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VITOR BARTOLETTI SARTORI
ONTOLOGIA, TCNICA E ALIENAO: PARA UMA
CRTICA AO DIREITO
TESE DE DOUTORADO
PROFESSORA ORIENTADORA: JEANNETTE A. MAMAN
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE DIREITO
So Paulo
2013
VITOR BARTOLETTI SARTORI
ONTOLOGIA, TCNICA E ALIENAO: PARA UMA
CRTICA AO DIREITO
TESE DE DOUTORADO
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao
da Faculdade de Direito da Universidade de So
Paulo como requisito parcial para obteno do
ttulo de Doutor em Filosofia do Direito, sob
orientao da Professora Dra. Jeannette A.
Maman
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE DIREITO
So Paulo
2013
Banca examinadora:
______________________________
______________________________
______________________________
______________________________
______________________________
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, professora Jeannette A. Maman, pela ateno, pelo incentivo de
sempre, pela orientao atenciosa, pela amizade e pelo papel essencial que teve em
minha formao pessoal e intelectual. No segredo que sempre a considerei um
exemplo a ser seguido no que diz respeito integridade e ao carter, por vezes, raros em
certos meios nos quais convivemos. Tambm vale ressaltar que, se considero importante
o estudo da obra heideggeriana hoje, isso se deve ao rigor, aos incentivos de minha
orientadora, com quem muito debati nesses anos importantes de minha vida.
Ao professor Antonio Rago Filho, que foi meu orientador de mestrado, pela amizade, e
por ter sempre me ajudado - tanto em suas aulas como em nossas conversas -
substancialmente no campo da ontologia do ser social e da pesquisa marxista.
Aos professores Ester Vaisman, Ronaldo Vielmi, Ana Selva, Lvia Cotrim, Vera Lcia
Vieira, Maria Aparecida de Paula Rago, Alysson Mascaro e Vnia Noeli pelo incentivo
e pela ajuda sempre atenciosa. Sem o apoio dessas pessoas, esse escrito perderia muito,
principalmente no que toca o estudo da ontologia lukacsiana e da teoria marxiana.
Aos professores Anselmo Alfredo e Jorge Grespan com quem, mesmo que nem sempre
concordando quanto compreenso da obra marxiana, aprendi muito e sempre me senti
instigado, podendo traar um dilogo franco e honesto.
Aos professores Marcus Orione e lvio Martins pelos valiosos apontamentos na banca
de qualificao.
A todos meus amigos (em especial cavalaria) e familiares pelo apoio de sempre.
Um agradecimento especial para Cinthia, que sempre me acompanha, faz bem e com
quem venho compartilhando minha vida e minha felicidade.
Resumo: o presente escrito composto de duas partes. Na primeira delas, o debate
sobre a ontologia abordado com cuidado, buscando-se explicitar o embate entre as
concepes de mundo de Heidegger e Lukcs. Tendo como fio vermelho a questo da
alienao, procura-se mostrar que as distintas ontologias desses autores tm consigo
diferentes posies sobre a modernidade, a histria, o trabalho, a tcnica e sobre aquilo
que marca a filosofia no sculo XX. Na segunda parte do escrito, partindo-se daquilo
tratado no primeiro momento do texto, debate-se a relao existente entre o Direito, a
alienao e as determinaes inerentes moderna sociedade civil-burguesa. Com isso,
pretende-se delinear a importncia de uma crtica ontolgica ao Direito, ressaltando que
na perspectiva de uma ontologia do ser social - no basta um Direito crtico; faz-se
necessria uma crtica rigorosa prpria esfera jurdica.
Palavras-chave: Heidegger, Lukcs, Ontologia, Alienao, Crtica ao Direito
Abstract: This writing has two parts. On the first, we deal with the matter of ontology,
trying to expose the controversial debate between Heideggers and Lukcs worlds
conception. Taking on account the problem of alienation, we intend to prove that the
ontologies developed by each of these twentieth century philosophers has a substantial
relation with their position towards modernity, history, work, technic and on the
philosophy of their time. On the second part, having seen accurately both conceptions of
ontology, we try to expose the relation between Law, alienation and modern civil-
bourgeois societys determinations. So, we emphasize de importance of an ontological
critic of Law, and not just the search for a critical study of Legal ideology.
Key-words: Heidegger, Lukcs, Ontology, Alienation, Critic of Law
Rsum: Cet crit se compose de deux parties. Dans la premire, le dbat sur
lontologie est abord soigneusement, expliquant le conflit entre les visions du monde
de Heidegger et Lukcs. En gardant lesprit la question de lalination, il est montr
que ces auteurs ont dvelopp leurs ontologies avec des positions diffrentes sur la
modernit, lhistoire, le travail, la technologie et la philosophie du XXe sicle. La
deuxime partie de cet crit traite de la relation entre le droit, lalination et sa
dtermination inhrente la socit bourgeoise moderne. Il vise souligner
limportance dune critique ontologique de la loi, qui du point de vue dune ontologie
de ltre social demande une critique rigoureuse de la sphre juridique.
Mots-cls: Heidegger, Lukcs, ontologie, alination, critique du Droit.
Sumrio
Introduo.......................................................................................................................9
Parte I: Ontologia, tcnica e alienao (Entfremdung) em Heidegger e Lukcs..... 19
Captulo I: Heidegger, Lukcs, a ontologia e o dilogo com a filosofia precedente 20
1.1 A superao (Aufhebung) e o dilogo de Lukcs com a filosofia .................... 21
1.2 O passo de volta (Schritt zurck) heideggeriano e a crtica superao
(Aufhebung) ............................................................................................................... 33
1.3 Metafsica, alienao (Entfremdung) e inverso da metafsica ....................... 50
1.4 Superao (Aufhebung), alienao (Entfremdung), metafsica e razo .......... 54
1.5 Duas posies distintas e a necessidade de se ir alm do modo como
Heidegger e Lukcs se relacionam com a filosofia precedente ............................. 84
Captulo II: Trabalho, histria e tcnica: ontologia do ser social e ontologia
fenomenolgica.............................................................................................................. 86
2.1 Questo de mtodo? ............................................................................................ 87
2.2 Trabalho, ser e ontologia: Lukcs contra a herana hegeliana ...................... 88
2.3 Ontologia, questo do Ser (Sein), desvelamento e hermenutica do ser-a
(Dasein) ...................................................................................................................... 98
2.4 Lukcs e a crtica ao mtodo e ontologia de Heidegger .......................... 116
2.5 Trabalho, afastamento das barreiras naturais, sociabilidade e alienao
(Entfremdung) .......................................................................................................... 123
2.6 Ser-no-mundo (In-der-Welt-Sein), ser-um-com-o-outro (Miteindersein),
liberdade, tcnica, alienao (Entfremdung) e aletheia........................................ 147
2.7 Capitalismo manipulatrio, determinao social do pensamento e
democracia da vida cotidiana (Alltagsleben) ........................................................ 196
Parte II: sociedade civil-burguesa (brguerliche Gesellschaft) e supresso
(Aufhebung) do capital para uma crtica ao Direito ............................................. 258
Captulo III: Direito e ser social (gesellschaftlichen Seins) ..................................... 259
3.1 Ontologia, histria e Direito: um ponto de partida ....................................... 260
3.2 As bases de uma crtica ontolgica ao Direito em Lukcs: o complexo
jurdico e sua historicidade (Geschichtlichkeit) .................................................... 264
3.3 Diviso social do trabalho, emergncia do complexo jurdico e prioridade
ontolgica do econmico ......................................................................................... 302
Captulo IV: Para uma crtica ao Direito ................................................................. 365
4.1 Universalismo, Direito e cidadania .................................................................. 366
4.2 Forma jurdica, universalismo e o carter sistemtico do Direito ............... 406
4.3 Subsuno, interpretao jurdica e manipulao ......................................... 435
4.4 Filosofia do Direito e crtica ontolgica .......................................................... 457
Concluso: a crtica ontolgica frente realidade social - Direito ou Democracia da
vida cotidiana (Alltagsleben)? .................................................................................... 471
Bibliografia: ................................................................................................................ 482
9
INTRODUO
Tratar de Heidegger e Lukcs no tarefa simples, ainda mais quando se tm em
mente ambos ao mesmo tempo. No entanto, aqui se pretende demonstrar que v-los em
conjunto pode ser muito proveitoso: tanto para o estudo dos rumos da filosofia do
sculo XX, como para busca da compreenso dessa poca a qual, para ser efetivamente
entendida, precisa ser vista tambm no que diz respeito ao complexo jurdico.
Aqui no se parte do suposto segundo o qual a compreenso do fenmeno
jurdico por si traz consigo a inteligibilidade das relaes que o permeiam antes,
procura-se ver como a manifestao do primeiro, em meio sociedade civil-burguesa
(brguerliche Gesellschaft), tem consigo determinaes1 que remetem para muito alm
da compreenso cotidiana e usual que se tem quanto ao Direito. Nisso, as contribuies
dos autores os quais sero tema da primeira parte desse escrito muito podem ajudar:
ambos sempre buscaram escapar de explicaes que permanecessem na superfcie dos
fenmenos e tambm tiveram o prprio cotidiano por temtica - Lukcs trata da vida
cotidiana (Alltagsleben) e Heidegger da cotidianidade (Alltaglichkeit). Com suas
ontologias, depararam-se com o cotidiano ao mesmo tempo em que buscam sempre algo
distinto dele. Neste escrito, pois, partiremos do debate filosfico para que possamos
tratar do Direto procuramos mostrar, no como os temas da filosofia podem tratar das
temticas jurdicas, mas como o mbito jurdico (e os temas tratados a) tm sua gnese
e sua formao, no podendo elas serem desconsideradas de modo algum.
Trataremos de Heidegger e Lukcs, dois autores representativos do sculo XX e
de rigor mpar. No entanto, se as posies do autor de Ser e tempo e do autor da
Ontologia do ser social fossem essencialmente convergentes, de nada valeriam os
esforos para penetrar no modo como ambos enxergam o mundo em que vivem. Em
verdade, entendemos que compreender as convergncias e divergncias entre esses
autores faz-se essencial ao passo que se trata de pensadores muito influentes no debate
filosfico contemporneo2; mas o essencial vem tona enquanto tanto a viso de um
1 Ao tratar da expresso se tem em conta primeiramente o mencionado por Marx: as categorias so formas de ser (Daseinformen), determinaes de existncia (Existezbestimmungen). (MARX, 1993, p.
