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MARISTELA SPERA MARTINS
O trabalho do psiclogo na clnica de Geriatria: relato de experincia em sade e desenvolvimento humano
Dissertao de Mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia.
rea de concentrao: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
Linha de Pesquisa: Sade e Desenvolvimento Humano
Orientadora: Prof. Dr. Walquria Fonseca Duarte
SO PAULO
2011
MARISTELA SPERA MARTINS
O trabalho do psiclogo na clnica de Geriatria: relato de experincia em sade e desenvolvimento humano
(Verso Original)
Dissertao de Mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia.
rea de concentrao: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano
Linha de Pesquisa: Sade e Desenvolvimento Humano
Orientadora: Prof. Dr. Walquria Fonseca Duarte
SO PAULO
2011
AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogao na publicao Biblioteca Dante Moreira Leite
Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo
Martins, Maristela Spera. O trabalho do psiclogo na clnica de Geriatria: relato de
experincia em sade e desenvolvimento humano / Maristela Spera Martins; orientadora Walquria Fonseca Duarte. -- So Paulo, 2011.
104 f. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-Graduao em
Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.
1. Envelhecimento 2. Psicanlise 3. Psicologia hospitalar 4. Multidisciplinaridade 5. Desenvolvimento humano I. Ttulo.
QP86
NOME: Maristela Spera Martins
TTULO: O trabalho do psiclogo na clnica de Geriatria: relato de experincia em sade e desenvolvimento humano
Dissertao de Mestrado apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Mestre em Psicologia.
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. ____________________________________________________
Instituio: ___________________________________________________
Julgamento: ___________________ Assinatura: _____________________
Prof. Dr. ____________________________________________________
Instituio: ___________________________________________________
Julgamento: ___________________ Assinatura: _____________________
Prof. Dr. Walquria Fonseca Duarte
Instituio: Universidade de So Paulo
Assinatura: ___________________________________________________
Dedico este trabalho minha me, meu maior exemplo de pessoa e de
profissional.
AGRADECIMENTOS
Agradeo minha orientadora, Prof. Dr. Walquria Fonseca Duarte, pelo apoio e
encorajamento.
minha famlia: minha me, apoio incondicional; meu irmo, amigo de todas as
horas; meu pai, onde quer que esteja.
Aos colegas e amigos que compartilharam ideias, sentimentos e pensamentos e
permaneceram ao meu lado durante todo o tempo de elaborao desta tese.
Aos professores da ps-graduao pelas aulas enriquecedoras e geradoras de ideias.
Aos colegas do aprimoramento no HCFMUSP: sem o apoio e o companheirismo de
vocs nunca teria conseguido.
minha orientadora e supervisora do aprimoramento, Valmari Cristina Aranha, que
me auxiliou e incentivou desde a Monografia at o projeto de mestrado.
Aos idosos que tive a oportunidade de conhecer, atender, entrevistar, conversar e
compartilhar: com a certeza de que ganhei muito mais com esse encontro do que eles
prprios.
Aos meus parentes que moram longe de mim, mas esto sempre em meu pensamento e
no deixaram de torcer.
Aos amigos com quem j no tenho muito contato, do colgio e da faculdade, mas que
de alguma forma contriburam em minha formao como pessoa, estudante e profissional.
Aos amigos da Clnica Dialtica, que me compreenderam em tantos momentos de
ausncia e com quem aprendi muito.
s amigas psiclogas da Pronep, com quem partilho muitas experincias,
especialmente coordenadora, Soraia, exemplo de liderana.
Finalmente, agradeo a Fernanda, minha amiga goiana, que fez vezes de orientadora,
conselheira, me e irm. Sem sua presena em minha vida nesse momento, nunca teria
conseguido.
Uma flor que dura apenas uma noite
nem por isso nos parece menos bela.
Sigmund Freud
RESUMO
MARTINS, M. S. O trabalho do psiclogo na clnica de Geriatria: relato de experincia
em sade e desenvolvimento humano. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia,
Universidade de So Paulo, 2011.
Partindo dos relatos de atendimentos a pacientes idosos realizados em hospital pblico da
cidade de So Paulo, bem como da experincia enquanto psicloga aprimoranda da equipe de
Geriatria do referido local, os objetivos da presente Dissertao so: caracterizar a velhice
como etapa do desenvolvimento humano; discorrer a respeito das especificidades tericas e
metodolgicas da atuao em clnica geritrica sob o enfoque psicanaltico; discutir a
problemtica dos limites impostos pela percepo da finitude e da morte dentro e fora do
contexto hospitalar; a influncia do contexto scio-histrico na constituio da subjetividade
do idoso; e as caractersticas da interao da equipe de sade no servio de Geriatria.
Apresenta-se a importncia do conhecimento em Geriatria e gerontologia por todos os
profissionais da sade, bem como da comunicao entre os saberes nesse contexto. Reafirma-
se a importncia do saber psicolgico sobre a velhice e a inter-relao necessria entre os
pacientes idosos, profissionais e familiares numa instituio em que a ordem mdica
dominante e prima por excluir a subjetividade. O conhecimento de que existem limitaes dos
profissionais em lidar com o paciente idoso, comumente associado morte, e o
desinvestimento libidinal presentes estabelecem a necessidade de haver propostas de reflexes
sobre o assunto, como a uniformizao dos trabalhos e de seus discursos profissionais para
atingir, progressivamente, os nveis inter e transdisciplinares de funcionamento nas equipes.
Alm da utilizao dos instrumentos de exclusividade dos psiclogos, ou seja, os testes
psicolgicos para a avaliao e interveno nos atendimentos, o profissional da Psicologia, no
referencial em questo, tem como uma das tarefas a reafirmao constante da importncia da
incluso da dimenso subjetiva na compreenso do paciente idoso diante de toda a
objetividade presente no cenrio do hospital.
Palavras-chave: Envelhecimento, Psicanlise, Psicologia Hospitalar, Multidisciplinaridade,
Desenvolvimento Humano.
ABSTRACT
MARTINS, M. S. The psychologist practice in a geriatrics clinic: a report regarding
health and human development. Masters Thesis Institute of Psychology, University of
So Paulo, 2011.
Starting from the psychological care of elderly patients in a public hospital from So Paulo
and the experience as psychologist part of its Geriatrics care team, the aims of this Thesis
were: define old age such as a human development stage; report regarding the theoretical and
methodological particularities about the psychoanalytical approach in geriatrics clinics; the
issues of the restrictions imposed by the finitude and death consciousness inside and out the
hospital context; the influence of the social historical context over the elderly subjectivity; and
the health care teams relationship features on the Geriatrics Service. It is important that all
the team workers have the knowledge about Geriatrics and gerontology, such as the good
communication between them. The Old Age Psychology is one of the most important
guidelines about elderly and the relationship between patients, family and the health care
team, especially in an institution that the Medicine is prevalent and excludes the subjectivity.
The fact that we know there are limitations of the professionals in dealing with the elderly
patient, commonly associated with death and the lack of present libidinal investment, requests
the creation of initiatives for changes, such as establishing common goals and languages
between the different areas. Until we gradually achieve the levels of interdisciplinary and
transdisciplinary communications. Besides the use of particular Psychology instruments, the
psychologist, inside the psychoanalysis reference, has the task of reaffirm the importance of
including the subjectivity on elderly patient treatment, against all the objectivity of the
hospital.
Keywords: Aging, Psychoanalysis, Clinical Psychology, Multidisciplinarity, Human
Development.
SUMRIO
1 INTRODUO ...................................................................................................................... 9
1.1 Objetivos ......................................................................................................................... 16
1.1.1 Objetivos gerais ....................................................................................................... 16
1.1.2 Objetivos especficos .............................................................................................. 17
2 DESENVOLVIMENTO HUMANO E SUAS ETAPAS EVOLUTIVAS ....................... 18
3 HISTRICO CULTURAL DA VELHICE ....................................................................... 25
3.1 A velhice no mundo: uma viagem pelo tempo ............................................................... 25
3.2 Velhice no Brasil: percursos possveis a partir do sculo XX ........................................ 32
4 CARACTERIZAO DA VELHICE: UMA CONTRIBUIO PARA O
ENTENDIMENTO DESSA ETAPA ..................................................................................... 38
5 PSICANLISE E VELHICE: INTERFACES POSSVEIS ........................................... 42
6 VELHHICE E FINITUDE .................................................................................................. 61
7 O TRABALHO DOS PROFISSIONAIS DA SADE NA GERIATRIA ....................... 71
CONSIDERAES FINAIS ................................................................................................. 91
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................................. 95
ANEXOS ................................................................................................................................ 103
9
1 INTRODUO
O atual crescimento da populao idosa um fato evidente no Brasil e no mundo. No
s o crescimento da populao idosa, mas tambm o de idade bastante avanada, na qual
comum o aparecimento de doenas crnicas e limitaes fsicas e mentais. Com a expanso
do nmero de idosos em condies de fragilidade, faz-se necessrio cada vez mais o
desenvolvimento de pesquisas e estratgias para o provimento de cuidados especficos para
essa populao. O envelhecer possui aspectos psicossociolgicos, sociodemogrficos e
econmicos importantes, que tm consequncias para a sociedade como um todo, no s para
o idoso em si.
Em artigo intitulado Envelhecimento e dependncia: desafios para a organizao da
proteo social, disponvel no portal do Ministrio da Previdncia Social
(www.previdencia.gov.br), Batista, Jaccoud, Aquino e El-Moor (2008) apontam para a
evoluo da proporo de idosos (pessoas com 60 anos ou mais) em diversos pases desde o
ano de 1950 e as projees para 2050. No ano de 1950, a participao dos idosos na
populao das regies mais desenvolvidas era de 12,5% do total. No ano de 2000, houve
aumento dessa proporo: na Europa passou a ser de 20,3%; na Amrica do Norte, de 16,2%;
e de 13,4% na Oceania.
As projees para o ano de 2050 indicam que a populao idosa na Europa ser de
36,6%; 27,2% na Amrica do Norte; e 23,3% na Oceania. Quanto aos pases denominados
em desenvolvimento, a populao idosa no ano de 1950 era da ordem de 6% da populao.
Na sia, Amrica Latina e Caribe, esse percentual aumentou em dois pontos no ano de 2000.
A projeo para 2050 de 22,5% do total da populao nessas regies em desenvolvimento.
