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UFSM Dissertação de Mestrado ENVELHECER COM PASSIONE: A TELENOVELA NA VIDA DE IDOSAS DAS CLASSES POPULARES Laura Hastenpflug Wottrich PPGCOM Santa Maria, RS, Brasil 2011

WOTTRICH, Laura H. Dissertação, 2011

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Envelhecer com Passione: a telenovela na vida de idosas das classes populares. Dissertação defendida em março de 2011 no Programa de Pós-graduação da UFSM.

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  • 1. UFSM Dissertao de Mestrado ENVELHECER COM PASSIONE:A TELENOVELA NA VIDA DE IDOSAS DAS CLASSES POPULARES Laura Hastenpflug Wottrich PPGCOM Santa Maria, RS, Brasil2011

2. LAURA HASTENPFLUG WOTTRICH ENVELHECER COM PASSIONE:A TELENOVELA NA VIDA DE IDOSAS DAS CLASSES POPULARES Dissertao de Mestrado apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Comunicao, linha de pesquisa Mdia e Identidades Contemporneas, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), para a obteno do grau de Mestre em Comunicao.Orientadora: Prof. Dra. Veneza Mayora Ronsini Santa Maria, RS, Brasil2011 3. Universidade Federal de Santa Maria Centro de Cincias Sociais e HumanasPrograma de Ps-Graduao em Comunicaorea de concentrao: Comunicao Miditica A Comisso Examinadora, abaixo assinada, aprova a dissertao de Mestrado ENVELHECER COM PASSIONE:A TELENOVELA NA VIDA DE IDOSAS DAS CLASSES POPULARES elaborada por Laura Hastenpflug WottrichComo requisito para obteno do grau deMestre em Comunicao COMISSO EXAMINADORA: Veneza Mayora Ronsini, Dra. (UFSM) (Presidente/Orientadora) Beltrina da Purificao da Crte Pereira, Dra.(PUC-SP)Jiani Adriana Bonin, Dra. (UNISINOS) Santa Maria, 18 de maro de 2011. 4. Na parede de um botequim de Madri, um cartaz avisa:Proibido cantar. Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro,um aviso informa: proibido brincar com os carrinhosporta-bagagem. Ou seja: Ainda existe gente que canta,ainda existe gente que brinca.(Eduardo Galeano) Estas linhas so dedicadas queles que ainda cantam, ainda brincam,queles que insistem. 5. AGRADECIMENTOS Agradeo aos meus pais, Paulo e Magali, por darem trela minha curiosidade desde a meninice e amor incondicional desde sempre. Foram eles os primeiros a suscitar as minhas dvidas e sero eles, por toda a vida, minha certeza, meu esteio e meu exemplo.Aos meus irmos, Shana, Vanessa, Breno e Thales que, a uma porta ou a um oceano de distncia, sempre me apoiaram. Estas pginas carregam seus acordes no violo, puxes deorelha, conversas e conselhos, que me incentivaram a oferecer o meu melhor. s minhas avs, Elvira e Ieda, com quem desde cedo, em meio a comentrios e cafuns,cenas e silncios compartilhados na imensido do sof, dei os primeiros passos na construo desta pesquisa. Agradeo minha orientadora, Prof. Veneza Ronsini, pelo acompanhamento terno eincansvel. Obrigada por apresentar a esta publicitria o mundo da pesquisa e me ensinar que a labuta cientfica, alm de comprometimento e disciplina, exige entusiasmo e sensibilidade.Muito obrigada Gisele e Renata pelo companheirismo e sorriso largo que amaciaram a estafa e tornaram lindos cada dia deste percurso. Seus olhares sobre a vida, dedicao eamizade so minhas referncias mais importantes, ainda que no citadas no fim destadissertao.Ao Flvio, meu companheiro, obrigada por ser o refgio e mar aberto desse perodo dissertativo. Teus pitacos, playlists, livros e levezas acalmaram minhas dvidas e meinspiraram pra pesquisa e pra vida.s entrevistadas desta pesquisa, obrigada de corao por me acolherem em suas casas e compartilharem comigo suas histrias.s professoras Jiani Bonin e Beltrina Crte, pela leitura valiosa do exame de qualificao e pela aceitao gentil participao na banca de avaliao final do trabalho, dando-me aoportunidade de aprender mais sobre o universo da recepo e da velhice.Agradeo UFSM pela formao de qualidade, pblica e gratuita desde a graduao; aosprofessores e funcionrios do Poscom, pela generosidade e convivncia e a CAPES, cujoauxlio foi fundamental para a realizao deste trabalho.Muito obrigada aos tantos colegas que partilharam comigo suas vidas e aprendizados. Em especial Fabiane e Tatiana, irms que Santa Maria me deu e Lrian, amiga que a pesquisa me apresentou. Com vocs espero ainda dividir muitos cafs, dvidas e conquistas.Aos meus amigos, que enchem meus dias de delicadeza e fizeram destes anos santa-marienses os melhores de minha vida. Meu carinho e gratido por vocs renderiam uma outradissertao. 6. A coisa mais moderna que existe nessa vida envelhecer A barba vai descendo e os cabelos vo caindo pra cabea aparecerOs filhos vo crescendo e o tempo vai dizendo que agora pra valer Os outros vo morrendo e a gente aprendendo a esquecer No quero morrer, pois quero ver Como ser que deve ser envelhecer Eu quero viver pra ver qual E dizer venha pra o que vai acontecer.(Envelhecer | Arnaldo Antunes) 7. Universidade Federal de Santa Maria Centro de Cincias Sociais e HumanasPrograma de Ps-Graduao em ComunicaoTtulo: Envelhecer com Passione: a telenovela na vida de idosas das classes popularesAutor: Laura Hastenpflug WottrichOrientador: Prof. Dra. Veneza Mayora Ronsini RESUMOEste trabalho objetiva compreender as relaes entre as representaes da velhice veiculadasna telenovela do horrio nobre e suas apropriaes por mulheres idosas das classes populares.Almeja-se entender como a telenovela conforma representaes da velhice e como as mesmasso apropriadas pelas receptoras na conformao das suas identidades a partir das mediaesde gnero e de classe social. Teoricamente, baseia-se na perspectiva dos estudos culturais, nasreflexes latino-americanas sobre as mediaes realizadas por Martn-Barbero e nasinterseces entre estudos sobre velhice e mdia. Metodologicamente, articula as teorizaesdo modelo Codificao/Decodificao proposto por Stuart Hall e o modelo das MediaesComunicativas da Cultura de Martn-Barbero. No mbito da produo, realizou-se a anlisedas representaes da velhice veiculadas na telenovela Passione e reflexes sobre a dinmicade produo da trama. A recepo estudada atravs de seis mulheres idosas, entre 63 e 76anos, de classes populares residentes em Santa Maria- RS. O estudo configura-se umaetnografia crtica da recepo. As tcnicas utilizadas foram observao do espao domsticocom registros no caderno de campo, assistncia da telenovela junto a quatro entrevistadas,realizao de entrevistas exploratrias e entrevistas semi-abertas/fechadas. Os resultadosapontam que a telenovela tem participao importante na construo das velhices dasreceptoras, frente a um contexto de amplas desestabilizaes nas formas de representar e viveresse perodo da vida. Passione, apesar de endossar as representaes dominantes, traz espaossignificativos para negociao e apresenta codificaes opositivas da velhice, especialmentenas dimenses da famlia e vida afetiva/sexualidade. As apropriaes das receptoras soperpassadas pelas mediaes de classe e de gnero. A classe define uma vivncia maisopressora da condio feminina, marcada por uma educao sexista, diviso sexual dotrabalho e ingerncia sob suas vidas, que perpassa os modos como elas significam suasvelhices. O ingresso na velhice, por sua vez, desestabiliza suas concepes tradicionais degnero. Essa dinmica configura suas representaes da velhice e se faz presente na recepoda telenovela, onde foram encontradas duas matrizes distintas de leitura, configurando-se umadecodificao negociada. Em termos gerais, elas endossam as codificaes dominantes davelhice. Quando pensam a trama em relao a si, na identificao com as personagens,significados mais opositivos vm tona, de acordo com os significados mais positivos davelhice que buscam construir para si.Palavras-chave: estudos de recepo; velhice; telenovela; classes populares; representaessociais 8. Universidade Federal de Santa Maria Centro de Cincias Sociais e HumanasPrograma de Ps-Graduao em ComunicaoTitle: Getting older with Passione: telenovela in life of elderly women of popular classesAuthor: Laura Hastenpflug WottrichAdviser: Prof. Dra. Veneza Mayora Ronsini ABSTRACTThis research aims at understanding the relationships among the representation of elderlihoodconveyed in a telenovela of a prime time and its appropriation by elderly women of popularclasses. The objective is to understand how telenovela builds representations of elderlihood aswell as how such representations are taken by receptors as concerns building their identitiesthrough mediation of gender and social class. Theoretically, it is based on the cultural studies,on latin-american reflections about mediation proposed by Martn-Barbero and on theintersection between studies about elderlihood and media. As for the method, theories of theCodification/Decodification model, proposed by Stuart Hall, and the CultureCommunicative Mediations method proposed by Martn-Barbero are articulated. Regardingproduction, an analysis of elderly representations portrayed in telenovela Passione andreflections about the dynamics of the production of the plot were accomplished. Reception isstudied through six elderly women, among 63 to 76 years old, from popular classes, living inSanta Maria-RS. Such study is a critical ethnography of reception. Observation of thedomestic space, with registers in the field journal, were used as techniques, along withwatching telenovela together with four of those women, exploratory interviews and semi-structured/closed interviews. Results point out that telenovela has an important participationon the process of building elderlihood of the receptors, facing a context of widedestabilizations on the ways of representing and living such period of life. Passione, althoughendorsing the dominant representations, brings significant spaces for negotiation and presentsopposing codifications of elderlihood, especially as regards the dimensions of family andaffective life/sexuality. Appropriation of the receptors are pervaded by mediations of classand of gender. The class defines a more oppressive experience of the feminine condition,marked by a sexist education, sexual division of labor and interference over their lives, whichpervade the ways they mean their elderlihood. Entering elderlihood, for once, seems to turntheir traditional representations of elderlihood into an unstable condition. Such dynamicsconfigures their representations of elderlihood and is present on the reception of telenovela,where two different matrixes of reading were found, configuring a negotiated decodification.In general terms, they endorse the dominant codifications of elderlihood. When thinkingabout the plot in relation to themselves, as concerns identification with the characters, moreopposing meanings appear according to more positive meanings of elderlihood that they try tobuild for themselves.Keywords: reception studies, elderlihood, telenovela, popular classes, social representations 9. LISTA DE ILUSTRAESFIGURA 1 - Mapa das mediaes comunicativas da cultura ...................................................28FIGURA 2 - Evolutivo das telenovelas das 18h de 2000 a 2008 .............................................80FIGURA 3 - Evolutivo da audincia das telenovelas das 19h de 2000 a 2008 ........................81FIGURA 4 - Evolutivo da audincia das telenovelas das 21h de 2000 a 2008 ........................82FIGURA 5 - Rua