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ARTIGO ARTICLE 783 1 Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde, Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4036/1001, Manguinhos. 21045-210 Rio de Janeiro RJ. [email protected] 2 Centro de Estudos Sociais Aplicados, Universidade Federal Fluminense. 3 Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. 4 Secretaria Municipal de Saúde de Mesquita, Rio de Janeiro. 5 Núcleo de Estudos Político-Sociais em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Saúde da família: limites e possibilidades para uma abordagem integral de atenção primária à saúde no Brasil Family health: limits and possibilities for an integral primary care approach to health care in Brazil Resumo O artigo analisa a implementação da Es- tratégia Saúde da Família (SF) e discute suas poten- cialidades em orientar a organização do SUS no Bra- sil, a partir da análise da integração da SF à rede assistencial e atuação intersetorial, aspectos cruciais de uma atenção primária abrangente. Foram reali- zados quatro estudos de caso de municípios com ele- vada cobertura por SF (Aracaju, Belo Horizonte, Florianópolis e Vitória) tendo como fontes: entre- vistas semi-estruturadas com gestores e inquéritos com profissionais de saúde e de famílias cadastradas. A análise da integração destacou a posição da Estra- tégia SF na rede assistencial, os mecanismos de inte- gração e a disponibilidade de informações para con- tinuidade da atenção. A intersetorialidade foi pes- quisada quanto aos campos de atuação, abrangên- cia, setores envolvidos, presença de colegiados, e ini- ciativas das equipes. Os resultados apontam avanços na integração da SF à rede assistencial, propiciando o fortalecimento dos serviços básicos como serviços de procura regular e porta de entrada preferencial, todavia permanecem dificuldades de acesso à aten- ção especializada. As iniciativas intersetoriais foram mais abrangentes quando definidas como politica integrada do governo municipal para a construção de interfaces e cooperação entre os diversos setores. Palavras-chave Atenção primária à saúde, Inte- gração, Intersetorialidade Abstract The article analyzes the implementation of the Family Health Strategy (FH) and discusses its potential to guide the organization of the Unified Health System in Brazil, based on the integration of FH to the health care network and intersectorial ac- tion, crucial aspects of a comprehensive primary health care. Four case studies were carried out in cities with high FH coverage (Aracaju, Belo Hori- zonte, Florianópolis e Vitória), using as sources: semi- structured interviews with managers and surveys with health care professionals and registered fami- lies. The integration analysis highlighted the posi- tion of FH Strategy in the health services network, the integration mechanisms and the availability of information for continuity of care. Intersectoriality was researched in relation to the fields of action, scope, sectors involved, presence of forums, and team initi- atives. The results point to advances in the integra- tion of FH to the health care network, strengthening basic services as services that are regularly sought and used as a preferential first contact services, al- though there are still problems in the access to spe- cialized care. The intersectorial initiatives were broader when defined as integrated municipal gov- ernment policy for the construction of interfaces and cooperation between the diverse sectors. Key words Primary health care, Integration, Inter- sectoriality Ligia Giovanella 1 Maria Helena Magalhães de Mendonça 1 Patty Fidelis de Almeida 1 Sarah Escorel 1 Mônica de Castro Maia Senna 2 Márcia Cristina Rodrigues Fausto 3 Mônica Mendonça Delgado 4 Carla Lourenço Tavares de Andrade 1 Marcela Silva da Cunha 1 Maria Inês Carsalade Martins 1 Carina Pacheco Teixeira 5

Saúde da Família: Limites e possibilidades para uma abordagem integral de atenção primária à saúde no brasil

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1 Núcleo de EstudosPolítico-Sociais em Saúde,Departamento deAdministração ePlanejamento em Saúde,Escola Nacional de SaúdePública Sérgio Arouca,Fundação Oswaldo Cruz.Av. Brasil 4036/1001,Manguinhos. 21045-210Rio de Janeiro [email protected] Centro de Estudos SociaisAplicados, UniversidadeFederal Fluminense.3 Escola Nacional de SaúdePública, Fundação OswaldoCruz.4 Secretaria Municipal deSaúde de Mesquita, Rio deJaneiro.5 Núcleo de EstudosPolítico-Sociais em Saúde,Escola Nacional de SaúdePública, Fundação OswaldoCruz.

Saúde da família: limites e possibilidadespara uma abordagem integral de atenção primária à saúde no Brasil

Family health: limits and possibilitiesfor an integral primary care approach to health care in Brazil

Resumo O artigo analisa a implementação da Es-tratégia Saúde da Família (SF) e discute suas poten-cialidades em orientar a organização do SUS no Bra-sil, a partir da análise da integração da SF à redeassistencial e atuação intersetorial, aspectos cruciaisde uma atenção primária abrangente. Foram reali-zados quatro estudos de caso de municípios com ele-vada cobertura por SF (Aracaju, Belo Horizonte,Florianópolis e Vitória) tendo como fontes: entre-vistas semi-estruturadas com gestores e inquéritoscom profissionais de saúde e de famílias cadastradas.A análise da integração destacou a posição da Estra-tégia SF na rede assistencial, os mecanismos de inte-gração e a disponibilidade de informações para con-tinuidade da atenção. A intersetorialidade foi pes-quisada quanto aos campos de atuação, abrangên-cia, setores envolvidos, presença de colegiados, e ini-ciativas das equipes. Os resultados apontam avançosna integração da SF à rede assistencial, propiciandoo fortalecimento dos serviços básicos como serviçosde procura regular e porta de entrada preferencial,todavia permanecem dificuldades de acesso à aten-ção especializada. As iniciativas intersetoriais forammais abrangentes quando definidas como politicaintegrada do governo municipal para a construçãode interfaces e cooperação entre os diversos setores.Palavras-chave Atenção primária à saúde, Inte-gração, Intersetorialidade