106) Diz Jos Paulo Netto: determinaes so traos pertinentes aos elementos constitutivos da
realidade. (NETTO, 2010, p. 45) 2 Tanto o pragmatismo quanto o ps-modernismo, por exemplo, bebem em Heidegger ao passo que os
autores ligados chamada escola de Frankfurt ainda muito estudados - e os pretendentes a
continuadores desses (Habermas e Honeth, por exemplo) inspiram-se muito em Lukcs, mesmo que o
leiam principalmente a partir de uma obra depois renegada pelo autor, Histria e conscincia de classe.
10
autor como a de outro trazem posies concretas frente realidade, sendo possvel
enxergar os meandros da atividade humana (o Direito incluso) por essas ontologias. Por
isso, dedicaremos uma parte inteira desse escrito dividido em duas partes - oposio
das ontologias do autor de Ser e tempo e do autor da Ontologia do ser social.
Nesse primeiro momento, destacaremos algumas questes concernentes a essa
oposio mencionada. Nicolas Tertulian, grande estudioso da obra lukacsiana, diz sobre
a relao de Lukcs com Heidegger que tudo se d como se um jogo sutil de afinidades
e repulso o unisse [Heidegger] ao seu pensamento [Lukcs]. (TERTULIAN, 1996, p.
82) Partindo da referida sutileza presente na relao existente entre ambos, sero
tratados os pontos que unem e, simultaneamente, afastam os autores. Ao passo que se
trata de dois pensadores que desenvolvem ontologias, trat-los simultaneamente d
ensejo compreenso mais rigorosa do significado de uma crtica ontolgica, como
aquela empreendida por Lukcs em sua obra Ontologia do ser social. Nesse livro, do
qual nossos apontamentos sobre o fenmeno jurdico e sua peculiaridade partem em
grande parte, o marxista hngaro tambm busca compreender o Direito.
Tendo a compreenso do cotidiano e sua ligao com o fenmeno da alienao
(Entfremdung) por parmetro, explicitaremos como tais autores desenvolvem suas
ontologias. Restando claras as ltimas, pode-se, ento, ter uma viso cuidadosa sobre a
maneira como se mostra e estrutura o Direito e sua peculiaridade, esses ltimos os quais
so tratados na segunda parte de nosso escrito, dedicada crtica ao complexo jurdico.
Ver-se- que a esfera jurdica no se confunde com aquilo de mais imediato na
apreenso da sociedade civil-burguesa (brguerliche Gesellschaft)3 - a mercadoria e o
seu fetichismo - ao mesmo tempo em que indissocivel deles. Isso pode ser
interessante para o que se prope aqui j que, como disse Tertulian, Lukcs reconhece
em Heidegger o grande mrito de ter tentado um esforo apaixonado para descrever as
estruturas do modo de vida e de pensamento cotidiano. (TERTULIAN, 2008, p. 128)
Ou seja, para se compreender a esfera jurdica, bom entender o imediatismo da vida
cotidiana (Alltagsleben) capitalista, tratado por ambos os autores, ao mesmo tempo em
3 Ao falar de sociedade civil-burguesa (brguerliche Gesellschaft), bom ter em conta o que dizem Marx
e Engels: a forma de intercmbio, condicionada pelas foras produtivas existentes em todos os estgios
histricos precedentes e que, por seu turno, as condiciona a [sociedade civil-burguesa] (brguerliche
Gesellschaft); esta, como se deduz do que foi dito acima, tem por pressuposto e fundamento a famlia
simples e a famlia composta, a assim chamada tribo, cujas determinaes mais precisas foram expostas
anteriormente. Aqui j se mostra que essa sociedade civil [-burguesa] o verdadeiro foro e cenrio de
toda a histria, e quo absurda a concepo histrica anterior que descuidava das relaes reais,
limitando-se s pomposas aes dos prncipes e dos Estados. (MARX; ENGELS, 2007, p. 39)
11
que preciso diferenciar o que primeira vista parece indiferenciado, explicitando a
relao entre fenmenos que parecem dissociveis somente enquanto no so.
Para isso, como se mostrar, no se prescinde de uma investigao rigorosa
acerca do sentido concreto das ontologias de Heidegger e de Lukcs. Somente depois de
trat-las possvel compreender realmente o que permeia o fenmeno jurdico, tambm
estudado pelo marxista, e muito importante na sociedade contempornea.
Lucien Goldmann (tal qual Tertulian, inspirado pelo filsofo marxista) tambm
destaca a relao entre o pensamento de Lukcs e a celebre obra de Heidegger Ser e
tempo. (GOLDMANN, 1973, p. 53)4 Ou seja, a relao entre os dois pensadores aqui
estudados tem relevncia em primeiro lugar para a real compreenso de suas filosofias,
calcadas em distintos posicionamentos sobre a noo de ontologia. Isso, no caso do
autor hngaro, se d, inclusive, quando se poderia tambm ler essa obra [Esttica],
juntamente com o seu fundamento, a Ontologia do ser social, como a contrapartida
lukacsiana ao livro de Heidegger, O Ser e o tempo. (TERTULIAN, 2007, p. 238)
Lukcs leu Heidegger e escreveu sobre ele, razo pela qual aqui, mesmo que se busque
uma compreenso cuidadosa da obra heideggeriana, a tonalidade do escrito ser
essencialmente dada pelos posicionamentos lukacsianos. Essa abordagem busca escapar
de arbitrariedades na leitura das obras dos autores, ao mesmo tempo em que facilitada
aqui porque, sempre bom ressaltar por honestidade intelectual, a formao daquele
que escreve essas linhas influenciada, sobretudo, pela obra de Marx e de Lukcs.
Ver Heidegger e Lukcs em conjunto no s de um esforo que possibilite
rigor, mesmo que isso seja essencial: os rumos dados ao prprio sculo XX permeiam
as temticas que acompanham ambos os autores, os quais, de modo diverso, engajaram-
se em questes cruciais ao desenvolvimento da poca.5 por meio dessas questes que
procuraremos compreender o Direito. As filosofias, e as ontologias de ambos e as suas
pocas, assim (tendo em mente as problemticas tratadas pelos pensadores aqui vistos),
podem ser mais bem compreendidas tambm. Na medida em que tm consigo uma
temtica como pretendemos mostrar, inseparvel do Direito - que marca a filosofia
4 Diz esse autor noutro lugar sobre Ser e tempo, no sem algum exagero, que impossvel compreender
esse livro sem saber que constitui em grande parte talvez de maneira implcita uma discusso com
Lask e sobretudo com Histria e conscincia de classe de Lukcs. (GOLDMANN, 1998, p. 21) 5 Tratar de um autor marxista nessa perspectiva de grande interesse porque pe a teste a capacidade do
marxismo de ultrapassar o sculo XX e o famigerado socialismo sovitico. Como diz Hobsbawm, o
mundo que se esfacelou no fim da dcada de 1980 foi o mundo formado pelo impacto da Revoluo
Russa de 1917. (HOBSBAWM, 2010, p. 14) Assim, em um perodo imediatamente posterior quele da
queda da antiga URSS, pomos prova tambm aquele que , para ns, o maior marxista do sculo XX.
12
moderna desde Hegel - aquela da alienao (Entfremdung) - tm-se autores cruciais.
Lukcs, nesta seara, diz sobre o tratamento heideggeriano do impessoal (das Man) 6 que:
O que h de interessante no modo de pensar de Heidegger esta descrio
extraordinariamente pormenorizada de como o homem, o sujeito portador da existncia
se desintegra e se perde de si mesmo imediata e regularmente nesta cotidianidade.7
(LUKCS, 1970, pp. 75-16)
O tratamento heideggeriano do impessoal (das Man) no deixou de influenciar a
abordagem dada pelo autor hngaro vida cotidiana (Alltagsleben), principalmente em
sua Ontologia do ser social seguindo Tertulian, seria, inclusive, intil insistir na
presena marcante, nos escritos de Heidegger e de Lukcs, dos conceitos de alienao
(Entfremdung) e de reificao (Verdinglichung). (TERTULIAN, 2009, p. 27) Por isso,
para tratar da questo da alienao, indissocivel do Direito para a ontologia lukacsiana,
bom compreender tanto a posio do autor de Ser e tempo quanto a posio do
marxista hngaro.8 Cotidiano e alienao estaro ligados para ambos os autores. E, caso
se busque tratar com o devido cuidado do jogo sutil de afinidades e repulso que os
une, no basta se ater letra de seus textos mais importantes: preciso ver os ltimos
como posies concretas diante de questes essenciais a uma poca. Se a passagem que
o marxista hngaro tem em mente quando comenta Heidegger acima se refere ao
tratamento heideggeriano da alienao, pode-se dizer que tal abordagem traz muito mais
que um confronto com uma noo trazida ao centro da filosofia por Hegel.
Lukcs se dedica a Heidegger, mas, ao menos explicitamente, a recproca no
verdadeira. Ou seja, no se pode realizar propriamente um trabalho filolgico9 que
busque ligar um autor ao outro antes, deve-se averiguar como as temticas destacadas
por Lukcs (e essenciais filosofia do sculo XX) se apresentam tambm em
Heidegger, de modo distinto. Assim, fica-se menos sujeito falta de rigor, ao mesmo
tempo em que se busca a efetiva (wirklich) posio concreta de ambos os autores diante
6 Isso importante porque para Lukcs as anlises, tornadas clebres, de Ser e tempo sobre a existncia
alienada (entfremdet) (a fenomenologia do das Man, a existncia nivelada e dominada por foras
annimas) representam a verso ontolgica da crtica ao fetichismo desenvolvida por Marx.
(TERTULIAN, 2006, p. 45) Um ponto a se notar na passagem de Tertulian, no entanto, o uso pejorativo
da noo de ontologia, uso esse resgatado da obra lukacsiana anterior Ontologia do ser social. 7 Nesse sentido, com Netto, pode-se ressaltar que na cotidianidade, o homem se pe numa
superficialidade fluida, ativa e receptiva que mobiliza sua ateno. (CARVALHO; NETTO, 2005, p. 24) 8 O que importante aqui, j que geralmente, est-se de acordo em considerar que a contribuio maior
de Lukcs ao pensamento do sculo XX levar ao primeiro plano da reflexo filosfica as questes da
reificao (Verdinglichung) e da alienao (Entfremdung). (TERTULIAN, 2006, p, 29) 9 Segue-se o prprio Lukcs nisso. Tratando do romance histrico ele se expressa do seguinte modo: o
rastreamento filosfico-filolgico de influncias que est na moda hoje em dia to infrutfero para a
historiografia quanto o velho rastreamento filolgico de influncias recprocas entre escritores
singulares. (LUKCS, 2011, p. 46)
13
de temticas fundamentais a uma poca. Isso essencial aos nossos apontamentos sobre
o Direito. Uma crtica ontolgica a este ltimo s pode ser slida compreendendo-se o
que se entende por ontologia, por alienao (Entfremdung), por histria, etc.
