View
219
Download
5
Category
Preview:
DESCRIPTION
Psicologia Politica: Interfaces Contemporâneas
Citation preview
1
1
CONTEÚDO DESTA EDIÇÃO
01. A Psicologia Política na Perspectiva da Psicologia Arquetípica: Uma Análise do Mito do Governante no Contexto do DLS. Sandro José Gomes .............................................................................................................. P. 02
02. O Imaginário Cristão E Os Fundamentos Democráticos Do Estado Moderno. Dr. Glauco Barreira Maglhães Filho...... ............................. P.12
03. O Governo Islâmico em Khomeini: Perspectivas e Paradigmas Xiitas. Eduardo Teixeira Gomes .................................................................... P.27
04. Teorias Modernas das Relações Internacionais. Dra. Maria A. Leonardo ............................................................................................. P.66
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
2
A PSICOLOGIA POLÍTICA NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA ARQUETÍPICA: UMA ANÁLISE DO MITO DO GOVERNANTE NO CONTEXTO DO DLS.
Sandro José Gomes*1
RESUMO
O presente artigo parte do pressuposto que a psicologia arquetípica é válida no contexto da Psicologia Política, pois trata fundamentalmente da psique coletiva, que é individualizada tanto pela cultura como por determinados sujeitos. O objetivo deste artigo é fornecer subsídios epistemológicos para a compreensão que a Psicologia Política, através da Psicologia Arquetípica e da Psicanálise poderá dar sua contribuição ao tratar da vinculação entre dimensão e dinâmica da personalidade e maturação para gerir o Desenvolvimento Sustentável no município. Nele é sustentado que gerir a coisa pública está estritamente vinculado ao grau de maturidade da personalidade humana, assim o DLS- Desenvolvimento Local Sustentável de um município dependerá do grau de maturidade das pessoas que constituem o governo municipal. Palavras-chave: Psicologia Política, Psicologia Arquetípica, Mito do Governante, DLS- Desenvolvimento Local Sustentável .
1 Pastor Metodista, Psicanalista Clínico, Licenciado em Ciências Naturais, Bacharel em
Teologia, Especialista em Política e Estratégia, Especialista em Gestão Escolar, Especialista
em Psicologia Clínica e do Aconselhamento, Mestre em Gestão do Desenvolvimento Local
Sustentável, Doutorando em Psicologia.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
3
1. INTRODUÇÃO
O tema deste artigo “a psicologia política na perspectiva da
psicologia arquetípica: uma análise do mito do governante no contexto
do DLS” foi delimitado partindo-se do pressuposto que a psicologia
arquetípica é válida no contexto da Psicologia Política, pois trata
fundamentalmente da psique coletiva, que é individualizada tanto pela
cultura como por determinados sujeitos. Desta forma, sua relação com o
desenvolvimento do modo de gerir institucionalmente, tem possibilidade
de delinear o grau de maturidade da comunidade e dos indivíduos.
Neste sentido a ação parlamentar dos vereadores e a gestão do
Prefeito pode requerer uma boa dose de maturidade, caso contrário, os
vereadores cairão na armadilha mais fascinante do ego, que é legislar em
causa própria e para si e o Prefeito gerir em benefício próprio. Nesta
perspectiva a Psicologia poderá dar sua contribuição ao tratar da
vinculação entre dimensão e dinâmica da personalidade e maturidade para
a ação parlamentar e a gestão da coisa pública. Particularmente, a
Psicologia Arquetípica trata do inconsciente coletivo e sua relação com o
individual; não sendo possível analisar uma dimensão dissociada da outra.
Todavia a imaturidade se constitui numa problemática que diz
respeito a ilusão que é possível favorecer o individual isolando o coletivo.
Portanto, a abordagem arquetípica harmoniza a compreensão dos pares de
opostos que estão presentes na forma pela qual a coisa pública é tratada.
O objetivo deste artigo é fornecer subsídios epistemológicos para a
compreensão que a Psicologia Política, através da Psicologia Arquetípica
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
4
e da Psicanálise poderá dar sua contribuição ao tratar da vinculação entre
dimensão e dinâmica da personalidade e maturação para gerir o
Desenvolvimento Sustentável no município.
A justificativa quanto a originalidade deste artigo refere-se à
escassez de estudos similares no âmbito acadêmico, embora o presente
estudo abranja vários conceitos e princípios usuais entre estudiosos da
área, considerando que a expressão DLS- Desenvolvimento Local
Sustentável de um modo geral não é um tema abordado por especialistas
em Psicologia. Nele é sustentado por hipótese que os arquétipos atuam
como padrão da personalidade dos governantes, interagindo a partir da
maturidade desta personalidade, o que possuem implicações diretas na
governabilidade. Tal hipótese sustenta-se em duas premissas:
A primeira premissa sustenta que existe uma relação significativa entre o
Ego e o Si-mesmo, sintonizado com os estágios da consciência de que
tratam os doze arquétipos de Carol Pearson, nas ações parlamentares e na
gestão da coisa pública. A segunda premissa admite uma a relação entre o
comportamento dos indivíduos que exercem no município, a função de
governar, e a reflexão sobre o imaginário popular a respeito de como eles
se comportam frente ao modo de suas escolhas.
Desta forma, admitindo-se por pressuposto que gerir a coisa pública
está estritamente vinculado ao grau de maturidade da personalidade
humana, o DLS- Desenvolvimento Local Sustentável de um município
dependerá do grau de maturidade das pessoas que constituem o governo
municipal.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
5
2. 2. O DLS – DESENVOLVIMENTO LOCAL SUSTENTÁVEL E SUA RELAÇÃO COM A MATURIDADE DA PERSONALIDADE DO
GOVERNANTE
A expressão Desenvolvimento Local Sustentável vem sendo
utilizada, frequentemente, para indicar a gestão do desenvolvimento
dimensionado por uma gestão local. No entanto, de acordo com Lins
(2006), uma localidade específica pode perfeitamente refletir também o
universo macro e suas inter-relações com o sistema maior.
Jesus (2006) admite que: “ a compreensão e a crítica em torno do
Desenvolvimento Local supõem a compreensão e crítica em torno de
desenvolvimento”, para ele “a definição de desenvolvimento o indicará
como um processo que causa ou promove mudanças”(JESUS, 2006,
p.30). Conforme este autor, somente há desenvolvimento quando a
mudança contempla a totalidade de uma sociedade ou pelo menos traz
benefícios para uma maioria. Entretanto este autor esclarece que a
proposta de desenvolvimento sustentável torna-se difícil e complexa por
envolver mudanças estruturais e contar com resistências sociais e falta de
vontade política, decorrentes de privilégios e hábitos consolidados
(JESUS, 2006).
Assim sendo, considerando que o DLS trata, antes de tudo de sobre
o problema de gerir a coisa pública, este trata-se, portanto de gerir a
questão política a partir do grau de maturidade dos sujeitos envolvidos
para desempenhar tal papel; pois o campo político se traduz como veículo
do processo de desenvolvimento e a comunidade não é movida pela
ideologia; porém, anteriormente, a ideologia está sintonizada pela
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
6
maturidade, ou orfandade de seu povo, conforme a abordagem arquetípica
de Pearson (1998) expressa.
3. O MITO DO GOVERNANTE NA PSICOLOGIA ARQUETÍPICA E SUA INTERPRETAÇÃO NA PSICLOGIA POLÍTICA
A Psicologia Arquetípica nasceu com o psiquiatra C. G. Jung, que
inicialmente fora discípulo de Sigmund Freud, no entanto Jung tem uma
posição em relação à ênfase sobre o papel da sexualidade na dinâmica da
personalidade diferente da psicanálise freudiana.
Conforme Lins (2006) Para Jung, o inconsciente coletivo é um
segundo sistema psíquico da pessoa. Diferentemente da natureza pessoal
de nossa consciência, ele tem um caráter coletivo e não pessoal. Jung o
chama também de “substrato psíquico comum de natureza suprapessoal”,
que não é adquirido, mas herdado. Consiste de formas preexistentes,
arquétipos, que só se tornam conscientes secundariamente. A psique, ou
alma, nutre-se dos símbolos que são de ordem transcultural, sendo esse o
domínio do inconsciente coletivo.
James Hillman retoma Jung e procura ampliar a idéia de Psicologia
Arquetípica. Hillman, em sua obra Psicologia Arquetípica escreve:
“ A psicologia arquetípica usa universal como adjetivo, denotando um valor essencial e duradouro o qual a ontologia define como hipóstase....Uma imagem arquetípica opera como o significado original da idéia ( do grego eidos e eidolon): não somente “ aquilo que se vê”, mas também “aquilo através do que se vê” (HILLMAN, 1983: 34 E 35).
Nesta perspectiva Carol Pearson, uma estudiosa da abordagem
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
7
arquetípica, elaborou um modelo da psique humana, baseado em doze
arquétipos, os quais vão se dinamizando desde a infância até a
maturidade, que compreenderia a realização da totalidade psíquica.
Conforme Pearson (1998) os doze arquétipos são: 1-Inocente, 2-Órfão, 3-
Guerreiro, 4- Caridoso, 5- Explorador, 6-Destruidor, 7- Amante, 8-
Criador, 9- Governante, 10- Mago, 11- Sábio e 12-Bobo. Todos estes
arquétipos são estruturados pela polaridade persona / sombra.
Na abordagem arquetípica um dos pressupostos para o processo de
individuação (processo que rege a união psíquica do consciente e
inconsciente e amplia o ego para o Si-mesmo; consistindo em uma
progressão para o amadurecimento da personalidade em sua totalidade)
é a polaridade dos arquétipos.
Assim, cabe a persona delinear os papeis e o processo de
identificação do ego no contexto da cultura e da sociedade; enquanto que
a sombra conota o lado inibido pelo social e ao mesmo tempo um grande
manancial da potencialidade humana reprimida. Esta polaridade deve ser
integrada para a realização total da psique, que constitui o processo de
individuação; pois assumir apenas um lado significa infração do ego e
unilateralidade, o que implica uma falta de centralidade e equilíbrio da
personalidade.
Por esta razão os doze arquétipos de Pearson (1998) estão dispostos
no contexto da lei da polaridade de Jung.
No tocante ao tema desenvolvimento local sustentável, no contexto
da psicologia arquetípica, remete-se imediatamente para a figura daqueles
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
8
que atuam no governo do município, que encerram nas variedades
míticas, o arquétipo do Governante; pois se trata de uma função que, além
de requerer o espírito público e de liderança, requer também autonomia e
sentimento de coletividade. Entretanto a dinâmica da organização dos
outros arquétipos pode implicar no direcionamento do ato de governar.
Na compreensão de Pearson (1998) o processo de desenvolvimento
da maturidade ocorre em três fases, nos quais participam quatro
arquétipos existenciais. Na primeira fase, ou estágio, participam os
arquétipos Inocente, Órfão, Guerreiro e Caridoso. No segundo estágio
compreende os arquétipos do Explorador, Destruidor, Amante e Criador.
O terceiro estágio inclui os arquétipos do Governante, Sábio e Bobo.
Embora estejam dispostos de forma linear, os arquétipos se comportam de
foram descontinua e suas atuações não são fixadas pela cronologia.
Pearson (1998), na formação hierárquica dos arquétipos, dispôs o
padrão do Governante no estágio relacionado ao amadurecimento da
psique.
