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RESUMOA globalização e as mudanças que a acompanharam têm sido mar-cadas por algumas tendências, com implicações diversas para amídia. Esse artigo examina o impacto dessas mudanças no papeldesempenhado pela mídia na democratização das sociedades. Aprivatização e a liberalização trouxeram a promessa de maiscanais, mas isso não resultou em uma mídia mais aberta epluralista. O rompimento de monopólios estatais no setor detransmissão teve impacto positivo em muitos países emdesenvolvimento, mas em muitos outros os monopólios estataisapenas foram substituídos por monopólios privados, comobjetivos tão suspeitos quanto os dos primeiros.O declínio da transmissão pública é uma preocupação importante,mesmo nos países desenvolvidos da Europa. Mídias alternativas oucomunitárias têm sido uma promessa, mas são cronicamenteafetadas pela falta de recursos e pela marginalização. A consolidaçãoda propriedade e do controle e o surgimento de conglomeradosglobais de multimídia, com influência em praticamente todos osaspectos da vida cultural e política, é outra área de preocupação,dada a limitação do pluralismo e do conteúdo local.Dadas essas características da Sociedade da Informação, o artigofoca em questões de governança e regulação da mídia, incluindo:• os efeitos de uma crescente concentração da propriedade damídia comercial;

MÍDIA E DEMOCRATIZAÇÃONA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO

Marc Raboy

RABOY, M. Mídia e Democratização na Sociedade da Informação. In MARQUES DEMELO, J.; SATHLER, L. Direitos à Comunicação na Sociedade da Informação. SãoBernardo do Campo, SP: Umesp, 2005.

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• o lugar da mídia pública;• como promover e ampliar as iniciativas independentes demídias alternativas;• como promover a liberdade de expressão e a comunicação porintermédio da mídia; e• o leque de assuntos relacionados às novas tecnologias e àsnovas plataformas de comunicação, como a Internet.Atenção particular será dada aos novos sites transnacionais degovernança e regulação da mídia e o seu papel no projeto maisamplo de democratização da governança global. O acesso àelaboração de políticas para a nova mídia global por meio daparticipação da Sociedade Civil em processos como a Cúpula Mun-dial da Sociedade da Informação (WSIS) é crucial para esse projeto,uma vez que até o momento a promoção da pluralidade e da diver-sidade na mídia pode ser vista como facilitadora da participação maisampla dos cidadãos em cada aspecto da vida pública.

INTRODUÇÃOAs mudanças nas formas em que a informação e o entretenimento são

produzidos e distribuídos têm enorme impacto no seu papel na sociedade,ainda que essas mudanças tenham atraído pouca atenção no debate sobre aSociedade da Informação. Esse artigo vai sublinhar algumas das principaisquestões concernentes às mídias, a partir da perspectiva de sua demo-cratização, e então sugerir como algumas dessas questões podem serdestacadas na arena política internacional, por meio de intervenções como aCúpula Mundial da Sociedade da Informação (WSIS).

Alguns dos aspectos da organização e do desempenho das mídias queprecisam ser levados em consideração incluem:

• a crescente concentração da propriedade no setor comercial da mídia;• os desafios ao papel tradicional dos serviços nacionais públicos de mídia;• os limites e possibilidades do chamado Terceiro Setor (não-comercial,não-estatal) como uma alternativa (também conhecido como mídia semfins lucrativos, mídia comunitária); e,• abrangendo os itens acima, a natureza mutante da regulação da mídiae outras intervenções de políticas públicas à luz da globalização e asareias movediças da tomada de decisão com respeito à mídia (Raboy,2002; Ó Siochrú and Girard, 2002).

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O CONTEXTO HISTÓRICOO pensamento convencional sobre os meios de comunicação de massa

no século XX enfocou a capacidade das organizações de mídia desem-penharem um papel na democratização das sociedades, ao criarem uma esferapública por meio da qual as pessoas poderiam ser fortalecidas para tomarparte nos assuntos cívicos, no fortalecimento das identidades nacional ecultural, na promoção de expressões criativas e do diálogo. Em quase todosos setores nos quais a mídia era vista como essencial para esses valores,alguma forma de intervenção governamental era profundamente necessáriapara capacitar e facilitar o papel da mídia. Tão logo a produção da mídiacomeça a requerer maior grau de organização e mais recursos do que possamser gerados em base artesanal, alguma forma de regulamentação estrutural foiprofundamente necessária para assegurar que a mídia atendesse a um padrãomínimo de responsabilidade social. Isso seria assegurado de diversas formas:a concessão de freqüências de transmissão, a criação de serviços públicos derádio e televisão, a criação de mídia comunitária, sem fins lucrativos, asrestrições à propriedade de mídia comercial (limitando a quantidade deemissoras que uma empresa em particular poderia ter, ou excluindo apossibilidade da propriedade por estrangeiros).

Com o advento das novas tecnologias de informação e comunicação, poruma combinação de razões, algumas técnicas, outras políticas, algumaseconômicas, outras ideológicas, os elaboradores de políticas nacionais têm setornado menos desejosos e menos capazes de intervirem na esfera deatividade da mídia. Ao mesmo tempo, mecanismos formais e informais pode-rosos (como acordos internacionais de comércio) têm surgido no nívelinternacional, restringindo a capacidade de influência dos governos nacionaissobre o setor de mídia. O ambiente global da mídia é uma nova fronteira, naqual as leis estão sendo feitas no caminho; como em qualquer situação defronteira, os poderosos estão fazendo as regras, adequando-as às suasnecessidades. Isto é, para dizer o mínimo, um paradoxo, dada a vocaçãoconvencional designada para as mídias durante o século passado.

