um complexo de direitos —

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morais ou patrimoniais — nascidos com a criação daobra. Em outros termos, o objeto jurídico da proteçãopenal é a propriedade intelectual. Os direitosautorais abrangem os direitos de autor e os direitosque lhe são conexos.

Direitos conexos aos do autor são os relativos àinterpretação e à execução da obra por seu criador,considerando-se como tais a gravação, reprodução,transmissão, retransmissão, representação ouqualquer outra modalidade de comunicação aopúblico. O direito de arena também constitui umdireito conexo ao do autor.

A locução “violar direitos do autor” adquiriu aabrangência ampliada para significar violação detodo e qualquer direito autoral, inclusive aquelesdenominados conexos. Os direitos de autor nascemcom a criação e utilização econômica de obra(intelectual, artística, estética, científica, literária,escultural ou cultural) e decorrem do próprio ato decriação; podem ser morais e patrimoniais.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, semnenhuma condição especial. Nada impede que

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ocorram as figuras da coautoria e da participação,desde que presente o elemento subjetivo do crime.

Sujeito passivo somente pode ser o titular dodireito autoral, isto é, o criador de obra intelectual,que pode ser literária, científica ou artística, ou, naausência do criador, seus herdeiros ou sucessores.Em verdade, os direitos do autor podem ser total ouparcialmente transferidos a terceiros, ressalvadosaqueles de natureza personalíssima, como o deproceder a modificações na obra.

A pessoa jurídica, de direito público ou privado,também pode ser sujeito passivo desse crime.Quando for pessoa jurídica de direito público, a açãopenal será pública incondicionada.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A violação dos direitos de autor pode concretizar-se de formas variadas, tais como a reproduçãográfica da obra original, ou comercialização de obrasoriginais, sem autorização do autor ou seurepresentante legal.

A ação delituosa consiste em violar direito deautor ou os que lhe são conexos. Violar significatransgredir, falsificar ou ofender o direito do autor. A

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lei penal não define o que é direito de autor oudireito autoral. Essa definição deve ser buscada nalei civil (9.610/98), caracterizando-se, pois, comonorma penal em branco. O direito autoral surge coma criação de obra original, independentemente dequalquer formalidade ou registro.

Direito autoral consiste nos benefícios,vantagens, prerrogativas e direitos patrimoniais,morais e econômicos provenientes de criaçãoartísticas, científicas, literárias e profissionais de seucriador, inventor ou autor. Direito autoral, enfim,“engloba o direito de autor e os chamados direitosconexos do direito de autor (direitos dos artistas,intérpretes ou executantes, dos produtores defonogramas e dos organismos de radiodifusão),disciplina a atribuição de direitos relativos às obrasliterárias, científicas e artísticas”1. Essa abrangênciaé favorecida pela nova definição legal que incluiu osdireitos conexos aos de autor. Violar direito autoralsignifica infringir, ofender, transgredir direitos doautor (que podem ser morais, patrimoniais oueconômicos) e os que lhes são conexos.

4.1 Inovações da Lei n. 10.695/2003

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A redação anterior punia a violação de direito deautor que não tivesse o intuito de obtenção de lucro,mantida nesse particular. A nova redação incluiu nocaput a violação de direitos conexos aos de autor.As alterações produzidas pela Lei n. 10.695/2003,com efeito, incluíram nesse tipo penal os “direitosconexos” aos de autor, que são aquelesrelacionados aos artistas intérpretes ou executantes,aos produtores fonográficos e às empresas deradiodifusão, consoante o disposto nos arts. 89 a 96da Lei n. 9.610/98. Foi mantida a mesma pena de trêsmeses a um ano de detenção, ou multa, para a figurasimples.

Direitos conexos são, pode-se dizer, direitosanálogos aos de autor, direitos afins, próximos ouvizinhos aos de autor. De um modo geral, a doutrinaprocura situar os denominados direitos conexos emtrês aspectos distintos: artistas, gravadoras dediscos (incluímos aí as editoras de livros) eemissoras de rádio e de televisão. Esses três setores— e aí acrescentamos os próprios artistas,especialmente aqueles que são intérpretes —, comoórgãos ou meios de divulgação do trabalhointelectual, artístico ou literário, são, na verdade,difusores, divulgadores ou multiplicadores dascriações dos autores. Essa função difusora também é

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exercida pelas editoras gráficas e musicais. Nahipótese de livro, por exemplo, detentora de direitoconexo é a editora que produz, divulga, comercializae divulga a obra do autor.

A Lei n. 10.695/2003 acrescentou a conduta dequem “aluga” original ou cópia de obra intelectual oufonograma reproduzido com violação do direito deautor, do direito de artista intérprete ou executanteou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda,aluga original ou cópia de obra intelectual oufonograma, sem a expressa autorização dos titularesdos direitos ou de quem os represente.

Não se inclui, ao contrário do que pretendemalguns doutrinadores, o “videofonograma”, sob oequivocado argumento de que “foi extirpado do tipopor descuido” do legislador ou porque, nesse caso, aprevisão ficaria sem sentido, pois não abrangeria alocação de fitas VHS e DVDs. Com efeito, o fato denão ser habitual, em nosso país, a locação de livros,revistas ou CDs musicais não autoriza a inclusão defiguras não contidas expressamente no tipo penal.Essa pretensão, desnecessário destacar, viola oprincípio da reserva legal.

Na verdade, permanece uma lacuna, na medida emque a previsão da lei referida não abrange aquelashipóteses das locadoras de vídeos e DVDs que,

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muitas vezes, servem-se de material adquiridolicitamente — são originais e não cópias piratas —,mas que não têm autorização para serem locadas oucomercializadas dessa forma, isto é, embora sejamoriginais devidamente adquiridos, a sua destinaçãonatural é o uso doméstico e não a locação.

5. Figuras qualificadas: majoração penal

Os §§ 1º e 2º do art. 184, com a nova redação,disciplinam as figuras qualificadas da violação dedireitos autorais, com sensível majoração daresposta penal. São tipificadas como qualificadas asseguintes condutas:

1) Reproduzir (reprodução), por qualquer meioou processo, obra intelectual, total ou parcialmente,para fins comerciais, isto é, com intuito de lucro(direto ou indireto), sem autorização expressa dodetentor do direito. É proibida a reprodução de obraintelectual, interpretação, execução ou fonograma. Aautorização pode ser dada pelo detentor do direitoou por seu representante legal (§ 1º).

2) Distribuir, vender, expor à venda, alugar,introduzir no País, adquirir, ocultar, emprestar,trocar ou ter em depósito, com o fim de lucro,

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original ou cópia de obra intelectual, fonograma ouvideofonograma, produzidos ou reproduzidos comviolação de direito autoral (§ 2º).

Esses dois parágrafos abrangem especialmente aprática da pirataria de obras intelectuais, culturais eartísticas. Nessas figuras, a pena mínima, que era deum ano, foi elevada para dois anos, mantendo-se amáxima nos mesmos quatro anos.

5.1 Intuito de lucro é o fundamento da majoraçãopenal

A finalidade lucrativa da mesma condutavioladora de direitos autorais e dos que lhes sãoconexos qualifica o crime, cuja pena cominada é dedois a quatro anos de reclusão e multa. Aumentou-sea pena mínima de um para dois anos, mantendo-se amáxima nos quatro anos, cumulada com a de multa.

A finalidade “comercial” — intuito de lucro —amplia consideravelmente o desvalor da ação e doresultado da conduta violadora do direito autoral.Esse caráter mercenário da pirataria autoral justifica amajoração da sanção penal. A violação em si mesmajá é criminosa e a sua finalidade mercantil a tornaabjeta e merecedora de maior reprovação social. Essaprovidência legislativa tem o mérito de excluir a

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suspensão do processo, quando o móvel do crimefor o intuito de lucro, visando maior coercibilidadeno combate a essa modalidade tão difundida deinfração penal. Na verdade, a elevação da penamínima para dois anos teve um objetivo específicodeclarado: impossibilitar a figura do instituto dasuspensão condicional do processo. Reforçou-seassim a proteção desse bem jurídico, que, noentanto, é absolutamente insuficiente para enfrentaro fenômeno da pirataria, se não vier acompanhada deuma política governamental que disponibilizarecursos materiais humanos tanto para a políciajudiciária quanto para o próprio Poder Judiciário.

A “indústria do xerox”, nas universidades emgeral, estava necessitando de uma medida legislativamais enérgica e moralizadora em todo o país.Incrivelmente, os próprios professores de direito,irresponsavelmente, têm estimulado essa forma deviolação de direitos autorais. A exploração daconhecida atividade fotocopiadora tipifica a figuraqualificada, considerando-se o intuito de lucro deseus exploradores. É bom colocar a barba de molho,pois a figura qualificada é crime de ação públicaincondicionada.

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5.2 Elemento normativo do tipo: sem autorização

Trata-se de um elemento relativo à ilicitude insertano próprio tipo, que assume dupla função, ou seja,não é apenas um aspecto relativo à ilicitude, mastambém uma característica da própria tipicidade.

Para que se aperfeiçoe a adequação típica dasfiguras qualificadas é indispensável que a condutaocorra “sem autorização expressa” de quem dedireito. A ausência de autorização constituielementar típica; havendo autorização, a condutaserá atípica, pela falta desse elemento normativo.

O eventual desconhecimento da inexistência deautorização pode configurar o erro de tipo, que,sendo invencível, afasta completamente a tipicidadeda conduta.

6. Repressão da ciberpirataria

A violação dos direitos autorais e conexos podeoperar-se por meio das chamadas novas tecnologias,especialmente através da Internet. O § 3º, emconsonância com o art. 26, VI, da Lei n. 9.610, reprimeo comércio ilegal de obras intelectuais por viastecnológicas. Pretende esse dispositivo coibir o

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trânsito ilegal de obras intelectuais na rede mundialde computadores (Internet). Na verdade, por essesmeios, o sujeito ativo não promove a venda direta aoconsumidor do produto (que tipificaria condutas doparágrafo anterior), mas disponibiliza em seu site,para download, obras não autorizadas pelo autor ouseu representante legal.

Por essa previsão, para a caracterização daviolação do direito de autor, torna-se desnecessária adisponibilização física da obra em CD, DVD, VHS etc.A própria materialidade do delito será comprovadaatravés de outros meios que a tecnologia podeoferecer, independentemente de eventual apreensãofísica dos produtos alterados, adulterados oufalsificados.

Essa previsão legal pode ainda não ser a ideal,mas já oferece as condições mínimas para se começara combater a pirataria da era cibernética.

7. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo do tipo é constituído pelodolo, que é representado pela vontade livre econsciente de violar direito autoral alheio, além doelemento subjetivo especial do tipo, nas três figuras,

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a seguir discriminadas.Nas modalidades qualificadas — em todas elas —

exige-se o elemento subjetivo do tipo, constituídopelo especial fim de lucro direto ou indireto. Pois éexatamente essa motivação que justifica a maiorgravidade da sua punição.

Nas modalidades de obra teatral e musical exige-se o elemento subjetivo do tipo constituído peloespecial fim de lucro direto e imediato; na figura do §1º, representado pelo fim especial de comércio, e,finalmente, na figura do § 2º, pelo fim especial devenda.

O delito previsto no art. 184, § 2º, do CódigoPenal pressupõe a vontade livre e consciente doagente de vender, expor à venda, alugar, introduzirno País, adquirir, ocultar, emprestar, trocar ou ter emdepósito, com intuito de lucro, original ou cópia deobra intelectual, fonograma ou videofonogramaproduzidos ou reproduzidos com violação de direitoautoral. A eventual ausência dessa vontadeconsciente de praticar qualquer das condutaselencadas com o fim de lucro afasta a qualificadora.

8. Consumação e tentativa

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Consuma-se com a prática efetiva das açõesincriminadas, com a publicidade de obra inédita oureproduzida; tratando-se de pintura ou escultura,com a exposição pública; no caso de obra musical outeatral consuma-se com a publicação, com suaexecução ou representação em local onde se exijaretribuição. Nas formas de exposição e depósitotrata-se de crime permanente.

Como crime material, é admissível a tentativa emqualquer das figuras descritas. Apresenta um itercriminis fracionável, durante o qual o agente podeser involuntariamente interrompido.

9. Classificação doutrinária

Crime comum, podendo ser praticado porqualquer pessoa. Não exige qualquer qualidade oucondição especial; crime de mera conduta, sendodesnecessária a produção de resultado; crimeinstantâneo, com exceção das modalidades de “exporà venda” e “ter em depósito”, descritas no § 2º,quando adquire a natureza de permanente;unissubjetivo, podendo ser executado por uma únicapessoa.

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10. Pena e ação penal

Na figura simples, é cominada, alternativamente,detenção, de três meses a um ano, ou multa; nasfiguras qualificadas (§§ 1º e 2º), é cumulativa:reclusão, de dois a quatro anos, e multa.

Em relação à conduta do caput, a ação penal é deiniciativa privada, salvo se o crime for praticado emprejuízo de entidade de direito público, autarquia,empresa pública, sociedade de economia mista oufundação instituída pelo Poder Público. Em relaçãoàs condutas tipificadas nos §§ 1º e 2º, a ação penalserá pública incondicionada (art. 186).

11. Algumas questões especiais

A matéria tem sido objeto de numerosos tratadose convênios, celebrados com vários países, bemcomo de diversas convenções internacionais. Noexame dessa matéria deve-se atentar sempre paraessas convenções internacionais, a fim de evitarequívocos interpretativos.

O registro de obra intelectual não constituicondição para a propositura da queixa-crime porinfringência ao art. 184 do Código Penal, uma vez que

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o bem imaterial, por se equiparar a propriedademóvel, transmite-se pela simples tradição,inexistindo, pois, qualquer formalidade para a defesado direito do autor.

Ausente o fim lucrativo na aquisição de fitas devideocassete reproduzidas clandestinamente, tem-sepor configurado o crime de receptação e não o deviolação de direito autoral, previsto no art. 184, § 2º2.

Por fim, a Lei n. 10.695/2003 alterouconsideravelmente aspectos procedimentais dessescrimes contra a propriedade imaterial (arts. 524 a 530do CPP).

1 Álvaro Mayrink da Costa, Direito penal; parte especial, 4.ed., Rio de Janeiro, Forense, 1994, v. 2, t. 2, p. 670.2 TAMG, AC 162.824, rel. Des. Herculano Rodrigues,0000969.

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CAPÍTULO XXX - USURPAÇÃO DE NOME OUPSEUDÔNIMO ALHEIO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares.

Usurpação de nome ou pseudônimo alheioArt. 185. (Revogado pela Lei n. 10.695, de 1º-7-

2003.)

1. Considerações preliminares

Esse dispositivo foi revogado pela Lei n.10.695/2003 e tinha a seguinte redação: “Atribuirfalsamente a alguém, mediante o uso de nome,pseudônimo ou sinal por ele adotado para designarseus trabalhos, a autoria de obra literária, científicaou artística”. A pena era de detenção, de 6 meses a 2anos, e multa.

Antes de sua revogação, comentamos que esteera outro crime que não havia sido objeto dosCódigos Penais do século XIX (1830 e 1890). Foi o

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Código Penal de 1940 que tratou do crime deusurpação de nome ou pseudônimo alheio,insculpido entre os crimes contra a propriedadematerial.

Comentamos também que, a nosso juízo, essainfração penal estaria mais bem situada entre oscrimes contra a fé pública, a exemplo da tradiçãoitaliana (Código Penal Rocco).

Com a mencionada revogação, atualmente essaconduta é reprimida pelo direito somente na esferacivil, agindo o legislador de acordo com o princípioda intervenção mínima estudado no volume 1 destaobra (ultima ratio do direito penal).

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CAPÍTULO XXXI - AÇÃO PENAS NOS CRIMESCONTRA A PROPRIEDADE INTELECTUAL

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Natureza da ação penal.3. Prazo decadencial: geral ou especial.4. Prova do direito de ação (art. 526 doCPP): pré-constituída.

Art. 186. Procede-se mediante:I — queixa, nos crimes previstos no caput do art.

184;II — ação penal pública incondicionada, nos

crimes previstos nos §§ 1º e 2º do art. 184;III — ação penal pública incondicionada, nos

crimes cometidos em desfavor de entidades dedireito público, autarquia, empresa pública,sociedade de economia mista ou fundaçãoinstituída pelo Poder Público;

IV — ação penal pública condicionada àrepresentação, nos crimes previstos no § 3º do art.184.

• Artigo com redação determinada pela Lei n.

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10.695, de 1º de julho de 2003.

1. Considerações preliminares

O Código Penal de 1940, em sua redação original,prescrevia: “Nos crimes previstos neste Capítulosomente se procede mediante queixa, salvo quandopraticados em prejuízo de entidade de direitopúblico”. No início da década de 1980, o legisladorbrasileiro, insatisfeito com a clareza da redaçãoanterior, que manteve, preferiu estabelecerexpressamente a abrangência do significado“entidade de direito público”, acrescentando ao finaldaquele texto o seguinte: autarquia, empresapública, sociedade de economia mista ou fundaçãoinstituída pelo poder público, e nos casos previstosnos §§ 1º e 2º do art. 184 desta Lei (Lei n. 6.895, de17-12-1980), que resultou na redação (atual) quevigorou até julho de 2003.

2. Natureza da ação penal

A ação penal que era, em regra, de exclusiva

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iniciativa do ofendido, nos crimes contra apropriedade intelectual, assumiu as seguintesmodalidades: de exclusiva iniciativa privada (I), nashipóteses dos crimes previstos no caput do art. 184;pública condicionada à representação (IV), noscrimes previstos no § 3º do mesmo dispositivo e,finalmente, pública incondicionada, nos crimesprevistos nos §§ 1º e 2º do art. 184 (II), bem comoquando o crime for praticado contra entidade dedireito público, autarquia, empresa pública,sociedade de economia mista ou fundação instituídapelo Poder Público (III).

3. Prazo decadencial: geral ou especial

Discute-se se permanece a regra geral dos seismeses dos arts. 103 do CP e 38 do CPP, ou se esta éafastada pelo disposto no art. 529 do CPP, que fixa oprazo de trinta dias para o oferecimento de queixa, apartir da homologação do laudo pericial.

O prazo decadencial, na realidade, é o de seismeses, conforme a regra geral, uma vez que os trintadias referidos no art. 529 do CPP não constituemprazo decadencial e visam, tão somente, impedir queo ofendido procrastine a propositura da ação penal

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indefinidamente1. Caso contrário, qual seria, afinal, oprazo para iniciar as investigações policiais e parapostular a realização da apreensão e da perícia?Sustentamos que essas diligências devem ocorrerdentro do prazo decadencial de seis meses. Noentanto, a partir da homologação da apreensão ouda perícia, a queixa não pode tardar mais de trintadias. Esse prazo, embora preclusivo, não seconfunde com aquele chamado de decadencial, quese refere exclusivamente ao direito de ação; este, aocontrário, é um prazo procedimental, preclusivo,ininterrupto, que não se suspende, mas alheio aodireito de ação, ao contrário do que normalmente temsido sustentado.

Nesse particular, o Supremo Tribunal Federalcometeu um erro crasso em matéria criminal noacórdão cuja ementa transcrevemos a seguir, a títulode ilustração: “Tratando-se de ação privativa doofendido em crime contra a propriedade imaterial, oprazo para oferecer a queixa é o de trinta dias,previsto no art. 529 do CPP, que é regra especial. E oentendimento que se extrai do aludido dispositivo éque este prazo de decadência começa a fluir daintimação do despacho homologatório do laudopericial dos objetos que constituem o corpo dedelito, pois, salvo os casos expressos, os prazos

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correrão da intimação, conforme dispõe o art. 798, §5º, a, do CPP” (STF, RHC 67.300-7/SP, rel. CarlosMadeira, RT, 648:349). Constata-se facilmente que,nesse julgamento, a Suprema Corte confundiu alhoscom bugalhos. Não existe esse prazo decadencialde trinta dias, como procuramos demonstrar noparágrafo anterior.

A partir da vigência da Lei n. 10.695/2003 (31-7-2003), a previsão contida nos arts. 524 a 530 do CPPserá aplicável exclusivamente aos crimes previstosno caput do art. 184 do CP, ou seja, naqueles cujaação penal é de exclusiva iniciativa privada (art.530-A do CPP, com redação determinada pelo art. 3 ºda lei referida).

Sintetizando, o prazo decadencial para apropositura da ação penal privada é o de seismeses; contudo, homologado o laudo pericial, aqueixa-crime deve ser intentada no prazoimprorrogável de trinta dias (art. 529 do CPP), quenão se confunde com aquele relativo ao direito deação.

4. Prova do direito de ação (art. 526 do CPP): pré-constituída

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A prova do direito de ação, exigida pelo art. 526do CPP, consubstancia-se com a certidão doregistro2 de marca, patente ou direito autoral juntoao órgão federal competente, que confereoficialmente a titularidade ao autor.

Se o crime houver deixado vestígios, éindispensável que a inicial da ação penal (denúnciaou queixa) seja instruída com prova pericial dosobjetos que constituam o corpo de delito (art. 525 doCPP).

Nos crimes contra a propriedade imaterial, olaudo pericial exigido pelo art. 527 do CPP temcaráter de medida cautelar-preparatória, sendopressuposto legal para o exercício da ação penal,porque envolve crime que deixa vestígios. Assim, adecisão que a homologa tem a natureza deinterlocutória mista com força de definitiva,admitindo a apelação, nos termos do art. 593, II, doCPP.

Capítulo II

DOS CRIMES CONTRA O PRIVILÉGIO DEINVENÇÃO

Arts. 187 a 191. (Revogados pela Lei n. 9.279, de

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14-5-1996.)Capítulo III

DOS CRIMES CONTRA AS MARCAS DEINDÚSTRIA E COMÉRCIO

Arts. 192 a 195. (Revogados pela Lei n. 9.279, de14-5-1996.)

Capítulo IV

DOS CRIMES DE CONCORRÊNCIA DESLEAL

Art. 196. (Revogado pela Lei n. 9.279, de 14-5-1996.)

• V. arts. 243 e 244 da Lei n. 9.279/96 (reguladireitos e obrigações relativos à propriedadeindustrial). O art. 244 da referida lei revogaexpressamente os arts. 169 a 189 do Decreto-Lei n.7.903/45 (Código da Propriedade Industrial) e os arts.187 a 196 do Código Penal.

• Os crimes contra a propriedade industrialestão disciplinados nos arts. 183 a 195 da Lei n.9.279/96.

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1 Impecável, nesse sentido, o seguinte acórdão: “Nos crimescontra a propriedade imaterial, tenham ou não deixadovestígios, o prazo decadencial surge de seis meses, fluindodo conhecimento, pelo ofendido, de quem seja o autor dofato (arts. 103 do CP e 38 do CPP). Ultrapassado tal lapsotemporal, opera-se a decadência do direito de queixa”(TACrimSP, Rec., rel. Des. A. C. Mathias Coltro, RT,735:635).2 “Constitui conditio sine qua non para o recebimento dequeixa-crime, por violação de direito autoral, a prova dodireito à ação, exigida pelo art. 526 do CPP, consubstanciadano registro de marca junto ao INDI ou repartição congênere,que, embora facultativo, confere ao autor a titularidade e oconsequente direito a seu uso exclusivo, oponível ergaomnes” (TAMG, Rec., rel. Des. Roney Oliveira, RT, 711:369).