O arquétipo do governante é melhor compreendido na relação entre
Ego e Si-mesmo; quando é vislumbrado a noção do individual e do
coletivo na abordagem arquetípica. Desta forma pode ser dito que:
“ O Si-mesmo é o centro ordenador e unificador da psique total ( consciente e inconsciente), assim como o ego é o centro da personalidade consciente.... A relação entre o ego e o Si-mesmo é altamente problemática e correspondente, de maneira bastante aproximada, à relação do homem com seu criador tal como é descrita na mística religiosa. O mito pode ser visto, na verdade, como expressão simbólica da relação entre ego e o Si-mesmo” ( EDINGER apud LINS, 2006).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
9
Na abordagem arquetípica, o Ego, é uma instância que, na visão da
psicanálise freudiana, conota o núcleo de conservação da vida e o espelho
das identificações sociais e culturais. Portanto o Ego, tem como uma de
suas qualidades básicas o apego pelo que se conquistou ou o sentimento
de abandono pelo que não se conseguiu. Neste ponto é necessário
compreender a relação entre o Governante a serviço do ego alienado ao
Órfão ou vinculado ao Si-mesmo dinamizado ao sábio.
Neste primeiro caso, os psicanalistas parecem compreender que a
governança está intimamente associada a orfandade. Neste contexto, para
Freud o homem renuncia a seus instintos agressivos substituindo-os pelas
agressões estatais, o Estado proíbe ao indivíduo infrações, não porque
queira aboli-las, mas sim, para monopolizá-las; assim a sociedade política
corresponde ao desejo irracional do homem em restaurar a autoridade;
pois, com a morte do pai primitivo, surge no homem, em sua orfandade, a
“nostalgia do pai”. Para ele, o governo não surge de um contrato social,
que ele enxergava apenas como uma reafirmação da vontade do pai acima
dos impulsos rebeldes dos filhos; mas, de uma resposta contra-
revolucionária, que emerge após a queda do governo patriarcal.
A imagem freudiana do pai, como modelo de autoridade, vincula-se
diretamente à idéia, que, a dimensão política funciona como extensão do
particular, ocorrendo a vitória do ego (consciente) sobre o Id
(inconsciente) possibilitando condição do domínio sobre o ambiente.
Também, o Ego se alimenta do que tem, e não estará disposto a
abrir do que conquistou a custo do Guerreiro; pois o território do Ego é
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
10
delimitado pelas necessidades individuais, e neste caso o sujeito não
estará interessado no coletivo, pois como experiência interna, ele
desconhece o significado da palavra em termos de registro psíquico, ainda
que ocupe cargos públicos e discurse em termos coletivos. Assim
socialmente este sujeito utiliza máscaras, para que seus desejos possam de
alguma maneira, realizar-se no plano do ego, enquanto parcialmente
alimenta, ao mesmo tempo, o que está ausente existencialmente.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise bibliográfica usada como referencial teórico deste artigo
possibilitou vislumbrar as implicações do grau de maturidade dos
governantes municipais (prefeitos e vereadores) na promoção de ações
que fomentem o Desenvolvimento Sustentável nos Municípios.
Restou por conclusão que na abordagem arquetípica o Si-mesmo é
alimentado pela ressonância dos símbolos que têm significados para a
psique, sendo a preocupação a realização da totalidade da personalidade
humana, com perdas e conquistas, tendo sentido de acordo com o grau de
maturidade psíquica.
Nesta perspectiva é possível falar em governo na dimensão do
coletivo, pois o bem-estar não é individualizado apenas e neste contexto o
governante a serviço do Si-mesmo atua; porque o mundo externo e o
interno são um e o mesmo refletido na psique. Assim o Ego é
transcendido pelo Si-mesmo, assim a maturidade do governante
viabilizará a sustentabilidade que é tão debatida e requerida na
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
11
contemporaneidade nos municípios.
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HILLMAN, James. Psicologia Arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1983. JESUS. Paulo de. Sobre Desenvolvimento Local Sustentável: Algumas considerações conceituais e suas implicações em projetos de pesquisa. In: ASSUNÇÃO, Luiz Márcio; FILHO, Maciel Adalberto; PEDROSA, Ivo. Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável. Recife, PE: Edupe, 2007. LINS, Luciano da Fonseca. O Mito do Significado no Contexto da Religiosidade numa Narrativa autobiográfica. Olinda: Livrorapido, 2006. _________. A Personalidade Humana. Olinda: Livrorapido, 2006. PEARSON, Carol. O Despertar do Herói Interior. São Paulo: Cultrix, 1998.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
12
O IMAGINÁRIO CRISTÃO E OS FUNDAMENTOS
DEMOCRÁTICOS DO ESTADO MODERNO.
Glauco Barreira Magalhães Filho.2*
RESUMO
O imaginário social é uma projeção de valores coletivos de uma sociedade ou de um grupo social. Nós destacamos o imaginário de grupos religiosos protestantes, bem como as articulações entre imaginário social e imaginário individual, imaginário e ação social. O objetivo da pesquisa é mostrar como as doutrinas protestantes se transpuseram analogicamente para o campo político de modo a estabelecer os fundamentos do Estado Democrático Moderno. O artigo científico segue o paradigma weberiano, o qual admite as crenças como motivo para as ações, bem como concebe a existência de uma força de transformação exercida pelas idéias. Palavras-chaves: Imaginário, Protestantismo, Estado Democrático Moderno
ABSTRACT
The social imaginary is a projection of society collective values of one society or social group. We highlght protestante religious group's imaginary, as well as the 2 Professor Adjunto II da Universidade Federal do Ceará, atuando principalmente nos seguinte temas: Filosofia do Direito, Hermenêutica jurídica, Teoria do Direito, Direitos Fundamentais e Imaginário Jurídico. É pesquisador da obra de C.S.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
13
articulations between social imaginary and individual imaginary, social action and the imaginary. This research aims to show how the Protestant doctrines are transposed by analogy to the political order to lay the foundations for the Modern Democratic State. The scientific article follows the Weberian paradigm, which recognize the beliefs as motive for the actions, thus conceives the existence of a transformation force which is exerted by ideias.. Keywords: Imaginary, Protestantism, Modern Democratic State
Cornelius Castoriadis define a instituição social como uma rede
simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam, em proporções e
em relações variáveis, um componente funcional e um componente
imaginário3.Para ele, o imaginário deve utilizar o simbólico não somente
para exprimir-se, mas também para existir.
Castoriadis, por outro lado, observa que, apesar de as instituições
formarem uma rede simbólica, elas remetem para algo que está além do
simbolismo. Se não fosse assim, não haveria de se entender porque foi
adotado um determinado sistema de símbolos em vez de outro. Também
não se poderia justificar porque um sistema de significantes tem como
correspondente um sistema de significados específicos.
O elemento que justifica preferência e sentido de um sistema de
símbolos é a funcionalidade social de tal sistema numa época
considerada.
Castoriadis, no entanto, ao longo de sua obra intitulada A
Instituição Imaginária da Sociedade, estabelece um critério permanente
(alheio às variações temporais) para valorar positiva ou negativamente
uma instituição (rede simbólica) existente: a capacidade de promover a
autonomia (liberdade) humana. São as suas próprias palavras:
3 CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. 5a ed. Trad. Guy Reynaud. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1982, p. 159
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
14
Existe, portanto, aqui uma dupla relação. As razões pelas quais visamos a autonomia são e não são da época. Não o são, porque afirmaríamos o valor da autonomia quaisquer que sejam as circunstâncias, e mais profundamente, porque pensamos que o desejo de autonomia tende fatalmente a emergir onde existem homem e história, porque, como a consciência, o objetivo de autonomia é o destino do homem, porque, presente, desde o início, ela constitui a história mais do que é constituída por ela.4
A noção de “autonomia” parece uma versão laica da idéia de
dignidade da pessoa humana anunciada pelo cristianismo. Afinal de
contas, até o próprio Karl Marx, hostil aos dogmas religiosos, reconheceu
que “a democracia assenta no princípio do indivíduo, o qual, por seu
turno, tem seus fundamentos no sonho do Cristianismo de que o homem
possui uma alma imortal5”.
C. S. Lewis confirma a conclusão de Marx com as seguintes palavras:
E a imortalidade produziria outra diferença que, diga-se de passagem, tem uma conexão com a diferença entre o totalitarismo e a democracia. Já que o homem vive apenas setenta anos, então um Estado, uma nação ou uma civilização, que podem durar mil anos, são mais importantes do que o indivíduo. Mas se o Cristianismo é verdadeiro, então o indivíduo é incomparavelmente mais importante, porque ele é imortal e a vida de um Estado, ou civilização, comparada com a sua, corresponde a apenas um momento.6
De acordo com Joseph Campbell7, enquanto as religiões orientais
procuram defender uma identidade da pessoa com o transcendente que
implica numa dissolução do indivíduo na divindade, o pensamento
4 Op. cit., p. 121 5 in Marx/Engels, WERKE, I, 550, ed. Diez Verlag, Berlin, 1966 6 Cristianismo Puro e Simples. 5a ed. Trad. Renira Cirelli e Milton A. Andrade. São Paulo: ABU, 1997, p. 41 7 CAMPBELL, Joseph. Tu és isso. Trad. Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras, 2003, p. 35-36
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
15
judaico-cristão sustenta que deve haver uma relação entre o homem e
Deus.
Deus fez o mundo, logo o mundo e Deus não são a mesma coisa.
Há uma distinção ontológica e essencial entre o criador e a criatura. No
Oriente, cada indivíduo é um pedaço de Deus. No cristianismo, através de
Jesus (verdadeiro Deus e verdadeiro Homem), é possível um
relacionamento pessoal entre criador e criatura. Martin Buber entende que
o conceito de pessoa presume o de relacionamento (eu-tu). Kierkegaard,
por sua vez, entende que a relação Homem-Deus, o afirmar-se pessoa
diante do absoluto, maximiza a condição de pessoa. Como Deus interpela
cada um individualmente, o filósofo dinamarquês conclui que a resposta
pessoal singulariza cada homem diante de Deus de forma absoluta. No
judaísmo, o homem foi dignificado por ser considerado um ser criado à
imagem e semelhança de Deus. No cristianismo, o valor dado ao homem
aumentou pelo fato de o Filho de Deus ter-se feito homem e ter dado a
sua vida pela redenção do ser humano.
A igreja cristã primitiva, com uma organização
eclesiástica de natureza familiar e informal, enfatizava a
possibilidade de relacionamento direto do homem com Deus
na pessoa de Jesus Cristo.
Durante a Idade Média, porém, houve uma
institucionalização tão rigidamente orgânica da Igreja Católica
Romana que o indivíduo se perdia na conjuntura da Igreja,
ficando o seu acesso a Deus dependente da hierarquia
eclesiástica. Nesse período, a Igreja Romana criou a doutrina
da fé implícita, segundo a qual o fiel não precisava entender o
fundamento dos dogmas da igreja para ter fé, pois lhe bastava
crer em tudo que a igreja dissesse, mesmo naquilo cujo
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
16
significado ignorasse. Assim, o padre celebrava a missa em
latim para um povo inculto, as crianças eram batizadas na
inconsciência e a fé em Deus se confundia com submissão à
igreja.
Essa postura da Igreja Romana levou-a a manifestar desprezo
pelos direitos humanos. O papa Inocêncio III condenou a Magna Carta da
Inglaterra, o papa Leão XII reprovou Luiz XVIII por ter aceitado a
“liberal” Constituição Francesa e o papa Gregório XVI condenou a
Constituição Belga de 1832. A encíclica de Gregório XVI (confirmada
em 1864 por Pio IX em seu Syllabus Errorum) condenou a liberdade de
consciência, considerando-a “uma tolice insana”, e a liberdade de
imprensa como sendo “um erro pestífero, que não poderá ser
suficientemente detestado.