Com o aumento mundial da expectativa de vida, a parcela idosa da populao sofre
mudanas em sua imagem e representao. Segundo Debert (2004, p. 14) a idia (em relao
velhice) de um processo de perdas tem sido substituda pela considerao de que os estgios
mais avanados da vida so momentos propcios para novas conquistas guiadas pela busca do
prazer e da satisfao pessoal. Ao mesmo tempo em que aumentam as iniciativas sociais
voltadas terceira idade, essa nova imagem do idoso, se considerada como verdade nica, no
favorece o enfrentamento das questes de decadncia fsica, cognitiva e emocional presentes.
Ela acaba negando tais aspectos, numa exigncia para que o idoso tambm os negue e, assim,
no se permita enfrent-los e elabor-los.
http://www.previdencia.gov.br
10
A mdia transmite um esteretipo de eterna juventude, segundo a mesma autora,
vendendo inmeros recursos para apagar as marcas do tempo (cirurgias plsticas, cosmticos,
ginsticas, tratamentos estticos, vitaminas, entre outros). O perigo dessa combinao de
exigncias a excluso dos valores e estilos de vida particulares (DEBERT, 2004, p. 22).
O temor e a negao da finitude, somados a esses aspectos, acentuam as dificuldades
para a chegada e elaborao da etapa da velhice como parte do desenvolvimento humano.
Esses fatores configuram a relevncia do estudo dessa populao e das formas que
vivenciam tal fase da vida e suas mudanas e, no conjunto, despertaram meu interesse
enquanto pesquisadora desde a formao no curso de graduao em Psicologia.
A presente Dissertao fruto de diferentes experincias profissionais que obtive
durante minha formao. Desde a graduao deparei-me com a oportunidade de trabalhar
diretamente com a populao idosa. Destaco, em primeiro lugar, minha participao no
projeto de pesquisa intitulado Estudo das interaes entre idosos e ces em um asilo
beneficiado por um projeto de Terapia Assistida por Animais, parte prtica de uma disciplina
da graduao, realizado em um asilo na cidade de So Paulo. Na ocasio, o grupo observou o
trabalho de voluntrios que faziam parte do projeto intitulado Co do idoso e realizavam
visitas aos moradores do asilo, utilizando-se de ces como facilitadores da comunicao e
interao com os idosos. O objetivo principal da pesquisa era identificar quais eram os
possveis efeitos, ou seja, os comportamentos dos idosos, decorrentes da utilizao de animais
como coterapeutas. A partir dos comportamentos dos idosos na ausncia e na presena dos
voluntrios com os ces, foi concludo que os animais tinham a funo principal de
facilitadores na comunicao e interao entre os idosos e os voluntrios visitadores. Os
resultados foram apresentados em forma de painel na Reunio Anual da Sociedade Brasileira
de Psicologia na cidade de Curitiba, em 2005.
Participei, ainda, da prtica supervisionada, em outra disciplina da graduao, em um
Centro de Referncia de Idosos na cidade de So Paulo. O trabalho foi intitulado Projeto de
oficinas: expectativas e projetos para o futuro. O objetivo foi promover atividades que
envolvessem movimentos corporais, recursos expressivos e dilogos para o levantamento de
estratgias e limites inerentes ao pblico-alvo, visando elaborar projetos para a vida futura. A
partir dos encontros realizados e com a utilizao de trabalhos de expresso corporal,
seguidos de reflexo sobre a temtica exposta e estimulada pelos exerccios, as experincias
desses idosos foram ouvidas e as reflexes consequentes serviram de base para o
delineamento de mudanas pessoais.
11
J formada, ingressei no Curso de Aprimoramento e Especializao em Psicologia em
Hospital Geral, permaneci na clnica geritrica e no ambulatrio de cuidados paliativos de um
hospital pblico referenciado de grande porte em So Paulo, onde realizei o atendimento de
idosos e seus familiares em ambulatrio e enfermaria e tive a oportunidade de constatar as
possibilidades do atendimento hospitalar norteado pela teoria psicanaltica. Alm disso, pude
conviver com diversos profissionais da rea da sade, tanto em reunies formais quanto em
encontros informais e interconsultas. Segue o relato dessa experincia.
Relato da experincia no Servio de Geriatria
O Servio de Geriatria era constitudo por trs modalidades de atendimento: o
ambulatorial (atendimento de mltiplas comorbidades crnicas), o de enfermaria
(atendimento a descompensaes agudas ou investigaes) e do GAMIA (Grupo de
Assistncia Multidisciplinar ao Idoso Ambulatorial). O objetivo era a preveno e promoo
da sade fsica e mental dentro de uma perspectiva multiprofissional. Alm de ter atuado em
todas essas modalidades, tive a oportunidade de participar dos atendimentos no Ambulatrio
de Cuidados Paliativos, onde eram atendidos pacientes considerados pela equipe mdica
como sem possibilidades de cura.
A equipe de Psicologia do Servio de Geriatria era composta pela psicloga
responsvel, duas aprimorandas e algumas psiclogas voluntrias que realizavam pesquisas e
auxiliavam nos atendimentos aos pacientes. Como psicloga aprimoranda, minhas funes
envolviam atender os encaminhamentos formais e informais de pacientes em ambulatrio e
enfermaria, alm de participar de grupos psicoeducativos no GAMIA com a psicloga
responsvel e supervisora no curso.
Alm das aulas tericas e prticas supervisionadas, participava de reunies com equipe
multidisciplinar tanto na enfermaria (onde atuava toda a equipe do Servio de Geriatria),
quanto no ambulatrio de cuidados paliativos (onde se encontravam outros profissionais, alm
dos participantes da equipe usual).
No ambulatrio, a psicloga responsvel encaminhava os casos que julgasse mais
urgentes para atendimento psicolgico. Os atendimentos que realizava eram prioritariamente
breves e focais, de acordo com a necessidade do paciente, e sob superviso. Na enfermaria, a
12
cada psicloga aprimoranda era delegado um nmero de leitos para atendimento aos pacientes
e familiares.
Nas reunies de equipe, tinha a oportunidade de esclarecer as dvidas dos
profissionais solicitantes, compartilhar meu plano de ao e sanar minhas dvidas
consultando as percepes de outros profissionais que pudessem auxiliar nos atendimentos
psicolgicos. Era notvel a dificuldade de comunicao com alguns desses profissionais, de
diversas reas da sade, que pareciam estar mais resistentes com relao aos aspectos
emocionais dos pacientes e, consequentemente, opinio do psiclogo. Deparei-me com as
dificuldades relatadas em muitos trabalhos de pesquisa e relatos profissionais na comunicao
em equipe multidisciplinar (CAMACHO, 2002; TONETTO; GOMES, 2007; SANTOS,
2009), o que afetou a possibilidade de uma viso global do paciente e, consequentemente, de
seu tratamento e recuperao. Alm disso, com o rodzio dos residentes mdicos, o dilogo
tinha que ser reiniciado para uma nova aproximao por parte do psiclogo e tinha que haver
um manejo diferente na comunicao.
No GAMIA, os profissionais de Psicologia atuavam em grupos quinzenais de
discusses e outras atividades de expresso com os pacientes, com temas por eles escolhidos
durante o primeiro encontro do ano: aposentadoria, sexualidade, relacionamentos, perdas,
morte, entre outros.
O Ambulatrio de Cuidados Paliativos ocorria em local diferente dos outros servios e
com frequncia semanal de encontros. Dele participavam alguns profissionais que tambm
atuavam no dia-a-dia do Servio de Geriatria, alm daqueles vindos de outros servios e
outras faculdades conveniadas. Uma peculiaridade que achava importante nesse servio era a
existncia de um assistente espiritual (telogo), que tinha por funo o auxlio nas questes
condizentes religio e espiritualidade dos pacientes. A comunicao desse profissional
com o setor de Psicologia era constante, com troca de experincias e pareceres, o que era de
grande auxlio.
Apesar de as reunies desse Ambulatrio se caracterizarem por priorizar mais os
aspectos mdicos dos pacientes (como j ocorria nas reunies da enfermaria), notava-se que a
preocupao com o aspecto humano no tratamento era mais marcante entre esses
profissionais. O diferencial era a presena do mdico assistente que chefiava as reunies, que
demonstrava interesse pelos aspectos emocionais e espirituais, levando os demais
profissionais a considerarem essas questes como relevantes no tratamento em discusso.
Os encaminhamentos de pacientes feitos formalmente (por meio de fichas) pelos
profissionais da rea mdica do Servio de Geriatria continham informaes extremamente
13
restritas acerca dos motivos pelos quais seria necessria uma avaliao psicolgica e/ou
acompanhamento psicolgico. Havia dois espaos nos impressos, sendo um para a introduo
dos diagnsticos mdicos atuais e outro para as justificativas dos encaminhamentos, que
incluam como seguintes indicaes mais frequentes: falta de visitas de familiares durante
internao; desconhecimento de diagnstico de doena grave; recebimento de diagnstico de
doena grave recentemente; choro constante; paciente poliqueixoso; paciente muito calado
e pouco contactuante com a equipe; resistncia a discutir ou aceitar tratamentos ou
intervenes mdicas; paciente referindo tristeza, depresso, ansiedade, falta de
energia, falta de motivao, solido, cansao excessivo e outros; sintomas somticos
no justificados pelos diagnsticos mdicos atuais; insnia; obesidade; piora nos sintomas das
doenas; familiares com dificuldades de aceitao de diagnstico ou tratamento; familiares
ansiosos, deprimidos, muito solicitantes ou ausentes; entre outros.
Nos atendimentos a esses pacientes, pude notar que alguns encaminhamentos estavam
mais relacionados a dificuldades advindas dos prprios profissionais do que dos pacientes. A
no-adeso aos tratamentos, o choro, a alta ansiedade, por exemplo, eram aspectos que
poderiam ser contemplados com o esclarecimento dos procedimentos mdicos invasivos ou
do prognstico no esclarecido aos paciente e/ou familiares.
