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EXCELENTÍSSIMA SENHORA JUÍZA DE DIREITO DA 1ª VARA DA
COMARCA DE ORLEANS - SC
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SANTA
CATARINA, por intermédio de seu Promotor de Justiça titular desta comarca,
no exercício de suas atribuições, vem, perante Vossa Excelência, com fulcro nos
artigos 129, III, 37, caput e seu § 4º da Constituição Federal; no artigo 25, inc.
IV, alíneas “a” e “b” da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público; e nas Leis
ns. 7.347/85 e 8.249/92, e com embasamento probatório no Inquérito Civil n.
06.2010.00004724-4, propor
AÇÃO CIVIL PÚBLICA DE RESPONSABILIDADE POR
ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
JACINTO REDIVO, ex-prefeito de Orleans, servidor da
assembléia legislativa, filho de Ciribino Redivo e Matildes Borguezan Redivo,
inscrito no CPF n. 440.050.249-04, residente na Rua Lion Clube, 385, Lomba,
Orleans;
MARCOS ANTONIO BERTONCINI CASCAES, ex-prefeito
de Orleans, médico, filho de Ivan Alberton Cascaes e Nilza Bertoncini Cascaes,
inscrito no RG n. 134.638, residente na av. Getúlio Vargas, 94, apto 502,
Orleans;
EMPRESA ORLEANENSE DE TRANSPORTES
COLETIVOS LTDA., pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ n.
85.287.902/0001-03, com sede na Rua Princesa Isabel, n. 52, Orleans – SC;
ESATUR TURISMO LTDA., pessoa jurídica de direito
privado, inscrita no CNPJ n. 00.185.069/0001-37, com sede na Rua Princesa
Isabel, n. 52, sala 1, Orleans – SC, pelos seguintes fatos e fundamentos:
1. LEGITIMIDADE PASSIVA
A ação civil pública deflagrada "deve ser dirigida contra o
agente público que ordenou a realização do ato lesivo ao erário e contra os que
dele se beneficiaram"1.
Nessa esteira, JACINTO REDIVO e MARCOS ANTONIO
BERTONCINI CASCAES, ex-Prefeitos do Município, respondem pela prática
de ato de improbidade por força do que estabelece a Lei nº 8.429/92 (Lei da
Improbidade Administrativa – LIA), em seu art. 1º, caput:
Art. 1º Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei.
Importante consignar que o requerido JACINTO REDIVO
administrou o Município de Orleans no período de 01/01/2009 até 31/12/2012,
ao passo que MARCOS ANTONIO BERTONCINI CASCAES exerceu o
mandato de 01/01/2013 até 01/12/2016.
Ora, os réus, na qualidade de Gestores Municipais de
Orleans (que tomaram conhecimento de toda a ilegalidade, até mesmo pelos
reiterados ofícios do Ministério Público e omitiram-se, compactuando com o
ilícito), tiveram participação direta na promoção dos atos ilícitos, em total
afronta à legislação e aos mais elementares princípios que regem a coisa
pública, pelo que devem responder pelos atos ilegais por eles promovidos.
Noutra banda, com relação à EMPRESA ORLEANENSE DE
TRANSPORTE COLETIVO LTDA e ESATUR TURISMO LTDA., ainda que
não se tratem de agentes públicos, tem-se que figuram como beneficiadas
1TJSC. Apelação Cível nº 98.018210-7. Rel. Desembargador Newton Trisotto.
direta da não realização de licitação para prestação de serviços públicos de
transporte coletivo no Município de Orleans e das ilegalidades praticadas nas
licitações do transporte escolar e pelo desvio de finalidade desse serviço
público, sendo, à vista disso, sujeitas à aplicação da lei específica, porquanto se
beneficiaram dos atos ilícitos, fazendo-se às vezes da Municipalidade.
Em casos tais, disciplina o artigo 3º da Lei em comento:
Art. 3º As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.
2. DOS SUBSTRATOS FÁTICOS E JURÍDICOS
Em 12 de fevereiro de 2010, a Promotoria de Justiça da
Comarca de Orleans recebeu cópia dos autos do Procedimento Investigatório
Criminal (PIC) nº 18/2009, oriundo do Grupo Especial de Apoio ao Gabinete do
Procurador-Geral de Justiça (GEAP). Aludido material, diz respeito à
investigação de irregularidades constatadas pelo Tribunal de Contas do Estado,
as quais incluem a questão da concessão do transporte coletivo de Orleans.
De posse de tais informações, visando averiguar as
irregularidades apontadas, a Promotoria de Justiça desta Comarca instaurou
em 2010 o Procedimento Preparatório n. 06.2010.004724-4, posteriormente
convertido em Inquérito Civil.
Dimana das peças informativas acostadas que a prestação
do serviço de transporte coletivo no Município de Orleans, por conivência de
seus administradores, vem sendo realizado há tempos por um monopólio
constituído pela EMPRESA ORLEANENSE DE TRANSPORTE COLETIVO
LTDA. e ESATUR TURISMO LTDA (empresas da mesma família), sem que,
para tanto, fosse feito o imprescindível e prévio procedimento licitatório,
inexistindo portanto, qualquer controle pela municipalidade, apesar de o
serviço em destaque ser de caráter essencial.
Insta observar que há cerca de sete anos o Ministério
Público cobra sistematicamente os prefeitos requeridos, enviando inúmeros
ofícios e promovendo até reunião, para que se tomasse alguma solução séria
visando a formalização da concessão de transporte público no Município de
Orleans.
Neste sentido, citamos os Ofícios ns. 035/10, 060/10,
270/10, 134/11, 269/11, 318/11, 49/12 e 94/12 (fls. 26, 27, 57, 66, 68, 69,
72, 73), na gestão de Jacinto Redivo e Ofícios ns. 152/13, 351/16 e 548/16, no
período de Marcos Bertoncini Cascaes.
Em resposta, não adveio qualquer publicação de edital de
concessão do serviço público ou mesmo as medidas preparatórias solicitadas
pela Promotoria, como a realização de estudo técnico de viabilidade ou a
simples consulta formal de empresas de cidades vizinhas, questionando se
possuem interesse em assumir alguma linha de transporte de passageiros.
