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Entrelaçando Revista Eletrônica de Culturas e Educação
N. 1 p. 69-79, Ano I (out/2010) ISSN 2179.8443
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OS SUJEITOS DA EJA E A CONTRUÇÃO DA ORALIDADE: entre o teatro e o letramento nas práticas escolares
Carla Meira Pires de Carvalho1 Universidade Federal da Bahia
RESUMO O objetivo deste trabalho é apresentar alguns resultados advindos da pesquisa de mestrado intitulada: O teatro na Educação de Jovens e Adultos: Contribuições para o processo de letramento e a formação da cidadania. Refletindo acerca da articulação entre o teatro, o letramento e a educação, através da oralidade enquanto categoria analisada na pesquisa de mestrado acima relacionada. Para tanto, esta investigação concebe a oralidade como dispositivo central da presente discussão, entendendo suas múltiplas possibilidades presentes no processo de ensino/aprendizagem a partir do fazer teatral em sala de aula e a relação desses fazeres com o processo de letramento no âmbito da Educação de Jovens e adultos. Palavras-chave: Teatro. EJA. Oralidade.
ABSTRACT This paper presents the results derived from research Masters entitled: Theatre in Education Youth and Adults: Contributions to the process of literacy and citizenship education. Reflecting about the link between theater, literacy and education through the orality as a category in the master`s research examined above related. Thus, this research sees orality as the central device of the present discussion, understanding its multiple possibilities present in the teaching / learning from doing theater in the classroom and the relationship of these actions with the process of literacy as part of Youth and adults. Keywords: Theater. YAE. Orality.
1 Professora da rede pública de ensino atuando na Educação Fundamental e na EJA. Professora substituta do
curso de Licenciatura na Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia. E-mail: caumpb2002@yahoo.com.br
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A INSERÇÃO DA DISCIPLINA TEATRO NA EJA: primeiros d esafios O presente artigo tem como objetivo precípuo refletir a partir da análise de alguns
resultados obtidos através de uma pesquisa em nível de mestrado, sobre a inserção da
disciplina teatro no currículo da Educação de Jovens e Adultos (EJA) estabelecendo um
paralelo entre o letramento, a oralidade e a concepção da arte e da educação na formação
integral dos sujeitos. Tendo essas duas áreas de conhecimento – o teatro e a educação - como
cernes para o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e com equidade sócio-econômica,
política e cultural.
A pesquisa intitulada O Teatro na Educação de Jovens e Adultos: contribuições para o
processo de Letramento e a formação da Cidadania foi realizada através do Programa de Pós-
Graduação em Educação e Contemporaneidade entres os anos de 2007 e 2009 empenhando-se
em compreender de que forma a linguagem teatral pode contribuir para a formação do
Letramento e a construção da Cidadania dos alunos da EJA. Para tanto, faz-se necessário
refletir, de forma breve, sobre as bases que fundamentaram as primeiras inquietações no que
se refere à linguagem teatral no currículo escolar e os conflitos existentes no âmbito dessa
modalidade educacional.
A Educação de Jovens e Adultos abrange toda a Educação Básica, do Ensino
Fundamental ao Ensino Médio. Os dispositivos centrais que norteiam as políticas públicas e
os fundamentos pedagógicos no contexto deste segmento referem-se tanto ao processo de
alfabetização e do letramento, além da formação profissional desses educandos.
As políticas públicas em EJA, pensadas e desenvolvidas no Brasil ao longo dos anos,
sempre foram estabelecidas de forma pontual, descontínua e descontextualizada,
impossibilitando este segmento de obter maiores avanços pedagógicos que viabilizassem
propostas reais e que atendessem, de forma direta, às demandas dos indivíduos que retornam à
escola ou iniciam tardiamente seu processo de escolarização.
A inserção da disciplina Teatro no currículo formal de EJA partiu de inquietações
pessoais que foram reelaboradas e repensadas em uma perspectiva de uma investigação que
associou a pesquisa em nível de mestrado, a prática docente em EJA e a reflexão sobre os
aspectos político-pedagógicos que envolvem o processo de ensino aprendizagem do aluno de
EJA.