Cada um dos modelos principais de comunicação de massa que foramreferidos anteriormente (comercial, serviço público, Estado, mídia alternativa)apresentam diferentes problemas e possibilidades; cada um está tambémcarregado de paradoxos e contradições. A mídia independente surgiu emoposição ao Estado, e em prol dos valores de livre expressão. As mídias, emseus primórdios, eram dirigidas política e ideologicamente, o que pode ser

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bem exemplificado pelos panfletos de Thomas Paine e outros defensores dasRevoluções Francesa e Americana (Keane, 1991). No início do séc. XIX, maisde 100 jornais eram publicados na porção francófona da América do NorteBritânica (Quebec), apenas como um exemplo.

Por volta de 1880, a principal função da mídia tinha se transformado,dado o surgimento de crescente pressão comercial em todas as sociedadescapitalistas avançadas, um fenômeno caracterizado, pelo filósofo alemãoJürgen Habermas (1989) como “a transformação estrutural da esfera pública”.Paradoxalmente, uma das grandes forças motoras em apoio à comercializaçãoda mídia (ou comoditização) foi a emergência de um novo público de massarécem-alfabetizado, o que tornou possível, demograficamente, sucessos comoa “imprensa barata” acompanhada do desenvolvimento do financiamento dosveículos de comunicação pela propaganda. Já por volta de 1920, quando amídia eletrônica começava a aparecer, a imprensa comercial de massa tinha setornado a linha dominante. Nos anos 1950, o sociólogo crítico norte-americano C. Wright Mills (1956) foi instado a distinguir entre funções demídia “públicas” e de “massa”.

Nos Estados Unidos e em outros países (como a Austrália, Canadá ea maior parte da América Latina), o rádio, e, depois, a televisão, enquantoregulados por uma autoridade governamental responsável pela concessãodas freqüências de transmissão, desenvolveu-se um modelo econômico daimprensa. Mills e outros críticos não consideraram a emergência de umnovo fenômeno, a partir dos anos 1920, primariamente na Europa Oriental,pelo menos no que concerne as elites, nos postos coloniais avançados: oserviço público de transmissão (public service broadcasting – PSB). Em algumaspartes do mundo, o PSB conviveu com a mídia comercial, e na maior parteda Europa Oriental ela desfrutou de status de monopólio até praticamenteos anos 1980 (Raboy, 1997).

Baseado num conjunto de princípios universais, uma mídia mantida peloEstado era concebida para apresentar uma alternativa ou para reduzir o modelodominante de mídia na área de transmissão. A transmissão nesses países teriauma vocação social, cultural e educacional, mais do que comercial (pelo menossegundo a teoria). Os dispositivos garantindo que as instituições públicas detransmissão fossem um braço independente de Estados e governos, que asfinanciavam e protegiam, eram cruciais para isso. A transmissão pública passoupor várias crises morais e fiscais durante as últimas décadas do séc. XX, masainda é reconhecida atualmente como elemento-chave da democracia. Por

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exemplo, no chamado Protocolo de Amsterdam do Tratado da União Européia1

(Concílio da União Européia 1997). Segundo um estudo recente, a transmissãopública constitui um instrumento de política pública à disposição dos países queescolheram intervir na esfera da mídia (McKinsey e Company 2002).

Enquanto isso, mídias alternativas e de oposição, geralmente atreladas amovimentos políticos, continuaram a desempenhar papel substancial nassituações em que existiam governos coloniais ou autoritários, bem como nasdemocracias liberais ocidentais, onde órgãos de mídia do Terceiro Setorcomeçaram a surgir paralelamente ao crescimento de novos movimentossociais e da juventude, nos anos 1960 (Downing, 2000). No Ocidente,floresceram a imprensa alternativa e, mais tarde, o rádio e a televisãocomunitária, geralmente, paradoxalmente, com recursos disponibilizados peloEstado. Na Europa, mídias “piratas” radicais surgiram para desafiar osmonopólios de PSB. A liberalização, que permitiu que surgissem mídias nãovinculadas ao Estado em países como França e Itália, nos anos 1980, teve oefeito imprevisto de legitimar as mídias piratas e abrir as comportas para aintrodução de mídias comerciais, segundo o modelo americano. Até o final doséculo, as mídias alternativas foram instrumento para derrocada do sistemasoviético, assim como para a democratização de partes da Ásia, África eAmérica Latina, promovendo alternativas e uma “outra” globalização e osdireitos de minorias, como gays e lésbicas, mantendo culturas em extinção eassim por diante. Em países com setores de mídia comercial bem desen-volvidos, como o Canadá e a Alemanha, a mídia do Terceiro Setor foireconhecida na legislação e regulamentada, desfrutando tanto da legitimidadecomo de um certo grau de suporte por parte do Estado.

Esse foi um breve retrato, então, do início do séc. XXI: crescenteconcentração da propriedade da mídia e perda da regulamentação mínimaconcernente aos elementos mais básicos da responsabilidade social da mídiacomercial, seja impressa, rádio ou televisão; persistência de transmissõespúblicas, com uma crise profunda de financiamento e legitimidade,sobretudo diante do despertar dos governos para as políticas fiscais e daqueda da audiência perante a mídia comercial. Constata-se ainda oreconhecimento de status legal e regulamentação mínima de mídias

1. O Protocolo de Amsterdam sobre o sistema de transmissão nos países membros foi assinadoem 1997. Esse e outros documentos relevantes sobre a transmissão pública podem serencontrados em uma compilação recente, feita por Price e Raboy (2001).