Como se verá a seguir, no decorrer de todos esses anos, os
requeridos prefeitos municipais apenas remeteram respostas evasivas. Além
disso, promoveram o desvio de finalidade de recursos "carimbados" da
Educação, ao incluírem informalmente o serviço de transporte de passageiros
dentro das licitações e contratos de transporte escolar, tudo isso em prejuízo
da lei, da moralidade administrativa e, principalmente, dos verdadeiros
destinatários do transporte escolar, que precisavam usar ônibus
completamente inapropriados e inseguros.
Com efeito, segundo vistoria realizada pela Polícia Militar (fl.
202) e depoimentos colhidos, tais veículos não eram identificados como
escolares; estavam desprovidos da autorização do órgão de trânsito para o
transporte de menores; não passavam por vistorias semestrais; careciam de
cintos de segurança em número igual à lotação; e ainda rodavam muitas vezes
lotados, com a agravante de que os alunos precisavam ceder seus lugares para
adultos.
Ou seja, com o conhecimento e incentivo dos gestores
públicos requeridos, as crianças e adolescentes do Município, sem a presença
de seus responsáveis ou de cuidadores, precisavam frequentar transporte
inapropriado, muitas vezes em pé, e expostos a situações de risco decorrente
da presença indevida e desvigiada de adultos desconhecidos, que poderiam
frequentar os ônibus bêbados ou até praticar importunações sexuais
livremente contra os menores.
Insta observar que os adultos pagavam tarifa para o
motorista, a qual era fixada e destinada apenas para as empresas, sem
qualquer repartição ou prestação de contas para o Município. Veja-se que o
Ministério Público requisitou às duas empresas demandadas informações sobre
quais as linhas de transporte coletivo exploravam, os valores das tarifas de
cada trajeto, bem como acerca de eventual contrato administrativo firmado
com o Município de Orleans (fls. 78/79). Na resposta formulada no ano de
2012, informaram que "não exploram linhas de transporte coletivo". Porém,
mesmo sem contrato ou licitação de concessão do serviço público, o
responsável pelas duas empresas confirmou a cobrança de tarifas que
variavam entre R$ 2,00 a 5,00 (fls. 81/82).
Ademais, ouvidos na Promotoria de Justiça, Emir Galvane e
Enio Galvane declararam que, na execução do transporte escolar, seus ônibus
transportam adultos em todas as linhas exploradas pela empresa, sendo que
as tarifas são cobradas pelo próprio motorista (fls. 55/56).
Enfim, sobre a prestação de serviços públicos, a
Constituição Federal em seu artigo 175 dispõe que "Incumbe ao Poder Público,
na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,
sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos".
A Constituição Estadual, em seu artigo 137, § 1º,
acompanhando a Carta Magna, estabelece que a delegação para a prestação
de serviços públicos, deve ser precedida de licitação, senão vejamos:
Art. 137 Ao Estado incumbe a prestação dos serviços públicos de sua competência, diretamente ou mediante delegação.
§ 1º - A delegação, se for o caso e nos termos da legislação
vigente, será precedida de licitação.
A Lei 8.987/95, que regulamenta o artigo 175 da
Constituição Federal, prevê, em seus artigos 2º, II, e 14, que a concessão dos
serviços de tal natureza, se dará mediante licitação, na modalidade de
concorrência.
Art. 2º Para os fins do disposto nesta Lei, considera-se: II - concessão de serviço público: a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, à pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado; Art. 14. Toda concessão de serviço público, precedida ou não da execução de obra pública, será objeto de prévia licitação, nos termos da legislação própria e com observância dos princípios da legalidade, moralidade, publicidade, igualdade, do julgamento por critérios objetivos e da vinculação ao instrumento convocatório.
No caso, a propriedade do serviço público de transporte
coletivo foi entregue para as requeridas EMPRESA ORLEANENSE DE
TRANSPORTE COLETIVO LTDA. e ESATUR TURISMO LTDA, sem lei
autorizativa ou processo licitatório, em flagrante desrespeito à legislação
pertinente. No final, essas empresas da mesma família lucravam duas vezes: a)
recebendo a "tarifa" dos adultos, a qual era fixada livremente pelas empresas e
cujo lucro não era repartido com o Município; b) beneficiadas por generosos
contratos de "transporte escolar", decorrentes de licitações viciadas.
Quando requisitado por esta Promotoria ao Prefeito Jacinto
Redivo (fl. 26 do Inquérito Civil), que apresentasse informações sobre a
realização de procedimento licitatório para concessão dos serviços de transporte
coletivo no ano de 2010, bem como a indicação das empresas prestadoras e os
instrumentos jurídicos que embasam tal prestação, este deixou claro que (fl.
28):
"durante este ano não foi realizado nenhum procedimento licitatório referente à concessão dos serviços de transporte coletivo de passageiros para o ano de 2010. Para tanto encaminhamos anexa cópia da Lei Complementar n° 2.242 de 24/03/2009, que regulamenta os serviços de Transporte coletivo de passageiros no Município de Orleans, que, por se enquadrarem como forma de transporte coletivo são, efetivamente, um serviço público, de peculiar interesse do Município"
Porém, apesar da menção à referida lei municipal,
vislumbra-se que não há norma autorizativa e processo licitatório legitimando a
exploração do serviço público de transporte coletivo em Orleans pelas
requeridas EMPRESA ORLEANENSE DE TRANSPORTE COLETIVO LTDA. e
ESATUR TURISMO LTDA. Destarte, não há nada que vincule as empresas que
exploram o serviço de transporte coletivo municipal à Administração pública
municipal.
Consigna-se que JACINTO REDIVO exerceu o mandato
entre 01/01/2009 2 e 31/12/2012, ao passo que MARCOS ANTONIO
BERTONCINI CASCAES administrou o município na sequência, mas nada
fizeram para sanar a irregularidade, apesar de constantemente acionados pelo
Ministério Público para tanto, o que demonstra o descaso permanente dos
agentes políticos para com o transporte coletivo.
Imperioso ressaltar que a autorização precária para a
exploração do transporte urbano de passageiros para as empresas que já o
faziam há um considerável tempo no município, monopolizou o serviço público.
E o agravante é que não há qualquer controle por parte do poder concedente
dos atos praticados pelas empresas, circunstância que transformou os
2 Embora o requerido Jacinto Redivo fosse vice-prefeito na gestão 2005-2008, tal período não será objeto de análise no presente feito, porque o inquérito civil se iniciou em 2010 e já ocorreu a prescrição do período antecedente.
munícipes em verdadeiros reféns das empresas requeridas ORLEANENSE DE
TRANSPORTE COLETIVO LTDA. e ESATUR TURISMO LTDA., que a seu
alvitre fazem o itinerário das linhas de ônibus da cidade e aumentam as tarifas
quando bem entendem, cobrando preços altos de passagens.
