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PROFISSIONAIS DE SAÚDE E O ATENDIMENTO ÀS TRAVESTIS EM UNIDADE BÁSICA DE SAÚDE: UM DIÁLOGO COM ÉTICA PRESCRITA OU EM
CONSTRUÇÃO?
Dulce Zara Gentil do Nascimento Murilo dos Santos Moscheta
Universidade Estadual de Maringá
RESUMO
Este trabalho é proveniente de uma pesquisa em desenvolvimento que busca a produção de sentidos e acesso em saúde, na relação entre profissionais de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e a população de travestis residentes no território da UBS, na cidade de Maringá, Paraná, Brasil. O objetivo da pesquisa é a construção de sentidos que favoreçam o cuidado em saúde, conforme prescrito na Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do Ministério da Saúde. Propõe-se aqui discutir os dilemas éticos vivenciados na etapa de imersão no campo desta pesquisa. Especificamente, discutirmos como a ética em pesquisa pode ser pensada, a partir do construcionismo social, de modo a problematizar as situações vividas no campo, tais como: o recrutamento dos participantes e a posição da pesquisadora como membro do campo de pesquisa, para isso, serão utilizados trechos das entrevistas realizadas com profissionais da UBS e as travestis residentes no território da mesma UBS. O referencial teórico é amparado no construcionismo social, pela possibilidade de foco de pesquisa no processo relacional e na postura filosófica de engajamento na (re)construção do mundo que acreditamos ser mais útil e ético. Palavras-chave: Saúde; Travestis; Ética.
INTRODUÇÃO
A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis e Transexuais, publicada em 01.12.2011 através da Portaria 2.836, do
Ministério da Saúde, como resultado de lutas e conquistas, remonta seu histórico à
década de 70, com o processo de redemocratização e o surgimento de “movimentos
sociais em defesa de grupos específicos e de liberdades sexuais”, (Brasil, 2013,
p.9); traz como momentos históricos a proposta de governo de um “Brasil Sem
Homofobia” prescrito no Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra
GLBT e Promoção da Cidadania Homossexual, da Secretaria Especial de Direitos
Humanos (SEDH), de 2004; a constituição do comitê Técnico de Saúde da
População GLBT, do Ministério da Saúde, em 2004, e as conferências nacionais de
saúde de 2003 e 2007 (Brasil, 2013). Nesse processo histórico as regulamentações
foram sendo atualizadas como respostas às lutas, geralmente promovidas por
militantes e movimentos sociais que buscavam e continuam buscando o direito à
efetivação da cidadania. A efetivação desses direitos deve se dar no âmbito social
além do âmbito da legislação. Não basta a existência de leis quando pessoas dizem
não conhecê-las. E quando essas pessoas que dizem desconhecer uma lei são
aquelas que deveriam efetivá-las, alguém deixa de ter sua cidadania garantida.
Nos objetivos específicos da Política Nacional, Art. 2º, Inciso III consta
“qualificar a rede de serviços do SUS para a atenção e o cuidado integral à saúde da
população LGBT”, com isso, é preciso que sejam estabelecidas estratégias para
alcançar diretrizes dessa política: educação permanente aos trabalhadores da
saúde, respeito aos direitos humanos, promoção da cidadania, inclusão da
diversidade populacional, “eliminação das homofobias e demais formas de
discriminação que geram violência contra a população LGBT no âmbito do SUS
contribuindo para as mudanças na sociedade em geral” conforme o Art. 3º, Inciso IV,
da política (Brasil, 2013). Modificações na sociedade ocorrem também a partir de
reflexões, aproximação com o que estiver distanciado pelo estranhamento, busca de
conhecimentos, disponibilidade para mudanças e, no âmbito de políticas púbicas,
“produção de conhecimentos científicos e tecnológicos visando à melhoria as
condição de saúde da população LGBT” (Art. 3º, Inciso VIII). Assim, é possível dar
forma a uma pesquisa científica como modo de identificar possibilidades de reflexão
e contribuir para mudanças na sociedade a partir de condutas no exercício
profissional, nesse caso, de trabalhadores em saúde, do SUS.