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alternativas, baseadas na comunidade, em algumas partes do mundo2; e lutasbásicas pela liberdade de expressão e pela liberalização da mídia controladapelo Estado em muitas regiões do mundo.

DA UNESCO À UIT E À WSISNeste contexto, quais são as questões relativas à mídia que devem ser

consideradas no debate sobre a Sociedade da Informação? Elas podem seragrupadas basicamente em cinco categorias:

• como limitar os efeitos da crescente concentração da propriedade damídia comercial;• como fortalecer e ampliar o espaço dos serviços públicos de mídia;• como promover e ampliar as iniciativas de mídias independentes ealternativas;• como promover a liberdade de expressão e a comunicação através damídia, especialmente em situações de controle autoritário por parte doEstado; e ,• como lidar com essa pletora de questões no contexto das novastecnologias e das novas plataformas de comunicação, como a Internet.

Após considerar essas questões, duas coisas ficam imediatamente claras:

• Os esforços de intervenção na mídia requerem iniciativas nacionais edependem da soberania nacional na esfera da mídia; e,• as questõers de mídia são cada vez mais transnacionais, e vão precisar sertratadas por convenções internacionais ou outras medidas internacionais.

2. Uma cobertura completa sobre a enorme variedade de exemplos, status legal e abordagens das mídias

alternativas demandaria um artigo separado. Por exemplo, na América Latina, a maioria dos transmissores

comunitários são, na verdade, licenciados e regulamentados como transmissores comerciais. Apenas três

países da América Latina reconhecem a transmissão comunitária como um setor distinto e apenas um

dá apoio efetivo a esse setor. Os países asiáticos também apresentam variedade de abordagens diferentes,

enquanto que a vocação para serviços públicos e alternativos de mídia algumas vezes prepondera.

Estações de rádio comunitárias locais têm aparecido em países africanos nos anos recentes, com Mali e

a África do Sul liderando. Na maioria dos países da antiga União Soviética, as mídias alternativas são

inerentemente oposição aos partidos do governo. Ver, por exemplo, Okigbo (1996), Roncagliolo (1996),

Rosario-Braid (1996) e Girard (1992).

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O especialista em Direito, Monroe E. Price (2002), descreveu uma“taxonomia de influências” sobre as respostas nacionais às questões de mídia,como incluindo a estrutura do regime existente, as tradições prevalentes entrea mídia privada e estatal, a acessibilidade das novas tecnologias, as abordagensao comércio livre, a situação do país com relação aos realinhamentos do poderglobal, sua sensibilidade para as normas internacionais e, crescentemente, ainfluência das preocupações de segurança nacional. Segundo essa análise, anegociação de um espaço regulatório para a mídia, neste contexto, pode,eventualmente, levar a “uma agência única, com múltiplos braços, com poderesregulatórios, uma glorificada e mais fortalecida União Internacional de Tele-comunicações” (Price 2002:248). Caso Price, esteja certo, o resultado da WSISpode ser importante, de fato, para o futuro da mídia em todo o mundo.

A mais séria tentativa, até o momento, de lidar com essas questões deforma global, pode ser encontrada no relatório da Comissão Mundial sobreCultura e Desenvolvimento (WCCD – World Comission or Culture and

Development), chamado de Nossa Diversidade Criativa (1995) e o documentosubsequente da UNESCO Minuta de Plano de Ação para Políticas Culturais para

o Desenvolvimento (1998). Em uma revisão ampla das questões culturais, indoda ética ao ambiente, a WCCD, constituída conjuntamente pela ONU e pelaUnesco, propôs uma agenda internacional para as políticas globais dedesenvolvimento com relação ao desenvolvimento cultural. Muitos capítulose propostas relativas à mídia e às novas questões globais nos meios decomunicação de massa foram modeladas pela seguinte questão: “como ascrescentes capacidades de mídia do mundo podem ser canalizadas para apoiara diversidade cultural e o discurso democrático?”

A WCCD reconheceu que, enquanto muitos países estão lidandoindividualmente com vários aspectos importantes da questão, chegou otempo em que a ênfase deve ser transferida do nível nacional para ointernacional. “Há espaço para um modelo internacional que complementeos modelos relatórios nacionais” (WCCD, 1995:117). Enquanto muitospaíses ainda precisam ser estimulados a colocar em andamento oumodernizar seus modelos nacionais existentes, há uma crescente justificativapara a transferência de atenção ao nível global.

A concentração da propriedade da mídia e produção está se tornando aindamais acentuada internacionalmente do que nacionalmente, fazendo com que amídia global se torne cada vez mais orientada pelo mercado. Nesse contexto, seráque é possível o encorajamento, global, de um sistema de economia mista para

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a mídia, como tem surgido em muitos países? Podem os profissionais de mídiasentarem-se juntos com os elaboradores de políticas e consumidores para promo-verem o acesso e a diversidade de expressão, apesar do ambiente agudamentecompetitivo que guia os grandes conglomerados de mídia? (WCCD, 1995:117).

Essas questões são ainda mais relevantes hoje do que quando foramformuladas pela WCCD em 1995. A WCCD admitiu que não tinha aindarespostas para essas questões, mas que tais respostas precisariam serbuscadas a partir do diálogo internacional:

“Muitos especialistas têm dito à Comissão quão importante seria que sechegasse a um equilíbrio internacional entre os interesses públicos eprivados. Eles antevêem um solo comum para o interesse público emuma escala transnacional. Eles sugerem que as diferentes abordagensnacionais possam ser alinhadas, que orientações amplamente aceitaspoderiam ser elaboradas com a participação ativa dos atores principais,que as novas regras internacionais não são um sonho, mas poderiamemergir através de uma aliança transnacional entre os espaços midiáticospúblicos e privados” (WCCD, 1995:117).