A questo da morte me chamou ateno logo no incio dessa experincia,
principalmente no contato com pacientes da enfermaria. Lembro-me do caso de um homem
de pouco mais de 60 anos, com diagnstico de cncer na bexiga, que teve complicaes por
pneumonia. Havia passado por cirurgia de enxerto da aorta ilaca. Perguntei ao mdico
residente se havia algum aspecto observado por ele que mereceria uma avaliao por parte da
equipe de Psicologia e obtive como resposta que o paciente apresentava dores abdominais que
no eram justificadas pelo quadro somtico, pois sua ltima cirurgia havia sido realizada h
bastante tempo. Alm disso, acrescentou que o paciente parecia depressivo.
No contato com o paciente no leito, deparei-me com uma pessoa quieta, que evitava
responder s minhas perguntas. No retorno, o paciente contou-me que estava sendo submetido
a diversos procedimentos pela enfermagem (estava com o brao roxo pelas tentativas de
encontrarem acesso venoso, por exemplo), que no havia recebido inalao e no dormia bem
noite. Nos atendimentos, permanecia cabisbaixo e aparentemente desanimado. Por sua fala
escassa, perguntei se ele gostaria de receber minhas visitas e ele respondeu afirmativamente.
Dizia que piorava a cada dia, que era muito ativo e no se conformava com o fato de estar
internado, sentindo-se chateado. Tinha mais facilidade de falar de assuntos referentes ao
que o incomodava fisicamente.
14
Aps alguns desses encontros, fui abordada pela fisioterapeuta, que relatou que o
paciente estava se recusando em receber sua ajuda, assim como em se alimentar, dizendo
que queria morrer em casa. Acrescentou que o paciente estava se entregando. Na
continuidade de minhas visitas, ele se mantinha focado nas questes fsicas e piora que
sentia na sua sade. Queixava-se de inchao nas pernas e no pnis, ambos causando muito
incmodo. Demonstrava estar mais focado nas suas percepes fsicas e no queria pensar nas
questes psquicas que perpassavam aquilo tudo que estava sentindo: a falta de atividade por
conta da doena, a perda de sua funo profissional, a posio de doente e dependente de
cuidados, alm da solido.
A impresso que tive durante todos os atendimentos era a de que realmente ele estava
desinvestindo na prpria vida e a nica coisa a que ele se ligava era a doena e os sintomas
fsicos que o preocupavam. Desejava a cura rpida e a eliminao dos sintomas que o
incomodavam, perpetuando a perda de sua identidade.
O paciente obteve alta sem que pudesse ter mais tempo para ouvi-lo. Pouco ampliei os
espaos destacados em seu pronturio mdico e no consegui ir muito alm dos sintomas que
narrava.
Diferentemente dos demais profissionais, imersos em suas aes, importantes e
essenciais, procurava constantemente refletir minha prpria prtica: que tipo de interveno
seria a mais adequada e como poderia ter melhor oferecido um espao para a subjetividade
desse paciente? E para a equipe? O que estava por trs das queixas manifestas daquele idoso?
Moura (1996) discute a importncia de o psiclogo oferecer uma escuta que permita a
explicitao do sofrimento e a discriminao entre a escuta mdica e a subjetiva. Acredito ter
conseguido uma escuta emptica junto ao paciente, que necessitava ser acolhido nas dores de
seu corpo naquele momento.
As indagaes em torno desse caso foram importantes nessa etapa de minha formao
e motivaram a busca de um melhor entendimento dos aspectos que perpassavam a doena e os
motivos que faziam com que os pacientes parassem de investir na prpria vida num
movimento em direo morte (real ou psquica). Optei pela escolha dessa temtica para
desenvolver a Monografia de concluso de curso.
O objetivo geral da Monografia foi identificar a percepo da finitude e sua relao
com a capacidade de investimento libidinal em idosos atendidos em ambulatrio e enfermaria.
Um total de trinta idosos com 60 anos ou mais de idade, de ambos os sexos, participou da
pesquisa espontaneamente, sendo dez provenientes da enfermaria e vinte do ambulatrio.
Dentre os participantes do ambulatrio, cinco deles eram provenientes do projeto GAMIA.
15
Os instrumentos utilizados foram: um protocolo composto por entrevista semidirigida
elaborada pelos pesquisadores, contendo dados de identificao e questes pertinentes ao
tema e o Procedimento de Desenho-Estria com Tema: uma pessoa idosa, elaborado por
Vaisberg (1997). Os instrumentos foram aplicados nessa ordem. Os dados obtidos por meio
das questes da entrevista foram analisados de forma quantitativa, por meio de verificao da
frequncia de contedos, e de forma qualitativa, pela interpretao segundo referencial
psicanaltico freudiano. A tcnica grfica foi analisada segundo metodologia proposta pela
autora (VAISBERG, 1997).
Destacarei alguns resultados obtidos na pesquisa. Nas entrevistas (ANEXO I), a perda
de entes queridos foi o fato indicado como mais marcante pelos pacientes no decorrer de suas
vidas. Com relao ao tema da morte, a maioria respondeu que j havia pensado na questo e,
dentre os demais, a maioria tentou uma fuga do tema. Dos participantes que disseram pensar
na morte, a maioria indicou sentir medo da mesma. O perodo da noite foi o mais indicado
como o que desencadeia o pensamento de morte, seguido das ocasies nas quais havia uma
piora na sade. Sobre a percepo do outro com relao a ser idoso, os pacientes associaram
uma viso negativa, como sem produtividade ou valor pessoal.
A rotina indicada foi considerada montona, sem muitas atividades fora de casa. A
maioria dos participantes relatou ter desejo de mudar algo em suas vidas, particularmente seu
estado de sade ou algo que fizeram em seu passado. Dos que no manifestaram desejo de
mudanas, a maioria disse estar satisfeito com a prpria vida e as outras respostas referiram-se
desesperana causada pelas limitaes fsicas e pela proximidade da morte. Houve escassez
de planos para o futuro, principalmente por conta da idade avanada e das limitaes do
corpo. O desejo de ter sade a expectativa mais frequente em relao ao futuro.
Na comparao das respostas nos diferentes contextos hospitalares, destacaram-se
alguns aspectos. Quando perguntados sobre o que mais marcou as vidas pessoais, a perda de
entes queridos foi a resposta mais frequente no ambulatrio, sendo que na enfermaria foi a
realizao pessoal. A grande maioria dos pacientes internados demonstrou esperana de
melhora no estado de sade. Destacou-se a baixa frequncia (em relao aos participantes
ambulatoriais) com que os internados responderam j ter pensado em morte. Eles justificaram,
por exemplo que no se devia pensar; no queriam pensar; no pensavam em suicdio; a morte
era natural e tinham esperana de melhora. A grande maioria dos participantes internados
relatou uma falta de desejo de mudar algo em suas vidas e completa ausncia de planos para o
futuro.
16
A anlise do Procedimento de Desenho-Estria com Tema permitiu identificar
contedos que indicaram a representao mais frequente de um idoso frgil, sem recursos
para lidar com os limites do envelhecimento e a percepo da finitude. A velhice pareceu ser
vista como sinnimo de perdas e sofrimento, sem espao para um desenvolvimento emocional
que permitisse uma identidade prpria, com a diminuio de investimento libidinal. Os
recursos mais utilizados para compensar tais aspectos foram: a utilizao dos mecanismos de
defesa como negao das limitaes e finitude e fuga ao passado ou regresso. Apesar desses
aspectos, 25% das produes apresentaram caractersticas que evidenciaram a presena de
recursos egicos satisfatrios para o enfrentamento dos conflitos.
Em sntese, a representao do idoso nessa amostra evidenciou as perdas e o
sofrimento. Os participantes demonstraram, em sua maioria, uma escassez de recursos para
elabor-los, com a consequente utilizao de mecanismos de defesa para no entrarem em
contato profundo com os conflitos internos e com a percepo da finitude.
As concluses dessa Monografia demonstraram que foi possvel identificar que os
idosos, de maneira geral, possuam uma dificuldade de desinvestimento libidinal em objetos
perdidos, na juventude e na imagem de um corpo idealizado. Tais fatores colaboraram para
que o reinvestimento na vida atual e a ressignificao da maturidade no ocorressem de
maneira natural.
As experincias como profissional e pesquisadora nesse perodo de minha formao
impulsionaram-me para o ingresso no programa de ps-graduao e elaborao da presente
Dissertao, na direo de uma maior aproximao da Psicologia e sua ao profissional com
esses idosos que apresentam um corpo doente, um conjunto de sintomas, uma histria pessoal
e subjetividade, aspectos para os quais a medicina pouco tem a oferecer. O medo da morte e a
finitude foram os elementos norteadores nessa difcil tarefa.
1.1 Objetivos
1.1.1 Objetivos gerais
Discorrer sobre a velhice como uma etapa do desenvolvimento, situ-la num contexto
socio-histrico e analisar suas implicaes na constituio subjetiva do idoso;
17
Refletir sobre as problemticas da morte e da finitude com relao aos limites
impostos pela velhice dentro e fora do contexto hospitalar;
Considerar e oferecer possibilidades de intervenes teraputicas ao paciente idoso, a
partir do relato de atuaes do psiclogo em contexto hospitalar.
1.1.2 Objetivos especficos
Apresentar pressupostos psicanalticos que possam nortear o entendimento do
psiquismo do idoso e as intervenes nesse paciente;
Oferecer subsdios para a atuao do psiclogo e sua insero em equipes
multiprofissionais de sade em Geriatria.
18
2 DESENVOLVIMENTO HUMANO E SUAS ETAPAS EVOLUTIVAS
A Psicologia do Desenvolvimento no se voltava para o estudo da idade adulta e
velhice (life-span) at meados do sculo XX. Havighurst (1973), entre outros autores,
denominam life-span como a linha da Psicologia do Desenvolvimento que estuda os aspectos
ontogenticos e suas mudanas ao longo da vida, do nascimento at a morte. O autor fixa os
anos 1930 como a poca em que apareceram os pensadores que expandiram o estudo do
desenvolvimento humano at a idade adulta e a velhice, como Charlotte Bhler, Else Frenkel-
Brunswick, Erik Erikson e Hans Thomae. A partir de ento, comearam a surgir estudos
empricos longitudinais, estudos de caso, biografias e autobiografias. A preocupao do
campo de estudo life-span com o desenvolvimento da personalidade e os processos de
socializao que a influenciam, explica o autor, principalmente a partir da idade adulta.
Nas teorias psicolgicas do desenvolvimento, entre 1850 e 1920, mais focadas na
infncia e na adolescncia, era suposto que a personalidade era prioritariamente controlada
por aspectos hereditrios, individuais e raciais. Somente depois desse perodo que os
psiclogos se deram conta da importncia do ambiente no comportamento humano.