Nesse sentido, vale ver Lukcs sobre a questo da alienao (Entfremdung), a
qual marca seu livro Histria e conscincia de classe, livro esse que d novo flego ao
marxismo, asfixiado pelo positivismo da II Internacional10
no incio do sculo XX:
Trata-se do problema da alienao (Entfremdung), que, pela primeira vez desde Marx, foi
tratado como questo central da crtica revolucionria do capitalismo e cujas razes
histrico-tericas e metodolgicas remetem dialtica de Hegel. Naturalmente, o problema
pairava no ar. Alguns anos mais tarde, desloca-se para o centro das discusses filosficas
com o Ser e o Tempo de Heidegger, mantendo essa posio ainda hoje, sobretudo em
consequncia da influncia exercida por Sartre, assim como por seus discpulos e oponentes.
Podemos renunciar, portanto, questo filolgica levantada principalmente por Lucien
Goldmann ao identificar em algumas passagens da obra de Heidegger uma rplica ao meu
livro, ainda que este no seja mencionado. (LUKCS, 2003, p. 23)
A questo da alienao (Entfremdung) pairava no ar. O autor de Histria e
conscincia de classe reconhece que ela desloca-se para o centro das discusses
filosficas com o Ser e o tempo de Heidegger, o que vem na esteira de se reconhecer a
importncia do autor alemo, o qual, no raro, criticado por Lukcs. Procuraremos
mostrar nesse escrito, assim, como essas crticas confluem na ontologia lukacsiana e em
sua crtica ontolgica ao Direito.
O pensador marxista ressalta que na poca (ele escreve as palavras citadas em
1967) a questo era muito discutida no campo filosfico, o que pode ser relacionado
com a ateno que d ao tema em seus textos: a alienao (Entfremdung) aparece com
fora em toda obra lukacsiana, mesmo a juvenil, mas tem uma formulao cuidadosa
principalmente na obra madura do filsofo.11
Depois de um tratamento dispensado ao
tema em O jovem Hegel, a temtica marcante em A Esttica e na Ontologia do ser
social e as duas ltimas grandes obras de Georg Lukcs, representam o ponto
culminante de sua atividade terica, sua maior contribuio filosofia contempornea.
(TERTULIAN, 2007, p. 221) Neste escrito, pois, o pano de fundo ser traado em torno
do tema da alienao, temtica relacionada ao trabalho, histria e ontologia.
V-se que a discusso acerca do jogo sutil de afinidades e repulso que une
Lukcs a Heidegger se liga no tanto pela questo filolgica acerca do eventual
10
Sobre a importncia de Histria e conscincia de classe para o marxismo, Cf. MSZROS, 2002. Para
uma abordagem mais ampla e no mbito da histria, Cf. ANDERSON, 2002. 11
Diz Alvez, nesse sentido, que a temtica do estranhamento(Entfremdung) [...] a temtica crucial do
marxismo lukacsiano, constituindo-se objetivamente como problemtica fulcral da critica do capital em
sua etapa tardia.. (ALVES, 2010, p. 25)
14
carter de resposta de Ser e tempo em relao obra Histria e conscincia de classe; o
central ao pensador hngaro, e ao modo como o tema tratado aqui, a importncia da
questo da alienao (Entfremdung) para os rumos do sculo XX, imediatamente
anterior nossa poca, poca essa em que o pensamento jurdico ganha destaque muito
mais por suas vicissitudes, que por eventuais mritos. (Cf. SARTORI, 2012 a)
E se pode dizer que a postura heideggeriana sobre o tema semelhante, tratando
do assunto pela sua relevncia. Veja-se: o pensador alemo diz primeiramente sobre a
proximidade do ser - vista em Hlderlin e relacionada por Heidegger alienao
(Entfremdung) - que a apatricidade (Heimatlosigkeit) que assim deve ser pensada
reside no abandono ontolgico do ente (Seiende). Ela o sinal do esquecimento do ser
(Seinsvergessenheit). Em consequncia dela, a verdade do ser permanece impensada.
(HEIDEGGER, 2005, p. 46) Depois, complementa tratando sobre sua poca em sua
Carta sobre o humanismo:
A apatricidade (Heimatlosigkeit) torna-se o destino do mundo. por isso que se torna
necessrio pensar esse destino sob o ponto de vista ontolgico-historial. O que Marx, a
partir de Hegel, reconheceu, num sentido essencial e significativo, como alienao
(Entfremdung) do homem, alcana, com suas razes, at a apatricidade do homem moderno.
Esta alienao provocada e isto, a partir do destino do ser, na forma da Metafsica, por
ela consolidada e ao mesmo tempo por ela encoberta, como apatricidade. Pelo que Marx,
enquanto experimenta a alienao, atingir uma dimenso essencial da histria, a viso
marxista da Histria superior a qualquer outro tipo de historiografia. Mas porque nem
Husserl, nem, quanto eu saiba at agora, Sartre reconhecem que a dimenso essencial do
elemento da histria reside no ser, por isso, nem a Fenomenologia12
, nem o Existencialismo
atingem aquela dimenso, no qual , em primeiro lugar, possvel um dilogo produtivo com
o marxismo. (HEIDEGGER, 2005, pp. 48-49)
possvel se averiguar que Heidegger associa a apatricidade (Heimatlosigkeit)
do homem moderno com a alienao (Entfremdung). Tambm h para o pensador uma
relao entre essa questo e a Metafsica, o que ser de enorme importncia aqui. 13
Deste modo, neste escrito, deve-se justamente mostrar o caminho que ambos os
autores percorrem para que a alienao (Entfremdung) possa parecer-lhes como central
modernidade e ao homem moderno. Aqui, pois, no se busca saber se Heidegger se
inspirou em Lukcs ou tentou uma resposta Histria e conscincia de classe em Ser e
tempo. Tambm no se procura saber o que da obra do autor alemo est na obra tardia
do marxista. Se um autor fosse redutvel ao outro, no se trataria efetivamente de dois
12
Quando Heidegger se refere fenomenologia na passagem critica, sobretudo Sartre e Husserl, no
buscando contrapor-se noo de fenmeno desenvolvida por si prprio em Ser e tempo. 13
Deve-se apontar que a expresso no usada de modo unvoco durante o percurso heideggeriano. O
modo como a utilizamos aqui tem em conta principalmente o uso que o autor faz do termo depois da
dcada de 30, em que empreende expressamente uma crtica metafsica. Antes disso, por vezes, o autor
chega a ver a mesma de modo positivo como em Que metafsica e em Kant e o problema da metafsica.
15
distintos e importantes autores do sculo XX. O essencial primeira parte desse escrito
ver como a alienao, uma questo essencial aos rumos de nossa poca, poca
imediatamente posterior quela dos autores aqui estudados, vista de maneira ao
mesmo tempo convergente e divergente nesses dois grandes pensadores.
Tendo-se em mente as passagens citadas anteriormente, j se mostra possvel
dizer que tanto um quanto outro (o autor de Ser e tempo e o da Ontologia do ser social)
no acreditam ser a herana do pensamento de Marx aproveitada: Heidegger critica
tanto o existencialismo quanto a fenomenologia por no darem ateno questo da
alienao (Entfremdung) ao passo que Lukcs escreve Marxismo ou existencialismo
contra a primeira vertente criticada pelo autor de Ser e tempo e, continuando o que se
citou acima do prefcio de 1967 de Histria e conscincia de classe ainda diz que no
que concerne ao tratamento do problema, hoje no difcil perceber que ele se d
inteiramente no esprito hegeliano. (LUKCS, 2003, p. 24) Isso ocorreria, inclusive,
de acordo com os demritos de sua obra de 1923 a qual seria influente no sculo XX
tambm devido resoluo apressada da questo da alienao nos moldes do sujeito-
objeto idntico hegeliano.
O apontado por Lukcs no de pouca importncia para o tema na medida em
que o prprio Heidegger relaciona a alienao (Entfremdung) em Marx com o
tratamento dispensado a essa por Hegel. No que, na primeira parte de nosso escrito,
veremos como ambos os pensadores distanciam-se de Hegel e se aproximam da
alienao de modo diverso. bom ver a maneira distinta como enxergam a passagem
do autor da Fenomenologia do esprito para o dos Manuscritos econmico-filosficos.
No que bom dizer aqui: o autor marxista s tem clara a questo em sua
maturidade, depois de O jovem Hegel, mas principalmente depois de comear sua
Ontologia do ser social (obra em que trata tambm do Direito), e sua Esttica, obra em
que as temticas da vida cotidiana (Alltagsleben) e da alienao (Entfremdung)
aparecem com fora. No que diz respeito ao delineamento e a clareza da temtica da
alienao para o autor, deve-se partir das suas obras tardias, pois. Mesmo que possa ser
interessante tratar da relao entre as obras dos autores publicadas na dcada de 20 do
sculo XX (ou mesmo antes, como no caso de Ttica e tica ou mesmo Alma e as
formas), tal anlise no cabe aqui. Por vezes, ela foi feita com analogias problemticas
16
quanto ao rigor necessrio na compreenso de pensadores complexos como Heidegger e
Lukcs.14
No trataremos da questo nos dedicaremos s obra madura de Lukcs.
Pela passagem heideggeriana citada acima e pelo exposto, v-se que a temtica
da histria - vista por Heidegger como distinta da historiografia -, da metafsica, da
ontologia e da alienao (Entfremdung) aparecem juntas e, aqui, deve-se ter em conta o
modo como se ligam tais temas tanto em Lukcs como em Heidegger; no autor hngaro
na medida em que, diz Tertulian, at mesmo como resposta a Ser e tempo,
desenvolvem-se em sua obra tardia na qual no possvel deixar de se notar a presena
de temas muito caros a Heidegger, como aquele do cotidiano. No pensador alemo,
passando-se por uma ontologia fundamental, tais questes se apresentam no percurso
de seu pensamento sobre o esquecimento do Ser (Seinsvergessenheit), o qual se
relacionaria, inclusive, com a preponderncia da agresso ao ente (Seiende), o que no
deixa de remeter problemtica da positividade em Hegel, indissocivel da questo da
alienao.15
Pretendemos mostrar aqui que para se compreender o fenmeno jurdico e
para empreender uma crtica ontolgica ao Direito, so essenciais essas temticas.
