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Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXX Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Santos 29 de agosto a 2 de setembro de 2007
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Processo criativo em propaganda e intertextualidade 1
Joo Anzanello Carrascoza2 Escola Superior de Propaganda e Marketing
Resumo:
Os materiais publicitrios so criados por meio da prtica de bricolagem exercida diariamente por redatores e diretores de arte profissionais que atuam em duplas nas agncias de propaganda e so responsveis pela elaborao das mensagens. No processo de criao, as duplas se valem de todo tipo de material cultural como ponto de partida, sobretudo citaes de imagens e enunciados fundadores. O presente artigo traz uma reflexo sobre o processo criativo na propaganda em geral e investiga, em especfico, a intertextualidade, inclusive na forma de ready-made, como mtodo da Criao publicitria. Palavras-chave: Processo criativo; publicidade; bricolagem; intertextualidade; ready-made.
A associao de idias e a publicidade
O tema da criatividade aplicada ao fazer publicitrio vem despertando interesse dos
estudiosos especialmente pelo fato de se exigir dos profissionais de Criao em agncias
de propaganda solues originais full time. As duplas de criativos, formadas por um
redator e um diretor de arte modelo de trabalho mais adotado no mundo pelas
corporaes que oferecem servios publicitrios , so valorizadas de acordo com seu
talento de gerar idias inusitadas para a comunicao dos clientes. E, no contexto atual,
no basta ser dotado dessa capacidade. Cabe s duplas produzir idias em largo volume,
para evitar proposies coincidentes, e ainda faz-lo com rapidez, obedecendo prazos cada
dia mais exguos s vezes no mais que algumas horas, desde o momento em que
recebem o pedido de servio at veiculao nos mass media.
H poucas contribuies acadmicas sobre o assunto e uma pequena bibliografia
que se restringe a abordar brevemente como o processo de produo de idias no caso
especfico dos publicitrios. Seguindo o ponto de vista de Rocha3, definimos esse tipo de
profissional como um bricoleur, j que sua misso compor mensagens, 1 - Trabalho apresentado no VII Encontro dos Ncleos de Pesquisa em Comunicao NP Publicidade e Propaganda. 2 - Joo Anzanello Carrascoza doutor e mestre em Cincia da Comunicao pela ECA-USP, onde professor titular no curso de Publicidade e Propaganda, e docente do Programa de Mestrado em Comunicao e Prticas de Consumo da ESPM. E-mail: jcarrascoza@espm.br. 3 - ROCHA, Everardo P. Guimares. Magia e capitalismo. Um estudo antropolgico da publicidade. 2. ed., So Paulo: Brasiliense, 1990. p. 58-59.
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preferencialmente de impacto, valendo-se dos mais diversos discursos que possam servir
ao seu propsito de persuadir o pblico-alvo. Os criativos atuam cortando, associando,
unindo e, conseqentemente, editando informaes que se encontram no repertrio
cultural da sociedade. A bricolagem, assim como o pensamento mtico, a operao
intelectual por excelncia da publicidade. Essa posio terica tambm a assumida pelo
prprio mercado na figura do publicitrio brasileiro mais premiado internacionalmente,
Washington Olivetto, que afirma ser o criativo um adequador de linguagem4.
Como contribuio ao assunto, estudamos um dos mtodos de criao mais
explorados no cotidiano das agncias de propaganda: a associao de idias5. Por meio
dessa praxis, uma idia ligada, mesclada, ou amalgamada, outra, gerando uma nova
informao a resposta dos profissionais que elaboram os materiais publicitrios ao
desafio proposto em briefing. Apoiamos nossa argumentao inicialmente em Aristteles,
para quem as idias podiam ser associadas por semelhana, contraste e contigidade. O
filsofo David Hume acrescentou a essa classificao a associao por causa e efeito e
suprimiu a de contraste por julg-la uma mescla entre a associao por semelhana e
contigidade6. Recorremos ento a exemplos similares dados por Hume para melhor
definirmos cada um desses tipos de associao: quando observamos uma paisagem
reproduzida num quadro, nossos pensamentos so conduzidos cena original, o que
consiste numa associao por semelhana. Quando se fala sobre um apartamento num
determinado edifcio, pode-se pensar em outros apartamentos existentes ali; a associao
se d ento por contigidade. E, se pensamos num ferimento, quase impossvel no
refletirmos acerca da dor que o acompanha, sendo que a conexo de idias nesse caso de
causa e efeito.