Durante as primeiras dcadas do sculo XX, os psiclogos do desenvolvimento
passaram a considerar a hereditariedade na interao com o ambiente social como um dos
fatores geradores da personalidade. Os behavioristas viam a personalidade como uma tabula
rasa; aqueles que se interessaram pelo desenvolvimento life-span viam a personalidade como
um padro de comportamento que surge a partir da interao entre as esferas biolgica, social
e a ao do prprio indivduo sobre o ambiente social e vice-versa.
A autora Charlotte Bhler, uma das pioneiras no movimento life-span em Viena,
solicitava que os seus alunos coletassem histrias de vida de pessoas idosas. A partir disso,
Bhler dividiu o desenvolvimento em cinco perodos, classificados de acordo com o critrio
da idade. Sua colega, Else Frenkel-Brunswik, coordenou nos anos de 1950 um estudo em
Berkeley, Califrnia, com homens de 60 anos ou mais. Foi o primeiro estudo sistemtico da
personalidade de homens na fase de aposentadoria (HAVIGHURST, 1973).
Erik Erikson saiu da Europa para os Estados Unidos para estudar o desenvolvimento
de crianas e adolescentes. Criou sua teoria baseada em oito tarefas psicolgicas que o
indivduo deveria cumprir em cada fase de seu desenvolvimento, dividido por faixas etrias.
J Bernice Neugarten, na Universidade de Chicago, coordenou, entre 1954 e 1964, um estudo
19
sobre o desenvolvimento da personalidade da meia-idade para a velhice (HAVIGHURST,
1973).
Neri (2001) concorda com Havighurst quando discute a questo da histria da
Psicologia do Desenvolvimento. Afirma que, desde o surgimento das primeiras teorias, a
etapa da infncia tem ocupado lugar de destaque nos estudos, com nfase em pesquisas
direcionadas para os ganhos evolutivos. A velhice foi estudada por muito tempo dentro dessa
rea, mas com um espao de importncia inferior quele dado para a Psicologia Infantil, como
podemos verificar tambm em Baltes (1995) e Neri (2005).
Os conceitos de desenvolvimento e envelhecimento so chamados de processos
adaptativos pela Psicologia e pela gerontologia. Eles caminham juntos, estando presentes em
todo o ciclo vital humano, numa tenso constante entre ganhos e perdas. Partindo-se do ponto
de referncia de que o padro normativo do desenvolvimento o estgio da vida adulta
(saudvel, produtiva e com envolvimento social), a infncia ocupa o lugar de destaque nesse
ciclo como sendo a etapa em que existe maior probabilidade de ocorrerem ganhos evolutivos.
A velhice colocada como a etapa em que h maior probabilidade de haver a ocorrncia das
mudanas evolutivas caracterizadas como perdas (NERI, 2001).
A partir da teoria freudiana do desenvolvimento infantil, o psicanalista Erik Erikson
apresentou sua prpria teorizao sobre a maturao, adicionando quatro etapas que vo at a
velhice. Sua concepo de maturao baseia-se no conceito de ciclo de vida, ou seja, as etapas
do desenvolvimento so constitudas por ciclos que implicam em sucesso, repetio e
tendncia ao fechamento, assim como a prpria vida humana concebida como um ciclo.
Cada etapa constitui um momento de crise evolutiva que depende da interao do indivduo
com a sociedade, culminando no surgimento de qualidades do ego esperana, domnio,
propsito, competncia, fidelidade, amor, cuidado e sabedoria (NERI, 2007). A seguir sero
apresentadas as etapas dessa teoria.
A primeira etapa de maturao de Erikson a fase beb (confiana bsica versus
desconfiana bsica), correspondente fase oral na teoria freudiana. O autor destaca o
desenvolvimento de um ego rudimentar, em que a criana aprende a confiar na continuidade
dos provedores externos e, ao mesmo tempo, na prpria capacidade de lidar com as
necessidades urgentes. A gustao e a experimentao constantes pela boca originam o
princpio da diferenciao entre o externo e o interno. A confiana nasce do cuidado recebido
pelo beb e das frustraes, que contribuem para a continuidade do desenvolvimento
(ERIKSON, 1976).
20
A segunda etapa, a da infncia inicial (autonomia versus vergonha e dvida),
corresponde fase anal em Freud. Caracteriza-se pelo controle dos esfncteres. A criana
agora tem o desejo de escolher o que quer e o que no quer, tendo o poder de autonomia. Para
isso, necessrio que se tenha a confiana estabelecida na fase anterior. Para o autor, o
sentimento de autocontrole sem a represso externa, que causa a vergonha e a dvida, produz
um sentimento de boa vontade e orgulho.
A etapa da iniciativa versus culpa inicia-se com capacidade de andar e com a
genitalidade infantil. A criana sente-se potente para fazer conquistas e atacar pelo gosto de
ser ativa e estar em movimento. Essas iniciativas de ataque podem se dirigir aos irmos e ao
pai, rivais em potencial pela ateno exclusiva da me. O fracasso desses ataques traz a culpa
e a ansiedade. Os genitais so percebidos e erotizados, mas com isso surge o complexo de
castrao. nessa fase tambm que o superego1 comea a se formar e a criana se v diante
de uma lei externa que comea a internalizar-se (auto-observao e autopunio). A unio do
poder adquirido e da culpa, consequentes da etapa edpica, fazem com que, nessa fase, a
criana esteja mais apta a cooperar e a identificar-se com seus iguais, procurando livrar-se do
demasiado conflito infantil instaurado (ERIKSON, 1976).
A quarta etapa do desenvolvimento humano descrito por Erikson denominada
indstria versus inferioridade. O autor descreve essa fase como produtiva, no sentido de que a
criana j domina a locomoo e os modos orgnicos e j se constitui num genitor rudimentar.
Aproxima-se o perodo de latncia e ela comea a sublimar seu desejo por tomar o lugar de
um de seus pais e ter o amor incondicional do outro (fase edpica). Assim, ela passa a
conquistar o reconhecimento por meio de suas conquistas produtivas na vida fora da famlia.
Dois perigos apresentam-se nessa fase: um sentimento de inferioridade ou a autorrestrio. O
sentimento de inferioridade e inadequao surgem quando a criana desacredita de seu status
no grupo de que participa e no consegue se identificar mais com seus integrantes e sua
produo. Nesse momento, ela regride etapa edpica e rivalidade familiar j conhecida. J
a autorrestrio o perigo descrito como a limitao do homem ao seu trabalho, considerando
a produo seu nico critrio de valor.
A puberdade e a adolescncia so caracterizadas pela etapa identidade versus confuso
de papel. A rapidez do crescimento e desenvolvimento do corpo e a maturidade genital
provocam a quebra da relativa uniformidade anterior. Agora h uma preocupao excessiva
1 O superego definido por Freud como a instncia que representa a interiorizao das exigncias (desejo) e interdies parentais. Sua formao data da resoluo do complexo de dipo e da identificao com a instncia parental, da qual se forma o ideal de ego. Suas funes so relacionadas conscincia moral, autocrtica e ao modelo identificatrio. (LAPLANCHE, 2001).
21
com sua imagem diante dos outros e com o emprego atual de suas habilidades anteriormente
adquiridas. Os adolescentes nomeiam seus dolos e seus adversrios na tentativa de formar
uma identidade. Formam grupos identificados com heris em comum (nos quais projetam sua
imagem egica), na tentativa de superar sua falta de identidade ocupacional. Alguns
identificam-se com um esprito cruel de cl, no tolerando os que so diferentes, numa
tentativa de defesa contra a confuso do sentimento de identidade (ERIKSON, 1976, p.
241). Segundo o autor, a mente adolescente est entre a moral adquirida na infncia e a tica
que dever ser desenvolvida no adulto.
A sexta etapa, do adulto jovem, denominada intimidade versus isolamento. O jovem
baseava-se na busca de sua identidade e agora, adulto, adquiriu segurana o bastante para se
dispor a fundi-la com a de outros, ou seja, est preparado para ter relaes de intimidade e ser
fiel a essas ligaes. Isso implica enfrentar o temor da perda do ego, pois tais relaes
impem sacrifcios e autoabandono. Assim, o perigo nessa etapa se constitui na evitao desse
risco: no se relacionar intimamente e at destruir aqueles que constituem uma ameaa
potencial prpria identidade. Essa etapa se caracteriza pela possibilidade do exerccio da
real genitalidade (prazer genital), bem como de uma maior capacidade de se suportar
frustraes.
A etapa generatividade versus estagnao aquela em que surge a preocupao em
firmar e guiar a nova gerao, ou seja, o homem maduro necessita produzir e cuidar das
produes (investimento libidinal no que foi gerado). O perigo dessa fase uma regresso
acompanhada pelo sentimento de estagnao, que pode advir de uma falta de crena na
espcie, vinda da primeira infncia, e um excesso de amor-prprio decorrente.
A integridade do ego versus desesperana a etapa da maturidade do homem. Erikson
(1976) denomina como integridade do ego a capacidade de desenvolvimento das sete etapas.
O fato de o ser humano ter chegado a uma etapa em que se encontra na condio de criador de
coisas e pessoas (generatividade) implica na adaptao s vitrias e frustraes que tal tarefa
traz consigo. essa adaptao que permite a integridade do ego, ou seja, a aceitao do
prprio ciclo de vida acompanhada de um amor (gratido) aos pais. Esse estado mental traz
consigo a capacidade de lutar contra ameaas sua integridade fsica e psquica e de aceitar a
morte como algo natural, sem o carter de caos. O perigo a perda da integrao do ego, que
se caracteriza pelo temor da morte e desesperana, que traz consigo um descontentamento de
si e da prpria vida, cegando o indivduo para outras possibilidades de se viver.
22
Assim, no desenvolvimento maturacional de Erikson, a maturidade depender de
como foram construdas todas as etapas anteriores da vida do indivduo, tendo como ponto de
partida a confiana bsica que ele deve adquirir na primeira infncia.
Os referenciais sobre os estudos da vida adulta tm ainda outros critrios: idade
cronolgica (LEVINSON, DARROW, KLEIN, LEVINSON, 1978); individualidade
(NEUGARTEN, 1968); curso de vida (BALTES, 1979); transies do desenvolvimento
(LOWENTHAL, THURNHER, CHIRIBOGA, 1975) e crises de desenvolvimento
(SCHLOSSBERG, 1981).