A pesquisa que embasa a reflexão proposta neste trabalho partiu de
incômodos profissionais. Trabalhando em Unidade Básica de Saúde, na função de
psicóloga, e tendo o conhecimento da existência de uma pensão residida por
travestis no território atendido pela UBS, uma pergunta ecoava ao longe e nem
sempre trazia a atenção devida à situação: como as travestis cuidavam de sua
saúde? Essa pergunta seguia afirmações repetidas pelos colegas de trabalho como:
“elas só aparecem pra pegar camisinha”, “elas não aderem aos tratamentos” ou
ainda “elas não param aí, estão sempre se mudando”. Muitas lacunas se faziam
presentes na relação entre profissionais de saúde e travestis, quanto aos cuidados
em saúde que uma unidade de atenção básica poderia viabilizar. Transformar essas
lacunas em possibilidades a serem pesquisadas implicava desafios e exigiria muito
esforço, pois muitas eram as pessoas a serem convidadas a um projeto de buscar
sentidos e acesso nesse cuidado em saúde. Realizar uma pesquisa sendo parte
desse campo a ser pesquisado exige cuidados não apenas quanto à condução da
ciência que ampara os procedimentos, mas também quanto ao manejo de situações
e emoções que envolvem as relações pessoais e profissionais. Assim, a proposta
ganharia viabilidade se fosse um convite à participação não somente em uma
pesquisa, mas que ocorresse um encontro de coautores de mudanças sociais, que
se proporiam juntos às reflexões, aproximações, enfrentamento das dificuldades e
busca de novas possibilidades. Tal convite estaria amparado pela pesquisa através
do Construcionismo Social, uma vez que
Em uma orientação construcionista, a possibilidade de construir novos entendimentos, crenças, valores e realidades está sempre presente. Cada vez que nos engajamos com outros e com nosso ambiente, a possibilidade de criar sentidos novos e, assim, visões de mundo novas, está sempre presente. (MCNAMEE, 2014, p. 112).
McNamee faz a pergunta que me amparei para convidar meus colegas de
trabalho à participação na pesquisa: “a que tipo de mundo convidamos uns aos
outros quando presumimos que as realidades são coconstruções baseadas em
comunidades locais, históricas e culturais?” (McNamee, 2014, p. 118). Como
profissionais de saúde, nós construíamos uma parte daquele mundo em que as
relações com as travestis eram distanciadas, então, fazíamos parte do problema e
poderíamos fazer parte da solução. Nós poderíamos ser os responsáveis por buscar
mudanças, principalmente por sermos os agentes sociais públicos que poderiam
efetivar uma política que busca a equidade. As pessoas que conversariam nessa
pesquisa participavam de muitas comunidades, cada uma viria com suas histórias e
culturas permeadas por diversidades e diferenças quanto aos valores religiosos,
condições sociais e econômicas; variações quanto a conceitos de família, pessoa,
sexualidade, gênero; conhecimentos diversos em níveis variando de poucos anos de
estudos a pós graduações acadêmicas. Algumas pessoas participariam de forma
indireta, uma vez que o fato de não terem assinado o Termo de Consentimento Livre
e Esclarecido não os colocava fora da relação profissionais de saúde e travestis
residentes no território da UBS e nem os isolava dos “sujeitos participantes”. Todos
estariam implicados de alguma forma, pois o local era o mesmo espaço onde muitas
pessoas transitavam e no qual as relações entre elas se dava.