Destacada a pertinncia, e mesmo a importncia que pode ter se tratar da
alienao (Entfremdung) em Heidegger e Lukcs, percebe-se que, para uma viso
cuidadosa e relacionada ao tratamento dispensado ao cotidiano pelos autores, deve-se
ter em mente o percurso que cada um traa. Com isso, unilateral e superficial
meramente mencionar que os autores do relevo ao tema, embora seja essencial se
comear por ai. Parte-se de algo presente j em Hegel e destacado principalmente por
Marx, e possvel ver j aqui que tanto o autor de Ser e tempo como o da Ontologia
do ser social buscam os temas da histria e da ontologia para que se possa partir rumo
problemtica da alienao (Entfremdung). Deve-se, pois, buscar o modo como a
alienao, a histria, a ontologia e a metafsica se apresentam em seus pensamentos.
14
Como dissemos noutro lugar, haveria, em Heidegger, tal qual no Lukcs da obra de 1923, uma crtica
a certa forma de racionalidade formal e calculista em que h uma viso parcelar a qual incapaz de
remeter para alm de si mesma e tem como pressuposto a separao estanque entre o sujeito do
conhecimento e o objeto. E a questo foi tratada com maestria por Lukcs em Histria e Conscincia de
Classe remetendo totalidade. Heidegger, porm, remete ao Ser (Sein) em seu tratamento da questo. E
Lucien Goldmann esclarecedor nesse ponto, embora possa exagerar na semelhana entre os dois autores
no tratamento da problemtica. (SARTORI, 2010 b, p. 25) Veja-se a passagem de Goldmann: a
consequncia disso que, para expressar suas ideias afins e por vezes quase idnticas, Lukcs fala de
totalidade, onde Heidegger emprega a palavra ser; de homem, onde Heidegger cria o termo Dasein
(existncia); de prxis, onde Heidegger diz Zuhandenheit (aproximadamente manualidade).
(GOLDMANN, 1973, p. 57) Como se ver neste escrito, a questo no to simples como vista tanto por
Goldmann quanto por mim preteritamente. 15
Sobre a relao entre a positividade e a alienao (Entfremdung) , Cf. LUKCS, 1963. Para uma viso
preliminar da questo em Heidegger e Lukcs, Cf. SARTORI, 2010 b.
17
Esses ltimos, por sua vez, tm consigo um tratamento ao Direito (em Lukcs) ou
podem propiciar abordagens quanto ao mesmo partindo de Heidegger.16
No entanto,
nem um nem outro so pensadores que tenham o Direito no centro de suas
preocupaes, de maneira que necessrio ver as questes relativas ao fenmeno
jurdico passando pela arquitetnica da obra de ambos.
Ou seja, no justo, honesto, nem apropriado se partir de problemticas
jurdicas como se apresentam diretamente no cotidiano - no Direito positivo, ou ao
tpico jurista - para ento trat-las por meio de Heidegger e de Lukcs; antes, bom se
ter uma abordagem filosfica que passe pelo Direito e no uma abordagem jurdica que
passa pela filosofia, introduzindo a ltima de modo forado. No ltimo percurso, o
ecletismo d a tnica e as questes imediatas do jurista acabam por prevalecer, sendo
impossvel qualquer tipo de crtica ontolgica ou de crtica sociedade capitalista.
Aqui, deve-se ver justamente aquilo que o Direito e a abordagem jurdica
trazem consigo e, para isso, no se pode pressupor o que se manifesta com o jurdico
preciso explica-lo. O Direito ser importante aqui na medida em que aparece
efetivamente nos autores estudados, pois. Ao contrrio do que se possa pensar, isso no
depe contra a importncia do estudo do Direito, porm. Pretende-se mostrar aqui: por
meio do estudo de dois dos representativos pensadores do sculo XX, muito se tem a
dizer sobre o tema. bem verdade que isso tambm no ocorre de acordo com o
tratamento tradicional dado aos estudos jurdicos. No entanto, justamente nesse ponto
encontra-se a fora do presente escrito. De modo distinto, as obras Lukcs e a crtica
ontolgica ao Direito e Fenomenologia existencial do direito (a primeira de minha
autoria, a segunda de Jeannette A. Maman) j desenvolveram aspectos importantes no
que diz respeito ao Direito e a ontologia. Desta maneira, aqui, depois de se tratar de
noes essenciais compreenso conjunta de Lukcs e de Heidegger, pode-se partir
na segunda parte desse escrito - para as implicaes desse dilogo ao estudo do Direito.
Este escrito dividido em duas partes: a primeira diz respeito aos alicerces
fundantes das ontologias de Lukcs e de Heidegger e a segunda trata do Direito
propriamente dito. No primeiro captulo sero tratados Heidegger e Lukcs em
consonncia com o modo como dialogam com a filosofia precedente, tendo-se de um
lado o passo de volta (Schritt zurck) e doutro a busca de uma superao
16
Para uma viso sobre a crtica lukacsiana ao Direito em Ontologia do ser social, Cf. SARTORI, 2010
a; para uma viso do Direito em Histria e conscincia de classe, Cf. ALMEIDA, 2006. J para um
tratamento dispensado ao fenmeno jurdico do ponto de vista heideggeriano, Cf. MAMAN, 2003.
18
(Aufhebung). No segundo captulo, procurar-se- demonstrar como a histria, a
ontologia e a tcnica aparecem nesses dois importantes autores do sculo XX
relacionadas, sobretudo, problemtica do trabalho, da alienao (Entfremdung) e da
prxis transformadora. J no terceiro captulo o primeiro da segunda parte - as
questes tratadas anteriormente aparecero com maior concretude, sendo o fenmeno
jurdico abordado tendo em mente as determinaes apontadas pelo marxista hngaro e
entendidas em correlao com a filosofia do Ser (Sein) heideggeriana. Para isso, ser
preciso se elevar o debate travado anteriormente a um patamar de maior concretude
vendo-se at que ponto o Direito pode ser visto como uma tcnica (o que traz tona o
debate sobre o tema travado no captulo II) e averiguando como a noo de superao
(com tudo que implica) se faz presentes numa compreenso e numa crtica ontolgica
ao complexo jurdico. Com isso, chega-se ao ltimo captulo, cuja estrutura, relacionada
ao tratamento dispensado ao Direito em uma crtica ontolgica, dada essencialmente
pelos posicionamentos do autor hngaro. As noes tratadas anteriormente se faro
presentes de modo que procuraremos explicitar algumas ligaes importantes (como
aquela entre o Direito, a noo de universalidade e a alienao). Isso ocorrer ao passo
que so trazidos aspectos que diferenciam Lukcs de Heidegger, como a compreenso
acerca do modo como possvel uma crtica efetiva (wirklich) situao da poca em
que ambos escrevem, poca esta marcada pela hegemonia da sociabilidade capitalista.
Sempre que possvel procuramos trazer os termos originais do alemo, os quais
figuraro ao lado das respectivas tradues em portugus. Quando o mesmo termo
aparece seguidas vezes no mesmo pargrafo, somente da primeira vez o original
aparecer entre parnteses; nas seguintes, bastar a traduo ao portugus. O rol dos
termos que trazemos no exaustivo, no entanto, ele muito nos ajudar dado que no s
alguns termos so de difcil traduo, mas no raro pode ser considerado mais
acertado traduzi-los, dependendo das circunstncias, de diferentes modos
(principalmente quando se trata de autores distintos como Heidegger e Lukcs).
19
Parte I: Ontologia, tcnica
e alienao (Entfremdung)
em Heidegger e Lukcs
20
CAPTULO I: HEIDEGGER, LUKCS, A ONTOLOGIA E O
DILOGO COM A FILOSOFIA PRECEDENTE
Neste captulo, busca-se explicitar o modo como Heidegger e Lukcs dialogam com a
filosofia precedente. De um lado aparece o autor hngaro com uma postura que valoriza
a tradio moderna da filosofia e principalmente a filosofia clssica alem buscando a
superao (Aufhebung) da mesma; e doutro, o filsofo alemo busca um passo de
volta (Schritt zurck) em relao s questes levantadas de modo moderno, o que
significaria remeter para algo alm da filosofia moderna: tm-se uma virada (Khere).
Com isso, as posturas dos autores frente modernidade transparecem e so de grande
importncia caso se queira adentrar com cuidado no pensamento de ambos tendo em
conta a questo da alienao (Entfremdung). Ver-se-, inclusive, que mesmo algo
aparentemente to alheio filosofia quanto o juzo positivo ou negativo quanto ao
socialismo pode ser de grande auxlio quando se tem em mente os passos iniciais na
efetiva (wirklich) compreenso do pensamento do autor de Ser e tempo e do autor da
Ontologia do ser social. Trata-se de um captulo que prepara o debate efetivo acerca da
questo da alienao e da tcnica: o cerne da teoria lukacsiana e heideggeriana ainda
no aparece aqui; busca-se neste primeiro momento explicitar o modo pelo qual ambos
dialogam com a filosofia (o que, como se ver, no pouco e envolve o debate acerca
do mtodo de cada pensador) depois, no captulo seguinte, os pensamentos dos
autores sero tratados de modo mais condizente com suas filosofias, as quais podem ser
compreendidas somente quando os percursos de seus pensamentos so trilhados.
21
1.1 A superao (Aufhebung) e o dilogo de Lukcs com a filosofia
O debate aqui travado gira em torno da noo de superao/supresso
(Aufhebung).17
justo comear por aquele pensador que se utiliza de modo positivo do
termo para depois se averiguar a crtica noo. Comea-se o captulo tratando de
Lukcs para depois se passar a Heidegger, buscando-se o modo pelo qual ambos traam
o percurso de seus pensamentos. Com isso, pretende-se dar incio (algo sempre difcil)
compreenso das teorias dos dois autores que sero tratados nessa parte do escrito ver-
se- que, com esse intuito, passa-se pela posio de ambos quanto modernidade em
que j se tangencia a questo da alienao (Entfremdung). No entanto, desde j, bom
restar claro que o presente captulo contm in nuce aquilo que permeia os seguintes.
Deste modo, ao mesmo tempo em que se trata de captulo essencial, h certa dificuldade
nele j que aquilo que realmente d concretude ao mesmo ainda no pode ser tratado
com a devida profundidade. Aqui, pois, busca-se dar um primeiro passo e, para isso,
bom que se inicie com aquilo que diz Lukcs acerca da superao, da supresso no
marxismo para que depois se possa iniciar um debate com Heidegger.
Lukcs um pensador nico no marxismo. No s seu percurso singular. Sua
vida, em parte, confunde-se com as tentativas de emancipao humana buscadas no
sculo XX; no plano filosfico, trata-se de algum que fora repudiado tanto pela vulgata
do marxismo oficial quanto pelos marxistas filosoficamente mais rigorosos, como os
autores ligados chamada escola de Frankfurt (os quais, porm, apoiaram-se nas obras
lukacsianas de juventude, como A teoria do romance). Aqui no se pode expor os
argumentos de um Deborin ou de um Adorno contra o marxista hngaro mas pode-se
mostrar como o pensamento lukacsiano se desenvolve como uma ontologia do ser
social. Para explicitar isso, bom se iniciar pelo modo como este pensador busca traar
seu pensamento em relao a sua poca e ao pensamento e prxis moderna.
