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LUIZA BELLOTTO DE VITO A LINHA TÊNUE ENTRE O DISCURSO DE ÓDIO E O JORNALISMO OPINATIVO Londrina 2016

A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

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LUIZA BELLOTTO DE VITO

A LINHA TÊNUE ENTRE O DISCURSO DE ÓDIO E O JORNALISMO OPINATIVO

Londrina

2016

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LUIZA BELLOTTO DE VITO

A LINHA TÊNUE ENTRE O DISCURSO DE ÓDIO E O JORNALISMO OPINATIVO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de

Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina.

Orientador: Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos

Londrina

2016

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LUIZA BELLOTTO DE VITO

A LINHA TÊNUE ENTRE O DISCURSO DE ÓDIO E O JORNALISMO OPINATIVO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de

Comunicação Social - Jornalismo da Universidade Estadual de Londrina.

____________________________________

Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos

Universidade Estadual de Londrina

____________________________________

Prof. Fábio Alves Silveira

Universidade Estadual de Londrina

____________________________________

Prof. Márcia Neme Buzalaf

Universidade Estadual de Londrina

Londrina, _____de ___________de _____.

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AGRADECIMENTOS

Chegar até o momento da entrega do TCC não foi fácil. Foram

quatro anos de batalha, trabalhos, correria, insônia e fadiga. Mas também foram

quatro anos de gargalhadas, ombro amigo, cerveja pós-aula, premiações e

conhecimento.

Por todo esse trajeto e pelo nascimento desse trabalho, gostaria de

agradecer, primeiramente, aos meus pais e ao meu irmão, por todo apoio e força

que eu recebi ao longo desse período.

Pela raça da minha mãe que, mesmo doente, segurava a bronca

para que eu pudesse estudar, trabalhar e, dessa forma, crescer; pela torcida e

carinho do meu pai, que sempre se manteve de braços abertos; pelo

companheirismo do meu irmão; e pelo pulso firme do meu padrasto e madrasta, os

quais eu tive a sorte imensa de ter como segundos pais.

Agradeço também ao meu orientador, por aceitar entrar na loucura

que é estudar discursos de ódio e por acredidar que é possível fazer um jornalismo

mais digno, ético e humano.

Aos componentes da banca, que se prontificaram a me ajudar no

que eu precisasse e a ler um trabalho que foi tão difícil de ser feito. Em especial à

professora Márcia, que, ao dizer “escolha algo que te incomode”, me deu asas e

impulso para conseguir escrever o trabalho.

Aos meus colegas de sala, que nunca deixaram a boa vibração e o

bom humor serem rebaixados e que sempre deram força um para o outro,

principalmente nos momentos de maior correria. Eu não podia ter entrado em uma

sala melhor.

À minha companheira Bruna, que não popou esforços para trazer a

felicidade mais perto de mim, e à minha grande amiga e irmã Bárbara, que sempre

esteve presente nos momentos mais terríveis e mais maravilhosos dos meus anos

de graduação.

Por último, agradeço à Deus, pela oportunidade e permissão de

entrar em contato com tanto amor, aprendizado e evolução nesses últimos anos.

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“Não há futuro em uma sociedade cujo pensamento comum nasce na televisão fascista”.

Márcia Tiburi.

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VITO, Luiza Bellotto. A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo

opinativo. 2015. 57 folhas. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em

Comunicação Social – Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina,

2015.

RESUMO

O objetivo deste trabalho é analisar o discurso de ódio travestido de opinião dentro do jornalismo e estudar a interferência dele dentro da sociedade. O trabalho também

busca trazer exemplos contemporâneos desse tipo de jornalismo e as consequências de sua existência para os telespectadores, ouvintes ou leitores. A

partir de comparações entre comentários de jornalistas, o trabalho utiliza alguns autores para se basear na hipótese de que o jornalismo opinativo deve existir de forma ética, sem que haja nenhum discurso ofensivo ou de ódio nas entrelinhas

dele. Palavras-chave: Preconceito. Jornalismo. Ódio. Ética. Opinião. Sheherazade.

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VITO, Luiza Bellotto. A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo

opinativo. 2015. 57 folhas. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em

Comunicação Social – Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina,

2015.

ABSTRACT

The aim of this study is to analyze the hate speech disguised of opinion within the journalism and to study its interference in the society. The work also seeks to bring contemporary examples of its type of journalism and the consequences for viewers,

listeners or readers, from its existence. By making comparisons between comments of journalists, the paper uses some authors for basing the assumption that the

opinionated journalism should exist in an ethical form, without any offensive or hateful speech on its lines.

Palavras-chave: Preconception. Journalism. Hate. Ethics. Opinion. Sheherazade.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 08

2 ÓDIO E PRECONCEITO ................................................................................................. 10

2.1 RACHEL SHEHERAZADE E O DISCURSO DE ÓDIO ............................................................ 10

2.2 O SENTIMENTO DE ÓDIO .................................................................................................. 11

2.3 LINCHAMENTOS ................................................................................................................. 12

2.4 UMA ANÁLISE PSICOLÓGICA ............................................................................................. 15

3 RACHEL SHEHERAZADE E O DISCURSO DE ÓDIO NO JORNALISMO ........... 18

3.1 O MENINO NO POSTE ........................................................................................................ 18

3.2 O OUTRO LADO DA MOEDA ............................................................................................... 24

3.3 O BRASIL TEM CURA ......................................................................................................... 26

4 O CENÁRIO JORNALÍSTICO ........................................................................................ 35

4.1 JORNALISMO OPINATIVO ................................................................................................... 35

4.2 O ALCANCE DO JORNALISMO ........................................................................................... 39

4.3 JORNALISMO, PRECONCEITO E FASCISMO ....................................................................... 41

4.4 OUTROS EXEMPLOS DE PRECONCEITO ............................................................................ 47

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 51

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 53

ANEXOS ................................................................................................................................ 55

ANEXO A – Captura de imagens da jornalista Rachel Sheherazade no momento dos

comentários analisados..............................................................................................54

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1 INTRODUÇÃO

Trabalhar em cima de discursos de ódio não é fácil. As mãos

não fluem facilmente no teclado. O estômago, por vezes (muitas vezes), dói. As

palavras de perplexidade viraram corriqueiras nos últimos quatro meses de

criação. Assistir, incansáveis vezes, a alguns vídeos absurdos que continham

racismo, elitismo e preconceitos de forma geral me tiraram noites de sono.

Porém, ao mesmo tempo em que tudo isso era grandiosamente difícil e

perigoso para minha saúde mental (e física também), era extremamente

gratificante ver nascer um trabalho de tal importância, discutindo o que é

necessário ser discutido.

Antes de escolher o tema estudado, vaguei por outros vários

assuntos, passando por assessoria de imprensa, manifestações de 2013,

jornalismo no Facebook e Marcha das Vadias. Nenhum deles me inquietava

tanto. Então, aceitando um conselho, fui atrás daquilo que me incomodava,

daquilo que me tirava do sério.

O objetivo deste trabalho foi provar que ainda hoje não há

separação clara entre um e outro conceito: o jornalismo opinativo e o discurso

de ódio. A pesquisa aborda também questões sobre o jornalismo opinativo em

si, trazendo explanações teóricas sobre esse gênero, e sobre o fascismo,

defendendo que os discursos podem e devem ser livres, parciais e opinativos

desde que não firam os direitos humanos e que não se confundam com

discurso de ódio.

O trabalho é dividido em cinco capítulos. O primeiro consiste na

introdução. O segundo traz conceitos sobre o sentimento de ódio, dando um

panorama sobre esse tema ao leitor. Além disso, traz a prática de linchamento

como consequência desse sentimento, fazendo uma rápida análise psicológica

acerca do assunto.

Em seguida, o terceiro capítulo traz reflexões sobre o objeto de

estudo do trabalho: a jornalista Rachel Sheherazade, âncora do jornal SBT

Brasil. Para isso, abordei, analisei e discuti dois comentários dela, ambos

veiculados no ano de 2014. O primeiro é sobre um jovem, menor infrator, negro

e pobre que foi amarrado nu a um poste. O segundo é sobre um jovem cantor

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estrangeiro (Justin Bieber), também menor infrator, porém branco e rico. Há

uma clara diferença de tratamento da jornalista para com os dois casos,

mesmo os dois contendo infrações como furtos, pichações e desacato.

O quarto capítulo elucida e discute o conceito de jornalismo

opinativo e o alcance do jornalismo em si, trazendo outros exemplos de

discurso de ódio dentro da área. Já o quinto capítulo, traz à tona as minhas

considerações sobre o assunto ao longo do período estudado.

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2 ÓDIO E PRECONCEITO

2.1 RACHEL SHEHERAZADE E O DISCURSO DE ÓDIO

As mil e uma noites é um livro mitológico do século IX, da

cultura árabe, o qual retrata a história de uma rainha que, para se livrar da

morte, conta uma história tão longa ao seu marido que dura mil e uma noites. O

fato curioso se dá porque, antes da princesa Sherazade se casar com o rei, ele

foi traído por sua ex-mulher. Ao descobrir a traição e matar tanto ela quanto

seu amante, o rei jurou que se casaria com uma mulher diferente a cada noite

e a mataria na manhã seguinte. Quando Sherazade, a princesa, foi a escolhida

da noite, para fugir do final trágico, passa a contar uma história hipnótica e

encantadora a ele, fazendo com que, a cada manhã, seu marido desistisse de

matá-la.

Hoje, no século XXI, outras formas de manipulação e hipnose

são realizadas. Um exemplo disso é Rachel Sheherazade, uma das mais

polêmicas jornalistas do momento. Sua forma conservadora e retrógrada de

pensar a coloca nessa posição.

Assim como a princesa Sherazade, ela também é contadora de

histórias hipnóticas. Com falas construídas em cima de discursos de ódio e

opiniões preconceituosas, Sheherazade conseguiu uma infinidade de

seguidores nas redes sociais e sua audiência é grandiosa. Ela contabiliza mais

de 1,6 milhões de curtidas no Facebook e mais de 590 mil seguidores no

Twitter. Enquanto muitos a adoram, outros discordam de suas posições e

comentários racistas, machistas e homofóbicos.

Nascida em João Pessoa, na Paraíba, e formada em

Comunicação Social pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), atua hoje

como âncora do Jornal da Manhã, na Rádio Jovem Pan, e do telejornal SBT

Brasil, da emissora SBT. Também já trabalhou como repórter de afiliadas das

emissoras Record e Globo e como assessora de imprensa no Tribunal de

Justiça da Paraíba.

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Seu primeiro comentário que ganhou visualização nacional

contém uma crítica ao Carnaval do Brasil1. Após ser disseminado e viralizado

na internet, a jornalista chamou a atenção de Silvio Santos, dono da atual

emissora onde trabalha. A partir desse momento, passou a angariar cada vez

mais fãs e ganhar mais espaço para “vomitar” discursos antiéticos sem que

seja devidamente advertida.

2.2 O SENTIMENTO DE ÓDIO

“Amar se aprende amando. Odiar se aprende odiando”: é o que

diz Márcia Tiburi (2015, p.33), em seu livro Como Conversar com um Fascista.

Mas como sintetizar esse afeto? O ódio é um dos sentimentos mais antigos

que a humanidade conhece. Porém, além de sua historicidade datar dos

primórdios da vida na Terra, ele é pouco estudado e os filósofos sempre

tiveram uma dificuldade grande em conceituá-lo.

Ultimamente, ouve-se muito falar sobre discurso de ódio e o

preconceito pautado nesse sentimento, mas pouco se tem esclarecido sobre

suas raízes. Logo, antes de chegarmos ao cerne da discussão sobre o discurso

de ódio deferido na atualidade, em grande parte, pela mídia brasileira, é

importante que esclareçamos, na medida do possível, o conceito de ódio e qual

sua influência na psique do homem.

O papel deste trabalho não será resolver a questão do conceito

de ódio, muito menos minimizar a dificuldade de achar um pesquisador que

traga esse dado de forma mais clara. Por conta disso, trabalharemos com o

conceito que mais casar com o que temos em mente, a fim de tornar a

pesquisa mais inteligível e coerente.

De acordo com Roland Gori (2006), psicanalista e professor de

psicopatologia clínica na Universidade de Aix-Marseille, em seu artigo

“Realismo do Ódio”, “o ódio é realista, seu objeto é o real, ele recusa o

aparelho de linguagem onde o sujeito ora se encontra, ora se perde, nos

desfiladeiros da palavra”. Isso nos deixa muito clara a permeabilidade odiosa,

muitas vezes sem fundamento, nas falas de algumas pessoas como políticos,

1 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=oLmFQxsMbN4 >. Acesso em: 17 jan. 2016.