As declarações do Prefeito JACINTO REDIVO comprovam
o desleixo para com o transporte. Ao prestar informações, asseverou às fls.
75-76 do Inquérito Civil, sem qualquer constrangimento ou pudor, que:
O município realizou consulta junto às empresas Orleanense de Transporte Coletivo Ltda e Esatur Turismo Ltda, contudo, a resposta veio no sentido negativo, sob o argumento de que não há viabilidade econômica para as empresas exercerem a prestação de serviço de transporte público no Município de Orleans, diante a grande extensão territorial e o pouco fluxo populacional que utiliza desde meio de transporte. Assim, vislumbra-se a não rentabilidade para uma empresa de Município vizinho instalar-se nesta municipalidade exclusivamente para este fim, pois as próprias empresas sediadas no Município argumentam que é economicamente inviável participar de eventual processo licitatório com o objeto em comento.
Ora, será que desde então o requerido já estava antecipando
ulterior resultado do futuro e necessário processo licitatório? É possível
concluir-se positivamente, posto que revela que nenhuma outra empresa
poderia aprender a dirigir e conhecer a malha viária do município. De outro
lado, parece que apenas as empresas requeridas é que possuem as tarifas mais
baixas do que qualquer outra empresa sediada nos municípios vizinhos, posto
que o alcaide revela a inviabilidade econômica das empresas beneficiadas,
querendo fazer acreditar que, em razão disso, as demais empresas não terão
interesse na licitação.
Veja-se que por diversas hipóteses, de 2010 até dezembro de
2012, o Ministério Público requisitou ao prefeito informação acerca da
realização de estudos técnicos para a abertura de licitação e sobre
consulta a empresas localizadas em Municípios vizinhos. Porém, durante
todo esse período, o requerido empregou respostas evasivas ou simplesmente
não enviou resposta às requisições ministeriais, deixando evidente por diversas
maneiras que fazia toda a questão de manter o estado das coisas, para que as
duas empresas beneficiárias pudessem ostentar seu monopólio sobre o
transporte escolar e público em Orleans.
ILEGALIDADES NA CONTRATAÇÃO DO TRANSPORTE
ESCOLAR
Conforme cópia de Edital e contratos colhidos no sistema
sfinge do Tribunal de Contas de Santa Catarina (fls. 247/271), em 2011 o
Município de Orleans lançou o edital de Pregão n. 01/2011, que versava sobre
o transporte escolar do respectivo ano letivo.
Da simples análise do edital e contratos firmados,
percebe-se que o referido procedimento licitatório continha omissões e artifícios
que macularam o caráter competitivo do certame, incentivando a participação
apenas de empresas sediadas no Município de Orleans.
Com efeito, ao arrepio da legislação de regência e ao
principio constitucional da igualdade entre os concorrentes (art. 37, XXI), o
edital lançado exigia como requisito para habilitação a "cópia do certificado
de registro cadastral - CRC, fornecido pelo setor de licitação da
Prefeitura de Orleans" (cláusula 7.1.1).
Enfim, o artifício empregado é discriminatório porque no
Edital não há qualquer referência à possibilidade legal de participação dos
interessados não inscritos no CRC de Orleans que apresentassem os
documentos de habilitação jurídica, fiscal e técnica previstos no art. 4º, XIII, da
Lei Nacional de Pregões, no dia da sessão de recebimento de propostas.
No caso da modalidade Pregão, o art. 4º Lei n. 10.520/2002,
prevê sobre a habilitação dos concorrentes:
XIII - a habilitação far-se-á com a verificação de que o licitante está em situação regular perante a Fazenda Nacional, a Seguridade Social e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS, e as Fazendas Estaduais e Municipais, quando for o caso, com a comprovação de que atende às exigências do edital quanto à habilitação jurídica e qualificações técnica e econômico-financeira;
XIV - os licitantes poderão deixar de apresentar os documentos de habilitação que já constem do Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores – Sicaf e sistemas semelhantes mantidos por Estados, Distrito Federal ou Municípios, assegurado aos demais licitantes o direito de acesso aos dados nele constantes;
Tal dispositivo da lei nacional de pregões deixa evidente a
impossibilidade de se restringir a participação no certame apenas dos
concorrentes que estejam inscritos no certificado cadastral-CRC específico do
ente federativo. Isso é assim, porque o procedimento para inscrição pode ser
demorado e intencionalmente burocrático, sendo que o prazo curto de oito dias
do pregão inevitavelmente se escoaria bem antes (o procedimento para
inscrição no registro cadastral é previsto nos arts. 34, 35, 36, 37 e 51 da lei de
licitações, que tratam até do julgamento de aceitação por "comissão
permanente ou especial").
Veja-se que a legislação nacional de pregões até prevê a
faculdade da empresa deixar de encaminhar a documentação de habilitação se
já estiver no CRC (art. 4º, XIV), não podendo, é claro, a administração fazer o
contrário: deixar de receber a proposta de quem quer apresentar os
documentos regulares de habilitação, mas não está cadastrado no CRC do ente
federativo. Melhor explicando, a faculdade legal de apresentação do CRC não
pode se converter em obrigação, de forma a restringir a competitividade do
certame às empresas previamente cadastradas.
A proibição dessa cláusula nos Pregões está consolidada há
muito tempo pelo Tribunal de Constas de Santa Catarina, que tem aplicado
multas aos gestores "em virtude da exigência de certificado de registro
cadastral como condição de participação e como requisito de habilitação, em
dissonância com os princípios da competitividade e da isonomia e com o
disposto nos arts. 32, §3º, da Lei nº 8.666/93 e 4º, XIII e XIV, da Lei nº
10.520/02" (Processo 09/00582324). Neste sentido, também mencionamos os
Processos ns. 14/00200390 e 10/00319609, nos quais se consignou que "tal
exigência viola o princípio da competitividade previsto no art. 3º, § 1º, I, da Lei
n. 8.666/93, haja vista que cria condicionante à participação no certame".