O entrelaçamento desses eixos norteadores em uma perspectiva de letramento, bem
como, a escuta sensível dos alunos e professores dessa modalidade proporcionaram o
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estabelecimento de categorias a serem concebidas como possíveis pistas acerca da vivência de
práticas teatrais neste segmento da Educação Básica.
O trabalho abrange três fases diferenciadas de investigação: A 1ª fase versa sobre a
prática teatral e as apresentações cênicas nas turmas de EJA em uma instituição de ensino da
Rede Municipal de Educação situada na periferia da cidade de Salvador, imbuída de
inquietações pessoais e reflexões sobre a minha práxis enquanto docente de teatro atuando em
EJA, além da análise das experiências artísticas vivenciadas pelos alunos desse segmento. A
2ª fase trata da sistematização dessas vivências artístico-pedagógicas através da escuta das
falas dos professores e dos alunos de EJA, onde foi possível estabelecer categorias que nos
dão encaminhamentos sobre a importância do fazer teatral e da frequentação de espetáculos
como possível abordagem teórico-metodológica do ensino do teatro na EJA. A 3ª fase da
investigação se dá através da análise minuciosa das categorias encontradas nas falas dos
sujeitos envolvidos no processo com o intuito de nos fornecer subsídios teóricos e reflexivos
acerca da relação entre o teatro, o letramento e a Educação de Jovens e Adultos.
Enquanto arte-educadora, e buscando, através de impressões iniciais, estabelecer laços
teóricos entre o teatro e o letramento, foi possível concebê-los como caminhos direcionados
para a formação da cidadania do aluno de EJA. As pistas surgidas pelo contato com os alunos
e professores foram redimensionadas, problematizadas e aprofundadas através das leituras
acadêmicas, na articulação entre as duas áreas do conhecimento - o teatro-educação e o
letramento em EJA - partindo do pressuposto de que ambas apontam para o crescimento
pessoal e o desenvolvimento social do sujeito.
Assim, seguindo a concepção de uma educação desafiadora e emancipatória, centrada
no sujeito educando, é que me situo como arte-educadora inspirada no pensamento Freiriano
sobre o papel do sujeito educador e transformador social, neste registro:
Como subjetividade curiosa, inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas também o de quem intervém como sujeito de ocorrências. Não sou apenas objeto da História, mas sujeito igualmente. No mundo da História da cultura, da política, constato, não para me adaptar mas para mudar. (FREIRE, 2002, p 85-86)
Tais inquietações, curiosidades e interferências são abordadas nos elementos que
compõem as aulas de Teatro no cotidiano escolar, bem como as especificidades da inclusão
desta disciplina na sala de aula das turmas de EJA. Antes de adentrarmos nas categorias que
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considero relevantes para a composição deste trabalho, acredito ser necessário estabelecer
algumas considerações conceituais no que se refere às áreas de conhecimento que aludem ao
teatro e ao letramento. É preciso também tecer articulações no que se refere à importância de
refletir sobre a formação pessoal, artística e social dos educandos. Tais articulações serão
tratadas no item a seguir.
O TEATRO E O LETRAMENTO NA EJA: caminhos que se entrelaçam? É importante ressaltar que não há uma bibliografia específica que trate da articulação
entre o teatro e o letramento na Educação de Jovens e Adultos, o que estamos buscando nesse
trabalho é um olhar sensível que aponte novos caminhos a partir do diálogo entre essas duas
áreas do conhecimento no âmbito da EJA. O teatro na EJA atua como uma área nova a ser
explorada e vivenciada tanto pelo docente que busca cotidianamente a ressignificação de
novas abordagens metodológicas nesse segmento quanto pelos discentes que vivenciam um
processo de letramento enquanto sujeitos protagonizadores, entre personagens imaginários e
suas narrativas da vida real.
Nas aulas de teatro, eram trabalhados jogos teatrais, onde as atividades eram
direcionadas para a construção de cenas elaboradas pelos alunos, como atores-espectadores2
das situações cênicas escolhidas através de temas trazidos por eles ou pelo professor de teatro.