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formadores de opinião e jornalistas. Ou seja, há um objeto que é atacado por

esse sentimento e há um meio de tornar o ódio parte camuflada de um

discurso: a fala. Por meio da fala e da linguagem, é possível que haja

manipulação de sentimentos e afetos.

As ondas de amor e ódio que sustentam e abalam as sociedades

não podem ser controladas simplesmente, mas podem ser manipuladas. Esse controle é possível pela linguagem porque ela é a grande produtora de afetos. (TIBURI, 2015, p.35).

É óbvia, também, a ideia de que o sentimento do ódio e do

preconceito (que nada mais é do que o medo acoplado ao ódio do

desconhecido) não é inerente a essa parcela da população (jornalistas e

políticos). O ódio e o preconceito, sejam de classe, sexual, de gênero ou de

raça, permeiam a sociedade como um todo. Portanto, a discussão que aqui se

encontra visa não resolver o problema no geral, mas sim contrariar a mídia

atual que oferece a base para que essas práticas se perpetuem.

Mais do que cristalizar o ódio no cotidiano das pessoas, o

momento em que vivemos hoje permite que os cidadãos possam expor esse

ódio, sem que haja consequências legais ou morais. Isso não acontece apenas

com a população comum, mas também com pessoas públicas, jornalistas,

publicitários etc.

Há algo assustador no ódio contemporâneo. Não se tem vergonha dele, ele está autorizado hoje em dia e não é evitado. A estranha autorização para o ódio vem de uma manipulação não percebida a

partir de discursos e de dispositivos criadores desse afeto. (TIBURI, 2015, p.30).

Sendo assim, delimitando o trabalho apenas para a parte do

jornalismo em si, é necessário que combatamos a ideia de que o ódio pode ser

pautado e travestido de opinião.

2.3 LINCHAMENTOS

Os linchamentos não são uma novidade na sociedade brasileira. Há registros documentais de formas de justiçamento desse tipo no país já na primeira metade do século XVIII, antes mesmo que

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aparecesse a palavra que o designa. Os jornais brasileiros do final

do século XIX, aproximadamente a partir das vésperas da abolição da escravatura negra, trazem frequentes notícias de linchamentos nos Estados Unidos, mas também, no Brasil. Eram linchamentos de motivação racial, contra negros, mas também contra seus protetores brancos. Nessa época, a palavra linchamento já era de uso corrente no vocabulário brasileiro. (MARTINS, 1995).

O Brasil sempre teve uma cultura de “justiça pelas próprias

mãos”. Desde a época escravista, essa ideia é imposta por gente da elite, ou

seja, os senhores de engenho, que castigavam seus escravos por qualquer

motivo, do mais grave ao mais leve “pecado”, com chibatadas no tronco,

abandono, restrição de comida e, em alguns casos, até com a morte.

Aliás, a prática dos linchamentos é naturalizada desde muito

tempo. Um exemplo próximo, histórica e geograficamente, é de Tiradentes.

Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido por Tiradentes, era um dentista

mineiro, comerciante, militar e ativista político. Curiosamente, o apelido

“Tiradentes” veio da sua profissão de dentista, a qual ele abandonou quando

virou soldado.

Ele foi morto em 1792 por enforcamento e esquartejamento

pela monarquia portuguesa (sistema político da época). O motivo disso foi sua

grande participação na Inconfidência Mineira, movimento que pedia a

autonomia do estado de Minas Gerais e protestava contra os aumentos de

impostos. Para punir os líderes da revolta, os governantes decidiram dar um

“exemplo” do que poderia acontecer com quem continuasse indo contra suas

decisões.

O processo do linchamento, como podemos notar, foi tido

como exemplo para que a sociedade não fizesse aquilo que seria

“repreensível”. Ele também foi motivo de estudo de muitos filósofos e

sociólogos. Além disso, é óbvio que, antigamente, essa prática era muito mais

corriqueira e, mesmo que hoje cause espanto em alguns, era moralmente

aceita. Por esse motivo, podemos ter como certo o “avanço” que a humanidade

conquistou. Porém, mesmo que o linchamento não seja mais encarado da

mesma forma pela sociedade, ele ainda acontece, só não é tão explícito como

antes.

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O livro de Michael Foucault, Vigiar e Punir, traz diversos fatos e

análises sobre isso:

[Damiens fora condenado, a 2 de março de 1757], a pedir perdão publicamente diante da porta principal da Igreja de Paris [aonde devia ser] levado e acompanhado numa carroça, nu, de camisola,

carregando uma tocha de cera acesa de duas libras; [em seguida], na dita carroça, na praça de Greve, e sobre um patíbulo que aí será erguido, atenazado nos mamilos, braços, coxas e barrigas das pernas, sua mão direita segurando a faca com que cometeu o dito parricídio, queimada com fogo de enxofre, e às partes em que será atenazado se aplicarão chumbo derretido, óleo fervente, piche em fogo, cera e enxofre derretidos conjuntamente, e a seguir seu corpo será puxado e desmembrado por quatro cavalos e seus membros e corpo consumidos ao fogo, reduzidos a cinzas, e suas cinzas lançadas ao vento. (FOUCAULT, 1987, p.8) .

O parágrafo inicial do livro é chocante e descreve, em detalhes,

como eram as punições-exemplo da época. Mesmo que hoje já não exista

mais, explicitamente, tantas atitudes como essa, notam-se algumas

semelhanças com um dos casos relatados pela jornalista Rachel Sheherazade.

Inferimos, então, que estamos vivendo não na mesma barbárie que estava

instaurada no século XVIII, segundo o nosso olhar pós-moderno, mas em uma

“meia-barbárie”, o que já é suficientemente ruim para o século XXI.

Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, um arranjo de sofrimentos mais sutis, mais

velados e despojados de ostentação, merecerá tudo isso acaso um tratamento à parte, sendo apenas o efeito sem dúvida de novos arranjos com maior profundidade? (FOUCAULT, 1987, p.12).

Com o passar dos anos, foi-se diminuindo o ato público de

punir. Essas práticas foram desaparecendo e sendo substituídas por outros

meios, cada vez mais humanos (mesmo que a passos lentos) de fazer-se

justiça. “A confissão pública dos crimes tinha sido abolida na França pela

primeira vez em 1791, depois novamente em 1830 após ter sido restabelecida

por breve tempo; o pelourinho foi suspenso em 1789; a Inglaterra aboliu-o em

1837”. (FOUCAULT, 1987, p.13).

Mas, existem, ainda que em menor quantidade, casos

chocantes dessa violência hedionda. Violência que é fruto de uma

disseminação de ódio sem precedentes, difundida e acobertada, em diversas

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vezes, pela própria mídia, que ou tolera esse tipo de ação ou simplesmente

finge que não existe.

Fabiane Maria de Jesus, dona de casa, foi morta num linchamento no Guarujá em 2014. André Luiz Ribeiro, professor, escapou por pouco quando corria no Rio de Janeiro e foi confundido com um

assaltante. Outras pessoas foram linchadas em 2015. Já sabemos da banalidade da vida e da morte em nossa cultura. Mas o que autoriza uns e outros ao assassinato? O aval. (TIBURI, 2015, p.80).

Os contextos dos linchamentos contemporâneos são diferentes

dos antigos, mas preservam um mesmo princípio: a ideia de eleger alguém que

mereça ser exemplo para uma sociedade e, por meio de violência explícita,

atacá-lo em um ritual público que, no imaginário coletivo, eliminaria o mal e

traria uma espécie de redenção para aplacar a fúria coletiva.

2.4 UMA ANÁLISE PSICOLÓGICA

Segundo Sigmund Freud, em seu livro Psicologia das Massas

e Análise do Eu (2013), há uma diferença entre a psicologia do homem

individual e a psicologia do homem em grupo. A primeira se importa com seus

caminhos e decisões tomadas individualmente. Já a segunda interessa-se pelo

estudo do homem como membro de um grupo, seja étnico, racial, religioso,

profissional, entre outros. No livro, o autor discute o que é e como um grupo

consegue exercer uma influência tão grandiosa sobre um indivíduo citando

frases de outro autor: Le Bon.

De acordo com Le Bon, os indivíduos, dentro de seu grupo,

agem de forma diferente da qual agiriam se estivessem sozinhos:

[...] a mera circunstância de sua transformação numa massa lhes confere uma alma coletiva, graças a qual sentem, pensam e agem de um modo inteiramente diferente do que cada um deles sentiria, pensaria e agiria isoladamente. (LE BON apud FREUD, 2013, p.41).

Dessa forma, podemos entender como cada vez mais pessoas

têm se identificado com a atitude dos chamados – erroneamente – de

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“justiceiros”. Pessoas que eram consideradas neutras passam a concordar com

a ação por causa da defesa pública de uma jornalista. Isso levanta a questão

para a seguinte pergunta: será mesmo que o jornalismo não tem

responsabilidade por diversas ações e opiniões dos cidadãos?

Do mesmo jeito que o indivíduo sozinho não se mostra como

ele próprio (ou seja, as atitudes violentas que toma quando está em grupo já

estão dentro dele, apenas escondidas), ele também precisa que algo o una

com os outros indivíduos do grupo. Isso significa que todos os integrantes

devem pensar de uma mesma forma para conseguirem compatibilidade.

Essa maneira diferente de se pensar, que não se mostra

quando o indivíduo está sozinho, está compactada no inconsciente dele.

“Nossos atos conscientes se derivam de um substrato inconsciente criado na

mente” (LE BON apud FREUD, 2013, p.42).

A mudança de comportamento brusca desses indivíduos se dá

porque, em grupo, sentem-se donos de um poder inigualável, como se

estivessem acima da lei (já que não acreditam nela) e das punições. Eles se

rendem aos instintos do inconsciente.

Dentro dessa ideia, há também o líder do grupo. Esse líder

geralmente é aquele com que todos os outros indivíduos se identificam.

[...] o indivíduo é colocado sob condições que lhe permitem se

livrar dos recalcamentos de suas moções de impulso inconscientes. As qualidades, aparentemente novas que ele então mostra são justamente as manifestações desse inconsciente, que, afinal, contém tudo o que há de malvado na alma humana; o desaparecimento da consciência moral ou do sentimento de responsabilidade nessas circunstâncias não oferece qualquer dificuldade para nossa compreensão. (FREUD, 2013, p.44).

Esse líder pode ser um jornalista, que detém o conhecimento e

a palavra para manipular discretamente um grupo de milhares (quiçá milhões)

de brasileiros que assistem a ele. Sendo assim, a ideia de que a tolerância da

intolerância se dá por meio do jornalismo é irredutível.

Voltando a Le Bon, existem algumas causas para que os

integrantes do grupo obedeçam aos líderes. A primeira delas é o sentimento de

poder anteriormente mencionado; a segunda é o que chamamos de “contágio”,

que traz a ideia de que, a partir de um comando de alguém do grupo

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(geralmente o líder), todos os outros passem a pensar e agir da mesma forma;

e, por fim, a terceira causa é a “sugestionabilidade”.

A sugestionabilidade remonta a ideia de que, a partir de uma

sugestão (direta ou não) do líder, os indivíduos passam a agir da forma por ele

sugerida. Le Bon assemelha esse processo à hipnose e à fascinação, em que

os indivíduos praticam ações sem que entendam realmente que foram

induzidos a elas.

É isso o que o jornalismo faz com sua audiência. Dependendo

de sua vontade e ideologia editorial, o jornalismo induz (direta ou

indiretamente) seu leitor/ouvinte/telespectador a fazer aquilo que será melhor

para seu próprio proveito.

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3 RACHEL SHEHERAZADE E O DISCURSO DE ÓDIO NO JORNALISMO

3.1 O MENINO NO POSTE

É sabido que, hoje, muitos casos que passam na televisão

sobre linchamentos angariam cada vez mais defensores e seguidores. Em um

país onde essa cultura já era enraizada, mas que, de alguma forma, ainda tinha

sua resistência, a população tem se mostrado avessa à ideia de paz e justiça

legal.

O caso de maior repercussão foi em 2014, quando um menino

menor de idade, acusado de furto, foi violentado fisicamente e amarrado nu a

um poste. Ao mostrarem o caso no jornal SBT Brasil, a jornalista Rachel

Sheherazade apoiou a atitude, de maneira quase descarada, afirmando que, já

que as autoridades de segurança não faziam nada, era compreensível que um

grupo de civis o fizesse.