De acordo com o manual do Tribunal de Contas da União,
"Licitante interessado em participar de licitações públicas não está obrigado a
fazer registro cadastral no órgão ou entidade que realiza procedimentos
licitatórios. Apresentação de certificado de registro cadastral em substituição a
determinados documentos é faculdade que a Lei de Licitações confere ao
licitante". (Licitações e Contratos. Orientações e Jurisprudencia do TCU, 4ª ed.,
2010,p.449,in:http://www.tcu.gov.br/Consultas/Juris/Docs/LIC_CONTR/205762
0.PDF)
Em situação de todo semelhante, cita-se o seguinte julgado
do TCU:
1. A exigência de certificado de registro cadastral ou de certidão emitidos pelo ente que conduz a licitação, com exclusão da possibilidade de apresentação de documentação apta a comprovar o cumprimento dos requisitos de habilitação, afronta o comando contido no art. 32 da Lei nº 8.666/1993. Representação apontou possíveis irregularidades na condução da Concorrência 01/2012, promovida pela Prefeitura Municipal de São José da Tapera/AL, com o objetivo de contratar empresa para "execução dos serviços de implantação e ampliação do sistema de esgotamento sanitário da sede municipal de São José da Tapera - Alagoas", estimados em R$ 17.380.713,43 e custeados com
recursos federais. Entre as cláusulas do edital impugnadas, destaque-se a que limita a participação no certame a empresas que apresentem "Certificado de Registro Cadastral
CRC da Prefeitura Municipal de São José da Tapera/Al devidamente atualizado ou certidão emitida pelo mesmo órgão, comprobatória do preenchimento, até o oitavo dia anterior a data do recebimento das Documentações e Propostas, de todos os requisitos indispensáveis ao cadastramento". A unidade técnica anotou que tal exigência afrontaria o disposto no art. 32 da Lei 8.666/1993. Não se poderia, segundo a lógica de sua análise, retirar a possibilidade de que interessados em participar do certame cumprissem as exigências de habilitação por meio da apresentação de documentação suficiente para tanto e não somente por meio dos referidos certificado ou certidão. Acrescentou que a obrigação de apresentar o CRC constitui fator impeditivo para que as empresas que nunca participaram de licitações no órgão ultrapassem a fase de habilitação. O relator, por meio de despacho, suspendeu cautelarmente o andamento do certame, o que mereceu o endosso do Plenário. O referido município, em seguida, comunicou a suspensão do certame e informou que promoveria a correção do edital, com o intuito de sanear os vícios identificados. O Tribunal, então, ao acolher proposta do relator, decidiu: a) conhecer a representação; b) julgá-la procedente; c) determinar à Prefeitura Municipal de São José da Tapera/AL que "somente dê prosseguimento à concorrência 1/2012, após a republicação do edital, escoimado das irregularidades apontadas nestes autos, reabrindo-se o prazo inicialmente estabelecido". (Acórdão n.º 2951/2012-Plenário,
TC-017.100/2012-1, rel. Min. Raimundo Carreiro, 31.10.2012).
Enfim, a conduta da administração é ilegal e restringe
injustificadamente o caráter competitivo da licitação, pois "nenhuma das
modalidades licitatórias estatuídas na lei – concorrência, tomada de preços e
convite - impõe a necessidade de cadastramento como condição de habilitação"
(Jessé Torres Pereira Junior, Comentários à Lei de Licitações e Contratações da
Administração Pública. 2009, p. 266). Tal interpretação, como citado antes,
também vale para os pregões.
Em conclusão, tanto a lei de licitações como a lei nacional de
pregões não toleram a exigência de inclusão da empresa no certificado de
registro cadastral do Município como condição para participação no certame,
devendo o edital prever, no caso de menção ao CRC, a regra de aceitação de
propostas de outras empresas que atendam os requisitos de qualificação
técnica/jurídica/financeira do art. 4º, XIII, da Lei n. 10.520/023.
Outrossim, o Edital de Pregão n. 01/2011 continha vício
insanável por exigir em sua claúsula 7.1.3 que a empresa contratada tenha
"escritório e garagem de veículos na cidade de Orleans", regra que é tão ilegal
e inconstitucional que até dispensa maior argumentação.
Ainda na administração de Jacinto Redivo, lançou-se o Edital
de Pregão n. 01/2012 (fls. 272/289), que versava sobre o transporte escolar
no ano de 2012. O certame também é nulo porque repete a cláusula 7.1.1
(exigência do certificado de registro cadastral), restringindo injustificadamente
a participação de empresas de outras cidades que nunca foram fornecedoras
do Município de Orleans.
Não por acaso, em ambas as licitações sagraram-se
vencedoras as empresas Orleanense e Esatur (Contratos ns. 19/2011, 20/2011,
16/2012 e 15/2012).
Já em 2 de janeiro de 2013, o requerido Marco Antonio
Bertoncini Cascaes, então Prefeito Municipal de Orleans, lançou o Edital de
Pregão n. 01/13, visando a contratação de empresa para a prestação dos
serviços de transporte escolar no ano letivo de 2013.
No edital de licitação, sem qualquer pesquisa de preços,
estipulou-se como valor máximo dos lances a quantia de R$ 1.363.725,00 (fl.
90).
No dia designado para a apresentação de propostas e
3 No caso dos autos, há a particularidade de que o item 7.1.1 do Edital previu a prévia inscrição no CRC do Município
de Orleans como requisito de participação, aceitando a juntada de documentos para substituição das certidões vencidas apenas de empresas anteriormente cadastradas (item 7.2).
habilitação (dia 6/2/2013), socorreu ao certame apenas a requerida
ORLEANENSE DE TRANSPORTES COLETIVOS LTDA, que apresentou proposta
por escrito no valor exato de R$ 1.363.725,00 (fl. 156/160).
Na sequência, o requerido Marcos Antonio Bertoncini
Cascaes homologou o resultado do processo licitatório e assinou o Contrato n.
17/2013, no valor de R$ 1.330.000,00 (fl. 182- o valor da proposta foi
"reduzido" na fase de julgamento).
Tal como acontecido em 2011 e 2012, o edital de Pregão n.
01/2013 repetia a malfadada claúsula 7.1.1, permitindo apenas a participação
de empresas cadastradas no CRC de Orleans, circunstância que afugentou a
participação de terceiros.
Não bastasse isso, a vontade de favorecer a empresa
demandada e o descaso com os princípios da legalidade e moralidade foi
tamanho que, mesmo após a restrição indevida constante do edital, o requerido
Marco Antonio Bertoncini Cascaes homologou certame e assinou contrato
no valor de R$ 1.330.000,00 com empresa que estava com a certidão
de regularidade perante o FGTS vencida, conforme cópia do CRC de fl.