No século XX, o catolicismo romano celebrou alianças com os
governos totalitários de Hitler e Mussolini. Os católicos foram proibidos
de se opor a Mussolini e foram estimulados a apoiá-lo. Em troca,
Mussolini (na Concordata de 1929 com o Vaticano) tornou o catolicismo
romano novamente a religião estatal oficial da Itália, além de favorecer a
Igreja com uma vasta soma em dinheiro e títulos. Por ter-se apropriado
dos territórios papais em 1870, a Itália pagou a Santa Sé 750 milhões de
liras em dinheiro e um bilhão de liras em bônus do Estado. Esse dinheiro
foi utilizado para abrir o Banco do Vaticano e para estranhos
investimentos como “uma fábrica de armas de fogo italiana e um
laboratório farmacêutico canadense que fabricava anticoncepcionais8”.
Em 1933, o Estado do Vaticano assinou uma Concordata com
Hitler. Um dos benefícios da Concordata foi uma soma equivalente a
8 Time, 26 de julho de 1982, p. 35
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
17
centenas de milhões de dólares que a Igreja recebeu através da
Kirchensteur (imposto eclesiástico) durante toda a guerra. O teólogo
católico Michael Schmaus escreveu o seguinte sobre o regime nazista:
A forte ênfase da autoridade no novo governo é algo essencialmente familiar aos católicos. Ela é a contrapartida, a nível natural, da autoridade da Igreja no âmbito sobrenatural. Em parte alguma, o valor e o sentido da autoridade são tão evidentes como em nossa santa Igreja Católica.9
Durante o ano de 1933, um renomado prelado de Colônia,
Robert Grosche, escreveu no Die Schildgenossen:
Quando a infalibilidade papal foi definida em 1870, a Igreja estava antecipando, em um nível mais alto, a decisão histórica que agora foi tomada em nível político: uma decisão a favor da autoridade e contra a discussão, a favor do papa e contra a soberania do Concílio, a favor do Führer e contra o Parlamento.10
É perceptível que a resistência à idéia de um relacionamento
pessoal e direto do homem com Deus em Cristo conduziu o catolicismo a
posturas que favoreciam o autoritarismo.
O movimento monástico original (século IV) foi a primeira reação
contra a tentativa da Igreja de se interpor entre o homem e Deus. Os pais
do deserto escolheram o caminho da solidão através da qual se colocavam
individualmente diante de Deus. Posteriormente, entretanto, os monges
9 Apud HUNT, Dave. A mulher Montada na Besta. Vol. I. Trad. Mary Schultze/Jarbas Aragão. Porto Alegre: Actual, 2001, p. 223 10 Apud HASLER, Bernhard. How the Pope Became Infallible. Doubleday & Co., Inc., 1981, p. 257
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
18
abandonaram a “amiga” solitude para viverem em grupos organizados nos
mosteiros. Desse modo, as ordens monásticas foram inseridas no contexto
da Igreja organizada. A partir daí, a valorização da condição individual do
homem diante de Deus se fez sentir nos escritos dos chamados místicos
cristãos.
A Reforma trouxe novo alento a valorização do indivíduo (cristão)
na medida em que ensinou a doutrina paulina da justificação pela fé.
Segundo esse ensino, o homem é declarado justo diante de Deus não por
sacramentos ou penitências que implicam em dependência da
administração da Igreja, mas pela sua fé pessoal em Jesus Cristo. A
reforma ainda enfatizou a competência do indivíduo para, sob a
iluminação do Espírito Santo, ler as Escrituras e decifrar o seu sentido
correto (Livre Exame das Escrituras). André Biéler fez o seguinte
comentário:
Um dos principais ensinamentos evangélicos exaltados pela Reforma, que mais transtornou a condição humana com relação às concepções da Idade Média, é a proclamação de que um chamamento individual é endereçado por Deus a cada indivíduo, qualquer que seja ele, e sem a intermediação necessária de uma hierarquia clerical, o que faz de cada indivíduo uma pessoa única e inteiramente responsável por si própria. Essa responsabilidade primeira dos indivíduos deve exercer-se em todos os domínios11.
11 BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes. Trad. Paulo Manoel Protasio. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 51
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
19
O valor do indivíduo-pessoa ressaltado no protestantismo tem
muitas implicações para a vida social. Isso pode ser visto nas palavras
de C. S. Lewis mediante as quais ele denuncia o grande vício do mundo
moderno:
...a crescente exaltação da coletividade e a indiferença em relação às pessoas. As fontes filosóficas provavelmente são Rousseau e Hegel. Mas o caráter geral da vida moderna com a sua organização impessoal é mais potente do que qualquer filosofia [...]. Nada a não ser um Outro pode ser amado e um Outro só pode existir para um Eu. Uma sociedade, na qual ninguém tem consciência de si mesmo como pessoa diferente das outras pessoas; na qual não há a quem dizer ‘Eu te amo’, é de fato, imune contra (o pecado) do egoísmo, contudo, não por amor. Uma sociedade assim seria tão insípida e inodora quanto uma garrafa de água.12
Os puritanos ingleses, por sua vez, na sua luta por liberdade de
consciência e de crença, formaram a noção moderna de Estado de
Direito, ou seja, o Estado que se compromete através de um pacto
social a respeitar os direitos intrínsecos ao homem. A noção de
democracia representativa moderna foi influenciada tanto pelo
pensamento humanista laico dos franceses como pelo pensamento
religioso dos puritanos ingleses. Ambas as correntes se encontraram na
história norte-americana.
12 LEWIS, C. S. Of Other Worlds. New York: Harvest, 1975, p. 83-84
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
20
É interessante notar que nenhuma ditadura moderna se estabeleceu
em país influenciado pela Reforma Calvinista. Lenin, Stalin, Hitler,
Mussolini, Franco, Salazar, Pinochet e tantos outros déspotas eram
todos de origem ortodoxa russa ou católico romana. André Biéler
observa:
Com a Reforma e nos séculos seguintes, surgem, na Europa, outros tipos de governo que se forjam a partir das mentalidades protestantes e das estruturas democráticas de suas igrejas. Desde o século XVI em Berna, Bale ou Genebra, no século XVII na Inglaterra (um século antes da Revolução Francesa), depois na Holanda, nos Estados Unidos, nos países nórdicos, por toda parte onde prosperam maiorias ou fortes minorias protestantes, instalam-se regimes liberais e democráticos, sob a forma de repúblicas ou de monarquias parlamentares constitucionais.13
A democracia encontra plena justificativa na concepção cristã de
natureza humana, a qual compreende o homem como ser sublime e ao
mesmo tempo caído. Conforme uma observação de G. K. Chesterton,
considerado como Homem, sou a maior criatura; considerado como um
homem, sou o maior dos pecadores14. No livro infantil O Príncipe
Caspian de C. S. Lewis, Aslam, o sábio leão, diz ao príncipe o que é ser
um descendente de Adão:
É honra suficientemente grande para que o mendigo mais miserável possa andar de cabeça erguida, e também vergonha
13 BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes. Trad. Paulo Manoel Protasio. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 49 14 CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Eduardo Pinheiro. Porto: Livraria Tavares Martins, 1944, p. 142
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
21
suficientemente grande para fazer vergar os ombros do maior imperador da Terra15.
A democracia encontra, portanto, duplo fundamento no
cristianismo. Todos são convidados a participar das deliberações públicas
por serem dotados de dignidade e nenhum deve governar sozinho, sem
fiscalização, em razão da inclinação humana para a corrupção existente
após o evento da sua queda. É verdade que o fato de todos os seres
humanos terem valor aos olhos de Deus não os torna igualmente
competentes para discussões de assuntos públicos ou para qualquer outra
coisa. O missionário cristão Stanley Jones, no entanto, afirma com
esperança:
...Alguém definiu a democracia como aquela loucura que vê nas pessoas algo que não é real, isto é, que elas podem governar a si mesmas. No entanto, sem esta crença o homem não poderia criar o tipo de humanidade a partir da qual a democracia pode ser alcançada. A fé cria as coisas em que acredita...16
C. S. Lewis, ressaltando o outro lado da moeda (a natureza humana
pecaminosa), explica:
Creio na igualdade política. Mas é possível ser democrata por dois motivos opostos. Você pode pensar que todos os homens são tão bons que merecem participar do governo, e tão sábios, que a comunidade necessita de seus conselhos. Em minha opinião, essa é a falsa e romântica doutrina da democracia. Por outro lado, você pode acreditar que os homens caídos são tão perversos que nenhum deles pode receber poder
15 LEWIS, C. S. Príncipe Caspian. Trad. Paulo Mendes Campos. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 210 16 A resposta divina. São Paulo: Imprensa Metodista, 1995, p. 34
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
22
desmedido sobre seus companheiros ...Mas, uma vez que tomamos conhecimento do pecado descobrimos, como diz Lorde Acton, que ‘todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente’. O único remédio é substituir os poderes por uma ficção legal de igualdade...Para mim, a igualdade equivale às roupas. É o resultado da queda e o seu remédio. Qualquer tentativa de reverter o caminho que nos conduziu ao igualatarismo e reinstalar as velhas autoridades no plano político é, para mim, tão absurda quanto tirar a roupa.17
O fato importante a ressaltar é que o mundo precisa de reformas
constantes. De acordo com uma observação de Chesterton, o termo
reforma é mais apropriado que evolução ou progresso. Isso porque
evolução é uma metáfora para um simples e automático desenrolar,
enquanto progresso é uma metáfora de um passeio ao longo de um
caminho. Por outro lado, o termo reforma aponta para uma tentativa de
mudar o mundo de acordo com uma imagem, um modelo. A reforma é
uma metáfora para os homens razoáveis e bem determinados: significa
que vemos uma coisa fora de forma e pensamos em colocá-la na forma
devida.
Chesterton explica que precisamos alterar o real para ajustá-lo ao
ideal, mas a idéia secular de progresso salienta mais um ideal que sempre
se distancia do que um real que podemos alterar. As pessoas acomodadas,
por sua vez, preferem alterar o ideal em lugar de tentarem mudar o real. O
literato inglês expressa uma verdade importantíssima quando diz:
Dissemos que temos de ser amigos deste mundo, mesmo até para o modificarmos. Acrescentemos agora que temos de ser
17 LEWIS, C. S. Peso de glória. 2a ed. Trad. Isabel Freire Messias. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 43-44.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
23
amigos de outro mundo (real ou imaginário), a fim de termos alguma coisa que oriente a modificação a fazer.18
O cristianismo oferece aos que crêem em Jesus Cristo um ideal
com poder transformador. Isso não quer dizer que o cristianismo seja
um sistema político ou tenha uma proposta específica para a economia.
Antes de tudo, a mensagem do Novo Testamento possibilita uma nova
compreensão do homem e pretende estabelecer o correto conhecimento
de Deus. A fé em Deus provoca o homem a agir, e a visão que o
homem tem de si e dos outros determina a natureza das suas ações no
mundo.
Jesus disse que os cristãos seriam (deveriam ser) sal da terra e luz
do mundo (Mateus 5:13). Como luz, o crente revela os pecados da
humanidade, descobrindo as verdadeiras causas de seus problemas;
como sal da terra, ele influencia positivamente o mundo assim como o
sal torna os alimentos mais agradáveis e apetecidos. O interessante a
observar é que o sal desaparece nos alimentos a que dá sabor. O
cristianismo é uma força oculta de transformação, ele age de baixo para
cima. Ao se tentar faze-lo atuar de maneira inversa, isto é, de cima para
baixo, produzir-se-á uma expressão deturpada da sua natureza.