da casa de Vnia.........................................................................................128FIGURA 6 - Rua da casa de Tarsila .......................................................................................132FIGURA 7 - Rua da casa de Carmen......................................................................................136FIGURA 8 - Rua da casa de Dani...........................................................................................139FIGURA 9 - Rua da casa de Maria.........................................................................................143FIGURA 10 - Rua da casa de Clia ........................................................................................146 10. LISTA DE TABELASTABELA 1 - Tabelas descritivas das personagens idosas de Passione ...................................97TABELA 2 - Tendncias de codificao das representaes da vellhice em Passione .........123 11. SUMRIOINTRODUO.......................................................................................................................12CAPTULO 1 - ESTUDOS CULTURAIS E DE RECEPO ..........................................22 1.1 O MODELO DAS MEDIAES EM MARTN-BARBERO ......................................25 1.2 A MEDIAO DE CLASSE.........................................................................................31 1.3 A MEDIAO DE GNERO .......................................................................................37 1.4 REGISTROS TERICO-METODOLGICOS.............................................................45CAPTULO 2 - VELHICE, MDIA E A CONSTRUO DAS IDENTIDADES ...........51 2.1 AS IDADES DA VELHICE...........................................................................................51 2.2 MDIA, REPRESENTAES E IDENTIDADES........................................................60 2.3 AS REPRESENTAES DA NOVELA SOBRE A VELHICE...................................65CAPTULO 3 A TELENOVELA COMO OBJETO DE ESTUDO................................73 3.1 REDE GLOBO ...............................................................................................................77 3.2 VEM A: PASSIONE .....................................................................................................84 3.3 SLVIO DE ABREU ......................................................................................................87CAPTULO 4 AS VELHICES DE PASSIONE ................................................................95 4.1 FAMLIA......................................................................................................................111 4.2 BELEZA, CUIDADO DE SI E SADE ......................................................................113 4.3 VIDA AFETIVA E SEXUALIDADE..........................................................................116 4.4 TRABALHO.................................................................................................................120 4.5 APONTAMENTOS DA ANLISE.............................................................................122CAPTULO 5 AS MULHERES E SUAS EXPERINCIAS DA VELHICE ..................126 5.1 AS RECEPTORAS.......................................................................................................1265.1.1 Vnia .....................................................................................................................1275.1.2 Tarsila ...................................................................................................................131 12. 5.1.3 Carmen .................................................................................................................1355.1.4 Dani .......................................................................................................................1385.1.5 Maria.....................................................................................................................1425.1.6 Clia.......................................................................................................................145 5.2 SER (OU NO SER) IDOSA: AS DIMENSES DA EXPERINCIA .....................1485.2.1 Famlia ..................................................................................................................1485.2.2 Cuidado de si, beleza e sade ..............................................................................1545.2.3 Vida afetiva e sexualidade ..................................................................................1635.2.4 Trabalho ...............................................................................................................169CAPTULO 6 - ENVELHECENDO COM A TELENOVELA........................................172 6.1 O UNIVERSO DA RECEPO..................................................................................172 6.2 A RECEPO DAS REPRESENTAES DA VELHICE .......................................1846.2.1 Velhices apaixonadas? Em busca de novos sentidos.........................................193CONCLUSO.......................................................................................................................199REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS................................................................................208APNDICE A - ENTREVISTA EXPLORATRIA .......................................................................219APNDICE B - MAPA DO CONSUMO CULTURAL ...................................................................220APNDICE C - TRAJETRIA DE VIDA ...................................................................................226APNDICE D - PERCEPES SOBRE A VELHICE ....................................................................228APNDICE E - ENTREVISTA V: MEIOS DE COMUNICAO/TELENOVELA ............................231APNDICE F - CLASSE SOCIAL ............................................................................................234APNDICE G - GNERO .......................................................................................................235APNDICE H TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E INFORMADO.......................................236 13. 12INTRODUOEm novembro de 2010, uma campanha publicitria de uma empresa de telefoniamovimentou as redes sociais na internet. Com o mote Bloqueia Vio e smbolo de umsenhor idoso interditado por uma tarja vermelha, as peas convidavam os jovens a seenvolverem em jogos virtuais. Se provasse no ser velho ao escutar uma freqncia sonoraque geralmente se torna inaudvel com o passar dos anos, o jovem seria presenteado com umplano da operadora. Um ano antes, a Rede Globo lanava um alerta em seu Boletim deInformao para Publicitrios (BIP) sobre o crescimento do pblico do idoso no pas. Umamplo perfil de consumo na velhice era traado, com enfoque para as vivncias positivas egratificantes dessa etapa da vida e possveis oportunidades de consumo para esse mercado emexpanso.So fatos dispersos, singulares frente ao universo de representaes sociais da velhiceque circulam na contemporaneidade. O que eles nos dizem? E o que dizem deste trabalho?Talvez esbocem um pouco da pluralidade, conflitos e contradies que permeiam aconstruo social da velhice. Estigmatizada e valorizada; decrpita e desejante, a velhice -muito alm de uma construo biolgica atravessada por transformaes profundas, emque a mdia tem um protagonismo especial.Basta observar com um pouco de ateno as matrias, campanhas publicitrias eprogramas televisivos para constatar um aumento na tematizao da velhice na mdia, emcompasso com as novas configuraes que atravessam esse perodo da vida. Se para osestudiosos consenso que a mdia possui um papel fundamental na construo social davelhice, o fato parece ainda no ter encontrado ressonncia nos artigos cientficos, nas pginasdas teses e dissertaes do campo da comunicao.Neste, a relao entre idosos e mdia ainda pouco estudada. Isso se tornacompreensvel pela recente ateno que a velhice adquiriu como foco de pesquisa,principalmente no Brasil. As estatsticas embasam o que gerontlogos e demais pesquisadoresproblematizam: a expanso da populao idosa1 no pas, o crescimento do campo deteorizaes sobre a velhice, as novas formas de vivenciar essa fase da vida transformam os1 Consideramos idosos indivduos com sessenta anos ou mais, conforme caracterizao do Instituto Brasileiro deGeografia e Estatstica (IBGE). 14. 13modos como ela vista e representada socialmente, assim como as percepes e vivncias dosprprios idosos.At 2025 o Brasil ser o sexto do mundo com maior nmero de idosos. Em 2008, paracada 100 crianas de at 14 anos existiam cerca de 25 idosos de 65 anos ou mais. Em 2050,para cada 100 crianas a projeo da existncia de 172 idosos2. Trata-se de um dadosignificativo e, principalmente, de um crescimento demogrfico que incide de modos diversosem como a velhice percebida na sociedade brasileira. Contudo, restringir-se s estatsticastorna-se insuficiente para compreender a velhice em sua complexidade. Como alerta Debert(1999a), as mudanas nas imagens e nos modos como se d a gesto do envelhecimento noso reflexo automtico das mudanas na estrutura etria da populao. Pensar desse modoacaba por reduzir o horizonte das investigaes possveis.Quando nos propomos a abordar a velhice a partir dos estudos de comunicao, asperspectivas so diversas. A partir da reviso dos estudos da rea, percebemos a existncia depesquisas dedicadas a produtos miditicos, sobre as representaes da velhice, do indivduoidoso ou do envelhecimento veiculadas pela propaganda e pelo jornalismo3.Nossa inteno problematizar a circulao dessas representaes a partir do olhardaqueles que cotidianamente as ressignificam em suas vivncias: os receptores. Para tanto,elegemos um produto miditico especfico, a telenovela. Como objetivo geral, buscamosestudar as relaes entre as representaes da velhice veiculadas na telenovela do horrionobre e suas apropriaes por idosas das classes populares na conformao de suasidentidades.Conforme ser problematizado nas linhas deste trabalho, a velhice uma construosocial que vem passando por transformaes profundas, tanto na forma de vivenci-la(conforme compartilharam generosamente conosco as receptoras em suas falas) como depens-la (o que os autores interessados na velhice discutem amplamente). A mdia se tornaum agente ativo na reviso das representaes (DEBERT, 1999a, 2004, 2008; COSTA, 2005;e CRTE, 2009), criando novos significados para o envelhecer.Analis-los a partir da recepo da telenovela tentar entender que velhices possveisvem sendo configuradas pelo folhetim, e de que forma as idosas (algumas telespectadorasassduas h muitos anos) as decodificam em suas percepes e construo da velhice para si.2IBGE:Projeo daPopulaonoBrasil. Disponvelem: Acesso em 20 mai2010.3 Entre os estudos que abordam a temtica da representao da velhice na mdia, citamos os elaborados porSoares (2009), Bezerra (2006), Agra do et. al (2010), Palcios (2004), Neri (2006), Debert (2003), Crte,Gomes (2006), Crte (2009) e Crte, Mercadante, Gomes (2006). 15. 