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REFLEXÕES ACERCA DO TERMO DE COMPROMISSO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA Ricardo Augusto Soares Leite Advogado da União em Brasília, lotado na Consultoria-Geral da União. I – Introdução Na defesa dos interesses difusos e coletivos, o art. 5º, § 6º da Lei 7.347/85 outorgou aos órgãos públicos que possuem legitimidade para ajuizar ação civil pública a possibilidade de tomarem do autor de comportamento lesivo a direitos transidividuais o compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais. II – Natureza Jurídica A título de prelúdio, deve-se consignar que o termo de ajustamento de conduta não possui a natureza jurídica de transação, uma vez que o órgão público que firmou o acordo não pode realizar concessões mútuas de direito indisponível, circunstância que desfigura um dos elementos constitutivos da transação, segundo dispõe o artigo 840 do Código Civil. Com efeito, além da natureza indisponível dos interesses difusos e coletivos, cumpre ressaltar, ainda, que o princípio da legalidade impede que dirigente de órgão público formule termo de compromisso que não resguarde de forma total os bens metaindividuais, reforçando o argumento de que o compromisso firmado não possui a natureza jurídica de transação. Em nosso entendimento, o compromisso preliminar do termo de compromisso de ajustamento de conduta possui natureza dúplice. Caso o compromisso seja tomado de particulares, seu fundamento se aproxima do poder de polícia, já que se impõe aos administrados uma limitação individual em benefício do interesse coletivo. Caso seja firmado entre órgãos públicos, assemelha-se, nesse caso, a um convênio, no qual apenas uma das partes terá obrigações. III – Objetivo do termo de ajustamento de conduta e a possibilidade de invalidá-lo. Solucionada a questão acerca da natureza jurídica do instituto em comento, impende observar que sua finalidade primordial é a de buscar a solução extrajudicial de litígios envolvendo direitos difusos e coletivos, já que possibilita a cessação de comportamento tido como lesivo aos interesses transidividuais sem a necessidade da propositura de ação judicial. Não obstante isso, mesmo havendo o ajuizamento de demanda judicial, o termo de compromisso pode ser celebrado - situação de difícil 1

Agu reflexoesajustamentodeconduta

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REFLEXÕES ACERCA DO TERMO DE COMPROMISSODE AJUSTAMENTO DE CONDUTA

Ricardo Augusto Soares LeiteAdvogado da União em Brasília,

lotado na Consultoria-Geral da União.

I – Introdução

Na defesa dos interesses difusos e coletivos, o art. 5º, § 6º da Lei 7.347/85 outorgouaos órgãos públicos que possuem legitimidade para ajuizar ação civil pública apossibilidade de tomarem do autor de comportamento lesivo a direitos transidividuais ocompromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais.

II – Natureza Jurídica

A título de prelúdio, deve-se consignar que o termo de ajustamento de conduta nãopossui a natureza jurídica de transação, uma vez que o órgão público que firmou oacordo não pode realizar concessões mútuas de direito indisponível, circunstância quedesfigura um dos elementos constitutivos da transação, segundo dispõe o artigo 840 doCódigo Civil.

Com efeito, além da natureza indisponível dos interesses difusos e coletivos, cumpreressaltar, ainda, que o princípio da legalidade impede que dirigente de órgão públicoformule termo de compromisso que não resguarde de forma total os bensmetaindividuais, reforçando o argumento de que o compromisso firmado não possui anatureza jurídica de transação.

Em nosso entendimento, o compromisso preliminar do termo de compromisso deajustamento de conduta possui natureza dúplice. Caso o compromisso seja tomado departiculares, seu fundamento se aproxima do poder de polícia, já que se impõe aosadministrados uma limitação individual em benefício do interesse coletivo. Caso sejafirmado entre órgãos públicos, assemelha-se, nesse caso, a um convênio, no qualapenas uma das partes terá obrigações.

III – Objetivo do termo de ajustamento de conduta e a possibilidade de invalidá-lo.

Solucionada a questão acerca da natureza jurídica do instituto em comento,impende observar que sua finalidade primordial é a de buscar a solução extrajudicial delitígios envolvendo direitos difusos e coletivos, já que possibilita a cessação decomportamento tido como lesivo aos interesses transidividuais sem a necessidade dapropositura de ação judicial. Não obstante isso, mesmo havendo o ajuizamento dedemanda judicial, o termo de compromisso pode ser celebrado - situação de difícil

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ocorrência na prática - pois o próprio ingresso nas vias judiciais já denota a falta deentendimento entre as partes.

O mencionado dispositivo legal determina, ainda, que o termo de ajustamento deconduta deverá conter penalidades, caso haja seu descumprimento, outorgando-lhe anatureza de título executivo extrajudicial. Logicamente, referida qualidade somente seaplica aos compromissos preliminares do termo de ajustamento de conduta, uma vez queo termo de ajustamento de conduta tomado no curso da ação judicial será homologadoem juízo e, conseqüentemente, terá a natureza de título executivo judicial.

O atributo de título executivo extrajudicial aos compromissos extrajudiciais deajustamento de conduta possibilita aos órgãos públicos que firmaram este acordo autilização do processo de execução - previsto no Livro I do Código de Processo Civil -para que se cumpra o teor do que fora estabelecido, bem como para que se execute assanções estipuladas.