A tolerância por parte da jornalista e do jornalismo como um

todo (porque ela não é o único exemplo desse tipo de atitude) de atos

intolerantes nos leva a crer que a barbárie do “olho por olho, dente por dente”

está ressurgindo de forma mascarada.

Segue comentário2:

É, o marginalzinho amarrado ao poste era tão inocente que em vez de prestar queixa contra seus agressores, ele preferiu fugir,

antes que ele mesmo acabasse preso. É que a ficha do sujeito está mais suja do que pau de galinheiro. Num país que ostenta incríveis 26 assassinatos a cada 100 mil habitantes, que arquiva mais de 80% de inquéritos de homicídio e sofre de violência endêmica, a atitude dos vingadores é até compreensível. O estado é omisso, a polícia, desmoralizada, a justiça é falha. “Que que” resta ao cidadão de bem que, ainda por cima, foi desarmado? Se defender, é claro. O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem estado contra um estado de violência sem limite. E aos defensores dos

direitos humanos que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido! (informação verbal)

Esse texto mostra, do início ao fim, o tamanho do preconceito

implícito. Porém, se fizermos uma simples análise geral e impressionista sobre

2 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=p_F9NwIx66Y>. Acesso em: 20 dez. 2015.

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ele, pouco aprofundamento teríamos. A ideia é casar gestos, takes de câmera,

tom de voz, olhares e expressões com o discurso de ódio proferido. Alguns

takes de câmera aqui mencionados estão presentes em imagem no Anexo

para serem mais bem compreendidos.

Em toda a filmagem, a jornalista permanece, em sua maior

parte, quase de frente para a câmera, um pouco de perfil, com os ombros altos

e bem postos, como se estivesse acima do bem e do mal. Tanto sua

maquiagem quanto sua roupa estão bem carregadas, sendo, ambas, escuras,

em tons de preto, cinza e marrom. Isso é um fato importante de ser

mencionado, já que aprendemos em toda a graduação e até mesmo na própria

profissão jornalística que existem maneiras de nos portarmos, vestirmos e

utilizarmos a câmera como formas de manipulação do público.

O primeiro indício de preconceito está, coincidentemente (ou

não), na primeira palavra do texto: “marginalzinho”. A palavra “marginal” é

usada, em sua forma literal, para indicar alguém que vive à margem da

sociedade, excluída e com pouco acesso aos bens sociais e materiais. Ou seja,

pessoas de baixa renda e escolaridade. Mas, essa mesma palavra é usada,

pejorativamente, para designar pessoas que não valem nada e são

desonestas: os criminosos.

Então, podemos concluir que ela quis dizer que pessoas

marginalizadas pela sociedade são automaticamente criminosas. Para deixar a

situação ainda pior, ela usa essa palavra (que já é intolerante por si só) no

diminutivo, reduzindo ainda mais sua imagem. Faz, assim, que o menino

personificado como “marginalzinho” fosse imaginado e visto pela audiência

como o real problema da sociedade. Para caracterizar ainda mais a exclusão

do garoto, ao dizer essa palavra, Sheherazade aponta com o dedão para o

lado, como se desdenhando daquele ser.

Logo após, a jornalista fala a expressão “tão inocente” com

bastante ênfase no “tão”, dando um sorriso de deboche e fazendo um gesto de

grandeza com a mão, caracterizando seu sarcasmo ácido. Daí seguem

diversas outras palavras e expressões embebidas em olhares e tons divergindo

entre o irônico e o bravo, como a palavra “sujeito”, por exemplo, que

descaracteriza o menino como pessoa que tem nome, vida e dificuldades.

Nesse momento, Rachel Sheherazade aponta o dedo para a câmera, como se

Page 21: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

20

desse uma ordem aos espectadores e aos outros “marginaizinhos” que a

assistem. Fala como se desse um aviso.

“Ficha mais suja que pau de galinheiro” também entra no rol de

atrocidades verbais. Aumentando o tom de voz na expressão “mais suja” e

utilizando uma cena imaginária covardemente chula e baixa, como “pau de

galinheiro”, ela dá força para suas palavras e intimida quem discorda. Para dar

mais dramaticidade e manipular mais os telespectadores, o close up da câmera

é utilizado de forma mais lenta que o normal nesse momento da fala.

Após toda a destilação do ódio contra o menino amarrado ao

poste, a jornalista passa a falar sobre dados de violência no Brasil, impondo

sempre o dedo contra a câmera, como se desse ordem e fosse autoridade.

Porém, após essa introdução, como se não pudesse piorar, Sheherazade dá o

“xeque mate” de seu comentário da noite: ela defende as pessoas que

prenderam o “marginalzinho” ao poste. Ao falar a palavra “vingadores” (nome

dado aos criminosos que agrediram o menor de idade), levanta os ombros para

cima, como se utilizasse o apelido de forma menos depreciativa, quase tímida.

Essa ação faz com que o peso da palavra fique menor e menos

incompreensível. A jornalista justifica sua defesa dizendo que o estado é

omisso e falho e usa a expressão “ainda por cima”, com tom de indignação,

para falar que a população foi desarmada.

Para fechar com chave do ouro, Rachel Sheherazade

claramente critica os defensores dos direitos humanos, contrariando o código

de ética da própria profissão, usando um meio sorriso debochado, um tom

sarcástico e os olhos semicerrados, com a feição da mais pura maldade. Ao

dizer a frase “adote um bandido”, abre os braços e se delicia com a piada

infame e injusta sobre as pessoas que simpatizam com a ideia de que todo ser

humano merece o mínimo de dignidade, independente dos seus atos.

Após essa explanação sobre a jornalista e seu comentário,

podemos casar a fala de Le Bon perfeitamente: “Todos os sentimentos e o

pensamento se orientam na direção estabelecida pelo hipnotizador” (LE BON

apud FREUD, 2013, p.46). Ora, se ela diz que é tolerável que atitudes como

essas ocorram, certamente é porque quer que seus telespectadores pensem

da mesma maneira e, dependendo da situação, ajam da mesma maneira que

os “justiceiros” sem que sejam culpados por isso.

Page 22: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

21

Sua forma de conduzir o assunto e o comentário veiculado

tanto na televisão quanto na internet entram em acordo com o conceito de

“sugestionabilidade”. Segundo Tiburi (2015, p.78), “Nesse campo entram os

meios de comunicação controlando o modo de pensar e, portanto, de agir das

pessoas”.

A questão não deve ser tratada com extremismo. Não há como

tratar nem o menino que sofreu o linchamento como inocente e muito menos as

pessoas que fizeram isso com ele (e as que compactuaram com a atitude)

como pessoas do bem. A questão levantada é que, mesmo que o menino seja

culpado, não cabe a nenhum vingador (termo utilizado pela própria jornalista)

prendê-lo a um poste e violentá-lo. Consequentemente a isso, não cabe ao

jornalismo levantar essa questão e muito menos defendê-la.

Ainda um ponto importante de ser discutido é a notícia em si.

Qual era o fato? O furto do menino amarrado ao poste ou a ação dos homens

que o prenderam? Qual era a real necessidade do comentário da jornalista

sobre a agressão física e moral que o menino sofreu? O gancho da notícia era

a ficha criminal do garoto preso ao poste ou a agressão que ele sofreu? É

preciso refletir qual foi o objetivo das palavras proferidas por Sheherazade.

Essa discussão é muito importante, pois abre ou não espaço

para comentários preconceituosos e discursos de ódio. Não havia necessidade

de expor a intimidade de uma pessoa, principalmente por ser menor de idade,

independente de qual crime ela cometeu.

Após o comentário feito por ela, o Sindicato dos Jornalistas

Profissionais do Município do Rio de Janeiro divulgou uma nota de repúdio por

tal ato, alegando que sua postura fora preconceituosa, indo contra o exercício

de jornalista.

Segue nota na íntegra3:

O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro e a Comissão de Ética desta entidade se manifestam radicalmente contra a grave violação de direitos humanos e ao Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros

representada pelas declarações da âncora Rachel Sheherazade durante o Jornal do SBT.

3 Disponível em: <http://jornalistas.org.br/index.php/nota-de-repudio-do-sindicato-e-da-comissao-de-etica-contra-declaracoes-da-jornalista-rachel-sheherazade/>. Acesso em: 5 nov. 2015.

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22

O desrespeito aos direitos humanos tem sido prática

recorrente da jornalista, mas destacamos a violência simbólica dos recentes comentários por ela proferidos no programa de 04/02/2014 (http://www.youtube.com/watch?v=nXraKo7hG9Y). Sheherazade violou os direitos humanos, o Estatuto da Criança e do Adolescente e fez apologia à violência quando afirmou achar que “num país que sofre de violência endêmica, a atitude dos vingadores é até compreensível” — Ela se referia ao grupo de rapazes que, em 31/01/2014, prendeu um adolescente acusado de furto e, após acorrentá-lo a um poste, espancou-o, filmou-o e divulgou as imagens na internet.

O Sindicato e a Comissão de Ética do Rio de Janeiro solicitam à Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) que investigue e identifique as responsabilidades neste e em outros casos de violação dos direitos humanos e do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, que ocorrem de forma rotineira em programas de radiodifusão no nosso país. É preciso lembrar que os canais de rádio e TV não são propriedade privada, mas concessões públicas que não podem funcionar à revelia das leis e da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Eis os pontos do Código de Ética referentes aos Direitos

Humanos: Art. 6º É dever do jornalista: I – opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem

como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos;

XI – defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, adolescentes, mulheres, idosos, negros e minorias;

XIV – combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero,

raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza.

Art. 7º O jornalista não pode: V – usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância,

o arbítrio e o crime; Também atuando no sentido pedagógico que acreditamos

que deva ser uma das principais intervenções do sindicato e da Comissão de Ética, realizaremos um debate sobre o tema em nosso auditório com o objetivo de refletir sobre o papel do jornalista como defensor dos direitos humanos e da

democratização da comunicação.

Porém, para que atitudes como essa possam ser tratadas da

forma mais natural possível, sem que a audiência ou os próprios colegas de

profissão se lembrem do código de ética, o jornalismo tem buscado fazer com

que todas as pessoas que o assistem se sintam parte de um grupo, ou seja,

sintam-se parte de uma mesma ideia, o que dá sensação de proximidade do

jornalista com o público. Por isso, cada vez mais o jornalismo aposta na

linguagem pessoal. A partir do momento em que as pessoas se sentem parte

desse mesmo núcleo, fica mais fácil de controlá-las. Mesmo que saibamos que

Page 24: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

23

generalizações não existem (e nem devem existir), está claro que, no caso

estudado, é isso que acontece.

Após o caso ocorrido, Rachel Sheherazade foi convidada para

ir a diversos programas de TV e para dar diversas entrevistas em revistas e

programas de rádio, sempre para mostrar a boa moça que existe por trás de

todo esse discurso de ódio.

A clareza pode ser compreendida a partir do momento em que

a jornalista que defende tais atos não é diretamente prejudicada com eles. Ou

seja, dizer que o grupo de vingadores é compreensível é mais fácil que

defender os direitos de um jovem negro, pobre e acusado de furto. Mais fácil

porque defender que a culpa do jovem estar onde ele está é da sociedade é

uma tarefa árdua.

É necessário que jornalistas entendam que fazer um

comentário em horário nacional no meio de comunicação mais abrangente do

país tem suas consequências morais e éticas dentro da própria profissão. E

mais, é preciso que haja estudos e entendimentos sobre o assunto, para que,

futuramente, se possa romper com a ideia de que opinião é igual a discurso de

ódio.

Quem fala o que fala, sem nenhuma responsabilidade, por um lado deve ser legalmente questionado, por outro, é preciso trazer à luz quais condições, na cultura, possibilitam fazer surgir falas como essa que, na desqualificação do outro, praticam uma humilhação simbólica, e mais, estimulam o ódio e, assim, incitam à matança. (TIBURI, 2015, p.43).

Além disso, há um ódio que permeia todo o discurso da

jornalista. O ódio pode ser da cor do menino amarrado ao poste (racismo) ou

de sua classe social, mas talvez nem ela enxergue esse ódio, que já pode estar

emaranhado em sua personalidade e caráter devido a sua formação pessoal.

Dessa forma, podemos perceber que o ódio incrustrado nas falas de

Sheherazade não serve para destruir o alvo diretamente, mas sim para acabar,

lentamente, com todo e qualquer símbolo que vem dele.

Gori, citando um trecho de Le seminaire, de Lacan (1954),

afirma e embasa o argumento defendido acima.