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CAPÍTULO XXXII - ATENTADO CONTRA ALIBERDADE DE TRABALHO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 3.1. Pessoajurídica: impossibilidade. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Formasou meios de execução: medianteviolência ou grave ameaça. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7. Concursocom crimes praticados com violência. 8.Classificação doutrinária. 9. Pena e açãopenal.

TÍTULO IV | DOS CRIMES CONTRA AORGANIZAÇÃO DO TRABALHO

Atentado contra a liberdade de trabalhoArt. 197. Constranger alguém, mediante

violência ou grave ameaça:

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I — a exercer ou não exercer arte, ofício,profissão ou indústria, ou a trabalhar ou nãotrabalhar durante certo período ou emdeterminados dias:

Pena — detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, emulta, além da pena correspondente à violência;

II — a abrir ou fechar o seu estabelecimento detrabalho, ou a participar de parede ou paralisaçãode atividade econômica:

Pena — detenção, de 3 (três) meses a 1 (um)ano, e multa, além da pena correspondente àviolência.

1. Considerações preliminares

Nas civilizações antigas e medievais, o trabalhonormalmente era prestado pelos escravos, que,considerados como res, não possuíam personalidadejurídica1. Nessas legislações não era previsto o crimede atentado contra a liberdade de trabalho.

No Brasil, nem as Ordenações do Reino dePortugal nem o Código Criminal do Império (1830)regularam a matéria. O Código Penal de 1890 foi o

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primeiro diploma legal brasileiro a prever o crimecontra o atentado à liberdade de trabalho (art. 203).

O legislador de 1940, do atual Código Penal, nãoapenas manteve a criminalização da conduta como ainseriu em Título autônomo, denominado Crimescontra a Organização do Trabalho.

A segunda parte do inciso II deste artigo foirevogada tacitamente e substituída pelo disposto noart. 29, VII, da Lei n. 4.330/64. Essa lei, no entanto, foirevogada pela Lei de Greve (n. 7.783/89), a qual nãoprevê crimes especiais, dispondo, apenas, que “aresponsabilidade pelos atos praticados, ilícitos oucrimes cometidos, no curso da greve, será apurada,conforme o caso, segundo a legislação trabalhista,civil ou penal” (art. 15).

A Constituição Federal protege os direitos dostrabalhadores, urbanos e rurais, assim como odireito de greve, ou seja, a organização do trabalho(arts. 7º, 8º e 9º). A competência para julgá-los,segundo a CF, é da Justiça Federal (art. 109, VI);segundo o STF, no entanto, somente serão dacompetência da Justiça Federal aqueles queofenderem interesses coletivos do trabalho: osdemais serão da Justiça Estadual.

Compete à Justiça Federal processar e julgar osdelitos decorrentes de greve se atentam contra a

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organização do trabalho ou os direitos e deveres dostrabalhadores coletivamente considerados2.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é a liberdade detrabalho, isto é, a liberdade de escolher o trabalho, aprofissão, arte, ofício ou indústria que o indivíduodeseja exercer e de decidir quando abrir ou fecharseu próprio estabelecimento de trabalho.

Não há crime contra a organização do trabalhoquando não forem atacados direitos dostrabalhadores como um todo e sim caracterizadamera lesão a direito individual, de naturezapatrimonial, em que a competência se firma em prolda Justiça Estadual. Cuidando-se de possível lesãosomente a direito individual3, não há falar em crimecontra a organização do trabalho para que se dirima acompetência a favor do juízo federal.

Em sentido mais abrangente, pode-se afirmar queo bem jurídico tutelado é a liberdade individual oupessoal de autodeterminação, ou seja, a liberdade doindivíduo de fazer ou não fazer o que lhe aprouver,dentro dos limites da ordem jurídica. A liberdade que

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se protege é a psíquica (livre formação da vontade,isto é, em coação) e a física, ou seja, liberdade demovimento.

A proteção desse bem jurídico, liberdade, ganhouassento constitucional, nos termos seguintes:ninguém será obrigado a fazer ou não fazer algumacoisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, da CF).Assegura-se, assim, ao indivíduo o direito de fazertudo o que a lei não proibir, não podendo serobrigado a fazer senão aquilo que a lei lhe impuser.Nesse sentido, percuciente a afirmação de FlávioAugusto Monteiro de Barros: “A coação empregadapara compelir a pessoa à prestação de ato ouabstenção de fato, fora dos casos em que a leiautoriza, constitui violação ao princípio dalegalidade, dando ensejo à configuração do delito deconstrangimento ilegal”.

O que se viola ou restringe no crime de atentadoà liberdade de trabalho não é propriamente umavontade juridicamente válida, mas a liberdade e odireito de querer e atuar (agir ou não agir) deacordo com as condições pessoais e individuais decada um. Na verdade, somente se diferencia do crimede constrangimento ilegal, que poderíamos chamarde tipo básico, pela natureza da ação ou omissão aque a coação indevida objetiva, que, na hipótese

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examinada, é específica.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,independentemente de condição ou qualidadeespecial; cuida-se, pois, de crime comum. O concursoeventual de pes soas pode normalmente se verificar.

Sujeito passivo em relação ao inciso I pode serqualquer pessoa, desde que na condição detrabalhador, empregado ou patrão, conforme o caso;em relação ao inciso II, primeira parte, o sujeitopassivo só pode ser o proprietário doestabelecimento. Na hipótese desse inciso, a pessoajurídica também pode ser sujeito passivo.

Quando o constrangimento for praticado contracriança, poderá constituir, em concurso formal, ocrime descrito no art. 232 da Lei n. 8.069/90 (ECA),desde que a criança se encontre “sob suaautoridade, guarda ou vigilância”(do sujeito ativo).

Nada impede que a violência ou grave ameaçasejam exercidas contra pessoa diversa daquela quese pretende constranger, ou seja, por meio deviolência ou ameaça indireta. Nessa hipótese, se aameaça for irresistível, e a conduta do ameaçado for

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tipificada criminalmente, haverá autoria mediata. Osujeito ativo será autor mediato e o constrangidonão será autor, mas mero executor, isto é, simplesinstrumento nas mãos daquele, autor mediato, quetem o domínio final do fato. Nesse caso, não haveráconcurso de pessoas — coautoria ou participação—, pois o executor agiu sem culpabilidade; naverdade, faltou-lhe o próprio dolo, nem se podendofalar em ação que pressupõe voluntariedade; porextensão, não se pode falar em tipicidade.

Nessa hipótese — ameaça contra terceiro —, nãose trata de autoria mediata, mas de violência ouameaça indireta, ou seja, o constrangimento aparticipar de greve é realizado por uma ameaçaperpetrada pelo autor do crime, contra terceirapessoa. Por exemplo, o autor do crime ameaça o filhoda vítima para que esta participe da greve. Nessecaso, estaremos diante de uma situação concreta emque a autoria continua sendo direta. O filho da vítimanão sofre, ele mesmo, nenhum constrangimento. Oconstrangimento é exercido pelo próprio autor daameaça, que se serve do direcionamento desta aterceiro, como forma de compelir a vítima a participarde greve.

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3.1 Pessoa jurídica: impossibilidade

Pessoa jurídica não pode ser sujeito passivodesse crime, pois “alguém”, segundo o vernáculo,refere-se exclusivamente à pessoa humana4. Aindaque evolua e se admita, sem restrições, a hipótese daresponsabilidade penal da pessoa jurídica, haverá,sempre, muitas infrações em que não poderá figurarcomo sujeito passivo.

4. Tipo objetivo: adequação típica

Atentado contra a liberdade de trabalho é umaespécie do gênero constrangimento ilegal. Adiferença fundamental deste último, no entanto,reside na finalidade específica que motiva o sujeitoativo do crime de atentado ora em exame; neste, oagente pretende constranger a vítima a praticar umdos comportamentos descritos no art. 197; naquele,isto é, no constrangimento ilegal (art. 146), aconduta do agente pretende levar a vítima “a nãofazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela nãomanda”; com sua característica de generalidade esubsidiariedade, esse tipo penal (art. 146) abranget o d o constrangimento à livre determinação de

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vontade que não tenha recebido configuração legalespecífica sobre o que deve consistir o fazer ou onão fazer exigido pelo agente.

O núcleo do tipo, a exemplo do crime deconstrangimento ilegal, é constranger, que significaobrigar, forçar, compelir, coagir alguém a fazer oudeixar de fazer alguma coisa a que não está obrigado.A finalidade pretendida pelo constrangimento,nesse tipo penal, é obrigar alguém a fazer ou deixarde fazer qualquer das atividades enunciadas nodispositivo legal. A conduta típica pode apresentar-se sob duas modalidades: constranger alguém “I —a exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ouindústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durantecerto período ou em determinados dias; II — a abrirou fechar o seu estabelecimento de trabalho, ou aparticipar de parede ou paralisação de atividadeeconômica”.

São quatro as hipóteses previstas: constrangeralguém a: a) exercer ou não exercer arte, ofício,profissão ou indústria (I, 1ª parte) — compreende-seaqui o exercício de toda e qualquer atividadeeconômica laborativa; b) trabalhar ou nãotrabalhar durante certo período ou em determinadosdias (I, 2ª parte) — a finalidade da ação aqui é forçara vítima a trabalhar ou não trabalhar em determinados

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dias ou períodos, isto é, suprimir-lhe a liberdade detrabalho, de decisão sobre onde, como e quandotrabalhar; c) abrir ou fechar seu estabelecimentoeconômico — o estabelecimento pode ser relativo àexploração de qualquer atividade profissional,comercial, industrial ou agrícola; d) participar deparede ou paralisação de atividade econômica —esta figura foi revogada pelo art. 29 da Lei n.4.330/64. O constrangimento pode ser praticadocontra pessoa diversa daquela cujo trabalho oagente deseja cercear.

Não é necessário que o ofendido oponharesistência efetiva contra a coação ou procuresuperá-la, pedindo socorro ou empregando qualqueroutro recurso; é suficiente que, mediante violênciaou grave ameaça, tenha-se violentado sua liberdadeinterna, constrangendo-o, assim, a realizar o que lhefoi imposto ou a não fazer o que pretendia, semamparo legal.

Havendo greve ilegal, tipificar-se-á o delito doart. 29 da Lei n. 4.330, de 1º de junho de 1964. Para aconfiguração do tipo penal é indispensável oemprego de violência, ficta ou real. Predomina oentendimento jurisprudencial de que só será dacompetência da Justiça Federal quando foremofendidos órgãos e instituições que preservam,

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coletivamente, os direitos trabalhistas. Em que peseo entendimento do STF sobre a competência parajulgar os “crimes contra a organização do trabalho”,definida sob a égide da Constituição anterior, a atualestabelece que compete aos juízes federais processá-los e julgá-los (art. 109, VI, da CF/88).

É indispensável a relação de causalidade entre oemprego da violência ou grave ameaça ou qualqueroutro meio e a submissão da vítima à vontade docoator.

O erro sobre a legitimidade da ação, se forinevitável, exclui a responsabilidade penal a qualquertítulo; se for evitável, excluirá o dolo, restando,subsidiariamente, a culpa (art. 20, caput), que, nessecrime, é impunível.

4.1 Formas ou meios de execução: medianteviolência ou grave ameaça

A lei estabelece as seguintes formas de realizaçãod o atentado contra a liberdade de trabalho: (a)mediante violência (força física, real) ou (b) graveameaça (violência moral, intimidação, viscompulsiva).

Só é legítima a greve exercida pacificamente. Ouso da violência ou grave ameaça a desnatura e

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transforma em atividade delituosa. No atentadocontra a liberdade de trabalho os meios executivossão a violência e a grave ameaça. O emprego de umaou de outra constitui a ratio da incriminação.

a ) Mediante violência — O termo violênciaempregado no texto legal significa a força física,material, a vis corporalis, com a finalidade de vencera resistência da vítima. Essa violência pode serproduzida pela própria energia corporal do agente,que, no entanto, poderá preferir utilizar outros meios,como fogo, água, energia elétrica (choque), gasesetc. A violência poderá ser imediata, quandoempregada diretamente contra o próprio ofendido, emediata, quando utilizada contra terceiro ou coisa aque a vítima esteja diretamente vinculada.

Não é indispensável que a força empregada sejairresistível; basta que seja idônea para coagir avítima a fazer ou não fazer o que o sujeito ativo quer.

b ) Mediante grave ameaça — Constitui formatípica da “violência moral”; é a vis compulsiva, queexerce força intimidativa, inibitória, anulando ouminando a vontade e o querer do ofendido,procurando, assim, inviabilizar eventual resistênciada vítima. Na verdade, a ameaça também podeperturbar, escravizar ou violentar a vontade dapessoa como a violência material. A violência moral

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pode materializar-se em gestos, palavras, atos,escritos ou qualquer outro meio simbólico. Massomente a ameaça grave, isto é, aquela ameaça queefetivamente imponha medo, receio, temor na vítima,e que lhe seja de capital importância, opondo-se asua liberdade de querer e de agir.

O mal prometido, a título de ameaça, além defuturo e imediato, deve ser determinado, sabendo oagente o que quer impor. O mal deve ser: a)determinado, pois, sendo indefinível e vago, nãoterá grandes efeitos coativos; b) verossímil, ou seja,que se possa realizar, e não fruto de merafanfarronice ou bravata; c) iminente, isto é,suspenso sobre o ofendido: nem em passado, nemem futuro longínquo, quando, respectivamente, nãoteria força coatora, ou esta seria destituída do vigornecessário; d) inevitável, pois, caso contrário, se oofendido puder evitá-lo, não se intimidará; e)dependente, via de regra, da vontade do agente, jáque, se depender da de outrem, perderá muito de suainevitabilidade. Enfim, esses são os requisitos que,em tese, a ameaça de mal ou dano deve apresentar.A enumeração não é absoluta nem numerus clausus,podendo, no caso concreto, apresentar-se alguns eoutros não, sem desnaturar a gravidade da ameaça. Éindispensável que a ameaça tenha idoneidade

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intimidativa, isto é, que tenha condições efetivas deconstranger a vítima.

Ao contrário do que ocorre com o crime deameaça, no crime de atentado contra a liberdade detrabalho não é necessário que o mal prometido sejainjusto, sendo suficiente que injusta seja a pretensãoou a forma de obtê-la. A injustiça do mal não seencerra em si mesma, mas deverá relacionar-se ao fimpretendido e à forma de consegui-lo. O mal pode serjusto, mas o fundamento que leva o agente aprometê-lo ou o método utilizado podem não sê-lo.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo é o dolo (direto oueventual), representado pela consciência e vontadede concretizar os elementos da descrição típica,mediante violência ou grave ameaça. São irrelevantesos motivos do constrangimento, como, por exemplo,ser executado com fins de reivindicação legítima oupor quaisquer outras razões.

A consciência abrange a ilegitimidade da ação,dos meios escolhidos (violência ou grave ameaça) ea relação de causalidade entre o constrangimento ea ação ou omissão do sujeito passivo, sendo

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irrelevantes os motivos determinantes, com exceçãodaqueles que excluem a antijuridicidade da conduta.

Se o constrangimento for praticado para satisfazerpretensão legítima, ou se a violência for praticada noexercício da função ou em razão dela, poderáconfigurar exercício arbitrário das próprias razões(art. 345) ou violência arbitrária (art. 322), de acordocom as demais circunstâncias.

O elemento subjetivo especial do tipo éconstituído pelo especial fim de agir, qual seja, o fimde constranger a vítima à ação ou omissãopretendida. Não havendo a finalidade de constrangero ofendido a fazer ou não fazer o que o sujeito ativopretende, o crime não será o de atentado à liberdadede trabalho, mas somente aquele que resultar daviolência ou grave ameaça (vias de fato, ameaça,lesões corporais etc.).

Não há previsão da modalidade culposa deatentado à liberdade de trabalho.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime de atentado contra aliberdade de trabalho quando o ofendido faz oudeixa de fazer o que foi constrangido: na primeira

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hipótese, com o efetivo exercício ou suspensão doexercício de arte, ofício, profissão ou indústria, emface da violência; na segunda, com o trabalhoquando não deveria ou com a suspensão quandodeveria trabalhar, e, na terceira hipótese, com aabertura ou fechamento do estabelecimento detrabalho.

Deve-se ter presente que não se trata de crime demera atividade, que se consuma com a simples ação,mas de crime de lesão que tem uma execuçãocomplexa, exigindo uma duplicidadecomportamental: a ação coativa do sujeito ativo e aatividade coagida do sujeito passivo, fazendo ounão fazendo o que foi constrangido. Assim,consuma-se o crime quando o constrangido, emrazão da violência ou grave ameaça sofrida, começaa fazer ou não fazer a imposição do sujeito ativo.Enquanto o coagido não ceder à vontade do sujeitoativo, isto é, enquanto não der início ao “fazer ounão fazer”, a violência ou grave ameaça podemconfigurar somente a tentativa.

Como crime material, admite a tentativa, que severifica com o início da ação constrangedora, quepode ser fracionada. A exigência de uma execuçãocomplexa, com a ação do sujeito ativo, de um lado, ea atividade do coagido, de outro, facilita a

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identificação do conatus.Podem ocorrer também as hipóteses de

desistência voluntária e arrependimento eficaz,respondendo o agente, é claro, pelos atos jáexecutados, nos termos do art. 15.

7. Concurso com crimes praticados com violência

O preceito secundário da norma penal em examedetermina “pena de detenção, de 3 (três) meses a 1(um) ano, e multa, além da pena correspondente àviolência”.

Não nos convence o entendimento doutrinário,inclusive sustentado por Hungria5, segundo o qualessa previsão legal estaria reconhecendoexpressamente o concurso material (entre oatentado à liberdade de trabalho e o resultado daviolência em si mesma).

O questionamento é inevitável: afinal, essedispositivo estaria dando nova definição para o“concurso material” ou se limitou a cominar a somade penas, adotando o sistema do cúmulo material,quando o crime de atentado à liberdade de trabalhofor praticado com “violência tipificada”, isto é, que

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constitua em si mesmo crime?Com efeito, o que caracteriza o concurso material

de crimes não é a soma ou cumulação de penas,como prevê o dispositivo em exame, mas apluralidade de condutas, pois, no concurso formalimpróprio, isto é, naquele cuja conduta única produzdois ou mais crimes, resultantes de desígniosautônomos, as penas também são aplicadascumulativamente. Ora, esse comando legal —determinando a aplicação cumulativa de penas —não autorizou o intérprete a confundir o concursoformal impróprio com o concurso material. Naverdade, concurso de crimes e sistema de aplicaçãode penas são institutos inconfundíveis; o primeirorelaciona-se à teoria do delito e o segundo à teoria dapena, por isso a confusão é injustificável.

Concluindo, a cominação cumulativa com a penacorrespondente à violência não criou uma espéciesui generis de concurso material, mas adotou tãosomente o sistema do cúmulo material de aplicaçãode pena, a exemplo do que fez em relação aoconcurso formal impróprio (art. 70, 2ª parte). Assim,quando a violência empregada na prática do crimede atentado contra a liberdade de trabalho constituirem si mesma outro crime, havendo unidade de ação epluralidade de crimes, estaremos diante de concurso

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formal de crimes6. Aplica-se, nesse caso, porexpressa determinação legal, o sistema de aplicaçãode pena do cúmulo material, independentemente daexistência ou não de “desígnios autônomos”. Aaplicação cumulativa de penas, mesmo sem apresença de “desígnios autônomos”, constituiexceção da aplicação de penas prevista para oconcurso formal impróprio.

No entanto, a despeito de tudo o que acabamosde expor, nada impede que, concretamente, possaocorrer concurso material, como acontece comquaisquer outras infrações penais, do crime deatentado contra a liberdade de trabalho comoutros crimes violentos, desde que, é claro, haja“pluralidade de condutas e pluralidade de crimes”,mas aí, observe-se, já não será mais o caso deunidade de ação ou omissão, caracterizadora doconcurso formal.

8. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum, podendo ser praticadopor qualquer pessoa, pois não exige qualquerqualidade ou condição especial; material, somentese consuma com a produção do resultado,

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representado pela atividade do ofendido que cumpreas exigências do sujeito ativo; doloso, não havendoprevisão da modalidade culposa; e, geralmente,instantâneo (a consumação não se alonga no tempo).

9. Pena e ação penal

Nas figuras do inciso I, a pena é cumulativa:detenção, de um mês a um ano, e multa; na figura doinciso II, as penas são as mesmas, mas o mínimo,porém, é de três meses. Em todas as hipóteses, sãoacrescidas ainda as penas correspondentes àviolência que, de per si, constituírem crime.

A ação penal é pública incondicionada.

1 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 5. ed., Riode Janeiro, Forense, 1981, v. 8, p. 8.2 “Ações lesivas a direitos trabalhistas individuais, tal comoatentado contra a liberdade de trabalho de uma funcionáriade estabelecimento comercial que, após ter comunicado ao

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empregador seu estado de gravidez, teria sido submetida acumprir seu horário de trabalho de forma constrangedora,não configura crime contra a organização do trabalho,susceptível de fixar a competência da Justiça Federal,prevista no art. 109, VI, da CF” (STJ, CComp 21.920/SP, rel.Min. Vicente Leal, j. 11-11-1998).“O crime contra a liberdade do trabalho (CP, art. 197) não seconfunde com o crime contra a organização do trabalho oudecorrente de greve (Lei n. 4.330/64, art. 29). Se o crime nãoofende o sistema destinado a preservar coletivamente otrabalho, a competência é da Justiça Estadual comum” (STJ,CComp 13.953/SP, rel. Min. Edson Vidigal, 0000578).3 STJ, CComp 23.188/SP, rel. Min. José Arnaldo da Fonseca,j. 9-6-1999.4 Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 8, p. 30.5 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 8,p. 31.6 Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal, 8. ed.,v. 1.

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CAPÍTULO XXXIII - ATENTADO CONTRA ALIBERDADE DE CONTRATO DE TRABALHO E

BOICOTAGEM VIOLENTA

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Formasou meios de execução: medianteviolência ou grave ameaça. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Concursode crimes: violência tipificada. 9. Pena eação penal.

Atentado contra a liberdade de contrato de trabalho eboicotagem violenta

Art. 198. Constranger alguém, medianteviolência ou grave ameaça, a celebrar contrato detrabalho, ou a não fornecer a outrem ou nãoadquirir de outrem matéria-prima ou produtoindustrial ou agrícola:

Pena — detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, e

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multa, além da pena correspondente à violência.

1. Considerações preliminares

O atentado contra a liberdade de contrato detrabalho é um crime que não tem antecedentesremotos. Como na sociedade greco-romana a mão deobra era fundamentalmente escrava, não haviafundamento político-social para preocupar-se com odireito, garantia ou liberdade para celebrar contratode trabalho. Na verdade, não existia uma correlaçãoentre direitos e deveres, mas somente direitos paraalguns (proprietários de escravos) e deveres paraoutros (escravos).

No período medieval, com o domínio dossenhores feudais, a relação trabalhista não era muitodiferente, embora não se tratasse de escravos — asubserviência era a tônica. Em todo o transcorrer daIdade Média, a despeito do surgimento dascorporações, não houve possibilidade de asseguraro direito de o trabalhador celebrar seus contratos detrabalho.

A liberdade contratual foi uma das tantasconquistas asseguradas pela Revolução Francesa,

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que garantiu uma nova orientação libertadora doindivíduo das velhas e autoritárias relaçõesmedievais, representando uma mudança filosófica deconcepção do indivíduo, do Estado e da sociedade.