Os jogos teatrais trabalhados nas salas de EJA tinham elementos especiais, pois se
constituíam em um momento diferenciado, traduzindo um caráter de independência, de
autonomia e de grande espontaneidade e participação pelos alunos-atores das turmas de EJA,
como aborda, a seguir, Ricardo Japiassu (2003, p.20):
A finalidade do jogo teatral na Educação escolar é o crescimento pessoal e o desenvolvimento cultural dos jogadores por meio do domínio, da comunicação e do uso interativo da linguagem teatral, numa perspectiva improvisacional ou lúdica. O princípio do jogo teatral é o mesmo da improvisação teatral, ou seja, a comunicação que emerge da espontaneidade das interações entre os sujeitos engajados na solução cênica de um problema de atuação.
2 O termo atores –espectadores, utilizado comumente nos dias atuais no âmbito do teatro-educação, refere-se as
múltiplas funções exercidas pelos alunos em espaços formais e não-formais de ensino do teatro, como a possibilidade do sujeito atuar e ser espectador em suas vivencias com as práticas teatrais. É possível que o termo “atores espectadores” advenha do termo “alunos-atores”, difundido desde a década de 70 pela autora dos conceitos teório-práticos do teatro improvisacional, a norte-americana Viola Spolin.
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A participação era intensa entre os alunos, as interações em sala de aula nos momentos
dos jogos eram destacadas por todos, tanto no momento em que atuavam como quando
assistiam às atuações das outras equipes. O trabalho com a oralidade era também realizado de
forma intensa pelos atores-espectadores, pois estes atores produziam suas falas de forma
“improvisacional” em forma de interlocução com as falas dos outros participantes de sua
equipe, tudo de forma dinâmica, criativa e espontânea.
Na medida em que se trocavam os papéis e os alunos passavam para a situação de
plateia, mantendo a interação com seus colegas que se encontravam atuando, todas as
participações tinham o princípio de resolução dos problemas cênicos, tais como o tempo, o
espaço e a fala de cada personagem, e também a resolução dos problemas de conteúdos que
emergiam em decorrência da própria temática.
Esse confronto entre o real e o imaginário, entre personagens e sujeitos reais, entre
problemas imaginários e problemas latentes na sociedade contemporânea por si só trazem em
sua natureza um grau elevado de letramento. Este processo de letramento por sua vez suscita
nos sujeitos posicionamentos críticos sobre os problemas cênicos e sobre os temas sociais
despertando a autonomia dos educandos, que deixam de ser sujeitos ouvintes e passivos para
posicionar-se no e com o mundo no qual estão inseridos.
Os educandos assumem assim, papeis sociais de sujeitos letrados que ressignificam o
conhecimento trazido pela arte ou por qualquer área do conhecimento a partir de suas
histórias de vida e suas reflexões pessoais acerca das questões apresentadas. Neste sentido
Duarte Júnior (2003) afirma que:
A arte é, por conseguinte, uma maneira de despertar o indivíduo para que este dê maior atenção ao seu próprio processo de sentir. O intelectualismo de nossa civilização - reforçado no ambiente escolar - torna relevante apenas aquilo que é concebido racionalmente, logicamente. Deve-se aprender aqueles conceitos já “prontos”, “objetivos”, que a escola veicula a todos, indistintamente, sem levar em conta as características existenciais de cada um. Nesse processo, os educandos não têm oportunidade de elaborar sua “visão de mundo”, com base em suas próprias percepções e sentimentos. Através da arte pode se, então, despertar a atenção de cada um para sua maneira particular de sentir, sobre a qual se elaboram todos os outros processos racionais. (DUARTE JR., 2003, p. 66)
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O modelo de escola tradicional, que ainda predomina na sociedade moderna, tem grande
dificuldade em compreender que, ultrapassando os muros da escola, existe um mundo
convidativo, dinâmico e com inúmeras possibilidades de entretenimento, que encantam os
alunos e os afastam das atividades escolares. No entorno das escolas, em lojas, feiras, casas de
acesso à internet e jogos online, praças públicas, encontram ambientes propícios à sua
socialização, sem regras rígidas, nem avaliações e julgamentos que determinem medidas de
certo e errado semelhantes à lógica cartesiana sustentada pela escola.