162!!!
Além dessas nulidades, em análise detida dos autos,
constatam-se mais indicativos de que o processo licitatório de 2013 foi
direcionado e pretendia oferecer vantagens ao único concorrente que se
habilitou para participar das licitações.
Observa-se, inicialmente, que a única proposta apresentada
e, como tal, vencedora do certame, consigna preço igual ao valor máximo de
contratação permitido pelo edital. Tal valor, por sinal, foi estabelecido
aleatoriamente pela Prefeitura de Orleans, na medida em que a Licitação não
registra pesquisa de preços, requisito elementar para qualquer Pregão.
Como se sabe, a existência de planilha de preços nos
Pregões, a par de ser exigência legal prevista no art. 3.º, III, da Lei n.
10.520/2002 (Lei dos Pregões) e arts. 7º, § 2º, II, e 40, § 2º, II, da Lei n.
8.666/93 (Lei de Licitações), também constitui requisito indispensável para que
o ente público tenha indicativos sólidos quanto ao impacto do serviço para seu
orçamento, impedindo, ainda, atos de dilapidação do patrimônio público por
meio de contratos superfaturados.
Vejamos o que tratam tais dispositivos. Primeiramente a Lei
Nacional de Pregões (Lei 10.520/02):
Art. 3º A fase preparatória do pregão observará o seguinte:
[...]
III - dos autos do procedimento constarão a justificativa das definições referidas no inciso I deste artigo e os indispensáveis elementos técnicos sobre os quais estiverem apoiados, bem como o orçamento, elaborado pelo órgão ou entidade promotora da licitação, dos bens ou serviços a serem licitados;
No mesmo sentido, tem-se a Lei Nacional de Licitação,
norma de incidência complementar aos pregões:
Art. 7º As licitações para a execução de obras e para a prestação de serviços obedecerão ao disposto neste artigo e, em particular, à seguinte sequência:
[...]
§ 2º As obras e os serviços somente poderão ser licitados quando:
[...]
II - existir orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição de todos os seus custos unitários;
Art. 40. O edital conterá no preâmbulo o número de ordem em série anual, o nome da repartição interessada e de seu setor, a modalidade, o regime de execução e o tipo da licitação, a menção de que será regida por esta Lei, o local, dia e hora para recebimento da documentação e proposta, bem como para início da abertura dos envelopes, e indicará,
obrigatoriamente, o seguinte:
[...]
§ 2º Constituem anexos do edital, dele fazendo parte integrante:
I - o projeto básico e/ou executivo, com todas as suas partes, desenhos, especificações e outros complementos;
II - orçamento estimado em planilhas de quantitativos e preços unitários;
Mesmo conhecendo a obrigação legal citada, verifica-se que
o administrador público não instruiu o processo licitatório com qualquer
pesquisa de mercado antes da publicação do edital, o que trouxe nítido prejuízo
às contas públicas, uma vez que a estipulação dos valores ficou ao alvedrio
exclusivo da empresa que se visava contratar.
Veja-se que a modalidade de licitação eleita, qual seja, o
Pregão, é reservada para bens e serviços comuns, que são aqueles cujos
"padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo
edital, por meio de especificações usuais no mercado", de modo que nada
justifica a ausência de prévio orçamento do serviço, a não ser o suposto
objetivo de se beneficiar a contratada à custa do erário municipal.
Com respaldo em decisões reiteradas do TCU, Jessé Torres
Pereira Júnior esclarece que a aferição do preço corrente no mercado:
Deverá observar a Decisão n. 431/93, Plenário, no que concerne à realização de pesquisa de preços em pelo menos duas outras empresas pertencentes ao ramo do objeto licitado, visando comprovar a compatibilidade de preços propostos com os praticados no mercado, e que seja feita sua inclusão nos processos licitatórios para fins de comprovação" (Comentários à Lei de Licitações e Contratações da Administração Pública. 8ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 140).
É importante ressaltar que a pesquisa de preços não
constitui mera exigência formal estabelecida pela lei. Trata-se, na realidade, de
"etapa essencial ao processo licitatório, pois estabelece balizas para que a
Administração julgue se os valores ofertados são adequados. Sem valores de
referência confiáveis, não há como avaliar a razoabilidade dos preços" (Marçal
Justen Filho. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 14ª
ed. 2010, p. 147).
Observe-se que, após estabelecer o inciso II do § 2º do art.
7º da Lei de Licitações a necessidade de "orçamento detalhado em planilhas
que expressem a composição de todos os seus custos unitários", o § 6º do
mesmo dispositivo legal prescreve que a "infringência do disposto neste
artigo implica a nulidade dos ato ou contratos realizados e a
responsabilidade de quem lhes tenha dado causa".
A propósito, orienta o egrégio Tribunal Catarinense,
abalizado em respeitável Doutrina e no resguardo aos princípios informadores
das licitações (vedação de eventual direcionamento ou cerceamento à
competitividade):
ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. SERVIÇOS DE ENGENHARIA SANITÁRIA DE LIMPEZA PÚBLICA. EDITAL. AUSÊNCIA DE ORÇAMENTO COM A COMPOSIÇÃO DOS CUSTOS UNITÁRIOS. NULIDADE DO PROCEDIMENTO. EFEITOS. Na licitação de serviços para a prestação de serviços, o edital deve conter ou se fazer acompanhar de orçamento detalhado em planilhas que expressem a composição dos custos unitários (arts. 7º, § 2º, II e 40, § 2º II, da Lei nº 8.666/93), sob pena de nulidade do procedimento. Por expressa dicção legal (art. 49, § 2º, da Lei 8.666/93), o vício na licitação acarreta a invalidade de todos os atos posteriores, inclusive do contrato, caso tenha sido pactuado. (Apelação Cível em Mandado de Segurança n. 2001.024677-5, de São Miguel do Oeste. Relator: Juiz Newton Janke, j. 29/3/2005)
Em arremate, ao comentar o disposto no § 2º do art. 40 da
lei de licitações, Marçal Justen Filho averba:
A divulgação do orçamento é obrigatória. Não se atende à exigência legal quando se divulga apenas parcialmente o orçamento, omitindo valores. É óbvio que um documento que não explicita valores não corresponde ao conceito de orçamento. Não há discricionariedade para a Administração. O orçamento deve ser divulgado, sob pena de vício do procedimento licitatório e caracterização de desvio de poder (Comentários à Lei das Licitações e Contratos Administrativos, 14ª. ed., São Paulo: Dialética, 2010, p. 550, grifou-se).