A agenda internacional da WCCD contém uma série de propostasespecificamente voltadas para a “ampliação do acesso, da diversidade e dacompetição no sistema internacional de mídia”, baseado na assertiva de queas ondas do ar e o espaço são “parte dos bens globais comuns, um conjuntocoletivo que pertence à toda a humanidade” (WCCD, 1995:278).

“Esse conjunto internacional, no presente, é utilizado gratuitamente poraqueles que possuem os recursos e a tecnologia. Eventualmente,“direitos de propriedade” poderão ser atribuídos aos bens globaiscomuns, e o acesso às ondas magnéticas e ao espaço ser regulamentadoconforme o interesse público” (WCCD, 1995:278).

Da mesma forma que a mídia comunitária nacional e os serviçospúblicos de mídia requerem subsídios públicos, “internacionalmente, aredistribuição dos benefícios da crescente atividade comercial da mídia poderiamajudar substancialmente a subsidiar o resto. Como um primeiro passo, e dentrode um contexto de mercado, a Comissão sugere que pode ter chegado o tempoem que os serviços comerciais de satélite, rádio e televisão, que atualmente usam

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os bens globais comuns gratuitamente, passem a contribuir para o financiamentode um sistema de mídia mais plural. Novas receitas podem ser investidas emprogramações alternativas para distribuição internacional” (WCCD, 1995:278).

Políticas de competição, como existem em vários países, precisariamser validadas na esfera internacional para assegurar práticas justas. Serviçosde transmissão pública internacionais precisaram ser estabelecidos para“ajudar a assegurar um espaço midiático genuinamente plural”. Em geral, aWCCD conclamou um novo e orquestrado esforço internacional, “umapolítica ativa para promover a competição, o acesso e a diversidade deexpressão entre a mídia, globalmente, análogas às políticas que existem nonível nacional” (WCCD, 1995: 279).

A Conferência Intergovernamental sobre Políticas Culturais para oDesenvolvimento, de 1998, organizada pela Unesco em Estocolmo, deu umpasso a mais, ao adotar o Plano de Ação para Políticas Culturais para o Desen-

volvimento (Unesco, 1998) e recomendar uma série de objetivos políticos para ospaíses-membros da Unesco, mantendo posição filosófica geral de que osrecursos comunicacionais constituem parte “dos bens globais comuns”.Reconhecendo que “em um modelo democrático, a Sociedade Civil vai sercrescentemente importante para o campo da cultura”, a conferência endossouuma dúzia de princípios, incluindo o direito fundamental de acesso e departicipação na vida cultural, e ainda o objetivo de política cultural deestabelecer as estruturas e assegurar os recursos adequados para “criar umambiente que conduza à plenitude humana”.

Considerando-se a política de mídia como um subconjunto da políticacultural, a conferência deu algumas contribuições de relevância direta para aspreocupações deste artigo, ao afirmar que:

“• Participação efetiva na Sociedade da Informação e o domínio porqualquer uma das tecnologias de informação e comunicação constituemuma dimensão significativa de qualquer política cultural;• Os governos deveriam buscar alcançar parcerias mais estreitas com aSociedade Civil na concepção e implementação de políticas culturais quesejam integradas às estratégias de desenvolvimento;• Em um mundo crescentemente interdependente, a renovação daspolíticas culturais deve ser antevista simultaneamente nos níveis local,nacional, regional e global;• As políticas culturais devem colocar ênfase particular na promoção efortalecimento das formas e meios de prover acesso mais amplo à

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cultura para todos os setores da população, combatendo a exclusão e amarginalização e ampliando os processos que favoreçam a democra-tização cultural” (Unesco, 1998:3).

Entre os objetivos relevantes de políticas recomendadas pela Unesco aseus países-membros, a conferência propôs “intensificar a cooperação entregovernos, setor empresarial e outras organizações da Sociedade Civil nocampo da cultura, criando modelos regulatórios apropriados”. Algumas daspropostas lidam especificamente com a mídia e as tecnologias de comuni-cação. A conferência solicitou aos países-membro que:

“• promovam redes de comunicação, incluindo rádio, televisão e tecno-logias de informação, as quais atendam às necessidades culturais eeducacionais do público;• estimulem o comprometimento do rádio, da televisão, da imprensa edas outras mídias com as questões de desenvolvimento cultural, aomesmo tempo em que garantam a independência dos serviços públicosde mídia;• considerem o fornecimento de rádio e televisão públicas e a promoçãode espaço para serviços comunitários, e voltados às minorias étnicas elingüisticas;• adotem ou reforcem os esforços nacionais para promover o pluralismoda mídia e a liberdade de expressão;• promovam o desenvolvimento e o uso de novas tecnologias e novosserviços de comunicação e informação;• destacar a importância do acesso às supervias da informação e aosserviços, a preços acessíveis” (Unesco, 1998:6).

O surgimento desse plano de ação, endossado por 140 governos, sob opatrocínio de um organismo internacional e intergovernamental, foi certamenteenaltecedor, mas o subtexto e o contexto em volta de sua adoção tambémapontavam para as dificuldades que teriam que ser enfrentadas adiante.