Page 25: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

24

Existe uma dimensão imaginária do ódio, por isso a destruição do

outro é um pólo da própria estrutura da relação intersubjetiva. Lá mesmo, a dimensão imaginária é enquadrada pela relação simbólica, razão pela qual o ódio não se satisfaz com o desaparecimento do adversário. Se o amor aspira ao desenvolvimento do ser do outro, o ódio quer o contrário, ou seja, sua humilhação, sua derrota, seu desvio, seu delírio, sua negação detalhada, sua subversão. É nesse sentido que o ódio, como o amor, é uma carreira sem limite. (LACAN apud GORI, 2006).

3.2 O OUTRO LADO DA MOEDA

Porém, para se entender melhor o preconceito implícito dentro

de seu discurso, analisaremos outra fala da jornalista. A situação é parecida:

outro jovem que comete diversos delitos e é autuado e criticado por milhares

de pessoas. A história seria exatamente igual se não fossem as classes sociais

e a cor de pele de ambos os meninos: um é negro e pobre (o “marginalzinho do

poste”) e outro é rico, branco e famoso (o cantor Justin Bieber).

Quando a história é repercutida pelo telejornal SBT Brasil,

Rachel Sheherazade, novamente, dá sua opinião. Para a surpresa de todos

(nem tanto), a jornalista defende o cantor.

Segue comentário4:

Menino prodígio ou adolescente problema? Namoradinho romântico ou pegador contumaz? Um protótipo de bad boy, James Dean repaginado. Afinal, quem é hoje o astro Justin Bieber? No Instagram postou uma foto onde se lê a frase “você realmente me conhece?”. Bieber está irreconhecível. Cuspiu em fã, deixou o palco, pichou muro, dormiu com prostitutas. Prato cheio para os

paparazzi e fofoqueiros de plantão. Mas, atire a primeira pedra quem nunca foi um rebelde sem causa, quem nunca questionou seus valores, quem nunca se perdeu de si mesmo ou procurou se encontrar. Os médicos dizem que é normal, é a síndrome da adolescência. Para anônimos e famosos como o Justin, é fase de turbulência, hormônios em ebulição, conflitos, agressividade. É a busca da própria identidade. Pegue leve com o Justin. O menino está só crescendo.

Nesse segundo comentário, outros trejeitos e atitudes são

adotados pela jornalista Rachel Sheherazade. A edição e a produção também

são totalmente diferentes nesse caso: ela está vestida de branco, com a

maquiagem mais leve e o close up é quase despercebido, deixando de ser

4 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=EDBIirfsj78>. Acesso em: 3 nov. 2015.

Page 26: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

25

invasivo e agressivo. Desde o princípio, o sorriso benevolente e paciente está

estampado no rosto e as palavras são ditas de forma mais suave e lenta. Um

fato curioso desse vídeo é que, enquanto fala, usa muito pouco as mãos, sem

apontar o dedo e sem fazer gestos que diminuam ou engrandeçam o texto

declamado.

Ao dizer a frase “cuspiu em fã, deixou o palco, pichou muro,

dormiu com prostitutas”, ela usa um tom de bronca, porém, diferentemente do

vídeo em que tem o objetivo de ferir a integridade moral do acusado (o menino

amarrado ao poste), o tom é quase que maternal, como quem diz que são

atitudes feias, mas perdoáveis. Após citar todos os delitos cometidos pelo

cantor Justin Bieber, Sheherazade diz “mas” em tom mais alto do que o natural,

adiantando ao telespectador que a defesa do garoto branco e rico está por vir.

Como é de praxe em todos os seus comentários e argumentos,

a jornalista é sempre muito bem embasada com dados e/ou citações

importantes. Dessa vez não foi diferente. Para a defesa do cantor, ela traz

informações médicas sobre a idade do menino. Quando fala sobre isso, na

frase “os médicos dizem que é normal”, a palavra “normal” recebe uma

intensidade maior. Isso se repete logo a seguir, quando diz “é a síndrome da

adolescência”, usando, dessa vez, a palavra “adolescência”.

Do início ao fim, Rachel Sheherazade permanece com o

mesmo olhar caridoso. As palavras são ditas de forma muito mais pausada e

seus olhos piscam de maneira também mais lenta. Para fechar o comentário,

apela dizendo “pegue leve com o Justin. O menino está só crescendo”. A

palavra “menino” ganha a mesma intensidade e lentidão das palavras “normal”

e “adolescência”. O vídeo é finalizado com um sorriso simpático. Os takes de

câmera mencionados acima também estão presentes em imagem no Anexo, a

fim de que sejam melhor elucidados.

Se compararmos os dois casos, vamos perceber que ambos

são parecidos: nos dois, dois adolescentes cometem pequenos delitos. Por que

então há uma diferença tão gritante na forma de tratamento entre os dois

garotos? Ambos não têm a ficha suja? Ambos não têm a mesma idade? Por

que um é perdoado por isso e outro não? Por que a audiência é aconselhada a

“pegar leve” com um deles e com o outro é aconselhada a entender o lado

daqueles que o agrediram? Por que em um dos casos é compreensível a

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26

brutalidade e a violência? Por que não usar o mesmo princípio do perdão com

o menino negro e pobre? Por que só um deles é passível de se redimir

enquanto outro tem que se contentar com castigos e penas que violam sua

integridade física e moral? Está claro e provado que há diferença de tratamento

entre os dois adolescentes.

Ainda mais: quando criticada por sua forma conservadora de

pensar e tem que enfrentar argumentos dos defensores dos direitos humanos,

os quais afirmam que o problema da violência é mais profundo do que se pode

imaginar e provém de uma desigualdade e injustiça social, Sheherazade alega

que “esse argumento não pode ser usado, pois se for assim, significa que a

violência é inerente ao pobre”5. Essas voltas e mais voltas em torno do mesmo

assunto para não assumir a responsabilidade do que propaga só provam que

suas falas não são opinativas, mas sim um discurso de ódio.

Para entendermos ainda mais a jornalista estudada, fomos

atrás de outras fontes que nos mostram de forma mais clara seus pensamentos

políticos e ideológicos.

3.3 O BRASIL TEM CURA

O livro O Brasil tem cura, escrito por Rachel Sheherazade e

lançado pela editora Mundo Cristão, chegou às livrarias em outubro de 2015.

Na obra, a autora e jornalista conta sua trajetória profissional e faz uma análise

dos males, elencados por ela, que adoecem o país. Em um livro carregado de

dados numéricos e pouco aprofundamento em questões sociológicas,

históricas e antropológicas, a autora busca soluções para esses problemas, de

acordo com sua visão pessoal e posicionamento político.

Sheherazade começa o livro contando sua própria história:

quando mais jovem, em 1992, largou a faculdade de administração para fazer

jornalismo na Universidade Federal da Paraíba. Enquanto ainda estava na

faculdade, passou a trabalhar na Vara da Infância e da Juventude de João

Pessoa, tendo, assim, seu primeiro contato com questões do direito. Ao

finalizar a faculdade, a jornalista deixou de trabalhar na área judicial e virou 5 Comentário realizado em entrevista ao Programa Pânico, na Rádio Jovem Pan, no dia 15/04/2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=5V_7WGO-V90>. Acesso em: 19 nov. 2015.

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repórter de TV, trabalhando em diversas emissoras: Record, Globo e, por fim,

SBT.

Ainda na introdução do livro, fala sobre sua ascensão na

carreira como comentarista e âncora. Seu primeiro comentário, em 2011, foi

uma crítica sobre o carnaval brasileiro e o dinheiro desnecessário que o poder

público gastava com isso. Isso aconteceu enquanto Rachel Sheherazade ainda

trabalhava em um jornal local no Nordeste do país. Após um internauta filmar

sua fala e publicar online, Silvio Santos se interessou por seu trabalho e

convidou a autora para ser apresentadora da edição nacional do jornal: o SBT

Brasil. Rachel Sheherazade conta que, a partir daí, ganhou a oportunidade de

levar suas opiniões para todo o país.

O primeiro capítulo do livro, intitulado “O diagnóstico”, traz, na

visão da autora, um raio-x do Brasil. Com intenção de fazer um histórico, a

escritora descreve, de forma rápida e superficial, a descoberta e a colonização

do Brasil. Após isso, caracteriza os brasileiros como pessoas pessimistas, com

síndrome de vira-lata (se referindo ao vitimismo) e com pouco incentivo à

cultura. De acordo com ela, a culpa desse DNA brasileiro é dos colonizadores,

que não vieram para cá com o objetivo de tornarem o Brasil sua nova casa,

mas sim transformaram-no em refúgio de bandidos e presos políticos.

Diferentemente do que ocorreu nos Estados Unidos, escolhido

como novo lar para os colonizadores ingleses, o Brasil sempre serviu aos portugueses exclusivamente como colônia de exploração. [...] Assim, nossa nação foi erguida sobre os frágeis alicerces de uma colonização egoísta e exploradora. (SHEHERAZADE, 2015, p.39).

Sheherazade também afirma, nesse capítulo, que os brasileiros

herdaram o gene da acomodação e da preguiça, citando o programa do

governo federal Bolsa Família e seus beneficiados como exemplo. “Isso revela

que, desde os primórdios, nossa pátria foi construída sem um real senso de

coletividade, tampouco alguma disposição ao sacrifício individual pela

comunidade, pelo povo, pela nação.” (SHEHERAZADE, 2015, p.40). Sempre

citando diversas passagens bíblicas, a jornalista fecha o capítulo dizendo que,

para que o país tenha cura, é necessário que haja uma mudança interior em

cada cidadão.

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28

Intitulado de “A doença”, o capítulo 2 fala sobre os males do

Brasil, de acordo com a autora. Porém, muito mais do que apenas citar o que

deve ser arrumado, Rachel Sheherazade também discorre sobre eles,

colocando seu ponto de vista dentro de cada um. Ao longo do livro (em todos

os capítulos), a autora repete, incansavelmente, que o país tem cura e que

essa cura só se dará por meio da transformação moral de cada um. Porém, a

moral de cada cidadão deve ser de acordo com aquilo que ela acha que é

correto, justo e bom.

O primeiro problema que ela cita é a violência. Para a escritora,

a culpa da violência vem da colonização errônea e desumana que tivemos,

além da escravidão violenta e sem precedentes. Sempre embasada de muitos

dados (e pouca análise sociológica), Sheherazade defende a opinião de que, a

partir disso, a violência foi passada de geração a geração, como se apenas a

má formação fosse o suficiente para manter um país entre os mais violentos do

mundo.

A jornalista também tenta desconstruir o argumento de que a

desigualdade social aumenta a violência, alegando que, na Islândia, também

há desigualdade e a violência é quase nula. Porém, comparar o Brasil com a

Islândia não faz muito sentido, já que suas realidades sociais são

extremamente diferentes. Outro argumento que ela usa para tentar

desmoralizar esse pensamento é de que a desigualdade social não é uma

anomalia e, pelo contrário, é uma questão natural, já que cada um é diferente

por si só. Além disso, para ela, um mundo igualitário vai contra o princípio da

meritocracia, com o qual, evidentemente, ela compactua.

O ideal de mundo homogêneo e igualitário é ao mesmo tempo medíocre, ingênuo e injusto, pois, além de antinatural, não atende à lógica humana da recompensa, do ‘quem semeia colhe’, e contraria o princípio da meritocracia, pelo qual o esforço é gratificado e, quanto maior o empenho, maior deve ser a recompensa de quem o imprime. (SHEHERAZADE, 2015, p. 51).

A autora também é contra o pensamento de que a violência é

ligada à pobreza e, para provar seu argumento, traz dados que mostram que

nos últimos anos o Brasil diminuiu a quantidade de famílias pobres, porém, a

violência aumentou. Novamente, Rachel Sheherazade trata os problemas do

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29

país de forma muito superficial, deixando de lado questões históricas e

sociológicas importantes.

Outro tópico por ela abordado é a impunidade. Segundo a

escritora, ela é uma das causas da violência. Mostrando mais dados e

pesquisas, cita também a impunidade na corrupção, falando sobre escândalos

como o Mensalão do Partido dos Trabalhadores (PT) e a Lava Jato (escândalo

de corrupção na Petrobrás).

O terceiro tópico citado é a má legislação brasileira que, para

ela, constitui um sistema penal falho e uma justiça lenta. A autora defende uma

reforma no código penal e o não favorecimento ao réu, voltando a falar sobre a

impunidade e já antecipando um pouco da sua opinião sobre a redução da

maioridade penal.