Abstract The article analyzes the implementation ofthe Family Health Strategy (FH) and discusses itspotential to guide the organization of the UnifiedHealth System in Brazil, based on the integration ofFH to the health care network and intersectorial ac-tion, crucial aspects of a comprehensive primaryhealth care. Four case studies were carried out incities with high FH coverage (Aracaju, Belo Hori-zonte, Florianópolis e Vitória), using as sources: semi-structured interviews with managers and surveyswith health care professionals and registered fami-lies. The integration analysis highlighted the posi-tion of FH Strategy in the health services network,the integration mechanisms and the availability ofinformation for continuity of care. Intersectorialitywas researched in relation to the fields of action, scope,sectors involved, presence of forums, and team initi-atives. The results point to advances in the integra-tion of FH to the health care network, strengtheningbasic services as services that are regularly soughtand used as a preferential first contact services, al-though there are still problems in the access to spe-cialized care. The intersectorial initiatives werebroader when defined as integrated municipal gov-ernment policy for the construction of interfaces andcooperation between the diverse sectors.Key words Primary health care, Integration, Inter-sectoriality

Ligia Giovanella 1

Maria Helena Magalhães de Mendonça 1

Patty Fidelis de Almeida 1

Sarah Escorel 1

Mônica de Castro Maia Senna 2

Márcia Cristina Rodrigues Fausto 3

Mônica Mendonça Delgado 4

Carla Lourenço Tavares de Andrade 1

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A atenção primária à saúde (APS) como estratégiapara orientar a organização do sistema de saúde eresponder as necessidades da população exige oentendimento da saúde como direito social e o en-frentamento dos determinantes sociais para pro-movê-la. A boa organização dos serviços de APScontribui à melhora da atenção com impactospositivos na saúde da população e à eficiência dosistema1,2.

Na América Latina, nos anos oitenta, a abor-dagem seletiva de atenção primária foi preconiza-da por agências multilaterais, tornando-se hege-mônica a implementação de uma cesta mínima deserviços, em geral de baixa qualidade3. Recente-mente, países da região vêm desenvolvendo políti-cas para fortalecer a APS como estratégia para or-ganizar os serviços e promover a equidade em saúderenovando uma abordagem abrangente de APS4.

No Brasil, nos anos noventa, a concepção deAPS também foi renovada. Com a regulamenta-ção do Sistema Único de Saúde baseada na univer-salidade, equidade e integralidade e nas diretrizesorganizacionais de descentralização e participaçãosocial, para diferenciar-se da concepção seletiva deAPS, passou-se a usar o termo atenção básica emsaúde, definida como ações individuais e coletivassituadas no primeiro nível, voltadas à promoçãoda saúde, prevenção de agravos, tratamento e rea-bilitação.

O Saúde da Família, inicialmente voltado à ex-tensão de cobertura, com foco em áreas de maiorrisco social e implantado a partir de 1994 comoum programa paralelo “limitado, bom para ospobres e pobre como eles”5, aos poucos adquiriucentralidade na agenda do governo, convertendo-se em estratégia estruturante dos sistemas munici-pais de saúde e modelo de APS.

Em 2006, a Política Nacional de Atenção Bási-ca, acordada entre gestores federais e representan-tes das esferas estaduais e municipais na Comis-são Intergestores Tripartite, ampliou o escopo daatenção básica e reafirmou a SF como estratégiaprioritária e modelo substitutivo para organiza-ção da atenção básica. Ponto de contato preferen-cial e porta de entrada de uma rede de serviçosresolutivos de acesso universal, a atenção básicadeve coordenar os cuidados na rede de serviços eefetivar a integralidade nas diversas dimensões6.

Hoje, a SF está presente em 94% dos municí-pios (29 mil equipes e cobertura populacional de48% - o que corresponde a 92 milhões de pessoas).Todavia, as experiências em curso revelam grandediversidade dos modelos assistenciais vis-à-vis asimensas disparidades inter e intra regionais e desi-gualdades da sociedade brasileira. Assim, nem sem-

pre a ampliação de cobertura correspondeu àmudança do modelo assistencial preconizada pelaEstratégia7,8.

O artigo apresenta parte dos resultados de pes-quisa que objetivou analisar a implementação daSF com foco na integração à rede assistencial e àatuação intersetorial em quatro capitais, para dis-cutir as potencialidades da SF como estratégia deatenção primária em saúde abrangente.

Implementar uma concepção abrangente ouintegral de APS implica a construção de sistemasde saúde orientados pela APS, articulados em rede,centrados no usuário e que respondam a todas asnecessidades de saúde da população. A integraçãoao sistema é condição para se contrapor a umaconcepção seletiva da APS como programa parale-lo com cesta restrita de serviços de baixa qualida-de, dirigido a pobres4. E a atuação intersetorial écondição para que a APS não se restrinja ao pri-meiro nível, mas seja base a toda a atenção, con-templando aspectos biológicos, psicológicos e so-ciais, incidindo sobre problemas coletivos nos di-versos níveis de determinação dos processos saú-de-enfermidade, promovendo a saúde.

Problemas relacionados à integração do siste-ma e coordenação dos cuidados vêm recebendoatenção nas reformas dos sistemas de saúde, cominiciativas para fortalecer a APS9. As propostas defortalecimento da posição da atenção primária nosistema decorrem do reconhecimento da fragmen-tação na oferta dos serviços de saúde e da preva-lência de doenças crônicas, que exigem maior con-tato com os serviços de saúde e outros equipa-mentos sociais em um contexto de pressão pormaior eficiência10,11.

A integração da rede de serviços na perspectivada APS envolve a existência de um serviço de procu-ra regular, a constituição dos serviços de APS comoporta de entrada preferencial, a garantia de acessoaos diversos níveis de atenção por meio de estraté-gias que associem as ações e serviços necessáriospara resolver necessidades menos frequentes e maiscomplexas12 com mecanismos formalizados de re-ferência e a coordenação das ações pela equipe deAPS, garantindo o cuidado contínuo13. Integração,coordenação e continuidade são processos inter-relacionados e interdependentes que se expressamem vários âmbitos: sistema, atuação profissional eexperiência do paciente ao ser cuidado.

Por sua vez, a atuação intersetorial é condiçãopara uma APS abrangente, pois a APS envolve acompreensão da saúde como inseparável do de-senvolvimento econômico e social, significando anecessidade de enfrentamento dos determinantessociais dos processos saúde-enfermidade, o que

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exige articulação com outros setores de políticaspúblicas14.

