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A produção do texto dissertativo-argumentativo Lílian Ghiuro Passarelli
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
É consensual que a escola deve trabalhar a competência leitora e a escritora de
diferentes tipos e gêneros textuais, relacionando-os a suas respectivas funções sociais.
No caso da escrita, vamos entendê-la como um processo cognitivo interno e
desenvolvido pelo sujeito em função de necessidades de uma dada situação discursiva,
o que indica que o produto textual tem de estar de acordo com as convenções sociais e
discursivas específicas do contexto de circulação.
Na escola, por razões didático-pedagógicas, tem sido solicitada a produção de
textos narrativos e dissertativos e, eventualmente, até de textos descritivos. Convém
esclarecer que cada um desses três tipos básicos de textos tem uma função distinta e
que não há textos em estado puro, isto é, os tipos descritivo, narrativo e dissertativo
podem aparecer em um único texto, o que não impede que, por conveniência didática,
esses tipos sejam estudados em separado.
Ainda que nem todos partilhem desta perspectiva, muitos entendem que
narração, descrição e dissertação são gêneros escolares destinados ao ensino de uma
categorização mais específica para atender a necessidades de ordem didática, ou seja, a
tradição escolar se vale de uma tipologia em que os textos aparecem sob essas
denominações, que são tomadas como abstrações. Daí muitos considerarem o texto
dissertativo-argumentativo como o gênero redação escolar. Por isso — desde que
atrelado às práticas sociais de linguagem — o estudo da tipologia textual pode
contribuir para um domínio mais consciente dos textos de um modo geral.
No texto descritivo, cuja categoria principal é a caracterização, o enunciador
constrói uma imagem negativa ou positiva daquilo que descreve, ao apontar as
características individualizantes de algo concreto pelos aspectos que seleciona, pela
adjetivação escolhida e outros recursos. Nesse tipo de texto, ressalte-se a importância
do ponto de vista. É inerente à descrição uma dada posição enunciativa, regendo todo
o direcionamento argumentativo do enunciado. Bem por isso não se separa um
procedimento descritivo do projeto de dizer do enunciador.
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O texto narrativo relata transformações de estado numa progressão temporal, a
partir da visão de mundo do enunciador, manifestada pelas ações das personagens,
delas ou das condições em que vivem e por comentários sobre os fatos que ocorrem.
Esses comentários podem estar ligados à dimensão interpretativa, que fornece as
causas ou as razões aos diversos encadeamentos constitutivos da história.
No texto dissertativo-argumentativo, manifesta-se explicitamente uma opinião
ou julgamento, usando-se para isso conceitos abstratos. O discurso dissertativo típico é
o discurso da ciência e da filosofia; nele, as referências ao mundo concreto ocorrem
como recursos de argumentação, para ilustrar leis ou teorias gerais.
O texto dissertativo-argumentativo caracteriza-se por ser temático, por não
tratar de episódios ou seres concretos e particularizados, mas de explicações e
interpretações genéricas que se tornam válidas para muitos casos concretos e
particulares. As referências a casos concretos e particulares, ou seja, a presença de
sequências descritivas ou narrativas se dá para ilustrar afirmações gerais ou para
argumentar a favor delas ou contra elas. Em princípio, não existe uma progressão
temporal entre os enunciados, embora guardem entre si relações de natureza lógica,
isto é, relações de implicação (causa e efeito; um fato e sua condição; uma premissa e
uma conclusão etc.).
Para o sucesso do desenvolvimento de uma produção textual argumentativa, é
relevante considerar que a argumentação é um procedimento por meio do qual o
sujeito, valendo-se em especial de argumentos, objetiva levar seu interlocutor a adotar
uma posição, a aceitar o que é transmitido, a crer naquilo que é dito.
O argumento é uma manifestação linguística, construída por enunciados que,
relacionados uns com os outros, incluem uma asserção capaz de levar a uma conclusão.
Nos âmbitos formais, a formulação do argumento tem de se resguardar de dois tipos
de erros: os de norma culta e os de argumentação lógica. Toda atividade comunicativa
envolve, além de outros componentes relativos ao domínio da língua, do conhecimento
de mundo e do conhecimento enciclopédico, um componente de capacidade textual,
que diz respeito aos saberes, que são consubstanciados em sequências organizadas de
enunciados, e às habilidades atinentes aos discursos, nas quais se observam os
procedimentos argumentativos dos vários textos.
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Uma característica de fundamental importância do texto dissertativo-
argumentativo é a unidade, daí dizer o senso comum que o texto tem de ter começo,
meio e fim. Nos textos argumentativos, o elemento unificador é a ideia central do
autor, do que decorre que a estrutura da argumentação é dada pela tese defendida.
A organização estrutural de um texto argumentativo não segue uma ordenação
fixa em relação aos elementos necessários. Um texto plenamente satisfatório apresenta,
geralmente, o assunto em discussão, o ponto de vista assumido/a tese defendida, os
argumentos que sustentam a posição assumida, os contra-argumentos, as possíveis
posições contrárias e os argumentos que refutam tais posições, e, na conclusão, a
recuperação do ponto de vista/da tese defendida.