A CONSTRUÇÃO DO CORPUS E A ÉTICA PRESCRITA
A pesquisa em desenvolvimento está em fase de construção do corpus para
análise e identificação dos sentidos presentes e construídos em saúde e acesso aos
cuidados em saúde, quanto ao atendimento às travestis residentes no território de
uma Unidade Básica de Saúde, UBS Vila Vardelina, do município de Maringá, no
Paraná. Os participantes compõem três grupos, assim separados: equipe da
Estratégia Saúde da Família (ESF) da UBS, membros da equipe de medicina da
Universidade Estadual de Maringá (UEM), que atendem na mesma UBS, e travestis
residentes em uma pensão em território adscrito à unidade de saúde. Inicialmente
foram realizados encontros dialógicos com os grupos separadamente, mediados por
perguntas abertas relacionadas a sentidos de saúde, cuidados em saúde (sentidos
desses cuidados e práticas), experiências vividas e relações estabelecidas com a
UBS e seus profissionais, além de conhecimento sobre a Política Nacional de
Atenção Integral à LGBT. O material produzido dos encontros, audiogravados e
transcritos, foi sintetizado quanto às semelhanças e diferenças nos
posicionamentos, além do destaque em situações apresentadas apenas por um dos
grupos. Ocorreu um encontro final em que deveriam estar presentes todos os
participantes, porém as travestis não compareceram. Nesse encontro final o material
até então produzido foi avaliado conjuntamente e discutido quanto às possibilidades
de sentidos, acessos e cuidados em saúde das travestis. Esse encontro também foi
audiogravado e transcrito. Na análise desse corpus que vai tomando forma a partir
de cada e em todos os encontros, e sempre que é lido, buscam-se os sentidos
construídos nesse processo relacional de pesquisa, em que os participantes são
coautores e a finalidade desse processo é uma proposta de transformação de
ações, que conduzam a um mundo mais equânime e vise efetivar a Portaria 2.836
do Ministério da Saúde, “Ampliar o acesso da população LGBT aos serviços de
saúde do SUS, garantindo às pessoas o respeito e a prestação de serviços de
saúde com qualidade e resolução de suas demandas e necessidades” (Brasil, 2013).
Os procedimentos para a realização da pesquisa seguiu os protocolos
necessários a uma pesquisa com humanos e só serão publicadas frases ditas pelas
pessoas que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, com o
devido cuidado à manutenção do sigilo e não informação de qualquer dado que
possa identificá-las, afinal, é preciso garantir uma ética prescrita que não exponha
as pessoas naquilo que elas não permitem expor, por mais que nos protocolos não
estejam previstos todos os desafios dessa relação entre pessoas.
A ÉTICA EM PERMANENTE E DESAFIANTE CONSTRUÇÃO
Qual ética permeia as relações que se dão no encontro entre uma pessoa
que convida e outras que recebem o convite para se juntarem em uma pesquisa, e
no percurso relacional da mesma, que não está (pre)escrita nos pressupostos dos
comitês formais?
Explicar objetivos, justificativa e método a ser utilizado, garantir o sigilo,
solicitar a assinatura no “Termo de consentimento livre e esclarecido”, informar que
os resultados serão acessados pelos participantes, publicar a pesquisa – e, algumas
vezes, definir que esta é a forma de acesso aos resultados pelos participantes –
circunscreve a pesquisa enquanto ética? Muitos de nós aprendemos durante os
anos de graduação que a resposta seria: sim. Para um movimento da ciência no
qual as pessoas/cientistas se posicionam como implicados no processo de
investigação, a ponto de escrever a pesquisa na primeira pessoa, a resposta pode
ser: depende!
Os estudos sobre o início da ética como um conhecimento estruturado
aponta os filósofos da Grécia Antiga como precursores. A Sócrates é creditado ter
decifrado a máxima gravada na entrada do templo de Apolo “conhece-te a ti mesmo”
(Chauí, 1997). Com isso, propunha questionamentos não só de si, mas também das
coisas (tudo o mais) e das relações que são estabelecidas entre cada pessoa e suas
verdades.
Fazer perguntas que levem as pessoas à reflexão, propondo novas
perguntas sobre o mesmo tema levando-as a esmiuçar algo até o incômodo de não
encontrar uma resposta final, pode ser identificado hoje como um método
inaugurado por Sócrates (Chauí, 1997). Implicar-se em buscar perguntas e não
exatamente dar ou aceitar as respostas, é uma forma de conhecer como se
constroem as ditas verdades de cada um, pois, sendo “de cada um”, não há como
ser universal, logo, seria instituída na história de cada indivíduo ou sociedade.
