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Comunicaçao e Sociedade

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Comunicação e Sociedade 53

Sobre a noçãode best-seller

Sandra Reimão*

Aspecto quantitativo

A expressão best-seller, aplicada a livros e à literatura, comportadois campos de significação, nem sempre coincidentes.

A primeira significação da expressão, sua acepção mais literal,diz respeito ao comportamento de vendas de um determinado livroem um mercado editorial dado. Best-sellers indica aqui os livros maisvendidos de um período em um local. Neste sentido é uma expressãoquantitativa e comparativa e diz respeito a vendas.

Ainda neste sentido quantitativo de vendas já se buscouestabelecer critérios não puramente comparativos para determinarum best-seller. Frank Luther Mott em um texto editado em 1947 propõeclassificar de best-seller “os livros que, segundo se calcula, têm umavenda total igual a 1% da população dos Estados Unidos continentaisna década em que foram publicados”.1 Este critério seria válido apenaspara os EUA, necessitando adaptações para outras realidades.

* Professora da área de Comunicação Social no Instituto Metodista deEnsino Superior (SBC). Pesquisadora bolsista do CNPq.

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Aspecto qualitativoAo lado desta acepção ligada ao mercado editorial no que diz

respeito a vendas, a expressão best-seller, quando aplicada à literaturade ficção, passou a designar também, por extensão, um tipo de texto— características internas, imanentes, de um tipo de narrativa ficcional.

Muitos autores, de tendências e pressupostos vários, buscaramelucidar quais seriam as características que fariam de um textoficcional um texto de literatura best-seller — também chamada deparaliteratura, literatura trivial, subliteratura, literatura deentretenimento, de massa ou de mercado.

Há um consenso de que essa literatura descende do romance-folhetim, expandiu-se a partir de meados do século 19 e especialmenteno século 20, e que esses textos devem ser inseridos na lista dosprimeiros produtos da indústria cultural, a qual, por sua vez, évinculada à fase monopolista do capitalismo e à sociedade de consumo.À parte este consenso, há várias formas de se caracterizar a literaturade massa.

Em seu Teoria da Literatura de Massa,2 Muniz Sodré, ao abordar aestrutura folhetinesca, presente ainda na literatura trivial, afirma queesta agencia sempre quatro elementos:

1 — presença de um herói super-homem “...investido decaracterísticas românticas que acentuavam a idéia de destino e deuma especial rejeição das regras sociais.”;

2 — atualidade informativa-jornalística;3 — oposições míticas — ... o bem e o mal, a felicidade e a

amargura...4 — preservação da retórica culta — “(...) a retórica do folhetim

é pobre, esquemática (...) [mas] sempre subsidiária da literatura culta(...Romantismo... Realismo...)”.

Esta preservação da retórica culta está presente na literatura deentretenimento trivial não só como estrutura, mas também comoconteúdo. Esse fato é salientado por Dieter Prokop em sua divertidadescrição, não da estrutura dos romances para as massas, mas sim deseus conteúdos explícitos: “Nos romances best-sellers, fascina uma misturaque reúne sem escrúpulos aquilo que — visto de um ângulorigorosamente lógico — não tem relação entre si: combinações decultura letrada, resquícios de acontecimentos históricos, mas tambémobscenidades agradáveis (que, em geral, são apresentadas comindignações hipócritas); também brigas familiares combinadas comsímbolos de status de poder econômico e de luxo”.3

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Tanto a enumeração dos conteúdos explícitos quanto doselementos estruturais encontráveis na literatura de massa ajudam ailuminar esse fenômeno da indústria cultural, mas não o caracterizamde forma definitiva, pois todos os elementos enumerados podem serencontrados esporadicamente também na chamada alta literatura.4

A caracterização dos textos da paraliteratura passanecessariamente pela demarcação da distância, da diferença entre elese os representantes da literatura culta; pela distinção entre cultura demassa e alta cultura.