A ação intersetorial busca superar a fragmen-tação das políticas públicas e é entendida como ainteração entre diversos setores no planejamento,execução e monitoramento de intervenções paraenfrentar problemas complexos e necessidades degrupos populacionais15. Em saúde, a articulaçãointersetorial é imprescindível para incidir sobre osdeterminantes sociais do processo saúde-enfermi-dade e promover a saúde. Os resultados de saúdealcançados por meio da intersetorialidade são maisefetivos do que o setor saúde alcançaria por si só16,17.Na perspectiva da APS no âmbito municipal, a atu-ação intersetorial se processa na ação comunitáriano território, articulação na SMS e articulação depolíticas municipais.

A atuação intersetorial é prevista na SF. Estaatribuição é reafirmada na PNAB de 2006, que ori-enta ao “desenvolvimento de ações intersetoriais,integrando projetos sociais e setores afins, volta-dos para promoção da saúde”6.

Metodologia

Os estudos de caso correspondem a uma estraté-gia de pesquisa alicerçada em metodologias quan-titativa e qualitativa e diversas fontes de informa-ção convergentes, trianguladas para responder àsperguntas da investigação18,19.

Os municípios foram selecionados intencional-mente de modo a escolher experiências consolida-

das. Os critérios de seleção e as características dascidades selecionadas estão na Tabela 1.

A integração e a intersetorialidade foram anali-sadas nos âmbitos da gestão do sistema de saúde,do processo de trabalho dos profissionais e docuidado recebido pelas famílias. Foram levanta-das informações dos gerentes municipais com rea-lização de entrevistas (77); profissionais das equi-pes SF com questionários auto-aplicados (1.336) efamílias cadastradas com aplicação de questioná-rios estruturados nos domicílios (3.312 famílias)(Tabela 2).

Para a seleção de famílias cadastradas, foi de-senhado plano de amostragem do tipo conglome-rado em três estágios de seleção: equipe SF comounidade primária de amostragem, agente comu-nitário de saúde (ACS) como unidade secundáriae, como unidade elementar, a família cadastrada.A pesquisa de campo foi realizada entre maio esetembro de 2008.

Este artigo articula a análise de indicadores se-lecionados, cotejando resultados dos estudos comgestores, profissionais e famílias, nos dois eixos deanálise: integração da rede assistencial e atuaçãointersetorial.

Para análise da integração, foram investigadasdiferentes dimensões. Na organização do sistemade saúde, buscou-se identificar e examinar a im-plementação de instrumentos de integração comocentrais de regulação, monitoramento de filas deespera e estratégias de atendimento à demanda es-pontânea. Nos processos de trabalho, foi exami-nado o uso dos instrumentos de integração e per-

Tabela 1. Critérios de seleção e características dos municípios caso estudados, 2007.

Critérios/Características

Ano de implantação do PSF – Tempo de implantaçãomínimo de 5 anosCobertura populacional do PSF > de 50%Número de ESF implantadas*Número de UBSGrau de institucionalização da estratégia20

Presença de práticas inovadoras preliminarmenteidentificadas**

População municipal 2007Região do paísHabilitação em gestão plena do sistema municipal

Aracaju

1998

86,7%127 (128)50ConsolidadaAcolhimento

505.286NordesteSim

BeloHorizonte

2002

69,6%484 (504)145ConsolidadaAcolhimentoIntegraçãoda rede2.399.920SudesteSim

Florianópolis

1998

71,3%84 (84)48Transição avançadaUSF campo deprática paragraduação406.564SulNão

Vitória

1998

60,1%56(62)30Transição avançadaIntersetorialidadeAdesão AMQ

317.085SudesteNão

Fonte: Nupes/Daps/Ensp/Fiocruz. Pesquisa Saúde da Família, quatro estudos de caso, 2008.* Entre parênteses, maior número de ESF registradas no SIAB até fevereiro de 2008. Outros dados, dezembro de 2007.** A partir de entrevistas com gestores federais.

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cepção dos profissionais sobre porta de entrada egarantia de acesso à atenção especializada. Na ex-periência de recebimento de cuidado, foi verificadaa existência de serviço de procura regular e a cons-tituição da USF como serviço de primeiro contato.

Na análise da intersetorialidade, foram identi-ficadas estratégias de articulação intersetorial de-senvolvidas e o papel desempenhado pela Estraté-gia SF. A atuação intersetorial do Executivo muni-cipal foi apreendida desde a perspectiva da Secre-taria Municipal de Saúde e de gestores de outrassecretarias identificadas como tendo maior articu-lação com a SMS. As dimensões de análise priori-zadas foram: campos de atuação; abrangência daintervenção; setores envolvidos nos níveis local(ESF) e central (SMS e outras secretarias); existên-cia e funcionamento de fóruns colegiados; e temas/problemas de intervenção intersetorial.

Resultados

Integração da Estratégia SFà rede assistencial

Os resultados foram organizados em dois cam-pos: a posição da Estratégia na rede e os mecanis-mos de integração, destacando o uso de tecnologi-as de informação.

Posição da Estratégia SF na rede assistencial

Nos municípios estudados, a Estratégia SF foiadotada com a perspectiva de mudança do mode-lo assistencial na atenção básica, com a constitui-ção da ESF como porta de entrada preferencial,visando à constituição de um sistema integrado deserviços de saúde (Tabela 3).

Os municípios implementaram as ESF nas uni-dades básicas tradicionais e construíram novas

unidades para a implantação da SF em áreas semoferta. Observa-se esforço para superar a duplici-dade de modelos assistenciais na atenção básica, natentativa de transformar os centros de saúde emunidades modelares de SF. Em parte das unidades,os especialistas da atenção básica funcionam comoprofissionais de suporte para as equipes SF do cen-tro de saúde. Para os gestores, esta medida permi-tiu definir uma lógica comum de organização daatenção básica, evitando a dissonância entre dife-rentes propostas assistenciais (Tabela 3).

A regionalização do sistema municipal é tam-bém uma estratégia para garantia de acesso à médiacomplexidade e integração da rede das quatro cida-des, investindo-se na formação de centros de especi-alidades médicas e serviços de pronto-atendimentoregionalizado para fornecer suporte na média com-plexidade às unidades de atenção básica circunscri-tas aos territórios de abrangência (Tabela 3).