14 A proposta insere-se em uma perspectiva sociocultural de investigao, que v noprocesso de recepo dos produtos miditicos formas de problematizar as mltiplas relaessociais e culturais que engendram os significados da mdia na vida cotidiana. Alinhados steorizaes dos estudos culturais latino-americanos e aos estudos de recepo brasileiros,nosso esforo est em articular o mbito do cotidiano s esferas sociais e culturais maisamplas, indispensveis para pensar a recepo para alm da pesquisa descritiva de audinciaou da constatao de sua atividade/passividade perante os meios de comunicao. Os estudos culturais, esse campo de pesquisa de carter interdisciplinar, dedica-se aoestudo da mdia, das comunicaes e da cultura. Seu surgimento d-se na dcada de 1960,atravs da fundao do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) em 1964, naUniversidade de Birmigham, Inglaterra. No perodo, despontaram estudos sobre as formasculturais, instituies e prticas, assim como sobre as relaes com a sociedade e com asmudanas sociais. (ESCOSTEGUY, 2004). Durante um longo tempo os estudos culturais preocuparam-se em compreender aestrutura ideolgica e funcionamento dos meios. o caso dos estudos literrios e de efeitos,por exemplo. A recepo, ao privilegiar as conexes entre comunicao e cultura, atua nodeslocamento terico da anlise da estrutura ideolgica de programas de comunicao aanlise dos meios - em direo aos processos multifacetados de consumo e decodificao nosquais as audincias esto envolvidas. Os processos de recepo integram prticas culturaisque articulam tanto processos subjetivos quanto objetivos, tanto micro (ambiente imediatocontrolado pelo sujeito) quanto macro (estrutura social que escapa a esse controle).(MARTIN-BARBERO, 2002b, p. 32). Especificamente na Amrica Latina, a partir dos anos 80, os estudos conformam umaviso mais cultural dos meios de comunicao e, adotando o conceito de hegemoniaintroduzido por Gramsci. Os estudos de recepo latino-americanos despontam com asproblematizaes de Jess Martn-Barbero, Guillermo Orozco Gmez e Nstor GarciaCanclini. O primeiro autor, em sua obra seminal Dos Meios s Mediaes, face realidadelatino-americana, prope recolocar os problemas de comunicao em outro campo, o dosprocessos socioculturais. Para isso, apresenta o conceito de mediaes, o entorno atravs doqual as apropriaes realizadas pelos receptores tomam forma. As mediaes podem serentendidas como [...] um conjunto de elementos que intervm na estruturao, organizao e reorganizao da percepo da realidade em que est inserido o receptor, tendo poder tambm para valorizar implcita ou explicitamente esta realidade. As mediaes produzem e reproduzem os significados sociais, 16. 15 sendo o espao que possibilita compreender as interaes entre a produo e a recepo (JACKS, 1999, p. 48-9).Atravs da problematizao das mediaes, a proposta de Martn-Barbero est emdeslocar a anlise da comunicao para os lugares nos quais os sentidos so produzidos, ouseja, para o mbito dos usos sociais. Neste trabalho, adotamos o modelo das mediaescomunicativas da cultura, apresentado pelo autor de forma mais completa em 20084.No trajeto de pesquisa, algumas inquietaes mais especficas foram timoneiras dainvestigao. So elas 1) Como a telenovela representa a velhice? 2) Como as receptorasapropriam-se dessas representaes a partir das mediaes de gnero e de classe social? 3)Suas apropriaes vo ao encontro, negociam ou opem-se aos discursos da telenovela? Apartir delas, buscamos por fim problematizar os embates e complementaridades entre asrepresentaes desses discursos sobre a velhice na telenovela e as apropriaes dos mesmospelas receptoras na conformao de suas identidades.Para pensar as representaes que circulam na telenovela e suas apropriaes pelasreceptoras em termos de dominncia, negociao ou oposio, articulamos o aportebarberiano com o modelo de Stuart Hall, Codificao/Decodificao conforme propostadesenvolvida por Ronsini (2010). Apresentado comunidade acadmica em 1970, o modelode Hall fornece pistas valiosas sobre a compreenso do processo comunicativo a partir deprogramas televisivos. Em especial o estudo de Morley (1980), que discutiu empiricamente ospressupostos de Hall e as pesquisas realizadas no grupo de pesquisa Mdia, Recepo eConsumo cultural5 so fundamentais para a concretizao desta pesquisa.Estudos interessados nos aspectos sociais da velhice apontam para certo consenso daidia de que estudar idosos implica em considerar que a esta etapa vivenciada em partehomogeneamente, em parte diferencialmente a partir do gnero e da experincia cotidiana dosindivduos. Para capturar um pouco dessa diversidade de sentidos, optamos a partir do aportebarberiano por estudar as mediaes das relaes de gnero e de classe social na investigaojunto s receptoras.A trajetria de homens e mulheres, construo social e cultural, determinarepresentaes e atitudes distintas sobre a condio de idoso(a) (BRITTO DA MOTTA, 1999;DEBERT, 1999a). O maior nmero de mulheres entre a populao que envelhece e os4A problematizao desse modelo foi realizada pelo autor no prefcio quinta edio brasileira de Dos Meioss mediaes. Ver MARTN-BARBERO, Jess. Dos meios s mediaes: comunicao, cultura e hegemonia.5ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2008. Abordaremos o modelo barberiano no primeiro captulo deste trabalho.5Sob coordenao da Prof. Dra. Veneza Ronsini, viemos discutindo essas questes em alguns trabalhos. Parainformaes, ver Ronsini (2010), Ronsini et. al (2009), Ronsini, Wottrich, Silva (2009). 17. 16distintos significados que o envelhecimento feminino assume torna fundamental que asdiferenas de gnero sejam problematizadas. Em pesquisa anterior6, pudemos observar oquanto as relaes com a mdia ganham contornos distintos se tomarmos o gnero como umamediao. Isso significa, a partir das lentes barberianas, pens-lo como uma construo social.O entendimento da classe como fundamental para compreenso da experincia cultural uma noo que acompanha os estudos culturais desde seu incio, em dilogo com asteorizaes marxistas. Aliamo-nos a uma perspectiva que v a classe social no como umadiferena a mais, somada a outras distines como etnia e gnero. Baseamo-nos em algunsestudos, como o realizado por Sujeon Kim (2004), a partir do tratamento estatstico dos dadosqualitativos coletados por David Morley em seu estudo de recepo The NationwideAudience(1980), que evidencia a relevncia da clivagem de classe no processointerpretativo. Na investigao da recepo de um telejornal britnico veiculado pela redeBBC, Morley buscou compreender a interpretao de diferentes grupos e classes e comcdigos culturais particulares sobre o programa, em relao s suas posies scio-econmicas. Na poca, seus resultados apontaram para a inexistncia de uma leitura distintados receptores a partir do recorte de classe. A pesquisa de Morley - considerada comoreferncia para a relativizao da importncia de classe social nas prticas de decodificaodos receptores - foi reinterpretada por Kim, que restaurou seus resultados.Outros estudos empricos mais atuais apontam a importncia de se problematizar asclasses sociais quando pensamos as relaes entre mdia e receptores, como os realizados porLopes, Borelli e Resende (2002); Sifuentes (2010) e Ronsini (2007, 2008). Neles, h certoalinhamento com a proposio barberiana de pensar a classe social como uma distinoconfiguradora dos modos de apropriao que os receptores realizam da mdia. A classe social aquela que articula as demais a partir de seu interior e se expressa por meio do habitus,capaz de entrelaar os modos de possuir, de estar junto e os estilos de vida (MARTN-BARBERO, 2002a, p.14).A importncia da experincia de classe na velhice assegurada por estudos como orealizado por Bosi (1994), Britto da Motta (1999) e Sobrinho (2007). Envelhecer nas classesmenos ou mais aquinhoadas um fator determinante para a significao desse perodo davida.6 WOTTRICH, Laura H. Relaes de gnero, classe social e contexto familiar na recepo da telenovela: umestudo sobre as representaes da velhice. Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Famlia, gnero egerao, do II Encontro Internacional de Cincias Sociais, em Pelotas/RS, em junho de 2010. 18. 17 A classificao em relao s classes sociais das entrevistadas teve como referncia oestudo dos grupos ocupacionais realizado por Quadros e Antunes (2001). Os autoresentendem a classe alta como a burguesia proprietria, rural ou urbana. A classe popularconstitui-se por fraes da classe trabalhadora que vendem sua fora de trabalho em troca desalrio. Nesta pesquisa, as condies econmicas limitadas das entrevistadas so refletidas emmoradias simples e at mesmo em situao de risco, baixo grau de escolaridade (nenhumadelas passou do ensino primrio), parco acesso a bens culturais e dependncia do Estado paraatividades de lazer e cuidado com a sade, alm de outras questes que abordaremos adiante. Baseamo-nos na anlise de uma telenovela especfica, Passione7. No percurso depesquisa junto s idosas, pudemos averiguar o quanto elas so telespectadoras da telenovela.Essa idia confirmada em pesquisas realizadas pela Fundao Perseu Abramo (NERI,2007), nas quais assistir televiso figura como primeira opo de lazer entre os idososbrasileiros, com 93% da preferncia. A preferncia pela telenovela endossada por pesquisa divulgada no Anurio 2009 doObservatrio Ibero-Americano da Fico Televisiva. Nele, os receptores com 50 anos deidade8 ou mais figuram como o principal pblico da telenovela, com 29,7% e 30,7% daaudincia (em relao s telenovelas Duas Caras e A Favorita, respectivamente). Para opblico jovem de 18 a 24 anos, para realizar um contraponto, a percentagem de assistnciadessas telenovelas foi de 10,2% (LOPES, OROZCO GMEZ, 2009, p.133). Neste estudo, buscamos apreender essas relaes a partir da investigao junto a seismulheres9: Vnia, 65 anos, cozinheira aposentada e viva; Tarsila, 69 anos, servios geraisaposentada, casada; Carmen, 63 anos, divorciada, empregada domstica aposentada; Dani; 64anos, viva e cuidadora de idosos; Maria, 69 anos, viva, dona de casa e Clia, 65 anos,viva, tambm dona de casa. No contato com as receptoras no as denominamos inicialmente como idosas, pormais que em termos culturais e legais elas se enquadrem nessa caracterizao. Acreditamosque impor uma identificao a priori seria direcionar suas falas e, de certa forma, selecionar7Veiculada no horrio nobre da Rede Globo de maio de 2010 a janeiro de 2011, a trama de autoria de Silvio deAbreu com colaborao de Vinicius Vianna, Sergio Marques e Daniel Ortiz e direo de Carlos Arajo, LuizHenrique Rios, Natalia Grimberg, Allan Fiterman e Andr Cmara.8Ressaltamos que a classificao da audincia em 50 anos ou mais j traz dados interessantes para pensarmos asrepresentaes da velhice na telenovela. O pblico idoso, considerado cronologicamente como aqueles acimados 60 anos de idade, desconsiderado em detrimento de uma classificao que toma aqueles com 50 anos oumais como uma faixa homognea da populao.9Os nomes das receptoras foram trocados por outros escolhidos por elas no percurso da entrevista. As pessoascitadas por elas nas falas expostas nesta pesquisa tambm tiveram seus nomes modificados. 19. 