Não cabe neste texto uma trajetória da construção do conhecimento
estruturado sobre ética ao longo da História, mas, considerando que é um texto que
se ampara em uma ciência como um movimento de pessoas que se incomodam e
se implicam com questões a serem investigadas, há que se considerar não apenas
um método socrático de se fazer as perguntas como propostas de reflexão às
verdades instituídas, mas também perceber o contexto histórico e cultural das
pessoas a quem se pergunta, e para qual utilidade elas são feitas.
Para se falar em ética é necessário pensar as pessoas em suas relações
consigo, com suas verdades e com tudo o mais que as envolve e das quais fazem
parte. Buscar o conhecimento sobre o outro é implicar-se naquilo que se pensa
sobre o outro, então, quando se propõe uma pesquisa, identifica-se esse outro como
um sujeito participante ou como objeto de pesquisa? É ético considerar uma pessoa
como objeto? Mais uma vez utilizando Chauí temos:
Do ponto de vista ético, somos pessoas e não podemos ser tratados como coisas. Os valores éticos se oferecem, portanto, como expressão e garantia da nossa expressão de sujeitos, proibindo moralmente o que nos transformem em coisa usada e manipulada por outros (CHAUÍ, 1997, p. 337) (grifo da própria autora).
Então, como garantir os valores éticos de uma pesquisa? A pergunta parece
estar respondida quando se tem como possibilidade garantir ao sujeito aquilo que
lhe é imprescindível – ser sujeito. A ética nos questiona e nos posiciona sobre o
olhar que se tem sobre as pessoas quando o conhecimento que se quer produzir é
sobre elas – ou sobre seus contextos relacionais, já que não existem situações de
laboratório que isolem as pessoas de sua cultura, história, vivências.
A CONSTRUÇÃO DE UM CONTEXTO RELACIONAL PARA UMA PESQUISA
ACADÊMICA – O CONSTANTE DESAFIO
Realizar a pesquisa era um desejo meu. O quê me dizia que o outro poderia
aceitar o convite de realizar comigo esse desejo? Como convencê-los de que minha
proposta era “boa”, se eu nem sabia se o que eu considerava como “boa” teria o
mesmo sentido para quem eu propunha o convite? Como me aproximar desse outro
que, de um lado, são pessoas para as quais se dizia “só vêm aqui para pegar
camisinha” ou ainda “nem abrem o portão quando fazemos visita domiciliar”, de
outro lado, estavam pessoas com uma organização de agenda de trabalho que não
dispõem de horários vagos para se inserir em “mais uma atividade”1? Como eu
poderia organizar o meu trabalho para mantê-lo dentro de propostas científicas, se
eu participava do contexto daquele local em que vivenciávamos relações diversas,
até em nível pessoal de amizade?
Realizar perguntas no contexto profissional pode trazer somente respostas,
mas realizá-las no contexto acadêmico, trará, no mínimo, mais perguntas. Juntar
esses dois contextos é propor um lugar diferente a ser construído – e de muito
trabalho pessoal, acadêmico e profissional, que podem levar às mudanças,
conforme Zanella, “Refletir, avaliar, pensar, planejar, intervir, refletir... Atividades
fundamentais que conotam toda e qualquer atuação profissional como socialmente
comprometida e explicitam a responsividade de seu agente” (Zanella, 2013, p. 54)
A primeira pergunta acima trazia não somente um dilema ético, mas um
desafio acadêmico, afinal, se eu não encontrasse pares dispostos à pesquisa, ela
poderia não acontecer. Ao convidar, enfatizava o quanto poderíamos juntos
modificar aquilo que nós mesmos estávamos fazendo nessa relação profissionais da
UBS e travestis residentes naquele território, se nos dispuséssemos a iniciar uma
reflexão. Eu falava às pessoas que a minha pesquisa acadêmica poderia contribuir
1 As frases em aspas, aqui, são frases repetidas por diversos profissionais no contexto diário de UBS, tornando-
se comum serem faladas ou ouvidas.