18 CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Eduardo Pinheiro. Porto: Livraria Tavares Martins, 1944, p. 166
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
24
Jacques Maritain, em seu livro Christianisme et démocratie
defende que os princípios democráticos formaram-se na consciência
profana pela ação do fermento evangélico. Ele sustenta que, muito
embora o cristianismo seja uma mensagem espiritual e religiosa, ele
atua nas profundezas da consciência e da existência profana,
funcionando, então, como uma energia histórica atuante no mundo.
Chesterton comenta o seguinte sobre a fertilidade transformadora da
mensagem cristã:
Se desejarmos derrubar um próspero tirano não o poderemos fazer com a nova doutrina da perfectibilidade humana; fa-lo-emos apenas com a velha doutrina do Pecado Original. Se desejarmos arrancar pelas raízes crueldades inatas ou erguer do marasmo em que jazem populações perdidas, não o poderemos fazer com a teoria científica de que a matéria precede o espírito; fa-lo-emos com a teoria sobrenatural de que o espírito precede a matéria. Se desejarmos, inclusivamente, acordar um povo para uma constante vigilância social e para uma luta sem tréguas, nada conseguiremos com as teorias da imanência de Deus ou da Luz Interior, porque estas são, quando muito, razões para contentamento; temos de insistir sobre a transcendência de Deus e o fulgor que flutua e se escapa: isso significa o descontentamento divino. Se desejarmos, particularmente, radicar a idéia de um equilíbrio generoso contra a idéia de uma autocracia pavorosa, teremos de ser trinitários e nunca unitários. Se queremos que a civilização européia seja um verdadeiro ‘raid’ e uma libertação, devemos insistir em que as almas correm um perigo real e pôr de parte a idéia de que tal perigo é, em última análise, meramente fictício. E, se queremos ainda exaltar o proscrito e o crucificado, temos de nos lembrar de que um verdadeiro Deus, e não um simples sábio ou herói, foi crucificado também. Acima de tudo, se desejarmos proteger os pobres, teremos de lançar mão de regras fixas e de dogmas certos. O regulamento de um clube pode, ocasionalmente,
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
25
pretender favorecer os membros pobres, mas a sua inclinação é sempre a favor dos membros ricos.19
C. S. Lewis explica que o fato de a promessa maior do evangelho se referir à
vida futura não torna o cristão inerte nessa vida. O olhar para a eternidade, que é
uma obrigação do cristão, não consiste em alimentar uma ilusão, mas, sim, em uma
virtude, a esperança. Como toda virtude tem um potencial de transformação, a
esperança se torna uma energia ativa na vida do cristão neste mundo:
Se consultarmos a História, veremos que os cristãos que mais fizeram por este mundo foram justamente os que mais pensaram no outro mundo. Os próprios apóstolos, que empreenderam a conversão do Império Romano, os grandes homens que construíram a Idade Média, os evangélicos ingleses que aboliram o mercado de escravos, todos deixaram sua marca na Terra precisamente porque suas mentes estavam ocupadas com as coisas do céu. Desde que os cristãos pararam de pensar na outra vida é que começaram a falhar nesta. Quem almejar o céu, terá a Terra como acréscimo; quem almejar a Terra, não terá nem uma nem outra coisa. Parece uma regra estranha, mas podemos observar algo semelhante em outros setores. A saúde é uma grande benção mas, quando esta começa a ser um de nossos objetivos principais e diretos, começamos a nos tornar rabujentos e a imaginar que alguma coisa não vai bem. Só poderemos ter saúde se buscarmos outras coisas mais: alimento, esporte, trabalho, diversão, ar livre. Da mesma maneira, nunca salvaremos a civilização se esta for o nosso principal objetivo. Devemos aprender a querer algo mais.20
Conclusão
Pelo exposto, fica evidente que o cristianismo teve um papel
essencial na formação dos regimes democráticos do Estado moderno,
19 CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Eduardo Pinheiro. Porto: Livraria Tavares Martins, 1944, p. 219-220. 20 Cristianismo Puro e Simples. 5a ed. Trad. Renira Cirelli e Milton A. Andrade. São Paulo: ABU, 1997, p. 76
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
26
pois o imaginário cristão é dotado de uma poderosa força de
transformação social.
O cristianismo atua até mesmo na consciência profana sem ser
reconhecido, influenciando as representações coletivas da sociedade
que está ou esteve sob sua influência.
BIBLIOGRAFIA
BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes. Trad. Paulo Manoel Protasio.
São Paulo: Cultura Cristã, 1999
CAMPBELL, Joseph. Tu és isso. Trad. Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras,
2003
CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. 5a ed. Trad.
Guy Reynaud. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1982
CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Eduardo Pinheiro. Porto: Livraria Tavares
Martins, 1944
HASLER, Bernhard. How the Pope Became Infallible. Doubleday & Co., Inc., 1981
HUNT, Dave. A mulher Montada na Besta. Vol. I. Trad. Mary Schultze/Jarbas
Aragão. Porto Alegre: Actual, 2001
JONES, Stanley. A resposta divina. São Paulo: Imprensa Metodista, 1995
LEWIS, C. S. Of Other Worlds. New York: Harvest, 1975
______. Peso de glória. 2a ed. Trad. Isabel Freire Messias. São Paulo: Vida Nova,
1993
______. Cristianismo Puro e Simples. 5a ed. Trad. Renira Cirelli e Milton A.
Andrade. São Paulo: ABU, 1997
______. Príncipe Caspian. Trad. Paulo Mendes Campos. São Paulo: Martins Fontes,
1997
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
27
O GOVERNO ISLÂMICO EM KHOMEINI: PERSPECTIVAS E PARADIGMAS XIITAS.
Eduardo Teixeira Gomes21
RESUMO
Estre trabalho enseja abordar, com serenidade altruísta, as relações entre o binômio política/religião na concepção xiita de um governo islâmico. Objetivar-se-á compreender paradigmas constitutivos da ótica de Khomeini, artífice da revolução iraniana, para construir pontes dialógicas que mitiguem antagonismos e desvelem os pressupostos do governo islâmico xiita sob o binômio religião/politica. A situação atual é, sem dúvida, definida pelos esforços do regime de Teerã em alargar sua presença na América Latina onde objetiva aprofundar bases políticas e religiosas. A receptividade antiamericana em alguns países latinoamericanos e a pretensão do Brasil como interlocutor junto às tensões internacionais que circundam o projeto nuclear iraniano, alçam a temática para uma pauta relevante. A presença crescente de um país fundamentalmente xiita em um continente marcado pelas instituição laicas e (relativa) liberdade religiosa merece ser notado. Evidenciar-se-á, principalmente nos tempos atuais, a emergência da necessidade de interação diante de um outro, menos impermeável do que parece, possibilitando descobertas mútuas e interações dialógicas. Palavras-Chave: revolução – ocidentalismo – política - diálogo – religião
21 Historiador e Educador no Ensino Fundamental e Superior. Mestre em História Social das Relações Políticas (UFES). Especialista em Educação (IFES). aprendiz.edu@uol.com.br
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
28
Introdução.
“Todo dia é Ashura, todo lugar é Karbala“.22 (Ruhullah Khomeini)
Neste trabalho observar-se-á os paradigmas constitutivos do governo
islâmico a partir da prédica de Khomeini em sua obra “o governo islâmico”23,
concatenando com as vicissitudes do Irã atual e seu universalismo24, uma
vez que a linha política de Khomeini é amplamente seguida pelo seu
sucessor, o atual líder supremo Ali Khamenei.
Abordar-se-á, bibliograficamente, tal temática sob a égide da
congruência entre a história cultural e a história social das relações politicas.
A história cultural, tal como pretendida antropologicamente por Gellner e
Geertz, é inevitavelmente política (Gellner, 1997, p. 7), pois invade a política
em vários aspectos, principalmente implicando na composição de uma visão
de mundo, que formata a sociedade sob representações simbólicas. A
confluência entre a religião e a política salienta a produção das alteridades e
identidades na turbulenta relação entre etnias do Oriente Médio e a
modernidade ocidental.
A presença do xiismo iraniano, com seu típico universalismo, nas
relações internacionais com a latinoamerica e as tensões que permeiam o Irã 22 � Palavra de ordem da Revolução Iraniana, onde Khomeini cita Ali Shari'ati. A Ashura é uma das mais importantes comemorações do calendário cívico xiita; Ela exalta a determinação de Hussein de resistir até ao martírio na luta contra as ofensas ao Islã. Essa comemoração assevera a visão xiita de resistência a governos que julgar corruptos e sua prontidão ao martírio pela sua fé. Karbala é o lugar onde Hussein, filho de Ali Talib, enfrentou o exército do governo com 72 homens e foi sumariamente derrotado, em 680 d.C. 23 KHOMEINI, M. Ruhullah. El gobierno Islâmico. Madri: Biblioteca Islâmica Ahlul Biab, 2004 [1971]. 24 Pensamento religioso da Idade Média que estendia a salvação ou redenção a todo gênero humano. O exemplo xiita não coaduna com a perspectiva ecumênica original. Preconiza-se a redenção da humanidade pela submissão ao islã sob a tutela xiita.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
29
como um ator politico nuclear no Oriente Médio do século XXI, outorgam uma
relevância singular ao tema do governo islâmico. Principalmente por
Khomeini evocar um escrituralismo xiita que regulamenta as relações
políticas, sociais e religiosas do Estado com a umma (termo árabe
provavelmente derivado da palavra umm – mãe), sob a égide do Corão25.
O que não é história cultural ainda não alcançou uma resposta
definitiva satisfatória (Burke, 2005). Ressaltar-se-á dimensões da história
cultural ao levarmos em conta o campo religioso, suas instituições e
acontecimentos. Identificando as complexas relações existentes no binômio
religião/política, percebe-se que, com relação ao Islã, o sistema religioso
tornou-se uma dimensão do político na medida em que o espaço privilegiado
para a vivência materializada da fé é o Estado Islâmico juridicamente
constituído.
Na primeira parte deste trabalho ensejo desvelar o governo islâmico
como instrumento imprescindível para um tipo de revolução islâmica.
Ressaltando os parâmetros de revolução elencado por Arendt e Khomeini.
Este propôs uma reconstrução das instituições ocidentais sob uma ótica
muçulmana xiita, o que faz do Irã muito menos um exemplo ideal do que um
método pragmático. Na sua teologia política os três poderes republicanos
foram submetidos à vigilância/orientação de um notável jurista muçulmano
(faqih) circundado por notáveis: os fuqaha26 (Khomeini, 2004 [1971], p. 88).
25 Comumente chamado Alcorão, o Corão (nome advindo árabe qu´àn, que significa ´leitura salmodiada´) é o livro sagrado dos muçulmanos. Reúne em 114 suras (capítulos) e 6.236 versículos, um conjunto de revelações sobre a divindade atribuídos a Maomé, tendo sido transmitido oralmente até a época do terceiro califa, quando elaborou-se a redação definitiva do texto. “O texto, que em alguns trechos evoca temas do Velho e Novo Testamento, nem sempre é muito claro. E, quando Maomé ainda vivia, muitas vezes era solicitada sua intervenção para esclarecê-lo” (Jacono, 2002, p. 38). Diverge da Bíblia Sagrada em vários pontos no que tange à salvação do homem, divindade de Jesus, dicotomia entre as esferas do terreno e do celestial, escatologia, ressurreição, entre outros... 26
Fuqaha - Plural de Faqih. Homens sábios nos princípios e regulamentações da lei islâmica e, em geral, em todos os aspectos da fé. Formam um corpo de sábios estudiosos das leis islâmicas com a missão de proteger o líder supremo, bem como, de expandir suas políticas entre os diversos estamentos sociais.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
30
Na segunda parte apresentar-se-á as matizes do conceito de
fundamentalismo, atentando para o perigo do ocidentalismo27, uma vez que o
orientalismo já é bem debatido. É tempo das proposições políticas estearem-
se na tolerância na diversidade cultural, suplantando o autoritarismo
adestratório para enfatizar responsabilidades compartilhadas. O livre arbítrio
religioso e político não pode ser o alvo, antes, constitui-se o caminho.