O direito brasileiro desconheceu essa infraçãopenal até o século XIX, sendo ignorada inclusivepelos Códigos Penais de 1830 e 1890. O Código Penalde 1940 foi o primeiro diploma nacional a disciplinaressa matéria, cujo texto se manteve inalterado até oinício do século XXI.

2. Bem jurídico tutelado

Estamos diante de um tipo penal com objetividadejurídica complexa, tradicionalmente denominadocrime pluriofensivo, isto é, com duas figuras típicascujos bens jurídicos protegidos são distintos. Comefeito, na primeira parte do tipo, o bem jurídicoprotegido é a liberdade de trabalho, maisespecificamente a liberdade de celebrar contrato detrabalho. A conduta proibida limita, indevidamente,a comercialização do produto do trabalho doofendido. Na segunda parte do dispositivo, segundoa doutrina dominante, o objeto jurídico da proteçãopenal não é a liberdade de trabalho, mas a

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normalidade das relações de trabalho1.A conduta proibida é aquela que tem como

objetivo que a vítima não forneça a outrem ou nãoadquira matéria-prima ou produto industrial oua g ríc o la ; matéria-prima (matérias básicas àprodução) seria a substância que serve ou se destinaà elaboração ou fabricação de produto industrial(resultado da indústria manufatureira ou mecânica)ou agrícola.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,independentemente de qualidade ou condiçãoespecial, por exemplo: o empregador, preposto,terceira pessoa etc.

Sujeito passivo pode ser, igualmente, qualquerpessoa que sofra a coação tipificada, por exemplo,comerciante, industrial ou qualquer indivíduo queseja constrangido a não fornecer a matéria-prima ouo produto. O constrangimento exercido, em umamesma circunstância, contra mais de uma pessoaconstitui crime único.

Na forma de boicotagem violenta, sujeito passivo

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é não só quem sofre a coação como também quemsofre a boicotagem.

Embora não seja desarrazoado o entendimento deRegis Prado2 quando sustenta que a pessoa jurídicapode ser sujeito passivo do crime de boicotagemviolenta, não nos parece tecnicamente adequado ànorma proibitiva. Com efeito, qualquer das duasfiguras descritas no dispositivo em exame exige que aconduta de constranger seja praticada contraalguém, e, em nosso vernáculo, não há espaço paraabranger como “alguém” uma ficção, em vez dapessoa natural.

4. Tipo objetivo: adequação típica

O núcleo do tipo, a exemplo do crime deconstrangimento ilegal, é constranger, que significaobrigar, forçar, compelir, coagir alguém a fazer oudeixar de fazer alguma coisa a que não está obrigado.A finalidade pretendida pelo constrangimento,nesse tipo penal, é obrigar alguém a fazer ou deixarde fazer qualquer das atividades enunciadas nodispositivo legal. A conduta típica pode apresentar-se sob três modalidades: “constranger alguém,mediante violência ou grave ameaça, (1) a celebrar

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contrato de trabalho, (2) ou a não fornecer a outremou (3) não adquirir de outrem matéria-prima ouproduto industrial ou agrícola”.

Esse tipo penal prevê duas modalidades deatentado: 1ª) atentado contra a liberdade decontrato de trabalho; 2ª) boicotagem violenta naárea do comércio-indústria. Nas duas hipóteses há,como no crime anterior, constrangimento ilegal,especificado, porém, pela finalidade que orienta aconduta do agente.

Na primeira modalidade, o constrangimentoobjetiva a celebração de contrato de trabalho,coletivo ou individual. Somente se configurará ocrime se o constrangimento for para a celebração docontrato de trabalho, isto é, se o constrangimento forpara não celebrar referido contrato, não haverá essecrime, restando, como crime subsidiário, tãosomente o crime de constrangimento ilegal (art.146).

No entanto, se a conduta do sujeito ativoobjetivar constranger alguém a não celebrarcontrato de trabalho, sua ação será atípica, pois olegislador olvidou-se de criminalizar a forma negativadessa conduta. Restará, contudo, subsidiariamente, apossibilidade de referido comportamento adequar-seao tipo penal descrito no art. 146 (constrangimento

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ilegal). Não se pode ignorar que se trata de gravefalha do legislador, pois tão grave quanto obrigar àcelebração de contrato de trabalho é impedir suacelebração mediante violência ou grave ameaça.

Na segunda figura, pune-se a “boicotagemviolenta”; nessa hipótese, o constrangimento é paranão fornecer ou não adquirir matéria-prima ouproduto industrial ou agrícola. Essa figura é tambémconhecida como boicotagem violenta. Somente oboicote violento — mediante violência ou graveameaça — é adequado ao modelo descrito no tipopenal.

Contrato de trabalho, que pode ser individual oucoletivo, é o “acordo tácito ou expresso,correspondente à relação de emprego” (art. 442 daCLT). Matéria-prima é o produto original, massa ousubstância bruta da qual se pode extrair algumacoisa, isto é, serve para produzir ou industrializaralgum outro produto. Somente o boicote por matéria-prima ou produto industrial ou material caracterizamo crime. Em outros termos, o boicote por dinheironão tipifica esse crime, em razão do princípio datipicidade taxativa. Enfim, a boicotagem consiste emnão fornecer a outrem ou não adquirir de outremmatéria-prima ou produto industrial ou agrícola,considerando-se que se trata de enumeração

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taxativa. Portanto, o não fornecimento de dinheiro (v.g., crédito), não integra o tipo sub examen. O que há,na verdade, é uma relação taxativa de objetos cujofornecimento negado tipifica o crime. Não énecessário que o ofendido oponha resistênciaefetiva contra a coação ou procure superá-la,pedindo socorro ou empregando qualquer outrorecurso; é suficiente que, mediante violência ougrave ameaça, tenha-se violentado sua liberdadeinterna, constrangendo-o, assim, a realizar o que lhefoi imposto ou a não fazer o que pretendia, semamparo legal.

É indispensável a relação de causalidade entre oemprego da violência ou grave ameaça ou qualqueroutro meio e a submissão da vítima à vontade docoator.

4.1 Formas ou meios de execução: medianteviolência ou grave ameaça

A lei estabelece as seguintes formas de realizaçãod o atentado contra a liberdade de contrato detrabalho e boicotagem violenta: (a) medianteviolência (força física, real) ou (b) grave ameaça(violência moral, intimidação, vis compulsiva).

No atentado contra a liberdade de contrato de

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trabalho e boicotagem violenta, a exemplo do crimeexaminado no capitulo anterior, os meios executivossão a violência e a grave ameaça. O emprego deuma ou de outra constitui a ratio da incriminação.

a ) Mediante violência — O termo “violência”empregado no texto legal significa a força física,material, a vis corporalis, com a finalidade de vencera resistência da vítima. Essa violência pode serproduzida pela própria energia corporal do agente,que, no entanto, poderá preferir utilizar outros meios,como fogo, água, energia elétrica (choque), gasesetc. A violência poderá ser imediata, quandoempregada diretamente contra o próprio ofendido, emediata, quando utilizada contra terceiro ou coisa aque a vítima esteja diretamente vinculada.

b ) Mediante grave ameaça — Constitui formatípica da “violência moral”; é a vis compulsiva, queexerce força intimidativa, inibitória, anulando ouminando a vontade e o querer do ofendido,procurando, assim, inviabilizar eventual resistênciada vítima. Na verdade, a ameaça também podeperturbar, escravizar ou violentar a vontade dapessoa, como a violência material. A violência moralpode materializar-se em gestos, palavras, atos,escritos ou qualquer outro meio simbólico. Massomente a ameaça grave, isto é, aquela que

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efetivamente imponha medo, receio, temor na vítima,e que lhe seja de capital importância, opondo-se asua liberdade de querer e de agir.

Tudo o mais que se afirmou sobre violência ougrave ameaça ao examinar o crime descrito no art. 197aplica-se integralmente a essa infração.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo, nas duas figuras típicas, éconstituído pelo dolo, representado pela vontadeconsciente de constranger alguém medianteviolência ou grave ameaça a firmar contrato detrabalho ou a boicotar alguém na entrega de matéria-prima ou produto industrial ou agrícola.

O elemento subjetivo especial do tipo éconstituído pelo especial fim de agir, qual seja, o fimde constranger a vítima à ação ou omissãopretendida (descrita no tipo penal). Não havendo afinalidade de constranger o ofendido a fazer ou nãofazer o que o sujeito ativo pretende, o crime não seráo de atentado à liberdade de contrato de trabalho eboicotagem violenta, mas somente aquele queresultar da violência ou grave ameaça (vias de fato,ameaça, lesões corporais etc.).

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De modo geral, a doutrina tem entendidodesnecessária a presença de elemento subjetivoespecial do injusto.

Não há previsão da modalidade culposa deatentado à liberdade de contrato de trabalho ouboicotagem violenta. Na verdade, os meiosexecutórios — violência e grave ameaça —, por sisós, já afastam qualquer possibilidade de discutir aeventualidade ou razoabilidade de criminalizar amodalidade culposa.

6. Consumação e tentativa

Na primeira figura, consuma-se com a assinaturado contrato ou com o início do trabalho; na segunda,o crime consuma-se com a omissão pretendida peloagente: não aquisição ou não fornecimento. Atentativa é, em tese, possível.

Deve-se ter presente que não se trata de crime demera atividade, que se consuma com a simples ação,mas de crime de lesão, que tem execução complexa,exigindo duplicidade comportamental: a açãocoativa do sujeito ativo e a atividade coagida dosujeito passivo, fazendo ou não fazendo o que foiconstrangido. Assim, consuma-se o crime quando o

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constrangido, em razão da violência ou graveameaça sofrida, começa a fazer ou não fazer aimposição do sujeito ativo. Enquanto o coagido nãoceder à vontade do sujeito ativo, isto é, enquantonão der início ao “fazer ou não fazer”, a violência ougrave ameaça podem configurar somente a tentativa.

Como crime material, admite a tentativa, que severifica com o início da ação constrangedora, quepode ser fracionada. A exigência de uma execuçãocomplexa, com a ação do sujeito ativo, de um lado, ea atividade do coagido, de outro, facilita aidentificação do conatus.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum, podendo ser praticadopor qualquer pessoa, pois não exige qualquerqualidade ou condição especial; material, somentese consuma com a produção do resultado,representado pela atividade do ofendido que cumpreas exigências do sujeito ativo; doloso, não havendoprevisão da modalidade culposa; e, geralmente,instantâneo (a execução não se alonga no tempo) epermanente, na hipótese da segunda figura (oprocesso executório alonga-se no tempo).

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8. Concurso de crimes: violência tipificada

Se qualquer das condutas for praticada comviolência à pessoa, haverá concurso de crimes(formal impróprio), cumulando-se as respectivaspenas (critério do cúmulo material).

A cominação cumulativa das sanções cominadasao crime de atentado à liberdade de contrato detrabalho e boicotagem violenta com a penacorrespondente à violência não criou uma espéciesui generis de concurso material, mas adotou tãosomente o sistema do cúmulo material de aplicaçãode pena, a exemplo do que fez em relação aoconcurso formal impróprio (art. 70, 2ª parte). Assim,quando a violência empregada na prática do crimede atentado contra a liberdade de contrato detrabalho constituir em si mesma outro crime, havendounidade de ação e pluralidade de crimes, estar-se-ádiante de concurso formal de crimes3. Aplica-se,nesse caso, por expressa determinação legal, osistema de aplicação de penas do cúmulo material,independentemente da existência ou não de“desígnios autônomos”.

A aplicação cumulativa de penas, mesmo sem apresença de “desígnios autônomos”, constituiexceção da aplicação de penas prevista para o

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concurso formal impróprio.No entanto, a despeito de tudo o que acabamos

de expor, nada impede que, concretamente, possaocorrer concurso material, como acontece comquaisquer outras infrações penais, do crime deatentado contra a liberdade de trabalho comoutros crimes violentos, desde que, é claro, haja“pluralidade de condutas e pluralidade de crimes”,mas aí, observe-se, já não será mais o caso deunidade de ação ou omissão, caracterizadora doconcurso formal.

Considerações que fizemos sobre o mesmo temano capítulo anterior aplicam-se integralmente àinfração penal ora em exame.

9. Pena e ação penal

A pena cominada, cumulativamente, é detenção,de um mês a um ano, e multa, além da penacorrespondente à violência; a ação penal é públicaincondicionada.

Em todas as hipóteses, são acrescidas ainda aspenas correspondentes à violência, que, de per si,constitui crime. A competência é da Justiça Federal(art. 109, VI, da CF).

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1 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 77; Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p.61.2 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 77.3 Cezar Roberto Bitencourt, Tratado de Direito Penal, 8. ed.,v. 1.

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CAPÍTULO XXXIV - ATENTADO CONTRA ALIBERDADE DE ASSOCIAÇÃO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Trabalhoindividual e crime contra a organizaçãodo trabalho. 5. Tipo subjetivo:adequação típica. 6. Consumação etentativa. 7. Classificação doutrinária. 8.Pena e ação penal.

Atentado contra a liberdade de associaçãoArt. 199. Constranger alguém, mediante

violência ou grave ameaça, a participar ou deixarde participar de determinado sindicato ouassociação profissional:

Pena — detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, emulta, além da pena correspondente à violência.

1. Considerações preliminares

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Embora haja quem afirme que na Antiguidadepodem ter existido alguns indicativos da práticaassociativa, as associações profissionais,institucionalizadas, surgiram no século XVIII. Ascorporações que existiram na Idade Média eramórgãos de representação patronal. No entanto, otratamento legal somente foi dispensado àsassociações a partir da Revolução Industrial. Todosos problemas advindos com a introdução da máquinadespertaram no homem a consciência da necessidadede organizar-se para defender seus direitos.

No Brasil, a Constituição de 1934 foi o primeiroestatuto legal a garantir o direito de sindicalizar-se.A proteção penal, contudo, que fora desconhecidados Códigos Penais anteriores, foi introduzida pelolegislador de 1940. Sebastian Soler1, comentandoartigo do Código Penal argentino, semelhante aonosso, afirmou que referida infração penal é umacriação moderna da luta econômica.

A liberdade associativa foi elevada a garantiafundamental pela Constituição Federal de 1988 (arts.5º, XVII, e 8º, V).

2. Bem jurídico tutelado

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O bem jurídico protegido é a liberdade deassociação e filiação sindical ou profissional,assegurada pela atual Constituição Federal (arts. 5º,XVII, e 8º, V). Com absoluta razão Heleno Fragoso2,com a coragem que sempre o caracterizou, criticavaduramente a forma como a “liberdade sindical” eraconcebida nos “anos de chumbo”, nos seguintestermos: “Todos sabem que se trata de liberdadeinteiramente ilusória, pois o Ministério do Trabalhocontrola com mão de ferro a organização dossindicatos, aplicando textos ditatoriais da CLT (arts.528 e 530, a). Seja como for, a liberdade deassociação é que constitui o bem jurídico que a leipenal tutela”.

A liberdade sindical e de associaçãorepresentam um dos pressupostos de um EstadoDemocrático de Direito.

Pelos termos do art. 199, a tutela penal abrange asdiversas modalidades de associações e sindicatos,pois o que protege é exatamente a liberdadeassociativa.

3. Sujeitos ativo e passivo

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Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, sendodesnecessária condição ou qualidade especial. Podeser, inclusive, membro ou integrante de sindicato ouassociação. Esses, normalmente, são as pessoasmais interessadas no ingresso ou não de certaspessoas em determinado sindicato ou associação.

Se o sujeito ativo for funcionário público, suaconduta poderá configurar também o crime de abusode autoridade (art. 3º, f, da Lei n. 4.898/65).

Sujeito passivo, igualmente, pode ser qualquerpessoa, desde que se trate de trabalhador ouprofissional que possa integrar algum sindicato oualguma associação de classe.

Na modalidade de conduta “deixar de participar”,sujeito passivo somente pode ser membro ouintegrante de associação ou sindicato, o qual sejaconstrangido a abandonar; nessa modalidade,portanto, trata-se de crime próprio.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A ação básica do tipo é constranger alguémmediante violência ou grave ameaça.Constrangimento mediante violência e grave ameaçatem o mesmo sentido daquele utilizado nos artigos

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anteriores, já analisados, para onde remetemos oleitor.

Somente é criminalizada a conduta deconstranger, mesmo mediante violência ou graveameaça, a participação ou não participação emdeterminado sindicato ou em determinadaassociação profissional. O constrangimento aparticipar ou não participar, genericamente, dequalquer sindicato ou associação não tipifica essecrime, mas tão somente o crime de constrangimentoilegal (art. 146).

Associação profissional pode ser definida comogênero da qual o sindicato é a espécie. Associação éa união ou agrupamento de pessoas cuja finalidade éa defesa, estudo e coordenação dos interessesprofissionais que constituem ou integram referidaentidade associativa (art. 1º do Decreto-Lei n.1.402/39 e art. 511 do Decreto-Lei n. 5.452/43 —CLT)3. Sindicato, por sua vez, é a associaçãoprofissional reconhecida pelo Poder Público comolegítima representante da classe de sindicalizados(art. 50 do Decreto-Lei n. 1.402/39 e art. 561 da CLT).Não há sindicato sem os requisitos ou formalidadeslegais. A partir do decreto-lei antes referido,distinguiu-se associação e sindicato; assim, épossível categorias associarem-se sem se

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sindicalizar, mas é impossível sindicalizarem-se semassociar-se, numa verdadeira relação de gênero eespécie.

4.1 Trabalho individual e crime contra aorganização do trabalho

Trabalho, protegido penalmente, neste Título, éinstituto de interesse coletivo. Não se confunde como direito individual do empregado ou doempregador, pois interessa, antes de tudo, àcoletividade, ao Estado, em última instância. A lesãoproduzida por essa infração penal deve repercutirnas relações de trabalho, e não apenas no interesseparticular deste ou daquele trabalhador ouempregador, individualmente considerado. Em outrostermos, se a conduta do sujeito ativo nem sequergerar perigo para a organização do trabalho, isto é,não ultrapassar os interesses individuais para atingiros do sindicato ou associação profissional, não sepode falar em crime contra a organização do trabalho.

Somente haverá resultado próprio do crime deatentado contra a liberdade de associação ocorrendoperigo para a existência ou funcionamento dosindicato ou da associação. Caso contrário, o fatoserá restrito à relação individual de trabalho. O

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trabalho, como bem despersonalizado, não éafetado4.

Os meios executórios do crime de atentado àliberdade de associação — violência ou graveameaça — são os mesmos dos artigos anteriores,que receberam exaustiva e até repetitiva análise denossa parte.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo do crime de atentado contraa liberdade de associação é o dolo, constituído pelavontade livre e consciente de constranger alguém,mediante violência ou grave ameaça, a participar oudeixar de participar de determinado sindicato ouassociação profissional.

Não há previsão de modalidade culposa.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o atentado contra a liberdade deassociação quando o agente, com violência ou graveameaça, impede a associação de alguém em

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determinado sindicato ou associação profissional ouquando, por meio da mesma espécie de conduta,consegue fazer alguém associar-se em determinadosindicato ou associação profissional. Em outrostermos, o atentado à liberdade de associaçãoconsuma-se no momento em que o ofendido, emrazão dos meios violentos empregados, participa oudeixa de participar de sindicato ou de associaçãoprofissional5.

Admite-se, em tese, a tentativa. O eventualemprego de meio violento, sem conseguir a efetivaadesão a sindicato ou associação profissional, ouentão o impedimento de tal adesão, o crime nãopassará de sua modalidade tentada.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum, podendo ser praticadopor qualquer pessoa, pois não exige qualquerqualidade ou condição especial; material, somentese consuma com a produção do resultado,representado pela atividade do ofendido que cumpreas exigências do sujeito ativo; doloso, não havendoprevisão da modalidade culposa; instantâneo (aconsumação não se alonga no tempo) e,

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eventualmente, permanente (cuja execução alonga-se no tempo).

8. Pena e ação penal

A pena cominada, cumulativamente, é dedetenção, de um mês a um ano, e multa, além da penacorrespondente à violência, que, em si mesma,constitui crime. Eventual contravenção (vias de fato,por exemplo) não determina a cumulação de penas.

A ação penal é de natureza públicaincondicionada. A competência é da Justiça Federal,e, por extensão, a atribuição investigativo-policial éda Polícia Federal. Mas a competência somente seráda Justiça Federal se a ação do agente atingir aexistência da associação ou do sindicato, que é uminteresse coletivo de todos os trabalhadores. Noentanto, será da competência da Justiça Estadual, sefor atingido somente o interesse individual dotrabalhador.

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1 Sebastian Soler, Derecho Penal argentino, 3. ed., BuenosAires, TEA, 1970, v. 4, p. 144.2 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 652.3 Antes do Decreto-Lei n. 1.402/39, “associaçãoprofissional” tinha o sentido de sindicato ou associaçãosindical.4 STJ, RHC, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, RT, 730:488.5 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1:“O crime se consuma com a prática de ação positiva(participar) ou negativa (não participar), em consequência daviolência, sendo admissível a tentativa”.

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CAPÍTULO XXXV - PARALISAÇÃO DETRABALHO, SEGUIDA DE VIOLÊNCIA OU

PERTURBAÇÃO DA ORDEM

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1.Abandono coletivo e suspensão dotrabalho. 4.2. Violência contra pessoa oucoisa. 5. Tipo subjetivo: adequaçãotípica. 6. Consumação e tentativa. 7.Pena e ação penal.

Paralisação de trabalho, seguida de violência ouperturbação da ordem

Art. 200. Participar de suspensão ou abandonocoletivo de trabalho, praticando violência contrapessoa ou contra coisa:

Pena — detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, emulta, além da pena correspondente à violência.

Parágrafo único. Para que se considere coletivoo abandono de trabalho é indispensável o concurso

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de, pelo menos, três empregados.

1. Considerações preliminares

A greve, um dos sagrados direitos da competiçãoentre trabalho e capital, tem origem discutível. Paraalguns, é produto da Antiguidade, enquanto paraoutros se trata de um fenômeno social surgido com oliberalismo1 do século XVIII, já que rebelião deescravos não pode ser considerada greve: osescravos, além de serem considerados res, nãopossuíam nenhum direito; também não eramconsiderados trabalhadores, mas meros instrumentosde trabalho, como qualquer outro animal irracional.Os escravos não lutavam por melhores salários oucondições de trabalho, mas apenas para seremtratados como seres humanos2.

O Código Penal napoleônico, de 1810,criminalizava as coalizões trabalhistas,especialmente quando realizadas pelos operários e,excepcionalmente, quando praticadas pelosempregadores, desde que fossem consideradasabusivas. Depois de algumas alterações, porém, arealização de coalizão ou de greve deixou de ser

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considerada crime (Lei de 25-5-1864). A partir de1884, outro diploma legal autorizou na França aliberdade de associação profissional, facilitandodesde então o exercício da greve no berço doliberalismo mundial.

No direito brasileiro, a criminalização do exercícioda greve ocorreu, pela primeira vez com o CódigoPenal de 1890, na contramão do espírito filosófico-econômico que animava os proclamadores daRepública. Esse descompasso político-filosóficolevou a rápida alteração, nesse particular, do primeiroCódigo republicano.

A Constituição de 1937 considerou toda greve etodo lockout condutas antissociais, incompatíveiscom os interesses nacionais (art. 139), posturaadequada, diga-se de passagem, ao período ditatoriald o Estado Novo. O Código Penal de 1940, noentanto, proibiu somente a greve violenta ou aquelaem que houvesse interrupção de serviço de interessecoletivo (art. 201).