Literatura de massa e literatura de proposta

Tomando como referência a alta literatura, também chamada deliteratura culta, erudita ou de proposta (designação preferida porUmberto Eco), Todorov e Ducrot caracterizam a literatura de massacomo aquela em que “a obra individual conforma-se inteiramente aogênero e ao tipo”,5 ao contrário da alta literatura onde cada obra temuma originalidade própria irredutível. Ou seja, “a habitual obraprima literária não entra em nenhum gênero a não ser o seu, mas a obraprima da literatura de massa é precisamente o livro que melhor seinsere no seu gênero”.6

Embora Todorov esteja dando ênfase aqui na questão dos gênerose em especial da contraposição da alta literatura com os gêneros maisestruturados da literatura de massa (romance policial, romance deaventura, ficção científica e romance sentimental) essa questão deoriginalidade única e irredutível abrange também desde o nívelnarrativo até o dos valores pessoais e morais. Processos estes que, nocaso da alta literatura, produzem uma visão de mundo singular einconfundível.

A originalidade da alta literatura, que tem sua contraposição nocaráter regrado da literatura de mercado, é um fato correlato à questãodo esforço necessário para ler-se um e outro tipo de texto literário:“Outro critério de diferenciação é o esforço (...) a cultura de massa sepreocupa em poupar-lhe [ao consumidor], maiores esforços desensibilidade, inteligência ou mesmo atenção ou memória (...) Já acultura de proposta não só problematiza todos os valores comotambém a maneira de representá-los na obra de arte, desafiando ofruidor desta a um esforço de interpretação que lhe estimula a faculdadecrítica em vez de adormecê-la”,7 sintetiza José Paulo Paes retomando,neste ponto, Umberto Eco.

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Originalidade por parte da narrativa e consequente esforço parasua fruição, características fundamentais, mas únicas, da altaliteratura, possibilitam que ela se coloque em um campo ideológico ede função social oposto ao da literatura de mercado.

A literatura trivial, ao carecer de originalidade e redundar osesquemas perceptivos e conceituais do leitor, acaba por apenas repetir,reafirmar, o mundo “tal como ele é”. E essa eterna repetição acaba porjustificá-lo. “O mundo é o que é, e é assim porque é assim que ele deveser”.

É a este repetir e justificar o fluir convencional das coisas tal comose encontram estruturadas no mundo real que Umberto Eco se referecomo sendo o principal mecanismo de consolação da literatura degrande difusão. Entre os vários mecanismos consolatórios presentesna literatura best-seller (final feliz, punição dos “malvados”, os “bons”provam que sempre o foram), o mais fundante, “...o mais satisfatórioe consolador é o fato de que tudo continua no lugar”.

Essa é, para Eco, a grande satisfação, a grande tranqüilidade quea paraliteratura oferece ao seu leitor: “Consolação pela reiteração doesperado”. É a certeza de que se alguma coisa muda é apenas “para quetudo permaneça imutável”. É por isso que, para Eco, a literatura defacilitação é um fenômeno do campo da psicologia social.8

Já, por outro lado, a possibilidade da constituição de uma visãosingular do mundo e de causar alterações nas percepções e conceituaçõesmecanizadas possibilitam à alta literatura o afastamento da relesempiria, do eterno justificar do fluir convencional do mundo “comoele é” e — requisito indispensável para toda verdadeira arte e cultura— abrem-se as portas da promessa, do que a vida poderia ser mas nãoé em um mundo mecanizado, alienado e reificado.

Adorno retrata essa oposição desta maneira: “Aquilo que emgeral e sem mais se poderia chamar cultura, queria, enquanto expressãodo sofrimento e da contradição, fixar a idéia de uma vida verdadeira,mas não queria representar como sendo vida verdadeira a simplesexistência (Dasein) e as categorias convencionais e superadas daordem, com as quais a indústria cultural a veste, como se fosse a vidaverdadeira, e essas categorias fossem a sua medida”.9

Posições avaliativas

Buscando abrir mais o leque de problemas que envolvem a noçãode best-seller, vejamos agora, brevemente, em grandes divisões as

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principais posições avaliativas a respeito desse fato da comunicaçãode massa.