Na terceira parte desvelar-se-á os paradigmas do governo islâmico sob
a égide das propostas de Khomeini, enfatizando seu ocidentalismo, as
especificidades endógenas da necessidade do governo islâmico, e a coroa da
obra de Khomeini: a doutrina da tutela do jurista no binômio religião/política. A
doutrina khomeinista foi um sólido elemento de coesão nacional durante o
processo revolucionário iraniano na década de 1970, unificando politicamente
um país dividido, onde uns defendiam instituições ocidentais e outros as
tradições religiosas. Para ele a política é uma graça divina concedida aos
homens para que lutem pela justiça social xiita. Assim, cada muçulmano é
desafiado a se envolver nos assuntos políticos, pois as revelações da
divindade são tão religiosas quanto políticas.
A percepção antropológica de Geertz acentua a congruência dos
símbolos sagrados com os processos sócioestruturais engendrados pela
dimensão religiosa:
A religião nunca é apenas metafísica. Em todos os povos as formas, os veículos
e os objetos de cultos são rodeados de uma aura de profunda seriedade moral.
Em todo o lugar, o sagrado contém em si mesmo um sentido de obrigação
intrínseca: ele não apenas encoraja a devoção como a exige; não apenas induz
a aceitação intelectual como reforça o compromisso emocional. [...] a religião
fundamenta as exigências das mais específicas da ação humana nos contextos
mais gerais da existência humana (Geertz, 1989, p. 143).
27 � Citamos ´ocidentalismo´ inspirado no conceito de orientalismo invocado por Said (1990). Para a perspectiva xiita o Ocidente é o mal em ação, e deve ser destruído para que o fundamentalismo religioso seja praticado livre de um inimigo corruptor. Tal visão estreita e reducionista dentro do xiismo é sustentada por clérigos radicais, historicamente nutrida pelo belicismo norte-americano e práticas xenófobas européias.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
31
A revolução islâmica no Irã produziu uma cosmovisão da política sob a
fé antagonizando à modernidade ocidental. Na reinterpretação proposta por
Khomeini o Irã deveria ser uma “República Islâmica” e não uma “República
Democrática Islâmica”. Onde, sob a égide da doutrina Walayat-al-faqih – a
tutela do jurista - se fundamentam reivindicações para constituição de um
Estado islâmico.
Apesar de sua mítica figura ser alvo de controvérsias entre diversos
setores da sociedade iraniana, Khomeini foi um relevante artífice do projeto
político revolucionário. Além de idealizador ele foi um dos mais engajados
realizadores da revolução com uma linguagem simples e direta que atingiu
uma ampla penetração entre as massas populares:
A relevância de Khomeini é tríplice: ele foi o maior idealizador e teórico
da Revolução Iraniana, seu principal estrategista e líder revolucionário, além de
ter sido ainda o governador que moldou a face pública do país no período
formativo pós-revolucionário. [...] Khomeini providenciou o projeto da futura
República Islâmica sob o auspício da simbologia islâmica (Demant, 2004, p.
229).
Além disso, a República dos Aiatolás28 estimulou uma ousadia política
aos grupos minoritários islâmicos em todo o planeta, aglutinando interesses
xiitas ao redor do mundo:
Foi a derrubada do regime Pahlevi no Irã, em 1979, de longe a maior de
todas as revoluções da década de 1970, e que entrara para história como
uma das grandes revoluções sociais do século XX. Era a resposta ao
programa relâmpago de modernização e industrialização (para não falar
armamentos) empreendido pelo Xá, com base em sólido apoio dos EUA e
na riqueza petrolífera do país, de valor multiplicado após 1973 pela
revolução de preços da OPEP (Hobsbawm, 2005, p. 440).
28 O termo Aiatolá significa – Sinal de Deus. No xiismo é um título concedido aos altos intérpretes da lei islâmica, em especial aqueles considerados iluminados com qualidade, autoridade e virtudes para engendrar a hermenêutica do Corão. Além disso, para os xiitas são teólogos dotados de infalibilidade moral.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
32
Obviamente, as propostas de Khomeini encontram resistências dentro
de grande parte do Irã atual, principalmente entre a juventude que não viveu
os dias revolucionários e anseia por mais liberdade em seus espaços
identitários. Ora, a força dos modelos culturais não anula os espaços próprios
de sua recepção (Chartier, 2009, p.46), outorgando tensões crescentes entre
a norma e a conduta, entre o discurso e o vivido.
Se a história é um profeta com o olhar voltado para traz, a fim de dizer
o que é e o que pode ser, então faz-se oportuno observar valores e propostas
do governo islâmico defendido por um interlocutor que se aproxima do Brasil
e América Latina, com relevante consistência, como faz o Irã. Uma presença
crescente que faz parte de uma estratégia dupla: angariar apoio diante das
pressões internacionais ao seu projeto nuclear; e, concomitantemente,
sedimentar a natureza universalista do governo islâmico insuflando projetos
islamizadores na latinoamerica.
Apreender para compartilhar vivências e aspirações, uma vez que
ambos - xiismo e ocidente - precisam tecer uma democracia social com
amplos espaços para a diversidade cultural preconizada no livre arbítrio
outorgado pelo Criador. Até porque, há caminhos que aos olhos dos homens
parecem direitos, mas o seu fim são caminhos de morte (Pv. 10:25).
1. . O governo islâmico no Irã: tradição, revolução e universalismo
O paradigma khomeinista é a base teórica da República Islâmica
iraniana, portanto, conhecê-lo é fundamental para compreensão nítida de
seus pressupostos constitutivos. O Irã, que ocupa 1,6 milhão de km² no
sudoeste da Ásia, está situado numa zona de passagem privilegiada entre o
Médio Oriente, a Ásia Central e o subcontinente indiano. Sua posição
geográfica permite o controle da passagem de navios petroleiros pelo Estreito
de Ormuz, região estratégica para o transporte de petróleo pelo Golfo
Pérsico.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
33
Importante ator político na região, com milênios de história, possui
mais de 77 milhões de habitantes (2009) que abarca uma diversidade de
grupos étnicos, cuja maioria é xiita29 (cerca de 90%) e um conjunto de
línguas associadas ao farsi (cerca de 75%).
Antes de ser denominado Irã pelo Xá Reza Pahlevi (primeiro Xá
Pahlevi, 1925), a região era conhecida como Pérsia. Nomenclatura cunhada
por Ciro30 para o seu vasto império que abarcava todo o Mediterrâneo oriental
(Kinzer, 2004, p. 36), por ter-se expandido a partir da cidade de Pars. Após as
conquistas de Ciro (o Grande, 539 AC) a dinastia dos Aquemênidas31 foi
consolidando o seu domínio, e, com Dário I, chegou a controlar mais de 5
milhões de Km2. As invasões árabes por volta de 630 introduziram o Islã no
Irã, mas apenas em 1502 a dinastia Safávida32 implementou o xiismo como
religião oficial. Buscava antagonizar grupos sunitas rivais (Hourani, 2005).
29 O termo xiita deriva da palavra árabe “Shi´a” que significa “partidário” ou “façção”. O desacordo, entre sunitas e xiitas, emana da sucessão de Maomé quando o partido de Ali Ibn Abi Talib (doravante citado apenas como Ali Talib) insistia na linha sucessória hereditária (ele era genro, primo e sobrinho de Maomé) alegando a necessidade uma pureza profética; um outro grupo insistia que qualquer coraixita (tribo árabe do profeta) poderia suceder Maomé. Ali Talib se tornou o quarto califa e governou enfraquecido com disputas internas até ser assassinado por um caridita em Najaf. O coraixita Mu´awiya tomou o poder e assassinou o filho mais velho de Ali, Hassam. Yazid, filho de Muawiya continuou no poder após a morte do pai, sendo interpretado como o figura do mal pelos seguidores do partido (SHIA) de Ali: os shi´itas ou xiitas. Em 680 DC o filho mais novo de Ali Talib, Hussein, enfrentou o usurpador Yazid e foi massacrado. O massacre inspirou o xiismo a jamais retroceder diante da causa justa de Talib. Segundo os xiitas Maomé determinou a continuidade do poder à pessoas da sua família, a “ahl-al-bait”. 30 Ciro II, o Grande - Rei da Pérsia e criador do Império Aquemênida (? - 529 AC). Sendo governador de uma província se junta aos súditos do seu avô, que se revoltam, e conquista Ecbátana - atual Hamadam (554 AC), capital da Média. Instala a sua capital em Paságarda e empreende uma série de campanhas vitoriosas. Em 546 AC derrota Creso, rei da Lídia, incorpora as suas possessões juntamente com as colônias gregas da Jónia. Entre 545 e 539 AC submete ao seu poder numerosos territórios orientais, e em 539 AC conquista a Babilônia com o que obtém o controle da Mesopotâmia, da Síria e da Palestina. 31 Célebre dinastia de soberanos persas que governou entre os séculos VII e IV AC sendo assim chamada pelo nome de seu fundador, Aquêmenes. Sua relevância inicia-se com Ciro ao fundar o império persa, assinalando a supremacia dos indo-europeus sobre a região do Oriente Próximo. O mais famoso Aqueménidas foi Dario (521-486 AC), que fundou Persépolis e penetrou na Macedônia em 513 AC. O Estado aquemênida extinguiu-se no século IV AC quando Alexandre Magno, rei dos macedônios, derrotou o último. 32 Dinastia iniciada em 1501 e que perdurou até 1722. O Estado safávida é um dos acontecimentos mais importantes da história do Irã Moderno. Tratava-se de uma época áurea da sua história política, cultural e religiosa, marcada principalmente pela introdução do xiismo no ambiente cultural persa.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
34
O Irã não é um país árabe33, antes, é um país Persa governado desde
1979 pelos xiitas de tendência duodecimista que aplicam o Corão
rigorosamente sobre a vida econômica, social e política do país. O mundo
islâmico, longe da homogeneidade,34 encontra no viés religioso uma busca
pela restauração da sua supremacia perdida e um ativo identitário
(Armstrong, 2001b, p. 128). Ressentimentos que geram radicalismos.
O Irã quer aumentar sua influência na América Latina, tanto para fugir das
sanções impostas nas tensões nucleares, como para expandir seu
universalismo religioso. Por um lado, não quer depender apenas do petróleo
e está buscando novos mercados para seus produtos, e, por outro, quer
irradiar apoio aos projetos islamizadores que propiciam ativos
políticoeconômicos. Mas, o movimento tem alcance mundial. Em todo o
mundo várias minorias islâmicas passaram a olhar a Revolução Iraniana
como uma real possibilidade política. Ela descortinou o xiismo duodécimo35
para o Ocidente como um movimento sóciorreligioso com uma expressão
política própria e uma visão singular da modernidade. A realidade nuclear
aguça expectativas tanto nas minorias xiitas estacionadas na periferia do
mundo capitalista, como dos países concorrentes na região.