Os serviços de atenção primária têm se configu-rado como importante fonte de cuidado regular eporta de entrada preferencial nos municípios estu-dados. Mais de 70% (em Belo Horizonte, 85%) dasfamílias cadastradas buscam o mesmo serviço desaúde para assistência ou prevenção de saúde. Den-tre estes, indicaram como serviço de primeiro conta-to e procura regular o centro de saúde e/ou a uni-dade de SF: 75% (Belo Horizonte), 70% (Vitória),70% (Aracaju) e 50% (Florianópolis) (Tabela 3).

Menores proporções de moradores que estive-ram doentes nos últimos trinta dias informaram terbuscado atendimento nas unidades de SF ou centrode saúde, alcançando mais de 50% dos casos apenasem Belo Horizonte, município no qual a preocupa-ção em articular o atendimento das demandas es-pontânea e programada envolve diversas estratégiase o atendimento à demanda espontânea é realizadodiariamente. A menor proporção foi em Florianó-polis (28%), onde parte das USF atende grupos nãoprioritários somente uma vez por semana.

Tabela 2. Questionários com profissionais e famílias por município.

Questionários

MédicosEnfermeirosAux/Técnicos de enfermagemACSTotal de profissionaisFamíliasTotal de respondentes

Aracaju

566660

150332800

1.132

Belo Horizonte

727589

170406900

1.306

Florianópolis

617072

140343789

1.132

Vitória

355043

127255822

1.077

Total

224261

264587

1,3363,3124.647

Fonte: Nupes/Daps/Ensp/Fiocruz. Pesquisa Saúde da Família, quatro estudos de caso, 2008.

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Os profissionais das equipes SF também reco-nhecem os serviços de atenção básica como a por-ta de entrada preferencial. Mais de 80% dos médi-cos e enfermeiros nas quatro cidades concorda-ram com a afirmativa “A população procura pri-meiro a Unidade de SF quando necessita de atendi-mento de saúde” (Tabela 3).

Mecanismos de integração da rede

Nos municípios, a integração da rede assisten-

cial para garantia da atenção especializada é preo-cupação presente nas ações e discursos dos gesto-res. Uma das principais estratégias identificadaspara integrar a atenção básica à média complexi-dade nos quatro casos foi a implantação de cen-trais informatizadas de regulação (Tabela 4).

Belo Horizonte, Florianópolis e Vitória opta-ram pelo SISREG, sistema de informação on-linedisponibilizado pelo DATASUS/MS, para gerenci-ar e operar centrais de regulação, desde a rede deatenção básica à especializada e hospitalar, visan-

Tabela 3. Posição da Estratégia Saúde da Família na rede assistencial, segundo gestores profissionais e usuários, quatrograndes centros urbanos, 2008.

Indicadores

GestoresPorta de entrada preferencial propostaImplementação das ESF nos Centros de SaúdepreexistentesProfissionais médicos de especialidades básicas comoapoio às ESFEstratégias de atendimento à demanda espontânea

Regionalização do sistema municipal de saúde

Regionalização de serviços de pronto-atendimentoRegionalização de policlínicas/ centros de especialidades

FamíliasPercentual de famílias cadastradas que procuram omesmo serviço de saúde para assistênciaou prevenção de saúde 1

Percentual de famílias que indicam o Centro deSaúde ou Unidade de Saúde da Família como serviçode procura regular 1

Centro de Saúde (CS)Unidade de Saúde da Família (USF)Total CS + USF

Percentual de moradores que estiveram doentes nosúltimos 30 dias atendidos no Centro de Saúde ouUnidade de Saúde da Família 2

ProfissionaisPercentual de médicos e enfermeiros que concordarammuito/concordaram com a afirmativa “A populaçãoprocura primeiro a Unidade de Saúde da Famíliaquando necessita de atendimento de saúde”

Aracaju

ESFESF nos centros

de saúdeSim

Acolhimento eatendimento

diárioOito regionais

de saúdeParcialParcial

76,4

32,936,769,641,1

92,6

Belo Horizonte

ESFESF nos centros

de saúdeSim

Acolhimento eatendimento

diárioNove regionais

de saúdeSimSim

85,0

41,033,674,652,4

89,1

Florianópolis

ESFESF nos centros

de saúdeSim

Acolhimento eatendimento

semanalCinco regionais

de saúdeParcial

Sim

73,8

30,619,750,328,1

87,8

Vitória

ESFESF nos centros

de saúdeSim

Acolhimento eatendimento

diárioSeis regiões de

saúdeNãoSim

75,6

31,837,469,247,8

83,5

Fonte: Nupes/Daps/Ensp/Fiocruz. Pesquisa Saúde da Família, quatro estudos de caso, 2008.1 Famílias com serviço de procura regular: n= 611 em Aracaju, n = 763 em Belo Horizonte, n= 588 em Florianópolis, n = 623 em Vitória. Em Aracaju,Belo Horizonte e Florianópolis, a elevada proporção de usuários que indicou o Centro de Saúde como serviço de procura regular decorre dodesconhecimento da denominação SF para o CS de seu bairro, dado que a implantação de equipes SF foi realizada na grande maioria das unidadespreexistentes denominadas de centro de saúde.2 Moradores doentes que procuraram serviços de saúde nos últimos trinta dias: n=214 em Aracaju, n= 248 em Belo Horizonte, n=203 em Florianópolis,n= 188 em Vitória.

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do maior controle dos fluxos e otimização no usodos recursos. Aracaju implantou o Terminal deAtendimento ao SUS, vinculado ao cartão SUS.

A implantação do SISREG possibilitou a mar-cação imediata de exames e consultas especializa-das, para procedimentos com oferta suficiente, adefinição de prioridades clínicas e o monitoramentodas filas de espera. Quando o paciente é remetido àfila eletrônica, a partir da classificação de riscos emalto, médio ou baixo em função do diagnóstico, édefinida a prioridade para atendimento. O sistemapossibilita à equipe SF acompanhar o percurso dousuário. Ainda como resultados da implantaçãodo SISREG, foram mencionados pelos gestoreslocais: diminuição do número de faltosos às con-sultas especializadas, diminuição das filas e tempode espera, possibilidade de redistribuir cotas entrecentros de saúde, contratação de oferta em funçãoda demanda, análise dos encaminhamentos e mai-or imparcialidade no controle das agendas.