Uma primeira posição frente à literatura de mercado poderiaser chamada de “teoria do degrau” — ou seja, concebe-se a literaturatrivial como uma primeira etapa, um degrau de preparação do leitorpara torná-lo apto a enfrentar textos da literatura de proposta. Entrenós, brasileiros, um adepto dessa postura é José Paulo Paes, queafirma: “Da massa de leitores destes últimos autores [AlexandreDumas ou Agatha Christie] é que surge a elite dos leitores daqueles[Gustave Flaubert e James Joyce] e nenhuma cultura realmenteintegrada pode se dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literaturade proposta, uma não menos vigorosa literatura de entretenimento”.Citemos mais um trecho do texto de Paes para reforçar essa idéia: “...Éem relação a esse nível superior aliás que uma literatura ‘média’ deentretenimento, estimuladora do gosto e do hábito da leitura, adquireo sentido de degrau de acesso a um patamar mais alto...”.10

Esta “teoria do degrau” se opõe ao que podemos chamar de“teoria do hiato e regressão”, — ou seja, à afirmação de que há umhiato intransponível entre a alta literatura e a literatura de mercado,e que esta última jamais poderá ser via de acesso à literatura maior,uma vez que a literatura de entretenimento não só não se sedimentacomo também é um instrumento da regressão do espírito, não écapaz de conduzir a uma consciência crítica autônoma, maseternamente repete e justifica o status quo.

Habermas, um adepto desta postura, é bastante adorniano aoafirmar, “a intimidade com a cultura exercita o espírito, enquanto queo consumo da literatura de massa não deixa rastro: ela transmite umaexperiência que não acumula, mas faz regredir”.11

Uma terceira posição frente à literatura de mercado não a abordanem como degrau de acesso à alta literatura, nem como seu antagônicoabsoluto, mas assume outro ângulo de visão.

Esta terceira postura — chame-mo-la de “teoria do filtro” —postula que os efeitos perniciosos da indústria cultural podem serdiluídos ou até mesmo eliminados e revertidos graças a um filtro derejeição e seleção que o consumidor disporia.

Alfredo Bosi, um dos representantes desta posição, no que serefere a pelo menos um segmento social — o povo — sintetiza assimsua postura: “O povo assimila, a seu modo, (...) Há um filtro com rejeiçõesmaciças da matéria impertinente, e adaptações sensíveis da matériaassimilável (...) incorporados ou re-incorporados pela generosa

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gratuidade do imaginário popular”.12

Em outro texto Bosi salienta que a alta cultura e a cultura popularsão esses elementos filtrantes. Ou seja, quem, à parte dos produtos daindústria cultural, viver a plena experiência da cultura popular ou daerudita terá uma capacidade de filtragem oriunda da resistência queestas esferas culturais têm — “Da corrente de representações eestímulos o sujeito só guardará o que a sua própria cultura vivida lhepermitir filtrar e avaliar. Mas para que se façam a seleção e a críticadas mensagens, é preciso que o espírito do consumidor conheça outrosritmos que não o da indústria de signos. Se isso não ocorrer, teremos,no limite do sistema, o ‘homem unidimensional’ de Marcuse, comtodos os riscos políticos que traz a massificação”.13

Eclea Bosi enfatiza que quando se fala em cultura popular com ofiltro à cultura de massa deve-se falar em uma cultura popular vividaenquanto enraizamento, ou seja, enquanto “participação real, ativa enatural na existência de uma coletividade”.14

Observações

Estas três posturas frente à literatura de massa, que para efeitosorganizatórios chamamos aqui de 1) “teoria do degrau”, 2) “teoria dohiato e da regressão” e 3) “teoria do filtro”, mesmo com seusantagonismos, podem esclarecer aspectos diversos da literatura best-seller.

Entretanto, cada uma destas posições toma outras feições sepensarmos nas consequências de suas respectivas adoções frente a ummercado editorial e a uma realidade social como encontrados noBrasil.

Em relação ao que denominamos aqui “teoria do degrau”, impõe-se pensarmos que seu alcance é limitado quando sabemos que, noBrasil, passamos de uma cultura oral para uma cultura eletrônica semuma mediação significativa da cultura escrita;15 sabemos também ainquestionável hegemonia cultural da televisão no país; e, além disso,sabemos que esta televisão se dedica prioritariamente aoentretenimento.16 Em vista destes fatos não podemos considerar quea televisão no Brasil já domina o espaço do entretenimento e portantoseria supérfluo a defesa de uma literatura de igual teor?17 Aodefendermos tal literatura não estaríamos, em última instância,defendendo uma literatura à reboque da TV e portanto apenasreforçadora dessa?