18um marcador identitrio que deve partir das vivncias e percepes das receptoras, no dapesquisadora. Esse movimento foi importante para entendermos como elas concebem a si eem que termos relacionam-se com a velhice, como ser exposto no decorrer do trabalho. Para explorar a recepo, nossas tcnicas foram a observao indireta, entrevistasexploratrias, entrevistas semi-abertas/fechadas junto s receptoras e observao direta,acompanhados pelos registros e anotaes no dirio de campo. A assistncia da telenovelajunto a algumas delas tambm foi importante para observarmos o espao domstico, ambienteprimrio da recepo e as dinmicas de leitura das tramas. As entrevistas combinaram questes semi-estruturadas e estruturadas, correspondendorespectivamente a um tipo semi-aberto e fechado de entrevista (DUARTE, 2009). Questessemi-estruturadas ajudaram a explorar dimenses da experincia trazidas pelas prpriasreceptoras em nossas conversas, sem um roteiro rgido. Essas questes, mais amplas,permitiram a discusso em profundidade dos temas e a adaptao das indagaes de acordocom a resposta da entrevistada. J as questes estruturadas foram importantes para visualizaraspectos comuns s vivncias de todas e compar-los de forma mais direta. Entendemos que esses mtodos no estudo junto s receptoras convirjam para o esforoem realizar uma etnografia crtica da recepo, definida pelo [...] conhecimento construdo a partir da descrio do contexto espacial e temporal que determina a apropriao dos meios de comunicao, isto , a apreenso do sentido possvel que os atores sociais do s prticas sociais e culturais produzidas na relao com os meios de comunicao de massa (RONSINI, 2003, p.42). A etnografia crtica porque visa entender os processos de negociao (dominao,resistncia) da mdia, e no render-se constatao da passividade ou atividade dos receptoresfrente aos meios (ou, quando h atividade, celebr-la como sinnimo de resistncia). Aescolha da etnografia como mtodo descritivo do cotidiano e da cultura das receptoras idosas,revela-se importante por viabilizar um estudo mais aprofundado, que nos auxilia a descrevercom mais acuidade as trajetrias de vida e vises de mundo, ou, em outras palavras, areconstituir o cotidiano como vivido e sentido (RONSINI, 2004, p.60). No plo da produo, buscamos compreender as lgicas que configuram a telenovelacomo um produto cultural de grande audincia no pas, com ateno s formas como Passionerepresenta, nesse contexto, a velhice. Valemo-nos de dois mtodos principais: reviso da 20. 19literatura para conhecer as lgicas de produo da teledramaturgia (rotinas de produo,relaes com a audincia, posicionamento dos autores) e anlise dos captulos de Passione10. A opo por investigar a recepo de mulheres de classe popular no perodo de vidaestabelecido como velhice parte de questionamentos acadmicos e pessoais, que seinspiram mutuamente no percurso da investigao. Myerhoff, citada por Debert (1999a, p.238), comenta que a identificao com o outro - [...] ndios, chicanos, se somos anglos, comnegros se somos brancos, com homens se somos mulheres um ato de imaginao, ummeio de descobrir o que no somos e nunca seremos. J identificar-nos com os idosos com quem um dia seremos um processo inteiramente diferente. Posiciono-me, diante desta temtica, como profissional da comunicao que desejarefletir sobre a responsabilidade na criao e veiculao de representaes sobre os idosos;como pesquisadora, que considera o estudo deste tema instigante como forma de apreender osmodos pelos quais as identidades contemporneas se constituem; e, por fim, como jovem,atenta aos desdobramentos que incidem sobre o futuro da velhice. Compreender as representaes miditicas atravs do olhar daqueles quecotidianamente as ressignificam, as receptoras, significa vislubrar que a plausibilidade doscenrios que so montados, atualmente, para o futuro da velhice depender muito do modocomo os indivduos so convencidos de qual pode ser seu destino e das prticas por elespostas em ao, em funo destas previses (DEBERT, 1999a, p.253). No se trata deatribuir ao receptor todo o poder de ao, mas sim de, atravs do olhar dos estudos culturais,acreditar que a mdia atua cotidianamente na veiculao de representaes as quais, imersasna cultura e no ambiente social, incidem nos modos como os indivduos percebem-se e agem. De outro modo, a partir de uma consulta bibliogrfica realizada, percebemos que nosestudos de recepo a velhice um tema pouco explorado. Atravs deste, esperamos podercontribuir para as discusses existentes, tanto no sentido de fazer valer os pressupostostericos da recepo, de dar conta, ainda que de forma incipiente, dos paradoxos eambigidades que mobilizam a recepo no processo de negociao de sentido (MARTN-BARBERO, 2002a), buscando no nos determos simplesmente no nvel descritivo, formal eestril, quanto de acrescer contribuies sobre a relao entre mdia e idosos, pblico toilustrativo do futuro e que tantas vezes relegado ao passado. Nesta perspectiva, nosaproximamos da fala de Hall em suas reflexes sobre o desenvolvimento da pesquisa na linhados estudos culturais:10 Esses aspectos so mais bem desenvolvidos no final do captulo I e no captulo II e IV. 21. 20Penso que qualquer pessoa que se envolva seriamente nos estudos culturaiscomo prtica intelectual deve sentir, na pele, sua transitoriedade, suainsubstancialidade, o pouco que consegue registrar, o pouco que alcanamosmudar ou incentivar ao. Se voc no sente isso como uma tenso notrabalho que produz porque a teoria o deixou em paz. (HALL, 2003b,p.200). Tecer indagaes, discutir com a teoria; pensar a recepo como forma decompreender a realidade cotidiana dos indivduos, suas aes e tentar registr-las, ainda queminimamente; tensionar conceitos e p-los prova no plano emprico. a partir destasintenes que realizamos esta pesquisa. No primeiro captulo, revelamos as tradies e fundamentos tericos que nos guiam nainvestigao. Inicialmente, realizamos um breve retrospecto sobre as trajetrias dos estudosculturais britnicos e latino-americanos. Em relao aos primeiros, priorizamos as reflexesde Stuart Hall sobre o modelo Codificao/Decodificao, o qual ser (associado queledesenvolvido por Martn-Barbero), basilar em nossa construo metodolgica. Nasteorizaes latino-americanas, realizamos consideraes sobre o desenvolvimento do campona Amrica Latina e no Brasil, com foco principal no desenvolvimento das teorizaesbarberianas. Tambm discutimos a classe social e o gnero como mediaes. Por fim,apresentamos nossa proposta terico-metodolgica. As reflexes sobre o significado social do envelhecer, sobre a mdia e identidades navelhice so tema do segundo captulo. Versamos sobre a construo social da velhice e omodo como esse perodo problematizado na contemporaneidade. Aps, trazemos reflexessobre a mdia como sistema de representaes sociais e a questo das identidades, em especiala identidade na velhice. O captulo finalizado com a proposta das codificaes dominantes,opositivas e negociadas do discurso da telenovela sobre a velhice, baseada nas reflexestecidas anteriormente. Explicamos as posies de codificao em termos gerais e especficos,a partir das categorias propostas. No terceiro captulo, abordamos a mediao barberiana da institucionalidade atravsde reflexes tericas sobre a telenovela no Brasil e da apresentao da Rede Globo: suaorganizao, modos de produo da telenovela, informaes gerais sobre Passione e, por fim,apontamentos sobre a trajetria e concepes de mundo de seu autor, Silvio de Abreu. O quarto captulo dedica-se anlise das representaes da velhice na telenovela, amediao da tecnicidade. Trazemos consideraes sobre a metodologia e passamos 22. 21apresentao e anlise das personagens, com base nas dimenses da famlia, beleza/cuidadode si/sade, vida afetiva/sexualidade e trabalho. No captulo cinco, as mediaes referentes ao momento da decodificao soabordadas no plano emprico. aqui que apresentamos as receptoras com quem convivemos,a partir de seus perfis e da descrio detalhada da interao em campo. Atravs das categoriaspropostas, investigamos o entorno que dota de sentido o modo como elas apreendem asrepresentaes da telenovela, conformando a dimenso da socialidade. O captulo seis problematiza a recepo de Passione, buscando articular o queobservamos nas codificaes da telenovela sobre a velhice, as vivncias pessoais dasreceptoras e suas apropriaes da telefico com base nas categorias propostas. Buscamosapontar algumas pistas sobre as identificaes das entrevistadas com as personagens e o modocomo lem a velhice representada na trama. Por fim, na concluso versamos sobre o que conseguimos refletir sobre as relaesentre as representaes da velhice veiculadas por Passione e suas apropriaes por mulheresidosas das classes populares. 23. 22 1 ESTUDOS CULTURAIS E DE RECEPO Os estudos culturais constituem um campo de pesquisa, uma tradio terica que lanaum olhar sobre as relaes entre a cultura contempornea e a sociedade, suas formas,instituies e prticas culturais, assim como suas relaes com as transformaes sociais. marcado por uma abordagem interdisciplinar, que visa superar a diviso acadmicaconvencional do trabalho por meio da superao da especializao que divide o campo deestudo da mdia, da cultura e das comunicaes (KELLNER, 2001, p. 18). O surgimento institucional dessa perspectiva de investigao normalmente datadode 1964, a partir da fundao do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) naUniversidade de Birmingham, Inglaterra. A gestao das teorizaes advinha de 1950, com apublicao de As utilizaes da Cultura por Richard Hoggart e de Cultura e Sociedade,por Raymond Williams. Com as lentes atravessadas pelos estudos de tradio frankfurtiana epor uma perspectiva funcionalista norte-americana, os estudos culturais recusam uma noodas audincias como passivas e homogneas, como tambm a ideia de que os textosmiditicos carregam um sentido transparente. Rejeitam um modelo de comunicaomatemtico, linear, baseado no estmulo-resposta. Para os estudiosos, a questo central situa-se no s na significao, mas nas relaes de poder. Margeadas pela problematizao daIndstria Cultural, as teorizaes debruaram-se inicialmente a compreender os textos, aforma como os mesmos reproduziam a ideologia dominante. Certamente um dos marcos na caracterizao da escola dos estudos culturais aredefinio e problematizao do conceito de cultura. A cultura no poderia ser pensada comouma entidade homognea, mas sim de um nmero infindvel de intervenes ativas -expressas atravs do discurso e da representao - no contexto histrico no qual estoinseridas. Assim, as prticas culturais seriam formas materiais e simblicas, e a criaocultural passa a ser vista como situada no espao social e econmico (ESCOSTEGUY, 2001). O contexto scio-histrico britnico marcou significativamente o surgimento desseprojeto terico-poltico. Um dos marcos a multiplicidade de seus objetos de investigao,isso porque se considerou impossvel abstrair a anlise da cultura das relaes de poder e dasestratgias de mudana social existentes. Na dcada de 1970, a temtica em voga era a dassubculturas e da compreenso dos meios de comunicao como aparelhos ideolgicos do 24. 