Belo Horizonte se destaca nas iniciativas de ar-ticulação da rede. Além do sistema de regulaçãoinformatizado, a SMS incentiva a criação de co-missões de regulação nos centros de saúde, comfluxo de estabelecimento de critérios de prioriza-ção ascendente partindo do centro de saúde.

As estratégias de integração da rede e regulaçãodo acesso à atenção especializada informadas pe-los gestores são confirmadas pelos profissionais.A maioria dos médicos e enfermeiros das equipesSF nos quatro municípios reconhece a existênciadas centrais de marcação de consultas especializa-das (Tabela 4).

A efetividade das ferramentas de integração écondicionada pela oferta. Os gestores das quatrocidades relatam insuficiência de oferta da redemunicipal para atender à demanda por atençãoespecializada, produzindo filas de espera.

A facilidade de agendamento e agilidade no aten-dimento na percepção dos profissionais foram ti-dos como indicadores de garantia de acesso à aten-ção especializada. A facilidade para realizar agenda-mentos para serviços de média complexidade é dife-renciada entre os casos estudados. 43% (Aracaju) e49% (Florianópolis ) dos médicos conseguiam rea-lizar sempre ou na maioria das vezes o agendamen-to; em Belo Horizonte, a proporção foi de 81% (Ta-bela 3). Os melhores resultados em Belo Horizontepodem ser atribuídos a uma melhor organizaçãodo sistema e disponibilidade de oferta. Nos quatrocasos, a maior dificuldade está no acesso a procedi-mentos de apoio à diagnose e terapia. Metade ou

Tabela 4. Indicadores de integração da Estratégia Saúde da Família à rede assistencial, quatro grandes centros urbanos, 2008.

Indicadores

Ferramenta de regulação das consultasespecializadasMonitoramento de filas de esperaPercentual de médicos e enfermeiros querelataram existência de uma central de marcaçãode consultas especializadasPercentual de médicos que afirmaram conseguirrealizar sempre/na maioria das vezes oagendamento para outros serviços

Ambulatórios de média complexidade Serviço de apoio diagnóstico e terapia Maternidade Internação

Percentual de médicos que estimaram ser de 3meses e mais o tempo médio de espera dopaciente referenciado para consultas especializadas% de médicos e enfermeiros que indicam entre osprincipais problemas para a integração: listas deespera que impedem o acesso adequado ao cuidadoespecializado e hospitalarImplantação de prontuários eletrônicosnas USF/USB

Aracaju

TAS – Terminal deAtendimento ao SUS

Parcial90,2

42,937,557,228,544,6

81,1

Não

Belo Horizonte

SISREG

Local e central99,3

80,655,586,133,361,1

91,8

Sim

Florianópolis

SISREG

Local e central89,3

47,642,775,424,681,8

91,6

Sim

Vitória

SISREG

Local e central92,9

71,542,974,325,734,3

89,4

Não

Fonte: Nupes/Daps/Ensp/Fiocruz. Pesquisa Saúde da Família, quatro estudos de caso, 2008.

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menos dos médicos informou conseguir realizar oagendamento desses procedimentos (Tabela 4).

A garantia do agendamento nem sempre in-corre em maior agilidade de atendimento. O tem-po médio de espera para consultas especializadasde três meses ou mais foi estimado por 82% dosmédicos (Florianópolis), 61% (Belo Horizonte),45% (Aracaju) e 34% (Vitória). Por outro lado, oagendamento para a maternidade foi relatado pormais de 70% dos médicos em três cidades, o queindica melhora do acesso para atenção ao parto.Garantir outras internações ainda não está sob agovernabilidade dos profissionais SF. Menos deum terço dos médicos das ESF informaram conse-guir agendá-las (Tabela 4).

Na avaliação de mais de 80% dos médicos eenfermeiros das equipes SF dos quatro municípi-os, as longas listas de espera são o principal pro-blema para a integração da rede (Tabela 4).

A disponibilidade e transferência de informa-ções são fundamentais à regulação e continuidadeda atenção, o que é reconhecido pelos gestores quevêm informatizando as unidades e implantandoprontuários eletrônicos, presentes em Florianópolise Belo Horizonte (Tabela 4). Belo Horizonte tem sedestacado na informatização das informações ena implantação de estratégias de TICs para supor-te às equipes.

Nos quatro municípios, a oferta própria deexames e consultas especializadas está sendo inse-rida nos sistemas informatizados de regulação emarcação; contudo, um desafio à integração darede e garantia de acesso à atenção especializada é apresença de diferentes prestadores de serviços desaúde. As capitais estudadas dispõem de serviçosespecializados estaduais que não foram descentra-lizados e atendem a todo o estado.

Os obstáculos à integração são maiores emVitória e Florianópolis, que há pouco assumirama responsabilidade pela gestão da atenção especi-alizada. Em Vitória, os gestores admitem limitesreais à integração da APS na rede assistencial devi-do à baixa governabilidade do município sobreparte dos serviços especializados, sob gestão esta-dual. A Programação Pactuada e Integrada mos-tra-se insuficiente para reduzir a fragmentação entreas redes estadual e municipal, pois não há garanti-as de que as cotas programadas de procedimentossejam distribuídas entre as unidades de saúdemunicipais. A compra de serviços especializadosda rede privada para superar a insuficiência da ofer-ta municipal é uma estratégia nem sempre bem-sucedida, seja pela inexistência de determinadasespecialidades, seja pela baixa remuneração ofere-cida pela tabela SUS.

Outro obstáculo destacado pelos gestores foi aausência de políticas do Ministério da Saúde parao setor da média complexidade. Os gestores argu-mentam que, apesar das dificuldades, os municí-pios têm políticas para garantir a atenção secun-dária, o mesmo não ocorrendo no nível federal,que não dispõe de política e financiamentos especí-ficos à média complexidade.