Esses espaços são espaços de aprendizagens múltiplas e, por conseguinte suscetíveis a
práticas de letramento, que produzem conhecimento e trocas de experiências que vão além da
concepção conteudística e reprodutiva imposta pela pedagogia tradicional e pela sociedade
contemporânea. Assim, concebe-se o letramento como um evento amplo e inerentemente
formativo que acompanha os sujeitos ao longo de suas vidas, em todos os espaços que o
sujeito circula e constrói relações de troca de experiências e aprendizagens em um processo
contínuo de formação humana e social.
Sendo assim, é necessário refletir sobre a importância do termo Letramento, que
significa um fenômeno mais complexo do que a alfabetização. É importante ressaltar que um
não se sobrepõe ao outro. O letramento não veio substituir o processo de alfabetização, até
porque são fenômenos distintos que se interrelacionam no processo de aprendizagem e
formação crítica do indivíduo. Extrapola as questões referentes às tecnologias do saber ler e
escrever, posicionando-se como um processo de expansão cultural no qual o sujeito, ao
dominar tais tecnologias, tem a possibilidade de atender as demandas sociais que lhes são
exigidas em seu cotidiano.
De quais demandas sociais estamos falando? Que práticas sociais é preciso exercer para
se considerar um sujeito letrado? Essas demandas, que aos olhos dos grupos socialmente
privilegiados podem parecer funções simples e corriqueiras em seu cotidiano, não ocorrem da
mesma forma com os grupos onde a escolarização não foi realizada, ou se deu de forma
tardia, como enfatiza Kleiman (2008, p.7), a seguir:
Para realizar uma atividade rotineira como uma compra num supermercado, por exemplo, escrevemos uma lista dos produtos que precisamos comprar, já no local de compras, lemos, comparamos rótulos, preços, datas de validade, preços e cartazes promocionais; usamos ainda algum método para computar e fazer contas; preenchemos um cheque. Essas atividades que, para um sujeito letrado, são apenas mais uma forma de se comunicar com os outros, e de agir
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sobre o meio, quase tão automáticas quanto falar e que não requerem, portanto, grandes esforços de concentração ou interpretação representam grandes obstáculos para os grandes grupos de brasileiros não-escolarizados, que não tiveram acesso a escola ou que foram permanentemente expulsos dela.
É nesse sentido que os estudos sobre letramento são pertinentes no campo da educação,
é preciso criar condições para que os sujeitos pertencentes a esses grupos socialmente
excluídos que, em sua natureza já possuem estigmas negativos por suas condições
socioeconômicas, avancem no seu processo de asserção político e sociocultural, ocupando
espaços até então negados a esses indivíduos, criando condições de diálogo onde as relações
de poder possam não apenas ser compreendidas por esses sujeitos, mas principalmente
refletidas de forma crítica e consciente.
Assim, essas experiências lúdicas e prazerosas vêm, sem dúvida, contribuir para a
formação do letramento dos educandos, na medida em que os aspectos cognitivos, subjetivos
e as múltiplas aprendizagens, através das interações grupais, contemplam os diversos sentidos
do letramento, onde a formação integral do ser humano ocorre mediante a apreensão e a
aplicação de suas múltiplas capacidades associadas à interlocução com a língua escrita.
TEATRO E EXPRESSÃO ORAL NA EJA
Teatro e expressão oral na EJA foi uma categoria surgida a partir da análise das falas
dos professores e alunos das turmas que incluíram o teatro em seu currículo durante o período
da investigação em nível de mestrado já citada neste trabalho.
O medo de falar em público, mesmo que esse público esteja em um contexto menor,
como é o caso da sala de aula, é um elemento constante na vida escolar dos sujeitos da
educação de jovens e adultos. A oralidade é autorreprimida por esses alunos que não se
sentem aptos a fazer uso da fala como direito de expressão e, em contrapartida, exercem
constantemente, e de forma passiva, a escuta do outro, principalmente se este estiver numa
posição superior a sua, como ocorre comumente na relação professor-aluno.