23Estado. Nesse perodo, o desenvolvimento do feminismo mostrou-se uma ruptura decisivapara o desenvolvimento de um estudo mais especfico dentro do campo, assim como parainserir novas variveis na questo de identidade. Nesse nterim, foram de contribuio fundamental as reflexes de Stuart Hall sobre oprocesso de codificaoe decodificaodasmensagensmiditicas. OartigoCodificao/Decodificao, apresentado pelo autor em um colquio realizado pelo Centrefor Mass Communications Research na Universidade de Leicester em 1980, buscou rompercom a noo do processo comunicacional como linear e transparente para problematizaralgumas questes como a mensagem, sentido e determinao dos contedos midiatizados.Nele, Hall tece consideraes sobre um possvel modelo para compreenso do processocomunicativo a partir de um programa televisivo. O autor versa que toda cultura ou sociedadetem a tendncia de [...] impor suas classificaes do mundo social, cultural e poltico. Essasclassificaes constituem uma ordem cultural dominante, apesar de esta no ser nem unvocanem incontestvel (HALL, 2003a, p.374). Sentidos dominantes ou preferenciais organizam hierarquicamente domniosdiscursivos de diferentes reas da vida social. Assim como existe uma forma de sentidodominante na esfera da codificao, possvel considerar que existam leituras que endossemtais posies, o que Hall denominou por leituras preferenciais, na qual o receptor operadentro do cdigo dominante. Desse modo, tambm existem leituras negociadas, as quais,atravessadas por contradies, reconhecem a legitimidade das definies hegemnicas massituacionalmente, elabora seus prprios modos de ver. A decodificao opositiva, por sua vez,caracteriza-se por destotalizar [...] a mensagem dentro de um cdigo preferencial pararetotaliz-la dentro de algum referencial alternativo (HALL, 2003a, p. 379). As teorizaes de Hall e a proposio de seu modelo para entender o processocomunicacional para alm de um circuito entre emisso, mensagem e recepo trouxeramcontribuies valiosas para os estudos culturais, especialmente para as pesquisas que sedebruam no entendimento das relaes entre a mdia e seus receptores. A aplicao dessemodelo nas pesquisas empricas de recepo tem se revelado um desafio que exigeteorizaes e construes metodolgicas distintas, a fim de operacionaliz-lo. Como o prprioautor revela em entrevista sobre o artigo Codificao/Decodificao: No pensava que o artigo geraria um modelo que duraria pelos prximos 25 anos. No penso que ele tenha o rigor terico, a lgica interna e a consistncia conceitual para isso. Se ele de alguma serventia, para hoje ou mais tarde, pelo que sugere. Sugere uma abordagem, abre novas questes, 25. 24 mapeia o terreno. Mas um modelo que tem de ser trabalhado, desenvolvido e mudado. (HALL, 2003b, p.236) Uma das principais contribuies para a reviso do modelo de Hall foi a realizada porDavid Morley em um longo estudo de recepo, publicado como Nationwide Audience. Nele,Morley faz consideraes sobre a aplicao emprica que reafirmam a validade do modelopara refletir sobre as relaes entre mdia e receptores, assim como abre caminhos para odesenvolvimento de outros estudos. Uma das contribuies fundamentais de Morley est nointeresse pela audincia como produtora de sentido, retomando as preocupaes iniciaisapresentadas por Hoggart (RONSINI, 2004). Em meados da dcada de 1970 e a partir de 1980, os estudos culturais espraiam-separa alm da Gr-Bretanha. Novas perspectivas de pesquisa so aventadas, como ateno pluralidade dos modos de vida e suas relaes com a mdia. O enfoque na anlise dos meiosde comunicao persiste, contudo as pesquisas so concretizadas em combinao com aanlise da audincia. Para tanto, disciplinas de campos como a histria, a sociologia e aantropologia passam a dialogar de forma mais estreita com os estudos culturais, conformandoo que os estudiosos nomeiam por virada etnogrfica do campo. A partir do ensaioEncoding/Decoding de Hall, das reflexes de Morley e de outros estudos importantes comoWatching Dallas, de Ien Ang (1985), a nfase sobre o receptor problematizada comomodo de compreender os contornos das identidades, o papel dos meios de comunicao e ofuncionamento do espao pblico. Especialmente na Amrica Latina, a partir da dcada de 1980 os estudos culturais soproblematizados atravs de um outro olhar, dos estudiosos que buscavam compreender asculturas e as prticas comunicativas atravs dos receptores. Gomes, I. (2004) pontua que oenfoque inicial dessas pesquisas est na compreenso da mdia como lugar de construo dahegemonia, ou seja, em entender como os sujeitos concretos negociavam os sentidosideolgicos das mensagens, se endossavam ou rejeitavam seus apelos.Os estudos de recepo firmam-se para nomear as pesquisas empricas interessadasnas audincias e suas relaes com os produtos miditicos. Escosteguy e Jacks (2005)identificam quatro principais perspectivas de investigao entre mdia e audincias naAmrica Latina: frentes culturais, consumo cultural, recepo ativa e uso social dos meios. Na Amrica Latina, Jess Martn-Barbero, Guillermo Orozco Gmez e Nstor GarciaCanclini fomentaram o desenvolvimento do campo de estudos. A partir da problematizaodas culturas populares e da constituio do massivo, so desenvolvidas as perspectivas dos 26. 25usos sociais dos meios (Martn-Barbero), das multimediaes (Orozco Gmez) e dosprocessos de hibridizao cultural e consumo (Garca Canclini). Em retomada do estado da arte dos estudos de recepo brasileiros realizados dadcada de 1990, Jacks, Meneses e Piedras (2008) identificaram 49 estudos com foco narelao entre audincia e meios, dentre os 1769 desenvolvidos nos programas de ps-graduao em comunicao existentes no perodo. Mesmo sendo um pequeno nmero de tesese dissertaes considerando a amplitude da dcada, revela diversas perspectivas deinvestigao, seja na abordagem terica (sociocultural, comportamental ou outras), na escolhado objeto (televiso, rdio) na seleo da amostra (jovens, crianas, mulheres, etc), entreoutras tantas especificaes possveis. A partir da diversidade do campo, qual seria a especificidade dos estudos de recepo?Em consonncia com Ronsini (2010), acreditamos que se trata do enfoque no entendimentoda experincia cotidiana de interao do receptor com os meios e suas relaes com esferasmais amplas de significao. Consideramos os estudos de recepo como a pesquisa empricarealizada no marco dos estudos culturais (RONSINI, 2007). Entendemos a recepo como umlugar privilegiado para investigar as relaes entre prticas cotidianas, cultura e mdia, parapensar os embates e complementaridades da interao entre o produto miditico e a suaaudincia na produo de sentido (RONSINI, 2010). Caracterizar os estudos de recepo como pesquisa emprica com foco na audinciano implica em desconsiderar o processo de comunicao como um todo. Pelo contrrio,apesar de no termos a pretenso de abarc-lo, a prpria investigao dos receptores exige quese ultrapasse a dimenso imediata das relaes entre telespectador/meio para entrar nasesferas do cotidiano, das instituies, da sociabilidade11, enfim: do mundo atravs do qual arecepo adquire sentido. Isso, como possvel perceber, ultrapassa um centramento naaudincia ou no meio e tenta dar conta, ainda que de forma circunstancial, da interao entreambos.1.1 O MODELO DAS MEDIAES EM MARTN-BARBERO11Neste trabalho, a sociabilidade entendida como as formas de interao, de estar junto das receptoras (emgrupos, no cotidiano dos bairros, em famlia, etc). J a socialidade utilizada estritamente para nomear uma dasmediaes do modelo das Mediaes Comunicativas da Cultura de Martn-Barbero. 27. 26 Em sua obra, Martn-Barbero no sistematiza de forma especfica o que so asmediaes. O termo adquire significados distintos, de acordo com as articulaes tericasconstrudas. Signates, ao analisar os usos da palavra mediaes na obra seminal12 do autorespanhol radicado na Colmbia, constata essa impreciso conceitual. No texto, por vezesapreende-se o conceito como categoria terica ou discursividade especfica, por vezes comoestruturas, formas e prticas de vinculao. Em outro momento, mediaes dizem respeito instituio ou local geogrfico e aos dispositivos de viabilizao e legitimao da hegemonia.Em um primeiro momento, Martn-Barbero prope trs lugares de mediao(MARTN-BARBERO, 2008, p. 290-301) no processo de interao entre sujeitos e televiso:cotidianidade familiar, competncia cultural e temporalidade social. Esta proposta redimensionada pelo autor passados dez anos da publicao de seu livro. Ainda defensor dapremissa de que o foco deve permanecer nas mediaes, Martn-Barbero retoma seu modelo luz de diversos acontecimentos sociais, especialmente na Amrica Latina, e dastransformaes mundiais no campo da indstria da cultura e da informao (JACKS,MENESES, PIEDRAS, 2008, p.33).Para o autor, torna-se necessrio traar um mapa que reconhea o papel decondensao e interseco que os meios de comunicao exercem em relao s mltiplasredes de poder e de produo cultural. De outra forma, atenta para a necessidade de combatera idia de que a tcnica hoje um grande mediador entre as pessoas e o mundo (MARTN-BARBERO, 2008).Trazemos ainda a fala do autor em uma entrevista concedida revista MatriZES. Acitao extensa, mas bastante elucidativa para compreender a perspectiva terica do autor:Eu j estava repensando essas questes, tinha que fazer uma mudana queno era ir das mediaes aos meios, mas perceber que a comunicao seadensava diante da nova tecnicidade, era a institucionalidade datecnicidade. Pode-se continuar falando das mediaes dos meios, masmediao para mim sempre foi outra coisa que tem muito mais relaocom as dimenses simblicas da construo do coletivo. Preferi falar entode mediaes comunicativas da cultura, e quando digo da cultura no falosomente de seus produtos, mas digo da sociedade, da poltica. Esta foi amudana. [...] reconhecer que a comunicao estava mediando todos oslados e as formas da vida cultural e social dos povos. Portanto, o olhar no seinvertia no sentido de ir das mediaes aos meios, seno da cultura comunicao. Foi a que comecei a repensar a noo de comunicao. Ento,a noo de comunicao sai do paradigma da engenharia e se liga com asinterfaces, com os ns das interaes, com a comunicao-interao,com a comunicao intermediada. A linguagem cada vez mais intermedial12 MARTN-BARBERO, Jess. De los medios a las mediaciones. Barcelona: Gustavo Gili, 1987. 28. 27 e, por isso, o estudo tem que ser claramente interdisciplinar (MARTN- BARBERO, 2009a, p.153).O autor busca compreender o papel das tecnologias comunicacionais, mas semassumir a perspectiva da tecnologia como matriz configuradora absoluta dos processossociais13. Ainda em relao a esse pensamento, ele explica que, mesmo tratando dastecnologias, ainda nomeia-se uma mediao simblica. Aqui, vale-se do conceito de entorno.O primeiro seria o entorno ecolgico, do mundo vegetal e animal. O segundo, o institucional,que abriga as instituies polticas, as cidades, os imprios, o estado, a sociedade. Agora nossituamos tambm em um entorno comunicativo: [...] esse entorno tecnicocomunicativo com suas linguagens, escrituras e gramticas novas. E assim a concepo de comunicao vai se tornando muito mais capaz, epistemologicamente, de dar conta do que ocorre na vida social, com as tecnologias de comunicao transformando-se de instrumento pontual em ecossistema cultural (MARTN-BARBERO, 2009a, p. 159).A partir dessas reflexes, nesse momento de sua obra, Martn-Barbero prope ummodelo aprimorado a partir do qual pensar as mediaes. Partindo da trade formada porcomunicao, cultura e poltica (elementos necessrios para tematizar o contextocontemporneo), o autor elege quatro mediaes comunicativas da cultura: socialidade,ritualidade, tecnicidade e institucionalidade. Estas se encontram dispostas atravs de doiseixos: um sincrnico, que relaciona as Lgicas de Produo s Competncias de Recepo; eoutro, diacrnico, no qual esto dispostas as Matrizes Culturais em relao aos FormatosIndustriais.13A questo nodal que norteia sua reflexo apresentada no preffico 5 edio de Dos Meios s Mediaes:Como assumir, ento, a complexidade social e perceptiva que hoje reveste as tecnologias comunicacionais, seusmodos transversais de presena na cotidianidade [...] suas intrincadas formas de mediao tanto do conhecimentoquanto da poltica, sem ceder ao realismo inevitvel produzido pela fascinao tecnolgica, e sem deixar-seapanhar na cumplicidade discursiva da modernizao neoliberal racionalizadora do mercado como nicoprincpio organizador da sociedade em seu conjunto com o saber tecnolgico, segundo o qual, esgotado omotor da luta de classes, a histria teria encontrado seu substituto nos avatares da informao e comunicao?