Intersetorialidade

Nas quatro cidades, são desenvolvidas estraté-gias de ação intersetorial por meio de fóruns co-muns com diversidade de escopo (Quadro 1). Vi-tória e Belo Horizonte destacam-se pela presençade políticas municipais integradas de abrangênciamunicipal. Em Vitória foi adotado um modelo degestão pública integrada que estabeleceu a interse-torialidade como diretriz à construção das políti-cas públicas locais. Há um Comitê de Políticas So-ciais, integrado pelos gestores das secretarias mu-nicipais, que visa à articulação e integração entreos setores, e Câmaras Territoriais, fóruns perma-nentes de gestores e técnicos das diversas institui-ções públicas, que buscam promover a interfaceentre os setores para otimizar os recursos.

Entre as iniciativas do Executivo de Vitória,destaca-se o Projeto Terra Mais Igual, um progra-ma de desenvolvimento social e urbano e de pre-servação ambiental em áreas ocupadas por popu-lação de baixa renda, que visa promover uma me-lhor qualidade de vida, através de ações sociais,ambientais, obras e serviços públicos. A SF partici-pa do projeto e os gestores municipais percebemmaior resolutividade nas políticas quando há inte-gração com a SF, em particular com o ACS, postoque a capilaridade dos serviços de saúde facilita adifusão de iniciativas.

Em Belo Horizonte, foram criadas CâmarasIntersetoriais Permanentes de Políticas Sociais ePolíticas Urbanas, coordenadas por secretáriosmunicipais e subordinadas ao prefeito, que discu-tem o orçamento e a integração das políticas. Fo-ram instituídos grupos executivos para temas es-pecíficos e Núcleos de Intersetoriais Regionais, quereúnem saúde, educação e assistência social para oacompanhamento do Bolsa Família. Há dois pro-gramas de governo com articulação intersetorial:o BH Cidadania e o programa Vila Viva, que rea-lizam ações integradas em territórios com maiorvulnerabilidade.

Na perspectiva dos gerentes de saúde de BeloHorizonte, o território local é a base das iniciativasde articulação intersetorial e as ESF têm papel vitalna identificação de situações de risco social e de

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saúde e potencial para consolidar redes locais deserviços sociais.

A SMS de Aracaju desenvolve ações articuladaspara enfrentar problemas específicos, como o com-bate à dengue, e se integra principalmente com assecretarias de educação e assistência social (Qua-dro 1). Entre as iniciativas de articulação interseto-rial, temas como mobilidade urbana e meio ambi-ente e as experiências do Orçamento Participativoe do Núcleo de Prevenção à Violência Doméstica.No nível local, a assistente social lotada na USF éelo de ligação com o setor de serviço social, facili-tando o acompanhamento das condicionalidadesem saúde do Bolsa Família.

Em Florianópolis, o desenvolvimento de açõesintersetoriais é recente e com base em projetos es-

pecíficos. Segundo os entrevistados, o municípiobusca articular as ações de saúde, educação e assis-tência social, sobretudo em relação ao idoso, cri-ança, população de rua e vigilância sanitária e am-biental. Mereceu destaque dos gestores a Comis-são de Promoção da Saúde Escolar, fórum queconta com representantes da SF, Educação, ONGse escolas, coordenado pelas secretarias de Educa-ção e Saúde.

A SF é apontada pelos gestores nas quatro ca-pitais como estratégia potencial ao desenvolvimen-to de ações intersetoriais; todavia, salientam que aparticipação do setor saúde nas iniciativas interse-toriais do Executivo municipal poderia ser amplia-da buscando-se um maior protagonismo.

A participação das ESF nas ações intersetoriais

Quadro 1. Articulação intersetorial nos quatro grandes centros urbanos. Brasil, 2008.

Aracaju

Dengue, violência,gravidez naadolescência, deficiênciafísica,mobilidadeurbana, meio ambiente

Projetos específicos

Secretarias municipaisde saúde, de educação,de assistência social,ministério público,universidade, limpezapública

Comitê de combate àdengue, núcleo sobreviolência, bolsa família,orçamento participativo

Setorial

Belo Horizonte

Orçamento participativo,Bolsa Família,vulnerabilidade social,dengue, fatores de risco paradoenças cardiovasculares,questão ambiental

Política municipal

Secretarias municipais desaúde, de educação, deassistência social, de políticaurbana

Câmaras intersetoriais depolíticas sociais, gruposexecutivos, grupo detrabalho Bolsa Família,núcleos gerenciais regionais,BH Cidadania, Projeto VilaViva

Municipal

Florianópolis

Questões relacionadasa grupos populacionaisespecíficos: idosos,crianças, população derua, plano diretormunicipal

Projetos específicos

Secretarias municipaisde saúde, de educação,de assistência social,universidade

Comissão de promoçãoda saúde escolar

Local

Vitória

Pobreza, desemprego,degradação do meioambiente, violência,acidentes de trânsito,gravidez naadolescência

Política municipal

Secretarias municipaisde saúde, educação,assistência social,cidadania e direitoshumanos, trabalho egeração de renda,cultura, esporte e lazer,segurança urbana eProjeto Terra MaisIgual

Comitê de políticassociais, câmarasterritoriais em todas asregiões da cidade,Projeto Terra MaisIgual, orçamentoparticipativo

Municipal

Fonte: Nupes/Daps/Ensp/Fiocruz. Pesquisa Saúde da Família, quatro estudos de caso.

Dimensões

Campos de atuação

Temas/problemasde intervençãointersetorial

Institucionalidade

Nível deabrangência

Setoresgovernamentaisenvolvidos

Fóruns ecolegiadosintersetoriais

Base deplanejamento

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nem sempre se dá. Metade ou menos dos profissi-onais das ESF nos quatro municípios participamde atividades conjuntas com outros setores para asolução de problemas da comunidade (Tabela 4).Em Vitória e Aracaju, os profissionais que maisparticipam de ações intersetoriais são enfermeiros(58% e 53%), em Belo Horizonte, ACS (34%) e,em Florianópolis, médicos (41%) (Tabela 5).

Entre os problemas encaminhados pelo ACSem atividades conjuntas no nível local com órgãospúblicos, o tema mais citado foi a escola/educa-ção, compatível com a integração de longa data nahistória da saúde pública brasileira. Também fo-ram citados a coleta de lixo, moradia, urbanismo eesgotamento sanitário e segurança (Tabela 5).