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Quanto à “teoria do hiato e da regressão”, impõe-se a admiraçãoe o reconhecimento pela precisa caracterização da comunicação demassa e dos efeitos regressores desta. Entretanto se faz presentetambém, quando pensamos no Brasil de hoje e em termos deliteratura, a indagação se tal postura não conduziria, no limite, a umimobilismo ou então a uma radicalização elitista em termos de umaação/análise cultural, dados a alta margem de analfabetismo e opequeno percentual de leitores regulares no país.

A última postura abordada esquematicamente neste texto edenominada aqui de “teoria do filtro” sem dúvida é a que oferece maiordesafio e responsabilidade para os pensadores da cultura no Brasil,uma vez que, para ela, a defesa contra os efeitos nocivos da indústriacultural e da paraliteratura (afirmação que esta posição partilha coma “teoria do hiato”) passa não apenas pela defesa e salvaguarda da altacultura e da obra de arte literária (como na “teoria do hiato”), mas simpor esferas e problemas como cidadania, vivência, interação em umcorpo social, formas de produção e mecanismos de acesso a produtosculturais outros, diferentes e divergentes dos da cultura massiva emassificada.

Notas

1. F. L. Mott, Golden multitudes: the story of best-sellers in the United States, (NewYork, Macmillan, 1947), p. 303.

2. Muniz Sodré, Teoria da literatura de massa, (Rio de Janeiro, TempoBrasileiro, 1978), pp. 82 à 84.

3. D. Prokop, “Fascinação e tédio na comunicação: produtos de monopólioe consciência” in Marcondes F., C. (org.), Dieter Prokop, trad. C. MarcondesFilho, (São Paulo, Ática, 1978), p. 150.

4. Como salienta Muniz Sodré na seqüência de seu texto que acabamosde citar.

5. O. Ducrot e T. Todorov, Dicionário das ciência da linguagem, trad. A.Massano, J. Afonso, M. Carillo e M. Font, (Lisboa, Dom Quixote, 1976),3ª edição, p. 189.

6. Todorov, T., “Tipologia do romance policial” in Poética da Prosa, trad. M.S. Cruz, (Lisboa, Edições 70, 1979), p. 58.

7. J. P. Paes, “Faz falta uma literatura brasileira de massa” in Folha de S.Paulo, 10/01/1989, caderno E, p. 8.

8. Umberto Eco, Apocalípticos e integrados, trad. P. de Carvalho, (São Paulo,Ed. Perspectiva, 1970), pp. 190 à 206.

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9. T. W. Adorno, “A indústria cultural” (conferência radiofônica), trad. A.Cohn, in Cohn, G. (org.), Comunicação e indústria cultural, (São Paulo, Cia.Ed. Nacional/Edusp, 1971), p. 292.

10. J. P. Paes, op. cit., Idem, (obs: enfocaremos aqui três posições críticas,não mencionaremos posturas que consideram qualquer leitura, por sisó, positiva).

11. J. Habermas, Mudança estrutural da esfera pública, trad. F. Kothe, (Rio deJaneiro, Tempo Brasileiro, 1984), p. 196.

12. A. Bosi, “Cultura brasileira” in Mendes, D. Trigueiro (coord.), Filosofiada educação brasileira, (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1985), pp. 162/163.

13. A. Bosi, “Plural, mas não caótico” in Bosi, A. (org.), Cultura Brasileira -Temas e Situações, (São Paulo, Ática, 1987), p. 10.

14. S. Weil, A condição operária e outros estudos sobre opressão, (Rio de Janeiro,Paz e Terra, 1979), p. 317. Citado como epígrafe por Ecléa Bosi em“Cultura e desenraizamento” in Bosi, A. (org.), op. cit. (nota 13), p. 16.

15. Cf. H. M. Enzensberger, “Enzensberger: poder e estética televisiva”(entrevista concedida a Caparelli, S. e Hohlfeld, A.) in Intercom - RevistaBrasileira de Comunicação nº 53, (ano VIII), julho a dezembro de 1985, pp.10 e 11. cf. também J. P. Paes, op. cit., Idem (ver nota 7).

16. Cf. J. Marques Melo, Para uma leitura crítica da comunicação, (SP, Paulinas,1985), p. 79.

17. Vários estudos parecem indicar, em nível internacional, que a TVocupou o lugar da literatura leve, mas não o da grande literatura. cf.Melo, J.M., op. cit., pp. 20 e 21.