(MARTN-BARBERO, 2008, p.12) 29. 28FIGURA 1 - Mapa das mediaes comunicativas da culturaAs mediaes da socialidade e da ritualidade so mais diretamente relacionadas aomomento da recepo14. A socialidade o elo de conexo entre as Matrizes Culturais (MC) eas Competncias de Recepo/Consumo (CR), lugar de ancoragem da prxis comunicativa eresulta dos modos e usos coletivos de comunicao, isto , de interpelao/constituio dosatores sociais e de suas relaes (hegemonia/contra-hegemonia) com o poder (MARTN-BARBERO, 2008, p.17). Entendemos a socialidade corresponde ao lugar de mediao dacompetncia cultural (1987) e faz meno insero do indivduo na estrutura social e a seusreferentes identitrios, como gerao, gnero e etnia, permeados pelas relaes de classesocial. no fazer-se cotidiano, atravs de valores de instituies como a famlia e a escolaque os indivduos negociam com a mdia e constituem suas identidades.A ritualidade, por sua vez, faz mediao entre os Formatos Industriais e asCompetncias de Recepo. Essa mediao diz respeito s gramticas de ao (ver, escutar,ler) que regulam as interaes entre tempos e espaos da vida cotidiana e os tempos e espaos14Para mais consideraes a respeito das mediaes da socialidade e da ritualidade, ver WOTTRICH, L.; CRDOVA, R.;RONSINI, V. V. M. A Perspectiva das Mediaes de Jess Martn-Barbero no Estudo de Recepo da Telenovela.Trabalho apresentado ao Ncleo de Pesquisa Fico Televisiva, do XXXII Encontro Brasileiro de Cincias daComunicao, em Curitiba/PR em setembro de 2009. 30. 29que conformam os meios (JACKS, MENESES, PIEDRAS, 2008). So os diferentes usossociais dos meios e trajetos de leitura,[...] ligados a condies sociais de gosto, marcados por nveis e qualidadesda educao, dos saberes constitudos na memria tnica, de classe ou degnero, e os hbitos familiares de convivncia com a cultura letrada, a oralou a audiovisual, que influenciam na experincia de ver sobre a de ler e vice-versa (MARTN-BARBERO, 2002b, p..228). Trata-se de pensar como os indivduos se apropriam dos sistemas de representaessociais dado pelas matrizes culturais em sua constituio identitria. como os sujeitos, apartir de suas posies, lem, vem e ouvem os produtos miditicos. Empiricamente, omomento da assistncia da telenovela, a esfera do cotidiano, o modo como os receptoresrelacionam-se com a TV e demais meios de comunicao. Para abordar o mbito da produo, Martn-Barbero apresenta as mediaes dainstitucionalidade e da tecnicidade. A primeira a mediao que atravessa a comunicao e aconverte na urdidura da civilidade, pertencendo a duas ordens contrapostas: [...] a que desdeo Estado configura os meios de comunicao como servio pblico, e a que desde omercado converte a liberdade de expresso em livre comrcio (p.229, 2002b, traduonossa). Esse sentido de tensionamento mais bem desenvolvido pelo autor no prefcio 5edio brasileira de Dos Meios s Mediaes. No texto, Martn-Barbero diz queA institucionalidade tem sido, desde sempre, uma mediao densa deinteresses e poderes contrapostos, que tem afetado, e continua afetando,especialmente a regulao dos discursos que, da parte do Estado, buscam darestabilidade ordem constituda e, da parte dos cidados maiorias eminorias -, buscam defender seus direitos e fazer se reconhecer, isto , re-constituir permanentemente o social (p.17, 2008). A institucionalidade, nesse sentido, nos ajuda pensar as oposies e tensionamentosentre discursos pblicos e privados que engendram as formas de cidadania. Entendemos que o autor no fala de uma mediao da institucionalidade distinta,nica, mas sim de diferentes regimes de institucionalidade que auxiliam a entender as relaesentre as Lgicas de Produo e as Matrizes Culturais. Assim, sua abordagem adquire distintasnuances dependendo do enfoque das reflexes. Em entrevista recente, ao refletir sobre omodelo das mediaes comunicativas da cultura, Martn-Barbero explicita:Isso me leva a dar mais um passo, junto com a apario massiva, em meadosde 1990, do computador e do que veio rapidamente com ele. Inverto meuprimeiro mapa e proponho as mediaes comunicativas da cultura, que 31. 30 so: a tecnicidade; a institucionalidade crescente dos meios como instituies sociais e no apenas aparatos, instituies de peso econmico, poltico, cultural; a socialidade como o lao social est se transformando para os jovens, como as relaes entre pais e filhos, e entre casais, esto mudando. [...] (MARTN-BARBERO, 2009a, grifo nosso). Nessa passagem, o autor trata da institucionalidade para falar da expressividade dosmeios de comunicao como configuradores dos processos sociais, abordagem que permeiasua proposio terica do momento. Trata-se do papel das instituies sociais na constituiodo pblico e no reconhecimento cultural, processo que, atualmente, consideravelmentemediada pelos meios de comunicao. Outro lugar de mediao situado na esfera da codificao a tecnicidade, situada entreas lgicas de produo e os formatos industriais. Martn-Barbero dialoga com a tecnicidadepara relevar o papel da tcnica como organizadora de novas formas de percepo, de novasprticas e competncias de linguagem. Em consonncia com Ronsini (2010), entendemos que a tecnicidade pode ser pensadatanto num sentido mais amplo, para refletir sobre o papel da tecnologia nos processos dereorganizao do modo de produo capitalista e nas transformaes do mundo globalizado;quanto de modo mais especfico, o que nossa escolha dentro das possibilidades de umestudo de recepo. Filiamos-nos ideia barberiana da tecnicidade como aquilo que se moveem direo identidade (2009b), ou seja, da tcnica como um organizador de percepesque incidem sobre a conformao identitria dos receptores. No recorte da pesquisa, significainvestigar como a telenovela constri representaes da velhice e do envelhecimento atravsdo aparato tcnico, o que inclui desde cenrios, figurinos e demais especificidades daproduo at aspectos discursivos. O modelo das mediaes comunicativas da cultura foi apresentado no prefcio quinta edio brasileira de Dos Meios s Mediaes. Desde ento, Martn-Barbero vem, emtextos esparsos, aprimorando seu pensamento e trazendo outras contribuies para pensar asmediaes. Em seu mapa das mutaes culturais (2009b), o autor retira as mediaes dasocialidade da institucionalidade, consideradas por ele como mais sociais, para inserir asmediaes da identidade e da cognitividade que, junto com a tecnicidade, so importantespara compreender as novas configuraes das tecnologias na constituio das identidades edas relaes dos sujeitos com os meios de comunicao. 32. 31 Consideramos que essas novas mediaes podem ser problematizadas atravs datransposio emprica da ritualidade, socialidade e tecnicidade para as pesquisas de recepo(RONSINI, 2010). Estudar os enfrentamentos e anuncias dos receptores em relao telenovela a partir de sua conformao geracional, de gnero e de classe na experinciacotidiana lidar diretamente com a questo das identidades, de seus modos de constituio etransformaes. Assim, no consideramos a identidade como uma mediao, mas como umconstructo das relaes que o sujeito tece na sua vida cotidiana e no contato com a mdia.Nesse sentido, a cognitividade, como conjunto de valores, aprendizados e crenas queinterferem nas apropriaes individuais, define e est subsumida na noo de identidade. Na trajetria de Martn-Barbero, percebemos que as transformaes em seus modos depensamento partem do esforo de entender as transformaes sociais, em que a comunicaotem adquirido cada vez mais relevncia como protagonista dos modos de ser e de interagir nomundo. Por mais que a passagem das mediaes culturais da comunicao para as mediaescomunicativas da cultura demarque distines importantes, consideramos que a nfase estem problematizar que papel a comunicao, em conjuno com as dinmicas culturais epolticas, assume na contemporaneidade. Neste trabalho, a partir da socialidade e ritualidade,estabelecemos gnero e classe social como mediaes norteadoras. Abaixo trazemos algumasconsideraes a respeito, com o esforo de relacionar o referencial terico ao plano emprico econstruir pistas para a anlise que vir a seguir.1.2 A MEDIAO DE CLASSE Nesta pesquisa, entender a classe torna-se importante para problematizar como asrepresentaes construdas sobre a velhice pela mdia participam dos processos deconstituio social dessas representaes e de configurao das identidades das receptoras.Mais adiante, exporemos como as representaes dominantes da velhice so relacionadas aovis de classe, pois o velho decrpito, senil, decadente passa a ser aquele que, no maisapto a produzir, retira-se do mercado de trabalho. Fragilizado, necessita do amparo do Estadopara sua subsistncia. Peixoto (2006) realizou um estudo sobre a construo da velhice nasociedade brasileira e francesa e revelou que no Brasil a palavra velho utilizada parareferir-se aos idosos mais pobres, enquanto idoso e terceira idade so termos para nomearos mais aquinhoados. As representaes dominantes, que associam velhice a predicadosnegativos, so geralmente ligadas s classes populares. 33. 32 Noutro sentido, no processo de positivao da velhice percebido especialmente nasltimas dcadas, a vivncia de uma boa velhice diretamente relacionada ao potencial deconsumo do idoso, o que de antemo exclui os mais empobrecidos. A constituio dessasrepresentaes perpassa a vivncia das entrevistadas na forma como classificam suas velhicese se apropriam dos discursos da telenovela. A mediao de classe para estudar a recepo da mdia auxilia a ver que a produo desentido est vinculada a relaes de poder, cuja efetividade transcende o cotidiano, asubjetividade dos receptores. Relevar a mediao de classe num estudo de recepo considerar que a produo cultural intimamente ligada dinmica do capitalismo e economia do mercado. Sem essa percepo, Os pblicos ativos e consumidores nmades festejados na nova onda de estudos da cultura e mdia pareciam cada vez mais com os indivduos autnomos do capitalismo de Adam Smith, alcanando a autorealizao atravs de escolhas de mercado. Esta confortvel histria de satisfao e escolhas pessoais poderia ser sustentada no apenas esquecendo convenientemente as exploraes envolvidas na produo de convenincia e ignorando as profundas desigualdades estruturais que o sistema reproduzia (MURDOCK, 2009, p.45). Pensar as classes sociais manejar um conceito pesado, de tradio terica extensa emltiplas abordagens. A classe social, assim como outros conceitos to abrangentes quantonecessrios para a explicao dos fenmenos sociais, como interesse, dominao econflito, so realidades tericas, lugares sociolgicos permeados por diversas tradies depesquisa. O vigor, a potencialidade explicativa desses conceitos no est em uma boadefinio terica, cuja problematizao levaria apenas a um aperfeioamento gramatical dedefinies. A anlise das classes sociais adquire relevncia em sua articulao com apesquisa emprica, em categorizaes, anlise e discusso dos dados (PASSERON, 2005). No Brasil, o trato acadmico das classes sociais tradicionalmente datado de 1940,com a emergncia de pesquisas na rea da antropologia e da sociologia, as quais,respectivamente, visavam compreender a classe de forma descritiva, atravs do estudo dosestratos sociais ou os que se valiam dela como conceito explicativo dos fenmenos sociais. Aideia de que a estrutura social e sua reproduo dependem da ao das classes, tributria datradio sociolgica de autores como Florestan Fernandes e Luis de Aguiar Costa Pinto,ganha fora na dcada de 1960 (GUIMARES, 2002). Aqui a influncia do pensamento marxista definitiva para problematizar os embatesentre o empresariado industrial, o operariado nascente e as remanescentes oligarquiasagrrias. A anlise da dependncia, os estudos sobre o patriomonialismo, clientelismo e 34. 