O ponto de partida para a argumentação leva necessariamente o autor a fazer
uma escolha, que pode ser referente tanto aos fatos e valores contemplados, como à
forma com que são apresentados. As seleções feitas serão o indicativo de manifestações
de uma parcialidade na medida em que a elas possam ser opostas outras escolhas.
Essa concepção tem a ver com a de linguagem, vista como processo interacional
entre sujeitos que, com o uso da língua, se comunicam, exteriorizam pensamentos,
informações, mas, sobretudo, realizam ações com o outro, sobre o outro. Assim, quando
alguém se propõe defender uma ideia, está fazendo uma argumentação que pode ser
fraca ou forte para a defesa da ideia. Por meio de uma maneira de dizer, do imaginário
de um vivido, é que são passadas as ideias contidas no discurso do texto. O grau de
força de um argumento depende de vários fatores, entre os quais se destacam a sua
formulação e o contexto em que é utilizado.
As duas características básicas do ato de argumentar são a eficácia e o caráter
utilitário. A eficácia do discurso pode ser compreendida na medida em que é capaz de
suscitar a adesão àquilo que se apresenta como tese, ou seja, conseguir que o
interlocutor adote certo comportamento ou partilhe determinada opinião, sempre
mantendo a coerência argumentativa que diz respeito a três condições: de ser
admissível, de ser verossímil e de ser aceitável.
Argumentar é agir com honestidade, o que confere outra importante
característica a um processo argumentativo — a credibilidade. Para ser produtivo, esse
processo depende de se saber dosar o trabalho com ideias e emoções, despendendo
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mais esforços em persuadir do que em convencer, o que implica dois campos: o do
convencer e o do persuadir.
Em síntese, o ato de argumentar se vale da persuasão, campo no qual
prepondera o emocional, e do convencimento, campo em que prevalece o racional.
Essa distinção clássica opõe os meios de persuadir aos meios de convencer: estes
concebidos como racionais, dirigindo-se ao entendimento; aqueles como irracionais,
dirigindo-se à vontade. Primeiramente, investe-se no convencer — vencer junto com o
outro —, acompanhando-o, sempre com base na ética; na sequência, lança-se mão do
persuadir — levar o outro a acreditar, a aceitar o que se defende — seduzindo-o,
apelando para suas emoções.
Há quem critique o ENEM pela solicitação do texto dissertativo-argumentativo,
sob a alegação de que a atual tendência em relação à produção de textos na escola deva
contemplar diferentes textos que circulam na vida em sociedade, pois, antes de ser um
objeto escolar, a escrita é um objeto social, e a tarefa da escola é levar o aluno a
perceber o significado funcional do uso da escrita, propiciando-lhe o contato com as
várias maneiras como ela é veiculada na sociedade. Daí a relevância de aproximar os
usos escolares da língua escrita com o aspecto comunicativo dentro e fora do contexto
escolar, evidenciando que os usos e funções da escrita variam histórica e culturalmente
e, da mesma forma, variam em função dos contextos definidos por comunidades
específicas (hoje, a comunidade dos usuários da Internet é um exemplo disso).
Tal tendência não entra em choque com a produção do texto dissertativo-
argumentativo, uma vez que também cumprem seu papel. Trata-se de uma função que
extrapola um caráter utilitarista circunstancial e restrito à atividade em si mesma, uma
vez que diz respeito à construção de uma argumentação na qual o enunciador opina ou
julga, valendo-se predominantemente de conceitos abstratos. Como o predomínio de
conceitos abstratos, a referência ao mundo real se manifesta por meio de conceitos
amplos, de modelos genéricos, muitas vezes abstraídos do tempo e do espaço, serve
para organizar e interpretar dados particulares e concretos da realidade.
A escrita do texto dissertativo-argumentativo é um exercício redacional válido,
que faz parte do contexto escolar. Assim como o ENEM, outros exames, inclusive os
exames vestibulares tradicionais, solicitam a escrita do texto dissertativo-
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argumentativo. Ademais, ao ingressar no ensino superior, provavelmente o estudante
terá de produzir textos que dissertem sobre determinado tópico, quer sirvam para
trabalhos ou aferição de conteúdos durante o curso, quer sirvam para compor
trabalhos de mais fôlego ao final do curso.
E mais: em função do propósito comunicativo destinado a manifestar opinião, a
escrita de textos argumentativos pode contribuir para que o sujeito desenvolva sua
habilidade de argumentar, o que pode reverberar como subsídio quando da redação de
outros textos, como uma carta argumentativa, um artigo de opinião, por exemplo.
No caso do ENEM, o fato de esse exame eleger temas de ordem social,
científica, cultural ou política propicia situações favoráveis para o sujeito constituir-se
como cidadão crítico e participativo.
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