O natimorto Código Penal de 1969 nãocontemplava o lockout como crime, o que nãosignifica que eventual violência praticada peloempregador seja impune. Essa infração penal recebeuo nomen juris de “greve violenta”.

A Constituição Federal, símbolo de outros

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tempos, ao contrário daquela do Estado Novo,assegura aos trabalhadores o direito de greve (art.9o), nos limites de um Estado Democrático de Direito.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido, ao contrário do que temsustentado a imensa maioria da doutrina, não é aliberdade de trabalho. Greve e lockout não sãoexercício do direito de trabalhar, mas sua negação, ouseja, é seu não exercício; greve é o não trabalho.

O bem jurídico tutelado é a regularidade emoralidade das relações trabalhistas, é a correção e amoralidade que devem orientar os contratos detrabalho, que, venia concessa, não se confunde com“liberdade de trabalho”.

Na verdade, greve e suspensão de trabalho,como elementares do crime em exame, em princípionão o caracterizam; somente quando qualquer dasduas for executada com violência contra a pessoa oucontra coisa.

3. Sujeitos ativo e passivo

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O sujeito ativo deve ser necessariamenteempregado ou empregador, pois o tipo penalprescreve a suspensão ou o abandono coletivo detrabalho. Em outros termos, sujeito ativo será oparticipante da greve violenta, ou o empregador quetenha promovido a suspensão do trabalho (lockout)mediante violência.

Na hipótese da greve, o crime é plurissubjetivo3,isto é, crime de concurso necessário, uma vez que,além de referir-se a abandono coletivo, reforça, anosso juízo desnecessariamente, a exigência doconcurso de no mínimo três empregados.Equivocam-se aqueles doutrinadores que sustentamtratar-se de crime unissubjetivo4, pois ignoram quenão existe “coletivo representado por uma unidade”.

No caso do lockout, é desnecessária amultiplicidade de empregadores, não sendo hipótesede concurso necessário; se houver concurso, seráeventual (art. 29 do CP). Nesse particular, MagalhãesNoronha5 sustentava equivocadamente ser“indispensável que os patrões (da mesma empresa)sócios ou empregados de categoria participem dolockout violento”.

Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, semcondição especial, incluindo empregado e

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empregador. A pessoa jurídica pode ser sujeitopassivo do crime na modalidade de abandonocoletivo de trabalho, independentemente de aviolência ser praticada contra a pessoa ou contracoisa, ao contrário do entendimento sustentado porLuiz Regis Prado6. Na verdade, pode haver duplasubjetividade passiva, isto é, a vítima da violênciapode ser distinta da vítima da greve ou da suspensãode trabalho.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A conduta tipificada é participar, que, segundo opróprio texto legal, exige pluralidade de pessoas, nomínimo três (parágrafo único); de suspensão ouabandono coletivo de trabalho, praticado comviolência contra pessoa ou contra coisa.

A violência (real) deve ser praticada durante asuspensão ou abandono de trabalho coletivo. Aviolência é aquela utilizada contra a pessoa ou contraa coisa no exercício da ação tipificada propriamente,e não para coagir alguém a participar da greve oususpensão de trabalho7. Essa conduta está tipificadano art. 197, II. Como a finalidade da violência

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empregada é garantir a eficácia da pressão,inviabilizar possível tentativa de conciliação ou,entre outras razões, pela brutalidade natural dosparticipantes, ela deve ocorrer no curso da ação, istoé, da suspensão ou da paralisação coletiva dotrabalho.

A nosso juízo, a incriminação alcança todos osque participarem, independentemente de serem ounão os autores da violência, sendo suficiente ovínculo psicológico entre eles. Com efeito, a locução“praticando com violência” é elementar do tipo, que,nos termos do art. 30 do CP, comunica-se a todos osque intervierem em sua realização,independentemente de terem ou não empregadoviolência. Basta que tenham anuído à conduta dosdemais.

O simples porte de armas brancas pelos“piquetes” de greve com o objetivo de impedir otrabalho de outros companheiros, ocasionando aparalisação das atividades do empregador, nãoconstitui violência contra a pessoa ou contra a coisa,respaldada pela previsão do art. 200 do CP.

As ações ilícitas decorrentes de greves nãopodem ser enquadradas como crimes contra aorganização do trabalho se não ofendem órgãos einstituições destinados a preservar coletivamente o

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trabalho, mas pessoas isoladamente.

4.1 Abandono coletivo e suspensão do trabalho

Abandono coletivo do trabalho é a paralisaçãoefetuada pelos trabalhadores, ou seja, a tradicionalgreve. Contudo, a despeito de o dispositivo falar em“abandono coletivo”, não se trata de crime deconcurso necessário, isto é, aquele que exige,necessariamente, a participação de mais de umapessoa em sua execução. Na verdade, o legisladorpretendeu apenas evidenciar a necessidade de oabandono coletivo ocorrer pelo menos de parte detrês empregados conjuntamente.

Quanto à suspensão do trabalho, que é suaparalisação promovida pelos empregadores(lockout), isto é, a “greve patronal”, não há a mesmaexigência no tipo penal, por isso não se pode afirmarque para a configuração da conduta típica asuspensão deva operar-se por, pelo menos, trêspatrões. Contudo, segundo a doutrina majoritária, overbo nuclear, “participar”, demonstra a necessidadeda intervenção de, pelo menos, três pessoas,podendo ser um empregador e dois empregados, porexemplo8.

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4.2 Violência contra pessoa ou coisa

A greve em si mesma não constitui crime; além deser um direito democraticamente assegurado aostrabalhadores, foi elevada ao nível de garantiaconstitucional (art. 9o). Somente a greve promovidamediante violência, tanto contra pessoa quantocontra coisa, é tipificada como crime. Por isso, agreve sem violência, mesmo que seja declarada ilegalpelos órgãos fiscalizadores, não constituirá crime senão houver violência física.

A simples ilegalidade da greve não a transforma,ipso facto, em crime, pois a ilicitude penal sempreenriquecida de exigências típico-normativas nãorespalda todas as ilicitudes do ordenamento jurídico,mas somente aquelas que se adequarem adeterminado modelo descrito em um dispositivopenal.

Esse dispositivo afasta as consequências dadistinção que o Código Penal faz em relação àviolência praticada sobre a coisa e à violênciapraticada contra a pessoa, quando tipifica os crimesde furto e de roubo. Assim, indiferentemente, tanto aviolência empregada contra a coisa como a utilizadacontra a pessoa são elementares do crime“paralisação de trabalho, seguida de violência ouperturbação da ordem”.

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A violência deve ser anterior ou contemporâneaao período de suspensão ou abandono coletivo detrabalho. Na verdade, não há qualquer relevância sea violência contra pessoa ou coisa se opera antes oudepois do início da greve ou da suspensão dotrabalho, desde que, logicamente, se concretize antesda consumação do crime.

A ausência de previsão legal dos meios, modosou formas de praticar a violência autoriza a utilizaçãode quaisquer deles — manuais ou mecânicos —,desde que sejam idôneos para o fim proposto.

Sobre violência praticada contra a pessoa,remetemos o leitor aos capítulos que tratam doscrimes tipificados nos arts. 197 e 198, ondeexaminamos, com vagar, essa matéria.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

Elemento subjetivo é o dolo, constituído pelavontade livre e consciente de participar desuspensão ou abandono coletivo de trabalho,praticando violência contra pessoa ou contra coisa.É indispensável que o sujeito ativo tenhaconsciência do emprego da violência no exercício da

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atividade incriminada.Não é exigido qualquer elemento subjetivo

especial do tipo, sendo, por isso, irrelevante omotivo ou a razão pela qual a greve ou o lockout serealiza. Não há previsão, tampouco, de modalidadeculposa.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se com a suspensão ou abandonocoletivo do trabalho e a prática de violência, isto é,consuma-se o crime no momento em que, instalada agreve ou o lockout, se produz a violência contrapessoa ou coisa. Como normalmente a maioria dosgrevistas está investida de espírito pacífico, isto é,participa da greve realmente pelos fins neladeclarados, somente respondem pela violênciaaqueles que dela participaram ou, de alguma forma,para ela concorreram, embora todos respondam pelocrime previsto neste artigo. Em outros termos, parao s autores da violência haverá o cúmulo materialde penas (não concurso material de crimes), desdeque estas constituam em si mesmas crimes.

Não se trata de crime de mera atividade, isto é,não se consuma com a simples “participação” em

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atividade tendente a suspender ou abandonarcoletivamente o trabalho, mas, ao contrário,consuma-se com a ação de participar de efetivasuspensão ou abandono coletivo do trabalho!Consequentemente, trata-se de uma açãotransformadora, ação que produz uma consequênciadireta, real e concreta, qual seja, o abandono ou asuspensão efetiva do trabalho, coletivamente. Isso éresultado decorrente da conduta do agente departicipar no impedimento da continuidade dotrabalho. E o meio, legalmente previsto, é“praticando violência” contra pessoa ou contracoisa. A nosso juízo, esse crime somente se consumacom a efetiva paralização coletiva do trabalho, sejapela “suspensão” da atividade laboral dos grevistas,seja pelo seu “abandono coletivo”, e, por exigênciada tipicidade estrita, desde que esse resultado sejaobtido com a prática de violência contra a pessoa oucontra a coisa.

Assim, o crime não atingirá sua consumação se, adespeito da ação empreendida pelo agente, mesmopraticando violência, não lograr êxito em conseguirque se concretize a “suspensão” ou o “abandono”coletivo do trabalho. Nesse caso, à evidência,restará, no máximo, caracterizada a figura do crimetentado.

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Consequentemente, na nossa ótica, admite-se,como crime material, a tentativa. Quando, porexemplo, a despeito da violência empregada, porrazões estranhas à vontade dos participantes, oresultado pretendido — qual seja, a suspensão ou oabandono efetivo do trabalho, coletivamente — nãose produzir, caracterizada estará a tentativa.

7. Pena e ação penal

As penas cominadas, cumulativamente, sãodetenção, de um mês a um ano, e multa, além da penacorrespondente à violência. Aplicar-se-á a penacorrespondente à violência se essa constituir, em simesma, crime (lesão corporal, por exemplo). Nessapena incorrerá somente quem concorrer com aviolência; os demais participantes responderãosomente pelo crime do tipo, que exige violência comoseu meio de execução.

A ação penal é de natureza públicaincondicionada, isto é, não depende de qualquermanifestação do ofendido.

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1 Seabra Fagundes, O direito de greve, RF, 154:12, 1954.2 Para exame mais detalhado, ver Segadas Vianna, Direitocoletivo do trabalho, São Paulo, LTr, 1972, p. 195.3 No mesmo sentido, Luiz Regis Prado, Curso de DireitoPenal brasileiro, cit., v. 2, p. 94.4 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal comentado, cit.,p. 628; Paulo José da Costa Jr., Comentários ao CódigoPenal, cit., p. 680.5 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 65.6 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 95.7 Se a violência for empregada para conseguir adesão àgreve, vide art. 29 da Lei n. 4.330/64.8 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 65.

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CAPÍTULO XXXVI - PARALISAÇÃO DETRABALHO DE INTERESSE COLETIVO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 5.1.Tipicidade de greve pacífica:excepcionalmente. 6. Consumação etentativa. 7. Pena e ação penal.

Paralisação de trabalho de interesse coletivoArt. 201. Participar de suspensão ou abandono

coletivo de trabalho, provocando a interrupção deobra pública ou serviço de interesse coletivo:

Pena — detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois)anos, e multa.

1. Considerações preliminares

O Código Penal de 1940 dispensa tratamento

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distinto para a greve em empresas privadas (art. 200)e empresas públicas ou que pelo menos executemserviços de interesse coletivo (art. 201). Ao contráriodo diploma anterior, não admitiu como meioexecutório a greve mediante grave ameaça, massomente aquela praticada mediante violência física;inovou igualmente nas sanções cominadas, comoveremos ao final.

Sob os auspícios da Constituição ditatorial de1937, o legislador de 1940 criminalizou a prática degreve ou do lockout, pacíficos ou não, de atividadespúblicas ou de interesse social. Posteriormente aesse diploma legal codificado, inúmeras leisdisciplinaram o direito de greve, ampliando ourestringindo esse direito, dentre as quais destacamosas seguintes: a Lei n. 4.330, de 1º de junho de 1964,que, para parte da doutrina1, ao regulamentar odireito de greve, teria revogado o art. 201 do CódigoPenal, admitindo-a, contudo, em atividadesfundamentais (art. 16). A Lei n. 7.783, de 28 de junhode 1989, conhecida como Lei de Greve, revogou a Lein. 4.330, disciplinou o direito de greve, definiu asatividades essenciais, além de regular o atendimentodas atividades inadiáveis da comunidade.

Discute-se longamente sobre a validade ourevogação do art. 201 ora em exame, não apenas pela

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Lei n. 7.783/89, mas com o reforço que esta recebeucom o advento da Constituição Federal de 1988. Demodo geral, a doutrina tem considerado revogadoesse dispositivo penal, orientação que tambémadotamos2 .

Confrontando a atual Lei de Greve (n. 7.783/89) ea Constituição Federal de 1988, parece-nosinquestionável que o disposto no art. 201 do CódigoPenal se encontra efetivamente revogado. Contudo,considerando as divergências reinantes sobre otema, faremos brevíssimas considerações sobre essedispositivo penal, embora consideremos impecável aconclusão de Alberto Silva Franco3 ao afirmar que,caso “seja usada violência ou grave ameaça para ainterrupção da obra pública ou serviço de interessecoletivo, então o delito cometido será aquele do art.200 do CP. Em conclusão, a penalização outipificação da conduta antes descrita no revogadoart. 201 como crime é que ficará na dependência da leicomplementar a que se refere o art. 37, VII, da CF, àqual cometeu a tarefa de estabelecer os limites dodireito de greve e as sanções cabíveis”.

2. Bem jurídico tutelado

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O bem jurídico protegido, a exemplo do artigoanterior, não é a liberdade de trabalho. Greve elockout não são exercício do direito de trabalhar, massua negação, ou seja, o seu não exercício; greve é onão trabalho.

O bem jurídico são a regularidade e a moralidaded a s relações trabalhistas, especialmente aquelasrelacionadas a obras públicas ou serviços deinteresse coletivo; são a correção e a moralidade quedevem orientar os contratos de trabalho, o que,venia concessa, não se confunde com “liberdade detrabalho”.

Na verdade, a simples greve ou suspensão detrabalho, mesmo sem violência, tipificam o crime,desde que provoquem a interrupção de obra públicaou serviço de interesse coletivo, ao contrário doprevisto no artigo anterior, em que somente seconfiguram quando qualquer das duas for executadacom violência contra pessoa ou contra coisa.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo deve ser, necessariamente, oempregado (greve), o empregador (suspensão) quetem sob sua responsabilidade a obra pública ou o

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serviço de interesse coletivo, pois o tipo penalprescreve a suspensão ou o abandono coletivo detrabalho. Pode ser, inclusive, o próprio trabalhador,na hipótese, conjugando-se a abrangência do art. 29do CP, por meio da figura do concurso de pessoas.

Em outros termos, sujeito passivo será oparticipante da greve violenta, ou o empregador quetenha promovido a suspensão do trabalho (lockout)mediante violência.

Na hipótese da greve, o crime é plurissubjetivo4,isto é, crime de concurso necessário, uma vez que,além de referir-se a abandono coletivo, reforça, anosso juízo desnecessariamente, a exigência doconcurso de no mínimo três empregados.Equivocam-se aqueles doutrinadores que sustentamtratar-se de crime unissubjetivo5, pois ignoram quenão existe “coletivo representado por uma unidade”.

No caso de lockout, é desnecessária amultiplicidade de empregadores, não sendo hipótesede concurso necessário; se houver concurso, seráeventual (art. 29 do CP). Nesse particular, MagalhãesNoronha6 sustentava equivocadamente ser“indispensável que os patrões (da mesma empresa),sócios ou empregados de categoria participem dolockout violento”.

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Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa, semcondição especial, incluindo empregado eempregador. A pessoa jurídica de direito públicopode ser sujeito passivo do crime na modalidade deabandono coletivo de trabalho. Mediatamente, podeser sujeito passivo a coletividade, beneficiária daobra pública ou serviço do interesse coletivo.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A conduta tipificada é participar de suspensãoou abandono coletivo de trabalho, nos mesmostermos do artigo anterior. No entanto, a incriminação,aqui, ocorreria quando provocasse a interrupção deobra pública ou serviço de interesse coletivo,independentemente do emprego de violência contracoisa ou pessoa.

Suspensão coletiva de trabalho é a grevepatronal (lockout). Abandono coletivo de trabalho éa greve dos empregados. Constituirá crime se dequalquer deles — suspensão ou abandono —resultar a interrupção de obra pública ou serviço deinteresse coletivo.

É indispensável que haja a participação de umnúmero razoável de empregados. A participação de

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determinado número, insuficiente para acarretar ainterrupção da obra pública ou serviço de interessecoletivo, não tipifica a ação.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo é o dolo, representado pelavontade consciente de participar de suspensão ouabandono coletivo de trabalho, provocando, assim, ainterrupção de obra pública ou serviço de interessecoletivo.

O dolo pode ser direto e eventual, mas semqualquer exigência de elemento subjetivo especial doinjusto. Tampouco há previsão de modalidadeculposa.

Não sendo exigido elemento subjetivo especial doinjusto, é, por isso mesmo, irrelevante o motivo ou arazão pela qual a greve ou o lockout se realizam.

Não há previsão, tampouco, de modalidadeculposa.

5.1 Tipicidade de greve pacífica: excepcionalmente

A greve pacífica e ordeira em atividades

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fundamentais era incriminada. Este dispositivo (art.201), como referido nas considerações preliminares,foi revogado pela Lei n. 4.330/64, que regula o direitode greve, tornando-a admissível em atividadesfundamentais. A Emenda Constitucional de 1969declarou que não será permitida a greve nos serviçospúblicos e atividades essenciais, definidas em lei (art.162). Evidentemente que esse texto constitucionalnão tem o condão de revigorar a incriminação de umalei revogada. A “nova” Lei de Greve, n. 7.783/89, porsua vez, revogou a Lei n. 4.330/64. A atualConstituição Federal (1988) consagrou o direito degreve de forma ampla. Somente os abusos sujeitamos responsáveis às penas da lei (art. 9º, § 2º, da CF).Assim, o art. 201 do CP, em nossa concepção, éinaplicável.

Há, no entanto, crime de greve pacífica, nos casosdos arts. 2º, I, e 22 da Lei n. 4.330/64, devendo-seconsiderar o disposto na Lei de Greve (n. 7.783/89).

6. Consumação e tentativa

Consuma-se com a suspensão ou abandono deobra pública ou serviço de interesse coletivo, isto é,consuma-se o crime no momento em que, instalada a

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greve ou o lockout, se produz a interrupção da obrapública ou serviço referido no tipo.

Admite-se, como crime material, a tentativa.Quando, por exemplo, a despeito do início darealização de greve pacífica, por razões estranhas àvontade dos participantes, não ocorrer a paralisaçãode obra ou serviço de interesse público,caracterizada estará a tentativa.

7. Pena e ação penal

A s penas cominadas, cumulativamente, sãodetenção, de um mês a um ano, e multa, além da penacorrespondente à violência, com as observações quefizemos relativas a esse tema, nos exames dos arts.197 e 198; a ação penal é pública incondicionada.

1 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 681.2 Alberto Silva Franco, Código Penal e sua interpretação

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jurisprudencial, cit., v. 2, p. 2863; Guilherme de Souza Nucci,Código Penal comentado, cit., p. 630; Luiz Regis Prado,Curso de Direito Penal brasileiro, cit., v. 2, p. 101 e 102.3 Alberto Silva Franco, Código Penal e sua interpretaçãojurisprudencial, cit., v. 2, p. 2863.4 No mesmo sentido, Luiz Regis Prado, Curso de DireitoPenal brasileiro, cit., v. 2, p. 94.5 Guilherme de Souza Nucci, Código Penal comentado, cit.,p. 628; Paulo José da Costa Jr., Comentários ao CódigoPenal, cit., p. 680.6 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 65.

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CAPÍTULO XXXVII - INVASÃO DEESTABELECIMENTO INDUSTRIAL, COMERCIAL

OU AGRÍCOLA. SABOTAGEM

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7. Pena e açãopenal. 8. Questões especiais.

Invasão de estabelecimento industrial, comercial ouagrícola. Sabotagem

Art. 202. Invadir ou ocupar estabelecimentoindustrial, comercial ou agrícola, com o intuito deimpedir ou embaraçar o curso normal do trabalho,ou com o mesmo fim danificar o estabelecimento ouas coisas nele existentes ou delas dispor:

Pena — reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, emulta.

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1. Considerações preliminares

Os Códigos Penais de 1830 e 1890 nãoprescreveram nenhum modelo típico semelhante à“invasão de estabelecimento industrial, comercial ouagrícola”, descrito no art. 202 do atual Código Penal,pois vigiam em períodos em que o direito de greve ea liberdade de trabalho não tinham a mesmaexpressão sociopolítica.

O Código Penal de 1940, surgindo em períodoeconômica, política e culturalmente distinto daqueledo século XIX, necessitava reprimir eventuaisexcessos que pudessem ser cometidos pororganizações, associações profissionais ousindicatos, visando garantir a ordem e estabilidadesociais. Essa nova realidade sociocultural justificou aadoção, pelo legislador de 1940, do crime em exame,inspirando-se no Código Penal Rocco de 1930 (art.508).

2. Bem jurídico tutelado

Os bens jurídicos protegidos são, ao mesmotempo, a liberdade e a organização do trabalho. Opatrimônio do proprietário também se inclui na

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proteção jurídica desse tipo penal. Trata-se, naverdade, de crime pluriofensivo, pois viola bensjurídicos individuais que se vinculam aofuncionamento normal de estabelecimento detrabalho e a sua integridade1.

A despeito de esse crime situar-se em outroTítulo do Código Penal, a verdade é que não se podeignorar que o patrimônio individual é o centro datutela penal. Por isso, acreditamos que se trata deuma figura topograficamente mal situada; certamenteestaria mais bem localizada no Título que cuida doscrimes contra o patrimônio.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,empregada ou não. Apesar de não ser crime deconcurso necessário, por sua natureza dificilmenteserá executado por uma única pessoa. Assim sendo,como crime de forma livre, pode ser executado poruma ou mais pessoas, indistintamente.

Sujeitos passivos são o proprietário doestabelecimento e a coletividade, conjuntamente.Ninguém pode ser mais interessado na regularidade

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dos serviços prestados e particularmente naintegridade de seu estabelecimento, seja eleindustrial, comercial ou agrícola, do que o própriodono2. Vivemos em um país capitalista, gostem ounão. O interesse comum da coletividade, embora, noconjunto, seja superior, não é mais intenso, direto eimediato que o do proprietário do patrimônioatingido.

Esse aspecto, aliás, é tão eloquente que podemosdemonstrá-lo com um dado definitivo: oconsentimento do empregador afasta a tipicidadedos comportamentos descritos no dispositivo emexame.

4. Tipo objetivo: adequação típica

O objeto material é o estabelecimento industrial,comercial ou agrícola. Há duas figuras distintas: 1ª)invasão ou ocupação de estabelecimento; 2ª)sabotagem.