A baixa participação em atividades intersetori-ais é reconhecida pelas ESF como problema. Foielevado o percentual de médicos (>65%) nas qua-tro cidades que avaliam insatisfatória a capacida-de de mediação de ações intersetoriais para enfren-tar problemas da comunidade.

Discussão: SF – uma estratégiade atenção primária integral?

No cotejamento dos resultados, há que se consi-derar o desenho do estudo orientado à análise deuma intervenção em saúde pública complexa que,ao buscar avaliar as potencialidades da SF comoestratégia de APS integral, selecionou experiênciasconsolidadas e exitosas na avaliação de gestoresfederais, limitando a generalização dos resultados.Destaca-se a heterogeneidade de modelos de aten-ção básica implementados nos municípios brasi-leiros8. A discussão dos resultados permite, entre-tanto, identificar potencialidades e limites dessaintervenção.

A análise da integração da rede e da intersetoria-lidade em experiências consolidadas da SF evidenciaa complexidade de promover mudanças do modeloassistencial e a permanência desses desafios na fasede consolidação e indica descompassos no alcancedesses dois objetivos pela gestão municipal.

Superar os efeitos da fragmentação que persis-tem na rede de serviços de saúde do SUS e potencia-lizar a APS como porta de entrada preferencial ecentro ordenador e integrador das redes de servi-ços e das ações de promoção, prevenção e recupe-ração da saúde é um dos principais desafios se-gundo os gestores municipais.

São distintos os mecanismos de implementa-ção e os resultados alcançados na experiência decada município, mas os quatro casos apontam àconstrução de estratégias para superar o histórico

insulamento das ações de atenção básica. Nosmunicípios estudados, os esforços para integrar aEstratégia SF à rede de serviços foram avaliadospositivamente pelos gestores e reconhecidos pelosprofissionais e famílias.

Uma rede integrada pressupõe uma porta deentrada preferencial que organize o acesso21. Nasquatro estudadas, é a partir dos serviços de aten-ção básica com SF que se estrutura o atendimentoe o acesso aos serviços especializados com efetiva-ção de uma porta de entrada preferencial em servi-ços de APS resolutivos (via lista ampliada de medi-camentos e maior acesso a exames complementa-res). Os resultados são coerentes com outros estu-dos que identificaram um bom desempenho da SFcom elevado escore para a porta de entrada22,23. Aexistência de um serviço de primeiro contato, pro-curado regularmente a cada vez que o paciente ne-cessita de atenção em caso de doença ou acompa-nhamento rotineiro, facilita a formação de víncu-los e a coordenação dos cuidados3.

O reconhecimento de que nenhuma instânciaisolada dos sistemas de saúde possui a totalidadedos recursos e competências necessárias para re-solver as necessidades de saúde de uma populaçãoimplica a constituição de redes integradas, que re-conhecem a interdependência e, muitas vezes, osconflitos entre atores sociais e organizações distin-tas em situações de poder compartilhado21.

Entre as iniciativas mais exitosas de integraçãoda rede, destacam-se investimentos em tecnologiasde informação e comunicação, com a implantaçãode sistemas informatizados de regulação e prontuá-rios eletrônicos. A criação de serviços especializa-dos próprios municipais representa esforço empre-endido pelos gestores locais para garantia de aten-ção secundária. A constituição de fóruns integra-dos de discussão entre a atenção básica e especi-alizada, a telemedicina e o apoio matricial tambémsão estratégias com potencialidades para superar adistância entre gerentes e profissionais dos dois ní-veis assistenciais e a fragmentação da rede.

Os quatro municípios apresentam em comuma decisão política do gestor municipal em implan-tar a Estratégia SF para fortalecer a atenção básicano sistema de saúde municipal, fator imprescindí-vel à expansão da SF. Mas, além da vontade políti-ca, as experiências dos municípios apontam que aimplementação da SF como centro ordenador eintegrador da rede de serviços de saúde é facilitadapelo legado institucional.

Belo Horizonte e Aracaju foram habilitadaspelas normas nacionais de operacionalização doSUS, como gestores plenos do sistema de saúde,por um lado, exigindo a gestão municipal do siste-

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ma nos diferentes níveis de complexidade e, poroutro lado, permitindo-lhes maior autonomia nacondução de processos articuladores da rede deserviços de saúde. Florianópolis e Vitória apenasem 2007, com o Pacto de Gestão, assumiram com-promissos de gestão da atenção especializada. Apre-sentam maiores dificuldades, identificadas pelosgestores, para a organização da rede devido à bai-xa governabilidade sobre os serviços especializa-dos do SUS em seu território.

A garantia de acesso à atenção especializada en-frenta uma série de dificuldades na implementação.Destaca-se, contudo, o avanço na regulação das

referências e no monitoramento das filas de esperacom a implantação de ferramentas informatizadasde regulação. Estudo de 2002 mostrava que os ges-tores já reconheciam o gargalo da atenção especi-alizada; todavia, não lhes era possível mensurar asfilas de espera, muito menos regulá-las24.

Entre os obstáculos à constituição de rede, des-taca-se a insuficiente oferta de atenção especializa-da, agravada pela baixa integração com prestado-res estaduais, ainda responsáveis em alguns muni-cípios por grande parte dos serviços de média com-plexidade. Maior interação pessoal entre genera-listas e especialistas foi outro desafio destacado para

Indicadores

Percentual de profissionais da ESF que participamde atividades voltadas para solução de problemasda comunidade junto de outros órgãos públicos ouentidades da sociedade

MédicosEnfermeirosACSAuxiliares/técnicos de enfermagem

Tipos de problemas encaminhados pelos ACS querealizam atividades com outros setores¹

Escola/educaçãoColeta de lixoEsgotoUrbanismo (ruas, praças, iluminação pública)ÁguaMoradiaSegurança públicaGeração de renda /trabalhoTransporte

Percentual de médicos que avaliam insatisfatória acapacidade de mediação de ações intersetoriaispara enfrentar problemas da comunidade

Percentual de famílias que teve conhecimento dereuniões organizadas pela ESF para discutirproblemas de saúde do bairro2

Percentual de famílias convidadas nos últimos 12meses pelo ACS a participar de reuniões ouatividades relativas a problemas do bairro3