Vale comear pelo bvio, mas que parece no o ser para muitos: stalinismo e
socialismo no se confundem, assim como o diamat sovitico no tem nada da
compreenso lukacsiana acerca do marxismo. Isso claro, porm no pode deixar de ser
destacado, at mesmo porque disse Lukcs sobre a influncia de Stalin que o
17
importante destacar que, embora Lukcs reconhea tal concepo como importante, no so todos os
marxistas que pensam desta maneira. Althusser, por exemplo, diz que nessa categoria reside um germe
idealista hegeliano que no pode ser aceitvel ao marxismo. Veja-se: o que macula irremediavelmente a
concepo hegeliana da histria como processo dialtico a concepo teleolgica da dialtica, inscrita
nas prprias estruturas da dialtica hegeliana, num ponto extremamente preciso: a Aufhebung
(ultrapassagem-conservando-o-ultrapassado- como-ultrapassado-interiorizado), expressa diretamente na
categoria hegeliana da negao da negao (ou negatividade). (ALTHUSSER, 1979, p. 69)
22
marxismo, concebido acertadamente, [...] no existe mais. Em seu lugar, temos o
stalinismo, e continuaremos a t-lo ainda por algum tempo. (LUKCS, 1972, p. 32) O
autor hngaro destaca que, nesse sentido, no h mais marxistas. Ns simplesmente
no temos uma teoria marxista. (LUKCS, 1972, p. 31) Ou seja, assim como destacou
Tertulian (Cf. TERTULIAN, 2007 b), a busca lukacsiana pelo renascimento do
marxismo (busca essa conformada principalmente na Ontologia do ser social e na
Esttica) inseparvel de uma crtica ao stalinismo e s tentativas de emancipao
ocorridas no sculo XX. E isso se liga intimamente ao nosso tema desse momento.
Criticando o stalinismo por ter visto o marxismo como algo absolutamente
dissociado do pensamento precedente, diz Lukcs que a histria do pensamento foi
sistematizada como se antes do marxismo houvesse um pensamento e, em seguida a um
grande salto, ele tivesse sido substitudo pelo marxismo. (LUKCS, 1969, pp. 168-
169) O autor hngaro enfatiza o erro de se ver a teoria de Marx, e depois o marxismo,
como um modo de pensar separado - por uma espcie de muralha - da filosofia e do
pensamento precedentes.18
A filosofia teria sido sistematizada e esquematizada de modo
brusco e rude sob Stalin, cuja teoria ossificada e, neste sentido, dominada
filosoficamente por um hiperracionalismo (LUKCS, 1986, p. 62) o que faz dela um
esquema abstrato e arbitrrio, incapaz de opor-se sequer filosofia burguesa.
Isso levaria ligao ntima entre um materialismo mecanicista e uma espcie
de idealismo subjetivo em que na prxis a atuao no regulada pela mais profunda
inteligncia das coisas, ao contrrio, essa mais profunda inteligncia construda em
funo da ttica do agir. (LUKCS, 1986, p. 63) Diz o pensador hngaro, por outro
lado, de modo oposto ao stalinismo, que o valor supremo do marxismo consiste
substancialmente no fato de que ele se assenhorou de todos os valores do bilenar
desenvolvimento europeu. (LUKCS, 1969, p. 169) Longe de ter havido um grande
salto para fora da histria, e da histria da filosofia em particular, um salto que
trouxesse consigo algo absolutamente sem precedentes, haveria relativa continuidade do
marxismo em relao ao bilenar desenvolvimento europeu, principalmente no que diz
18
Isso se liga quilo que Lukcs chamou de herana. Trata-se da justa valorizao dos grandes
pensadores do passado os quais, no entanto, devem ser vistos como ligados s suas pocas e, assim,
relacionados ao desenvolvimento das relaes histricas que marcam a mesma. Nisso, por exemplo, Marx
e Engels sempre teriam valorizado algum como Hegel, mesmo sendo profundamente crticos quanto ao
mesmo. Por outro lado, os tericos da moda, como Dhring, deveriam ser prontamente combatidos. Sobre
isso, o autor hngaro diz: a luta pela herana, assim, para Engels a grande contraposio dos gigantes
do passado aos anes do atual perodo de desenvolvimento da burguesia. (LUKCS, 2010 b, p. 41)
23
respeito aos valores trazidos com esse.19
Nisso, a justa apreenso das relaes sociais
essencial filosofia a qual acompanha, inclusive, aquilo de mais digno na cultura
ocidental, como o humanismo (esse ltimo ponto no consensual no marxismo e foi
muito criticado por Althusser, por exemplo porm, aqui no trataremos desse autor).
Destaca-se que a relao estabelecida pelo pensador marxista quanto filosofia
precedente a Marx no aquela de um corte 20
, ou de uma ciso h mesmo certa
continuidade, pode-se dizer. Ao mesmo tempo, no entanto, em hiptese alguma, se pode
ignorar o carter dessa ltima. Trata-se de um modo de continuidade que d lugar
emergncia de um pensamento distinto, que traz consigo algo novo, mas que no algo
absolutamente separado daquilo que o precedeu. Tem-se uma superao (Aufhebung).
sempre bom ter cuidado ao tratar desse assunto. de enorme importncia que
no se pense que o autor da Ontologia do ser social tem uma noo ingnua de
progresso nem um apego necessidade a qual, no seu sentido clssico [...] nunca se
manifesta na histria. (LUKCS, 1986, p. 64) A ltima noo, ao menos em seu
sentido clssico, em verdade, tem consigo um apelo positivista e evolucionista muito
alheio tanto a Lukcs como a Heidegger. preciso tambm tomar cuidado com o modo
como se interpreta a afirmao do autor hngaro quanto ao modo como o marxismo se
relaciona com os valores do bilenar desenvolvimento europeu, pois. Caso se entenda
que o marxismo se assenhorou desse desenvolvimento apropriando-se taticamente
daquilo alheio ao pensamento de Marx, haveria uma postura que busca dominar aquilo
que conhece e busca meramente instrumentalizar tais valores: trata-se de stalinismo e o
stalinismo mais que uma interpretao errnea ou uma aplicao descuidada do
marxismo; uma negao do marxismo. Com stalinismo no h tericos, s tticos.
(LUKCS, 1972, p. 32) Quando o autor hngaro destaca certa continuidade do
marxismo quanto quilo que mais valoriza, deve-se entender que a teoria de Marx
19
Refere-se Lukcs, sobretudo, ao humanismo o qual em sua gnese e por sua prpria essncia, um
conhecimento do homem voltado para a defesa de sua dignidade e dos seus direitos. Por isso, o
humanismo combativo, e mesmo agressivo, desde o Renascimento passando pela ilustrao at os
grandes momentos da Revoluo Francesa. (LUKCS, 2007, p. 45) O marxismo um herdeiro crtico
do humanismo, buscando um iderio dissociado dos vcios do capital. Pode-se concordar: o marxismo de
Lukcs uma marxismo humanista que busca analisar, numa perspectiva histrico-ontolgica, as relaes
sociais entre os homens a partir da (crtica) da vida cotidiana (Alltagsleben). (ALVES, 2010, p. 24) 20
A problemtica do corte epistemolgico, muito cara a Althusser, estranha a Lukcs. Cf.
ALTHUSSER, 1979. O terico radicado na Frana tambm discorda de Lukcs quando se trata da
relativa continuidade entre o marxismo e o secular desenvolvimento europeu; para o autor de A favor de
Marx, o marxismo uma ruptura decidida com o passado: a filosofia de Marx apresenta a caracterstica
nica na histria da filosofia, de romper com o passado ideolgico e de estabelecer a filosofia sobre bases
novas, que lhe conferem uma forma de objetividade e rigor terico somente compatveis com uma
cincia. (ALTHUSSER; BADIOU, 1986, p. 49)
24
herdeira do humanismo ao mesmo tempo em que, sem estabelecer cises bruscas e
abruptas quando s conquistas pregressas, ultrapassa e transforma o mesmo de modo
substancial, o que no pouco. Trata-se de salvar a herana da grande cultura humanista
tanto da decadncia da sociedade capitalista quanto da vulgata autointitulada marxista.
Nem o hiper-racionalismo de Stalin, nem aquilo que o marxista hngaro chama
de irracionalismo e que toma o prprio ser social (gesellchaftlichen Seins), sempre
histrico, como incompreensvel: as duas alternativas so equivocadas e, principalmente
com a ltima, paralelamente a este desprezo pelos fatos histricos, pelas foras reais
motrizes da histria, surge uma tendncia mistificao. (LUKCS, 2010 b, p. 53)
Como marxista, o parmetro primeiro de Lukcs no poderia deixar de ser Marx. Diz
nosso autor que os Manuscritos econmico-filosficos21
representam assim a superao
(Aufhebung) decisiva tanto do idealismo de Hegel quanto de todos os erros lgicos que
derivam do carter idealista de sua dialtica. (LUKCS, 2007, p. 187) E esse ponto
importante. Hegel um autor privilegiado pelo autor hngaro no que diz respeito ao
dilogo da filosofia pretrita com o marxismo. Seria o pensador da Fenomenologia do
esprito no s um autor em que fica clara a conexo interna entre filosofia e
economia, economia e dialtica. (LUKCS, 1963, p. 31) Tem-se algum que expressa
o fim das potencialidades de uma poca em que a sociabilidade burguesa teria
propiciado a apreenso honesta do processo histrico, trata-se, nas palavras de Karl
Korsh, do ltimo filsofo revolucionrio da burguesia (KORSCH, 2008, p. 50).22
Hegel teria consigo o pice do desenvolvimento burgus, sendo essencial ao seu
pensamento o advento da Revoluo Francesa de 1789 e a consolidao dessa ltima. 23
21
Lukcs no traa uma ciso na obra de Marx. Segundo ele, certamente uma estupidez historiogrfica
insistir sobre a contraposio entre jovem Marx e o Marx maduro (LUKCS, 1969, p. 56) Para que se
mencione outro posicionamento, vale ver o de Althusser para quem h uma clara ruptura entre o jovem
o Marx maduro: uma censura epistemolgica intervm, sem nenhum equvoco, na obra de Marx.