A descoberta, através da linguagem teatral em sala de aula, da possibilidade de erros e
acertos em sua expressão oral, seja em um ensaio de cena, em uma improvisação cênica, ou
mesmo na preparação de um espetáculo, apresenta ao aluno de EJA uma nova concepção de
oralidade. Nessa concepção, o expressar-se em público é um processo de construção contínua,
de respeito mútuo e de asserção, enquanto sujeitos aptos a conviver socialmente
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desenvolvendo reflexões e externando-as sem qualquer receio de exposição negativa que
possibilite o surgimento de traumas pessoais.
O sujeito desse segmento precisa ter presença nas políticas públicas de ensino, a
inclusão das suas vozes torna-se necessária para se instalar um modelo equitativo de educação
popular. Sobre essa relação entre a voz dos educandos e os paradigmas escolares que
dificultam o nascimento de uma educação crítica e emancipatória de qualidade, Freire (2002,
p.135) afirma que:
Escutar é obviamente algo que vai mais além da possibilidade auditiva de cada um. Escutar, no sentido aqui discutido, significa a disponibilidade permanente por parte do sujeito que escuta para a abertura à fala do outro, ao gesto do outro, as diferenças do outro. Isto não quer dizer, evidentemente, que escutar exija de quem realmente escuta sua redução ao outro que fala. Isso não seria escuta, mas auto-anulação. A verdadeira escuta não diminui em mim, em nada, a capacidade de exercer o direito de discordar, de me opor, de me posicionar. [...] Como sujeito que se dá ao discurso do outro, sem preconceitos, o bom escutador fala e diz de sua posição com desenvoltura.
A escuta sensível da voz desses sujeitos reforça o caráter dialógico do ensino do teatro.
Assim, podemos supor que se a voz desses sujeitos é validada no espaço escolar, o sujeito terá
a possibilidade de validar sua voz em outros espaços de sua vida cotidiana. Nesse sentido, a
linguagem teatral oferece uma pedagogia mais engajada com o ideal emancipatório de Freire,
no sentido de autorizar o sujeito a se expressar, se expor sem maiores cobranças. Colocar suas
opiniões sobre todos os temas referentes à sociedade, sem cortes, sem censura. Através das
brincadeiras, revestidos e protegidos pelas máscaras de seus personagens. Com as situações
cênicas, através de jogos teatrais e dramáticos, os jovens e adultos transformam-se em
políticos, jornalistas, empresários opressores ou operários representantes do povo, e, assim,
através da identificação com as falas desses personagens, exercitam o autoconhecimento e a
conscientização crítica sobre as situações ali vivenciadas.
Outro elemento a ser observado é a construção de um discurso cênico. A maioria desses
alunos de EJA nunca freqüentou espaços como teatro e museus, pois suas histórias de vida
foram marcadas por uma forte exclusão no que se refere ao acesso aos códigos culturais das
culturas dominantes. Sendo assim, um contato permanente com o teatro em seu currículo,
proporciona ao sujeito um conhecimento da linguagem teatral e consequentemente um
amadurecimento de um discurso cênico, em todas as nuances, seus jogos, seus signos e
convenções presentes nesta linguagem. Sobre isso aponta Desgranges:
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Sem perder o prazer próprio ao jogo espontâneo, almeja-se que os participantes conquistem a capacidade de criar, organizar, emitir e analisar um discurso cênico. O desafio do coordenador é manter constante a tensão entre divertimento e aprendizagem. Jogar por jogar leva a situações repetitivas, sem desafios e sem aquisições. Ou seja, sem a vontade de inventar diferentes possibilidades de investigação da linguagem teatral e de sua atuação enquanto instrumento de reflexão da vida social, o jogo dramático perde a sua vitalidade.
(2006, p.94)
O trabalho com o teatro no âmbito da EJA apresenta interfaces no que se refere tanto a
construção cidadã do sujeito, atuante e participativo em sociedade, quanto em seu
amadurecimento estético e cultural, partindo de vivências artísticas em sala de aula, apreciando
experiências artísticas através de espetáculos produzidos na cidade, e refletindo sobre estes
novos conhecimentos adquiridos com o outro, contribuindo de forma salutar para que um
discurso amadurecido, bem fundamentado sobre a vida em coletividade e sobre suas vivências
pessoais podendo encontrar ressonância dentro e fora da sala de aula.