A educação é o quarto tópico do segundo capítulo. De acordo

com Sheherazade, a educação (tanto pública quanto privada) é fraca no Brasil,

o que causa muitos problemas sociais. Também regado a dados, nesse tópico

a escritora compara a educação do país com a da Suíça e mostra o abismo

que existe entre uma e outra. Outra crítica que a jornalista faz à educação se

refere aos salários dos professores, que são muito baixos e insuficientes. Ela

também compara os gastos públicos entre estudantes e detentos, dizendo que

se gasta mais com um presidiário do que com um aluno.

Rachel Sheherazade critica, também, o sistema de aprovação

automática que existiu e ainda existe em algumas escolas, em que o aluno não

repete de ano, mesmo não estando preparado para avançar. Segundo ela, a

má educação auxilia na falta de emprego que, por consequência, leva ao

assistencialismo (cita o Bolsa Família novamente) e, por consequência, à

violência.

Ainda discorre sobre as cotas, posicionando-se contra e

argumentando que isso causa uma situação de “coitadismo” aos cotistas. Em

vez de ser contra as cotas por uma ideologia que não seja preconceituosa, ela

desmerece os alunos que ingressam na universidade por meio desse sistema,

dizendo que esse tipo de auxílio faz com que haja alunos e profissionais

despreparados e medíocres.

Outra falsa solução para o problema crônico da educação no Brasil é a reserva de cotas em universidades públicas. Com a

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30

desculpa de resolver o problema de exclusão social, esse sistema

permite que alunos despreparados egressos do ensino fundamental e médio entrem pela porta da frente do ensino superior, com o empurrãozinho de um governo que ignora o mérito e nivela todos os estudantes pela régua do ‘coitadismo’. (SHEHERAZADE, 2015, p 70).

E continua:

Seria necessário um esforço extraordinário dos cotistas para não ficarem para trás. Caso concluam o curso e obtenham o diploma, tudo indica que continuarão aquém dos outros formados, em termos de capacitação e preparo. [...] No mundo real, é preciso merecer para conquistar. (SHEHERAZADE, 2015, p.71).

O próximo tópico a ser discutido pela autora é a maioridade

penal. No começo desse tópico, ela cita o que alguns menores de 18 anos já

podem fazer, como votar e ter relações sexuais. Para continuar introduzindo o

assunto, a jornalista critica o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),

alegando que, amparado pela péssima legislação do país, protege demais os

adolescentes que não devem ser protegidos.

Embasada mais uma vez em dados e teóricos conservadores,

Rachel Sheherazade defende que deve haver redução da maioridade penal,

diminuindo qualquer argumento contrário e citando-os de forma superficial e

rápida. Para ela, essa impunidade auxilia no crescimento da violência.

Mostrando, mais uma vez, sua intolerância aos pensamentos contrários,

subestima as pessoas que são contra a redução, chamando-os de “defensores

de bandidos”, sem respeitar nem buscar entender tal posicionamento.

Como sexto (e mais surpreendente) tópico, a jornalista fala

sobre perseguição religiosa ou, mais precisamente, a Cristofobia. De acordo

com ela, nós herdamos o cristianismo de nossos colonizadores quando vieram

para cá e, junto com ele, a ética e a noção de valores. A autora afirma que o

Brasil é um país 85% cristão e traz dados de feriados santos e nome de

cidades que levam a tradição católica. Porém, mesmo alegando tudo isso,

incoerentemente Sheherazade afirma que há perseguição contra cristãos no

país, a começar por parlamentares que seguem essa crença. Citando alguns

exemplos irreais de Cristofobia, disserta sobre ataques violentos de militantes e

ateus contra aqueles que seguem a religião cristã.

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Para defender seu argumento, ela usa a ideia de que liberdade

de expressão tem limites e, por isso, esses militantes não podem dizer ou fazer

aquilo que querem a hora que quiserem e onde quiserem. Um de seus

exemplos desses ataques regados de violência é o episódio da travesti Viviany

Beleboni, que encenou uma crucificação na parada gay de São Paulo em 2015.

Outro episódio que chocou pela violência religiosa foi a encenação de um travesti durante uma Parada Gay em São Paulo. [. ..] O desrespeito à religião majoritária no Brasil, com crimes que se tornam invisíveis aos olhos da lei, pode ser o princípio das perseguições. (SHEHERAZADE, 2015, p.83).

Segundo a jornalista, essa perseguição de uma minoria feroz

contra uma maioria de pessoas benevolentes e caridosas é preocupante, já

que, em determinados casos, isso poderia levar ao genocídio da comunidade

cristã no Brasil. De acordo com a jornalista (2015, p.84), “A Cristofobia começa

com o simples preconceito contra cristãos, que evolui para ódio, a perseguição

e pode culminar com a aniquilação.” Fechando esse tópico, alega que a mídia

compactua com essa ideia de Cristofobia, comparando a situação ao nazismo

alemão, que teve apoio máximo da imprensa na época.

Para fechar o capítulo, o último tópico ganha o nome de “Crise

de valores”. Para isso, Rachel Sheherazade afirma que os maiores valores do

ser humano são a família, a educação, a moral, a cultura e a política. Também

traz a ideia fascista de que vivemos em uma época em que existe relativismo

em tudo, ou seja, não existe verdade absoluta para determinadas pessoas, e

esse é o maior problema.

Esse argumento é fascista porque, em uma democracia, é

necessário que haja relativismo para que possa haver respeito a toda e

qualquer singularidade.

O fascista não consegue relacionar-se com outras dimensões que ultrapassem as verdades absolutas nas quais ele firmou seu modo de ser. Sua falta de abertura, fácil de reconhecer no dia a dia,

corresponde a um ponto de vista fixo que lhe serve de certeza contra pessoas que não correspondem à sua visão de mundo preestabelecida. (TIBURI, 2015, p.24).

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32

Como exemplo dessa verdade absoluta, Sheherazade cita a

configuração de uma família: deve ser composta de um homem e uma mulher.

Outras ideias de família, por exemplo, cairiam no relativismo. Questões de

filiação também entram nessa rede: composto de um pai e uma mãe. Qualquer

noção diferente dessa também cairia no relativismo. Esse pensamento de que

existe apenas uma verdade absoluta (e é a que ela crê) é extremamente

preconceituoso com outros tipos de vida e configurações familiares.

Os ventos do relativismo sopram com forma no Brasil do século 21. [...] Embora, legalmente, segundo o artigo 226 da Constituição Federal do Brasil, a família seja a comunidade formada por

homem, mulher e seus filhos ou, ainda, por qualquer dos pais e seus descendentes, na prática grupos heterodoxos, como os homoafetivos, formados por casais homossexuais, e os poliafetivos, formados por casais poligâmicos, também vêm sendo interpretados como entidades familiares. (SHEHERAZADE, 2015, p.86).

Dentre outras crises de valor, a escritora cita também a justiça

que protege bandido, a política corrupta e a tentativa de legalização do aborto e

da maconha. Sheherazade não utiliza análises profundas e importantes sobre

cada tema que é relacionado à sociedade brasileira (que, por sinal, é laica),

mas sim sua crença pessoal e religiosa para discernir e discutir sobre qualquer

assunto. Por isso, usa citações e se embasa em clérigos católicos para

defender sua posição.

O capítulo três do livro foi batizado de “O tratamento” e traz

sugestões de como curar o país. Segundo a jornalista, os males do Brasil

nascem dos próprios brasileiros e a equivocada forma de pensar, que é

consequência da identidade herdada pelos colonizadores. O chamado “jeitinho

brasileiro” e a ideia do malandro são os piores entraves para a melhoria da

nação, segundo ela.

Para a autora, é necessário renovar os valores antigos pela

mudança de pensamento de cada um. Ou seja, a responsabilidade para que o

país possa melhorar é dos cidadãos. Por isso fala sobre a transformação do

indivíduo e como isso pode causar um efeito cascata no círculo de convivência

de cada um. Ela também aborda a transformação da família, alegando que o

comportamento ético e moral nascem desse nicho. Para Rachel Sheherazade,

Page 34: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

33

uma família desestruturada moralmente é a causa de todos os males da

sociedade.

Ela também discorre sobre a transformação das instituições,

tanto privadas quanto públicas. Segundo a jornalista, empresas representam

um papel positivo na sociedade, já que arrecadam impostos que deveriam ser

utilizados na melhoria de serviços coletivos. Porém, para que essas instituições

possam melhorar, é necessário que haja consumidores mais conscientes que

transformem, por influência, as empresas em empresas cidadãs.

A transformação das leis também é essencial para a autora,

que alega existir um excesso delas no Brasil, que mais atravancam sua cura do

que ajudam. A partir disso é que se dará a transformação do Brasil como um

todo. Para a escritora, o país se transformará pela ética de cada um, por isso é

necessária uma mudança de pensamento.

Outra transformação urgente é a da educação. Segundo

Sheherazade, muitos brasileiros não se preocupam com a educação, não só

necessariamente os políticos. Mesmo pais e alunos dão pouco valor para ela.

Porém, mesmo fazendo uma crítica, ela vê a situação com otimismo, citando

exemplos de adolescentes que se mobilizaram para auxiliar as causas em prol

da educação pública.

A indignação é outra forma de transformar o Brasil, segundo a

jornalista. Para ela, os cidadãos estão acomodados, portanto protestos são

importantes para a mudança do país. Finalizando, disserta sobre a

transformação pelo voto e de como a população deve se tornar um eleitorado

consciente ao fazer suas escolhas. Para concluir o livro, Rachel Sheherazade

escreve sobre sua oportunidade no jornalismo opinativo e se usa como

exemplo de transformação.

Em um misto de autoajuda e preconceito, o livro O Brasil tem

cura traz toda a visão de mundo da jornalista, que não deixa de lado suas

críticas e discursos de ódio em nome da ética da profissão. Em certos

momentos, é nítida a boa vontade que tem em transformar para melhor o

ambiente onde vive. Porém, de maneira muito errônea, deixa escapar suas

intolerâncias e preconceitos com a opinião alheia e com homossexuais,

cotistas e beneficiários do programa Bolsa Família; além de se aprofundar

pouco em assuntos de integral urgência e preocupação para o país. Sua

Page 35: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

34

análise dos problemas é extremamente superficial, trazendo não soluções e

propostas reais, mas opiniões religiosas, conservadoras, curtas e vazias sobre

o que deveria ser feito.

A crítica a ativistas gays que fazem manifestações em público

(como um simples beijo) vem embasada da ideia de que a liberdade de

expressão tem limites. Mas, essa mesma noção parece não se aplicar à

jornalista quando o assunto é direitos humanos (o qual ela faz questão, ao

longo de todo o livro, de falar mal). Dentro do jornalismo, sempre haverá

espaço para diferentes opiniões. Porém, dentro do jornalismo opinativo, não

pode haver nenhum espaço para o discurso de ódio e o preconceito.

Page 36: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

35

4 O CENÁRIO JORNALÍSTICO

4.1 JORNALISMO OPINATIVO

A obra de José Marques de Melo, Jornalismo Opinativo:

gêneros opinativos no jornalismo brasileiro (2003), traz um estudo acerca do

tema, clareando o entendimento sobre a história do jornalismo e classificando

os formatos de jornalismo opinativo existentes. Segundo ele, o jornalismo é

uma ciência difícil de ser estudada, já que tem uma “natureza mutável, melhor

dizendo, não definitiva, dos conceitos, categorias e esquemas empregados no

estudo científico do jornalismo”. (MELO, 2003, p.13).

O jornal impresso foi, desde sua criação e por muito tempo, o

único meio de informação da sociedade. A imprensa eclodiu em um momento

em que as ideias e a informação precisavam ser mais rápidas. Criada no

século XV, as primeiras publicações eram gazetas e avisos, contendo apenas

descrição de acontecimentos, evitando-se notícias políticas contendo

julgamentos de valor.

“O autêntico jornalismo – processos regulares, contínuos e

livres de informação sobre a atualidade e de opinião sobre a conjuntura – só

emerge com a ascensão da burguesia ao poder e a abolição da censura

prévia” (MELO, 2003, p.22), entre os séculos XVII e XVIII. Notícias que falavam

sobre política, comportamento e que continham crítica à sociedade eram

veiculadas periodicamente em jornais impressos.

De qualquer maneira, o fim da censura prévia constituiu um fator preponderante para que o jornalismo assumisse fisionomia peculiar – a de uma atividade comprometida com o exercício do poder político, difundindo ideias, combatendo princípios e defendendo pontos de vista. (MELO, 2003, p.23).