Vejamos em um anncio pea mais representativa da publicidade impressa os
diferentes elementos culturais associados que compem seu texto, aqui entendido como a
sua dimenso verbal e visual. A proposio do anncio, expressa em seu ttulo, Use
Valisre que o seu candidato vai para o 2 turno (fig. 1). Para chegar a ela, o redator
associou o momento poltico do pas, ento s vsperas do segundo turno das eleies para
governadores, idia de que s uma mulher com roupas ntimas atraentes seria capaz de
levar um homem (seu candidato) a uma segunda sesso de sexo na mesma noite (causa e
4 - Ver prefcio de Olivetto ao nosso livro Razo e sensibilidade no texto publicitrio, So Paulo: Futura, 2004. 5 - Conferir o ensaio Associao de idias e palavras na propaganda inserido em nossa obra Redao publicitria Estudos sobre a retrica do consumo, So Paulo: Futura, 2003. 6 - HUME, David. Investigao acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. In Os Pensadores . So Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 40-41.
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efeito). No campo visual vemos a foto de uma mulher numa lingerie provocante junto a
um homem adormecido, ratificando assim a proposio verbal.
Outro exemplo advm de um exerccio de associao de idias que demos a
diversas turmas de estudantes de Publicidade e Propaganda na Escola Superior de
Propaganda e Marketing em So Paulo e na Escola de Comunicaes e Artes da
Universidade de So Paulo, assim como em oficinas de redao publicitria ministradas a
profissionais de marketing e comunicao de empresas pblicas e privadas. O exerccio
consistia em elaborar, com a ajuda de todo o grupo, um anncio para um zoolgico que,
ento, comemorava mais de um sculo de existncia. Diante do desafio, tnhamos,
obviamente, duas coordenadas que possibilitariam associaes criativas: a do mundo
animal (zoolgico) e da temporalidade (mais de um sculo). Solicitamos assim que os
participantes listassem, numa coluna, os animais capazes de atrair mais visitantes ao
zoolgico. E, na outra coluna, a do tempo, que sugerissem imagens relacionadas
longevidade.
Na primeira coluna, do mundo animal, foram citados, sempre, o leo, o elefante, a
girafa, a zebra, o macaco, o tigre, o jacar, e, vez por outra, bichos menos conhecidos,
como o ornitorrinco, o coala, o canguru.
Na segunda coluna, relacionada a um sculo de vida, surgiram, como imagens
recorrentes, rugas, cabelos brancos, coluna vertebral avariada, bengala, dentaduras, calva e
culos, entre outras.
Uma vez orientados os participantes para que buscassem associar os animais de
uma coluna s imagens da outra, o resultado, em todos os exerccios realizados, tanto com
jovens universitrios quanto com executivos de marketing pouco afeitos a esse tipo de
desafio, foi, com pequenas variaes, invariavelmente o mesmo:
1. Urso grisalho.
2. Tigre apoiado numa bengala.
3. Elefante e suas mltiplas rugas.
4. Girafa com a coluna vertebral torta.
5. Macaco usando dentadura.
6. Coruja de culos.
7. Leo calvo.
Se selecionamos a opo 3 desta lista de associaes rugas do elefante , temos
uma criao igual a de um dos anncios premiados em Cannes, o mais importante festival
de publicidade do mundo (fig. 2).
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O resultado evidencia como possvel se chegar a solues criativas em
propaganda por meio de simples associao de idias.
A intertextualidade na bricolagem publicitria
Diante de um job, as duplas de Criao so movidas pelo esprito bricoleur
precisamente na hora do brainstorming prtica em que o redator e o diretor de arte
lanam livremente idias para depois aperfeio-las, adequando-as ao pedido de trabalho.