33 Contrariando o sendo comum no Ocidente o Islã não pode ser resumido ao conceito de Arábia, pois os árabes são minoritários no mundo islâmico contemporâneo. Embora o árabe seja o idioma de seu livro sagrado, o país com maior população muçulmana do mundo é a Indonésia (210 milhões de muçulmanos). 34 Tendo em vista os séculos VII a X no Oriente Próximo pode-se até contemplar uma relativa unidade, mas no mundo contemporâneo isso se desfaz. Atualmente impera um plural de “Islãs” com suas derivações locais, cada qual vivendo sob as conveniências de suas próprias convicções políticas e sociais, embora reivindiquem o Corão como livro de princípios e procurem sustentar práticas religiosas comuns: a obrigatoriedade de peregrinação a Meca, as cinco orações diárias e a proclamação pública da fé islâmica. 35 � Husseim foi o terceiro Iman xiita. De sua família saiu um total de doze Imans que foram martirizados com exceção do último que sobrenaturalmente desapareceu do mundo no século IX. Acredita-se que voltará no fim dos tempos como Al-Mahdi (o messias); tal advento é visto pelo xiismo como a redenção das sociedades humanas, pois o Iman oculto será a luz da justiça para um mundo corrompido (Demant, 2004, p. 51). Nem todos os xiitas são duodecimanos; os Zaydistas seguem o Iman Zayd al-shahid (não limitam o número de Iman a doze) e os Ismalitas seguem o Iman Ismail Ibn Yafar, filho do sexto Iman Yafar al-Sadiq.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
35
Ahmadinejad, presidente iraniano desde 2005, busca novos parceiros
comerciais em regiões antes ignoradas. O Brasil, que possui uma grande
quantidade de muçulmanos é visto como um estratégico parceiro de negócios
e possível mediador com o Ocidente. Entre 2007 e 2010 o Irã aumentou sua
presença econômica e diplomática na América Latina, com o anúncio de
abertura de escritórios comerciais e embaixadas no Chile, Colômbia,
Equador, Nicarágua, Bolívia e Uruguai. O foco da política externa do Irã
mudou da África para a América Latina, com uma impressionante penetração
política e econômica no continente em apenas três anos. O comércio entre
Brasil e Irã gira em torno de US$ 2 bilhões por ano, além da Petrobras operar
no país.
Venezuela e Cuba foram, junto com a Síria, os únicos três países que
apoiavam o programa nuclear iraniano durante uma votação na Agência
Internacional de Energia Atômica da Organização das Nações Unidas, em
2006. Ahmadinejad e Chavez defendem a formação de um eixo
antiamericano36 definido por Chavez como G-2. Bilhões de dólares iranianos
em ajuda e assistência financiam projetos sociais na América Latina.
Durante a visita do ministro do Exterior brasileiro, Celso Amorim ao Irã,
em novembro de 2008, seu homólogo iraniano Manouchehr Mottaki disse que
"o Irã merece maior prioridade na política estrangeira da América do Sul e
que o Brasil está em uma posição privilegiada para isso". O Brasil tem o Irã
como prioridade em política externa o que desafia a hegemonia americana na
região37.
Não se pode confundir o sentido de antiamericanismo para países da
América Latina e para o xiismo iraniano. Os signos são distintos apesar da 36 Ahmadinejad fez três viagens diplomáticas à America Latina buscando alianças nos "países revolucionários". Ele visitou Venezuela, Nicarágua, Equador e Bolívia. Ele também hospedou os presidentes Chávez, Ortega, Correa e Morales no Irã. Durante a Conferência Internacional sobre a América realizada em Teerã, em fevereiro de 2007, o ministro das Relações Exteriores anunciou a abertura de embaixadas no Chile, Colômbia, Equador, Nicarágua e Uruguai, e um escritório representativo na Bolívia.
37 Conforme disponível em:<http://noticias.uol.com.br/bbc/2010/05/14/ao-visitar-ira-brasil-desafia-politica-externa-dos-eua-diz-financial-times.jhtm>. Acesso em 14 mai 2010.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
36
semelhança nos discursos. A história recente da revolução xiita nos lembra
que a luta anti-imperialista – para Khomeini e seguidores - não é econômica,
antes, é islâmica. Não se luta contra o imperialismo para erradicar a pobreza
e/ou alienação socioeconômica, mas, principalmente, para fundamentar um
governo islâmico que preconize o xiismo como centralidade do cotidiano
politicossocial.
1.a) Xiitas e a Sha´ria.
O Islã é, sobretudo, um fenômeno histórico, cultural e social muito
complexo e tão abrangente que definitivamente não pode resumir-se numa
simples fórmula religiosa ou política (Merad, 1988, p. 15). Faz-se necessário
observá-lo na amplitude de sua história cultural, com seus processos sociais
e políticos que conectam o passado e o presente materializando suas
tradições, seus sistemas de valores e as suas formas institucionais próprias
(Hunt, 2001, p. 6).
Tais representatividades históricas, como a dialética da produção
simbólica da teologia política xiita38, muito tem a contribuir na aclaração da
compreensão ocidental tão comumente reducionista. Apesar do xiismo
representar apenas 15% do mundo muçulmano (o sunismo39 representa
38 O modelo de teologia política proposto por Gilvan V. Silva é compatível para o xiismo: “a concepção de que o regime político reproduz em alguma medida o que ocorre nas esferas celestes [ou sobrenaturais] dado aos homens por intermédio das potestades sobrenaturais e que a legitimidade do governante é sobrenatural” (Silva, 2003, p. 103). O iman (líder) adquiriu algumas características semidivinas, podendo mobilizar energias políticas incomuns, tanto em seus seguidores como em seus rituais clericais. O próprio xiismo popular atribui aos imans poderes semimágicos e os descrevem com atributos relativamente sobrenaturais, ora profética ora magicamente. 39 Sunitas é a denominação dada pelo muçulmanos àqueles que seguem “a Sunna – Literalmente significa: o caminho trilhado”, que contem os gestos e pronunciamentos de Maomé configurando seus costumes e hábitos religiosos. A Sunna é por conseguinte cultuada e utilizada para resolver os casos dúbios, não considerados pelo Corão. Os sunitas negam aos descendentes do quarto califa, Ali Talib, o direito ao poder político, opondo-se nesse particular aos xiitas. Eles veneram os companheiros do profeta Maomé e seus seguidores, mormente o ensino da tradição (hadices e Sunna) , posicionando a Sunna, não raro, no mesmo nível do Corão.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
37
85%), a sua fervorosa crença e seu projeto político peculiar são motivos de
atenção dentro do universo islâmico e fora dele.
Desde o início as escolas de pensamento (xiitas e sunitas) viviam em
tensão, também, devido ao cotidiano dos povos conquistados, pois a
expansão do Islã trouxe um confronto com os costumes que vigoravam nos
novos territórios. Para defender a unidade da religião desenvolveu-se a fiqh,
uma técnica semi-jurídica de interpretação das fontes religiosas cuja precípua
função era dirimir tensões no cotidiano (social e religioso):
Uma vez estabelecidos e aceitos esses princípios, era possível tentar relacionar
o conjunto de leis e preceitos morais com eles. Esse processo de pensamento
era conhecido como fiqh [e formava jurisprudência], e o produto dele acabou se
chamando Sha´ria (Hourani, 2005, p. 84).
A Sha´ria40 (a saber, “o caminho por excelência”) é, portanto, uma
tentativa por esforço humano de prescrever detalhadamente o estilo de vida
que aglutinasse as orientações do Corão e do Hadith (ou hadice). Os hadices
são muito importantes na tradição islâmica, pois derivam do estudo do
comportamento do profeta Maomé:41
O estudo do comportamento que havia tido o profeta Maomé nas múltiplas
circunstâncias de sua vida foi de particular valor para iluminar o julgamento dos
doutores da lei. Esses hadiths, ou hadices, completam o Corão e fundamentam
a tradição ortodoxa. Foram recolhidos, discutidos, verificados e interpretados
graças a considerável esforço dos historiadores islâmicos. Por certo as
necessidades do sagrado restringiam muitas vezes o espírito crítico (Lacoste,
1991, p. 218).
40 �Sha´ria significa: o rumo para uma fonte; Trata-se do Código Legal islâmico que estabelece regras para diversos aspectos da vida cotidiana. Baseada no Corão, na Sunna e no Hadice (tradições dos ensinamentos e ações do profeta não encontradas no Corão), a Sha´ria estabelece punições - e diretrizes - para diversos crimes comuns e questões religiosas; constituindo-se, portanto, em uma normatização da vida social. 41 � A pronuncia correta é Mohammad, no entanto, utilizaremos o vocábulo Maomé pela sua generalização latina.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
38
A história detém um lugar preponderante na cultura islâmica, ela é o
ambiente onde o sagrado se materializa. No Islã a história homologa a fé. Ela
é politizada e politizante, nada menos que a arena do sagrado. Por isso, a
Sha´ria normatiza a vida humana sob os desígnios do sagrado definindo os
atos de culto, relacionamentos, profissões de fé, abarcando todas as atitudes
do fiel para com Deus e o próximo (Hourani, 2005, p. 173).
No século XX Ruhullah Khomeini defende a personalização destas
técnicas, argumentando que se um jurista qualificado engendra fidedignas
interpretações dos textos coranistas, tal jurista é denominado “faqih”, a
encarnação da revelação - e exegese - escrita (fiqh). No entanto, os ditames
do livro sagrado eram por vezes obscuros e contraditórios” (Demant, 2004, p.
46).
As interpretações, e suas aplicabilidades sócio-políticas no governo
islâmico, são para o xiismo uma manifestação do sagrado também
carregadas “[...] de potência, de ação criadora, que é colocada em movimento
para produzir a realidade e garantir sua perpetuação” (Silva, 2003, p. 100).
1.b) Khomeini e a perspectiva xiita sob o conceito de revolução.
Atualmente ampliam-se as investigações científicas sobre a
congruência entre o político e o sagrado principalmente ressaltando as
vicissitudes do saber local, um saber que se refere a universos significativos
próprios e às perspectivas inerentes que lhes conferem suas singularidades
(Geertz, 2002, p. 26). Sem deter o olhar na superfície das coisas, precisa-se
historicizar as relações fundamentais, na sociedade xiita, entre o espiritual e o
temporal; tratando-os como um fenômeno histórico que preconiza a inflexão
do espiritual sobre o social e o político. Essa foi uma premissa do ineditismo
da revolução iraniana face às revoluções tradicionais: o conceito de revolução
está inextrincavelmente ligado à noção de que o curso da História começa
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
39
subitamente de um novo rumo, de que uma História inteiramente nova
(Arendt, 1990, p.23).
Desta forma a ideia de revolução não é apenas uma revolta ou
sublevação, mas uma consciência do novo, da ruptura com o anterior,
pautada pela busca da liberdade. Acima de uma insurreição, a revolução se
materializa na instituição do novo que reivindica liberdade para se consolidar,
no caso iraniano: reivindica o governo islâmico sob a égide do escrituralismo
governamental, isto é, a submissão de todas as demandas governamentais à
exegese xiita do Corão. A revolução, portanto, concatena a ideia de ruptura
com a ordem secular vigente e o compromisso com o novo libertário que
efetiva consolidações revolucionárias. Arendt enfatiza que a violência social é
um identificador menos adequado dos movimentos revolucionários do que as
mudanças políticas:
Todos esses fenômenos [mudanças políticas, violência, transformação social,
imaginário revolucionário de um novo começo] têm em comum com a revolução
o fato de que foram concretizados através de violência, e essa é a razão pela
qual eles são, com tanta frequência, confundidos com ela. Mas a violência não é
mais adequada para descrever o fenômenos das revoluções que a mudança;
somente onde ocorrer mudança, no sentido de um novo princípio, onde a
violência for utilizada para constituir uma forma de governo completamente
diferente, para dar origem à formação de um novo corpo político, onde a
libertação de opressão almeje, pelo menos, a constituição da liberdade, é que
poderemos falar de revolução (Arendt, 1990, p. 28).