Não custa lembrar que, além de afetar a validade da
licitação e da posterior contratação, tal infração também configura ato de
improbidade que provoca lesão ao erário e fraude à licitação (art. 10, caput e
VIII, da Lei n. 8.429/92), uma vez que interfere diretamente na escolha da
proposta mais vantajosa à administração, além de abrir espaço para
contratações com valores aleatórios.
Também se revestem tais condutas da tipificação como ato
de improbidade que causam lesão ao erário previstas no caput art. 10, não
apenas pelas quantias eventualmente pagas ao contratado, mas também pelos
prejuízos econômicos ao município de Orleans, que poderia reverter a quantia
superior a um milhão de reais em investimentos concretos em educação (os
valores gastos com transporte escolar fazem parte da verba "carimbada" da
educação, cujo mínimo deve representar 25% da arrecadação).
DESCASO E DESRESPEITO PELO TRANSPORTE
ESCOLAR
Outro ponto que merece destaque é a confusão
propositalmente causada pelos requeridos entre os serviços públicos de
transporte coletivo de passageiros e transporte escolar, conduta que serviu
apenas para favorecer as duas empresas do mesmo grupo familiar,
sustentando um verdadeiro monopólio.
Com efeito, constatou-se nos autos do Inquérito Civil anexo
que a administração municipal de Orleans, por vontade dos requeridos,
mantinha contratos com empresas que não atendiam os REQUISITOS BÁSICOS
ESTABELECIDOS NOS ARTS. 136 A 138 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO PARA O
TRANSPORTE DE ESCOLARES, como a inspeção semestral dos ônibus, a
pintura de faixa horizontal com a inscrição "ESCOLAR" em toda a extensão das
partes laterais e traseira da carroçaria, cintos de segurança em número igual à
lotação, existência de Autorização do órgão de trânsito para transporte de
escolares, etc.
Os requisitos mínimos previstos na Lei de Trânsito para o
transporte escolar e que eram conscientemente e sistematicamente omitidos
dos editais e contratos são os seguintes:
CAPÍTULO XIII DA CONDUÇÃO DE ESCOLARES Art. 136. Os veículos especialmente destinados à condução coletiva de escolares somente poderão circular nas vias com autorização emitida pelo órgão ou entidade executivos de trânsito dos Estados e do Distrito Federal, exigindo-se, para tanto: I - registro como veículo de passageiros; II - inspeção semestral para verificação dos equipamentos obrigatórios e de segurança; III - pintura de faixa horizontal na cor amarela, com quarenta centímetros de largura, à meia altura, em toda a extensão das partes laterais e traseira da carroçaria, com o dístico ESCOLAR, em preto, sendo que, em caso de veículo de carroçaria pintada na cor amarela, as cores aqui indicadas devem ser invertidas; IV - equipamento registrador instantâneo inalterável de velocidade e tempo; V - lanternas de luz branca, fosca ou amarela dispostas nas extremidades da parte superior dianteira e lanternas de luz vermelha dispostas na extremidade superior da parte traseira; VI - cintos de segurança em número igual à lotação; VII - outros requisitos e equipamentos obrigatórios
estabelecidos pelo CONTRAN. Art. 137. A autorização a que se refere o artigo anterior deverá ser afixada na parte interna do veículo, em local visível, com inscrição da lotação permitida, sendo vedada a condução de escolares em número superior à capacidade estabelecida pelo fabricante. Art. 138. O condutor de veículo destinado à condução de escolares deve satisfazer os seguintes requisitos: I - ter idade superior a vinte e um anos; II - ser habilitado na categoria D; III - (vetado) IV - não ter cometido nenhuma infração grave ou gravíssima, ou ser reincidente em infrações médias durante os doze últimos meses; V - ser aprovado em curso especializado, nos termos da regulamentação do CONTRAN.
Da leitura dos editais e contratos antes mencionados,
verificou-se que a administração sequer exigiu das empresas contratadas o
cumprimento da Lei de Trânsito para a execução de serviço público tão
relevante, irresponsabilidade que permitiu a indevida mistura entre o
transporte escolar (mantido com recursos carimbados da Educação) com o
serviço de transporte coletivo de passageiros, além da superlotação dos
veículos, pois as crianças destinatárias dos serviços acabavam cedendo seus
assentos para adultos que sequer poderiam embarcar nos ônibus
(atendimentos de fls. 83, 190, 241).
Ora, a legislação brasileira deu tratamento especial aos
veículos que transportam crianças e adolescentes, o que se justifica diante das
peculiaridades deste meio de condução. Desta forma, em respeito aos
Princípios Constitucionais da Legalidade, Eficiência e Finalidade,
qualquer contratação do Poder Público que SE POSSA QUALIFICAR
COMO DE TRANSPORTE ESCOLAR, deve atentar necessariamente para
tais requisitos da Lei Nacional de Trânsito, sob pena de ilegalidade da
avença e responsabilidade pessoal do gestor.
Nestes termos, por ocasião do procedimento licitatório
referente ao serviço de transporte escolar, era intuitivo que o gestor exigisse no
edital a apresentação, dentre a documentação necessária para a contratação, a
Autorização de Transporte Coletivo emitida pelo órgão de trânsito,
comprovação da habilitação dos condutores dos veículos, e menção no contrato
de que os veículos devem conter pintura de faixa horizontal com a inscrição
"ESCOLAR" em toda a extensão das partes laterais e traseira da carroçaria dos
veículos, além de comprovarem documentalmente as inspeções semestrais.
Apenas para ratificar a importância desta obrigação, até
porque de conhecimento dos gestores públicos, as verbas municipais são
destinadas exclusivamente para o transporte de estudantes da rede pública de
ensino (25% da arrecadação), e não para particulares que não sejam
estudantes, sendo que seu descumprimento enseja a responsabilização por
improbidade administrativa, em decorrência de utilização de recursos de
forma indevida, por FLAGRANTE DESVIO DE FINALIDADE.
