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Gastronomia

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Page 1: Gastronomia

00outubro de 2009

Mosaico culinárioA cultura gastronômica judaica reúne hábitos e costumes

alimentares de países de todo o mundo respeitando as

tradições e preceitos do judaísmo

culinária judaica pode parecer complexa à

primeira vista. Religião, tradições e influências de outras culturas determinam os hábitos ali-

mentares de um povo que se espalhou por todo o mundo. São esses elementos e as idiossincra-

sias dos próprios judeus – ortodoxos, ashquenazi (inicialmente estabelecidos na Europa Central

e Oriental) e sepharadi (originários da Península Ibérica e norte da África) – que fazem com que

essa cozinha seja tão diversa e especial. Sua identidade não se caracteriza por padrões, e sim

pela simplicidade e criatividade. Com origens diferentes e estabelecidos em países nos quatro

continentes, os judeus criaram uma infinidade de pratos que buscam o respeito aos preceitos

religiosos e aos costumes a partir dos ingredientes disponíveis nas regiões para onde migraram.

A

GASTRONOMIA

00 outubro de 2009

Texto ALINE ALVES Fotos THAÍS ANTUNES

Acima, receita do AK

Delicatessen: haddock

com ovo pochê e manteiga.

À esquerda, ícones da

culinária judaica: gelfite

fish e pepino azedo,

servidos no Centro de

Cultura Judaica,

em São Paulo

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00outubro de 2009

GASTRONOMIA

00 outubro de 2009

Tradições universais

O chef Breno Lerner, responsável pelo restaurante do Centro de Cultura

Judaica, em São Paulo, em parceria com Rita Corsi, é categórico: “Não existe

uma só culinária judaica.” Ele explica que, ao longo da história, os judeus

adequaram sua cozinha aos locais onde se fixaram. “O que aconteceu foi

que os judeus, espalhados pelo mundo inteiro, foram adaptando a comida

do lugar onde estavam aos seus preceitos religiosos e tradições”, explica

Lerner.

Isso fica evidente quando se percebem as variações de uma das recei-

tas mais preparadas pelos judeus em festas e celebrações, o gelfite fish. A

base do prato consiste em carne de peixe picada, em bolinhas, cozida no

caldo de peixe. “Na Polônia, o prato era marcadamente mais adocicado. Na

Lituânia, era mais apimentado. Os russos preferem o peixe sem açúcar. Seja

como for, o que não pode faltar no gelfite fish são as cenouras e o chrain,

uma pasta de raiz-forte e beterraba crua ralada que ressalta o sabor da pre-

paração”, descreve Marcia Algranti no livro Cozinha Judaica – 5.000 anos de

Histórias e Gastronomia (Record, 344 págs.).

O cholent, outro ícone da culinária judaica, é um dos principais pratos

do Shabat, o dia de descanso semanal, o sábado. Para o judaísmo, nesse dia

o trabalho é proibido, bem como acender o fogo e cozinhar. Para poder con-

sumir um alimento quente, conta-se que na antiguidade um cozido era dei-

xado “em um forno comunal aceso ou no forno do padeiro mais próximo,

por toda a noite, em fogo lentíssimo, preparado em um recipiente hermeti-

camente fechado com uma pasta grossa de água e farinha”, relata Marcia

no livro. Esse modo de preparo conservava o alimento quente até a hora da

refeição do Shabat.

“Alguns proclamam que o cholent é uma espécie de feijoada judia dos

sábados e que o nome seria uma corruptela de um cassoulet francês”, expli-

ca a autora. A origem do nome do prato viria de chaud lent, ou seja, calor

lento. Mas quanto a isso há inúmeras controvérsias, porque a receita

ganhou o mundo e muitas variações, podendo ser feita com bolinhas de

carne, língua, galinha e carneiro, entre outros ingredientes. “O cholent tradi-

cional europeu é feito com galinha gorda e é acompanhado de kishke, uma

salsicha recheada com uma mistura de cebola frita e farinha, e knaidalach,

outra especialidade em geral cozida, junto com tudo no mesmo caldeirão”,

descreve Marcia.

Em sentido horário,

receitas tradicionais:

varenique, tipo de massa

recheada; cholent, cozido de

carnes e verduras, ambos

preparados no Centro

de Cultura Judaica; e

sobremesa típica do Rosh

Hashaná, servida no AK,

rabanada de challach.