33populismo, alm daqueles focados em compreender a formao das classes no Brasil ocupama cena acadmica. Se nesta dcada as teorizaes gozam de um prestgio considervel, em1970 so percebidos os primeiros sinais de esgotamento, principalmente devido derrota dasforas populares de esquerda em 1964 e 1968. A partir de 1980 a transformao do conceito de classe evidencia-se, principalmentecom a incorporao das classes populares como objeto de estudo e da insero de categoriasdo cotidiano e das vivncias dos agentes nas anlises. Imaginrio e experincia tornam-se ofoco de estudos na busca da compreenso dos dominados como criadores de seus prpriosmundos (GUIMARES, 2002, p.25). Conforma-se um contexto de estudos bem mais amplo,marcado pela diversidade de abordagens e objetos. O cenrio poltico de organizao sindicale emergncia de partidos comprometidos com a viso dos trabalhadores geram debates sobreas relaes entre movimentos populares e as classes. A nfase em pensar o popular inserido no espectro das classes sociais, na suacapacidade de reivindicao e ao poltica, levou os pesquisadores a questionar se a atuaodos atores sociais de carne e osso na esfera do cotidiano no seria relevante para pensar omodo como as classes sociais se constroem. H aqui a tentativa de articular os estudos dascondies e processos de trabalho ao contexto de vivncias de classe, como gruposidentitrios de status ou como coletivos polticos (Idem, p.27). O estudo dos condicionantessubjetivos de classe e da cultura operria so fomentados por autores como RaymondWilliams e Edward Thompson, precursores da escola dos estudos culturais britnicos. Com o transcorrer dos anos, as teorizaes sobre classe perdem paulatinamente suafora explicativa, muito devido s transformaes no capitalismo que no foram previstas pelateoria marxista clssica. A emergncia das classes mdias, as constantes reinvenes dosistema (que no se deteriorou a partir de suas contradies como previra Marx), aconformao do capitalismo financeiro, entre outros fatores foram decisivos para um certoesvaziamento e descrdito das pesquisas. Nesse contexto, teorizaes sobre as etnias, relaesde gnero e de credo religioso adquirem o status de superar um certo determinismo declasse, tendo o mrito de explicar de forma mais ampla e menos reducionista os processossociais (GUIMARES, 2002) Sobre essa perda de fora da classe como princpio explicativo dos processos sociais,Hall (1997) e Murdock (2009), a partir de seus contextos, consideram que se inserem navirada cultural que atravessou o campo acadmico das cincias sociais na segunda metadedo sculo XX. Nesse perodo, os estudos sobre a cultura adquirem relevo e as configuraesde classe so consideradas reducionistas e incapazes de explicar as transformaes no modo 35. 34de vivenciar as identidades, os novos estilos de vida e de consumo e a ascenso de novosmovimentos sociais, como o feminismo e a ecologia.Nos estudos de comunicao, percebemos o mesmo movimento terico dedesconsiderao da classe. A virada cultural tambm afetou o campo e retirou de maneiraprogressiva a anlise das classes sociais dos roteiros de pesquisa. A cultura celebrada emsua autonomia, como independente e at mesmo oposta s relaes de classe.Parece-nos que as crticas realizadas incapacidade do referencial de classe de darconta das transformaes sociais recentes dizem mais sobre a necessidade de renovar o debatedo que sobre uma desimportncia do conceito. No Brasl, 3 pas com pior ndice dedesigualdade do mundo15, desconsiderar a dinmica de pertencimento s classes quandopensamos a recepo da mdia fechar os olhos para o fato que a produo miditica intimamente relacionada dinmica do capitalismo, influindo nos modos como adesigualdade (re)produzida e os sujeitos so considerados.No plano terico, autores tm questionado o esmaecimento dos estudos queconsideram a classe social como conceito-chave, mostrando a impossibilidade de descart-lopara compreender os fenmenos sociais e o contexto brasileiro extremamente desigual(SOUZA, 2006; MILIBAND, 1990; GUIMARES, 2002; SANTOS, 2002; MURDOCK,2009; RONSINI, 2007, 2010).Muitas vezes, a importncia da classe dissolvida nas teorizaes sobre asidentidades. Elas so consideradas em sua fluidez e pluralidade, marcadas pelas posies degnero, religio, etnia, etc. Nesse sentido, a classe seria incapaz de explicar fenmenos comoo sexismo, o racismo e os nacionalismos. Os mais severos consideram o foco nas classessociais como um obstculo que impede a percepo de outros fatores igualmente, se no maisimportantes para o entendimento da vida social.Miliband (1990) contrape esses argumentos mostrando que por mais que sejamosmulheres, homens, negros, indgenas, ainda sim estamos situados em determinado ponto daestrutura social, ainda somos membros de uma determinada classe. O ser social constitudo de forma complexa e multideterminada por diversas identidades, contudo a classe um componente decisivo para sua conformao, aquela que envolve todas as demais.15Segundo pesquisa divulgada em 2010 pelo Programa das Naes Unidas Para o Desenvolvimento (PNUD), apartir da anlise de dados de 2008 no pas. Para acessar o relatrio, ver PROGRAMA DAS NAES UNIDASPARA O DESENVOLVIMENTO. Informe regional sobre desenvolvimento humano para Amrica Latina eCaribe 2010. Disponvel em: . Acesso em 15 out.2010. 36. 35 Essa tambm a perspectiva barberiana para pensar a recepo da mdia. Naarticulao entre mediaes e classe social, Martn-Barbero destaca a classe como umadimenso importante para compreender as configuraes da mdia no cotidiano. Para ele, adiferena de classe, por mais que seja mediada por outras distines como etnia, idade egnero, no pode ser pensada como uma diferena a mais, mas sim como[...] aquela quearticula as demais a partir de seu interior e se expressa por meio do habitus, capaz deentrelaar os modos de possuir, de estar junto e os estilos de vida (MARTN-BARBERO,2002b, p.14). Nesta pesquisa, articulamos a mediao de classe com a de gnero, tentandoperceber suas interseces e relaes. Para pensarmos o conceito de classe no contexto da recepo, partimos da ideia deGuimares (2002) apresentada por Ronsini (2007, p.48) que fala de classe para nomearposies objetivas na estrutura social, s quais corresponderiam interesses e modalidades deao que, por sua vez, no se restringem organizao coletiva e ao poltica e abarcamprticas culturais e sociais de enfrentamento cotidiano. Ao relevar a posio social, sem,contudo restringir-se a ela e integrar a dinmica cultural e a esfera do cotidiano, a noo visafugir ao reducionismo pelo qual os estudos so normalmente criticados. A posio de classe foi observada a partir da renda do membro mais bem situado nafamlia (QUADROS, ANTUNES, 2001). Por essa metodologia de estratificao scio-ocupacional, os grupos so divididos em quatro camadas: alta (proprietrios e alta classemdia), mdia (proprietrios de pequenos negcios urbanos e mdia classe mdia), mdiabaixa (baixa classe mdia, trabalhadores autnomos e operrios) e baixa (operrios,assalariados populares, trabalhadores autnomos, empregados domsticos e no-ocupados).As receptoras enquadram-se nas classes mdia baixa e baixa, que consideramos comopopulares. Suas rendas esto na faixa de R$ 510,00 a R$1000,00 mensais. Na pesquisa, a precariedade econmica influi diretamente no acesso informao epossibilidades de lazer das entrevistadas. O acesso a bens culturais restrito: elas tm nordio e na TV o principal meio de entretenimento; cinco nunca tiveram acesso a computador;no assinam jornais e, a exceo de Maria, no assinam revistas. Elas no costumamfreqentar atividades culturais como exposies, shows, teatro, etc. Suas atividades de lazergeralmente restringem-se ao universo de opes do bairro ou, para algumas, aos grupos deatividades voltados para os idosos e aos bailes que freqentam no centro da cidade. Em relao aos contextos de vida, na famlia elas assumem a chefia do lar, muitasvezes sendo responsveis com sua aposentadoria ou penso pelo amparo de filhos e netos. 37. 36Elas relatam ter sofrido situaes de preconceito, desrespeito e violncia, que se relacionam posio de gnero em suas vivncias como idosas. A participao em grupos ou organizaes de reivindicao poltica no realidadepara as entrevistadas. Elas no so engajadas em quaisquer movimentos ou organizaes, noconhecem movimentos sociais ou sabem os objetivos de algum deles. Em relao velhice,todas j ouviram falar do Estatuto do Idoso, mas no sabem dizer o que ele prope ou quaisso as implicaes diretas das leis em suas vidas. A ausncia da organizao poltica e deuma pretensa conscincia de classe presente na vida das receptoras. Contudo, isso noinvalida a importncia da classe em suas vivncias e leituras da mdia. Alm das restrieseconmicas que implicam muitas vezes em situaes de opresso e violncia, a classetambm se mostra atravs de uma perspectiva sociocultural, na construo de um habitus aolongo da vida. Pensando a classe atravs da cultura e das relaes cotidianas, podemos compreenderos ambientes de sociabilidade dessas mulheres, em muito restritos esfera do bairro ou aosgrupos de atividades/convivncia que participam. Tambm possvel entenderas relaes queestabelecem com seus corpos, como o fato de no pensarem em realizar intervenes maisdrsticas no corpo/aparncia, como exporemos mais adiante. A perspectiva sociocultural tambm importante por esclarecer [...] fatores extra-econmicos, existenciais, morais e polticos, subliminares e subconscientes que constroem e permitem um padro de desigualdade que o nico possvel no contexto de igualdade formal e de democracia aberta tpicos da moderna sociedade capitalista: um padro que pressupe opacidade e intransparncia ao esconder a fonte social e, portanto, construda da desigualdade (SOUZA, 2006, p.74). A ideologia espontnea do capitalismo contemporneo, que opera atravs deestruturas pr-reflexivas e opacas conscincia cotidiana (IDEM, p.77), baseia-se nosvalores da disciplina, liberdade, autonomia e da auto-responsabilidade. Trata-se de uma ticado desempenho bastante adequada ao trabalho produtivo, que divide os classificados dosdesclassificados, aqueles que merecem reconhecimento social e respeito dos demais, para oqual essa valorao negada. Ancorada no Estado e no mercado, essa construo de valorincide na atribuio de respeito e de reconhecimento social, assim como no modo como osindivduos percebem suas chances e configuram sua autoestima. O preconceito e adesigualdade de classe so produzidos e reproduzidos de forma naturalizada e opaca. O 38. 