Levou dois anos e meio para a organização da conferência de Estocolmo,seguindo a recomendação do Relatório da WCCD sobre o qual os documentosapresentados em Estocolmo foram baseados. Como já mencionado, o relatóriooriginal sublinhou a premissa de que a mídia e a comunicação eram pedrasangulares da democracia e do desenvolvimento cultural, parte dos “bens globais

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comuns”, bem como sugeriu um modelo global para regulação da mídia, comoalternativa para inspirar uma mídia mais pluralista, por meio da, por exemplo,criação de um imposto sobre atividades comerciais de mídia transnacionais, oqual poderia ser utilizado para gerar apoio financeiro para serviços públicosglobais e mídias alternativas. Esse empurrão proativo, baseado no uso dosmecanismos de política existentes e na extensão da lógica política nacional parao nível global, não sobreviveu às negociações diplomáticas que culminaram como plano de ação adotado em Estocolmo.

Além do mais, a minuta da versão do plano de ação, apresentada napreparação da conferência, era muito mais afirmativa no tocante ao estímuloaos países-membros para fornecer serviços públicos de rádio e televisão (aoinvés de meramente “considerar” o oferecimento) e em sua conclamação parauma legislação internacional, tanto quanto nacional, para promover opluralismo da mídia. Significativamente, uma proposta que tal legislaçãodeveria ampliar a “competição e prevenir o excesso de concentração dapropriedade da mídia” foi alterada para se referir, ao contrário, à “liberdadede expressão”. Uma proposta para “promover a Internet como um serviçopúblico universal por meio da ampliação da conectividade e de um consórciosem fins lucrativos, adotando-se políticas razoáveis de precificação”,desapareceu do texto final.

Em termos de implementação, a Conferência de Estocolmo reco-mendou que o Diretor-Geral da Unesco desenvolvesse uma estratégiaabrangente para o acompanhamento prático das medidas da conferência,“incluindo a possibilidade de se organizar uma Cúpula Mundial sobre aCultura e o Desenvolvimento”. O relatório da WCCD tinha proposto essaCúpula, o que foi endossado, entre outros, pelos participantes em um forumdas organizações da Sociedade Civil, reunido em paralelo à conferênciaintergovernamental em Estocolmo. Mas Frederick Mayor, então diretor-geral da Unesco, imediatamente descartou a organização de tal cúpula nocurto prazo. Em uma declaração para a Agência de Notícias Panafricana(PANA), no final da Conferência de Estocolmo, Mayor disse que levaria nomínimo três ou quatro anos para que as sementes semeadas em Estocolmoamadurecessem. Enquanto isso, ele afirmou, a iniciativa deve ser deixada aospaíses-membros e às organizações regionais, para implementar os princípiose compromissos assumidos.

A WSIS é a sucessora direta dessa proposta. A única diferença é quea organização que liderou a preparação da Cúpula foi a União Internacional

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de Telecomunicações (UIT) e não a Unesco. A distinção é crítica para asquestões de democratização da mídia. Dentro da lógica da UNESCO, amídia é uma instituição cultural, parte do processo do desenvolvimentohumano. Dentro da lógica da UIT, a mídia é um sistema técnico paraentrega da informação. Houve, de fato, um momento de interseção entre asduas abordagens, em 1995, quando um estudo conjunto da UIT-Unesco,chamado O direito à comunicação: a qual preço? (1995) analisou sobre em queextensão os objetivos sociais poderiam ser reconciliados com os objetivoscomerciais, nesse contexto. Esse relatório interagências representou um raroesforço de superar o hiato entre os setores técnicos e socioculturais, até oponto em que a Unesco pode ser considerada como constituindo umacomunidade de “interesse público” para os serviços de telecomunicaçõesfornecidos pelos membros da UIT. O estudo observou os efeitos deletériosdas barreiras econômicas para o acesso aos serviços de telecomunicações,a falta de infra-estrutura em alguns países, e a falta de infra-estruturauniversal e internacional em telecomunicações. O estudo reconheceu que issoé geralmente o resultado de circunstâncias históricas. A WSIS pode sergenerosamente conceituada como uma tentativa de dar seguimento a esseconjunto de preocupações.

O problema, é que a história não espera enquanto as conversaçõescontinuam. Desde a adoção do Plano de Ação de Estocolmo, na verdade,desde o processo de preparação da WSIS, os acordos no âmbito daOrganização Mundial do Comércio (OMC) têm crescentemente invadido acapacidade dos governos nacionais de controlarem seu espaço cultural emidiático3, enquanto o capital empresarial transnacional continua a ser bem-sucedido na promoção de seus interesses, em nível global. A Sociedade Civil,enquanto isso, arrisca-se a ficar novamente confinada ao papel de dama-de-honra,observando as laterais, as margens, esperando uma próxima vez, a menos que sejamais agressiva na formulação de sua agenda – na WSIS e em qualquer lugar.

Em alguns aspectos, o processo da WSIS pode ser visto como tendoatualizado e pragmatizado a polêmica abordagem do debate sobre a NovaOrdem de Informação e Comunicação (Nomic), nas décadas de 70 e 80.

3. Isso tem inspirado alguns governos a criarem uma rede internacional sobre política cultural (INCP),

com o ponto de vista expresso de promover o estabelecimento de um “novo instrumento internacional

de política internacional sobre diversidade cultural” para subjugar os impactos dos acordos da OMC

e geralmente manter a cultura fora da mesa de negociações do comércio internacional.