As condutas, alternativas, tipificadas são invadir,que significa entrar à força, arbitrária ou hostil; eocupar, que tem o sentido de apossar-searbitrariamente de estabelecimento industrial,

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comercial ou agrícola. A invasão ou ocupação tem afinalidade de impedir ou embaraçar o curso normal dotrabalho. A ausência dessa finalidade desclassifica ocrime para simples invasão de domicílio. Impedir éobstaculizar, não permitir, tornar inviável o cursonormal do trabalho. Embaraçar tem o sentido deobstar, criar dificuldades, opor óbices etc.

A sabotagem apresenta-se sob três modalidadesde ação: a) danificar o estabelecimento; b) danificaras coisas existentes no estabelecimento; c) dispordas coisas existentes no estabelecimento3. Danificarsignifica destruir, inutilizar, deteriorar o objeto daproteção jurídica, no caso, qualquer dosestabelecimentos mencionados.

Em qualquer das três hipóteses a ação deve serpraticada com o fim de impedir ou perturbar otrabalho; caso contrário, o crime será simplesmentede dano.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo,representado pela vontade consciente de invadir ouocupar estabelecimento industrial, comercial ou

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agrícola ou danificar os próprios estabelecimentosou as coisas neles existentes ou, ainda, delas dispor.

O elemento subjetivo especial do tipo, que éindispensável, é constituído pelo fim especial deimpedir ou embaraçar o curso normal do trabalho.Não há previsão de modalidade culposa.

Agindo o sujeito ativo, por exemplo, para fazerjustiça com as próprias mãos, não se caracteriza aconduta em exame, mas exercício arbitrário daspróprias razões. Sem o especial fim de agir podemcaracterizar-se os crimes dos arts. 163 (dano) ou 155(furto), ou ainda do art. 150 (invasão de domicílio);para qualquer das condutas praticadas com finspolíticos, vide o art. 15 da Lei n. 7.170/83.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se com a invasão ou ocupação, comdanificação ou disposição, nas formas descritas,independentemente da obtenção dos finspretendidos. A sabotagem, por sua vez, consuma-seno momento em que o sujeito ativo danifica oestabelecimento ou as coisas nele existentes, ou noinstante em que delas dispõe.

A tentativa é admissível em ambos os crimes,

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visto que a fase executória de qualquer deles admitefracionamento.

7. Pena e ação penal

As penas cominadas, cumulativamente, sãoreclusão, de um a três anos, e multa. Não há previsãode violência, nem como elementar típica nem comoqualificadora ou majorante da sanção penal.

A ação penal é de natureza públicaincondicionada.

8. Questões especiais

Praticado o dano contra propriedade particular,sem que a denúncia demonstre a intenção do agented e embaraçar o curso normal do trabalho,competente é a Justiça Estadual para o processo ejulgamento da infração, mediante queixa. Sem omotivo determinante da ação delituosa não se podeinferir a prática do delito previsto no art. 202 do CP,sob qualquer de suas formas.

A entrada de sócio de empresa comercial em

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escritório da firma para verificar irregularidades quecomprometiam seu patrimônio não constitui crimecontra a organização do trabalho, pois o quecaracteriza o delito do art. 202 do CP é o intuito deembaraçar o curso normal do trabalho, ou, com omesmo fim, danificar o estabelecimento.

1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 656.2 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 43.3 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 44: “Asabotagem possui duas modalidades de conduta: a)danificar o estabelecimento industrial, comercial ou agrícola,ou as coisas nele existentes, com o intuito de impedir ouembaraçar o curso normal do trabalho; e b) dispor das coisasexistentes no estabelecimento industrial, comercial ouagrícola, com o intuito de impedir ou embaraçar o cursonormal do trabalho”.

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CAPÍTULO XXXVIII - FRUSTRAÇÃO DEDIREITO ASSEGURADO POR LEI

TRABALHISTA

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7. Novos tiposassemelhados. 8. Penas e ação penal.8.1. Sanções cominadas. 8.2. Naturezada ação penal. 9. Questões especiais.

Frustração de direito assegurado por lei trabalhistaArt. 203. Frustrar, mediante fraude ou violência,

direito assegurado pela legislação do trabalho:Pena — detenção, de 1 (um) ano a 2 (dois) anos,

e multa, além da pena correspondente à violência.§ 1º Na mesma pena incorre quem:I — obriga ou coage alguém a usar mercadorias

de determinado estabelecimento, paraimpossibilitar o desligamento do serviço em virtude

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de dívida;II — impede alguém de se desligar de serviços de

qualquer natureza, mediante coação ou por meioda retenção de seus documentos pessoais oucontratuais.

• § 1º acrescentado pela Lei n. 9.777, de 29 dedezembro de 1998.

§ 2º A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 1/3(um terço) se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos,idosa, gestante, indígena ou portadora dedeficiência física ou mental.

• § 2º acrescentado pela Lei n. 9.777, de 29 dedezembro de 1998.

1. Considerações preliminares

O Código Criminal do Império (1830) e o CódigoPenal republicano (1890) não se preocuparam com anecessidade de proteção penal de direitostrabalhistas. Assim, o Código Penal de 1940 foi oprimeiro diploma legal brasileiro a disciplinar essamatéria no âmbito criminal.

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O preceito secundário do art. 203 (sanção penal)recebeu nova redação, determinada pela Lei n. 9.777,de 29 de dezembro de 1998. Os §§ 1º e 2º foramacrescentados pela mesma lei.

A expressão “crimes contra a organização dotrabalho”, utilizada no art. 125, VI, da CF, nãoabrange o crime praticado pelo empregador que,fraudulentamente, viola direito trabalhista dedeterminado empregado1.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido abrange todo equalquer direito que seja protegido pela legislaçãotrabalhista. Como destaca Damásio de Jesus2, “Olegislador buscou tutelar a legislação trabalhista,entendendo indispensável ao desenvolvimentoharmônico da sociedade o cumprimento dos deveresimpostos ao empregado e ao empregador”.

Trata-se, como se percebe, de norma penal embranco, pois à legislação trabalhista compete definire disciplinar os direitos assegurados aosempregados e aos empregadores.

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3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser o empregador, oempregado ou qualquer pessoa (empregador,preposto ou alguém estranho à relação trabalhista),independentemente da existência de relaçãoempregatícia, embora, naturalmente, haja uma relaçãode emprego entre o autor do fato e o sujeito passivo.

Sujeito passivo direto é a pessoa cujo direitotrabalhista é frustrado, violado ou sonegado. Quemsofre direta e imediatamente o dano consequente dainfração penal inegavelmente é o titular do “direitofrustrado”. Mediatamente, pode-se admitir o próprioEstado como sujeito passivo. Com efeito, a fraudepode ser praticada pelo patrão ou pelo operário, oupor ambos, de comum acordo3, para, por exemplo,violar direito assegurado pelas leis trabalhistas, que,sendo de ordem pública, são irrenunciáveis. Nessahipótese, o sujeito passivo direto e imediato é oEstado, e não o empregado ou operário.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A ação consiste em frustrar (impedir, iludir,privar), mediante violência ou fraude, direito

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assegurado pela legislação do trabalho. Os meiosexecutivos devem ser mediante violência (viscorporalis) ou fraude (manobra ardilosa, astuciosa,uso de artifício). Sobre o que seja violência,recomendamos que se observem as consideraçõesfeitas na análise dos arts. 197 e 198 deste código.

A ameaça (vis compulsiva) não é meio idôneopara praticar o crime, pois o tipo penal adota comomeios executivos somente violência (vis corporalis)e fraude.

A ação do agente frustra direito assegurado pelalegislação do trabalho. Trata-se de norma penal embranco, dependente de definição da legislaçãotrabalhista, pois será nela que identificaremos essanorma complementadora do tipo penal em análise.

Embora a lei não distinga, pelo menosexpressamente, entre direitos renunciáveis eirrenunciáveis, certamente visa, sobretudo, proteger.Tratando-se, é fácil reconhecer, de direitosrenunciáveis, o empregado pode legalmente delesabrir mão, sendo desnecessária a adoção, peloempregador, dos meios fraudulentos, que olegislador pretende coibir.

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5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo do crime é o dolo,constituído pela vontade consciente de frustrar,mediante fraude ou violência, direito assegurado pelalegislação trabalhista. É indispensável que o agentetenha consciência e vontade de empregar o meioexecutivo, seja a fraude, seja a violência.

Não há necessidade da presença de qualquerelemento subjetivo especial do injusto, sendoirrelevantes as razões ou motivos que levaram oagente a praticar a ação incriminada.

O preceito primário da norma penal incriminadoraé incompleto, tratando-se de caso típico de normapenal em branco. Somente se poderá identificar umainfração penal após investigação preliminar sobre aexistência de um direito trabalhista violado, quedeverá ser esclarecido pelas leis trabalhistas.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime no lugar e no momento emque o titular de direito assegurado pela legislaçãotrabalhista se vê impedido de exercê-lo, ou seja, coma frustração efetiva do direito.

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Admite-se a tentativa, na medida em que suaexecução pode sofrer fracionamento.

7. Novos tipos assemelhados

Os dois incisos do § 1º, acrescentados pela Lei n.9.777/98, criam, na verdade, dois novos tipos penais.O inciso I exige o elemento subjetivo especial doinjusto. Assim, a coação (obrigar também é coagir)para usar mercadorias de determinadoestabelecimento só constituirá esse tipo penal seobjetivar a impossibilidade de desligamento doserviço. No inciso II, mediante coação ou retençãodos documentos da vítima, objetiva-se impedir odesligamento do trabalho.

8. Penas e ação penal

8.1 Sanções cominadas

As sanções penais anteriormente cominadas,cumulativamente, eram detenção, de um mês a umano, e multa, além da correspondente à violência,

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alteradas com o advento da Lei n. 9.777, de 29 dedezembro de 1998.

Com efeito, as penas cominadas,cumulativamente, passaram a ser detenção, de um adois anos, e multa, além da correspondente àviolência, para o tipo básico e assemelhados (incisosI e II).

A política criminal despenalizadora edescarcerizadora das Leis n. 9.099/95 e 9.714/98trazem em seu ventre, involuntariamente, o embriãoda velha política criminal funcional: para afastar-seda abrangência desses dois diplomas legais, osdetentores do poder exasperam as cominaçõespenais daquelas infrações que lhes aprouverem,como tem ocorrido com inúmeras infrações penais.

Na previsão do § 2º, a pena deverá,obrigatoriamente, ser majorada entre um sexto e umterço. Pela redação, que é taxativa, parece que houveaí uma preocupação com as “minorias”. Nessesentido, esqueceram-se de arrolar, entre outros,homossexuais, prostitutas, negros, amarelos,asiáticos, dependentes de drogas etc. Convémrecordar, no entanto, que é inadmissível analogia.

8.2 Natureza da ação penal

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A ação penal é de natureza públicaincondicionada. Predomina o entendimentojurisprudencial segundo o qual só será dacompetência da Justiça Federal quando foremofendidos órgãos e instituições que preservem,coletivamente, os direitos trabalhistas.

9. Questões especiais

Pagamento de salário inferior ao mínimo legaltipifica esse crime. Pode haver concurso desse delitocom o de falsidade ideológica (art. 299). Há decisõesjurisprudenciais entendendo que o pagamento dossalários dos empregados com cheque sem fundo nãotipifica o crime4 (TRF, DJU, 7 nov. 1979, p. 8331), massim estelionato. Praticam o crime em questão, anosso juízo, os donos de postos de gasolina quedescontam do salário dos frentistas os cheques semfundos recebidos de clientes.

“Compete à Justiça Comum processar e julgarcrime de falsificação e uso de documento particularem reclamação trabalhista, por não importar emprejuízo aos bens, serviços ou interesses daUnião”5. “O que estabelece a competência da Justiça

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Federal são os crimes que afrontam o chamado‘sistema’ de órgãos e instituições preservadores,coletivamente, dos direitos e deveres dostrabalhadores, e não o delito cometido porempregador que, em tese, viola, mediante fraude,qualquer direito trabalhista6.” Em outros termos,quando a infação deste art. 203 realizar-se contradireito de alguns trabalhadores, a competência seráda justiça estadual, v. g., a falsificação de documentoparticular em reclamatória trabalhista, nãoimportando em dano a bens, serviços ou interessesda União, a competência será da justiça comumestadual (STJ, CC 1748, Rel. Fernando Gonçalves, 6ªT u r ma , DJ 9-12-1997). Por outro lado, serácompetência da justiça federal julgar os crimespraticados contra a organização do trabalho,quando violar direitos coletivos dos trabalhadores.Contudo, quando se tratar de violação de direitosindividuais dos trabalhadores, a competência será dajustiça comum estadual.

1 STF, RE, rel. Min. Moreira Alves, RT, 540:416.

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2 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 2, p. 47.3 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 7,p. 40.4 “Ações lesivas a direitos trabalhistas individuais, tal comoo não pagamento de direitos trabalhistas pelo ex-empregadorem decorrência de rescisão contratual, não configura crimecontra a organização do trabalho, susceptível de fixar acompetência da Justiça Federal, prevista no art. 109, VI, daConstituição Federal” (STJ, CComp 22.304/SP, rel. Min.Vicente Leal, j. 11-11-1998).5 STJ, CComp 17.428/SP, rel. Min. Fernando Gonçalves,DJU, 9-12-1997.6 TACrimSP, HC, rel. Des. Roberto de Almeida, RT, 587:327.

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CAPÍTULO XXXIX - FRUSTRAÇÃO DE LEISOBRE A NACIONALIZAÇÃO DO TRABALHO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Meiosexecutórios normativos: mediante fraudeou violência. 5. Tipo subjetivo:adequação típica. 6. Consumação etentativa. 7. Penas e ação penal.

Frustração de lei sobre a nacionalização do trabalhoArt. 204. Frustrar, mediante fraude ou violência,

obrigação legal relativa à nacionalização dotrabalho:

Pena — detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano, emulta, além da pena correspondente à violência.

1. Considerações preliminares

Desde o início do século XX, os países europeus,

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asiáticos e os Estados Unidos já externavam apreocupação em evitar a concorrência deestrangeiros com nacionais. Essa preocupação tinhaseus fundamentos, mesmo um século antes damoderna globalização da economia internacional. AConstituição brasileira de 1937 aderiu a essa políticanacionalista, instituindo a nacionalização dotrabalho, proibindo que empresas nacionaiscontratassem mais estrangeiros do que brasileiros(art. 146)1.

O mesmo princípio nacionalizador foi mantido nasConstituições de 1946 (art. 157, XI) e 1967, com aEmenda n. 1/69 (art. 165, XII). A Constituição Federalde 1988 adotou, nesse particular, outra orientação,determinando que todos — brasileiros e estrangeirosresidentes no País — são iguais perante a lei e livrespara exercer qualquer atividade profissional (art. 5º,XIII).

Na mesma senda da Constituição de 1937, oCódigo Penal do mesmo ano tipificou como crime a“frustração de lei sobre a nacionalização do trabalho,desde que fosse praticado mediante fraude ouviolência”. No entanto, as regras disciplinadoras danacionalização do trabalho encontram-se nos arts.352 a 371 da Consolidação das Leis Trabalhistas.

No entanto, as regras disciplinadoras da

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nacionalização do trabalho encontram-se nos arts.352 a 371 da Consolidação das Leis Trasbalhistas.

O Código Penal de 1969 era mais feliz em suaredação, que eliminava a expressa referência aosmeios executivos como elementos do tipo objetivo,qual seja, mediante fraude ou violência, adotando aseguinte redação: “Frustrar obrigação legal relativa ànacionalização do trabalho”.

2. Bem jurídico tutelado

Bem jurídico protegido é o interesse nanacionalização do trabalho, particularmente ointeresse do Estado em garantir a reserva de mercadopara os brasileiros, em seu próprio território.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser o empregador, oempregado ou qualquer pessoa, independentementeda existência de relação empregatícia. Emboranormalmente o sujeito ativo seja o empregador, ocrime pode ser praticado por terceiros que, comconhecimento de causa, pratiquem a ação.

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Sujeito passivo não é necessariamente umapessoa física, individual somente, mas o Estado,como órgão representativo da coletividade. Aofensa, pelo texto legal, produz-se diretamente ainteresse coletivo, que é bem representado peloEstado2.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A ação tipificada consiste em frustrar (impedir,iludir, privar), mediante violência ou fraude, direitoassegurado pela legislação do trabalho. O meioexecutivo deve ser violência (vis corporalis) oufraude (manobra ardilosa, astuciosa, uso de artifício).A ameaça (vis compulsiva) não é meio idôneo parapraticar o crime.

A ação do agente visa frustrar obrigação legalrelativa à nacionalização do trabalho, isto é, asnormas legais que determinam o emprego de mão deobra nacional, mais especificamente as leistrabalhistas. Destaca Rogério Greco que “a finalidadeda norma em estudo é a de responsabilizarcriminalmente o agente que dirigir sua conduta nosentido de frustrar, mediante fraude ou violência,

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obrigação legal relativa à nacionalização do trabalho,quer dizer, à proteção que a lei confere aostrabalhadores nacionais, a exemplo do que ocorrecom a regra da proporcionalidade, prevista nos arts.352 e 354 da CLT”33. Trata-se também de normapenal em branco.

4.1 Meios executórios normativos: mediante fraudeou violência

O Código Penal resolveu determinar as formas deconduta que são tipificadas criminalmente, limitando-as em duas modalidades: aquelas que forempraticadas mediante fraude ou violência. Assim, afrustração de obrigação legal relativa ànacionalização do trabalho que não for cometidamediante fraude ou violência, embora ilegal, nãotipificará esse crime, sendo penalmente irrelevante.a) Mediante fraude

Mediante fraude é o primeiro modus operandicontemplado expressamente no tipo penal ora eme xa me . Fraude é a utilização de artifício, deestratagema ou ardil para vencer a vigilância davítima; em outros termos, trata-se de manobraenganosa para ludibriar a confiança existente em uma

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relação interpessoal, destinada a induzir ou a manteralguém em erro, com a finalidade de atingir o objetivocriminoso. Na verdade, a fraude não deixa de ser umaforma especial de abuso de confiança, ou, na felizexpressão de Guilherme Nucci, “é uma relação deconfiança instantânea, formada a partir de um ardil”4.

Não há nenhuma restrição quanto à forma, meioou espécie de fraude: basta que seja idônea paradesviar a atenção de quem deve vigiar o estritocumprimento da nacionalização do trabalho. Assim,caracteriza meio fraudulento qualquer artimanhautilizada para provocar a desatenção ou distração davigilância, para facilitar a frustração dessa obrigaçãolegal.b) Mediante violência

A violência requerida pelo tipo penal é somente avis corporalis, estando afastada a violência moral(grave ameaça), que, aliás, foi intencionalmenteomitida pelo legislador.

Sobre violência praticada contra a pessoa,remetemos o leitor para os capítulos que tratam doscrimes tipificados nos arts. 197 e 198, ondeexaminamos, com vagar, essa matéria.

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5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo é o dolo, constituído pelavontade consciente de frustrar obrigação legalrelativa à nacionalização do trabalho, com empregode violência ou fraude. O eventual uso de ameaçanão tipifica esse crime.

Não há exigência de elemento subjetivo especialdo injusto. Não há, tampouco, previsão demodalidade culposa.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com a efetiva frustração delei que disponha sobre a nacionalização do trabalho.O momento consumativo será o descumprimento daobrigação legal relativa à nacionalização do trabalho.

Admite-se a tentativa, uma vez que é possível ofracionamento de sua execução. Quando, porexemplo, o agente inicia a execução do crime, nãoconsegue atingir o momento consumativo porcircunstâncias alheias a sua vontade.

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7. Penas e ação penal

As penas cominadas são, cumulativamente,detenção, de um mês a um ano, e multa, além dacorrespondente à violência. Sobre a aplicaçãocumulativa da pena correspondente à violência,vejam-se as considerações que fizemos ao analisaros arts. 197 e 198, nesta mesma obra.

Heleno Fragoso destacava que “se frustrando,com violência ou fraude, obrigação relativa ànacionalização do trabalho (art. 204), o agente violardireito individual assegurado pela lei trabalhista,praticará em concurso formal, igualmente, o crimeprevisto no art. 203, CP (art. 70, CP)”5.

A ação penal é de natureza públicaincondicionada.

1 “Art. 146. As empresas concessionárias de serviçospúblicos federais, estaduais e municipais deverão constituircom maioria de brasileiros a sua administração ou delegar abrasileiros todos os poderes de gerências.” “Art. 150. Sópoderão exercer profissões liberais os brasileiros natos e os

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naturalizados que tenham prestado serviço militar no Brasil,excetuados os casos de exercício legítimo na data daConstituição e os de reciprocidade internacional admitidosem lei. Somente a brasileiros natos será permitida arevalidação de diplomas profissionais expedidos porinstitutos estrangeiros de ensino.” “Art. 153. A leideterminará a percentagem de empregados brasileiros quedevem ser mantidos obrigatoriamente nos serviços públicosdados em concessão e nas empresas e estabelecimentos decomércio.”2 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 660.3 Rogério Greco. Código Penal Comentado, 4. ed., Niterói,Impetus, 2010, p. 564.4 Guilherme Souza Nucci, Código Penal comentado, cit., p.435.5 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 660.

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CAPÍTULO XL - EXERCÍCIO COM INFRAÇÃO DEDECISÃO ADMINSITRATIVA

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7. Pena e açãopenal.

Exercício de atividade com infração de decisãoadministrativa

Art. 205. Exercer atividade, de que estáimpedido por decisão administrativa:

Pena — detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois)anos, ou multa.

1. Considerações preliminares

Nossos Códigos Penais do século XIX (1830 e1890) não cuidaram do crime de exercício de atividade

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com infração de decisão administrativa. Trata-se deinovação acolhida pelo Código Penal de 1940, que aincluiu entre os crimes contra a organização dotrabalho. É infração penal que, segundo a Exposiçãode Motivos, “ou atenta imediatamente contra ointeresse público, ou imediatamente ocasiona umagrave perturbação da ordem econômica” (item 67).

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é a garantia deexecução das decisões administrativas, ou, maisespecificamente, o interesse do Estado nocumprimento de suas decisões administrativas.

Embora o tipo penal não demonstre essa diretriz,induzindo inclusive a entendimento contrário, averdade é que a decisão administrativacaracterizadora dessa infração penal será somenteaquela relativa a trabalho, ofício ou profissão.Infração a outras decisões administrativas, por certo,não tipifica essa infração penal.

3. Sujeitos ativo e passivo

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Sujeito ativo é a pessoa que está impedida deexercer determinada atividade administrativa. Nãodeixa de ser uma espécie sui generis de crimepróprio, embora não exija qualidade ou condiçãoespecial; mas somente quem está proibido de exercerpode desobedecer tal proibição. É o óbvio ululante.

Sujeito passivo é o Estado, titular do interesseviolado.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A ação consiste em exercer, isto é, desempenhar,desenvolver, realizar atividade. Exercer, ademais, temo significado de prática repetitiva de atos própriosda atividade administrativamente proibida. Requerque o agente aja com habitualidade, porquanto oexercício de atividade implica reiteração, repetição,constância. Tem, em outros termos, a natureza dehabitualidade, e somente essa repetitividade é quecaracteriza seu exercício, donde se pode concluir quea prática isolada de uma ou outra ação, de um ououtro ato executório por si só, mesmo violandodecisão administrativa, isto é, ainda que constituailícito administrativo, não tem o condão decaracterizar a infração penal, que é enriquecida, como

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dissemos, de exigências típico-dogmáticas. Nesseparticular, não foi feliz o Supremo Tribunal Federal,em decisão que teve como relator o Ministro SydneySanches, ao assumir a seguinte orientação: “Aconduta típica prevista no art. 205, por ser específica,exclui a do art. 282, que trata do exercício ilegal demedicina. Basta um ato de desobediência à decisãoadministrativa, para que se configure o delito emquestão (art. 205)”1.