Para isso, vital que tenham um rico background cultural e estejam empenhados
constantemente no seu alargamento, buscando no prprio estoque de signos de sua
comunidade a matria-prima para alcanar a soluo mais adequada ao problema de
comunicao do anunciante. A rotina dos criativos exige, pois, que aperfeioem a
habilidade de combinar os variados discursos por meio do jogo intertextual.
Como a mensagem de propaganda visa influenciar um pblico definido, ainda que
formado por um contingente principal e outro secundrio, recomendvel o uso, pela
dupla de Criao, no processo de bricolagem, de discursos j conhecidos desse target. O
objetivo, obviamente, facilitar a sua assimilao, dando-lhe o que ele de certa forma j
conhece, embora haja um trabalho para vestir esse conhecimento j apreendido que a
prpria finalidade do ato criativo publicitrio.
Esses materiais culturais, populares ou eruditos, so utilizados como pontos de
partida para a criao das peas de propaganda, aparecendo sob a forma de citao direta
ou indireta, o que nos leva ao conceito de dialogismo de Bakhtin. Ou seja: um texto
sempre dialoga com outros, sendo esse o princpio constitutivo da linguagem7. A trama de
todo texto , portanto, tecida com elementos de outros textos, revelando nesse cruzamento
as posies ideolgicas de seu enunciador. E essa tessitura obtida por meio da citao, da
aluso ou da estilizao. Assim, vamos desaguar nas parfrases (quando um texto cita
outro para reafirmar suas idias) e nas pardias (quando um texto cita outro para contestar
seu sentido).
H casos em que a pardia se d apenas no plano verbal, como num premiado
anncio da Igreja Episcopal americana, no qual temos a imagem de Cristo na cruz e o
7 - BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoivski. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997.
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ttulo O heri morre no final, que contradiz a moral de happy end dos filmes
hollywoodianos, nos quais sempre o bandido quem morre no final.
Tambm h casos em que a pardia se estabelece tanto no campo visual quanto no
verbal, como no anncio do detergente Limpol (fig. 3): a imagem traz o garoto-
propaganda Carlos Moreno travestido de Che Guevara (associao por semelhana) e o
ttulo Hay que endurecer con la gordura sin perder la ternura con las manos jams!,
criado a partir da clebre sentena do guerrilheiro Hay que endurecer sin perder la ternura
jams.
A utilizao de pardias se d tambm na elaborao do slogan, que finaliza a
mensagem verbal do anncio, assim como o ttulo que a inicia. Um bom exemplo o das
Loes Dove, que se apropria da frase O sol nasceu para todos, alterando-a para uma
nova assertiva: O sol nasceu para todas. Ou seja, para todas as mulheres, uma vez que o
produto direcionado ao pblico feminino e o visual dessa campanha publicitria traz
mulheres cujo corpo no corresponde ao modelo oficial de beleza.
Outros tantos slogans, construdos a partir de frases, expresses, formas fixas ou
padres lingsticos comuns ao nosso repertrio cultural, podem ser aqui elencados:
O slogan da Vasp A melhor distncia entre dois pontos tem como ponto de
partida a sentena matemtica A menor distncia entre dois pontos uma reta. O slogan
dos relgios Dumont, O primeiro a cada segundo, trabalha com o universo semntico do
produto relgio (segundo), e dialoga com um slogan clssico do Reprter Esso, O
primeiro a dar as ltimas.
O slogan da rede de livrarias Siciliano, Ler ou no ser, parodia o To be or not to
be shakespeareano.
A prpria publicidade alimenta o repertrio cultural da comunidade com novas
proposies, tambm depois reaproveitadas. O slogan Porque ns somos carnvoros, da
Churrascaria Marius, por exemplo, uma citao do slogan Porque ns somos
mamferos, do leite Parmalat.
Vamos agora nos deter num caso instigante de citao-clich localizada no plano
visual envolvendo distintos contextos culturais. Para isso, selecionamos trs cartazes
produzidos em diferentes pases, embora relativos a causas semelhantes: recrutamento de
soldados para o exrcito americano (fig. 4), alistamento para o servio militar britnico
(fig. 5) e convocao de voluntrios para o movimento brasileiro MMDC (fig. 6).