Aracaju

30,453,050,733,3

68,456,639,544,730,344,750,035,513,2

67,8

25,3

22,0

Belo Horizonte

12,524,034,130,3

58,629,322,424,113,819,019,020,712,1

70,8

30,5

13,8

Florianópolis

41,038,633,629,2

100,046,838,336,234,029,825,521,314,9

72,2

27,9

24,6

Vitória

37,158,048,034,9

37,825,217,311,811,023,6

9,415,7

6,3

64,7

42,5

32,2

Fonte: Nupes/Daps/Ensp/Fiocruz. Pesquisa Saúde da Família, quatro estudos de caso, 2008.¹ ACS que afirmaram participar de atividades voltadas para solução/encaminhamento de problemas: n = 76 em Aracaju; n= 58 em BeloHorizonte; n=47 em Florianópolis n=61 em Vitória.² Famílias que conhecem o PSF: n= 672 em Aracaju, n=760 em Belo Horizonte, n=596 em Florianópolis, n=680 em Vitória.³ Famílias que conhecem o ACS de sua área: n=527 em Aracaju, n= 631 em Belo Horizonte, n=394 em Florianópolis, n=590 emVitória.

Tabela 5. Indicadores de atuação intersetorial da Estratégia Saúde da Família, quatro grandes centros urbanos,2008.

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maior integração dos processos de trabalho, su-perando relações hierárquicas e o isolamento en-tre atenção básica e especializada.

Não menos importante foi o discurso recor-rente dos gestores municipais em relação à ausên-cia de políticas federais para a atenção especializa-da. A construção de redes integradas passa neces-sariamente por maior investimento em serviços demédia complexidade, nível assistencial consideradopelos entrevistados “o grande gargalo do SUS”. Éimperativo avançar nas promessas de integralida-de por meio da necessária desmercantilização dosníveis de atenção mais complexos ou, no mínimo,de certo equilíbrio nas relações entre mercado e es-fera pública na provisão dessas ações à população.

No que concerne às iniciativas intersetoriais, asexperiências são mais diversificadas. A atuação in-tersetorial é mais abrangente quando responde auma política municipal e a uma modalidade inte-grada de atuação governamental diferente de pro-jetos específicos ou emergenciais. A intersetoriali-dade é um processo dinâmico e complexo, esbar-rando sempre na tradição setorial, competitiva ehierarquicamente verticalizada que marca as orga-nizações e serviços públicos no país25.

Ainda que se reconheça que os esforços daspráticas intersetoriais das ESF sofrem limitações,devido a uma posição hierarquicamente inferior,atuando no nível local, estando na dependência dacondução dos problemas por níveis superiores26 eque o papel das ESF de mediadoras de ações inter-setoriais está condicionado da ação articuladorado governo municipal27, os resultados indicam queesta não é uma prática disseminada. Menos de umterço à metade dos profissionais desenvolvem açõesvoltadas para solução de problemas da comuni-dade. Os resultados pífios apontados pelas famíli-as para ação comunitária das ESF são coerentescom resultados de outros estudos que mostrambaixo escore para a “orientação comunitária” porusuários da SF22,23, ainda que melhores do queàqueles das UBS tradicionais22.

Alguns gestores apontam a necessidade de re-conhecer os limites de atuação das ESF uma vezque a articulação intersetorial deve ser uma estra-tégia estruturante da ação do executivo municipal.Todavia, este não deveria ser impeditivo ao empre-endimento de ações comunitárias pelas ESF. Alémda insuficiência de formação adequada dos profis-sionais, a constatação de descompasso entre osavanços da integração e a incipiência da ação inter-setorial em parte dos casos estudados impõemperguntar sobre um possível antagonismo. Nosgrandes centros urbanos, os esforços necessáriosà garantia de acesso à atenção à saúde de qualida-

de e oportuna com organização de um sistemamunicipal complexo esgotariam as possibilidadesde investir na articulação intersetorial como inicia-tiva da SMS?

A resposta requer investigação específica; con-tudo, pode-se apontar que os espaços de governa-bilidade do setor saúde na intervenção sobre osdeterminantes sociais não estão predeterminados.A extensão na qual o setor saúde toma a iniciativae lidera a intervenção intersetorial depende do tipode problema a enfrentar e deve ser flexível17.

Nas experiências pesquisadas, distintos cenári-os se apresentaram com diferentes ênfases confe-ridas pelos gestores conforme os temas de inter-venção. Ainda que com limites, o aumento das in-terfaces entre a saúde e os outros setores para aconstrução da cidadania com o avanço das abor-dagens intersetoriais nas políticas de governo mu-nicipais expresso na criação de câmaras para a ges-tão da política local e nas experiências de orçamen-to participativo ampliaram a visão sobre os deter-minantes sociais da saúde.

Os obstáculos a superar para garantia de aten-ção integral são diversos – financeiros, oferta in-suficiente e formação inadequada de recursos hu-manos28,29. Todavia, os estudos realizados indicamas potencialidades da SF ser implementada em umaperspectiva de APS abrangente, condicionada poradaptações locais do modelo com ampliação dosrecursos assistenciais e profissionais na UBS. Porsua vez, a atuação intersetorial para se efetivar in-corre em iniciativas mais gerais do Executivo mu-nicipal que respaldem as ações locais das ESF. Asprincipais iniciativas intersetoriais identificadastranscenderam a Saúde, eram lideradas por ou-tros setores e correspondiam a uma política de-senvolvimento social municipal integrada.

Tomados como parâmetros para análise daimplementação de uma APS abrangente, integra-ção e intersetorialidade são desafios, nem sempreconvergentes, que persistem na fase de consolida-ção da Estratégia SF.

Colaboradores

L Giovanella, MHM Mendonça, PF Almeida e SEscorel participaram na concepção geral, pesquisae redação final; MCM Senna, MM Delgado e MSCunha colaboraram na pesquisa e redação da di-mensão intersetorialidade; PF Almeida, MCR Faus-to e CP Teixeira, na pesquisa e redação da dimen-são integração; CLT Andrade e MIC Martins, nametodologia e pesquisa.

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Artigo apresentado em 17/11/2008Aprovado em 22/12/2008Versão final apresentada em 07/02/2009

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