Segundo Levinson (1986), o estudo do desenvolvimento do ser humano deve ser um
exame detalhado do curso de sua vida numa sequncia de anos: desejos e fantasias,
relacionamentos amorosos, participao em sistemas sociais, mudanas no corpo, tudo que
tem uma significncia no curso da vida, segundo a evoluo desses padres ao longo do
tempo. Arajo e Carvalho (2005) reiteram essa questo.
Historicamente, as grandes figuras do desenvolvimento humano, como Piaget e Freud,
assumiram que o desenvolvimento humano completado na sua maior parte at o final da
adolescncia. As mudanas nessa concepo de desenvolvimento somente at a adolescncia
vieram nos anos 1950, quando surgiram os campos de estudo da Geriatria e gerontologia.
A concepo de Levinson chamada ciclo de vida (life cycle) deriva das teorias de Erik
Erikson, Jung, Von Franz, Jacobi na Jaffe, Neugarten, Ortega y Gasset e van Gennep
(LEVINSON, 1986). Em sua teoria, o autor divide o ciclo vital em eras e cada uma possui sua
prpria composio biopsicossocial e tem distintas contribuies para o todo do ciclo. A
transio entre uma era e outra dura em mdia cinco anos (entre o trmino da ltima e o incio
da prxima). Cada era e perodo de desenvolvimento tem incio e trmino em uma mdia de
idade definida. As eras definidas pelo autor so as seguintes: pr-idade adulta (at os 22 anos),
incio da vida adulta (17 aos 45 anos), idade adulta mdia (40 aos 75 anos) e idade adulta
tardia (a partir dos 60 anos).
Cada transio entre uma era e outra demanda uma tarefa diferente. O conceito-chave
dessa concepo de Levinson , ento, chamado life structure (estrutura de vida), ou seja,
existe um padro subjacente a cada momento da vida de um indivduo a ser estudado e
compreendido considerando suas particularidades.
Para Baltes (1979), o desenvolvimento psicolgico envolve o estudo das constncias e
mudanas no comportamento do ser humano durante seu ciclo de vida. Deve-se reconhecer: a
multidirecionalidade das mudanas ontogenticas; os fatores conectados idade e os que no
esto conectados; a interao dinmica entre perdas e ganhos; a nfase nos fatores histricos e
23
outros contextos estruturais; alm da variao da plasticidade no desenvolvimento. Para
acessar os resultados dos ganhos e perdas do desenvolvimento, necessrio conhecer as
demandas colocadas pelo indivduo e por seu ambiente durante o processo vital de adaptao.
Na perspectiva de Lowenthal, Thurnher e Chiriboga (1975), o foco est no processo de
mudana que ocorre entre cada estgio do desenvolvimento, contribuindo para o
conhecimento dos eventos e formas de adaptao na vida do indivduo.
Schlossberg (1981) enfoca tambm em sua teoria a questo de como os indivduos
lidam com as mudanas. Reconhecendo que o desenvolvimento psquico no termina na
adolescncia, o autor explica que medida que seguimos no curso da vida, experienciamos
mudanas e transies que constantemente implicam em redes de relacionamento,
comportamentos e percepes de ns mesmos. Cada um difere em suas habilidades para se
adaptar s mudanas. Alm disso, cada indivduo pode lidar de forma diferente com
mudanas semelhantes, dependendo do momento de sua vida.
A morte e a percepo da finitude fazem parte da aceitao/negao do prprio ciclo
de vida, com ameaas integridade fsica e psquica. Diante de tal conflito, temos que a
desesperana impede o encontro de formas possveis de adaptao crise, promovida pelo
aparecimento de doenas do corpo e da mente.
Segundo Erikson (1976), a confiana bsica que deveria ter sido construda na
primeira etapa do desenvolvimento um dos pontos principais que ir configurar as
capacidades de manejo com as necessidades urgentes da vida, como as decorrentes dos
processos de envelhecimento e adoecimento.
Essa questo nos remete importncia da escuta para uma ressignificao da
confiana bsica vivenciada pelo paciente, em especial pelo profissional de Psicologia.
Pensando do mbito hospitalar e no acometimento do corpo fsico por doenas crnicas,
muitas vezes limitantes ou at incapacitantes, tal ressignificao torna-se mais difcil, mas, ao
mesmo tempo, mais importante para o enfrentamento da crise da maturidade, ltima etapa
para Erikson (1976).
O que se escuta ou deve ser escutado? A resposta est nas palavras do prprio
paciente, de seus familiares e da equipe de profissionais. Como se escuta nos remete
apropriao do conhecimento em Psicologia do Desenvolvimento enquanto uma das reas de
saber cientfico.
Os autores destacados apresentam em suas teorias uma base para a compreenso do
desenvolvimento e da etapa de maturidade. Os ciclos caminham favorecendo as constncias e
proporcionando mudanas, fundamentais para a organizao progressiva da integridade
24
psquica. No obstante, h encontros com o isolamento, a estagnao e a desesperana, por
exemplo, com consequncias na capacidade de investimento libidinal.
A seguir, a velhice ser a etapa de desenvolvimento em destaque.
25
3 HISTRICO CULTURAL DA VELHICE
3.1 A velhice no mundo: uma viagem pelo tempo
Viajando pelo tempo constatamos que lidar com o idoso difere de acordo com as
crenas, os costumes, a poca histrica e a presena ou no da religio em cada sociedade. A
velhice e a juventude so conceitos criados historicamente, no sendo absolutos, mas
modificando-se com o percurso de nossa cultura (BIRMAN, 1995).
Simone de Beauvoir foi uma intelectual existencialista e escritora francesa,
companheira de Jen-Paul Sartre, que esteve frente de seu tempo em todas as suas obras
(incluindo romances, memrias e ensaios), as quais em grande parte provocaram discusses e
propostas de mudanas acerca de temas relacionados s estruturas psquicas, polticas e
sociais, inclusive dos temas da velhice e da morte.
Beauvoir (1990), ao publicar na dcada de 1970 o seu livro sobre a velhice, queria
provocar uma quebra no que considerava uma conspirao do silncio (p. 8). O tema da
velhice, at ento, era tido como algo vergonhoso e at proibido de se falar e pensar. Com
estilo contestador, Beauvoir decidiu escrever sobre os aspectos biopsicossociais e existenciais
dessa etapa da vida em uma obra considerada ousada para a poca, tornando-se uma
referncia literria no tema. Num tom de denncia, descreveu as situaes nas quais as
sociedades, em diferentes pocas e culturas, lidavam com os idosos.
Caminhando com a autora nesses paradoxos, em sociedades primitivas a escassez de
alimentos e o nomadismo obrigavam os mais jovens a deixarem excludos e abandonados os
mais velhos, mais fracos e dependentes; em sociedades em que aparecem rituais de magia
e/ou prticas religiosas especficas, os idosos eram detentores de conhecimentos valiosos para
a manuteno dos costumes entre os mais jovens, sendo preservados e cuidados
(BEAUVOIR, 1990).
Em sociedades chamadas histricas, como na China, o ancio era respeitado e tinha o
poder de deciso na famlia (casamentos arranjados, direito sobre a vida e a morte dos filhos,
etc.). A autora cita os judeus, que, segundo relatos bblicos, consideravam os idosos dignos de
26
respeito por sua sabedoria e longevidade (considerada uma recompensa dada por Deus aos
indivduos virtuosos).
Entre os gregos, a velhice era ligada, em geral, ao conceito de honra (gra e gron so
termos utilizados para referir-se idade avanada, sinnimos de privilgio da ancianidade).
Em contraposio, Henrique Fortuna Cairus2, em texto sobre a referncia aos idosos na
literatura grega, cita que o personagem Aquiles, no poema homrico Ilada, refere-se ao idoso
como algum que j deveria ter morrido em combate e, por isso, sua existncia deve ser
justificada e sustentada pela palavra. Os idosos da obra de Homero so a fonte da verdade e
da sabedoria (CAIRUS, 2000). No entanto, Cairus refere-se a uma divergncia entre os poetas
lricos da poca. Ele cita o excerto de Mimnermo (sc. VII-VI a. C.) como exemplo:
breve como um sonho e repleta de honra a juventude; enquanto a terrvel e disforme velhice pende repentinamente sobre nossa cabea, odiosa e tambm desonrada, ela torna irreconhecvel o homem, e fere seus olhos e suas mentes ao envolv-los.
O poeta refere-se degenerao da velhice como algo digno de repulsa, em oposio
beleza e sade da juventude.
Retornando Beauvoir (1990), na Grcia antiga as capacidades individuais no tinham
importncia diante da posse da terra. Assim, os idosos, que acumulavam riquezas durante toda
sua vida situavam-se no topo da escala social. Em Esparta, ao serem liberados das obrigaes
militares aos 60 anos, os idosos tinham a funo de manter o status quo e, assim,
conquistavam o respeito dos mais jovens. Atenas, enquanto aristocrtica e conservadora, era
governada pelos idosos. Com a democracia instituda mais tarde, mantiveram-se somente
alguns poderes, como orculos, de ordem sobrenatural.
Os pensadores gregos Plato e Aristteles tinham concepes divergentes quanto
velhice. Plato estava mais voltado sua opinio poltica: o reinado das competncias, do
conhecimento da verdade (BEAUVOIR, 1990, p. 134). Somente aquele que contemplava as
ideias era sbio o bastante para governar e isso s se tornaria possvel a partir dos cinquenta
anos. O declnio fsico no tinha relevncia diante da imortalidade da alma.
Aristteles considera a alma diretamente ligada ao corpo, no s ao intelecto. Por isso,
a velhice s era feliz se o corpo estivesse intacto. O declnio do corpo acometia o indivduo
2 Professor Adjunto de Lngua e Literatura Grega, Diretor Adjunto de Ps-Graduao e Pesquisa da Faculdade de Letras Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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por inteiro, apesar das experincias e da sabedoria do idoso. A velhice apresentava-se, ento,
como o oposto da juventude: uma involuo como um todo (nos desejos, na segurana, no
desempenho, nas emoes, nas relaes com o outro, na esperana, no prazer e na fora). O
idoso nunca poderia estar no poder, pois um indivduo enfraquecido, debilitado. Apenas a
classe mdia de militares (jovens) deveria governar a polis.