No sentido moderno de se compreender uma revolução (Arendt, 1990,
p. 34), a Revolução Iraniana engendra a implementação da fé que emancipa
a comunidade islâmica de ativos corruptores, tal como, a cultura ocidental.
Seus atores sociais são convictos de que a predominância dos significados
religiosos deriva de um governo reconfigurado sob a égide xiita.
Na formação discursiva de Khomeini o conceito de teocracia tradicional
é incompatível com a teoria da teocracia constitucional do aiatolá, pois no
modelo tradicional, caracteriza-se uma forma de governo cujos dirigentes
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
40
consideram-se designados por Deus para representá-lo na terra. Segundo o
governo islâmico Khomeinista, a fórmula tradicional onde o chefe político
mantinha uma relação privada particular com o mundo divino, e por ele é
legitimado sobrenaturalmente (Silva, 2003, p. 103) é herética. A sacralização
da realeza, ou do governante, caracteriza a shirk (idolatria). Khomeini
abomina a monarquia.
O paradigma político de Khomeini compreende o sagrado entendido
como um espaço no qual se revela a realidade fundamental, ontológica e
transcendental dos seres, preconizando a soberania da escritura sobre a
governabilidade, em detrimento da figura mítica do líder, a priori, qualificada
como servo do sagrado, todavia, jamais uma figura sagrada. Sob um
fundamentalismo religioso a revolução substituiu o velho regime imperialista,
com notório engajamento popular (Hobsbawm, 2005, p. 442), compondo uma
política estatal permeada de conexões entre política e religião.
2. Fundamentalismos ocidentalistas: representações do orientalismo.
Para evitarmos a imprecisão no que tange ao tema fundamentalismo, é
importante lembrar que o termo significa: “tornar aos fundamentos” ou
“invocar os alicerces”. Comumente se compreende fundamentalismo como
uma ação armada eivada de religiosidade e ocasionalmente violenta. E o pior,
se atribui a esta prática signos puramente islâmicos. Armstrong lembra que “o
fundamentalismo é um fato global e em toda religião importante tem surgido
como resposta aos problemas da nossa modernidade” (Armstrong, 2001b, p.
220). Obviamente, há fundamentalismos no judaísmo, no cristianismo, no
hinduísmo, no budismo e até no confucionismo.
O fundamentalismo é um expressão política que contém sementes de
utopia em seu interior, por isso tantas religiões abrigam em seu seio embriões
de uma fundamentalização inerte, mas nem todas na mesma quantidade ou
intensidade. As crises e decepções com as diferentes formas, ou
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
41
intensidades, da invasão moderna gera condições propícias para o
fundamentalismo. Khomeini vaticinava a volta aos “fundamentos” do xiismo
medinense.
O radicalismo islâmico busca envolver inteiramente o fiel na
materialização de sua fé através das transformações políticas sob a égide
do simbolismo radicalista. O poder do simbólico religioso quando
institucionalizado por um conjunto sistemático de doutrinas e perspectivas
teológicas interdependentes configura e norteia a visão de mundo de um
homem politizado pela sua fé (Bourdieu, 1996, p.105).
Para um fundamentalista o sacrifício é um sinal da dedicação à Deus, e
esta, por sua vez, um fundamento da prosperidade islâmica. Said Qutb, um
dos mestres teóricos de Khomeini, afirmava: “A miséria do mundo muçulmano
é o resultado dos muçulmanos terem se esquecido de Deus!”. Tal como a
perspectiva de Sifrônio (patriarca de Jerusalém na rendição da cidade aos
muçulmanos em 638 DC) quando vaticinava que a queda da cidade santa
decorria da punição divina pelos pecados dos cristãos em sua época.
O fundamentalismo islâmico é um produto antimoderno da
modernidade (Demant, 2004, p.319). O Oriente não sente apenas frustração
em relação ao desenvolvimento do Ocidente, mas também um tipo de relação
de desejo, um desejo pelos avanços da modernidade. Ao contemplar tais
avanços uma parte do mundo islâmico enseja incorporá-los sem perder a
proeminência da cultura religiosa na sociedade. No entanto, a própria
complexidade da civilização ocidental é antípoda de valores inerentes à
espiritualidade islâmica. Essa relação de frustração/desejo, sufocada e
desfigurada, alimenta um sentimento conflitante que muitas vezes se traduz
em aversão e repugnância aos signos da modernidade. Note-se a ampla
apropriação que simpatizantes do Hezbollah e do Hamas – também na
América do Sul e Latina – fazem do pensamento de ocidentalista de
Khomeini. O xiita, fundamentalista, sabe que apenas no governo islâmico sua
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
42
fé será plena, logo, todas formas de governo laicas são obstáculos a sua
expressão do sagrado (Khomeini, 2004 [1971], p. 73).
O ocidente é visto aos olhos de seus inimigos por lentes que ele
próprio teceu, isto é, ao tecer o oriente, percebe-se que o rosto formado é o
seu próprio (Said, 1990). Não é uma tarefa fácil definir o contexto histórico
que insufla o radicalismo, pois há relações e sobreposições demais para se
estabelecer uma coerência perfeita (O capitalismo globalizante, a fé cega no
mercado, as grandes cidades e suas dissoluções, a especialização do
conhecimento, a desfiguração da coletividade, as liberdades civis e o
individualismo laicizante). É um embate de representações sociais, onde o
sentimento e o pensamento assumem o lugar do próprio objeto (Bourdieu,
1996).
O historiador descobre os traços culturais pela leitura que faz dos
símbolos, temas, signos e suas representações sociais. As representações
sociais são produzidas pelas interações e comunicações discursivas no
interior dos grupos sociais, nesse sentido a noção de representação social
nos remete a: “[...] um conjunto de conceitos, afirmações e explicações
originadas no cotidiano, no curso das comunicações interindividuais”
(Moscovici, 1976, p.181).
O conceito de representação ocupa uma posição cada vez mais crucial
no pensamento político moderno; “uma teoria do simbólico, uma vez que o
objeto ausente é reapresentado à consciência por intermédio de uma imagem
ou símbolo” (Falcon, 2000, p.46). A representação é uma mediação da
realidade - ou do conhecimento desta realidade - agindo como uma força
reguladora da vida coletiva, definindo lugares e hierarquias, direitos e
deveres, valores e símbolos. “[...] um objeto construído no e pelo discurso -
objetos históricos e mutáveis -, logo um objeto distante, portanto, de qualquer
universalidade ou validade intrínseca” (Cardoso, 2000, p. 12). A
representação assume o lugar do sentimento, ou do objeto. Permeia e
regulamenta o cotidiano, as delimitações sociais e de gênero, os aparelhos
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
43
políticos e suas representações, e as diversas questões de valores laicos ou
religiosos.
Sob um conjunto de imagens e relações de imagens que articulam
representações do mundo social com o próprio mundo social. A perspectiva
weberiana no estudo científico da religião salienta que a unidade básica do
social são os indivíduos. Diante do desencantamento do mundo os indivíduos
engendram uma racionalização crescente penetrando em todas as esferas da
vida, entre as quais: a religião e a política. A imposição integral da
interpretação unilateral do Corão catalisa o ressentimento contra o avanço
ocidental no mundo islâmico, enaltecendo um forte sentimento vingativo que
alimenta um xenofobismo crescente e, principalmente, a convicção entre os
radicais de que a ruína ocidental é o ativo condicionante da paz universal
(Meddeb, 2003, p. 11).
Todavia, esse radicalismo não é privilégio do Islã. Voltaire lembra o
fanatismo como um realidade presente na fé católica e Mann relata o excesso
do espírito prometéico nazista como a ruína alemã. As próprias contradições
entre os princípios e a práticas ocidentais aguçam a rivalidade com o mundo
islâmico:
[...] O não-reconhecimento do Islã pelo Ocidente como representante de
alteridade interior; a maneira de encurralá-lo no estatuto do excluído; o modo
pelo qual o Ocidente renega seus próprios princípios desde que o interesse o
reclame; e, enfim, a maneira que tem o ocidental (nos dias atuais na forma do
americano) de exercer impunemente sua hegemonia segundo a política de dois
pesos duas medidas que alimenta a revolta do islamismo (Meddeb, 2003, p.
12,13).
A islamização da sociedade preconiza concepções individualizantes
incorporadas em símbolos que formatam valores e procedimentos na vida
pública e privada com tal intensidade que o fiel é possuído pela religiosidade
(Geertz, 2004, p. 105) a tal ponto que a interação do binômio
pertencimento/missão é o ativo primário de sua existência. Ele se vê
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
44
pertencendo a fé (sua visão de mundo) cujo ethos é a materialização desta,
“em consonância com o próprio contexto cultural de sua época, a fim de que
tenhamos a produção de uma instituição social e não uma experiência
efêmera circunscrita a um círculo limitado” (Silva, 2003, p. 106). Sob a égide
do escrituralismo governamental o sujeito islâmico se vê pensado e não
pensador.
Por razões difíceis de entender para um cientista social orientado para
organizações, o mundo muçulmano é saturado por reverência pela variante da
alta cultura do Islã: igualitária, escrituralista, puritana e nomocrática. Esse ethos
parece ter vida e autoridade próprias, e não é visivelmente dependente de
qualquer corporificação institucional (Gellner, 1997, p. 190).
O universalismo xiita encontra ressonância nas minorias xiitas pelo
mundo. A revolução xiita iraniana foi para muitos um resgate da dignidade
islâmica. Uma afirmação do direito de ser moderno em outros formatos que
não o ocidental. A visão política e religiosa de Khomeini norteia paradigmas
políticos no Irã e incita expectativas nos grupos minoritários xiitas em todo o
planeta através da configuração de um sistema político universalista. A
revolução foi uma mensagem clara aos governos árabes apelando para a
justiça social, o nacionalismo e o sentimento de lealdade islâmica:
A revolução islâmica no Irã de 1978-1979, ainda que ocorresse num país não-
árabe, evocou grandes esperanças entre as massas do mundo árabe e,
concomitante, instilou pânico entre os regimes existentes. Por um lado, os
limites do potencial emancipador daquela revolução não ficaram logo claros. A
face repressiva do regime de Khomeini levou tempo até se manifestar. [...] a
revolução, ainda que atípica por sua cor religiosa foi tida como progressista.
Logo os novos líderes do Irã incitaram os muçulmanos no mundo árabe a depor
seus governos ´traiçoeiros´ e a instaurar regimes autenticamente islâmicos
(Demant, 2004, p. 118).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
45
3. Paradigmas para um governo islâmico na perspectiva de Khomeini.
O Aiatolá Khomeini era quase um denominador comum a todos os
setores que antagonizavam o imperialismo do Xá, desde as massas
tradicionais aos mais secularizados, e até os setores mais religiosos. Suas
ideias engendraram pontos inéditos na história política iraniana, tais como: A
chamada política para o ativismo político clerical; a tutela de um guardião
configurando um aparato político norteado pelo escrituralismo governamental
(Khomeini, 1981, p. 27). Além disso, Khomeini promoveu um tipo de
despersonificação: a lei (o Corão) tornou-se o que mais importava e não
quem a implementaria. Assim a centralidade da lei religiosa substituiu a da
pessoa religiosa.