A partir do século XIX, o jornalismo puramente informativo

começou a ganhar mais espaço, tornando-se um padrão. Isso aconteceu

porque a notícia, principalmente em países capitalistas, passou a ser

mercadoria, dando voz a quem pagava mais. Porém, mesmo que a hegemonia

seja da informação a partir dessa época, José Marques de Melo traz a ideia de

que os processos jornalísticos, mesmo sendo informativos, contêm sua

Page 37: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

36

ideologia própria, dependendo da visão de quem escreve e para quem escreve.

“Cada processo jornalístico tem sua dimensão ideológica própria, independente

do artifício narrativo utilizado”. (MELO, 2003, p.25).

O jornalismo é dividido em quatro categorias gerais:

informativo, opinativo, interpretativo e de entretenimento, sendo a primeira a

mais importante delas.

Hoje, o primeiro propósito e responsabilidade do jornalismo é assegurar ao povo a informação. Essa responsabilidade requer uma completa objetividade nas notícias. A necessidade de interpretação e explanação das notícias em nossa época é realmente visível. A vida tem se tornado tão complexa e seus interesses tão diversos que mesmo os especialistas ficam confusos em seu próprio campo do conhecimento [...] . Desde os primeiros tempos, o jornalismo tem procurado influenciar o homem. [...] o jornal esforça-se abertamente por influenciar seus

leitores através de seus artigos, editoriais, caricaturas e colunas assinadas. O rádio também, abertamente, procura influenciar por meio de seus comentaristas, de suas entrevistas e de muitos locutores que advogam vários pontos de vida enquanto a televisão procura impressionar os seus espectadores por meio de suas mesas-redondas, documentários e entrevistas. (BOND apud MELO, 2003, p.27).

Os meios jornalísticos são considerados, pelo autor, aparatos

ideológicos. O simples fato de selecionar determinadas notícias e não outras já

é uma forma de opinar sobre determinadas questões. Isso ocorre também com

pautas, tipo de cobertura e fontes escolhidas. Tanto a opinião do repórter

quanto a linha editorial do meio de comunicação influenciam nesse fator. A

escolha de manchetes, capas, títulos e até mesmo imagens são, indiretamente,

uma forma de mostrar uma determinada visão de um determinado assunto.

Nada está imune à parcialidade jornalística.

O jornalismo opinativo, segundo Melo (2003, p.29),

[...] reage diante das notícias, difundindo opiniões, seja as opiniões próprias, seja as que lê, ouve ou vê. Nesse sentido, assemelha-se à instituição do Fórum na Grécia Antiga, atuando como conselheira, como formadora de opinião.

Dentro da categoria de jornalismo opinativo, existem diversos

gêneros, como editorial, artigo, resenha, coluna, crônica, caricatura, carta e o

que mais interessa para este trabalho: o comentário.

Page 38: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

37

Explanando melhor cada categoria, temos que o editorial

mostra a opinião da empresa, que é resultado do consenso dos pontos de vista

dos diferentes núcleos: empresa, jornalistas, colaboradores (patrocinadores,

anunciantes, estado etc.) e leitores. Por ser um espaço de amplas visões, por

vezes pode ser contraditório. Diferentemente do que parece, um editorial não é

feito para o público leitor, e sim, para o próprio Estado.

Não se trata de uma atitude voltada para perceber as reivindicações da coletividade e expressá-las a quem é de direito. Significa muito mais um trabalho de ‘coação’ ao Estado para a defesa de interesses dos segmentos empresariais e financeiros

que representam. (MELO, 2003, p.105).

Já o artigo é a junção de uma matéria composta por dados e

informações com a opinião de quem o escreve. Nele, o autor interpreta, julga e

explica um fato ou uma ideia atual. Esse tipo de texto não é necessariamente

escrito por um jornalista, podendo ser feito por especialistas no assunto tratado

ou até mesmo por um leitor assíduo.

A resenha é outro gênero do jornalismo opinativo. Geralmente

de alguma obra artística, resenhas analisam mercadorias da indústria cultural.

Ou seja, o maior objetivo da resenha é vender (ou não) determinado produto.

Por conta do aumento do consumismo, gêneros como a resenha tem ganhado

mais espaço, principalmente em jornais impressos e mídia online.

Por sua vez, a coluna é um gênero dividido em quatro tipos:

padrão, em que são expostos assuntos editoriais de menor importância;

miscelânea, que não tem um padrão fixo, podendo pender para o humor e o

sarcasmo de determinada situação; mexericos, que se baseiam em fofocas e

pessoas; e bastidores da política. A coluna “procura trazer fatos, ideias e

julgamentos em primeira mão, antecipando-se à sua apropriação pelas outras

secções dos jornais, quando não funciona como fonte de informação” (MELO,

2003, p.140).

A crônica é um gênero opinativo brasileiro. É qualificada como

um relato literário ou poético do real. Suas características mais marcantes são:

fidelidade ao cotidiano e crítica social. A crônica não se restringe ao jornal

impresso diário, podendo existir também na TV, no rádio e como gênero

literário.

Page 39: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

38

As caricaturas são muito usadas para expressar

descontentamento com determinadas questões. Geralmente, servem para

ridicularizar e/ou afetar alguém. Esse gênero surgiu com os avanços

tecnológicos e a popularização do jornal. “A opinião se manifesta explícita e

permanentemente através da caricatura, cuja finalidade satírica ou humorística

pressupõe a emissão de juízos de valor”. (MELO, 2003, p.163).

A carta é um dos únicos espaços que o leitor ainda tem de

manifestar sua opinião dentro do jornalismo, principalmente no impresso.

O comentário é um gênero opinativo recente no jornalismo.

Introduzido no rádio e na televisão por conta da rapidez da notícia, seu objetivo

é trazer um ponto de vista sobre determinado assunto.

De acordo com o autor (2003, p.112), não é qualquer jornalista

que pode ser comentarista. Ele deve ter bagagem cultural e experiência para

isso. “O comentarista é um profissional que possui farta bagagem cultural, e

portanto tem elementos para emitir opiniões e valores capazes de credibilidade.

Atua assim como líder de opinião”. Um comentarista não deve impor nenhuma

opinião e nem demonstrar paixão em suas falas. “Raramente o comentário é

conclusivo. Arriscar uma conclusão é perigoso, já que se torna exíguo o tempo

que tem o comentarista entre a ocorrência e a sua apreciação”. (p.116).

Contudo, o comentarista não é um julgador partidário, alguém que

faz proselitismo ou doutrinação. É um analista que aprecia os fatos e estabelece conexões, sugere desdobramentos, mas procura manter, até onde é possível, um distanciamento das ocorrências. (MELO, 2003 p.112).

Outro ponto importante sobre os comentaristas é que não deve

(ou não deveria) haver comentaristas de assuntos gerais. “Por sua própria

natureza, o comentário exige especialização. Não há comentarista de assuntos

gerais. Comentar é uma tarefa que pressupõe ancoragem informativa e

perspectiva histórica”. (MELO, 2003, p.116). Existem três tipos de comentários:

aquele que analisa um problema, aquele que documenta um fato e aquele que

critica alguma situação.

É fácil perceber, nesse caso, que a jornalista Rachel

Sheherazade, por exemplo, foge da regra do “ser comentarista”. Podemos

levantar alguns pontos: ela não é especialista em nenhum assunto em

Page 40: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

39

particular, comentando sobre todo e qualquer tema; ela não tem experiência

suficiente na carreira jornalística para que se possa arcar com as

responsabilidades morais, éticas e legais de um comentarista; ela, mesmo

fazendo comentários opinativos, não tem a destreza de deixar suas paixões e

emoções de lado para que o trabalho seja sério e profissional como deve ser;

ela impõe suas ideias com agressividade, concluindo o pensamento pelo

próprio telespectador.

A forma autoritária com que a jornalista apresenta suas visões

de mundo mostra, de maneira clara, que Sheherazade não é uma jornalista

opinativa de qualidade, que segue os preceitos éticos da profissão. Além disso,

é fácil perceber suas características fascistas e conservadoras quando ela usa

e repete ideias e frases prontas, já que “o autoritarismo é ‘citacionista’. Repete

ideias lançadas no âmbito da propaganda fascista, ela mesma viciosa e

repetitiva”. (TIBURI, 2015, p.37).

4.2 O ALCANCE DO JORNALISMO

Muito sabemos e estudamos sobre o alcance que a grande

mídia conquistou. O jornalismo, hoje, é dono de muita responsabilidade quanto

à informação e formação de opinião de sua audiência, seja ela pela web, pelo

jornal impresso, por rádio ou televisão, sendo este último o mais influente até o

presente momento. Segundo uma estatística feita pela empresa de dados e

consultoria em telecomunicações, a Teleco, até 2014, 97,1%6 da população

tinha ao menos um aparelho de televisão em casa. Isso nos mostra, em

números, o tamanho do poder de uma mídia como essa no Brasil.

No livro Cultura de Massas no Século XX, Edgar Morin (2011)

evidencia as consequências causadas pela cultura de massas em uma

sociedade, sejam elas psicológicas ou sociais. No livro, o autor traz à tona

mitos que são passados por essa cultura e que acabam condicionando

questões existenciais do público, principalmente relacionadas a sentimentos

(amor, felicidade, prazer, raiva etc.).

6 Informação disponível em: <http://www.teleco.com.br/nrtv.asp>. Acesso em: 12 out. 2015.

Page 41: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

40

Ainda de acordo com o autor, a partir do momento em que

surgiu a imprensa, a cultura de massas passou a ser mais disseminada. Ou

seja, a cultura de massas é uma cultura mais acessível. Logo, a televisão,

atualmente, pode ser considerada o maior meio tanto de informação quanto de

cultura massiva.

Inicialmente (e teoricamente), essa é uma questão positiva

dentro do cenário da sociedade, já que mais pessoas teriam acesso a

diferentes tipos de arte e informações. Isso porque no começo do século XX,

quando se passou a disseminar mais a “cultura para o povo”, existiam barreiras

gigantescas entre classes sociais, pois os níveis de educação eram muito

distantes um do outro. Sendo assim, quem tinha mais acesso à educação,

tinha também mais acesso à cultura “clássica”.

Porém, essa cultura de massas é usada de maneira diferente

e, na prática, acaba idealizando os gostos e vontades da sociedade de acordo

com “quem manda”. Por exemplo, se um fascista, racista e homofóbico for

quem comanda alguma parte da indústria cultural (setor responsável pela

“fabricação” da cultura de massas), ele produzirá conteúdos que lhe agrade e

convença (ou exclua) quem não lhe agrade.

Dessa forma, trazemos a imprensa como parte dessa cultura,

que pretende angariar seguidores de acordo com sua ideologia.

A cultura de massas, portanto, é uma “terceira Cultura, oriunda

da imprensa, do cinema, do rádio, da televisão, que surge, se desenvolve, se

projeta ao lado das culturas clássicas – religiosas ou humanistas – e

nacionais”. (MORIN, 2011, p.4).

Novamente voltamos à tecla da responsabilidade da imprensa

quanto à formação de opinião e caráter de sua audiência. Morin (2011, p.5)

também coloca que “uma cultura orienta, desenvolve e domestica certas

virtualidades humanas, mas inibe ou propõe outras”.

“O consumo da cultura de massa se registra em grande parte

no lazer moderno” (MORIN, 2011, p.58). O lazer moderno, para muitos

brasileiros trabalhadores, é chegar em casa, ligar a TV e descansar no sofá. É

aí que ele entra no universo da indústria cultural televisiva e hipnótica. Novelas,

programas de entretenimento e, mais do que nunca, o jornalismo têm sido

responsáveis pela criação de ideologias e distrações para o trabalhador.

Page 42: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

41

Disso tudo podemos concluir que a) a imprensa passou a ser

uma poderosa fábrica de cultura de massas; b) o homem passou a se ocupar,

em suas horas de lazer, dessa mesma cultura de massas; c) o homem passou

a ser mais influenciado pela mídia; d) a responsabilidade da mídia perante suas

falas e discursos deveria ser maior.

É necessária uma preocupação grande com os tipos e modos

de discursos dentro do jornalismo, principalmente pela televisão. A audiência,

por ser grande e, muitas vezes, fiel, passa a ser fragilizada e afetada por

qualquer afirmação constatada nas emissoras de TV. Mais do que isso: a

audiência se encontra envolvida e compatível com parte do discurso,

satisfazendo, quase sempre, seu desejo de estar presente em um grupo. O

cuidado também é necessário, pois o ódio e o preconceito são sentimentos

que, dentro de uma sociedade assim criada, são motivos de prazer, mesmo

que inconscientemente. “A crueldade paradoxal da consciência moral é que ela

se nutre justamente das satisfações que lhe oferecem”. (GORI, 2006).