A imagem que domina os trs cartazes de um indivduo de feies austeras,
apontando o dedo indicador para o leitor, numa ntida postura coercitiva. Na propaganda
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americana, ancorada no ttulo I want you for U.S. Army. Nearest Recruiting Station,
este indviduo o Tio Sam; na britnica, que traz a chamada Britons want you. Join your
countrys army! God save the king, um comandante; na brasileira, associado s frases
de ordem Voc tem um dever a cumprir. Consulte a sua conscincia!, um soldado.
Mas a rede de significao resultante da citao de uma imagem fundadora pode
ser bem mais complexa, como verificamos nas trs figuras a seguir. A primeira delas o
leo sobre tela de Manet, de 1863, Le dejeuner sur lherbe (fig. 7). A segunda, o
anncio da marca Yves Saint-Laurent (fig. 8), utiliza essa pintura como ponto de partida,
mas resulta num discurso com nfase em outros valores sociais. A terceira, o anncio da
Women (fig. 9), tambm se inspira no quadro de Manet, e opera leitura distinta da
reproduzida no anncio da YSL.
J uma parfrase dupla, em que o texto verbal e o visual trazem uma citao,
pode ser encontrada nesse anncio da Sabesp (fig. 10). No mbito das imagens, temos a
foto de um sabonete Lux (o produto citado) e, no plano lingstico, temos o ttulo Se
no existisse a Sabesp, 9 entre 10 estrelas do cinema no tomariam banho, que dialoga
com o famoso slogan dessa marca de sabonete 9 entre 10 estrelas do cinema usam Lux.
H numerosos casos em que a pardia ou a parfrase resulta no apenas de uma
citao no campo verbal ou na instncia visual do anncio, ou mesmo em ambos de forma
concomitante, mas precisamente da interao dessas duas dimenses. Exemplifiquemos
com um dos anncios da campanha para restaurao do Parque Histrico do Pelourinho,
em Salvador (fig. 11). O ttulo Os novos baianos uma referncia a um conhecido grupo
de msicos da Bahia. Mas a citao ganha novo sentido quando, no plano das imagens, em
vez da foto desses msicos, temos a de trs personalidades mundiais (Paul Simon, Akio
Morita e Julio Iglesias), que contriburam com doaes para a causa do Pelourinho,
conforme o texto esclarece.
Sintomaticamente, o movimento dos Adbuster, que combate a publicidade
dominante, se vale dos mesmos procedimentos para criticar as campanhas publicitrias
de anunciantes globais, como as pardias e as parfrases nos planos verbal e/ou visual.
Podemos comprovar esse ponto de vista com a consagrada campanha mundial da
vodka Absolut, cujos anncios promovem associao entre o formato diferenciado da
garrafa da bebida e as mais variadas referncias culturais, como smbolos representativos
de cidades, manifestaes artsticas, eventos populares, comportamentos sociais etc.
Vejamos um anncio dessa campanha intulado Absolut Rio (fig. 12).
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Imitando o layout e o conceito criativo da campanha da Absolut, os Adbuster
criaram anncios-pardias, como esse, com o ttulo Absolut AA, abordando as vtimas
do lcool em busca de cura nos Alcolicos Annimos (fig. 13).
Assim, ao reencenar o passado, por meio da intertextualidade, atualizando-o com
um novo sentido que, no entanto no prescinde daquele que lhe deu origem, a publicidade
se soma a outros produtos mediticos que, inegavelmente, vo tecendo a trama das
identidades culturais.
O ready-made na criao publicitria
O tema da intertextualidade nos leva obrigatoriamente ao universo do ready-made,
do deslocamento de materiais j prontos para a moldura da propaganda.
O ready-made foi trazido cena nas artes plsticas por Marcel Duchamp e
consistia em separar um objeto de seu contexto original, alterando assim seu significado,
ou retificando-o8.
Essa interveno que Duchamp chamava de assistir, corresponde, na atividade
publicitria, ao dos redatores e diretores de arte quando deslocam frases e imagens j
conhecidas do pblico para a pea que esto criando.