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Com o risco de levantar as expectativas daqueles que desejam ver qualquerreferência histórica à Nomic como tentativa de reacender as confrontaçõesideológicas da Guerra Fria, é preciso ser lembrado que uma releitura dostextos principais do debate sobre a Nomic, como a Declaração da Unescosobre os Meios de Comunicação de Massa, de 1978, e o subsequenterelatório, em 1980, da Comissão Internacional para o Estudo dos Problemasde Comunicação, presidido por Sean MacBride, mostra quão relevante eoportuno aquele debate ainda é nos dias de hoje. É geralmente – econvenientemente – esquecido que a Comissão Independente da UIT, demesma origem, presidida pelo Sir Donald Maitland, veio a chegar, essen-cialmente, às mesmas conclusões que o relatório MacBride, quanto aoestado iníquo e à qualidade do desenvolvimento comunicacional do mundo(Comissão Independente para o Desenvolvimento Global das Teleco-municações 1984). Mas há uma diferença fundamental a ser notada, que odebate sobre a Nomic foi estritamente entre países, e os interesses repre-sentados pelos respectivos governos, enquanto que o debate atual sobre aSociedade da Informação (pelo menos como está ocorrendo na WSIS) ésignificativamente mais amplo, não apenas nos temas e questões que cobre,mas na amplitude de atores que estão tentando fazer parte.

MÍDIA, DEMOCRATIZAÇÃO E REGULAÇÃOO debate sobre mídia e democratização têm sempre tido um foco dual:

democratização da mídia, como valor positivo em si mesmo, e a ampliação dopapel da mídia no processo de democratização das sociedades. Para alguns, amídia tem tendência a ser vista como espaços isolados e imparciais deinformação, mas ela é na verdade um espaço de contestação, objeto decontenção em seu próprio direito. Os ativistas da mídia têm lutado paraencontrar uma forma de problematizar essa questão: como fazer da mídia umaquestão social, ao invés de apenas algo que as pessoas simplesmente sofrem, ecomo ampliar o discurso público sobre o papel da mídia na democracia.

Historicamente, as questões de mídia não têm tido a mesma ressonânciaentre os ativistas sociais como outros temas, como o meio ambiente, asquestões de gênero e os Direitos Humanos. Uma declaração de 1999, feitapelo grande grupo de ativistas de mídia Voices 21, buscou começar a constuirum novo movimento social em torno das questões de comunicação e damídia. Ele propôs “uma aliança internacional para tratar das preocupações etrabalhar conjuntamente nos assuntos concernentes à mídia e às comu-

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nicações”. Todos os movimentos que trabalharam na direção da mudançasocial usaram a mídia e as redes de comunicação, destacou então o Voices 21

que é essencial o foco nas tendências atuais, como o crescimento daconcentração da propriedade da mídia em poucas mãos (Voices 21, 1999)4.

O advento da Cúpula Mundial sobre a Sociedade da Informação ofereceuma oportunidade para se seguir naquela direção. As questões de mídia ecomunicação estão criando o seu caminho na direção de uma agenda socialmais ampla (por exemplo, por meio do Fórum Social Mundial). McChesneye Nichols (2002), entre outros, escreveram sobre a presença da demo-cratização da mídia no centro de um movimento social: eles apresentaram umprograma para uma reforma estrutural da mídia nos EUA. Entre outrascoisas, o movimento de reforma da mídia norte-americana conseguiuconvencer os congressitas dos EUA a deter algumas das tentativas maisagressivas da Comissão Federal de Comunicações (Federal Communication

Commission – FCC) de liberalizar as regras de propriedade de mídias.Em resumo, há necessidade de casamento entre as propostas de reformas

da mídia dominante e da mídia alternativa, com intervenção política, pesquisa eeducação. A democratização da mídia será baseada numa bem-sucedida realizaçãode cinco tipos de intervenção, lideradas por cinco conjuntos de atores:

• análise crítica contínua das questões da mídia (pesquisadores);• esforços de alfabetização midiática (educadores);• construção e operação de mídias autônomas (operadores de mídiaalternativa);• práticas progressistas dentro da mídia dominante (jornalistas, editores,publicadores etc.); e.• intervenção política (ativistas quanto às políticas para as mídias).

A WSIS oferece uma oportunidade para que essas questões sejamtrabalhadas dentro de um modelo institucional, e para manter em mente essaabordagem de cinco fatores. Além disso, na atualidade, as tentativas formais deinfluenciar o desenvolvimento da mídia pode tomar cinco caminhos possíveis.

A abordagem liberal: essa abordagem não favorece a regulação da mídia.Com a dispersão de novas tecnologias digitais, como a Internet, essaabordagem é atualmente defendida por reguladores nacionais (a Austrália éuma exceção importante), sobretudo porque elas ou não sabem o que fazer

4. No interesse da transparência, deve ser declarado que o autor é um membro do Voices 21.

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ou como fazer. É também amplamente defendida por muitos dos ativistas debase que estão se beneficiando desse modelo aberto de comunicações. Masa história das antigas mídias mostra que, deixada a seus próprios interesses,esse acesso aberto não deve durar. Um modelo liberal de governança daInternet vai provavelmente levar à portas fechadas, acesso restrito ecomunicação limitada.

Auto-regulação: Essa é a abordagem mais comumente defendida pelosmembros da indústria, com o apoio dos reguladores nacionais. É corren-temente propagada como a solução para problemas como o conteúdo abusivoe a proteção de direitos, sob o argumento de que os consumidores vãoresponder, caso não estejam satisfeitos. Mas como nós vemos nas iniciativasconcernentes ao copyright e ao comércio eletrônico, mesmo os promotores daauto-regulação estão reconhecendo que há uma necessidade de um modeloestrutural global para a atividade comunicacional, dentro da qual a auto-regulação da mídia possa tomar parte.