Na Roma antiga, enquanto prevalecia a Repblica e o poder era da oligarquia, havia
um favorecimento aos idosos por estarem afinados ao seu conservadorismo e possurem a
maioria dos votos no Senado. O idoso tinha todo o poder e respeito dentro das famlias, como
patriarca, detendo as decises sobre todos os membros mais jovens. Mas a Histria e a
Literatura no possuem a mesma concepo do idoso romano. Em vrias obras, o idoso
aparece como uma figura de avareza, que atrapalha os prazeres de seus filhos. Denunciavam-
se conflitos entre as geraes nas famlias. Outras vezes, ele aparece como objeto de escrnio.
Com a decadncia do sistema oligrquico romano, os idosos perderam seus privilgios
e poderes polticos. O Senado foi substitudo pelo poder dos militares, homens jovens. Com
interesse na volta do poder ao Senado, o senador Ccero, aos 63 anos, escreveu De Senectute:
uma defesa aos idosos, onde tentou demonstrar que a idade trazia o aumento das capacidades
e da sabedoria. O mesmo interesse pelo poder inspirou Sneca, cem anos depois, a escrever as
Epstolas: defendeu a naturalidade da velhice e negou qualquer decadncia dela originada.
J os poetas eram muito mais sinceros em relao sua viso sobre a velhice, pois no
tinham interesses polticos para defend-la: Ovdio e Juvenal, por exemplo, descreveram a
feira e a decadncia do idoso, alm das perdas dos entes queridos decorrentes de se viver por
muito tempo. Ridcula aos olhos dos autores cmicos e do pblico deles, a velhice , para os
poetas, uma potncia destruidora cujos golpes eles temem. (BEAUVOIR, 1990, p. 153).
Entre os brbaros, guerreiros que viviam apenas para lutar, h poucas informaes
sobre os idosos em sua histria. Para eles, os deuses criaram o mundo e, em sua mitologia,
houve combates entre eles, que j governavam, e os novos deuses. Os jovens venciam os
velhos deuses a quem o tempo desgastou e enfraqueceu. Acreditava-se que os idosos eram
poucos e no tinham muito valor. Beauvoir ilustra essa desvalorizao com uma tabela que
descreve a compensao pecuniria exigida no caso do assassinato de um homem livre (p.
155): entre os visigodos, o menor valor era do homem com mais de 65 anos.
As invases brbaras marcaram o fim do mundo antigo, ao lado do triunfo do
cristianismo, que se tornou predominante entre os brbaros e todo o Ocidente graas adoo
de costumes dos diferentes povos, em particular, dos germnicos. Tendo assimilado a cultura
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clssica a partir do sculo III, o cristianismo tambm acatou a ideia negativa da velhice. A
nica contribuio positiva fora a criao de asilos e hospitais no sculo IV.
No fim da Alta Idade Mdia, descrita como um perodo de destruio, degradao das
castas, regresso das tcnicas agrcolas e ruralizao da sociedade, a religio no contribuiu
para melhorar a sorte dos idosos. O trabalho pesado na terra impedia a sua participao na
produo. Os jovens conduziam a sociedade com sua fora e at mesmo os papas nomeados
eram, na sua maioria, jovens. No campo, a uma certa idade, o pai cedia ao filho mais velho
sua terra, pois no tinha mais foras para trabalhar. Ento, o pai idoso, sem mais autoridade,
era frequentemente maltratado pelos filhos. Mesmo nas cidades, com o auxlio de instituies
aos velhos e aos doentes, os recursos eram insuficientes, razo pela qual eram fadados
mendicncia. Na sociedade feudal (que toma forma por volta do ano 1000), a fora fsica do
jovem tambm era pr-requisito para ter o poder. Os valores mais exaltados eram os da
juventude, que defendia o feudo com sua espada.
A ideologia do cristianismo foi profundamente influenciada pela supervalorizao da
juventude: nas camadas populares, a figura do Cristo era central na nova religio e mais
evocada, mesmo no se fazendo esquecer o Pai.
A imagem do idoso era tambm exprimida no folclore alemo da poca,
essencialmente pelos contos dos irmos Grimm. A mulher velha era smbolo caracterstico da
maldade e a fada bondosa era representada por uma figura jovem e bela.
Na iconografia da Idade Mdia destacaram-se a venerao pelo Deus Filho em
detrimento de Deus Pai, as esttuas de velhos que simbolizavam o Apocalipse, os profetas ou
santos e a imagem do Velho Tempo, que segura uma foice. Ao contrrio da venerao pelo
tempo (com carter fecundo) na Antiguidade, na Idade Mdia ele era smbolo de declnio. Em
consequncia do pecado original, o homem estaria fadado infelicidade, que seria agravada
pelo tempo e que o arrastaria no mundo para o fim. Desde o sculo XI, a morte tambm era
representada por uma figura segurando uma foice. O tempo, enquanto investe contra a vida,
aparenta-se morte. (BEAUVOIR, 1990, p. 174).
Ao final da Idade Mdia, deparamo-nos com o renascimento da vida urbana e a
ascenso da burguesia, que adquire ttulos na compra de terras e casamentos. No mais a fora
fsica era smbolo de poder, e os idosos passaram a ter a possibilidade de acumular riquezas e
obter domnio.
A corrente religiosa da poca dizia que a principal preocupao da velhice deveria ser
aceitar de forma serena o fim de sua existncia. O morrer seria uma arte para os pregadores da
poca e, para ensin-la, havia os manuais de preparao para a morte (artes moriendi): a arte
29
para o bem morrer. Esses continham as oraes e os passos, como numa cartilha, para o
cristo preparar-se para tal momento, redimindo-se de seus pecados e assegurando a salvao.
Enfatizavam o momento do julgamento em que haveria um conflito entre anjos e demnios
pela alma no leito de morte (RODRIGUES, 2008).
A idade avanada no era to valorizada para o cristo, pois a devoo estava voltada
ao Cristo como Salvador e, portanto, a juventude e a maturidade eram santificadas. J a
velhice, esquecida. A literatura profana ridicularizava a sociedade e os idosos ricos, em
particular, por conseguirem mulheres belas com seu dinheiro (BEAUVOIR, 1990).
A Renascena (sculo XVI) somente continuou com as ideias da Idade Mdia. Ela
exaltava a beleza do corpo jovem e denunciava a feira do corpo velho. A mulher idosa era
descrita de forma impiedosa pelos poetas, principalmente na figura da alcoviteira (antiga
prostituta), ridicularizada por ainda querer conservar prazer de viver. Tambm aparece,
seguindo as tradies anteriores, a figura da velha feiticeira. No teatro cmico, o escrnio era
voltado novamente ao idoso rico e avaro, em busca do prazer em troca de seu dinheiro.
Na anlise de Beauvoir, o rancor manifestado na cultura da poca ao idoso rico no era
direcionado aos nobres, que tinham o poder por direito divino, mas aos burgueses, que
tiveram sucesso nos negcios e acumularam riquezas durante a vida. Aos olhos do jovem
trabalhador, esses bens s poderiam ser acumulados pela avareza e tornaram-se motivo de
inveja. Na iconografia da poca, apareciam clichs, como a comparao das idades do homem
com as estaes do ano, a imagem da escada (a vida como uma escalada, com o auge na
maturidade e a descida da velhice at a morte) e a da fonte da juventude.
No incio do sculo XVII pode-se constatar uma exceo a todos esses esteretipos e
clichs da literatura que representaram a velhice como margem da humanidade, desde o
Antigo Egito at a Renascena: o Rei Lear, de Shakespeare. A velhice assemelhava-se
loucura e, ao mesmo tempo, sabedoria que o rei expressava. Apesar de mostrar insanidade, o
rei Lear demonstrava conscincia de sua condio de passividade, de falta de futuro, ambos
impostos socialmente.
A mdia etria era de 20 a 25 anos nesse sculo. Os jovens conservavam o poder, com
exceo do rei absolutista francs Lus XIV, que ainda mantinha alguma influncia no
governo. A Contra-Reforma dotou os papas de maior prestgio e os mais idosos eram eleitos
com o objetivo de se manter o conservadorismo. O absolutismo francs tornou a vida do idoso
mais difcil: o trabalho desgastava os indivduos com muita rapidez e aos 50 anos no se tinha
mais lugar na sociedade.
30
Na literatura ainda estava mantida uma stira feira da mulher idosa (Beauvoir d os
exemplos dos autores Quevedo, espanhol, e Saint-Amant, francs). A autora cita apenas um
poeta que defendia a velhice nas mulheres: Maynard. Ela considera que nessa poca a
imagem do velho torna-se mais sutil do que antes (p. 216); ele pintado por alguns autores
com mais valor do que nos sculos anteriores. Exemplos desses autores so Pierre Corneille e
Saint-vremond, que escreveram obras em que autorizaram personagens idosos a amarem,
desde que fosse um amor platnico. Na Inglaterra apoderada pela misria, a rainha Elizabeth
decretou a lei dos pobres na tentativa de compensar a situao: o Estado deveria
responsabilizar-se por eles, e os capazes de trabalhar teriam de faz-lo de forma dura. A
religio pregava o respeito pobreza.
Tal contexto mudou quando os puritanos (burgueses) tomaram o poder. A nova
ideologia era o dever do trabalho, sinnimo de virtude, alm do horror pobreza e preguia.
A burguesia venerava os idosos, reconhecidos como autoridades, com o poder sobre a vida e a
morte dos filhos. Fecharam-se os teatros, considerados locais de pecado. Aps a Restaurao
da monarquia , os teatros foram reabertos com espectadores aristocratas, que eram
contrrios aos ideais puritanos de virtude. Assim, os temas das peas eram crticas contra tudo
que representava virtude, inclusive o idoso, alm dos conflitos entre geraes.
Entre os sculos XVIII e XIX, a cincia no Ocidente iniciou a biologizao da
existncia humana. A teoria evolucionista inaugurou a separao do ciclo vital do ser humano
em faixas etrias determinadas pelas caractersticas tpicas de seu funcionamento biolgico.
Assim, a velhice passou a ser determinada pelo conceito de degenerao (BIRMAN, 1995).