Atividade é trabalho, função, ofício, labor; nãosão, por conseguinte, somente aquelas profissõesregulamentadas e aprovadas pelo Ministério doTrabalho, tais como médico, secretária, contador,advogado, doméstica, como entendem alguns2.

É necessário que haja decisão administrativaimpedindo seu exercício, e não decisão judicial. Sehouver infração à decisão judicial a infração penalserá outra (art. 330 — desobediência — ou art. 359— desobediência a decisão judicial sobre perda oususpensão de direito), e não esta. Se adesobediência for por exercer função pública,ilegalmente, a figura delitiva será a prevista no art.324 (exercício funcional ilegalmente antecipado ouprolongado).

Faz-se necessário, ademais, que tal decisão tenha

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emanado de órgão administrativo legalmentecompetente para emiti-la. Enfim, o crime consiste emviolar a decisão administrativa impeditiva doexercício da atividade. Nesse sentido, pode-seexemplificar com o acerto da seguinte decisão doTACrim de São Paulo: “Configura em tese o delitoprevisto no art. 205 do CP de 1940 exercer aadvocacia em reclamação trabalhista após ter ainscrição cancelada pela OAB, em razão daincompatibilidade prescrita no art. 84, VII, da Lei n.4.215/63”3.

Pendendo recurso de eventual decisãoadministrativa, precisa-se distinguir: havendo efeitosuspensivo, eventual prática da atividade impedidanão configura o crime; contudo, sendo o efeitomeramente devolutivo, configurada estará a infraçãopenal.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo constitutivo do tiposubjetivo é o dolo, representado pela vontadeconsciente de infringir decisão administrativa,praticando a atividade que lhe fora proibida.

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Não há exigência de elemento subjetivo especialdo injusto, sendo, assim, irrelevante a razão oumotivo pelo qual o sujeito passivo infringe a decisãoadministrativa que lhe veda tal prática.

Não há previsão de modalidade culposa.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com a prática reiterada dosatos próprios da atividade que o sujeito se encontraimpedido de exercer, isto é, consuma-se com oefetivo exercício da atividade que está proibido derealizar.

Trata-se de crime habitual, e, por essa razão, éinadmissível a tentativa, pois somente a práticareiterada de conduta proibida é capaz de tipificaressa infração penal. Assim, atos isolados constituemum indiferente penal, por não se adequarem àdescrição típica.

7. Pena e ação penal

A s penas cominadas, alternativamente, são

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detenção, de três meses a dois anos, ou multa.A natureza da ação penal é pública

incondicionada. Nessa infração penal, não háprevisão do meio executório mediante violência; porconseguinte, tampouco se comina cumulativamentepena correspondente à violência.

Considerando-se que, a despeito de encontrar-seno Título que trata dos Crimes contra a Organizaçãodo Trabalho, essa infração penal não envolveinteresse coletivo do trabalho, a competência não éda Justiça Federal, mas da Justiça Estadual4.

1 STF, HC 74.826-1/SP, rel. Min. Sydney Sanches, DJU, 29-8-1997. Em sentido contrário, destacamos a seguinte decisãodo TRF da 2ª Região: “Habitualidade necessária. Paraconfiguração do delito previsto no art. 205 do EstatutoRepressor, necessária a reiteração de atos próprios daconduta da qual o agente está impedido de exercer por forçade decisão administrativa” (TRF-2ª Reg., AC 97.02.46075-1/RJ, rel. Juiz Benedito Gonçalves, DJU, 12-9-2000).2 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,

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v. 2, p. 127.3 TACrimSP, Rec., rel. Des. Manoel Carlos, RT, 604:371.4 Em sentido contrário, ver Luiz Regis Prado, Curso deDireito Penal brasileiro, cit., v. 2, p. 128.

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CAPÍTULO XLI - ALICIAMENTO PARA O FIM DEEMIGRAÇÃO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7. Pena e açãopenal.

Aliciamento para o fim de emigraçãoArt. 206. Recrutar trabalhadores, mediante

fraude, com o fim de levá-los para territórioestrangeiro.

Pena — detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, emulta.

• Redação determinada pela Lei n. 8.683, de 15de julho de 1993.

1. Considerações preliminares

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O crime de aliciamento de trabalhadores para o fimde emigração não foi objeto de disciplina no CódigoCriminal do Império (1830). O Código Penal de 1890tampouco se preocupou com essa infração penal,regulando tão somente o aliciamento detrabalhadores para deixarem o emprego, medianterecompensa ou ameaça (art. 205).

Essa infração penal foi disciplinada pela primeiravez em nosso ordenamento jurídico pelo CódigoPenal de 1940, sob o nomen juris “aliciamento para ofim de emigração”.

A Lei n. 8.683, de 15 de julho de 1993, deu novaredação ao art. 206, acrescentando-lhe a exigência defraude como elemento objetivo do tipo, além desubstituir o verbo “aliciar” por “recrutar”trabalhadores.

O Anteprojeto de Código Penal, Parte Especial,propõe alterações relevantes que, no entanto, aexemplo dos demais dispositivos, optamos por nãoanalisar, em razão da variedade de projetos eanteprojetos que emperram o Congresso Nacional.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é o interesse do Estado

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em garantir a permanência dos trabalhadoresbrasileiros no Brasil, ou seja, manter a mão de obrano território nacional. Protege-se o interesse públicona não emigração do trabalhador nacional, partindoda presunção de que essa evasão de trabalhadores édanosa à economia nacional. Essa presunção éabsoluta, não podendo ser elidida, para afastar suaatipicidade, em nenhuma circunstância.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,independentemente de qualidade ou condiçãoespecial, tratando-se, portanto, de crime comum.

Sujeito passivo mediato é o Estado, e imediato,qualquer pessoa na condição de trabalhador que sejarecrutada mediante fraude. Não nos parece adequadopriorizar sempre o Estado em detrimento de direitossagrados dos cidadãos; por isso, sempre que forpossível identificar o titular do direito lesado, será eleo sujeito passivo do crime, como normalmente ocorrenesse tipo de infração penal, embora grande parte dadoutrina entenda que sujeito passivo seja apenas oEstado. Nesse particular, estamos mudandoorientação que adotamos em nosso Código Penal

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comentado.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A ação consiste em recrutar, que tem o sentidode atrair, aliciar (aliás, este era o verbo-núcleo, naredação anterior), seduzir pessoas para levá-las atrabalhar no exterior. Trabalhadores significapluralidade, isto é, no mínimo três pessoas quetenham qualificação profissional. O legisladorutilizou o vocábulo no plural exatamente para exigirmultiplicidade, que, em nossa concepção, deve serde no mínimo três, pois, quando se contenta comapenas dois, declara expressamente (arts. 150, § 1º,155, § 4º, e 157, § 2º, II, etc.). O grau de habilidade ouqualificação técnica dos trabalhadores é irrelevantepara a tipificação do crime. Por trabalhadores deveser compreendido todos os prestadores de serviço(estagiários remunerados ou não, empregados,autônomos, trabalhadores domésticos, trabalhadoreseventuais etc.), e qualquer deles pode ser aliciado.

É necessário que a ação se dirija a pluralidade depessoas que reúnam a qualidade exigida pelo tipo,isto é, que sejam efetivamente de trabalhadores.

A lei pune a emigração fraudulenta, enganadora

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do trabalhador, não a espontânea. A exigência daelementar “mediante fraude” foi introduzida pela Lein. 8.683/93, que não existia na redação anterior.Exemplo típico ocorre com o aliciamento demulheres para trabalhar no exterior, exercendoatividades dignas, com altos salários, quando, naverdade, a finalidade é exercer a prostituição.

O aliciamento para fim de emigração exige aelementar normativa da fraude no recrutamento.Simplesmente recrutar trabalhadores com o fim delevá-los para o exterior em si mesmo não é crime,ainda que possa caracterizar-se como ilícito emoutras searas jurídicas.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo geral é o dolo, representadopela vontade consciente de recrutar trabalhadorespara o exterior, com o uso de meio fraudulento.

Há necessidade de um elemento subjetivoespecial do injusto, constituído pelo especial fim derealizar emigração, ao contrário do que pensavaHeleno Fragoso1. Se a finalidade for levartrabalhadores, em vez do exterior, para outro lugar do

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território nacional, o crime será o do art. 207, que aseguir será examinado, e não o deste dispositivo. Aausência de tais finalidades na prática dessascondutas as torna irrelevantes para o direito penal.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com o aliciamento detrabalhadores, recrutando-os com o emprego defraude, com a finalidade de levá-los para o exterior,independentemente da efetiva emigração (crimeformal)2.

É, teoricamente, admissível a tentativa.

7. Pena e ação penal

As penas cominadas, cumulativamente, sãodetenção, de um a três anos, e multa.

A natureza da ação penal é públicaincondicionada.

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1 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 662; Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 77.2 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 691.

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CAPÍTULO XLII - ALICIAMENTO DETRABALHADORES DE UM LOCAL PARA

OUTRO DO TERRITEORIO NACIONAL

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7. Novo tipopenal (§ 1º). 8. Pena e ação penal. 9. Leisn. 9.099/95 e 9.714/98: “fundamentos”para exasperação penal.

Aliciamento de trabalhadores de um local para outrodo território nacional

Art. 207. Aliciar trabalhadores, com o fim delevá-los de uma para outra localidade do territórionacional:

Pena — detenção de 1 (um) a 3 (três) anos, emulta.

§ 1º Incorre na mesma pena quem recrutartrabalhadores fora da localidade de execução do

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trabalho, dentro do território nacional, mediantefraude ou cobrança de qualquer quantia dotrabalhador, ou, ainda, não assegurar condiçõesdo seu retorno ao local de origem.

• § 1º acrescentado pela Lei n. 9.777, de 29 dedezembro de 1998.

§ 2º A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 1/3(um terço) se a vítima é menor de 18 (dezoito) anos,idosa, gestante, indígena ou portadora dedeficiência física ou mental.

• § 2º acrescentado pela Lei n. 9.777, de 29 dedezembro de 1998.

1. Considerações preliminares

Os Códigos Penais do século XIX (1830 e 1890)não se preocuparam com eventual aliciamento detrabalhadores, especialmente dentro do próprioterritório nacional. O Código de 1890 criminalizavasomente a conduta que aliciasse trabalhador paradeixar o emprego sob a promessa de recompensa ouameaça. Assim, o legislador de 1940 inovou com essa

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figura; se houve justificativa para sua existêncianaquele tempo, na atualidade perdeu sua razão deser.

Curiosamente, a Lei n. 9.777, de 29 de dezembrode 1998, ampliou a sanção penal e acrescentou aoartigo os §§ 1º e 2º, majorando as penasexageradamente.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é o interesse do Estadoem evitar o êxodo de trabalhadores no territórionacional. Procura-se evitar que alguma região fiquedespovoada, em detrimento de outra. Interessa aoEstado, como destaca Paulo José da Costa Jr.1, evitaro êxodo de mão de obra barata, proveniente de zonasdesfavorecidas do País, produzindo concentraçõesurbanas e desajustes socioeconômicos.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,independentemente de qualidade ou condição

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especial, tratando-se, portanto, de crime comum.Sujeito passivo mediato é o Estado; imediato,

qualquer pessoa na condição de trabalhador que sejaaliciada (mediante fraude, na hipótese do § 1º). Nãonos parece adequado priorizar sempre o Estado emdetrimento de direitos sagrados dos cidadãos; porisso, sempre que for possível identificar o titular dodireito lesado, será ele o sujeito passivo do crime,como normalmente ocorre nesse tipo de infraçãopenal, embora grande parte da doutrina entenda quesujeito passivo seja apenas o Estado. Nesseparticular, estamos mudando a orientação queadotamos em nosso Código Penal comentado.

4. Tipo objetivo: adequação típica

Essa infração penal é similar àquela do artigoanterior, distinguindo-se somente na finalidade:naquele, o recrutamento tem a finalidade de propiciara emigração; neste, o aliciamento é feito paradeslocar os trabalhadores de um local para outro,dentro do próprio território nacional.

A ação consiste em aliciar, isto é, atrair, recrutar,seduzir trabalhadores, agora internamente.Trabalhadores, a exemplo da previsão do artigo

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anterior, significa pluralidade, isto é, no mínimo trêspessoas que tenham qualificação profissional. A leipune o êxodo aliciado, não o espontâneo, uma vezque este é assegurado pela Constituição (direito deir, vir e ficar); procura preservar essas pessoas emseus locais de origem, visando o equilíbrio dageografia humana, e impedir o desajuste social eeconômico que o êxodo das zonas maisdesfavorecidas produziria. Localidade é qualquerlugarejo, vila, cidade ou povoado.

Como a expressão “trabalhadores” não está nosingular, exige-se, no mínimo, mais de doistrabalhadores para que possa configurar-se o tipopenal.

Para o êxodo ser penalmente relevante, aslocalidades precisam ser consideravelmenteafastadas. Há entendimento jurisprudencial, segundoo qual é necessária a demonstração de prejuízoefetivo para a região onde o aliciamento ocorre.

Se o fim é levar trabalhadores para fora do País, ocrime será o do art. 206.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo geral é o dolo; e o elemento

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subjetivo especial do tipo é constituído peloespecial fim de propiciar o êxodo.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se com o aliciamento de trabalhadores,independentemente do êxodo efetivo (crime formal).O crime de aliciamento de trabalhadores definido noart. 207 do Código Penal se consuma no momento emque o agente convence o trabalhador a transferir-separa outra localidade do território nacional,acertando com ele as condições e os meios comoisso se fará. Por conseguinte, os veículos dequalquer natureza utilizados para deslocar-se aolugar de destino de nenhuma forma podem serconsiderados instrumentos desse ilícito ou prova desua materialidade. No momento do deslocamento, ocrime já está consumado.

É, teoricamente, admissível a tentativa.

7. Novo tipo penal (§ 1º)

A Lei n. 9.777, de 29 de dezembro de 1998,

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acrescentou os §§ 1º e 2º ao art. 207; no primeiro, crianova figura penal; no segundo, uma majorante,elevando a pena de um sexto a um terço.

O tipo descrito no § 1º é um misto das infraçõesdescritas nos arts. 206 e 207, ao menos em uma desuas modalidades, onde consta como meioexecutório “mediante fraude”. Daquele dispositivocontém a exigência de “fraude”, e, desse, o êxodo detrabalhadores limita-se ao território nacional.Apresenta três formas: (a) mediante fraude; (b)cobrança de valores do trabalhador; e (c) nãoassegurar condições de retorno ao local de origem.As duas primeiras modalidades são de fácilcomprovação; a terceira apresenta uma dificuldadedogmática: prática condicional do crime. A açãotípica nuclear será o “recrutamento de trabalhadores”ou “a não facilitação do retorno à origem”? E se otrabalho no local recrutado durar dez anos? Qual seráo iter criminis? É de difícil configuração.

Nesse dispositivo não se pune a transferência detrabalhadores dentro do território nacional; pune-sea transferência mediante aliciamento.

8. Pena e ação penal

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As penas anteriormente cominadas,cumulativamente, eram detenção, de dois meses aum ano, e multa; atualmente, são detenção, de um atrês anos, e multa. Mais uma vez, constata-se umaexasperação absurda, desproporcional einjustificada das penas cominadas.

Na previsão do § 2º, a pena deverá,obrigatoriamente, ser majorada entre um sexto e umterço. Pela redação, que é taxativa, parece que houveaí uma preocupação com as “minorias”: menor dedezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadorade deficiência física ou mental. É inadmissívelanalogia.

A ação penal é pública incondicionada.

9. Leis n. 9.099/95 e 9.714/98: “fundamentos” paraexasperação penal

Repete-se aqui exatamente o mesmoprocedimento adotado no § 2º do art. 203. Não só aredação é a mesma mas também, o que é pior, aorientação político-criminal que há tempo estamosdenunciando: a política criminal despenalizadora edescarcerizadora dessas duas leis — 9.099 e 9.714— traz, em seu ventre, involuntariamente, o embrião

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da velha política criminal funcional: para afastar daabrangência desses dois diplomas legais, osdetentores do poder exasperam as cominaçõespenais daquelas infrações que lhes aprouverem.Mais detalhes sobre esse tema podem serencontrados em nossa monografia sobre Novaspenas alternativas2.

Trata-se, na verdade, de um tipo penal esdrúxulo,desnecessário, superado e, na atualidade,absolutamente injustificado. Nos primórdios danossa República, ou, vá lá, na primeira metade doséculo XX até se podia admitir que houvesse essetipo de preocupação nacional. Contudo, naatualidade, num país absolutamente povoado, comtanta carência de emprego em todos os recantos,sobrando mão de obra em todos os segmentossociais, essa criminalização perdeu sua razão de ser,pois, como destacava Magalhães Noronha, “a lei temem vista a regularidade, a normalidade do trabalho nopaís, evitando que regiões mais favorecidas corram orisco do chômage, enquanto outros, que nãooferecem as mesmas vantagens, se despovoem elutem com a falta de braços. Tal fato rompe aharmonia e o equilíbrio necessários à ordemeconômica e social”3.

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1 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 691.2 Cezar Roberto Bitencourt, Novas penas alternativas, 2.ed., São Paulo, Saraiva, 2000.3 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 2, p. 78.

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CAPÍTULO XLIII - ULTRAJE A CULTO EIMPEDIMENTO OU PERTURBAÇÃO DE ATO A

ELE RELATIVO

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Escárniopor motivo de religião. 4.2. Impedimentoou perturbação de culto religioso. 4.3.Vilipêndio público de ato ou objetoobsceno. 5. Tipo subjetivo: adequaçãotípica. 6. Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Majoranteespecial: com violência. 9. Pena e açãopenal.

TÍTULO V | DOS CRIMES CONTRA OSENTIMENTO RELIGIOSO E CONTRA O

RESPEITO AOS MORTOS

Capítulo I

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DOS CRIMES CONTRA O SENTIMENTORELIGIOSO

Ultraje a culto e impedimento ou perturbação de atoa ele relativo

Art. 208. Escarnecer de alguém publicamente,por motivo de crença ou função religiosa; impedirou perturbar cerimônia ou prática de cultoreligioso; vilipendiar publicamente ato ou objetode culto religioso:

Pena — detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano,ou multa.

Parágrafo único. Se há emprego de violência, apena é aumentada de um terço, sem prejuízo dacorrespondente à violência.

• V. arts. 40 e 65 do Decreto-Lei n. 3.688/41 (Leidas Contravenções Penais).

1. Considerações preliminares

O legislador de 1940, ao contrário de outroscrimes, optou por classificar em um mesmo Título oscrimes contra o sentimento religioso e os crimes

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contra o respeito aos mortos, como esclarece aExposição de Motivos, in verbis: “São classificadoscomo species do mesmo genus os ‘crimes contra osentimento religioso’ e os ‘crimes contra o respeitoaos mortos’. É incontestável a afinidade entre uns eoutros. O sentimento religioso e o respeito aosmortos são valores ético-sociais que se assemelham.O tributo que se rende aos mortos tem um fundoreligioso. Idêntica, em ambos os casos, é a ratioessendi da tutela penal” (item n. 68).

Além de o respeito aos antepassados e aosmortos apresentar estreita ligação com as maisantigas formas de religião, a Constituição brasileirade 1988 passou a garantir a liberdade deconsciência e de crença, sendo assegurado o livreexercício dos cultos religiosos e garantida, naforma da lei, a proteção aos locais de culto e a suasliturgias (art. 5º, VI).

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é o sentimentoreligioso1, como interesse ético-social,independentemente da religião professada;secundariamente, protege-se a liberdade de culto e

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de crença, a exemplo do que fazia o primeiro CódigoPenal republicano de 1890. Essa liberdade constituiatualmente uma das garantias individuais/coletivasasseguradas pela atual Constituição Federal (1988,art. 5º, VI). O Estado tem interesse em proteger asreligiões, como instituições ético-sociais que lhe sãoúteis e, ao mesmo tempo, necessárias.

3. Sujeitos ativo e passivo

O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa,independentemente de sua crença religiosa ouqualquer outra qualidade ou condição especial.Podem ser sujeito ativo desse crime inclusivepastores, sacerdotes ou “ministros” de outrasreligiões, como já tivemos exemplos em programastelevisivos, num passado recente.

Alguns o denominam crime vago, em razão daindeterminação do sujeito passivo, pois protegeriainteresses coletivos (sentimento religioso e liberdadede culto), sendo o sujeito passivo imediato dessecrime a coletividade e, mediatamente, a pessoa quesofrer a ação diretamente2. Nesse sentido, segundoHeleno Fragoso, “Estes crimes violam diretamenteinteresses coletivos, motivo pelo qual sujeito

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passivo deles é, primariamente, o corpo social. Serásujeito passivo particular ou secundário qualquerpessoa física ou jurídica que sofrer a açãoincriminada”. Outros, contudo, exigem a presençaefetiva de alguma pessoa determinada parasatisfazer a exigência da elementar alguém constantedo tipo em exame, o que, decididamente, não querdizer um grupo indeterminado de pessoas3.

Embora possa parecer, à primeira vista, umadiscussão meramente acadêmica, ela se justifica apartir do atual Texto Constitucional, que elevou aliberdade de consciência e de crença ao nível degarantia constitucional individual. Nessa linha, emprincípio, era o entendimento sustentado porMagalhães Noronha: “Sujeito passivo, portanto, é apessoa (alguém) que sofre a ação designada peloverbo: escarnecer. Nada na disposição exige que eleesteja presente ao ato de escarnecimento. É a opiniãocomum dos doutrinadores”4.

Pessoalmente, achamos que o sujeito passivo orapode ser a pessoa individual (primeira parte dodispositivo penal), ora pode ser a coletividade oucorpo social (segunda e terceira partes),dependendo, in concreto, da figura lesiva que épraticada. É incontroverso que a liberdade de

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consciência e de crença constitui uma garantiafundamental individual, assegurada pela atualConstituição brasileira; no entanto, “o livre exercíciodos cultos religiosos” (individual e, ao mesmotempo, coletivo) e “a proteção aos locais de culto e asuas liturgias” são garantias constitucionaiscoletivas. Na primeira hipótese, o sujeito passivo é apessoa de quem se zomba (sacerdote, ministro,crente, religioso etc.); na segunda, pode ser oindivíduo “impedido”ou “turbado” em sua práticareligiosa, se a ação incriminada for contra elepraticado, ou a coletividade, quando aquela fordirigida contra o exercício coletivo de cultoreligioso, e, finalmente, na terceira hipótese, osujeito passivo imediato somente pode ser acoletividade e apenas mediatamente o indivíduo.Nesse particular, pela clareza e precisão, merece sertranscrita a orientação de Paulo José da Costa Jr., aqual subscrevemos integralmente: “Sujeito passivo,no caso do ultraje, é a pessoa de quem se zomba(sacerdote, ministro, crente). Ou então, no caso deturbação ou vilipêndio de culto, a ofendida é acoletividade religiosa atingida”5.