O clube fechado, ou modelo institucional ‘top down’5: Essa abordagem preencheo vazio criado pela retirada dos governos nacionais das questões regulatórias.Acordos são negociados em organizações como a Organização para aCooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), Grupo dos 8 (G8)ou a Organização Mundial do Comércio (OMC), bem como nas novas insti-tuições que estão surgindo no setor corporativo. Aqui, os jogadores maispoderosos economicamente simplesmente ditam as regras do jogo para todosos outros, e a mídia é percebida como um negócio, veículo de entretenimentoe órgãos de controle estrito de informação pública.

A longa marcha através das instituições: Este é um processo que estáamarrado ao projeto mais amplo de democratização da governança global,refletido em algumas das iniciativas em torno da reforma da ONU e denoções como “democracia cosmopolita”. O acesso à elaboração de políticasglobais por meio da participação da Sociedade Civil, em processos como aWSIS, é crucial para esse modelo, que é um corolário para ampliar apluralidade e a diversidade da mídia, vista como facilitadora de umaparticipação mais ampla em cada aspecto da vida pública.

5. (N.T.) “Top down”, de cima para baixo.

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Em termos de democratização das mídias e do papel democrático damídia, a última alternativa é claramente a única viável. Transparência,participação pública e abordagem sóciocultural na governança da mídia sãovalores merecedores de serem promovidos transnacionalmente.

Uma abordagem política global ao longo dessas linhas ajudaria a redefiniro papel do Estado com relação à mídia, tanto domesticamente quantotransnacionalmente, ao mesmo tempo em que permitiria a disponibilização deum ambiente para tratamento de uma série de questões específicas que estãoatualmente fora da agenda.

No atual contexto de globalização, a mídia pode tanto ser umalocomotiva do desenvolvimento humano como um instrumento de podere dominação. Seu papel ainda não está determinado, razão pela qual osdebates na WSIS são tão cruciais.

Na medida em que as questões envolvendo a regulação da transmissãocaminham para se tornarem globais, então, nós precisamos começar apensar sobre mecanismos apropriados para a regulação global. Isto tornariapossível que se começasse a pensar em intervenções globais em umavariedade de questões, como as seguintes:

• regulação das atividades comerciais de mídia segundo o interessepúblico, para garantir acesso eqüitativo a serviços básicos;• financiamento e apoio institucional para a criação e o sustento deserviços públicos e mídias alternativas;• colocação de limites para os controles corporativos resultantes daconcentração transnacional de propriedade nas novas e tradicionaismídias e telecomunicações;• fornecimento de incentivos (por meio de medidas de apoio fiscal etc.)para a produção, distribuição e exibição de conteúdo de mídia queatenda aos objetivos das políticas públicas;• garantia de acesso a todos os canais de mídia disponíveis na base docritério do interesse público;• desenvolvimento de códigos universais e padrões para reduzir a difusãode conteúdo abusivo;• facilitação da capacidade de interconexão, por meio do uso dastecnologias da mídia por organizações sem fins lucrativos; e,• disponibilização de espaços públicos de mídia para resolução deconflitos e diálogo democrático sobre questões globais.

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Eu estou consciente que essa “abordagem regulatória” tem limitaçõesimportantes. A extensão em que os chamados reguladores independentes nasdemocracias liberais têm sido capturados pelos interesses da Indústria, estábem documentada.6 Regulação, em alguns casos, age como uma justificativasutil para a interferência do Estado na independência da mídia. Ativistas damídia alternativa têm gasto energia preciosa participando de consultas semsentido e reuniões para definição de requisitos regulatórios. Assim, permitam-me fazer o contra-argumento.

Veja, por exemplo, a recente decisão, mediada pela FCC, de reduzir asrestrições nos EUA para a propriedade cruzada de mídias e a concentraçãode propriedade de mídias. Um olhar mais próximo para essa situação revelaque os EUA ainda têm regras mais sólidas com relação à concentração dapropriedade de mídia do que a maioria dos países ocidentais. As “novas”regulamentações da FCC determinam que uma rede pode possuir estações quealcancem até 45% da população nacional, e um número limitado de mídias nomesmo mercado. No vizinho Canadá, para citar um exemplo de paísgeralmente tido como muito ativo nas medidas regulatórias, não há restriçõescom relação à propriedade cruzada ou à concentração de propriedade. Assim,uma empresa (que ocorre de ser a maior corporação industrial do Canadá, aBell Canada Enterprises – BCE) possui uma das duas redes nacionais dejornais, bem como uma rede líder de televisão, cujas estações alcançam 99%da população de fala inglesa.7

Nos anos 1980, cavalgando a onda ideológica de desregulamentaçãodesencandeada pela eleição de Ronald Reagan, o presidente da FCC declarou:“A televisão é apenas outro aparelho... uma tostadora com imagens”. Não seregula as tostadoras, então por que regular a televisão, era o argumento. Maso rádio, a televisão ou a Internet não são apenas tostadeiras com imagens. Oponto é distinguir entre “regulação” e “controle”: regulação precisa ter

como objetivo fornecer um modelo capacitador dentro do qual as

mídias possam florescer e contribuir para a vida pública democrática

e para o desenvolvimento humano, e ampliando a liberdade de ex-

pressão e o direito à comunicação. Como escreveu um acadêmico famoso

6. Ver, por exemplo, o Centro para a Integridade Pública (2003), cujos documentos mostram as bem-

sucedidas atividades de lobby das corporações midiáticas norte-americanas vis-a-vis à FCC.