para mudanças sociais, por isso, era relevante. Com as travestis, eu busquei o
contato com a pessoa que poderia me autorizar (ou não) o acesso a elas: a dona da
pensão. Recebi como resposta: “claro! Quando você quiser”. Nada naquele meu
momento de pesquisadora iniciante era mais valioso que aquela resposta. Com os
colegas profissionais, essa conversa já iniciara muito antes, mesmo assim,
apresentou o desafio de várias pessoas não desejaram o meu desejo. O respeito ao
outro e a ética nos dizem que a participação tem que ser voluntária. Encontrei,
porém, na equipe PSF e na de medicina da UEM a abertura e disponibilidade à
coconstrução desse caminho.
No contato com as travestis para expor a pesquisa e convidá-las, a
percepção de que haviam muitas diferenças de sentidos e considerável
distanciamento entre mim, elas e os grupos de profissionais. Os meus conceitos
técnicos tinham que ser falados por uma linguagem que fizesse sentido a elas para
se sentirem envolvidas no projeto – mas eu ainda não sabia quais sentidos elas
poderiam dar ao que eu estava propondo, afinal, a pesquisa era para isso: descobrir
e construir novos sentidos. Isso ficou claro na pergunta que fiz em nosso primeiro
encontro para conversar os temas propostas. À pergunta sobre o que elas
identificavam como saúde, doença e cuidados em saúde, ouvi, entre várias
respostas, “Ai que pergunta difícil! É melhor gravar outra amiga... porque essa, nem
eu entendi” ao mesmo tempo em que ouvi: “saúde em primeiro lugar, né? O mais
importante... saúde é tudo”.
Aproximar as pessoas envolvia ouvi-las. Ao perguntar às travestis o que
faziam como cuidado em saúde, já que poucas vezes eram vistas na UBS, ouvi: “só
porque a gente é homossexuais ficam olhando a gente dos pés à cabeça, é horrível.
E daí, se eu tô com dor eu vou lá e tomo um dorflex”. Esta fala já demonstrava a
dimensão de um dos trabalhos a serem feitos: a desconstrução de um olhar que
violentava. Nos diálogos com os profissionais também foi dito: “... talvez o aceso... a
UBS esteja impondo essa dificuldade para elas terem acesso.” Essa frase recortada
também dava a dimensão de que era possível a reflexão, espaço na agenda e a
construção de acesso à UBS, para além de “só pegar camisinha”.
A frase repetida pelos profissionais que diz que as travestis não abrem o
portão para a visita domiciliar ecoavam em minha cabeça quando isso acontecia
comigo. Por mais que eu as informasse quando e a que horas seria nosso próximo
encontro, ao chegar na pensão passava um grande tempo batendo palmas ou
chamando e ninguém atendia. Até a frase “não tem ninguém” soava de dentro dos
altos portões me colocando em um lugar de alguém que as estava incomodando –
nesse momento, elas deixavam claro que a assinatura de compromisso com a ética
prescrita no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido não definia o que se daria
nesse processo relacional. Precisávamos enfrentar diversos desafios para
estabelecermos essa relação. Afinal, como dizia meu orientador naquelas ocasiões:
“porque elas confiariam em você? Essas meninas entram em carros de pessoas
estranhas e não sabem o que acontecerá. Essas meninas apanham na cara!” Era
fácil confundir-me em meus papeis: psicóloga, profissional de saúde, trabalhadora
da UBS do território, pesquisadora em construção e era também fácil sentir-me
confusa quanto a meu comportamento ético, quando cuidava para não invadir a
privacidade delas mas sentia isto ocorrer quando insistia para que abrissem o portão
e me deixassem entrar. Como entender o que estava ocorrendo? Como conseguir
respeitar esse momento e ao mesmo tempo não inviabilizar a pesquisa?