37pertencimento a determinada classe justificado conscientemente como se a posio desigualfosse fruto do mrito e, portanto, do esforo e das qualidades individuais. As idosas, j aposentadas ou retiradas do mercado de trabalho, em um processo naturalde perda de controle sobre o corpo e das atividades motoras e intelectuais, so maisfacilmente inseridas entre os desclassificados. Elas so constantemente impelidas a pensarsuas velhices como uma tarefa individual, que podem manejar com esforo e adoo deatitudes e hbitos adequados. Quando responsabilizadas por seu envelhecimento e posio declasse, parece-nos que as idosas so duplamente desclassificadas: por seu pauperismo, de umlado; e por sua velhice, de outro. Essas nuances do pertencimento classe incidem no modo como as receptoraspercebem-se como mulheres e idosas, num processo construdo ao longo de suas vidas. Narecepo, a mediao de classe perpassada pela de gnero, que toma feies especficas nocaso da velhice. Abaixo tecemos algumas consideraes a respeito, no esforo de no objetara classe s demais diferenas (de gnero, tnicas), mas sim explorar como essas diferenasso classificadas e de que modo, ao mesmo tempo, so cruzadas com a organizao daexperincia de classe. Trata-se de pensar que A classe sempre genderificada, o gnero sempre igualmente classificado (MURDOCK, 2000, p.21). A potencialidade da anlise situa-se na relao.1.3 A MEDIAO DE GNERO Nossa insero em campo iniciou com a visitao a dois grupos de convivncia deidosos em Santa Maria. Neles, pudemos perceber um fenmeno que tnhamos tido contatoatravs da reviso da literatura: os distintos significados que tem a velhice e o envelhecimentopara homens e mulheres. Nesses grupos, a presena masculina era inexpressiva se comparadacom a feminina. Os homens que ali estavam, relataram-me que sua participao devia-semuito ao incentivo de suas esposas ou conhecidas. As mulheres envolviam-se muito mais nasatividades e a participao no grupo parecia ter um significado maior em suas vidas como umespao de criao de vnculos e de sociabilidade. Se no plano emprico as diferenas entre o modo como homens e mulheres encaram avelhice de uma evidncia quase natural, em contrapartida as teorizaes que discutem asrelaes entre questes de gnero e envelhecimento caminham a passos lentos. o quecomenta Debert (1999b), ao falar da dificuldade em inserir o debate sobre a velhice dentro das 39. 38teorizaes de gnero, muito porque as transformaes no modo como pensamos evivenciamos a velhice por vezes desestabiliza alguns pressupostos sobre a continuidade dacondio feminina ao longo da vida. Para citar algumas tenses, a diviso entre esfera pblica e esfera privada em que amulher restringe-se ao cuidado do lar subvertida em algumas situaes da velhice, na qualas mulheres, advindas de uma educao sexista e altamente repressora, encontram comoidosas a liberdade necessria para transitarem no espao pblico atravs da participao emgrupos de convivncia, como vimos, ou em espaos no especialmente designados aos idosos,como bailes, universidades e esfera profissional. Nas vivncias de Vnia, Dani, Carmen e Tarsila esse aspecto especialmenteimportante. Antes restritas ao cuidado domstico e atuao profissional (Vnia e Tarsila), navelhice essas mulheres encontram a liberdade para transitar em outros espaos. Dani e Vnia,atravs do envolvimento amoroso, comearam a freqentar o centro da cidade, shoppings,cinemas e bailes, experincias que nunca tiveram acesso em suas vidas. Tarsila, ainda casada,encontrou na velhice a possibilidade de conhecer outros ambientes de sociabilidade que no otrabalho e a casa. A despeito de sua condio financeira difcil, ela faz aulas de informtica,de dana e participa de grupos de convivncia. Outra seria a questo do trabalho domstico, amplamente situado pela literaturafeminista como smbolo da subordinao feminina. No perodo da velhice, no raras so asmenes ao trabalho domstico como um meio de afirmao da autonomia e at mesmo deliberao (BRITTO DA MOTTA, 2006). As mulheres idosas sentem-se plenas e ativas porterem a capacidade fsica de ainda realizarem o trabalho domstico e manter o comando dolar, em comparao com o homem que vivencia um esvaziamento de seu papel de provedorquando se retira do mercado de trabalho. As entrevistadas declaram gostar de cuidar da casa e julgam suas perdas na velhice apartir dos trabalhos domsticos que no conseguem mais fazer. o que disseram Clia, Dani,Tarsila e Vnia, em diferentes contextos quando falvamos da velhice. A falta de fora paradar conta de toda a limpeza sozinha apontada por elas como um indcio do envelhecimento.Parece que dar conta das tarefas domsticas a manter um papel que cumpriram durante todasas suas vidas, e conseguir faz-lo torna-se sinal de autonomia e lucidez. Em uma das visitas casa de Clia, conversvamos quando sua vizinha dos fundos chegou. Era uma mulher idosa,bastante vaidosa. Ela conversou um pouco conosco e logo foi para sua casa. Nesse momento,Clia comentou baixinho que a vizinha podia cuidar bastante de si, mas que esse cuidado no 40. 39se mostrava em sua casa, pois ela era um pouco relaxada com a lida domstica. Para ela, ocuidado com o lar tornava-se um atributo da feminilidade.Por outro vis, vemos que para as entrevistadas desposadas (Dani, Carmen, Vnia,Maria e Clia), uma das vantagens de no ter marido no ter preocupao com amanuteno do lar. Elas associam diretamente um novo envolvimento amoroso com umcompromisso mais srio com a casa, algo que elas no estariam dispostas a arcar.A questo de gnero ganha dimenso na anlise do envelhecimento tambm peloprocesso de feminizao da velhice, caracterizado pela maior longevidade das mulheres emrelao aos homens, presena mais expressiva das mulheres nas populaes idosas,principalmente entre os mais velhos, crescimento do nmero de idosas que integram apopulao economicamente ativa no pas e de idosas chefes de famlia (NERI, 2007). Apredominncia feminina entre a populao idosa no Brasil e em outros pases fatoamplamente conhecido, mas problematizado na maioria das vezes apenas atravs de umaperspectiva estatstica/demogrfica, que no abrange pesquisas sobre as caractersticas econseqncias desse desequilbrio em sua complexidade social (FIGUEIREDO et al, 2007,p.423).Diferentes expectativas sociais nortearam a vivncia de homens e mulheres idosos,visto que as relaes de gnero, como construes sociais de formas de dominao esubordinao, resultam, historicamente, em experincias diferenciadas para homem e paramulher (BRITTO DA MOTTA, 2006, p. 209). este tambm o ponto de vista adotado porDebert (1999b), ao versar sobre as formas distintas como homens e mulheres dotam designificado seu envelhecimento.As transformaes se associam s mudanas nas normas etrias e de gnero queregulam os comportamentos e as expectativas de comportamento das mulheres idosas, asrelaes intergeracionais e os intercmbios de apoio moral, instrumental e afetivo entre asgeraes (NERI, 2007, p.48). As mulheres observam o envelhecimento a partir de suasvivncias marcadas por um contexto social no qual o feminino baseava-se na domesticidade,represso sexual, dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e apropriao social do corpo(como mes e esposas). Para os homens, suas trajetrias foram em grande parte permeadaspor uma afirmao de masculinidade como dominao da mulher e filhos e obrigao de sero provedor nico da famlia (BRITTO DA MOTTA, 2006).Para Dani, Carmen, Clia, Maria e Tarsila, a prioridade de uma mulher tem que ser afamlia, o cuidado do lar e a maternidade. Vemos em suas concepes a viso hegemnica dofeminino em sociedade, que alia o ser mulher esfera privada e ao cuidado dos filhos. 41. 40 A domesticidade e o cuidado da casa so aprendizados que as entrevistadas tiveramdesde cedo em suas famlias. Tarsila conta que sua me ensinava que a mulher devia sersubmissa, e que com o tempo comeou a questionar essa ideia, pois pensava que os direitospara homem e mulher deviam ser iguais dentro de casa. Mesmo esboando essa concepo,vemos que Tarsila toma como sua responsabilidade o cuidado da casa e do marido. As outrasentrevistadas adotaram pontos de vista semelhantes: Ah, minha me me ensinou a ser educada, ver as coisas e no contar pros outros no sei, no vi. Ser boa, ser carinhosa com as pessoa, ser educada, sempre me ensinou. Eu me criei assim. A eu passo pra ela [filha] e pros meus neto, n. De tentar passar isso pra eles, que tem gente assim que tudo leva a mal, n? No gosto de ofender ningum e no gosto que me ofendam, que da a gente fica magoada, n? E eu trato todo mundo bem... e ela sempre me ensinou a minha me.. no sei de conversa, no falo de ningum. [...] (Carmen) Naquela poca eles no explicavam quase nada pra gente... ensinava a vida de casa, ensinava. Quando tu cas tu tem que aprender a fazer isso, se no depois que tu casa vai dizer ah, mas tua me no te ensinou a fazer isso. Isso a ela dizia. E graas a deus nunca foi... sempre soube fazer tudo que eu precisava de dona de casa. Minhas filhas tambm todas fazem as coisas de casa. Ensinava elas desde pequenas, n. Fazem tudo, sabem fazer tudo. At os filhos fazem o servio de dentro de casa (Maria) Sim, ela [me] sempre falava. Pra mim e pra minha outra irm, que ns casmo uma bem perto da outra. Ela sempre dizia assim, eu quero ter gosto de ir na casa de vocs. Porque ela dava almoo pra ns e ia dormir, e quando ela levantava tava tudo limpinho [...] Eu quero ter gosto de ir na casa da Vnia que ela bem caprichosa. Claro que ns era caprichosa, se ns no limpasse ns apanhava! E o pai e a me sempre diziam, quando vocs cas, vocs nunca... quando o marido de vocs disser uma coisa vocs obedea, nunca queira toma a frente dele que no d certo. Eles ia explicando pra ns como que era, como que no era... [...] (Vnia) A importncia do enlace matrimonial um aprendizado que todas ressaltam,concordando com ele e repassando a suas filhas e netas. Casos de violncia fsica epsicolgica e traio conjugal superados em prol da permanncia da unio familiar sorelatados por elas. Talvez o mais emblemtico seja o de Dani. Seu marido era alcolatra econstantemente a espancava e agredia fsica e psicologicamente. Apesar disso, a entrevistadacuidou dele at sua morte e diz que se sente realizada, pois acredita ter cumprido sua missode mulher. L A senhora acha que era uma misso cuidar dele? D- Eu acho. Porque quando eu casei eu disse na frente do padre, at que a morte nos separasse. Era um compromisso. At que a morte nos separe e ela 42. 41no tinha nos separado, n. Ento da eu cumpri minha misso, eu me sentifeliz , me senti realizada... me senti bem. Acho que se eu no tivesse com elena hora que ele mais precisasse, por tudo que ele passou, eu ia me sentirmuito... com aquela... com aquele fracasso. Por que eu no cumpri a minhamisso? Porque eu tinha uma misso pra cumprir. A minha me sempre medizia... porque antigamente as pessoa no se separavam, n? Ento a minhame me dizia casamento, minha filha, casamento. Se tu vai te responderpro padre que sim, vai ficar no casamento. S por ironia do destino, acabousendo... sendo e no sendo (Dani) Se refletirmos sobre a velhice feminina no contexto da modernidade capitalista, seridosa associado ainda perda da beleza fsica e da condio reprodutiva. Em consonnciacom as teorizaes de Lins de Barros (1981) a velhice femini