Em continuidade, há de se ressaltar que o transporte de outras
pessoas nos veículos escolares pode causar imenso desconforto e insegurança
aos alunos da rede pública, verdadeiros e exclusivos destinatários do serviço de
transporte escolar, tendo em vista eventuais atrasos e superlotação. Isso sem
contar com a possibilidade de transmissão de doenças infectocontagiosas e até
importunações sexuais, sendo de difícil exercício tal averiguação e controle pelo
motorista, já que os menores vão nos ônibus desacompanhados de cuidadores.
3. DA CONFIGURAÇÃO DA CONDUTA COMO ATO DE IMPROBIDADE
ADMINISTRATIVA
A Constituição Federal trata dos atos de improbidade
administrativa em seu artigo 37, § 4°, que traz o seguinte regramento:
[...] os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo
da ação penal cabível.
A Lei n° 8.429/92 regulamentou a disposição constitucional,
criando três modalidades distintas de atos de improbidade administrativa, os
quais foram tratados, respectivamente, nos artigos 9º (atos que importam
enriquecimento ilícito), 10 (atos que causam prejuízo ao erário) e 11 (atos que
atentam contra os princípios da administração pública).
No caso vertente, a conduta dos requeridos insere-se em
duas das espécies de atos de improbidade administrativa, quais sejam: os que
causam prejuízo ao erário e os que ferem os princípios da administração
pública.
Os atos de improbidade administrativa que causam prejuízo
ao erário, como dito, encontram-se conceituados no art. 10 da Lei 8.429.92, o
qual prescreve:
Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa prejuízo ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1° desta Lei, e notadamente: […] VIII – frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente; XII – permitir, facilitar ou concorrer para que terceiro se enriqueça ilicitamente;
Conforme salientado quando da descrição dos fatos, os
processos licitatórios, na forma como realizados pelo Município, são nulos, uma
vez que descumpridos intencionalmente ditames da Lei n. 8.666/93 e princípios
que regem a administração pública.
A frustração da licitude de processo licitatório constitui, por
essa razão, modalidade de ato de improbidade administrativa que causa
prejuízo ao erário.
Os ex-Prefeitos requeridos, valendo-se de tal condição,
homologaram as licitações em comento, mesmo sabendo que os certames
realizados ofendiam uma série de dispositivos da lei de licitações e princípios
constitucionais da administração pública.
Posteriormente, assinaram contratos com as empresas
beneficiárias, de modo que, com isso, reverteram em favor delas receitas
públicas da Prefeitura Municipal de Orleans.
Segundo Wallace Paiva Martins Júnior, o ato de improbidade
em questão pode ocorre por variadas formas:
A frustração da licitude do procedimento licitatório – primeira parte do art.10, VIII – é preceito bem amplo e tanto pode ocorrer pela violação aos princípios específicos (art. 3º da Lei Federal n. 8.666/93) quanto pela inserção de claúsulas incompatíveis com a normatização constante da Lei n. 8.666/93 (julgamento sigiloso, vício procedimental, inexistência de projeto básico ou recursos orçamentários prévios disponíveis, condições que impliquem o favorecimento ou alijamento de interessados através da admissão, previsão, inclusão, inserção ou tolerância de cláusulas, condições e requisitos restritivos ou frustradores do caráter competitivo, habilitação ou classificação desarrazoadas, desproporcionais, ilícitos ou subjetivos, estipulação mínima, criação de novas modalidades ou combinações destas, adoção de modalidade incompossível, estipulação de outros critérios de julgamento ou de critérios subjetivos, subdimensionamento do objeto, desvinculação do edital, admissão de propostas que deveriam ser desclassificadas ou de proponente que mereciam ser inabilitados, supressão da publicação,etc.), todos descendentes do princípio do art.37, XXI, da Constituição Federal. Em suma a frustração da licitude de processo licitatório significa a corrupção dos princípios, regras e fins do instituto da licitação, em prejuízo a real da isonomia, entre outros aspirantes e da seleção da proposta mais vantajosa para o Poder Público. (JÚNIOR, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 266)
De outro vértice, cumpre esclarecer que, tão somente pelo
número de ilegalidades narradas no decorrer desta inicial, pode-se dizer que a
conduta do gestor público se enquadra como ato doloso, afinal tinha o agente
plena consciência dos desvios éticos cometidos, sendo o resultado previsível e
voluntário.
Sobre o elemento subjetivo do ato de improbidade, Hugo
Nigro Mazzialli (apud MARTINS JUNIOR), assinala que:
O dolo que se exige é o comum; é a vontade genérica de fazer o que a lei veda, ou não fazer o que a lei manda. Não seria preciso que o administrador violasse um concurso público ou uma licitação por motivos especiais (como para contratar parentes ou beneficiar amigos).
Assim, a conduta do Prefeito encontra tipificação na
modalidade dolosa do ato de improbidade administrativa que causa prejuízos
aos cofres públicos, uma vez que sua condição de Prefeito (cercado de
assessores e técnicos) exige um conhecimento mínimo acerca das regras
nacionais sobre contratações do poder público e Princípios constitucionais da
Administração Pública, situação que deixa evidente que possuía o domínio de
fato sobre a conduta tendente a frustar a licitude do processo licitatório.
Mesmo sabendo das consequências da sua conduta, preferiu
o gestor frustrar a licitude do pregão, ao desrespeitar regras elementares da
legislação correspondente. Além disso, como já amplamente exposto, os
ex-prefeitos requeridos se valeram de processos licitatórios nulos (de
transporte escolar) para encobrir uma concessão informal do serviço público de
transporte coletivo.
Além disso, mesmo sendo acompanhados por cerca de sete
anos pela Promotoria e advertidos das irregularidades cometidas, os requeridos
deram continuidade ano a ano em seus atos de improbidade, demonstrando
pouco caso pelo Ministério Público e pelas crianças e adolescentes que
precisavam utilizar um transporte completamente inapropriado, que não
respeitava regras básicas da legislação de trânsito.
Por outro lado, diante da consideração hipotética de
improcedência do pedido quanto à aplicação das sanções correspondentes ao
artigo 10 da Lei nº 8.429/92 (o que se admite apenas por cautela), é de se
salientar que a própria lei já trouxe, no bojo do seu artigo 11, uma espécie de
regra de reserva, aplicável subsidiariamente.