Encontro nos versos de Silvero Pereira um ponto de reflexão sobre os
sentidos para esse portão que não abre tão facilmente:
Eu senti medo, medo do escuro, da velocidade dos carros, do fato de haver muitas pessoas circulando, dos olhares inquisidores; medo da violência e da polícia, medo de não ser aceito ou cometer alguma “gafe” entre elas, medo de emoções e situações desconhecidas. Principalmente medo de tocar mais uma vez neste assunto. (PEREIRA, 2016, p. 23 e 24)
O autor usa a dramaturgia para falar de relatos e vivências de travestis,
principalmente em situação de prostituição. Talvez o mesmo medo organize as
estratégias de sobrevivência das travestis da pensão na Vila Vardelina e, por isso,
porque confiariam que o que eu estava propondo como muito relevante teria o
mesmo sentido para elas? O desafio da construção dessa relação seria constante,
mas, afinal, é de desafios que se pode construir ciência e mudanças sociais.
A PESQUISA NA PERSPECTIVA DO CONSTRUCIONISMO SOCIAL
O desafio do pesquisador é adotar uma postura reflexiva em relação a qualquer processo investigativo, de modo que tanto as práticas locais, contingentes e situadas dos participantes da pesquisa, quanto aquelas, dos que conduzem a investigação, possam dialogar umas com as outras. (MCNAMEE, 2017, p. 459)
Os mundos dos estudos acadêmicos, do exercício e práticas profissionais,
das vivências travestis podem ter tantos sentidos e valores diferentes que aproximá-
los em uma pesquisa só se torna possível se houver diálogo entre eles. E esse
diálogo precisa se dar com muita ética quando é um convite à construção de
sentidos que viabilizem transformações sociais, principalmente aos envolvidos em
uma pesquisa de forma direta ou indiretamente.
O Construcionismo Social, em consonância com um movimento de pós-
modernidade, se inquieta, problematiza e não aceita explicações previamente
definidas e totalizantes. Propõe uma possibilidade de pesquisa/caminho a ser
construído, quando
[...] o cientista pós-moderno está mais preocupado com o efeito de sua obra que com aquilo que ela ‘de fato’ representa. Seu método de trabalho não segue prescrições controladas e racionalizadas, mas emerge do diálogo com os contextos de investigação dos quais se ocupa. E a relação que pretende construir com os participantes de suas pesquisas e com os leitores de seus artigos tende a entreter espaço para coautoria, complementação e suplementação (MOSCHETA, 2014, p. 36).
Moscheta (2011) também nos diz que “uma pesquisa deve ser avaliada pelo
propósito e pelo potencial em transformar cenários sociais”. Cenários sociais são
construções vivenciadas por pessoas em suas relações; e a forma como
estabelecem relações informam sobre suas verdades. Buscar os sentidos das
verdades coloca pesquisador e sujeito participante diante da possibilidade de
“perguntas socráticas” e todos como coautores nesse processo relacional.
Pensar em uma pesquisa na qual se busque os sentidos para “cuidados em
saúde” traz a possibilidade de se investigar o sentido para “cuidado” e para “saúde”
no contexto de vivências de cada pessoa participante; traz também a atenção para
questões implícitas, porém não explicitadas, como por exemplo, o sentido de
“cidadania”, de “direito”, de “autonomia” e tantos outros que fazem parte das
vicissitudes de cada indivíduo ou sociedade, além de se atentar para as relações
dos participantes com outras pessoas, que não os participantes da pesquisa, e que
são envolvidos indiretamente, pois, é certo que “na cena discursiva muitas vozes se
fazem ouvir e não apenas as dos que enunciam perguntas e respostas”, como cita
Pinheiros (2013, p. 160).