Num anncio que incorpora um ready-made, a dupla de Criao faz uso, no
processo associativo, daquilo que Maingueneau denominou de enunciados fundadores,
pois j so tesouro da coletividade, gozando do privilgio da intangibilidade. Isso porque
esses enunciados no podem ser resumidos nem reformulados, constituem a prpria
Palavra, captadas em sua fonte9.
Dentre os ready-mades de Duchamp, h trs mais adequados nossa discusso do
que os lendrios Roda de bicicleta e Fonte. O primeiro deles Pliantde voyage,
no qual temos a capa de uma mquina de escrever, sobre um tampo de madeira, com a
marca Underwood visvel (fig. 14). Das vrias interpretaes possveis, uma delas seria
o apelo ao pblico que a palavra underwood (debaixo da madeira) suscita: haveria algo
para ser visto abaixo da capa. Outra interpretao seria a semelhana da capa com uma
saia de mulher e a palavra underwood (que poderia ser traduzida tambm como
8 - CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: o engenheiro do tempo perdido. So Paulo: Perspectiva, 2000. 9 - MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendncias em anlise do discurso. Campinas: Pontes, 1989. p. 100.
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debaixo da mata), remetendo aos plos pubianos femininos. No por acaso que a capa
da mquina/saia nos remete ao mundo do consumo e da moda.
O segundo ready-made que nos interessa Apolinre Enlameled (fig. 15), uma
homenagem ao poeta Guillaume Apollinaire. Duchamp utilizou integralmente um anncio
das tintas Sapolin, colocando, em sua extremidade superior uma tarja escura na qual
escreveu Apolinre Enlameled. E, na extremidade inferior, inseriu uma espcie de
assinatura e a data (1916/1917).
justamente essa assistncia, no a objetos mas a frases e imagens, que os
criativos, nas agncias de propaganda, vm fazendo na elaborao de tantos anncios.
Uma das campanhas publicitrias mais polmicas nos ltimos anos foi a da marca
Benetton. Algumas de suas peas so legtimos ready-mades. Em uma delas (fig. 16), o
seu idealizador, Oliviero Toscani, apropriou-se de uma foto, feita por Thereza Frare, de
um doente terminal de AIDS junto sua famlia, e apenas sobreps num canto dela o
logotipo Benetton10.
O terceiro ready-made que selecionamos L.H.O.O.Q, uma provocativa
retificao do quadro Mona Lisa (fig. 17). Duchamp toma a obra-prima de Da Vinci e
emascula a modelo, colocando-lhe bigode e cavanhaque, e a inscrio L.H.O.O.Q (em
francs, elle a chaud au cul; em portugus, algo como ela tem fogo no rabo). Sem
entrar nas especulaes surgidas a respeito dessa frase, o que nos importa o irreverente
esprito bricoleur do artista, que a publicidade tem igualmente copiado, sobretudo a partir
de imagens fundadoras.
Incontveis so os exemplos de anncios que parodiam a Mona Lisa, como o do
amaciante de roupas Mon Bijou (fig. 18), produto da Bom Bril, da mesma campanha do
anncio com a imagem de Che Guevara, citado antes.
Uma campanha institucional da Pfizer ilustra o processo criativo do ready-made
no apenas como um ponto de partida para peas de publicidade, mas como ponto de
chegada de quase toda a sua base discursiva, numa espcie de apropriao por inteiro de
um discurso j absorvido socialmente.
Todos os anncios dessa campanha so estruturados a partir da citao completa de
diferentes discursos culturais. Um deles tem como matriz a letra da cano Do seu lado,
do compositor Nando Reis:
Faz muito tempo, mas eu me lembro, voc implicava comigo.
10 - TOSCANI, Oliviero. A publicidade um cadver que nos sorri. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. p. 59-60.