Resumindo, a identificação do provável sujeitopassivo está diretamente vinculada à condutatipificada: na primeira figura, do escarnecimento,

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sujeito passivo é a pessoa física determinada quesofre o escárnio; essa ação, dirigida aos crentes emgeral, não é adequada a essa descrição típica, aocontrário do apregoado pela Exposição de Motivos;na segunda, isto é, no impedimento ou turbação deprática ou culto religioso, o sujeito passivo pode seraquele que sofre diretamente a ação ou, dependendodas circunstâncias, a coletividade religiosa, quando aação for contra o exercício coletivo de cultoreligioso; finalmente, no caso de vilipêndio, o sujeitopassivo é a coletividade como um todo.

4. Tipo objetivo: adequação típica

Embora o Código Penal dispense somente umartigo para o sentimento religioso, prevê na verdadetrês crimes, como se constata, nas figuras quetipifica. Com efeito, como dissemos nasconsiderações preliminares, o Código Penal de 1940reuniu em um único dispositivo esses crimes; aliás,essa é a causa da dificuldade de apurar comsegurança, no plano teórico, quem pode ser sujeitopassivo dessas infrações penais. Teria adotadomelhor técnica legislativa e teria sido mais preciso emais sistemático se tivesse, por exemplo, destacado

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o ultraje a culto religioso do impedimento ou daturbação de culto.

O tipo prevê três figuras distintas: a) escarnecerde alguém publicamente, por motivo de crença oufunção religiosa; b) impedir ou perturbar cerimôniaou prática de culto religioso; c) vilipendiarpublicamente ato ou objeto de culto religioso.

4.1 Escárnio por motivo de religião

A primeira conduta punível é escarnecer, quesignifica zombar, troçar de alguém. O escárnio deveser realizado publicamente, de sorte que a condutarealizada particularmente, sem que chegue aoconhecimento das pessoas em geral, não éadequada ao tipo penal. Não é necessário, porém,que o ofendido esteja presente ou que o escárnio serealize face a face; no entanto, deverá dirigir-se apessoa determinada e não contra grupos religiososem geral. Isso justifica a afirmação inicial que fizemossobre o sujeito passivo imediato ser a pessoa emparticular, alguém. Por fim, o escárnio deve serpraticado por motivo de crença ou função religiosada vítima.

Crença é a fé que alguém tem em determinadareligião, cujos postulados são aceitos e respeitados

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incondicionalmente. Função, aqui, não é aquelaprópria do direito administrativo, mas se refere àatividade exercida por padres, pastores, freiras ourabinos no desempenho da missão religiosa queescolheram.

4.2 Impedimento ou perturbação de culto religioso

A segunda conduta criminalizada pela norma éimpedir ou perturbar cerimônia ou prática de cultoreligioso. Impedir significa evitar que comece ouparalisar cerimônia já em andamento. Perturbar, porsua vez, é tumultuar, embaraçar ou atrapalhar cultoou cerimônia religiosa. Como se trata de crime deforma livre, o meio pode ser qualquer um, escolhidolivremente pelo sujeito ativo, tais como vaias,ruídos, violência etc. Perturba a cerimônia ou práticade culto religioso quem a tumultua, desorganiza ealtera seu desenvolvimento regular.

Cerimônia é a realização de culto religiosopraticado solenemente, isto é, aquele praticado comcerto aparato (missa, procissão, casamento, batizadoetc.). Prática de culto religioso é o ato religioso nãosolene (reza, ensino de catecismo etc.).

A conduta impeditiva ou turbadora deve,necessariamente, dirigir-se contra culto ou cerimônia

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religiosa. É irrelevante o local em que esta ou aquelese realiza, ou seja, se ocorre dentro ou fora dotemplo, como, por exemplo, numa procissão, na via-sacra, que normalmente os católicos celebram naQuaresma.

Convém destacar, ademais, que o culto oucerimônia religiosa protegidos pela lei não podematentar contra a moral e os bons costumes, comomagia negra, macumba etc.

4.3 Vilipêndio público de ato ou objeto obsceno

Por fim, a terceira modalidade de conduta évilipendiar publicamente ato ou objeto de cultoreligioso. Vilipendiar é aviltar, menosprezar, ultrajarato ou objeto de culto religioso. Essa figura penalpreserva o sentimento religioso e ao mesmo tempotambém a liberdade de culto, aliás, repetindo,assegurados pela Constituição (art. 5º, VI).

Também o vilipêndio pode ocorrer em localfechado, dentro ou fora do templo.

Ato de culto religioso, referido no texto legal, sãoexatamente as cerimônias e práticas religiosas a queacabamos de nos referir; objeto de culto religiososão todos aqueles que servem para a celebração

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desses atos, tais como altar, púlpito, paramentos,turíbulos etc.

Estão excluídos da tipificação aqueles objetosque não integram a essência do culto propriamentedito, como bancos, instrumentos musicais,luminárias, entre outros. Finalmente, é necessárioque os objetos do culto estejam destinados ao culto,pois, se se encontrarem expostos à venda, nãotipificarão o crime.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo, direto oueventual, representado pela vontade consciente deescarnecer publicamente de alguém, em razão de suareligião ou função religiosa; de impedir ou perturbara realização de culto religioso ou vilipendiarpublicamente ato ou objeto de culto religioso.

Sintetizando, na primeira figura — escarnecer —,o elemento subjetivo geral é o dolo (exigido nas trêsfiguras), e o elemento subjetivo especial do tiporepresentado “por motivo de crença ou funçãoreligiosa”; na segunda, o elemento subjetivo resume-se a impedir ou perturbar cerimônia ou cultoreligioso, não sendo exigido nenhum elemento

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subjetivo especial do injusto; por fim, na terceirafigura — vilipendiar —, além do dolo, exige-setambém o elemento subjetivo especial do injusto,qual seja, o propósito de ofender o sentimentoreligioso.

Nas figuras primeira e terceira, não existindo oelemento subjetivo, estará afastada a adequaçãotípica.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime, na primeira figura, com oescarnecimento de pessoa determinada; na formaescrita, é admissível a tentativa; na segunda figura,consuma-se com o efetivo impedimento ouperturbação (crime material). Consuma-se, em outrostermos, o crime do art. 208 do CP com a perturbaçãoda cerimônia religiosa, bastando, para integrar oelemento subjetivo geral das figuras penais, o doloeventual, sendo irrelevante o fim visado pelo agente.Teoricamente, é admissível a tentativa.

Por fim, na terceira figura, o crime consuma-secom o efetivo vilipêndio, isto é, com o menosprezode ato ou objeto de culto religioso.

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7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (não exige sujeitoqualificado ou portador de alguma condiçãoespecial), doloso (não há previsão de modalidadeculposa); formal (na modalidade de escarnecer, nãoexigindo resultado material); material (nas formas deimpedimento ou perturbação) ; instantâneo (aexecução não se prolonga no tempo, produzindo oresultado de imediato); na figura do impedimento ocrime pode ser permanente; de forma livre (pode serpraticado por quaisquer meios escolhidos peloagente); unissubjetivo (qualquer das três figuraspode ser praticada isoladamente por apenas umagente).

8. Majorante especial: com violência

Não há previsão de figura qualificada (com novoslimites mínimo e máximo), como normalmente temsido afirmado pela doutrina. Há previsão de umamajorante apenas, quando for praticada comviolência. Na verdade, o emprego de violência (real)majora a pena em um terço (parágrafo único). Se aviolência constituir crime em si, haverá a soma de

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penas. A violência pode ser praticada contra apessoa ou contra a coisa.

Quando da violência empregada resultaremlesões corporais, haverá a aplicação cumulativa daspenas correspondentes ao crime contra o sentimentoreligioso e as decorrentes das lesões corporais(violência).

Registramos, desde logo, que consideramos umgrande equívoco a afirmação de que a violênciaimplica concurso material de crimes6, pois seignora a verdadeira natureza desse concurso. O fatode determinar-se a aplicação cumulativa de penasnão significa que se esteja reconhecendo concursode crimes, mas apenas que se adota o sistema docúmulo material de penas7, que é outra coisa.

Com efeito, o que caracteriza o concurso materialde crimes não é a soma ou cumulação de penas,como prevê o dispositivo em exame (art. 208,parágrafo único, in fine), mas a pluralidade decondutas, pois no concurso formal impróprio, isto é,naquele cuja conduta única produz dois ou maiscrimes, resultantes de desígnios autônomos, aspenas também são aplicadas cumulativamente. Ora,esse comando legal — art. 208, parágrafo único —,determinando a aplicação cumulativa de penas, não

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autorizou o intérprete a confundir o concurso formalimpróprio com o concurso material. Na verdade,concurso de crimes e sistema de aplicação de penassão institutos inconfundíveis; o primeiro relaciona-seà teoria do crime; o segundo, à teoria da pena, porisso a confusão é injustificável8.

Concluindo, o art. 208, parágrafo único, não criouuma espécie sui generis de concurso material, masadotou tão somente o sistema do cúmulo materialde aplicação de pena, a exemplo do que fez emrelação ao concurso formal impróprio (art. 70, 2ªparte). Assim, quando a violência empregada naprática do crime em exame constituir em si mesmaoutro crime, havendo unidade de ação e pluralidadede crimes, estaremos diante de concurso formal.Impõe-se, nesse caso, por expressa determinaçãolegal, o sistema do cúmulo material de aplicação depena, independentemente da existência de desígniosautônomos. A aplicação de penas, mesmo sem apresença de desígnios autônomos, constitui umaexceção de penas prevista para o concurso formalimpróprio. Mas aquela é norma genérica, prevista naParte Geral do Código Penal (art. 70, 2ª parte); esta,constante do dispositivo em exame (art. 208,parágrafo único) é norma específica, contida naParte Especial do diploma legal, onde se

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individualizam as normas genéricas ao destiná-las acada figura delituosa.

No entanto, a despeito de tudo o que acabamosde expor, nada impede que, concretamente, possaocorrer concurso material da presente infração penalcom outros crimes violentos, como acontece comquaisquer outras infrações, desde que, é claro, haja“pluralidade de condutas e pluralidade decrimes”9 , mas aí, observe-se, já não será mais o casode unidade de ação ou omissão, caracterizadora doconcurso formal.

9. Pena e ação penal

As penas cominadas, alternativamente, sãodetenção, de um mês a um ano, ou multa. Havendoviolência real, será majorada em um terço, semprejuízo da pena correspondente à violência; a açãopenal é pública incondicionada.

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1 Damásio de Jesus, Direito Penal, 15. ed., São Paulo,Saraiva, 2000, v. 3, p. 69.2 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 3, p. 71:“Protegendo interesses coletivos (sentimento religioso eliberdade de culto), o sujeito passivo do delito é acoletividade. Secundariamente, a pessoa que sofrer a açãode forma direta, como, por exemplo, no caso do escárnio, emque se exige seja dirigido contra pessoa determinada, ou nocaso de impedimento de cerimônia, em que poderão figurarcomo sujeitos passivos os assistentes ou o celebrante”.3 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 669 e 670; Guilherme de Souza Nucci, Código Penalcomentado, cit., p. 643.4 Magalhães Noronha, Direito Penal, 11. ed., São Paulo,Saraiva, 1978, v. 3.5 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,São Paulo, Saraiva, 2000, p. 695.6 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 450.7 Ver o que dissemos sobre o sistema do cúmulo material depenas em Manual de Direito Penal, 7. ed., v. 1, p. 562.8 Ver algo semelhante que escrevemos sobre o tema no v. 2de nosso Manual de Direito Penal, p. 381, 422 e 423.9 Cezar Roberto Bitencourt, Manual de Direito Penal, cit., v.2, p. 562.

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CAPÍTULO XLIV - IMPEDIMENTO OUPERTURBAÇÃO FUNERÁRIA

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7. Figuramajorada. 8. Pena e ação penal.

Capítulo II

DOS CRIMES CONTRA O RESPEITO AOS MORTOS

Impedimento ou perturbação de cerimônia funerária

Art. 209. Impedir ou perturbar enterro oucerimônia funerária:

Pena — detenção, de 1 (um) mês a 1 (um) ano,ou multa.

Parágrafo único. Se há emprego de violência, apena é aumentada de um terço, sem prejuízo dacorrespondente à violência.

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1. Considerações preliminares

Os romanos cultuavam os mortos e puniam oscrimes que violassem as sepulturas, desde o tempodos imperadores. Essa tradição foi recepcionada pelodireito canônico, que considerava os violadorescomo réus de quase sacrilégio, submetidos à penade excomunhão. A profanação e ou subtração decadáver eram punidas pelas leis bárbaras com aprivação da paz.

O Código Criminal do Império, de 1830, em nossoordenamento jurídico, não disciplinava essamodalidade de infração penal. O primeiro CódigoPenal republicano, de 1890, foi o primeiro apreocupar-se com esse tema ao contemplar aprofanação de cadáver, sepulturas ou mausoléuscomo contravenção.

Segundo a Exposição de Motivos do CódigoPenal brasileiro de 1940, os crimes contra o respeitoaos mortos têm parentesco próximo com os crimescontra o sentimento religioso, o que justificaria areunião dessas duas categorias de infrações penaisnum mesmo Título da Parte Especial do Código

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Penal.

2. Bem jurídico tutelado

Bem jurídico protegido é o sentimento derespeito aos mortos. Protege-se o sentimento deveneração que se tem pelos que já faleceram ou, nafeliz expressão de Hungria1, o que a lei penal protegenão é a paz dos mortos, mas o sentimento dereverência dos vivos para com eles.

Com efeito, o sentimento de reverência e piedadepara com os mortos é comum à generalidade dospovos; feri-los é ferir a própria sociedade. Todo serhumano normal tem consciência desse sentimentoético-social.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo é qualquer pessoa,independentemente de qualidade ou condiçãoespecial. Toda pessoa natural dotada de capacidadede entender e querer pode figurar como sujeito ativodessa infração penal.

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Sujeito passivo é o corpo social, ou seja, acoletividade. Ao corpo social como um todointeressa a manutenção do respeito aos entes que jápassaram. A impossibilidade de o cadáver figurarcomo sujeito passivo reside em sua natureza de res,insuscetível de dispor de algum direito: cadáver éobjeto, e não sujeito.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A segunda conduta criminalizada pela normapenal contida no art. 209 é impedir ou perturbarenterro ou cerimônia fúnebre. Protege-se, naverdade, o sentimento de veneração e de piedadeque os mortos suscitam. Impedir significa evitar quecomece ou paralisar a cerimônia já em andamento.Perturbar, por sua vez, é tumultuar, embaraçar ouatrapalhar enterro ou cerimônia funerária. Como setrata de crime de forma livre, o meio pode serqualquer um, escolhido livremente pelo sujeito ativo,tal como vaias, ruídos, violência etc. Perturba oenterro ou a cerimônia funerária quem a tumultua,desorganiza e altera seu desenvolvimento regular.

A conduta impeditiva ou turbadora deve dirigir-se, necessariamente, contra enterro ou cerimônia

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fúnebre. É irrelevante o local onde esta ou aquele serealiza, ou seja, se ocorre dentro ou fora de templo,de cemitério ou capela mortuária.

Enterro é o transporte do corpo do falecido até olocal de sepultamento ou de cremação; é atransladação do cadáver para sua última morada, comou sem acompanhamento. Cerimônia funerária é oato religioso ou civil de encomendação e despedidaque se realiza em homenagem ao defunto. Cerimôniafunerária é a realização da atividade deencomendação da alma do defunto praticadasolenemente, isto é, realizada com certo aparato (commissa, procissão etc.); em outros termos, consistenos últimos atos de homenagem e despedida que sepresta ao morto.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O tipo subjetivo é constituído pelo dolo e peloelemento subjetivo especial do tipo, representadopelo especial fim, implícito, de violar o sentimento derespeito ao morto. Para a configuração do crime doart. 209 do CP é necessário que o agente tenhavontade e consciência de perturbar, com suaconduta, a cerimônia funerária. Trata-se,

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certamente, de crime doloso; o elemento subjetivo,em todo o caso, pode ser eventual.

A necessidade do elemento subjetivo especial doinjusto tem encontrado resistência particularmentena jurisprudência2. No entanto, no plano dogmático,é indispensável o propósito do agente de impedir ouperturbar a cerimônia funerária, sob pena de não seconfigurar essa conduta típica.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com o efetivo impedimentoou perturbação de enterro ou cerimônia fúnebre.Admite-se, em princípio, a tentativa, por se tratar decrime material, cujos atos executórios podem serfracionados contra a vontade do sujeito ativo. Se oresultado pretendido não for atingido, apesar deterem sido utilizados meios idôneos, não se poderáfalar em crime consumado, mas tão somente na figuratentada.

7. Figura majorada

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Não há previsão de figura qualificada (com novoslimites mínimo e máximo), mas somente umamajorante especial, isto é, quando for praticada comviolência. Na verdade, o emprego de violência (real)majora a pena em um terço (parágrafo único). Se aviolência constituir crime em si mesma, haverá somade penas.

Para não sermos repetitivo, remetemos o leitor aocapítulo anterior, em rubrica semelhante, pois tudo oque lá dissemos a respeito da violência e daaplicação cumulativa de pena aplica-se aqui3.

8. Pena e ação penal

As penas cominadas, alternativamente, sãodetenção, de um mês a um ano, ou multa, com amajoração de um terço, se houver violência. Se aviolência constituir crime em si mesma haveráaplicação cumulativa de penas.

A ação penal, a exemplo dos demais crimes destecapítulo, é pública incondicionada.

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1 Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, 5. ed., Riode Janeiro, Forense, 1981, v. 8, p. 69: “É em obséquio aosvivos, e não aos mortos (tal como no caso da ‘calúnia contraos mortos’, prevista no art. 138, § 2º, que surge aincriminação. O respeito aos mortos (do mesmo modo que osentimento religioso) é um relevante valor ético-social, e,como tal, um interesse jurídico digno, por si mesmo, da tutelapenal”.2 “Nos crimes contra o respeito aos mortos, não se exigequalquer fim específico, sendo, pois, irrelevante que o fimulterior deles fosse o lucro” (TJSP, AC, rel. Juiz MarinoFalcão, RJTJSP, 107:467).3 Com certeza, Nélson Hungria não entendeu a crítica queBeni Carvalho ousou fazer à redação da majorante relativa àviolência constante dos arts. 208 e 209, nos seguintestermos: “Pela má redação desse dispositivo, pareceria podera violência, por si mesma, constituir figura delituosaautônoma, e não, apenas um dos elementos integradores devários delitos, com exceção apenas das hipóteses do art. 322— violência arbitrária — em que, entretanto, é requisitoessencial achar-se o agente no exercício da função”.Sarcasticamente, como era de seu feitio, Hungria deu-lhe aseguinte resposta: “Lê-se e relê-se o comentário e não sepode entendê-lo. Poderá, acaso, alguém duvidar que a

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violência constitua crime autônomo, além de funcionar comocondição de maior punibilidade do crime a que serve de meioexecutivo, quando a lei assim o declara de modo explícito,categórico, iniludível? Se há emprego de violência, dá-seuma majorante (ou condição de maior punibilidade), emrelação aos crimes definidos no caput do artigo, e isto semprejuízo de aplicação da pena correspondente à violênciaconsiderada em si mesma. Além do efeito de majorar a penacorrespondente ao crime contra o sentimento religioso, aviolência é punida per se, como crime autônomo (lesãocorporal, homicídio, dano etc.). O texto legal é de uma clarezatal, que custa crer que alguém o considere impreciso ouconfuso. Toda a vez que o Código, nos casos em que aviolência é prevista como possível meio executivo do crime(e não somente na hipótese de violência arbitrária), ressalvaas penas relativas a ela, o que evidentemente quer significaré que se tem de reconhecer um concurso material entre oscrimes de que a violência é famulativa (e constitui causa deaumento de pena) e a própria violência, como crimeindependente. A diafanidade e correção de estilo do parág.único do art. 208 somente podem ser negadas e submetidasao processo mental que se costuma chamar, ironicamente, de‘filtro às avessas’” (Nélson Hungria, Comentários aoCódigo Penal, cit., v. 8, p. 66).Pois bem, honestamente, com todos os encômios queHungria mereceu, sem querer parodiá-lo, temos imensa

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dificuldade em entender e aceitar sua incompreensão emrelação aos fundamentos da crítica de Beni Carvalho. Naverdade, embora desconhecêssemos a crítica que o referidoautor, percucientemente, fez, comentando a distinçãoestabelecida pelo legislador entre “violência” e “vias defato” na tipificação da injúria real, tecemos as seguintesconsiderações:“A contravenção ‘vias de fato’ é absorvida, mas háconcurso formal de crimes com eventuais lesões corporais,leves ou graves, pois o § 2º determina a aplicação da penacominada, além da pena correspondente à violência. Aquestão é, afinal, a que violência o preceito secundário doreferido parágrafo está se referindo? Será a toda violência,inclus ive vias de fato, ou será somente àquela que,isoladamente, também constituir crime?Constata-se que, embora ‘vias de fato’ também constitua‘violência’, nesse caso específico a lei as distinguiu,determinando a cumulação de penas daqueles fatosviolentos, distintos de vias de fato, que, em si mesmos,constituírem crimes, pois a violência, pura e simplesmente, eas vias de fato são elementares da injúria real, e, em sendoassim, já estão valoradas na cominação das penas de trêsmeses a um ano de detenção e multa. Contudo, quando aviolência, necessária para caracterizar a injúria real for além,configurando em si mesma crime, como, por exemplo, lesõesleves ou graves, nesses casos e somente nesses casos as

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penas devem ser cumuladas.Registre-se que, ao contrário do que se tem afirmado, asimples previsão de cumulação das penas da violência e dainjúria real não significa que se esteja reconhecendo ouinstituindo uma modalidade sui generis de concurso materialde crimes, como já tivemos oportunidade de discorrerlongamente sobre o assunto em outro capítulo. Com efeito, oque define a natureza do concurso de crimes é a unidade oupluralidade de condutas e não o sistema de aplicação depenas, que, no caso, é o do cúmulo material (art. 70, 2ª parte).Somente haverá concurso material se houver mais de umaconduta, uma com violência aviltante caracterizadora dainjúria real e outra produtora de lesões (leves ou graves);caso contrário, o concurso será formal, embora comaplicação cumulativa de penas” (Cezar Roberto Bitencourt,Manual de Direito Penal, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 2002, v.2, p. 380 e 381).Na verdade, a revolta de Hungria o cegou, impedindo-o deperceber que nem sempre a violência a que se refere olegislador constitui crime, caso contrário não haverianecessidade de distinguir “violência” de “vias de fato”.Ninguém nega que vias de fato são uma forma de violência;no entanto, todos reconhecem que elas são tipificadas comomera contravenção.

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CAPÍTULO XLV - VIOLAÇÃO DE SEPULTURA

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7. Furto emsepultura: tipificação. 8. Classificaçãodoutrinária. 9. Pena e ação penal.

Violação de sepulturaArt. 210. Violar ou profanar sepultura ou urna

funerária:Pena — reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e

multa.

1. Considerações preliminares

Os romanos consideravam seus mortos comodivindades, denominando-os deuses manes, econcebiam as sepulturas como os templos desses

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deuses. Primeiramente, a violação tumular eraabrangida pelos crimes privados; somente no finaldo Império passou a ser objeto de ação pública1,apesar de ser punida com sanção pecuniária.