Com isso, pensar a ética que envolve as pesquisas é pensar nos protocolos,
estes, para validar a pesquisa científica, devem ainda ser seguidos, mas ciência se
constrói constantemente e também se faz pelo comprometimento ético e político
com o outro e com a sociedade. Como convida McNamee:
Nenhuma pesquisa pode ou oferecerá o resultado definitivo. Todo conhecimento é provisório e contestável (por alguma outra comunidade linguística). Todas as explicações são local, histórica e culturalmente específicas. A pergunta mais importante dentre todos os mundos de pesquisa é: de que maneira essa investigação é útil? (MCNAMEE, 2014, p. 130)
Responder à pergunta proposta por McNamee é imprimir a ética não apenas
na pesquisa, mas nas relações. Uma investigação deve ser validada pela sua
utilidade, uma vez que esta é a “a pergunta mais importante”.
A ÉTICA NAS RELAÇÕES
Para se sustentar um comprometimento ético é preciso reconhecer a
multiplicidade de saberes que cada participante traz de sua história e validá-los
enquanto experiência pessoal de cada um. É preciso ainda, reconhecer que após o
momento de “coleta de dados” ou de construção do corpus de pesquisa os
participantes não sairão de uma situação de laboratório e sim continuarão em seus
cotidianos.
Voltar à universidade, depois de alguns anos de formada e me propor ser
pesquisadora trazia muitos desafios, até mesmo o de me construir com o cientista,
nesse lugar que eu não tinha intimidade. Eu nem sabia o que esperar pela frente e
ainda estou construindo esse papel, se no momento atual da pesquisa já passei
pelos desafios iniciais, a constância deles me conduzem agora a “como chegar ao
final”, tal qual Zanella (2013, pg 38) me lembra, “Também na viagem/pesquisa a
incerteza do ponto de chegada pode permitir ao pesquisador a surpresa do encontro
com o inesperado, não raro interessante, inquietante, provocador”. São as
provocações atuais que direcionam meu olhar quando olho o corpus até então
construído e penso nos próximos passos.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral e Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Brasília: 1. ed., 1. reimpr. - Ministério da Saúde, 2013.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo, SP: Editora Ática, 1997.
MCNAMEE, Sheila. Construindo conhecimento/construindo investigação: coordenando mundos de pesquisa. In: Construcionismo Social: Discurso, Prática e Produção do Conhecimento. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Noos, 2014. p.105-132.
MCNAMEE, Sheila. Pesquisa como construção social: investigação transformativa. In: GRANDESSO, Marilene (org.). Práticas colaborativas e dialógicas em distintos contextos e populações: um diálogo entre teorias e práticas. 1 ed. Curitiba, PR:CRV, 2017, p. 459-482.
MOSCHETA, M. S. (2011). Responsividade como recurso relacional para a qualificação da assistência à saúdede lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (Tese de Doutorado). Universidade de São Paulo - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto, 2011.
MOSCHETA, Murilo dos Santos. A pós-modernidade e o contexto para a emergência do discurso construcionista social. In: Construcionismo Social: Discurso, Prática e Produção do Conhecimento. Rio de Janeiro: Instituto Noos, 2014. p. 23-47.
PEREIRA, Silvero. BR-trans.1 ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2016.
PINHEIRO, Odette de Godoy. Entrevista: uma prática discursiva. In: Práticas discursivas e produção dos sentidos no cotidiano. Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2013. Disponível em: www.bvce.org. Acessado em 08.12.15.
ZANELLA, Andrea Vieira. Perguntar, registrar, escrever: inquietações metodológicas. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2013.
ABSTRACT
This work is from a developing research that seeks the production of senses and access in health, relationship between professionals of a Basic Health Unit (BHU) and the population of transvestites living in territory of UBS, in the city of Maringá, Paraná, Brazil. The goal of the research is the construction of senses that favor health care, as prescribed in the National Policy of Integral health of lesbians, Gays, bisexuals, Transvestites and Transsexuals from the Ministry of health. It is proposed here to discuss the ethical dilemmas experienced in step in this research field immersion. The theoretical referential is based on social constructivism, the possibility of research focus on the relational process and on philosophical posture of engagement in (re)construction of the world that we believe to be most useful and ethical. Keywords: health; Transvestites; Ethics.
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