Avanando na histria da conceituao da velhice, Birman (1995) nos conta, ainda, que a
partir do surgimento da Psicologia do Desenvolvimento no sculo XIX, iniciou-se o interesse
particular pela estrutura cognitiva e afetiva do ser humano nas diferentes faixas etrias,
embora esse movimento tenha se interessado mais pela infncia por conta do surgimento da
escolarizao obrigatria.
No registro filosfico da Histria, Kant inaugurou o conceito de ser humano histrico,
ou seja, incluiu as dimenses de tempo e temporalidade para defini-lo. Do sculo XIX para o
sculo XX, a transformao sociopoltica foi determinante para a mudana no status da
velhice. O ser humano passou a ser visto e valorizado como produtor e reprodutor de riquezas.
A velhice, alm de perder seu valor social, tambm perdia seu valor simblico na sociedade
ocidental.
A partir da metade do sculo XX, segundo Birman (1995), com o visvel aumento da
populao idosa e a diminuio da renovao populacional, principalmente nos pases
31
desenvolvidos, houve a transformao progressiva da viso social diante do idoso da
modernidade. Pensar um lugar social e cuidados especiais para essa populao se tornou
necessrio e urgente. Configurou-se lentamente um lugar simblico, antes inexistente para a
populao idosa, no entanto, ainda referida de forma prioritariamente negativa, associada
morte e total falta de perspectivas de futuro.
Saramago (2005), em sua obra Intermitncias da morte, discorre de forma provocativa
sobre o que aconteceria se ningum mais pudesse morrer em um pas. Dentre as
consequncias relatadas, destacou que a preocupao maior daquela populao era o que fazer
com os doentes e os velhos, que abarrotariam hospitais e casas de repouso, tornando-se,
assim, um fardo oneroso para aquela sociedade. Denuncia a realidade da posio ocupada
pelo idoso de depositrio dos males da sociedade: a morte, a doena e a dependncia.
Podemos notar que nas sociedades tradicionais, ento, a figura do velho era
considerada prioritariamente sinnimo de sabedoria e de detentora dos valores ancestrais da
cultura, que tinha a funo de transmitir valores ao jovem e fundar-lhe no registro simblico.
A valorizao da produo e do capital a partir dos sculos XVIII e XIX fez com que a
necessidade dessa transmisso no fosse mais prioridade, culminando no isolamento do
indivduo na famlia nuclear, dentro de uma sociedade que prima pelo individualismo. O
velho perdeu esse lugar simblico de saber coletivo para no ter uma funo social definida e
nenhuma funo, alis, j que no era mais considerado como mo de obra economicamente
ativa (GOLDFARB, 1998).
Diante do exposto, h a compreenso inicial dos motivos que levaram a sociedade da
dcada de 1970 a externalizar um brado de indignao com relao Simone de Beauvoir
(aos 62 anos) e sua obra, destacada em especial dentre as mulheres da poca.
A velhice um tema que tem caminhado com toda gama de preconceitos, no apenas
nas sociedades ocidentais. Nesta Dissertao, o foco est em situar a velhice como uma etapa
do ciclo do desenvolvimento, sem o objetivo de conceitu-la ou promover uma discusso
mais profunda dos seus aspectos psicopatolgicos. Compreend-la sob o ponto de vista
sociocultural remete-nos construo de um saber mais diferenciado do psiclogo na clnica
de Geriatria.
Para a ampliao de uma viso sobre a velhice, sero apresentados a seguir os
percursos possveis desse fenmeno no Brasil, a partir do sculo XX.
32
3.2 Velhice no Brasil: percursos possveis a partir do sculo XX
O Brasil ainda podia ser considerado um pas de populao jovem at os anos 1980
(VENTURI; BOKANY, 2007). A partir de ento, houve um significante aumento da
populao idosa decorrente quer da reduo da taxa de natalidade, quer do aumento da
expectativa de vida. Em 2005 os idosos j eram cerca de 10% da populao e, segundo os
autores, a projeo para o ano de 2030 de que esse nmero dobre.
Neri (2006) realizou uma interessante pesquisa documental a partir de textos extrados
do jornal O Estado de So Paulo, publicados entre os anos de 1995 e 2002, sobre o tema
velhice. Os objetivos principais eram verificar a frequncia com a qual o tema era abordado e
identificar os significados associados aos idosos.
Os resultados da anlise das produes indicaram que os textos considerados
informais e sem bases cientficas demonstraram uma imagem passiva e improdutiva do idoso,
como sendo uma etapa da vida em que se volta a ser criana. Alm disso, houve a associao
da velhice com morte, doena, feira, abandono e tristeza. A mulher idosa seria considerada
como tendo um corpo digno de vergonha. As vantagens da velhice seriam o senso de
integridade do self e a seletividade cognitiva e socioemocional.
Preconceitos e esteretipos negativos estiveram presentes nos textos pesquisados e a
autora considerou que esse resultado teria uma relao com a condio social dos idosos no
Brasil, pois a maioria da populao no possua acesso a servios de qualidade durante sua
vida (moradia, educao, transporte, nutrio, lazer, segurana, emprego e sade), o que
dificultava o alcance da etapa da maturidade com qualidade de vida. Assim sendo, a boa
velhice seria possvel desde que se tivessem asseguradas boas condies durante o ciclo da
vida.
Os textos considerados mais formais, com dados cientficos e baseados em
depoimentos de especialistas, destacaram a preocupao com o alto custo decorrente do
aumento da populao idosa no pas, como discutido na Introduo desta Dissertao, e a falta
de condies do Estado para suprir suas necessidades. O envelhecimento da populao foi
demonstrado como preocupao e motivo para uma reforma previdenciria no pas. A autora
apontou para o fato de que os prprios profissionais dedicados ao idoso utilizavam os dados
demogrficos para justificarem problemas nacionais financeiros e sociais que, no entanto,
poderiam, de fato, serem fruto mais da imensa desigualdade social em que vivemos at hoje.
33
Outro tema discutido foi a denncia da precariedade de instituies de longa
permanncia, que no possuam normas nem avaliaes especficas, o que facilitaria os maus-
tratos e a negligncia ao idoso asilado. A falta de adequaes nos transportes pblicos,
acessos de circulao e servios tambm foram citados como decorrentes de negligncia, no
s com relao aos idosos, mas tambm com quem era considerado diferente, isto , as
pessoas com necessidades especiais. A viso do idoso mostrou-se pessimista, como uma
sobrecarga para a sociedade na maioria das vezes, minimizando as deficincias das polticas
pblicas em vrios setores.
Maria Cludia Moura Borges, assistente social, Mestre em gerontologia pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em polticas pblicas pela
Universidade Estadual de So Paulo (UNESP) e em gerontologia pela Sociedade Brasileira de
Geriatria e Gerontologia (SBGG), discorre sobre as polticas pblicas no Brasil (BORGES,
2006), destacando que os direitos do idoso, especificados pela legislao na Poltica Nacional
do Idoso de 1994 (PNI), devem ser assegurados, principalmente, por polticas sociais nos
mbitos socioeconmico, da sade e do esporte e lazer.
No entanto, a legislao ainda no colocada em prtica com o direcionamento de
recursos suficientes e permanentes para garantir esses direitos. Um dos aspectos dessa
situao a crescente privatizao de servios de sade e previdncia incentivada pelo Estado
brasileiro, que se exime das responsabilidades com os cidados idosos. Tal tendncia faz parte
de uma poltica neoliberalista integrante dos programas de governo de pases europeus e dos
EUA na dcada de 1970 e no incio dos anos 1980.
As caractersticas desse sistema so a valorizao do mercado e do capital em
detrimento de polticas sociais, no consideradas lucrativas. Tal configurao faz parte das
mudanas socioeconmicas, culturais e polticas dos sculos passado e atual, que atingem as
concepes do que ser idoso e do processo de envelhecimento populacional. A autora
discute ainda o histrico da poltica de sade e da previdncia social, de suma importncia
para a compreenso das condies sociais da populao idosa no Brasil de hoje.
A luta por direitos sociais e de cidadania fortificou-se com os movimentos de
trabalhadores e operrios no final do sculo XIX e incio do sculo XX, quando ainda
imperavam os ideais liberais, em que o papel do Estado se resumiria apenas a aspectos legais
que favorecessem a liberdade do mercado. Com a crise econmica de 1929, geradora de
desemprego, as ideias de um Estado margem da economia passaram a ser mais questionadas
(BORGES, 2006).
34
O processo de industrializao na dcada de 1930 ampliou as contrataes de
operrios e intensificou as ms condies de trabalho e de vida da populao no Brasil. Esses
fatos fizeram com que houvesse o aumento das reivindicaes dos trabalhadores por
melhorias e que acabaram por virar uma questo social com consequente interveno do
Estado.
Aps a Segunda Guerra Mundial, intensificaram-se quer o capitalismo, quer a
interveno social, econmica e poltica do Estado. Nessa poca, a criao do Servio
Especial de Sade Pblica (SESP) foi crucial para o incio dessa interveno no mbito social.
No Brasil e na Amrica Latina, os anos 1970 e 1980 foram marcados pelo regime militar, que
passou a tratar essas questes com autoritarismo, dando nfase ao setor privado para cuidar da
assistncia na sade e na educao. A forte crise econmica instaurada nos anos 1980 e os
movimentos na busca pela democracia colaboraram para tornar a sade uma questo a ser
mais discutida no mbito poltico (BORGES, 2006).
Na Constituio Federal de 1988, entrou a Reforma Sanitria e a proposio de um
Sistema nico, que tem ento a sade como um direito universal, descentralizado,
regionalizado, hierarquizado e com a participao da comunidade (BORGES, 2006).
Contrariando as diretrizes programadas desse Sistema nico de Sade criado (o SUS), o que
ocorre o aumento da conteno de gastos com polticas pblicas e o sucateamento da sade
pblica brasileira at o momento atual. A poltica neoliberal influencia na tendncia a se
considerar a sade como parte do mercado. Assim, o Estado fornece s o mnimo queles que
no podem pagar e a outra parcela desse mercado fica por conta do setor privado de sade.