No direito canônico, os túmulos eramconsiderados coisa sagrada, e seus profanadoreseram punidos como autores de quase sacrilégio,sujeitos à pena de excomunhão. Posteriormente, eramentregues ao chamado “braço secular”, para lhesserem aplicadas outras sanções2.

A criminalização das condutas de violar ouprofanar sepultura ou urna funerária somente veio aocorrer em nosso ordenamento jurídico com osurgimento do Código Penal de 1940, uma vez queas próprias Ordenações do Reino e o CódigoCriminal do Império (1830) não se preocuparam comessa infração penal. O Código Penal de 1890, por suavez, tratou dessa infração penal como contravenção.

2. Bem jurídico tutelado

O bem jurídico protegido é o sentimento derespeito aos mortos, a exemplo do que ocorre noartigo anterior. Protege-se, igualmente, o sentimento

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de veneração que se tem pelos que já faleceram.Embora, na doutrina alienígena, haja quem sustenteser o bem tutelado “a saúde pública” (Carrara) ou osentimento religioso (Eugenio Cuello-Calón)3, adoutrina brasileira, a nosso juízo, acertadamentesustenta que o bem jurídico protegido é o sentimentode respeito aos mortos4. A defesa da religião éobjeto de disciplina em outro capítulo. Tampoucoserá a saúde pública, que, por sua vez, encontraproteção em outro Título da Parte Especial desteCódigo.

Na verdade, o bem jurídico tutelado não é achamada “paz dos mortos”, pois os mortos não sãotitulares de direito. Magalhães Noronha5 afirmavaque é um direito dos vivos que a lei protege. Talcomo na “calúnia aos mortos” (art. 138, § 2º), o queaqui se tutela é o sentimento dos parentes ou amigossobrevivos de respeito e reverência aos que partiramdesta vida.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, nãorequerendo nenhum predicado ou condição

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particular. Não ficam afastados nem mesmo familiaresdo defunto.

Sujeito passivo são os familiares e amigos domorto e, mediatamente, a coletividade, a despeito deo entendimento majoritário da doutrina nacional serno sentido inverso, isto é, primeiro a coletividade e,secundariamente, os familiares e amigos.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A primeira conduta típica consiste em violar, istoé, abrir, devassar, alterar o objeto material, que ésepultura (lugar próprio para receber cadáveres) ouurna funerária (recipiente onde se guardam partesdo cadáver, ossos ou cinzas)6. A sepultura comum,conhecida como vala ou cova, pode ser violada coma remoção da terra que a cobre, expondo os restosmortais; as sepulturas de melhor padrão sãoconhecidas como túmulos, que podem ser violadoscom sua abertura, expondo igualmente o cadáver ouseus fragmentos. Tratando-se de urna funerária, aviolação dar-se-á, de qualquer forma, desde queexponha os restos mortais às intempéries.

Profanar significa tratar com desprezo,

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aviltamento ou irreverência; profanar é ultrajar,vilipendiar ou macular sepultura ou urna funerária.Profana sepultura quem remove suas pedras, danificaornamentos, apaga inscrições, escreve palavrasinjuriosas ou pornográficas, coloca objetosgrotescos ou obscenos, provocando irrisão,zombaria etc.

Embora pareça que o legislador tratou as duascondutas como sinônimas, na verdade elas não seconfundem: a profanação é independente daviolação — quem viola profana, mas nem semprequem profana viola.

Não é necessário, para a configuração dessainfração penal, que os restos mortais (cadáver, ossosou cinzas) sejam removidos da sepultura ou da urnamortuária.

O vocábulo “sepultura” deve ser compreendidoem sentido amplo, para abranger não apenas o local— cova ou urna — onde se deixam os restos mortais,mas tudo o que integra esses locais, como seusacessórios naturais, tais como “o túmulo, isto é, aconstrução acima da cova, a lápide, os ornamentosestáveis, as inscrições. A lei não distingue entre avala comum e o mausoléu”7. À sepultura pertencem,com efeito, todos os objetos e ornamentos que a elase ligam permanentemente, não estando incluídas,

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porém, as coroas e flores.Para a configuração do crime é necessário que

haja restos humanos na sepultura ou urna.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

A violação de sepultura somente é punível atítulo de dolo, sendo necessário que haja no agente avontade consciente de violar ou profanar sepulturaou urna funerária.

O tipo subjetivo é composto pelo elementosubjetivo geral, o dolo, e o elemento subjetivoespecial do tipo, na modalidade de profanar, que érepresentado pelo especial fim de ultrajar, demacular sepultura ou urna funerária.

Não há previsão de modalidade culposa.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se com a violação ou profanaçãoefetiva, sendo irrelevante que a sepultura ou urna seencontre em cemitério público ou privado. Consuma-se, enfim, com qualquer ato de vandalismo sobre a

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sepultura ou alteração chocante, de aviltamento oude grosseira irreverência.

Como crime material, admite a tentativa, pois suaexecução é passível de fracionamento. Deve-seatentar, no entanto, a que, frequentemente, atentativa de violação já poderá constituir a figuraconsumada de profanação.

7. Furto em sepultura: tipificação

Há duas correntes: a) a subtração dos dentes docadáver configura o crime do art. 211, ou mesmo o doart. 210, e não o do art. 155, pois cadáver é coisa forado comércio. Não pertence a ninguém (RJTJSP,107:467). Configurar-se-á o crime de furto, noentanto, se o cadáver pertencer a instituto científicoou peça arqueológica (TJSP, RT, 619:291); b) se afinalidade era furtar, a violação da sepultura éabsorvida pelo crime de furto (TJSP, RT, 598:313).

O furto de objetos da sepultura, sem violação ouprofanação, tipifica o crime do art. 155.

8. Classificação doutrinária

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Trata-se de crime comum (não exige sujeitoqualificado ou portador de alguma condiçãoespecial); doloso (não há previsão de modalidadeculpos a); material (exige resultado naturalístico,consistente na violação ou profanação de sepulturaou urna funerária); instantâneo (a execução não seprolonga no tempo, produzindo o resultado deimediato); de forma livre (pode ser praticado porquaisquer meios escolhidos pelo agente);unissubjetivo (qualquer das duas figuras pode serpraticada isoladamente por apenas um agente).

9. Pena e ação penal

As penas cominadas são, cumulativamente,reclusão, de um a três anos, e multa.

A ação penal é de natureza públicaincondicionada.

1 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 699.

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2 Idem, ibidem.3 Francesco Carrara, Programa de Derecho Criminal, §3.185; Eugenio Cuello Calón, Derecho Penal, Madrid, 1936,v. 2, p. 286.4 Paulo José da Costa Jr., Comentários ao Código Penal,cit., p. 700.5 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 3, p. 89.6 Magalhães Noronha, Direito Penal, cit., v. 3, p. 91: “Urnasfunerárias são pequenas caixas, cofres ou vasos, onderepousam as cinzas de um cadáver ou seus ossos. Diferem aurna cinerária ou ossuária, por suas dimensões, forma eestrutura, mas ambas estão sob a tutela da lei”7 . Nélson Hungria, Comentários ao Código Penal, cit., v. 8,p. 70.

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CAPÍTULO XLVI - DESTRUIÇÃO, SUBTRAÇÃOOU OCULTAÇÃO DE CADÁVER

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 4.1. Objetomaterial do crime: cadáver. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Pena e açãopenal.

Destruição, subtração ou ocultação de cadáverArt. 211. Destruir, subtrair ou ocultar cadáver

ou parte dele:Pena — reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e

multa.

1. Considerações preliminares

A preocupação e o respeito para com os mortos

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são sentimentos que as civilizações têmdemonstrado ao longo da história da Humanidade,desde a Antiguidade. Os Códigos Criminaisbrasileiros do século XIX (1830 e 1890) não seocuparam desse crime.

A criminalização das condutas de destruir,subtrair ou ocultar cadáver somente veio a ocorrerem nosso ordenamento jurídico com o advento doCódigo Penal de 1940, já que as próprias Ordenaçõesdo Reino, que vigoraram por longo tempo no Brasil-colônia, tampouco se preocupavam com essainfração penal.

2. Bem jurídico tutelado

Bem jurídico protegido é o sentimento de respeitoaos mortos, o sentimento de veneração que se tempelos que já faleceram. Tutela-se, em outros termos,o sentimento dos parentes e amigos do morto e nãoo próprio de cujus, que não é titular de direito.

Quanto à retirada de órgãos para fins detransplante, ver Leis n. 5.479/68 e 8.489/92. A Lei n.9.434, de 4 de fevereiro de 1997, alterada pela Lei n.10.211, de 23 de março de 2001, fixa normas sobre aremoção de órgãos, tecidos e partes do corpo

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humano para fins de tratamento e de transplantes.Assim, essas atividades médico-cirúrgicas, paratransplantes ou outra finalidade terapêutica,dependerão de autorização do cônjuge ou parentemaior de idade, observando-se a linha sucessória,reta ou colateral até o segundo grau, inclusive,firmada em documento subscrito por duastestemunhas presentes à verificação da morte (art.4º). Após a retirada de tecidos, órgãos e partes, ocadáver será condignamente recomposto para serentregue aos familiares ou seus responsáveis legaispara encomendação e sepultamento.

A violação dos preceitos da Lei n. 9.434/97constitui crime, nos termos de seus arts. 14 a 20.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, inclusiveos parentes do morto, não requerendo nenhumacondição particular. Tratando-se, no entanto, decrime comum, é perfeitamente possível a ocorrênciado instituto do concurso eventual de pessoas (art.29).

Sujeito passivo, a exemplo dos tipos anteriores,são os familiares e amigos do morto, e só

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mediatamente a coletividade. Nesse particular,acreditamos que a maioria da doutrina não tem razãoquando sustenta que o sujeito passivo imediato é acoletividade1. Na verdade, a definição de quem podes e r sujeito passivo desse crime deve estarintimamente vinculada ao bem jurídico tutelado, e, namedida em que se admite que esse bem jurídico é “osentimento dos parentes e amigos do morto e não opróprio de cujus”, sujeito passivo direto só podemser os parentes e amigos, restando a coletividade,secundariamente, como titular passivo. E, por maisque se queira argumentar, nenhuma coletividade, pormais harmônica, integrada e coesa que seja, sentirámais a perda de um de seus membros que os própriosfamiliares; logo, não é justo nem sensato que aquelae não estes seja sujeito passivo desse crime contra orespeito aos mortos.

4. Tipo objetivo: adequação típica

São três as condutas tipificadas: destruir,subtrair e ocultar. Destruir (demolir, destroçar, fazerdesaparecer) um cadáver é fazê-lo desaparecer, istoé, levá-lo a deixar de ser considerado como tal;subtrair significa retirá-lo do local em que se

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encontrava, sob a proteção e a vigilância de alguém.É a retirada do cadáver — segundo Damásio deJesus2 — da situação em que se encontra sob aguarda da família, de amigos, parentes ouempregados do cemitério, mesmo que tal proteçãoseja exercida de forma indireta ou a distância; ocultaré fazer desaparecer o cadáver de alguém, semdestruí-lo, esconder temporariamente. Damásio deJesus3 destaca, com muita propriedade, que essecrime somente pode ser executado antes de ocadáver ser sepultado, pois, após ter sidodepositado em seu lugar definitivo, o crime somentepoderá ser cometido por destruição ou subtração.

As partes do cadáver, prevê o tipo penal, tambémpodem ser objeto material. No entanto, como objetomaterial por excelência dessa infração penal é ocadáver, é necessário que as partes sejam retiradasde um cadáver, isto é, um corpo sem vida, não oconfigurando, por conseguinte, a amputação demembro de uma pessoa, por exemplo, que,evidentemente, não pode ser equiparada a cadáver4.

4.1 Objeto material do crime: cadáver

O objeto material é o cadáver, que é o corpo

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humano inanimado, inclusive o natimorto. Não secompreendem na expressão cadáver os ossos nemas cinzas. Como parte dele devem sercompreendidas não só aquelas que foram sepultadasseparadamente, mas também, por exemplo, asubtração de partes, como cabeça, tronco oumembros.

Cadáver, na definição de Von Liszt, “é o corpohumano inanimado, enquanto a conexão de suaspartes não cessou de todo”. Cadáver, na definiçãopopular, é o corpo humano sem vida, embora sepossa acrescentar que o é enquanto conserva aaparência humana; os restos dele em completadecomposição ou mesmo suas cinzas não são partede cadáver, como os escombros de uma construçãodestruída ou demolida podem ser considerados comotais.

Cadáver, por sua destinação natural, não pode serobjeto de furto ou mesmo de dano, por exemplo, ouqualquer outro crime patrimonial, pois se trata dec o i s a extra commercium, não integrando opatrimônio de ninguém, salvo quando é submetido aexperiências científicas5.

O corpo de natimorto e o feto podem ser objetomaterial desse crime, ou seja, podem serconsiderados cadáver para efeitos do previsto no

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art. 211 ora em exame?Para uma corrente, natimorto e o feto não são

cadáveres por lhes faltar o elemento essencial paracaracterizá-los como tais: vida extrauterinaautônoma. Para essa concepção, portanto, cadáverrefere-se aos “restos exânimes de alguém que tenhavivido; para a segunda, em sentido contrário, éabrangido pela noção cadáver não apenas onatimorto como também o feto de mais de seismeses, que considera desnecessária vida extrauterinaautônoma; finalmente, para a terceira concepção,somente o natimorto pode ser cadáver, porconsiderar que o natimorto inspira o mesmosentimento de respeito de coisa sagrada6, sendotratado na vida social como defunto, o que nãoocorre com o feto.

Modernamente, Luiz Regis Prado adota asegunda orientação, afirmando que “cadáver abarcaem seu sentido tanto o natimorto quanto o feto,desde que este já tenha atingido a maturidadenecessária para sua expulsão”7. Segundo doutrina ejurisprudência majoritárias, o corpo do natimorto,expulso do ventre materno após ter atingido acapacidade de vida extrauterina, é consideradocadáver para efeito de caracterização do crime

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previsto no art. 211 do CP8. Nesse sentido, ajurisprudência, com alguma reiteração, tem entendidoque, no caso do feto que não atinge a maturidadenecessária para sua expulsão, com probabilidade devida extrauterina, por não estar a gestação acima de180 dias, seu corpo não deve ser consideradocadáver para a finalidade penal9.

5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo é o dolo, constituído pelavontade consciente de destruir, subtrair ou ocultarcadáver ou parte dele, independentemente dafinalidade que tenha animado sua conduta.

Logicamente, a vontade consciente do agentedeve abranger todos os elementos constitutivos dotipo, como exige o princípio da tipicidade taxativa.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime do art. 211 com a destruiçãodo cadáver; não é necessário que haja destruiçãototal, pois o próprio tipo penal se satisfaz com “parte

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dele”; com a subtração, isto é, a retirada do corpo daesfera de vigilância ou proteção de quem de direitoou com a sua ocultação, ou seja, fazendo-odesaparecer, mesmo que temporariamente.

Como nas três figuras se trata de crime material, éperfeitamente admissível a forma tentada10,bastando que a consumação não ocorra porcircunstâncias alheias à vontade do agente.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (não exige sujeitoqualificado ou portador de alguma condiçãoespecial); doloso (não há previsão de modalidadeculpos a); material (exige resultado naturalístico,consistente na destruição, subtração ou ocultaçãode cadáver ou parte dele); instantâneo (a execuçãonão se prolonga no tempo, produzindo o resultadode imediato; na figura de ocultar o crime pode serpermanente); de forma livre (pode ser praticado porquaisquer meios escolhidos pelo agente);unissubjetivo (qualquer das três figuras pode serpraticada isoladamente por apenas um agente).

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8. Pena e ação penal

As penas cominadas são, cumulativamente,reclusão, de um a três anos, e multa. A ação penal éde natureza pública incondicionada.

1 Por todos, Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 3, p.83; Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 177.2 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 3, p. 83.3 Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 3, p. 83.4 Questão interessante é o fato, não muito incomum, doabandono de vítima de acidente de veículo automotor emterreno baldio: afinal, configura ou não este crime? Ajurisprudência tem-se dividido a respeito: “Não ocorre ocrime de ocultação de cadáver se a atitude do réu foi apenasa de abandonar a vítima ao lado da estrada, sem o intuito deocultar o corpo das vistas de quem por ali passava” (TJMS,AC, rel. Juiz Sebastião Rosenburg, RT, 684:350); “Comete odelito de ocultação de cadáver o motorista que, atropelandopedestre e constatando ter ele falecido, abandona-o em lugarermo” (TJSP, AC, rel. Juiz Álvaro Cury, RT, 593:317).

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5 “O cadáver — salvo quando perde sua individualidade, oque se dá, p. ex., se constituir patrimônio de algum institutocientífico, passando a ter valor econômico e a ser coisaalheia — é coisa fora do comércio e sua proteção é erigidaem razão de princípios éticos, religiosos, sanitários e deordem pública impostos pelo Direito Positivo” (TJSP, AC,rel. Juiz Marino Falcão, RT, 619:291).6 Heleno Cláudio Fragoso, Lições de Direito Penal, cit., v. 1,p. 678.7 Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 178.8 TJSP, AC, rel. Juiz Luiz Tâmbara, RT, 526:328.9 TJSP, Rec., rel. Juiz Ângelo Gallucci, RT, 733:563.10 “O summatum opus ocorre com a simples efetividade dasubtração, pouco importando o fim último do agente” (TJSP,AC, rel. Juiz Márcio Bonilha, RT, 522:324).

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CAPÍTULO XLVII - VILIPÊNDIO A CADÁVER

Sumário: 1. Consideraçõespreliminares. 2. Bem jurídico tutelado. 3.Sujeitos ativo e passivo. 4. Tipoobjetivo: adequação típica. 5. Tiposubjetivo: adequação típica. 6.Consumação e tentativa. 7.Classificação doutrinária. 8. Pena e açãopenal.

Vilipêndio a cadáverArt. 212. Vilipendiar cadáver ou suas cinzas:Pena — detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e

multa.

1. Considerações preliminares

A criminalização das condutas de destruir,subtrair ou ocultar cadáver somente veio a ocorrerem nosso ordenamento jurídico com o advento doCódigo Penal de 1940. As Ordenações do Reino e o

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Código Criminal de 1830 não disciplinaram o crime devilipêndio a cadáver. O Código Penal de 1890, porsua vez, como pioneiro em nosso sistema jurídico,tipificou infração penal semelhante, porém comomera contravenção penal.

2. Bem jurídico tutelado

Bem jurídico protegido é o sentimento de respeitoaos mortos, a exemplo do que ocorre com odispositivo anteriormente analisado (art. 211); tutela-se, em outros termos, o sentimento dos parentes eamigos do morto e não o próprio de cujus, que não étitular de direito.

3. Sujeitos ativo e passivo

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, inclusiveos parentes do morto, não requerendo nenhumacondição particular. Tratando-se, porém, de crimecomum, nada impede que possa configurar-se oinstituto do concurso eventual de pessoas (art. 29).

Sujeito passivo, a exemplo dos crimes anterioresdeste mesmo Capítulo, são os familiares e amigos do

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morto, e só mediatamente a coletividade. Nesseparticular, discordamos da maioria da doutrinaquando sustenta que sujeito passivo imediato é acoletividade1. Na realidade, a definição de quempode ser sujeito passivo desse crime deve estarintimamente vinculada ao bem jurídico tutelado, e, namedida em que se admite que esse bem jurídico é “osentimento dos parentes e amigos do morto e não opróprio de cujus”, o sujeito passivo direto só podemser os parentes e amigos, restando a coletividade,secundariamente, como titular passivo. Por mais quese queira argumentar, nenhuma coletividade, pormais harmônica, integrada e coesa que seja, sentirámais a perda de um de seus membros que os própriosfamiliares, não sendo, portanto, justo nem sensatoque aquela e não estes sejam sujeito passivo dessecrime.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A ação tipificada é vilipendiar, que significaaviltar, ultrajar, e pode ser praticada de diversasformas, v. g., com palavras, gestos, escritos etc. Ovilipêndio pode ser por palavras, atos ou escritos.Com efeito, vilipendiar cadáver é ultrajá-lo, aviltá-lo.

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Trata-se de ato que se pratica junto ao cadáver ou asuas cinzas, e não mediante declarações em público,publicações em jornais etc.

Objeto material é o cadáver, que é o corpohumano inanimado, inclusive do natimorto, comoafirmamos ao examinar o crime descrito no artigoanterior. No entanto, ao contrário da previsão desteartigo, o vilipêndio a cadáver não destaca que aspartes deste também são protegidas pela normapenal. Tutela-se o cadáver e suas cinzas, isto é, osmenores fragmentos possíveis de um cadáver; assimsendo, quer-nos parecer que a omissão quissignificar a desnecessidade de sua repetição, além deque cinzas constituem, teoricamente, as menoresporções em que se pode fragmentar alguma coisamaterial, como é o caso de um cadáver. Acreditamosque as partes (tronco, membros, cabeça etc.) de umcadáver também encontram a proteção da normapenal contida no art. 212. Não seria racionalsustentar que o menosprezo das cinzas de umcadáver constitui crime, e a mesma conduta praticadacontra membros ou órgãos dele não o seja, poiscomo destacava Magalhães Noronha, referindo-se alei às cinzas humanas, não precisava falar sobre aparte do cadáver; protegendo aquela, não podedeixar de proteger esta2.

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5. Tipo subjetivo: adequação típica

O elemento subjetivo geral é o dolo, representadopela vontade consciente de menosprezar cadáver ousuas cinzas.

O elemento subjetivo especial do tipo éconstituído pelo fim especial de aviltar, de ultrajar,de vilipendiar. Para a configuração do crime devilipêndio de cadáver é indispensável a presença doelemento moral, do fim específico, consistente nodesejo consciente de desprezar o corpo sem vida davítima, com intenção clara de ultrajá-lo. Assim, porexemplo, o agente que, depois de atirar na vítima,ausenta-se do local dos fatos, retornando logodepois e, com o pé, empurra a vítima, supostamentefalecida, para conferir se realmente está morta, nãopratica o crime de vilipêndio, por faltar o elementosubjetivo especial, que é a vontade conscientedirigida à prática da ação, com o objetivo deprofanar o cadáver.

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com o ato ultrajante, quandomaterial, ou simplesmente com o vilipêndio verbal

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junto ou sobre o cadáver ou suas cinzas.Dependendo da forma de execução, é possível, emtese, a tentativa, salvo quando é praticado oralmente.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (não exige sujeitoqualificado ou portador de alguma condiçãoespecial); doloso (não há previsão de modalidadeculpos a); material (exige resultado naturalístico,quando realizado por meio de escritos, por exemplo,consistindo em desrespeito à memória do morto);formal (quando praticado oralmente); instantâneo (aexecução não se prolonga no tempo, produzindo oresultado de imediato); de forma livre (pode serpraticado por quaisquer meios escolhidos peloagente); unissubjetivo (qualquer das três figuraspode ser praticada isoladamente por apenas umagente).

8. Pena e ação penal

As penas cominadas são, cumulativamente,detenção, de um a três anos, e multa. A ação penal é

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de natureza pública incondicionada.

1 Por todos, Damásio de Jesus, Direito Penal, cit., v. 3, p.83; Luiz Regis Prado, Curso de Direito Penal brasileiro, cit.,v. 2, p. 177.2 No mesmo sentido, Damásio de Jesus, Direito Penal, cit.,v. 3, p. 87; Magalhães Noronha, Direito Penal, v. 3, p. 95.

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