7. De fato, enquanto escrevia este artigo, um comitê parlamentar no Canadá acabou de recomendar uma

moratória quanto à futuras fusões, até que o governo proponha uma política abrangente quanto à

propriedade de mídias (Fraser, 2003);.

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nos EUA, Edwin Baker (2002) que a regulação da mídia precisa ser vistacomo legítima, necessária e possível.

Autoridades regulatórias independentes e instituições públicas, comoos transmissores públicos, têm, de fato, protegido o interesse público douso abusivo por parte do Estado, sejam os presidentes Richard Nixon,Ronald Reagan ou George W. Bush, nos Estados Unidos, MargaretThatcher no Reino Unido, ou outros. Apesar do declínio da audiência(resultado de uma combinação de fatores, como ploriferação de canais,globalização cultural e uma lentidão na adaptação ao novo contexto), atransmissão pública ainda merece amplo apoio popular, onde floresceuhistoricamente. Com a exceção exclusiva da França, nenhum país desen-volvido “privatizou” um transmissor nacional público, apesar da retóriageneralizada de uma liderança política neo-liberal.

A regulamentação pode ser ainda mais importante na promoção de umTerceiro Setor na mídia, especialmente na área de transmissão, e, pos-sivelmente, em breve, a Internet. A regulamentação pode garantir um espaçono ambiente para uma mídia que não possa forçar o seu caminho por meiodo comando de recursos financeiros cada vez maiores e cotas massivas de au-diência. Regimes fiscais progressivos e programas de financiamento podemfornecer garantias de que as vozes alternativas serão ouvidas.

A questão, como sugerido acima, é como transferir esses valores para aesfera internacional – garantindo-as onde elas já existam (em face dos desafiosdo comércio internacional regressivo e dos regimes de copyright), promovendo-as quando elas não existem (em países não liberais) e refocando-as diante donovo contexto de convergência tecnológica e globalização.

Em resumo, a regulamentação da mídia pode tratar dos seguintes pontos:

• licenciamento de serviços de transmissão públicos, privados e comu-nitários (objetivo: competição, administração do sistema);• transações de propriedade (objetivo: pluralismo de mercado, diversidade);• conteúdo abusivo (objetivo: proteção de normas sociais);• cotas de conteúdo (objetivo: proteção e promoção da cultura nacional);• obrigações de desempenho (objetivo: serviço público, requisitos deprogramação);• taxas para transmissão pelo ar, assinaturas, serviços pay-per-view(objetivo: proteção dos consumidores);• dispositivos de acesso (objetivo: oportunidades iguais para a livreexpressão);

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• relação entre os serviços públicos e privados (objetivo: equilíbrio dosistema); e,• requisitos de financiamento (objetivo: promoção de serviços prioritários).

O papel da regulamentação da mídia é determinar o interesse público,numa base contínua, com relação a questões específicas como as mencionadasacima. Essa é uma tarefa a ser executada por governos juntamente com suasatividades gerais. Não pode ser deixada somente para os transmissores, poiseles necessariamente tem interesses próprios (mesmo no caso dos serviçospúblicos de transmissão). O mercado é cego como instrumento. Os cidadãospodem individualmente e por intermédio de suas organizações coletivas,articular expectativas, mas não têm poder para implementá-las.

O sucesso de uma abordagem regulatória vai, dessa forma, dependerdo seguinte:

• orientações políticas claras, mas não genéricas, das autoridadesconstituídas;• poderes claramente definidos, apoiados por mecanismos efetivos decomplacência;• a mais completa transparência possível em todas as operações e• acesso real e significativo aos processos de tomada de decisão, paratodos os atores envolvidos, especialmente organizações de interessepúblico, que de outra forma estariam alijadas dos centros de poder.

O papel da autoridade regulatória seria:

• supervisionar o equilíbrio do sistema: entre os setores público, privadoe comunitário;• garantir a responsabilização do setor público;• especificar a contribuição do serviço público para o setor privado;• facilitar a viabilidade do setor comunitário;• supervisionar o desenvolvimento do sistema (por exemplo, a intro-dução de novos serviços);• elaborar a política geral (entre o nível macro, da política do Estado, eo microgerenciamento das operações dos transmissores);• supervisionar a auto-regulação da indústria;• supervisionar os processos de concessão e renovação de licenças e• lidar com as reclamações e com as questões de conteúdo na base decódigos e padrões estabelecidos.

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A regulamentação pode ser vista como um processo de corretagem entreos interesses do Estado, das empresas privadas e da Sociedade Civil. Regu-lamentação se relaciona à estruturação de um modelo, mais do que, como écomumente pensado, a controle. Vista dessa forma, a WSIS pode significar oestabelecimento de um novo ambiente global para a mídia. É uma oportunidadeque não deve ser perdida, mas cuja relevância precisa ser cuidadosamente pesadae coloca em uma perspectiva apropriada.

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Marc Raboy é professor e coordena o Communication Policy Research Laboratory do Departamentode Comunicação da University of Montreal. Tem seu Ph.D. junto à McGill University. Épesquisador-sênior do Programme in Comparative Media Law and Policy da Universidade de Oxford.Editou mais de 15 livros e atuou junto a diversas instituições, tais como Unesco, Japan

Broadscating Corporation (NHK), Governo do Canadá e European Broadscating Union. Seus interessesatuais incluem políticas de comunicação no contexto da globalização.