(ALTHUSSER, 1979, p. 23) Haveria, inclusive, um jovem Marx: com uma problemtica antropolgica
de Feuerbach e a problemtica do idealismo absoluto de Hegel. (ALTHUSSER, 1980, p. 33) 22
Diz Lukcs: entre a revoluo de 1789 e aquela de 1848, tem lugar esta grande crise do pensamento
moderno; foi neste perodo que, pela ltima vez, surgiram a partir da vida burguesa personalidades de
primeirssima ordem, formulando, cada um a seu modo, as grandes contradies da poca. (LUKCS,
2007, p. 111) Ou seja, trata-se de uma poca crtica em que haveria a possibilidade (Mglichkeit) de um
salto qualitativo quanto filosofia precedente, salto esse presente justamente na passagem de Hegel para
Marx. Ai, ter-se-ia no mais um modo de se pensar calcado na vida burguesa, mas na crtica mesma
realizada contrariamente prpria sociedade civil-burguesa (brguerliche Gesellschaft). 23
Se falamos antes da categoria da necessidade e agora mencionamos Hegel, importante dizer que a
compreenso lukacsiana dessa categoria muito distinta daquele do autor da Fenomenologia do esprito
j que, como diz Kosik, a necessidade hegeliana [...] mistificadora pois induz a uma unidade de
aparncia aonde h litgio, dissimula a significao dos papis individuais e identifica o jogo das foras
reais com um jogo estabelecido de antemo. (KOSIK, 1991, p. 20)
25
Marx, por sua vez, seria impensvel sem Hegel 24
e mesmo sem a revoluo
burguesa, mas em uma poca distinta e de contradies qualitativamente distintas25
,
com sua filosofia, nasce uma concepo de mundo qualitativamente nova e uma nova
dialtica, distintas de tudo anterior. (LUKCS, 1959, p. 441) Ao mesmo tempo em
que o desenvolvimento da burguesia trouxe frutos extraordinrios, os quais se
relacionam, primeiro com o prprio Renascimento e com o humanismo, e depois com a
prpria sociedade civil-burguesa (brguerliche Gesellschaft), a base de tal processo -
com Hegel e seu tempo - esgota-se e possvel e justo ir alm daquilo que fora at ento
concebido. Lukcs, assim, mostra que a filosofia indissocivel da histria e das
relaes sociais, as quais manifestam seu carter conflituoso na filosofia, sendo Hegel
ligado s contradies que emergem na sociedade civil-burguesa e Marx inseparvel da
busca pela supresso (Aufhebung) das contradies classistas.26
Tem-se um salto qualitativo. Trata-se da emergncia de algo distinto de todo o
anterior, mas que possui precedentes: liga-se de modo crtico quilo que se apresentou
no passado, buscando ir alm ao partir daquilo que houve de melhor. Tem-se algo que
decorre das relaes histricas inseparveis da filosofia pregressa, mas tem consigo a
compreenso justa dessas relaes sociais as quais, depois de determinado momento,
apareceram como incognoscveis para a filosofia anterior, a qual teria consigo, em suas
formas renovadas, um aspecto conservador e incoerente, ligado, inclusive, a uma
metodologia ecltica e que tende mistificao das relaes existentes. 27
24
Losurdo diz sobre ele: no existe revoluo na histria da humanidade que no tenha sido apoiada por
esse filsofo, que tambm tem fama de ser um incurvel homem da ordem. (LOSURDO, 1997, p. 154) 25
Tratando da crise do pensamento moderno, que se colocaria na esteira das revolues de 1848, Lukcs
aponta como insuficientes as respostas calcadas na sociabilidade burguesa e aponta na posio da
filosofia marxista a sua vantagem: em minha opinio, creio que o materialismo dialtico ao demonstrar
o caminho verdadeiro, o caminho real, que o da revoluo da sociedade [civil-]burguesa (brguerliche
Gesellschaft) para a sociedade socialista, ao tornar consciente esse movimento evolutivo traz uma
resposta a essas contradies. (LUKCS, 2007, p. 111) perceptvel, pois, a posio do autor da
Ontologia do ser social trata-se de um pensador socialista e isso ser essencial anlise do Direito. 26
Toda grande filosofia, assim, ideolgica j que a ideologia no se confunde necessariamente com a
falsa conscincia: so muitas as realizaes da falsa conscincia que nunca se tornaram ideologia; em
segundo lugar, aquilo que se torna ideologia no de modo nenhum necessariamente idntico falsa
conscincia. Aquilo que realmente ideologia, por isso, somente podemos identificar pela sua ao
social, por suas funes na sociedade. (LUKCS, 1981 C: XX) 27
A questo liga-se quilo que Lukcs chama de decadncia ideolgica da burguesia. Com ela, a
burguesia deixa de apreender o prprio movimento do real e a historicidade (Geschichtlichkeit) do presente deixada de lado pela filosofia burguesa a qual se torna crescentemente apologtica: a
decadncia ideolgica surge quando as tendncias da dinmica objetiva da vida cessam de ser
reconhecidas, ou so inclusive mais ou menos ignoradas, ao passo que se introduzem em seu lugar
desejos subjetivos, vistos como a fora motriz da realidade. Precisamente porque o movimento histrico
objetivo contradiz a ideologia burguesa, mesmo a mais radical e profunda introduo de tais
momentos puramente subjetivos transformar-se- objetivamente num apoio burguesia reacionria.
(LUKCS, 1968 b, p. 99) A profundidade que o autor hngaro trata com ironia na passagem, em
26
O desenvolvimento da histria e da filosofia, pois, so inseparveis pensar
continuidade e descontinuidade na filosofia seria pensar ambas tambm nas relaes
reais, no desenvolver do prprio ser; e a categoria fundamental do ser social
(gesellschaftlichen Seins), mas isso vale para todo o ser que ele histrico
(LUKCS, 1986, p. 85). Aquilo distinto de todo anterior surge, pois, no s em
contato e relao com a filosofia precedente, mas essencialmente ligado ao processo
histrico que traz a mesma. Histria, filosofia e ontologia, assim, ligam-se intimamente,
sendo o dilogo de Marx com a filosofia, e o de Lukcs tambm, uma crtica mesma e
s relaes sociais que a amparam. Critica-se um modo de sociabilidade inerente ao
prprio ser da sociedade classista e, por isso, a crtica de Marx uma crtica
ontolgica (LUKCS, 2010, p. 71), uma crtica prpria realidade.
Ao passo que na filosofia - e na histria - destaca-se certa continuidade, h
ruptura: conserva-se parte essencial daquilo a ser ultrapassado enquanto esse
conservar , em si, uma transformao substantiva a qual no pode ser
desconsiderada. Segundo Lukcs: Marx e Engels por seu contedo e seu mtodo
representam um salto qualitativo com respeito ao pensamento anterior (LUKCS,
1959, p. 615) ao mesmo tempo em que tal salto no elimina o processo que torna
possvel a emergncia da concepo dos autores socialistas. Assim, seguindo este
raciocnio, o pensamento de ambos os revolucionrios alemes a culminao
espiritual de todas as tendncias progressistas que tinham trabalhado pela libertao e
pelo carter nacional do povo alemo. (LUKCS, 1959, p. 615) As tendncias
progressistas que teriam precedido o marxismo na Alemanha, pas da filosofia clssica,
da filosofia de Kant e de Hegel, no mais teriam consigo um carter acertado tendo-se
em mente o tempo presente. Isso porque, se depois de 1848 a sociedade capitalista se
apresenta j com toda a sua fealdade consumada (LUKCS, 1965, p. 106), no mais
possvel uma filosofia justa que tenha como referncia a mesma como cume do
desenvolvimento humano.28
A filosofia anterior a Marx teria consigo a marca indelvel
verdade, faria com que as questes essenciais de uma poca, como a questo da alienao (Entfremdung),
alheia a todo o neokantismo por exemplo, fossem deixadas de lado e se apresentasse um pensamento oco. 28
Coutinho, nesse sentido, diz que na histria da filosofia burguesa, possvel discernir - com relativa
nitidez duas etapas principais. A primeira, que vai dos pensadores renascentistas a Hegel, caracteriza-se
por um movimento progressista, ascendente, orientado no sentido da elaborao de uma racionalidade
humanista e dialtica. A segunda que se segue a uma radical ruptura, ocorrida por volta de 1830-1848
assinalada por uma progressiva decadncia, pelo abandono mais ou menos completo das categorias do
perodo anterior, algumas definitivas para a humanidade, como caso das categorias do humanismo, do
historicismo e da razo dialtica. Essa descontinuidade da evoluo filosfica corresponde naturalmente
prpria descontinuidade objetiva do desenvolvimento capitalista. (COUTINHO, 2010, p. 21)
27
de outros tempos e uma posio favorvel sociedade civil-burguesa (brguerliche
Gesellschaft) - essa ltima teria sido um avano frente sociedade feudal, mas traria
contradies insuperveis na ordem presente.
No que se v: o modo como Lukcs enxerga as filosofias anteriores liga-as ao
tempo em que elas se desenvolvem e depois so efetivas (wirklich) trata-se, pois, de se
ver o pensamento precedente em meio s contradies concretas que marcam uma
poca e, em se tratando da filosofia moderna, pode-se mesmo dizer, a poca capitalista.
Hegel, por exemplo, seria indissocivel da Revoluo Francesa e da consolidao da
sociedade civil-burguesa (brguerliche Gesellschaft) ao passo que Marx precisaria
superar (aufheben) tal ponto de partida.29
E isso teria implicaes substantivas para a
teoria do autor de O capital, tambm, no que diz respeito questo da alienao
(Entfremdung), a qual ser combatida pelo autor justamente com sua posio socialista,
contrria prpria manuteno do capitalismo como tal. Com isso, agora, pode-se dizer
que, para o marxista hngaro, a forma de dilogo com a filosofia precedente aquela da
superao, da supresso (Aufhebung).30
E, Heidegger (tal qual um Althusser) vai se opor
explicitamente a esse modo de se relacionar com o pensamento pregresso.