Diante da força executiva do compromisso de ajustamento de conduta - em geralfirmado pelo Ministério Público - alguns administradores públicos acreditam que referidoacordo geraria uma situação de definitividade, não sendo permitido seu descumprimento,mesmo que suas cláusulas estejam dissociadas da proteção do interesse público.

Segundo noticia Hugo Nigro Mazzili1 , incumbiu ao administrativista italiano RenatoAlessi em sua obra “Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano” distinguir ointeresse público em primário e secundário. O primeiro significa o interesse da sociedadeou da coletividade como um todo. O segundo é o modo pelo qual os órgãos daadministração vêem o interesse público, permitindo-se inferir que nem sempre a políticagovernamental atende o real interesse da comunidade.

Ocorre que a noção de interesse público não possui o caráter estático. Ao revés, édinâmico e transitório, como são os valores sociais. Um comportamento que outrorapoderia ser qualificado como lesivo aos interesses difusos e coletivos pode,hodiernamente, mostrar-se infenso aos bens metaindividuais. Ou, ainda, um interessetido como secundário em um dado momento pode, posteriormente, vir a ser consideradocomo interesse primário.

Aliás, uma hipótese que esclarece essa transitoriedade do interesse público podeser vislumbrada no caso dos alimentos manipulados geneticamente, chamados detransgênicos. De início, como não se conhecia seus efeitos no organismo humano,decidiu-se evitar sua comercialização, com arrimo na doutrina da “precaução geral”.Entretanto, com o aprofundamento das pesquisas nessa área, poder-se-ia chegar àconclusão que estes produtos não gerariam qualquer conseqüência nociva à saúdehumana. Aliás, novos estudos poderiam comprovar que esses alimentos possuem teornutritivo superior aos demais, sendo altamente benéfico o consumo dos mesmos.

Mesmo após estas descobertas científicas, caso o órgão público que firmou o termode ajustamento de conduta se recusasse a modificar as cláusulas estabelecidas a fim dese permitir a comercialização destes produtos, surge o questionamento se nessa hipóteseo compromisso entabulado estaria resguardando o interesse público, ou melhor, estariaprotegendo o interesse público primário, diante da mudança de paradigma verificada.

1 Mazzili, Hugo Nigro, a defesa dos interesses difusos em juízo – 14ª ed. rev., ampl. e atual. – SãoPaulo: Saraiva, 2002.

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Não resta dúvida de que a resposta negativa se impõe.

Nesse contexto, parece-nos que o gestor público poderia descumprir o acordocelebrado, sem incidir nas punições especificadas no termo de ajustamento de conduta.

O primeiro argumento que sustenta esta assertiva encontra-se no textoconstitucional, mais especificamente no art. 5º, XXXV, que estabelece que “a lei nãoexcluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Com efeito, a garantia inserta no referido dispositivo constitucional, além deassegurar o direito de ação, outorga ao Poder Judiciário atribuição exclusiva de julgar sehouve ou não lesão ou ameaça a direito de qualquer espécie.

Nesse sentido, o termo de ajustamento de conduta apenas geraria uma presunçãorelativa de que o comportamento vedado pelo acordo é realmente contrário ao interessepúblico. Entretanto, isto não pode gerar uma situação de imutabilidade, impondo avinculação perpétua do administrador público, mesmo tendo este vislumbrado que ocontexto fático atual autoriza a realização de política governamental que anteriormente sesupunha lesiva aos interesses transidividuais. Por isso, incumbe ao Poder Judiciáriodefinir se o termo de compromisso de ajustamento de conduta possui legitimidade,protegendo verdadeiramente o interesse público primário.

Diante disso, poderá o administrador público que não concordou com as cláusulasestipuladas no compromisso de ajustamento de conduta propor ação judicial – maisespecificamente a ação anulatória, prevista no artigo 849 do Código Civil – visando tornarsem efeito o compromisso celebrado e, conseqüentemente, as cominações estipuladas.

O administrador público poderá, ainda, descumprir o que fora ajustado e aguardarque o órgão legitimado proponha ação executiva para tornar efetivas as cominaçõesimpostas e as cláusulas impostas no termo de ajustamento de conduta.

Nesse caso, exsurge a possibilidade de o gestor público utilizar-se de ação deconhecimento denominada de embargos à execução, suscitando qualquer matéria quelegitime seu comportamento, porquanto a cognição do juiz nessa espécie de ação éplena. Somente nos títulos executivos judiciais haverá limitação material do objeto dosembargos, conforme dispõe o art. 741 do Código de Processo Civil. Caberá, assim, aoadministrador público provar que seu comportamento não está lesionando interessedifuso ou coletivo, demonstrando, ainda, que a restrição imposta no termo decompromisso de ajustamento de conduta não resguarda o interesse público e tampoucoprotege os interesses difusos e coletivos.

IV – Conclusão

Verifica-se, assim, que caso o administrador público não obtenha êxito na rescisãodo termo de compromisso de ajustamento público perante o órgão público que tenhafirmado o referido acordo, este poderá valer-se de ação anulatória do termo decompromisso de ajustamento de conduta ou realizar o comportamento que supõe serinócuo aos interesses difusos e coletivos, aguardando a propositura de ação executivapara que venha expor suas justificativas nos embargos à execução.

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