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Mas hoje eu penso que tanto tempo me deixou muito mais calmo O meu comportamento egosta, o seu temperamento difcil Voc me achava meio esquisito e eu te achava to chata Mas tudo que acontece na vida tem um momento e um destino Viver uma arte, um ofc io S que preciso cuidado Pra perceber que olhar s pra dentro o maior desperdcio
O teu amor pode estar do seu lado O amor o calor que aquece a alma O amor tem sabor pra quem bebe a sua gua
Eu hoje mesmo quase no lembro que j estive sozinho Que um dia eu seria seu marido, seu prncipe encantado Ter filhos, nosso apartamento, fim de semana no stio Ir ao cinema todo domingo s com voc do meu lado O amor o calor que aquece a alma.11
A comunicao da Pfizer assume a citao direta, adotando aqui o argumento de
autoridade, uma vez que o artista cultuado por um pblico fiel ao tipo de msica que ele
compe. Assim ficou o texto do anncio, no qual a letra da msica, em aspas, funciona
como gancho para que o anunciante expresse seu posicionamento ligado paixo pelo
ser humano, de quem diz estar sempre ao lado:
Paixo segundo Nando Reis: Faz muito tempo, mas eu me lembro, voc implicava comigo. Mas hoje eu penso que tanto tempo me deixou muito mais calmo. O meu comportamento egosta, o seu temperamento difcil. Voc me achava meio esquisito e eu te achava to chata. Mas tudo que acontece na vida tem um momento e um destino. Viver uma arte, um ofcio. S que preciso cuidado. Pra perceber que olhar s pra dentro o maior desperdcio. O teu amor pode estar do seu lado.O amor o calor que aquece a alma. O amor tem sabor pra quem bebe a sua gua. Eu hoje mesmo quase no lembro que j estive sozinho.Que um dia eu seria seu marido, seu prncipe encantado. Ter filhos, nosso apartamento, fim de semana no stio. Ir ao cinema todo domingo s com voc do meu lado. O amor o calor que aquece a alma. Para Nando Reis, paixo significa estar do seu lado. Para a Pfizer, paixo o que faz a gente pesquisar a cura para os males que afetam a qualidade de vida dos homens e das mulheres. E a gente faz isso todos os dias. Com paixo.
Tal estratgia visa, portanto, transferir para a imagem da marca o discurso ou a
reputao de uma celebridade.
Vejamos agora um exemplo internacional, clssico, que fez o uso do j pronto
como estratgia criativa.
11 - REIS, Nando. Do seu lado. Disponvel em: Acesso em: 10 abr. 2006.
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Escolhemos uma campanha publicitria clssica da Apple, que se vale do ready-
made no campo visual, trazendo fotos divulgadas na imprensa de personalidades de
renome mundial, exatamente pelo fato de que pensavam diferente da maioria. Esse pensar
diferente (Think different) , ento, associado marca do anunciante. As fotos em
questo so retratos consagrados de Picasso, Einstein, Gandhi, Hitchcock, John Lennon e
Neil Amstrong, entre outros.
Reproduzimos uma delas, a de Gandhi, que correu mundo e to bem a fragilidade
fsica de um homem que pregava veementemente a filosofia da no-violncia (fig. 19).
Agora vejamos a interveno feita nessa foto pela publicidade, que apenas a
reenquadra e acrescenta a logomarca da Apple e o slogan da campanha (fig. 20).
Exemplo bem brasileiro, seguindo essas caractersticas, de ancorar a criao
publicitria em fotos j consagradas, a campanha do Instituto Ethos que traz em seus
anncios imagens colhidas pela cmera de Sebastio Salgado, um dos mais importantes
fotgrafos documentais do mundo (figuras 21 e 22).
Alm de transpor para o plano visual dos anncios as fotos em preto e branco de
Salgado, a campanha tambm expe como ttulo uma sentena j pronta, de cunho
religioso cristo, Filho, um dia isso tudo ser seu. Esta citao da Bblia12 ganha um
sentido irnico ao ancorar imagens de meninos cortadores de cana (fig. 23) e de urubus
sobrevoando montanhas de lixo (fig. 24).
Em suma, a freqente utilizao de ready-mades , sem dvida, uma das
encenaes mais interessantes da propaganda no palco da hiper-realidade, multiplicando
diariamente os simulacros e fazendo da astcia intertextual um infinito work in progress.