No entanto, antes de se ver a posio de Heidegger, preciso dizer
rapidamente - que, muito embora, tal qual Hegel, Lukcs busque o dilogo com a
filosofia por meio da superao (Aufhebung) da filosofia precedente, isso se d de modo
essencial e substancialmente distinto.31
H, seguindo esse raciocnio de Lukcs, um
salto qualitativo de Marx quanto a Hegel. Deste modo, a noo agora destacada, e de
29
sabido quanto Marx deve a Hegel para o desenvolvimento de sua concepo dialtica. No entanto,
isso no afasta a mudana substancial que fora preciso para que o materialismo do autor de O Capital
tivesse a grandiosidade que tem. Com isso, diz Lukcs que na filosofia de Hegel est adequadamente
posta e superada (aufgehoben) a crise da produzida pela Revoluo Francesa. Todavia, apesar de sua
grandeza, esta filosofia constitui apenas uma superao (Aufhebung) relativa, metodolgica. (LUKCS,
2007, p. 43) O autor da Fenomenologia do esprito j tem consigo uma compreenso mais adequada da
Revoluo Francesa se comparado com seus antecessores, desenvolvendo, assim, uma concepo que
prima pelo carter contraditrio do prprio real. Explicita, assim, o que Lukcs chama de mtodo
dialtico no entanto, como homem de seu tempo e como algum que no presencia a crise da sociedade
civil-burguesa (brguerliche Gesellschaft) como tal (relacionada emergncia do movimento operrio),
Hegel permanece preso s determinaes trabalho alienado (entfremdente Arbeit). Cf. LUKCS, 1963. 30 A noo de grande importncia no corpo da teoria marxista. No entanto, deve-se ressaltar que isolada ela no diz nada. Se damos importncia a ela aqui porque o corpus terico marxista passa por ela e no
por ela, em si, ser essencial. Como se nota abaixo, em verdade, importantes temas do marxismo devem
ser abordados, ao menos de modo sumrio, para que seja possvel se averiguar com o devido cuidado a
importncia do modo como Lukcs dialoga com a filosofia precedente. 31
Novamente, bom ressaltar que a questo no pacfica no seio do marxismo. Althusser, um crtico de
Lukcs, diz que impossvel se pensar a categoria da superao (Aufhebung) de modo materialista:
preciso se se quer verdadeiramente pensar essa gnese dramtica do pensamento de Marx, renunciar a
pensa-la em termos de superao para pensa-la em termos de descoberta, renunciar ao esprito da lgica
hegeliana implicado no inocente, mas dissimulado conceito de superao (Aufhebung), que nada mais
que a antecipao vazia do seu fim na iluso de uma imanncia de verdade. (ALTHUSSER, 1979, p. 70)
28
grande importncia na filosofia marxista, no poderia restar intocada. Enquanto o
movimento da filosofia hegeliana essencialmente lgico e tem em si um tlos que
ruma realizao da razo (Vernunft), para o autor hngaro, a ontologia marxiana se
diferencia da de Hegel por afastar todo o elemento lgico-dedutivo e, no plano da
evoluo histrica, todo o elemento teleolgico. (LUKCS, 2007, p. 226) No autor de
O capital, a superao sempre concreta e tem consigo a resoluo efetiva (wirklich) de
contradies presentes na prpria realidade efetiva (Wirklichkeit). A dialtica no ,
assim, uma questo de mtodo32
, mas a compreenso do prprio movimento
contraditrio do real. Para Hegel, por outro lado, com a premissa do sujeito-objeto
idntico, o movimento do real corresponde ao do esprito (Geist), de maneira que, ao
final, a superao opera em conjunto com a premissa da racionalidade do real, tendo
consigo a exigncia de se ver o esprito objetivo em meio ao processo lgico que leva
necessariamente culminncia do esprito absoluto. (Cf. LUKCS, 1963) Diz Lukcs,
assim, que a teleologia no sistema de Hegel tem de ser incorporada como elo
logicamente necessrio para o devir-para-si da ideia. (LUKCS, 2010, p. 56) Tem-se
uma tonalidade idealista33
a qual faz com que sejam vistas como racionais em si as
relaes e as determinaes do presente as quais, por vezes, vem a ser perenizadas e
mistificadas.34
Longe de a superao trazer um raciocnio teleolgico, como quer
Althusser, pois, em Lukcs e Marx, ela rompe com tal compreenso.
Isso essencial ao tema tratado aqui j que passa pela prpria compreenso da
filosofia do Direito. Ou seja, no se destaca a compreenso da superao (Aufhebung)
32
Se por mtodo se entende uma arrumao operativa, a priori, da subjetividade, consubstanciada por
um conjunto normativo de procedimentos, ditos cientficos, com os quais o investigador deve levar a cabo
seu trabalho, ento no h um mtodo em Marx. Em adjacncia, se todo o mtodo pressupe um
fundamento gnosiolgico, ou seja, uma teoria autnoma das faculdades humanas cognitivas,
preliminarmente estabelecida, que sustente ao menos parcialmente a possibilidade do conhecimento, ou,
ento, se envolve e tem por compreendido um modus operandi universal da racionalidade, no h,
igualmente, um problema do conhecimento na reflexo marxiana. (CHASIN, 2009, p. 89) 33
Isso est no tratamento dispensado alienao (Entfremdung) e superao (Aufhebung) por Hegel:a suprassuno (Aufhebung) da alienao identificada com a suprassuno da objetividade
(Gegenstndlichkeit). (MARX; ENGELS, 2007, p. 541) e ainda a tua suprassuno do objeto
representado, do objeto como objeto da conscincia, identificada com a suprassuno real, objetiva,
com a ao (aktion) sensvel, a prtica [prxis], com a atividade real que diferente do pensar. (MARX;
ENGELS, 2007, p. 541) 34
No s isso se relaciona ao tratamento hegeliano da alienao (Entfremdung) - criticado por Lukcs -,
como tambm diz respeito ao que o autor alemo diz sobre o Estado justamente em seus Princpios da
filosofia do Direito: nosso tratado sobre a cincia do Estado nada mais quer representar seno uma
tentativa para conceber o Estado como algo de racional em si. um escrito filosfico, portanto, nada
pode lhe ser mais alheio que a construo ideal de um Estado como deve ser. (HEGEL, 2003, p.
XXXVII) V-se aqui, inclusive, que a racionalidade do Estado (visto em um grau de desenvolvimento do
esprito superior) preside o processo em que se insere o Direito, de modo que a filosofia do direito de
Hegel inseparvel daquele visto por Marx como uma expresso patente da alienao moderna, o Estado.
29
por quaisquer razes arbitrrias alm de se tratar de algo essencial para a compreenso
de Heidegger e de Lukcs, trata-se de aspecto fundamental ao delineamento do tema da
alienao (Entfremdung) e de sua relao com o Direito. Veja-se rapidamente - como
Lukcs compreende essa questo em um ponto essencial ao marxismo, aquela da
relao entre sociedade civil-burguesa (brguerliche Gesellschaft) e Estado: enquanto
no sistema hegeliano, com a referida logicizao das relaes reais, a relao entre
sociedade civil-burguesa e Estado burgus entendida, de modo unilateral e mecnico,
com a absoluta supremacia ideal do Estado (LUKCS, 1969 b, p. 24), o modo de
apreenso ontolgico presente em Marx faz com que s possa haver superao quando
se tem uma posio materialista e, o mais importante, quando as contradies de
determinado momento histrico so efetivamente (wirklich) levadas a um patamar
superior em que o antagonismo basilar da poca suprimido.35
Nesse sentido, somente
possvel se compreender a filosofia marxiana como superior (no sentido do Aufhebung
e no de qualquer critrio abstrato) hegeliana quando se percebe que, para Marx, as
contradies da sociedade civil-burguesa no podem nunca ser superadas dentro da
ordem existente, e muito menos no Estado trata-se, assim, de um modo de se perceber
do mundo que tem consigo um mpeto de transformao do mesmo, traz a supresso da
prpria sociedade civil-burguesa a qual seria, para que se inverta a assertiva de Hegel, o
irracional que efetivo.36
Assim, se h reconciliao com o presente em Hegel, trata-se
de um real que irracional e de uma irracionalidade que efetiva.
35
As crticas de Marx filosofia do Direito de Hegel podem ser vistas como uma crtica superao
(Aufhebung) hegeliana na qual, muito embora as contradies sejam tidas em conta, sua efetividade, no
sem algum recurso idealista, aparece como suspensa em meio ao movimento lgico. Com isso, a
superao hegeliana s possvel no campo aqui tratado, primeiramente por ser o Estado visto como
algo estranho e situado alm do ser da sociedade civil-burguesa. (MARX, 2005, p. 67) Depois, com esse
procedimento, ele autonomizado em relao sua base real e a mistificao hegeliana se completa
quando como o universal como tal tornado independente, ele imediatamente confundido com a
existncia emprica e, logo a seguir, o finito tomado de maneira acrtica como expresso da Ideia.
(MARX, 2005, p. 61) Percebe-se, pois: a superao (Aufhebung) hegeliana traz um procedimento
logicista e idealista sendo o juzo segundo o qual o racional real e o real racional (HEGEL, 2003, p.
XXXVI) tambm fonte de mistificao quando, como diz Marx, em sua forma mistificada, a dialtica foi
moda alem porque ela parecia tornar sublime o existente. (MARX, 1988, p. 27) 36
A racionalidade do real traria consigo as relaes histricas da sociedade civil-burguesa(brguerliche
Gesellschaft) - em verdade, em si, irracionais - apreendidas de modo sistemtico. Lukcs, tendo isso em
mente, faz referncia em sua obra contradio presente em Hegel entre mtodo dialtico e sistema.
Trata-se de algo j apontado por Engels sobre Hegel: com efeito, sua filosofia padecia ainda de uma
grande contradio interna incurvel, pois que, se, por um lado, considerava como suposto essencial da
concepo histrica, segundo a qual a histria humana um processo de desenvolvimento que no pode,
por sua prpria natureza, encontrar soluo intelectual no descobrimento disse que se chama verdades
absolutas, por outro, se nos apresenta precisamente como resumo e compndio de uma dessas verdades
absolutas. Um sistema universal e compacto, definitivamente plasmado, no qual se pretende enquadrar a
cincia da natureza e da histria, incompatvel com as leis da dialtica. (ENGELS, 1990, pp. 22-23)
30
bom lembrar que em Marx a configurao racional da dialtica no se
deixa impressionar por nada e , em sua essncia, crtica e revolucionria. (MARX,
1988, pp. 20-21) O modo como a dialtica, indissocivel da superao (Aufhebung),
est presente na tradio na qual o marxista hngaro bebe, pois, liga-se intimamente
com a prxis que visa transformao social. Se a crtica de Marx ontolgica, ela
parte do fato de que o ser social (gesellschaftlichen Seins), como adaptao ativa do
homem ao seu ambiente, repousa primria e irrevogavelmente na prxis. (LUKCS,
2010, p. 71) O homem no adequado a algo que o precede ele tem diante das
circunstncias uma atitude ativa na qual seu desenvolvimento coincide com a prxis
histrica. Liga-se isso afirmao segundo a qual a coincidncia entre a alterao das
circunstncias e a atividade humana s pode ser apreendida e racionalmente entendida
como prtica revolucionria. (MARX; ENGELS, 2007, p. 538) Ou seja, a prpria
noo de razo (Vernunft) forte no idealismo - liga-se, em Marx e Lukcs, com a
prtica transformadora e no mais apreenso passiva de algo alheio ao homem.