Logo, alguns comentários podem levar a ideias violentas de

como se portar em uma sociedade. Como citado no capítulo anterior, o caso do

comentário sobre o menino amarrado ao poste é uma clara e preocupante

incitação à violência, produzindo afetos como raiva, medo e ódio. Essas são

atitudes que precisamos compreender e frear.

Se pensarmos nos discursos de incitação à violência – uma das formas expressivas do ódio – veremos que ela é transmitida de cima para baixo, como numa engrenagem acionada de fora. Líderes políticos, publicitários, jornalísticos e todos os que detêm o discurso podem ligar essa máquina incitando o ódio. (TIBURI,

2015, p.34).

4.3 JORNALISMO, PRECONCEITO E FASCISMO

Não é de hoje que jornalistas usam do discurso de ódio para

impor algumas ideias e ideais de sociedade. Mesmo que, ao contrário do que

dizem alguns pessimistas, a mídia não esteja fadada ao discurso massivo e

enrijecido e que a imprensa alternativa esteja crescendo e se consolidando

cada vez mais (principalmente na web), a maneira como a parte ruim ainda tem

força é preocupante e assustadora.

Page 43: A linha tênue entre o discurso de ódio e o jornalismo opinativo

42

Para que possamos combater o discurso daqueles que dizem

que a crise ética na profissão jornalística não passa de uma teoria

conspiratória, usaremos uma análise feita por Adorno e descrita no artigo “A

Técnica Psicológica das Palestras Radiofônicas de Martin Luther Thomas”

(1943).

Nesse trabalho, o autor analisou o discurso de um radialista

fascista e religioso que se utilizava de ideias preconceituosas. Sua maneira de

se promover e de usar a comunicação se assemelhava às técnicas usadas por

Hittler quando estava no poder.

A partir disso, podemos comparar a maneira de comunicação

usada por ele com a imprensa atual, que usa maneiras parecidas ou até

mesmo iguais para chegar onde quer. Para entendermos melhor, “o que

chamamos de fascista é um tipo psicopolítico bastante comum. Sua

característica é ser politicamente pobre. O empobrecimento do qual ele é

portador se deu pela perda da dimensão do diálogo”. (TIBURI, 2015, p.23).

A forma de tentar enlaçar o público tanto antes como agora

permanece a mesma: trazendo mais proximidade entre o jornalista e o

telespectador/ouvinte/leitor. Para Adorno, Martin Luther Thomas fazia isso de

uma maneira eficaz. Segundo ele, o radialista

[...] não apenas se refere aos interesses mais imediatos dos seus

ouvintes como, também, abarca a esfera privada do orador que, assim, faz parecer que tem em seus ouvintes pessoas de sua confiança e que pode passar por cima das distâncias que separam as pessoas. (ADORNO, s.d.).

Algumas coisas mudaram na relação do “jornalista” (que está

mais para pop-star do que para profissional do ramo) com o seu público da

primeira metade do século XX para cá. Antes, era mais proveitoso que a

audiência não soubesse muito sobre a vida privada deles. Hoje, em alguns

casos, acontece o contrário.

Utilizando como exemplo a jornalista Rachel Sheherazade, sua

vida particular foi levada de programas de entretenimento a entrevistas para

revistas. Essa rotina foi criada após sua fala polêmica sobre o garoto, suspeito

de furto, que foi amarrado em um poste, para que ela pudesse se defender das

críticas. Uma de suas estratégias de defesa foi abrir sua vida pessoal para que

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43

as pessoas achassem que suas palavras não eram um discurso de ódio, e sim,

uma opinião de alguém que é “normal” e que leva uma vida como tantos outros

trabalhadores brasileiros.

Porém, voltando ao radialista de mais de 70 anos atrás,

podemos observar como as manobras de manipulação ainda são

extremamente atuais. A ideia é manter-se cada vez mais próximo ao ouvinte

para que este, como explicado anteriormente, possa realizar aquilo que a

ideologia da imprensa elitista deseja, mas não está apta a fazer. Ou seja,

utilizam-se da população para fazer o “trabalho sujo”, seja ele perpetuar o

preconceito como forma de pensar ou praticar atos e atrocidades físicas.

O principal é, antes, a ideia de que o fraco pode se tornar forte, se ele entregar sua existência privada ao movimento, à causa, à cruzada ou qualquer outra coisa. Referindo-se a si próprio de maneira ambivalente, como homem e super-homem, fraco e forte, próximo e distante, o líder fascista serve de modelo para cada

atitude que ele procura firmar em seus ouvintes. (ADORNO, s.d.) .

Isso significa, em outras palavras, a ideia de sentimento de

poder, “contágio” e “sugestionabilidade” de Le Bon, citadas no segundo

capítulo.

A propaganda fascista permanece se disseminando da mesma

forma (não usamos aqui a palavra “propaganda” no sentido publicitário, mas

sim no sentido de propagar um discurso, manipulando a população). “A

propaganda fascista, a propaganda do ódio, prega a intolerância, afirma coisas

estarrecedoras com alto teor performativo, ou seja, capaz de provocar efeitos e

orientar ações”. (TIBURI, 2015, p.41). É essa propaganda que precisamos

parar. É essa tolerância ao ódio e ao preconceito que precisamos exterminar

tanto do jornalismo quanto da sociedade.

A autora Marli Quadros Leite, em seu livro Preconceito e

Intolerância na Linguagem, disserta sobre questões de preconceito e

intolerância dentro de alguns setores da imprensa, principalmente a escrita, e

faz uma análise sobre como isso acontece. No livro, a autora bate na tecla do

preconceito linguístico, porém também cita outros tipos de preconceito e como

isso pode afetar a sociedade. “Antes de tudo, como sabemos muito bem, a

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44

linguagem é social, plena de valores, é axiológica e, por meio dela, consciente

ou inconscientemente, o falante mostra sua ideologia”. (LEITE, 2008, p.14).

A partir desse pensamento, podemos levar em conta e até

mesmo concluir que o discurso da jornalista Rachel Sheherazade não é limpo e

destituído de conceitos pré-concebidos. Eles estão tão carregados quanto

qualquer ato mais claramente intolerante.

A metalinguagem intolerante (ou preconceituosa) camufla (ou denuncia) outros preconceitos, de todas as ordens. Isso significa que o preconceito ou a intolerância não são somente linguísticos, são também de outra ordem (social, política, religiosa, racial etc.). (LEITE, 2008 p.14).

A cadeia alimentar do preconceito, assim como mostra a

autora, é cíclica e viciosa. Ou seja, a partir de uma fala ou de um modo de

linguagem é possível desencadear outros tipos de preconceito. Dessa forma, a

responsabilidade sobre como e o que se fala dentro da imprensa é muito maior

do que se imagina.

O quadro analisado, protagonizado por Sheherazade, não é o

único dentro da imprensa. A todo momento acontecem situações parecidas,

como por exemplo nos jornais policiais ou até mesmo no modo que alguns

editoriais são escritos em jornais impressos. O preconceito e a intolerância

estão espalhados pela mídia.

No mundo moderno, pela expansão das mídias, a todo momento acontecem episódios em que as pessoas experimentam, ou simplesmente tomam conhecimento de casos de preconceito ou

de intolerância, materializados pela linguagem. (LEITE, 2008, p.17).

Um exemplo de texto preconceituoso linguística e socialmente

é o do jornalista da Folha de São Paulo, Fernando Rodrigues, em 2007. O texto

também é usado como exemplo pela autora (2008, p.18) citada acima.

O crepúsculo de Renan7

É impossível prever o desfecho da crise na qual mergulhou o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMBD-

7 Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1606200704.htm>. Acesso em: 12 nov. 2015.

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45

AL). Como o processo já começou, ele só pode ser absolvido ou cassado. Não há mais a hipótese de renunciar para fugir de uma eventual punição. Há um certo tom patético em todo o caso, como nos escândalos políticos midiáticos de qualquer país. Homem casado, relação fora do casamento, filha, mulher bonita, pensão em dinheiro vivo e rebanho de gado fabuloso no interior de Alagoas. O azar de Renan é a fácil inteligibilidade da sua encrenca. Poucos brasileiros sabem descrever o longínquo caso dos precatórios ou mesmo o conteúdo da recente Operação Hurricane, da PF.

Mas filha fora do casamento, dinheiro vivo e vacas milionárias suspeitas todos entendem. Para completar, Renan Calheiros não é um qualquer. Preside o Senado. Foi aliado de todos os governos pós-ditadura militar: Sarney, Collor, Itamar, FHC e Lula. Tem sotaque nordestino. É o protótipo do político marcado para ser detestado no Sul e no Sudeste – mesmo que os eleitores dessas regiões despachem para Brasília certos clones caucasianos do mesmo Renan. (grifo da autora)

A primeira reação ao ler o texto é de que o autor não é a favor,

politicamente, do atual presidente do Senado, Renan Calheiros. O objetivo do

trabalho não é debater sobre questões políticas, mas sim analisar o

preconceito e a intolerância dentro da fala da imprensa. Portanto, em uma

segunda análise do texto publicado na Folha, podemos perceber que o autor

faz uma referência à má atuação política de Calheiros dando como motivos

para isso ter uma determinada origem: a nordestina.

Como já está muito claro que o preconceito existe (assumido

ou não), é necessário que se entenda, de fato, o significado das palavras

“preconceito” e “intolerância”. Apesar de as duas terem ideias parecidas, elas

não são sinônimas. “Preconceito é a ideia, a opinião ou o sentimento que pode

conduzir o indivíduo à intolerância, à atitude de não admitir opinião divergente

e, por isso, à atitude de reagir com violência ou agressividade a certas

situações”. (LEITE, 2008, p.20).

Sobre essa definição, voltamos novamente a pensar no caso

do menino amarrado ao poste, citado no capítulo anterior. Mesmo que ele

tenha praticado atos ilícitos, mesmo que ele tenha a “ficha mais suja do que

pau de galinheiro” (como disse Sheherazade), tratar a situação com violência e

agressividade esboça não uma “indignação com o caso”, mas sim um

preconceito tão grande a ponto de levar as pessoas que praticaram o ato a

agirem assim. Esboça uma tolerância com a violência. Além disso, a

intolerância maior para com o menino (menor de idade, negro e pobre) não foi

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46

apenas dos “justiceiros”, mas também da jornalista Rachel Sheherazade que,

para perpetuar seu preconceito e ideologia, tolerou, em sua fala, uma atitude

como essa.

Marli Quadros cita Norberto Bobbio, filósofo italiano, que

elucida sobre a intolerância e diz que ela “refere-se à incapacidade de o

indivíduo conviver com a diversidade de conceitos, crenças e opiniões”

(BOBBIO apud LEITE, 2008, p.21). Ele também afirma, conforme a autora, que

[...] muito sumariamente, a intolerância pode ser definida como uma atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a

seu estilo de vida e às suas crenças e convicções. (BOBBIO apud LEITE, 2008, p.21).

Algumas pessoas se perguntam como a jornalista, nesse caso,

é intolerante, já que ela “apenas deu sua opinião”. Porém, voltando novamente

no assunto e deixando de lado toda a parte de responsabilidade de um

discurso como esse no maior veículo de comunicação do país, Bobbio nos

clareia as ideias, mais uma vez, dizendo que

[...] tolerância em sentido negativo é sinônimo de indulgência

culposa, de condescendência com o mal, com o erro, por falta de princípios, por amor da vida tranquila ou por cegueira diante dos valores. (BOBBIO apud LEITE, 2008, p.24).

Todo esse conjunto de fatores, portanto, leva a uma exclusão

de determinados grupos sociais, trazendo contra (e com) eles comportamentos

violentos e que atingem a integridade física e moral da população. As

consequências, nesses casos, são graves e grandiosas, impedindo-nos até

mesmo de mensurar seu tamanho.

O jornalismo, atualmente, mostra várias faces da direita radical.

Jornalistas como Rachel Sheherazade não se escondem mais e não têm mais

medo de proclamar ódio e preconceito disfarçados de simples opinião. Esse

jornalismo obscuro e perigoso renasceu depois de muito tempo escondido nas

sombras da ditadura e, dessa vez, com um poder de alcance ainda maior. São

dos mais variados perfis: uns mais radicais, outros menos; uns mais violentos,

outros que escondem melhor. Nomes como Reinaldo Azevedo, Arnaldo Jabor,

Luíz Felipe Pondé, Merval Pereira, entre outros passam por esse leque de

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47

profissionais que seguem a mesma linha de Sheherazade. Porém, poucos (ou

quase nenhum) com a mesma capacidade hipnótica da jornalista em questão.