Referncias bibliogrficas
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da potica de Dostoivski. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1997. CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp: o engenheiro do tempo perdido. So Paulo: Perspectiva, 2000. CARRASCOZA, Joo Anzanello. Redao publicitria Estudos sobre a retrica do consumo. So Paulo: Futura, 2003.
12 - A passagem bblica referida est no episdio das tentaes que o diabo acometeu a Cristo: O diabo o levou a um lugar alto e mostrou-lhe num relance todos os reinos do mundo. E lhe disse: "Eu te darei toda a autoridade e esplendor deles, porque me foram dados e posso d-los a quem quiser. Ento, se me adorares, tudo ser teu". LUCAS. BibleGateway.com. Disponvel em: Acesso em: 17 abr. 2006.
Intercom Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicao XXX Congresso Brasileiro de Cincias da Comunicao Santos 29 de agosto a 2 de setembro de 2007
11
HUME, David. Investigao acerca do entendimento humano. Trad. Anoar Aiex. In Os Pensadores. So Paulo: Nova Cultural, 1999. p. 40-41. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendncias em anlise do discurso. Campinas: Pontes, 1989. p. 100. ROCHA, Everardo P. Guimares. Magia e capitalismo. Um estudo antropolgico da publicidade. 2. ed., So Paulo: Brasiliense, 1990. p. 58-59. TOSCANI, Oliviero. A publicidade um cadver que nos sorri. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996. p. 59-60.
Figuras
Figura 1 Figura 2
Figura 3 Figura 4
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12
Figura 5 Figura 6
Figura 7
Figura 8
Figura 9 Figura 10
Figura 11 Figura 12
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13
Figura 13 Figura 14
Figura 15 Figura 16
Figura 17 Figura 18
Figura 19 Figura 20
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14
Figura 21 Figura 22
Figura 23 Figura 24
Crditos
Figura 1 Valisre: 15o Anurio do Clube de Criao de So Paulo, p.153. Figura 2 Zoolgico de Buenos Aires: Disponvel em: Acesso em: 13 abr. 2006. Figura 3 Limpol: Gonalves, Maria Silvia. Leitura intertextual na escola , Dissertao de Mestrado, Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, p. 100. Figura 4 US Army: Disponvel em: Acesso em: 03 jan. 2006. Figura 5 Exrcito ingls: Disponvel em: Acesso em: 03 jan. 2006. Figura 6 MMDC: Disponvel em: Acesso em: 03 jan. 2006. Figura 7 Manet: Nret, Gilles. douard Manet. Germany Editora Taschen, Traduo: Joo Bernardo Bolo, 2003. Figura 8 YSL: Disponvel em: Acesso em: 03 abr. 2006. Figura 9 Women: Disponvel em: Acesso em: 03 abr. 2006. Figura 10 Sabesp: Revista Propaganda, 1986. Figura 11 Pelourinho: Revista Veja, 6 de abril de 1988. Figura 12 Absolut: Carto Postal Multicolecionismo,
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Figura 13 Adbuster: Disponvel em: Acesso em: 03 abr. 2006. Figura 14 Pliantde voyage: Marcel Duchamp. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997, imagem 30. Figura 15 Apolinre Enlameled: Marcel Duchamp. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997, imagem 31. Figura 16 Benetton: Toscani, Oliviero. A publicidade um cadver que nos sorri. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, Caderno de anncios, p. 6. Figura 17 L.H.O.O.Q: Marcel Duchamp. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1997, imagem 33. Figura 18 Mon Bijou: Revista Cludia, julho de 1998. Figura 19 Gandhy: Disponvel em: Acesso em: 26 mar. 2006. Figura 20 Apple: Disponvel em Acesso em: 16 dez. 2005. Figura 21 Foto de Sebastio Salgado: Disponvel em: Acesso em: 08 abr. 2006. Figura 22 Foto de Sebastio Salgado: Disponvel em: Acesso em: 08 abr. 2006. Figura 23 Instituto Ethos: Revista Repblica, setembro de 2000. Figura 24 Instituto Ethos: Revista Repblica, setembro de 2000.
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