O trabalho com o teatro tem a possibilidade de desenvolver a oralidade do sujeito de EJA
sem que eles percebam, sem medos e anseios de acertar em tempo integral. Os alunos, através
de seus personagens representados em sala de aula são capazes de atuar, de falar em público,
pressupondo que em outros momentos de suas vidas cotidianas esse medo também seja
dissipado, se considerarmos o fato de que na prática teatral há um processo de aprendizagem
contínuo entre sujeitos e personagens, entre o imaginário e a vida real.
A oralidade representa, assim, não apenas a possibilidade do aluno expressar-se nos
espaços escolares, como a sala de aula, a cantina, o pátio etc. Representa, em um contexto
mais amplo, sua inserção e sua autonomia no mundo. A possibilidade de falar e a garantia de
que sua voz será ouvida pelo outro, na perspectiva de promover um diálogo de natureza
democrática entre os sujeitos socialmente excluídos dessa educação, estimulando esses
sujeitos ao exercício de cidadania.
Uma das considerações acerca da relação entre o teatro, a oralidade e a educação no
processo de formação da cidadania do sujeito de EJA refere-se principalmente a escuta
sensível dos reais interesses que permeiam o retorno desses alunos ao seu processo de
escolarização. Dar voz a esses sujeitos compreendendo o que lhe é caro em seu retorno ao
processo de escolarização, em seus sonhos, seus anseios, seus interesses pessoais e
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profissionais pode representar o primeiro passo para alcançar o ideal Freiriano de escola
democrática, partindo de uma educação excludente e opressora, para uma educação
libertadora e emancipatória.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Repensar as práticas escolares no âmbito da Educação de Jovens e Adultos tem sido o
grande desafio das políticas públicas atuais. Faz-se necessário, portanto uma reflexão
aprofundada sobre que tipo de educandos a instituição escolar pretende formar e qual a
relação que pode ser estabelecida entre a escola e os bens culturais existentes na sociedade.
Considerando o Teatro como um bem cultural relevante na edificação de uma sociedade
e as práticas artísticas como elementos que contribuem para a formação do letramento dos
alunos, pode-se pensar em mecanismos de inclusão e de legitimização dessa área do
conhecimento no segmento da EJA. Partindo assim, dos ensinamentos Freiriano (FREIRE,
2002) cujo legado pedagógico compreende que o letramento se estende a todas as áreas do
conhecimento- inclusive e principalmente a arte- e está intimamente ligado a história de vida
dos sujeitos em suas experiências pessoais, identitárias e culturais.
A linguagem teatral se apresenta para o aluno que frequenta o turno noturno da EJA
como um elemento de fácil entendimento, pois a descontração serve de base para a construção
de novas competências que são facilmente desenvolvidas pela arte e que são requisitos para
atividades do currículo escolar como aquelas relacionadas à leitura, à escrita e a oralidade. Em
um primeiro momento, esses alunos não se dão conta que, através das atividades teatrais
realizadas em sala de aula, elementos da narrativa, assim como do exercício do diálogo, estão
diretamente ligados ao desenvolvimento da sua oralidade e, por conseguinte, contribuirão
efetivamente para a aquisição do letramento.
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REFERÊNCIAS
DESGRANGES, Flávio. Pedagogia do Teatro: provocação e dialogismo. São Paulo: Hucitec,
2006.
DUARTE JR, João Francisco. Por que arte-educação? 14. Ed. Campinas: Papirus, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 21. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
______. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2005.
______. A Importância do Ato de Ler. São Paulo, Ed. Cortez, 1982.
______. Educação como Prática da Liberdade. São Paulo: Paz e Terra, 2007
JAPIASSU, Ricardo. Metodologia do ensino de teatro. 2. Ed. Campinas: Papirus, 2003.
KLEIMAN, Ângela. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática
social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 2008.
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