Além de estarem nas televisões, jornais impressos e rádio, hoje

o jornalismo conta com outra ferramenta: a internet. É fato que o boom da

internet e das redes sociais tem democratizado cada vez mais o acesso à

informação. De acordo com a primeira pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE)8 sobre o assunto e divulgada em abril desse

ano, 49,4% dos brasileiros já utilizam a internet como fonte de informação.

Ainda segundo essa mesma pesquisa, 71,1% dos domicílios têm internet

banda larga em casa. Dessa forma, esse tipo de jornalismo sem escrúpulos e

ética, amparado por todos os meios de comunicação, ganha, cada vez mais,

um espaço notório e assustador.

Meios de comunicação em geral, inclusas as redes sociais e grande parte da imprensa, onde ideologias e indivíduos podem se expressar livremente sem limites de responsabilidade ética e legal,

estabelecem compreensões gerais sobre fatos que passam a circular como verdades apenas porque são repetidas. Quem sabe manipular o círculo vicioso e tortuoso da linguagem ganha em termos de poder. (TIBURI, 2015, p.60).

É certo que a liberdade de expressão foi uma vitória

reconquistada pela classe jornalística após a ditadura militar. Justamente por

ela ser tão importante que muitos profissionais do ramo deveriam se preocupar

com a forma como lidam com seus trabalhos e comentários. O discurso de ódio

nada tem a ver com liberdade de expressão e muito menos com o jornalismo

opinativo. O discurso de ódio vai contra o código de ética jornalístico. O

discurso de ódio deve ser identificado, evitado e banido do seio da profissão.

4.4 OUTROS EXEMPLOS DE PRECONCEITO

Existem ainda diversos outros exemplos de preconceito dentro

do jornalismo. Alguns culminaram em demissões, outros, apenas em

desligamento por parte dos próprios jornalistas. O trabalho não visa analisar

8 Disponível em:

<http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/trabalhoerendimento/pnad2013/>. Acesso em: 23 nov. 2015.

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todos eles, já que não são poucos e muitos nem se encontram mais em

circulação.

Vivemos em uma época em que se pode dizer tudo sobre

qualquer coisa sem consequência alguma. Por conta da internet, tem sido cada

vez mais difícil identificar e até mesmo frear as propagações desse tipo de

comentário. Será um desafio para os próximos estudiosos do ramo e para a

própria legislação regulamentar e reeducar uma população que não tem

reparado na linha tênue entre o jornalismo opinativo e o discurso de ódio.

A título de complementação, seguem outros dois comentários

preconceituosos dos últimos anos. O primeiro é de Luiz Carlos Prates, ex-

comentarista da RBS (afiliada da rede Globo), de 20119:

É só isso. As pessoas saem absolutamente desatinadas por uma pressa que não se justifica por nenhuma razão. Eu andei ontem na BR-101. Nunca a tinha visto com tanto movimento nem em dias de semana. Ontem era metade de um feriadão. Quem tinha que ter saído já tinha saído e ainda era muito cedo pra voltar pra casa. Mas o que é isso? Antes de mais nada, a popularização do automóvel. Hoje qualquer miserável tem um carro. O sujeito jamais leu um livro, mora apertado numa gaiola que hoje chamam de apartamento, não tem nenhuma qualidade de vida, mas tem

um carro na garagem. E este camarada, casado, como não suporta a mulher nem a mulher suporta ele, saem, vão pra estrada, vão se distrair, vão se divertir. E aí, inconscientemente, o cara quer compensar as suas frustrações com excesso de velocidade. Tem cabimento um camarada não vencer a curva? Como se curva fosse feita para vencer. Quando o camarada morre sozinho, problema dele. Mas e quando mata um inocente? Ontem havia um acidente na estrada, no trecho norte da BR-101, eu vinha para Florianópolis, era do outro lado. Os caras paravam do lado em que eu vinha e atravessavam a pé para ver o que tinha

acontecido. Com um movimento absolutamente incomum. Se um desgraçado desses é atropelado, e essa é a palavra, se um desgraçado desses é atropelado e feito sanduíche na pista, o que é que vão dizer? Este trânsito insano. Insano é cara que para o carro, atravessa a BR pra ver o que aconteceu com a pessoa. Então é isso: estontícia, falta de respeito, frustração, casais que não se toleram, popularização do automóvel, resultado deste governo espúrio que popularizou pelo crédito fácil o carro para quem nunca tinha lido um livro.

O segundo comentário é de Silvia Pilz, ex-blogueira do O

Globo, feito em 201510:

9 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=4tbOIuPU5Vs >. Acesso em: 2 out. 2015.

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O plano cobre

Todo pobre tem problema de pressão. Seja real ou imaginário. É uma coisa impressionante. E todos têm fascinação por aferir [verificar] a pressão constantemente. Pobre desmaia em velório, tem queda ou pico de pressão. Em churrascos, não.

Atualmente, com as facilidades que os planos de saúde oferecem, fazer exames tornou-se um programa sofisticado. Hemograma completo, chapa do pulmão, ressonância magnética e etc. Acontece que o pobre – normalmente – alega que se não tomar café da manhã tem queda de pressão.

Como o hemograma completo exige jejum de 8 ou 12 horas, o pobre, sempre bem arrumado, chega bem cedo no laboratório, pega sua senha, já suando de emoção [uma mistura de medo e prazer, como se estivesse entrando pela primeira vez em um avião] e fica obcecado pelo lanchinho que o laboratório oferece

gratuitamente depois da coleta. Deve ser o ambiente. Piso brilhante de porcelanato, ar condicionado, TV ligada na Globo, pessoas uniformizadas. O pobre provavelmente se sente em um cenário de novela.

Normalmente, se arruma para ir a consultas médicas e aos laboratórios. É comum ver crianças e bebês com laçarotes enormes na cabeça e tênis da GAP sentados no colo de suas mães de cabelos lisos [porque atualmente, no Brasil, não existem mais pessoas de cabelos cacheados] e barriga marcada na camiseta agarrada.

O pobre quer ter uma doença. Problema na tireoide, por exemplo, está na moda. É quase chique. Outro dia assisti um programa da Globo, chamado Bem-Estar. Interessantíssimo. Parece um programa infantil. A apresentadora cola coisas em um painel, separando o que faz bem e o que faz mal dependendo do caso que esteja sendo discutido. O caso normalmente é a dúvida de algum pobre. Coisas do tipo “tenho cisto no ovário e quero saber se posso engravidar”. Porque a grande preocupação do pobre é procriar. O programa é educativo, chega a ser divertido.

Voltando ao exame de sangue, vale lembrar que todo pobre

fica tonto depois de tirar o sangue. Evita trabalhar naquele dia. Faz drama, fica de cama.

Eu acho que o sonho de muitos pobres é ter nódulos. O avanço da medicina – que me amedronta a cada dia porque eu não quero viver 120 anos – conquistou o coração dos financeiramente prejudicados. É uma espécie de glamourização da doença. Faz o exame, espera o resultado, reza para que o nódulo não seja cancerígeno. Conta para a família inteira, mostra a cicatriz da cirurgia.

Acho que não conheço nenhuma empregada doméstica que

esteja sempre com atacada da ciática [leia-se nervo ciático inflamado]. Ah! Eles também têm colesterol [leia-se colesterol alto] e alegam “estar com o sistema nervoso” quando o médico se atreve a dizer que o problema pode ser emocional.

O que me fascina é que o interesse deles é o diagnóstico.

10 Matéria intitulada “Blogueira do Globo esculacha pobres em artigo espantoso”, feita pelo site

Pragmatismo Político. Disponível em: <http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/01/blogueira-globo-esculacha-pobres-em-artigo-espantoso.html>. Acesso em: 5 out. 2015.

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O tratamento é secundário, apesar deles também

apresentarem certo fascínio pelos genéricos. Mesmo “com colesterol” continuam comendo pastel de

camarão com catupiry [não existe um pobre na face da terra que não seja fascinado por camarão] e, no final de semana, todo mundo enche a cara no churrasco ao som de “deixa a vida me levar, vida leva eu” debaixo de um calor de 48 graus.

Pressão: 12 por 8 Como são felizes. Babo de inveja.

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51

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do exposto no presente trabalho, podemos chegar a

algumas conclusões importantes acerca do tema e do jornalismo em si. Após

muitas explanações, pesquisas conceituais e teóricas e exposições científicas

sobre o assunto, é possível garantir que o jornalismo opinativo nada tem a ver

com discurso de ódio, tendo, ambos, suas diferenças drásticas.

O jornalismo opinativo é livre de amarras e censura. Sua

conquista foi árdua, difícil, violenta. Sua vitória, por isso, é ainda maior. Porém,

mais do que isso, o jornalismo opinativo é livre também de preconceitos e

intolerância. Dentro do jornalismo opinativo não se pode mais confundir opinião

com ofensas e exclusão. É chegado o momento de estudantes de jornalismo e

jornalistas profissionais entenderem essa diferença e responderem legalmente

pelos seus atos.

O código de ética da profissão não foi escrito sem propósito.

Todas as profissões possuem o seu e as consequências para aqueles que

fogem de seu cumprimento são graves. Por exemplo, quando um médico fere o

código de ética da profissão, ele, além de responder legalmente sobre isso,

corre o risco de perder sua licença para o trabalho. Isso acontece também com

engenheiros, arquitetos, dentistas etc. O jornalismo falha no momento em que

não leva seu próprio código a sério. Falha no momento em que, até mesmo

dentro das universidades, o código de ética não é estudado e entendido a

fundo. Falha no momento em que jornalistas formados parecem zombar

daquilo que está escrito.

A época em que a informação está totalmente banalizada por

conta de novas formas de comunicação requer pensamentos e reflexões mais

fortes sobre o tema. Vivemos um período de total democratização da

informação, no qual se pode falar sobre qualquer coisa, de qualquer forma, em

qualquer lugar. É necessário que estudemos cada vez mais as consequências

de permanecermos em um ambiente autoritário e reproduzirmos ideias odiosas

e fascistas. Hoje já não tem sido mais vergonhoso expor preconceitos em

meios de comunicação; não tem mais sido vergonhoso apoiar medidas

ditatoriais, racistas, homofóbicas e machistas. E esse é o principal motivo pelo

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qual este trabalho teve que ser realizado: para pensarmos novas formas de

diálogo, convivência e sociedade disseminadas pelo jornalismo, em que a

singularidade de uns não seja morta pelo individualismo, egocentrismo,

egoísmo e conservadorismo de outros.

O poder do jornalismo é extenso. Seu alcance é grande.

Mesmo que ele esteja se modificando com os novos meios de comunicação

que surgem, sua influência não diminuiu. Ela apenas mudou de veículo. Por

conta disso, é preocupante o cenário atual, em que há tolerância com a

intolerância alheia.

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REFERÊNCIAS

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Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu; tradução de

Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.

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LEITE, Marli Quadros. Preconceito e intolerância na linguagem. São Paulo:

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MELO, José Marques de. Jornalismo Opinativo: gêneros opinativos no

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MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX: espírito do tempo 1:

neurose. Tradução de Maura Ribeiro Sardinha. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011.

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PRATES, Luiz Carlos. Jornalista demitido da RBS (Luiz Carlos Prates).

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SINDICATO DOS JORNALISTAS. Nota de repúdio do Sindicato e da

Comissão de Ética contra declarações da jornalista Rachel Sheherazade.

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______________. O Brasil tem cura. 1.ed. São Paulo: Mundo Cristão, 2015.

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<http://rachelsheherazade.blogspot.com.br/p/rachel-sheherazade.html>. Acesso em: 28 out. 2015.

TIBURI, Márcia. Como conversar com um fascista. 2.ed. Rio de Janeiro:

Record, 2015.

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ANEXOS

ANEXO A - Captura de imagens da jornalista Rachel Sheherazade no

momento dos comentários analisados

Quando começa a falar sobre o “marginalzinho” amarrado ao poste, momento

antes do zoom

Olhar e sorriso irônico ao finalizar o comentário, convidando os defensores dos

direitos humanos a adotarem um bandido

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Comentário sobre o cantor estrangeiro Justin Bieber, momentos antes do zoom

Finalização do comentário, quando pede para a audiência “pegar leve” com o

cantor