A Previdncia Social, que tem a funo de proteo ao trabalhador e redistribuio de
renda pelo Estado, surgiu em 1923 (Lei Eloy Chaves) sob a luta dos trabalhadores. O primeiro
fundo reservado previdncia, a Caixa de Aposentadorias e Penses (CAP), destinava-se
apenas aos ferrovirios. Posteriormente, surgiram autarquias chamadas Institutos de
Aposentadoria e Penso (IAPs), que se dividiam por categorias de trabalhadores. O Instituto
Nacional de Previdncia Social (INPS) foi criado em 1963 para unificar os planos de
benefcios. Somente nos anos 1970 surgiu o amparo velhice e aos invlidos (BORGES,
2006, p. 93).
Com a conquista da incluso na Constituio de 1988 dos direitos sade, tambm
estava previsto o direito previdncia e assistncia social, incluindo os idosos como
beneficirios, alm dos trabalhadores formais. As crises econmicas seguintes e o crescimento
da inflao somente colaboraram para que houvesse um crescente dficit de recursos
previdencirios. Aps a sada do ex-presidente Fernando Collor de Melo com sua proposta de
35
reforma previdenciria, o presidente Fernando Henrique Cardoso seguiu seu governo
aumentando as privatizaes e deixando de lado questes sociais em prol da reestabilizao
econmica (BORGES, 2006).
Diante do dficit previdencirio, aumentou-se a contribuio dos trabalhadores, no
entanto, o rombo cresce. Borges (2006) aponta para o fato de que essa caracterstica
contributiva da Previdncia Social brasileira configura uma lgica regressiva e no de
redistribuio de renda. O fato que o idoso tem rendimentos muito menores na
aposentadoria do que em sua vida ativa, e o rpido envelhecimento populacional somado
precariedade dos servios pblicos de sade e assistncia social tornam mais difcil a vida
dessa populao. Assim, faz-se necessrio que se criem espaos para que os idosos possam
lutar por seus direitos de cidadania, como aqueles que se organizaram na busca de parceria
com instituies como o Servio Social do Comrcio (Sesc) e o Servio Social da Indstria
(Sesi) (p. 101). Em tese, do ponto de vista social, a aposentadoria o sinal verde para a
entrada na velhice (SANTOS, 1996).
Em pesquisa realizada no ano de 2006 e publicada em forma de livro em 2007 sob a
organizao de Neri (2007), foram entrevistados idosos e no-idosos provenientes das cinco
regies brasileiras a respeito de suas percepes em relao velhice (em diversos temas,
como educao, trabalho, aposentadoria, acessibilidade, lazer, sade, preconceito, violncia,
direitos, relaes familiares, instituies de longa permanncia e preocupaes com a morte).
Alguns resultados chamaram a ateno dos pesquisadores. Destaca-se, por exemplo,
que tanto idosos, quanto no-idosos, possuam uma viso predominantemente negativa da
velhice. Os idosos atriburam mais valor aos aspectos positivos que reconhecem em suas
vidas, mesmo tendo conscincia do preconceito social que recebem e de sua no notoriedade.
Reconheceram que ser idoso nos dias de hoje melhor do que na poca em que eram mais
jovens, remetendo-se s melhorias nos direitos adquiridos, como aposentadoria e transporte
gratuito (VENTURI; BOKANY, 2007 in NERI, 2007).
Apenas 22% da populao idosa pesquisada fazia parte da parcela economicamente
ativa e a maior parte trabalhava informalmente, fazendo o que denominam como bicos.
Grande parte dos aposentados disse ter tido problemas para enfrentar essa mudana, o que
demonstra a necessidade e a importncia de polticas para a aposentadoria (VENTURI;
BOKANY, 2007 in NERI, 2007).
Neri (2007) discorre ainda sobre as atitudes e preconceitos em relao ao idoso que
apareceram nos resultados. A maioria dos idosos (80%) e no-idosos (90%) concordou com a
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afirmao de que temia a dependncia, a perda de dignidade, a solido e o sofrimento, que
sabemos, podem anteceder a morte e no a morte em si (p. 33).
Com relao ao que esperavam de suas prprias vidas e seus sonhos, idosos e no-
idosos mencionaram as metas pessoais, prioritariamente. Os no-idosos deram mais valor para
metas relacionadas a aspectos que caracterizavam adultos ajustados (educao prpria e dos
filhos), ao passo que os idosos valorizaram a prpria realizao (famlia, felicidade e sade).
A despeito da questo da existncia do preconceito envolvendo idosos, ambos os
grupos reconheceram como negativa a maioria das atitudes dessa populao. Os idosos
destacaram a incapacidade e a desatualizao; j os no-idosos, os aspectos relacionados ao
desrespeito e preconceito. Neri (2007) enfatizou que o prprio Estatuto do Idoso, criado em
outubro de 2003, possui uma viso preconceituosa do idoso medida que acaba por
apresentar uma imagem de incapacidade e dependncia. Exemplo disso o artigo 3 por ela
destacado, que garante prioridade na realizao dos direitos do idoso, enquanto que o poder
econmico que determina a prioridade e a qualidade no atendimento recebido em qualquer
categoria social. O artigo 27 discorre sobre a prioridade dos idosos em concursos pblicos e
ocupao de vagas, mas a realidade do mercado brasileiro discrimina-os justamente pela
idade, alm das caractersticas como gnero, classe social e aparncia fsica. Enfim, o Estatuto
somente reafirma a ideologia da velhice como problema mdico-social e dos idosos como
cidados a serem tutelados por serem frgeis e incapazes (p. 39).
Com base no Estatuto, a maioria dos idosos entrevistados afirmou saber de sua
existncia apenas por ter ouvido falar. Apenas a minoria afirmou conhecer realmente seus
direitos, referindo-se exclusivamente ao transporte gratuito, dispensa de filas e aposentadoria.
Os resultados esto relacionados desinformao, uma posio passiva ocupada por essa
populao e mais presente nas respostas dos no-idosos, reiterada pelos preconceitos e
esteretipos existentes na sociedade como um todo.
Neri (2007) concluiu que a curto prazo necessrio melhoria dos recursos humanos
frente ao atendimento dos idosos para que melhores nveis de qualidade em sade e condies
sociais possam promover atitudes mais positivas com relao velhice. E a longo prazo faz-se
necessria a resoluo gradual dos problemas sociais crnicos, como a educao, a sade do
nascimento velhice e a produtividade, que dependem de investimentos socioculturais e
polticas pblicas eficazes.
As consideraes apresentadas, correspondentes realidade brasileira, ampliam a
viso do homem que envelhece, incluindo os aspectos socioeconmicos e de segurana social.
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Na minha prtica no ambulatrio e enfermaria no Servio de Geriatria j destacado,
deparei-me com a necessidade de uma aproximao do contexto social dos idosos atendidos,
em especial, por tratar-se de um hospital da rede pblica do Estado de So Paulo.
O estabelecimento de uma Psicologia do Idoso nesse cenrio no poderia deixar de
lado importantes questes que perpassam a vida psquica desses pacientes em especial,
configurando-se em aspectos que influenciam suas percepes sobre o envelhecimento e as
formas de enfrentamento da doena e do corpo que adoece.
Os trechos dos atendimentos realizados com o paciente, descritos na Introduo,
revelaram o alto grau de ansiedade nele presente diante de uma realidade decorrente da
hospitalizao em um servio pblico de sade, o que intensificava uma srie de temores e
preocupaes, agravadas pela ausncia de uma rede de apoio social e familiar.
Beauvoir (1990) discute essa questo quando estabelece uma relao direta entre
melhores condies familiares e sociais durante o desenvolvimento pessoal e maiores
probabilidades de conservao dos idosos em todos os seus aspectos.
As ms condies de apoio sade e aposentadoria, bem como da condio social
aos idosos, revelam a contradio social estabelecida a essa etapa do desenvolvimento,
particularmente na sociedade brasileira (MOSCOVICI, 1981). Reforam a representao
negativa do indivduo velho (SANTOS, 1990).
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4 CARACTERIZAO DA VELHICE: UMA CONTRIBUIO PARA O ENTENDIMENTO DESSA ETAPA
O avano da Medicina nas ltimas dcadas na preveno e tratamento de doenas que
antes causavam a mortalidade de jovens e adultos foi uma das importantes causas do
envelhecimento da populao mundial. A vacinao em massa, o uso de antibiticos, os
avanos em quimioterapia e radioterapia e a melhora do saneamento bsico so exemplos das
estratgias na rea da sade para tal xito.
Em contrapartida, houve o aumento da mortalidade por doenas crnico-
degenerativas, mais predominantes na velhice, o que intensificou o medo do enfrentamento da
etapa da velhice sob o ponto de vista psicolgico e social.
Um dos focos desta Dissertao tratar a velhice como etapa do desenvolvimento
considerando-se a dinmica entre suas caractersticas evolutivas e patolgicas, bem como sua
relao com a rede familiar e o Estado. O enfoque contribuir para os subsdios do trabalho
profissional do psiclogo nas equipes de sade em Geriatria.
A Psicologia e a Sociologia de meados dos anos 1960 vieram trazer a reflexo de que
velhice no era sinnimo de perda de capacidades e competncias de forma brusca e
irrevogvel: crescer e declinar no so processos mutuamente excludentes (NERI 2001, p.
25). Na vida adulta e na velhice, fica preservado o potencial para o desenvolvimento e sua
ativao depende dos recursos do organismo e das influncias do meio. (NERI, 2001, p. 27).
Na nossa sociedade capitalista contempornea, a perda de funes produtivas (relacionadas a
bens de consumo e servios de apoio) e reprodutivas no tem substitutos simbolizados
culturalmente. As produes artsticas, intelectuais, de lazer ou de cuidados no so
valorizadas por nossa cultura (GOLDFARB, 2004b). Uma vez aposentado, o indivduo se v
sem lugar simblico reconhecido socialmente.
A velhice vivida de forma varivel, individualmente. Beauvoir (1990) fala em
velhices individuais, que se diferenciam de acordo com a classe social, estado de sade,
entorno familiar, social e cultural. A faixa etria que determina esse perodo da vida no
uma unanimidade universal.
Goldfarb (1998) introduz o conceito de mltiplas velhices, referindo-se s diversas
formas de relao que cada idoso estabelece com as vicissitudes do envelhecimento,
dependendo de sua condio social e estrutura psquica. Refere-se ao fato de que apesar de
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existirem caractersticas mais ou menos universais para definir o ser velho, no existe uma
categorizao que d conta totalmente de defini-lo. O que ocorre que ele vira um de
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