A atividade humana sensvel, assim, vem ao centro da filosofia no para que se
desconsiderem as questes levantadas anteriormente, mas para que as mesmas tenham
um encaminhamento que no leve mistificao: todos os mistrios que conduzem a
teoria ao misticismo encontram sua soluo racional na prtica humana e na
compreenso dessa prtica. (MARX; ENGELS, 2007, p. 538) Ou seja, j se percebe
em Marx e Engels uma posio segundo a qual a razo (Vernunft), se bem entendida,
no ultrapassa o campo da prxis do homem. A dialtica, em sua configurao
racional tambm tem consigo, para que se utilize da dico de Marx da Crtica
filosofia do Direito de Hegel, no a apreenso da lgica da coisa, mas da coisa da
lgica, das relaes reais histricas e concretas que foram apreendidas at ento pela
filosofia idealista como atributos que somente preenchiam a razo e a lgica.37
Nesse
sentido, a superao (Aufhebung) presente na filosofia marxista diz respeito no s
crtica prevalncia da lgica, expressa na postura ontolgica de Marx, mas afirmao
da centralidade da prtica revolucionria, a qual no exclui a elaborao de um
37
No que diz respeito a esse ponto, h uma importante passagem de Marx contra Hegel e sua filosofia do
Direito: o verdadeiro interesse no a filosofia do direito, mas a lgica. O trabalho filosfico no
consiste em que o pensamento se concretize nas determinaes polticas, mas em que as determinaes
polticas existentes se volatizem no pensamento abstrato. O movimento filosfico no a lgica da coisa,
mas a coisa da lgica. A lgica no serve demonstrao do Estado, mas o Estado serve demonstrao
da lgica. (MARX, 2005, pp. 38-39) Mesmo que Marx veja o Estado de modo positivo na passagem,
algo que mudar substancialmente em seu pensamento posterior, na passagem claro um apelo contrrio
desconsiderao do movimento do prprio real o qual, em Hegel, vem a ser suplantado pelo logicismo.
31
pensamento condizente com a radicalidade da mesma sendo que ser radical segurar
tudo pela raiz. Mas, para o homem, a raiz o prprio homem. (MARX, 2005, p. 53)
O modo como Lukcs, um grande leitor de Marx, dialoga com a filosofia
precedente tem esta como parte do movimento do prprio real, estando ela relacionada
s contradies essenciais de um tempo histrico. Com isso, tambm na filosofia, busca
o autor uma superao (Aufhebung) quanto poca precedente. Nessa esteira, diz algo
importante para aquilo que tratado aqui: a categoria da alienao (Entfremdung) ou
de exteriorizao (Entusserung) encontram-se no centro da filosofia hegeliana e, em
particular, da Fenomenologia do esprito. (LUKCS, 2007, p. 186)38
Ao tratar dessa
temtica, o autor marxista tem em conta os rumos de sua poca, que ainda aquele do
capitalismo, da sociedade civil-burguesa (brguerliche Gesellschaft), a qual se
desenvolve j sob Hegel. Se o ltimo aquele cuja posio vista por Lukcs como
mais coerente sob a premissa da ordem sociometablica do capital, h uma efetiva
(wirklich) superao em Marx quanto ao pensador alemo que o precede na medida em
que se coloca em xeque o prprio capital, o qual deveria ser suprimido (aufgehoben). A
superao/supresso e uma configurao racional da dialtica, pois, so inseparveis e
tal carter da dialtica se ope de modo contundente irracionalidade da ordem
presente, calcada no trabalho peculiar da era capitalista, [...], a forma de trabalho que
se rebaixa a uma carncia de sentido para o trabalhador, e contrape a este como foras
alheias e hostis o produto e o meio de seu prprio trabalho. (LUKCS, 1965, p. 100)
Nisso, a questo da alienao (Entfremdung) patente quando o marxista
hngaro dialoga com a filosofia precedente e tem em conta a poca desta: em verdade,
so justamente as foras alheias e hostis vigentes na sociedade capitalista que o autor
quer enfrentar e suprimir (aufheben) com a transformao da prpria realidade. Trata-
se, pois, de se suprimir a prpria alienao. O modo como se trata da filosofia pretrita
confunde-se com a busca da supresso do capital e da alienao indissocivel desse.
Por isso, se h certa continuidade no dilogo de Lukcs com a filosofia
precedente, trata-se da continuidade no debate com as contradies que percorrem a
prpria histria, na modernidade, marcada primeiramente pela emergncia, e depois
pela crise, do capital, o que inseparvel da temtica da alienao (Entfremdung). No
por acaso, pois, que um dos grandes livros de Lukcs, O jovem Hegel tenha como
38
A questo essencial na medida em que, como disse Tertulian: na biografia intelectual de Lukcs, a
questo da alienao (Entfremdung) ocupou um lugar um tanto particular, verdadeira linha de clivagem
em sua virada autenticamente marxista do perodo de maturidade. (TERTULIAN, 2006, p. 29)
32
subttulo justamente os problemas da sociedade capitalista. Os rumos da filosofia so
inseparveis dos rumos da histria, sendo que h nos grandes pensadores de um tempo
uma posio concreta quanto s questes fundamentais de suas pocas. Uma superao
(Aufhebung) efetiva (wirklich), pois, tem consigo uma posio distinta daquela da
filosofia que a precede. Assim, para Lukcs, uma simplificao falseadora da histria
da filosofia supor que bastava, de certo modo, um mudar dos sinais, para se tirar da
dialtica idealista de Hegel a dialtica materialista de Marx. (LUKCS, 1959, p. 441)
Trata-se, pois, de dialogar com a filosofia precedente quando se v essa como um modo
de se proceder diante de contradies que marcam a prpria histria, sendo tambm as
teorias mais sofisticadas maneiras concretas de se intervir diante de uma situao para
Lukcs, neste ponto, no h nenhuma ideologia inocente. (LUKCS, 1959, p. 4) Se
h superao de uma posio filosfica quanto outra, isso se d por se tratar de modo
mais racional (no sentido visto acima, ligado intimamente prxis) das questes
essenciais ao desenvolvimento de uma poca de modo a se propiciar e isso essencial
uma transformao substantiva da prpria realidade efetiva (Wirklichkeit). O modo
como se dialoga com a filosofia, assim, traz uma posio concreta a qual busca no s
melhor compreender uma poca, mas tambm transform-la at mesmo porque, para
Lukcs, na prpria transformao da realidade que melhor se compreende a mesma.39
39
Neste contexto deve-se ver aquilo que diz Marx em uma famosa passagem: os filsofos apenas
interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa transform-lo. (MARX; ENGELS, 2007,
p. 539) No h, claro, na passagem qualquer apelo praticista; antes, na esteira da superao (Aufhebung) e
no da ciso completa com a filosofia precedente, pode-se perceber que a efetiva compreenso s se d na
prxis a qual inseparvel das relaes sociais e histricas reais de modo que a questo de saber se ao
pensamento humano caba alguma verdade objetiva no uma questo de teoria, mas uma questo prtica.
[...] A disputa acerca da realidade ou no realidade de um pensamento que se isola da prtica uma
questo puramente escolstica. (MARX; ENGELS, 2007, p. 537)
33
1.2 O passo de volta (Schritt zurck) heideggeriano e a crtica superao
(Aufhebung)
Vista, em linhas gerais, a posio de Lukcs acerca do modo como se pode
dialogar com a filosofia precedente, deve-se averiguar aquilo que Heidegger diz sobre o
assunto, diga-se de passagem, na mesma poca que o autor hngaro. Ver-se- que o
modo como os autores traam seus caminhos so, at certo ponto, opostos, muito
embora tratem de temticas comuns e tracem crticas contundentes a aspectos da
sociabilidade capitalista - o que essencial temtica da alienao (Entfremdung).
Uma das questes decisivas nesse meandro diz respeito ruptura com a filosofia
precedente. Se o autor da Ontologia do ser social buscou a ruptura em meio ao processo
pelo qual a filosofia moderna se desenvolve histrica, social e ontologicamente, tendo-
se certa continuidade e certa ruptura que podem ser vistas como um progresso40
, o
mesmo no se d em Heidegger. Como aponta Gadamer, o filsofo alemo procurou um
passo de volta (Schritt zurck) viso das experincias mais antigas que ainda se
acham antes de todo o pensamento conceitual. (GADAMER, 2009, p. 20) No se
busca, pois, a experincia moderna como parmetro central, como ocorre em Hegel,
Marx e Lukcs. O modo como Heidegger trata a filosofia moderna busca uma ruptura
resoluta com esta, sendo impossvel se falar de progresso, ao mesmo tempo em que no
se tem uma concepo simplesmente nostlgica, mas uma ontologia fenomenolgica,
que transita entre o passado e o futuro, para que se use a dico de Arendt.
Sob a crtica ao pensamento conceitual tem-se uma oposio ao idealismo e a
uma concepo que prima pela compreenso do homem como um animal racional,
concepo essa a qual chamada pelo autor alemo primeiramente, notadamente em
Ser e tempo, de ontologia tradicional e, depois, em sua obra posterior aos anos 30, de
metafsica. Essa ltima tem consigo o apego ao pensar da lgica a qual, ao final,
segundo Heidegger, em relao j a Plato e Aristteles, um esforo subsequente que
analisa o estado momentneo de uma cincia em seu mtodo.41
(HEIDEGGER, 2005
b, pp. 84-85) Existe no autor alemo tambm uma crtica ao logicismo; no entanto, este
40
A noo progresso no se resume sua verso iluminista. Essa ltima est atrelada ao desenvolvimento
da burguesia e com a concluso da Revoluo Francesa, termina o papel histrico da ideologia que
constituiu sua preparao, o iluminismo dos sculos XVII e XVIII: seus ideais foram realizados, mas ao
mesmo tempo foram refutados por sua realizao. (LUKCS, 2011 b, p. 107) 41
Pode-se compreender tambm nesse contexto que, para o autor, a filosofia jamais pode ser medida
pelo padro da ideia da cincia (HEIDEGGER, 2008 b, p. 132)
34
em seu modo primevo j estaria presente na Grcia posterior aos pr-socrticos.42
O
modo pelo qual se v o pensamento filosfico, pois, traz um passo de volta (Schritt
zurck), uma ruptura que aponta para um pensar novo que rompa com os parmetros
modernos. Trata-se de um outro comeo. (Cf. HEIDEGGER, 2006 b)
Aqui se referiu lgica, ao pensamento conceitual - que no pode deixar de
remeter noo de conceito (Begriff) hegeliana - e cincia, sendo que uma das
grandes obras da filosofia clssica alem A cincia da lgica de Hegel, uma obra
muito respeitada por Marx, Lenin e Lukcs.43
Pode-se dizer, poi
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