Objetiva a norma a proteção dos princípios da administração
pública, abstraídas as situações de enriquecimento ilícito e de prejuízo ao
erário:
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, e notadamente:
I – praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto na regra de competência;
II – retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;
A sujeição a tais princípios é explicitada pela própria Lei
8.429/92, consoante disposição constitucional (art. 37, caput, CF):
Art. 4º. Os agentes públicos de qualquer nível ou hierarquia são obrigados a velar pela estrita observância dos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade no trato dos assuntos que lhe são afetos.
Os demandados violaram o princípio da legalidade ao
ignorarem as disposições insertas na Constituição Federal e nas Leis ns.
8.666/93, 10.520/02 e Código de Trânsito.
Todo ato administrativo deve visar à adequada aplicação da
lei. Essa regra tem por escopo tornar clara a norma legal a ser observada pela
Administração e pelos administrados.
Quando não há lei permissiva de sua prática, o ato é nulo.
Assim, no que se refere às formalidades para contratação de bens e serviços
pela administração, não há margem para relativização do cumprimento das leis
e princípios que regem a matéria, devendo ser declarado nulo e sem efeitos o
ato que esteja em desconformidade com a lei. É assente que em Direito
Administrativo prevalece o princípio de que "tudo o que não é permitido é
proibido", diversamente dos demais ramos de Direito Privado, onde "tudo o
que não é proibido é permitido".
No presente caso, inobservou-se o princípio da legalidade na
medida em que se desrespeitou normas cogentes das leis de licitações (Lei n.
8666/93) e lei de pregões que estipulam a obrigatoriedade de existência de
orçamento dos valores dos serviços a serem licitados e a vedação de se
restringir a participação apenas de empresas previamente cadastras no CRC do
Município de Orleans. Também se reveste de lesão ao princípio da legalidade a
omissão de exigir das empresas contratadas o cumprimento das regras de
segurança previstas na legislação de trânsito para o transporte de escolares
(omissão existente desde os editais e que se perpetuou durante a execução
dos contratos).
Violaram o princípio da impessoalidade, uma vez que os
gestores públicos fizeram questão de manter um monopólio privado e,
consequentemente, impossibilitar a participação de empresas de cidades
próximas nas licitações de transporte escolar e na concessão do transporte
coletivo.
O princípio da impessoalidade completa a ideia de que o
Administrador Público deve ser um executor da lei sem se desviar do fim nela
proposto. Assim, também foi desrespeitado o princípio da impessoalidade e da
finalidade, quando, de maneira parcial, se utilizou de artifícios para favorecer as
empresas contratadas e para encobrir uma concessão do transporte de
passageiros dentro dos contratos de transporte escolar.
Outro princípio contrariado pelos requeridos foi o da
moralidade, pois, ao pactuarem a manutenção de um monopólio, ofenderam a
moral, as regras da boa administração, a ideia de honestidade e de equidade,
ferindo o preceito legal.
Sobre o Princípio da Moralidade Administrativa,
desrespeitado pelos requeridos, comenta Nilo Spinola Salgado Filho:
A violação ao princípio constitucional da moralidade, portanto, possui indiscutível importância jurídica em face do que dispõe a Constituição Federal, considerando ainda que entre os direitos inerentes à cidadania destaca-se o direito político de todo cidadão e da coletividade a "um governo probo e uma administração honesta" (Manual de Direitos Difusos. Editora Verbatim. 2009, p. 579.)
Devidamente estampada a afronta aos princípios acima
mencionados, deverão os requeridos ser punidos de acordo com as regras
insertas no artigo 12 da Lei n. 8.429/92, para que atos dessa natureza não
tornem a ocorrer no Município de Orleans, como segue:
Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas, previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações:
II – na hipótese do artigo 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;
III – na hipótese do artigo 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
Por essa razão, uma vez descumpridos os princípios e
normas gerais que devem fundamentar as contratações públicas e execuções
de serviços públicos essenciais, desvirtuando-os do fim a que se destinam,
ter-se-á configurada a prática do ato de improbidade administrativa descrito
nos incisos VIII e XII do art. 10 da Lei n. 8.429/92 e, subsidiariamente, o
descrito no art. 11, I e II, da mesma Lei.
4. DOS PEDIDOS
Ante o exposto, requer o MINISTÉRIO PÚBLICO DO
ESTADO DE SANTA CATARINA:
a) a autuação da inicial, nos termos do procedimento
previsto na Lei de Improbidade Administrativa, com a notificação dos
demandados para a defesa preliminar, nos termos do artigo 17, § 7º, da Lei n.
8.429/92;
b) o recebimento da presente e a citação dos réus para
querendo, contestarem o feito, sob pena de serem reputados verdadeiros os
fatos afirmados na inicial, observando-se o procedimento previsto na Lei
8.429/92 (arts. 17 e 18 da Lei n. 8.429/92);
c) a citação do Município de Orleans, nos termos do art. 17,
§ 3º, da Lei 8.429/92;
d) a intimação pessoal do Ministério Público para todos os
atos do processo (art. 41, IV, da Lei n. 8.625/93 e art, 207, XI, da Lei
Complementar Estadual n. 197/00);
e) a produção de todos os meios de prova admitidos em
direito, mormente a documental, depoimento pessoal, testemunhal, pericial e
juntada de outros documentos;
f) procedência da ação civil pública, reconhecendo-se a
nulidade dos Processos Licitatórios ns. 001/2013, 001/2011 e 001/2012, por
consequência, dos Contratos correspondetes;
h) a procedência da ação civil pública para que os réus
sejam condenados, na medida de suas responsabilidades, nas sanções do art.
12, inciso II, da Lei nº 8.429/92, a fim de que:
h.1) promovam, de forma solidária, o ressarcimento integral
dos danos provocados, devendo o valor deste ser precisado em liquidação de
sentença;
h.2) imponham-se as sanções de: a) perda dos bens ou
valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se a instrução vier a comprovar
tal circunstância; b) perda da função pública; c) suspensão dos direitos políticos
de cinco a oito anos; c) pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do
dano; e d) proibição de contratar com o Poder Público e de receber benefícios
ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por
intermédio de pessoa jurídica da qual sejam sócios majoritários, pelo prazo de
cinco anos;
i) subsidiariamente, caso não acolhido o pleito principal, a
aplicação das sanções previstas no inciso III do artigo 12, da Lei 8.429/92;
j) a condenação dos réus ao pagamento das despesas
processuais e demais verbas de sucumbência.
Orleans, 21 fevereiro de 2017.
MARCELO FRANCISCO DA SILVA PROMOTOR DE JUSTIÇA