À esquerda, a chef Andrea

Kaufmann e uma de

suas criações, o

sanduíche de pastrami

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GASTRONOMIA

00 outubro de 2009

Um pouco de tudo

É fato que alguns pratos como o gelfite fish e o cholent, mesmo que ela-

borados de maneiras diversas, são unânimes entre os judeus. Apesar disso,

um conceito de culinária judaica única é polêmico. A chef Andrea Kaufmann,

do restaurante paulistano AK Delicatessen, até usa outro termo para desig-

nar essa cozinha — cultura gastronômica judaica — e criou um cardápio que

faz um passeio por esse amplo universo. Mesclando tradição e contempora-

neidade, Andrea vislumbrou três vertentes em suas receitas: festas, delicates-

sen e culinária de Israel. “Há as comidas das festas, do Rosh Hashaná, do

Pessach, do Yom Kippur. Como a minha família é ashquenaze, incluí no cardá-

pio pratos como gelfite fish, varenique, as sobremesas com maçã. Outra

característica da cozinha judaica são as delicatessens nova-iorquinas, nas

quais há pastramis, bagel e salmão defumado, entre outros. E a terceira ver-

tente é a cozinha de Israel, que seria sepharade, do Oriente Médio”, explica.

Regras religiosas

Para a maioria dos judeus a religião não determina como serão as refei-

ções diárias, e as regras do judaísmo ficam restritas somente às celebrações,

como o Rosh Hashaná (ano-novo), o Pessach (o equivalente à Páscoa dos cris-

tãos) e o Yom Kippur (Dia do Perdão), entre outros. Nessas festas, há rituais e

simbologismos à mesa que são estritamente respeitados.

Mas parte dos judeus segue a alimentação kasher (ou kosher), que em

hebraico significa “permitido”. A comida kasher é aquela preparada de acor-

do com o livro sagrado dos judeus, a Tora. Além de inúmeras restrições –

como a proibição do consumo de carne de porco, frutos do mar e aves de

rapina –, todos os alimentos precisam da aprovação de um rabino. Há res-

taurantes especializados em culinária kasher, como o Café Med, em São

Paulo, onde a chef Fabiana Agostini criou um cardápio com influências

mediterrâneas. “Às vezes fico um pouco presa aos produtos que são permi-

tidos. É preciso ter muita criatividade. Usamos produtos sempre muito fres-

cos, massas e peixes [somente aqueles que têm escamas e barbatanas]”,

conta. Na cozinha, a dinâmica do trabalho também muda, já que há a pre-

sença constante de um rabino inspecionando os alimentos e as atividades.

“Os ingredientes são cuidadosamente vistos. E não podemos quebrar ovos,

por exemplo; só um judeu pode fazer isso”, explica Fabiana, que recebeu em

seu restaurante a visita de Madonna, adepta da alimentação kasher, em sua

última visita ao Brasil, em 2008. Fotos: Divulgação

Acima, prato do Café Med:

fatias de atum meio cru, servido

com lentilhas e mix cogumelos,

e a chef Fabiana Agostini. À

direita, cheesecake de morango

do restaurante do Centro

de Cultura Judaica

Serviço:AK Delicatessen: Rua Mato Grosso, 450, Higienópolis, São Paulo/SP. Tel. 11 3231-4497

Café Med: Avenida Brigadeiro Faria Lima, 2.900, Jardim Paulistano, São Paulo/SP. Tel. 11 3079-0391

Centro de Cultura Judaica: Rua Oscar Freire, 2. 500, Pinheiros, São Paulo/SP. Tel. 11 3062-2229

Algumas tradições e curiosidades da gastronômicas judaicas

Culinária ashkenaze: basicamente vindos de uma

região fria, do leste europeu, os ashkenazi se utilizavam de

gordura de galinha, cebola, alho, repolho, cenoura, beterra-

ba e batata, além de peixes defumados e salgados, como

carpa e arenque.

Cozinha sepharade: compõe-se da mistura de produ-

tos de todos os países ba nhados pelo mediterrâneo e de

alguns do Oriente Médio.

Sofisticação francesa: a cozinha judaica no Marrocos

combina temperos e comidas da tradição sepharade com

téc nicas e refinamentos da cozinha francesa. Açafrão, alho,

coentro, canela, noz-moscada e gengibre são muito u sa dos.

As maçãs e o mel: no Rosh Hashaná, o costume é

mergulhar um pedaço de maçã no mel e falar “Seja o Seu

desejo nos entregar um ano novo bom e doce”.

Nozes: no Rosh Hashaná, qualquer tipo de noz é evi-

tado, principalmente pelos sepharadi. Em hebraico o valor

numérico da palavra Egoz, que designa as no zes, é o

mesmo da palavra Chet, que significa pecado.

Pessach: a festa comemora a redenção dos escravos

judeus e é uma grande celebração gastronômica. O seder,

que em hebraico significa ordem, é a refeição ritual das

famílias, na qual vários alimentos simbólicos são dispostos

em uma bandeja, a keará. Entre eles estão a chicória, que

lembra os tempos amargos da escravidão no Egito; a alface

mergulhada em água salgada representa as lágrimas dos

escravos e o ovo cozido lembra o luto pela perda do templo.

Fontes: Breno Lerner e Cozinha Judaica – 5.000 Anos de Histórias eGastronomia, de Marcia Algranti.