3.a) representações políticas antiocidentais: uma análise dos
discursos
Chartier argumenta que: “o saber histórico pode contribuir para
dissipar as ilusões e os desconhecimentos que durante longo tempo
desorientaram as memórias coletivas!” (Chartier, 2009, p. 24). Assim, a
história recente faz-se muito útil na construção de um conhecimento sob a
égide da racionalidade contemporânea. A história do presente dissipa ilusões
de ótica que a distância alimenta nos historiadores.42
Os discursos, seus componentes e representações, são importantes
objetos da história cultural, principalmente para salientar as formas culturais
que se quer legitimar. O historiador desvela os padrões culturais contidos em
textos e imagens que, como espelhos, forjam regras culturais a refletir os
problemas históricos de seu tempo (Burke, 2005, p. 19). Nos discursos se
refletem o alcance dos papéis sociais pré-estabelecidos nas diversas esferas 42 � “[...] a história do presente é um bom remédio contra a racionalização a ´posteriori´, contra as ilusões de ótica que a distância e o afastamento podem gerar” (Remond, 1996, p. 209).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
46
da sociedade (Khomeini, 2004 [1971], p. 24), e a naturalização das
representações que desempenham um papel crucial no ajuste do sujeito em
seu meio social (Chartier, 1990:17).
Cabe lembrar que a palavra texto provém do verbo latino textus, que quer dizer
tecer. Da mesma forma que um tecido não é um amontoado desorganizado de
fios, o texto não é um amontoado de frases, [...] Dar destaque à noção de que o
texto é um objeto histórico leva a preocupar-se primordialmente com a forma
ideológica de que ele é expresso, com as relações polêmicas que, numa
sociedade dividida em classes, estão na base da constituição das diferentes
formações discursivas (Fiorin, 2002, p. 40).
Os discursos são uma dispersão, isto é, são formados por elementos
que não estão ligados por nenhum princípio de unidade, no entanto, estão
sob um ritual discursivo que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo
tempo, propriedades singulares e papéis pré-estabelecidos. Cabe, portanto, a
análise do discurso descrever esta dispersão sob um ritual com propriedades
e papéis peculiares na teatrologia do político, buscando notar as regras43 que
regem a formação discursiva (Brandão, 2002, p. 28).
Cada homem aprende a ver o mundo pelos discursos que assimila,
portanto, produzir discursos é produzir mediações, isto é, interpretações ou
pré-interpretações do mundo e seus contextos:
[...] o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais, que determinam
a vida concreta dos indivíduos nas condições do meio social. O discurso não é,
pois, a expressão da consciência, mas a consciência é formada pelo conjunto
dos discursos interiorizados pelo indivíduo ao longo de sua vida (Fiorin, 2002, p.
35).
43 � Para Foucault, as regras geralmente são: Os objetos que aparecem, coexistem e se transformam num espaço comum discursivo; Os diferentes tipos de enunciação que permeiam um discurso e precisam ser identificados; Os conceitos em suas formas de aparecimento e transformação num espaço discursivo estão relacionados em um sistema comum de construção discursiva; Os temas e teorias no discurso formam um sistema de relações entre diversas estratégias postuladas para dar base à formação discursiva, operando até de forma a excluir outros discursos, ou partes destes outros temas ou teorias.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
47
O discurso precisa ser analisado como um jogo estratégico de ação e
reação, uma luta de dominação e esquiva.
[...] O discurso não pode mais ser analisado simplesmente sob seu aspecto
linguístico, mas como jogo estratégico de ação e reação, de pergunta e de
resposta, de dominação e de esquiva, e também como luta. O discurso é o
espaço em que saber e poder se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar,
a partir de um direito reconhecido institucionalmente. Esse discurso, que passa
por verdadeiro, que veicula saber (o saber institucional) é gerador de poder
(Brandão, 2002, p. 31).
Há uma luta de representações no embate ocidente e xiismo. A mente
ocidental valoriza a fragmentação da sociedade e do ser humano, sob a
divisão do trabalho e a competição de mercado (Buruma; Margalit, 2006, p.
81). Já a visão xiita preconiza a valorização da mente não fragmentada,
organicamente entrelaçada com a sociedade material, onde a fé é o quinto
elemento da natureza. Para o fiel, lutar e morrer pela sua crença não é
fanatismo, antes, a verdadeira racionalidade integral. A sociedade moderna
ocidental, secular e liberal, é que representa – para os radicais - o algoz do
islamismo.
Na perspectiva khomeinista, o xiita existe para cumprir uma missão
divina na política (Khomeini, 1981 [1941], p. 170), pois a mente ocidental está
cauterizada pelo materialismo consumista, por isso não entende a idéia de
sociedade governada por objetivos espirituais islâmicos. A composição da
religiosidade já não se satisfaz apenas com a subjetividade mística particular,
ela alça vôos sobre territórios de uma história cultural com a mesma
intensidade de seu messianismo. Khomeini objetivava uma Teerã
organicamente islamizada que resplandecesse a justiça islâmica para o
mundo.
Os dis cursos de Ruhullah Khomeini afirmam que o tema do governo
islâmico – e sua premissa sobre a tutela do jurista - é pouco explicitado
devido às circunstâncias sociais existentes entre os muçulmanos em geral e
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
48
as precárias condições de autonomia das instituições religiosas islâmicas em
particular. Para ele, os judeus e os ocidentais estão conluiados globalmente
arrefecendo a soberania islâmica (Khomeini, 2004 [1971], p. 20), opondo-se à
conjunção do sagrado e do político:
Estes novos grupos começaram sua penetração imperialista nos países
muçulmanos, há aproximadamente trezentos anos, e trabalharam pela
liquidação do Islã até as últimas consequências. Seu objetivo não era alienar as
massas do Islã com a intenção de promover o cristianismo entre eles, porque na
realidade, os imperialistas não possuem crenças religiosas, nem cristãs, nem
islâmicas (Khomeini, 2004 [1971], p. 19).
Geertz enfatiza que a religião é um fato social (Geertz, 2001, p. 150)
que mesmo propondo-se supraterrena, no entanto, tem-se aproximado cada
dia mais das questões terrenas: política, sociedade, economia e cotidiano.
Essa inflexão do religioso sobre a ordem do cotidiano conforma mentes e
corações ao simbolismo xiita. O acelerado processo de secularização que
ocorreu no Oriente Médio, nas décadas de 1950 a 1970 não foi absorvido
pela grande maioria da população que alijada da inclusão social e política
concede aos grupos religiosos ortodoxos a missão de tutoreá-los.
A geração após a revolução iraniana questiona a dominação religiosa,
como se vê nos sangrentos protestos contra a reeleição do atual presidente,
duramente reprimidos desde Julho de 2009. A retaliação levou a milhares de
prisões, mortes e centenas de desaparecidos. Em Maio de 2010, um
jornalista iraniano-canadense foi condenado a 74 chibatadas e 13 anos de
prisão para afirmar o início de "uma brutal onda de repressão" com o objetivo
de impedir protestos pelo aniversário das eleições de junho passado.
3.b) A política como arena da fé e das armas.
A revolução iraniana concretizou o processo de mudança de uma
comunidade religiosa para uma comunidade política, islamizando a
sociedade:
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
49
O Islã é o Din44 dos indivíduos militantes que confiam na verdade e na justiça. É
o Din daqueles que desejam a liberdade e a independência. [...] A visão
defeituosa sobre o Islã visa privar o Islã de seus aspectos vitais, e
revolucionários, para impedir assim que os muçulmanos possam despertar o
desejo de conquistar sua liberdade, aplicar as ordenanças dos Islã e estabelecer
um governo que os assegure a felicidade e lhes permita viver vidas dignas de
seres humanos (Khomeini, 2004 [1971], p. 20).
Em qualquer parte, o objetivo do governo islâmico é converter a fé em
projeto político unilateral, mesmo que autoritário (Hourani, 2005). Em
Khomeini, a dimensão religiosa é imprescindível para arquitetura das
identidades xiitas e efetivação do governo islâmico. Se o ocidente é corruptor
então um governo islâmico não pode estar submetido às leis ocidentais: “A
imposição de leis estrangeiras em nossa sociedade islâmica tem sido fonte
de numerosos problemas e dificuldades” (Khomeini, 2004 [1971], 25).
O racionalismo é uma crença de que a razão, e apenas a razão pode explicar o
mundo. A isso se liga a ideia de que a ciência é a única fonte de compreensão
dos fenômenos naturais. Outras fontes de conhecimento, especialmente a
religião, são descartadas pelos racionalistas como superstições (Buruma;
Margalit, 2006, p. 95).
Khomeini preconiza o envolvimento do cidadão semelhantemente ao
de um combatente militar. Isto é, caso não tenha espaço para fazer política
deve lutar em armas para alcançar seu espaço. Uma participação orgânica
(comum nos sistemas culturais onde o sagrado é partícipe do fôlego de vida
individual) cuja resistência/combate é a vitória.
As coisas têm chegado agora a tal ponto que alguns consideram as roupas de
soldado incompatíveis com a verdadeira coragem e justiça, apesar dos líderes 44 � Din, a fé ou crença, é um termo que denota compromisso ou pacto de obediência. Trata-se de um conjunto de normas, crenças e por extensão, um acordo que livremente se estabelece entre o crente e a divindade, objetivando o cumprimento das obrigações islâmicas.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
50
de nossa fé terem sido todos chefes, soldados e guerreiros. [...] O próprio Emir
dos crentes45 (a paz seja sobre ele) colocou um bendito elmo em sua cabeça,
vestiu sua cota de malha e cingiu-se da espada. O Imam Hasan46 e o senhor
dos mártires (Husseim) fizeram o mesmo. [...] Mas agora vestir roupas militares
é sinônimo de menosprezo da qualidade humana da justiça47 e se diz que não
devem se vestir de uniformes militares. Se nós vamos formar um governo
islâmico temos que fazê-lo pois com nossos mantos e turbantes; se contrário,
estaremos cometendo uma ofensa contra a decência e a justiça (Khomeini,
2004 [1971], p. 28).
Na visão do Aiatolá o verdadeiro muçulmano precisa estar “em armas”
pela implantação do governo islâmico. Para ele, o Ocidente descaracteriza o
fiel muçulmano apartando-o dos mantos militares, objetivando depreciar as
políticas islâmicas e seus processos judiciais, substituindo-os por políticas
angloeuropéias. Em qualquer lugar que o xiita estiver, ele deve realizar um
duplo serviço: refratar o ocidente corruptor e propiciar avanços para o xiismo,
principalmente, através do cenário político. Ao separar a religião e política, os
ocidentais evitariam um governo islâmico; aceitando no máximo um governo
ocidentalizado com figuras islâmicas.
Para ele, as soluções da problemática social derivam da reestruturação
do espiritual, explicitando que as vitórias islâmicas emanam do reforço da
identidade xiita:
Para solucionar a problemática social é necessário apoiar-se na fé e na moral;
adquirir poder e força material, unicamente, conquistando a natureza e o espaço
físico, não tem efeito algum em si mesmo; o poder político deve ser
complementado com a fé e equilibrado com a convicção e a moralidade do Islã, 45 � Ali Talib foi o primeiro dos doze imams dentro da crença xiita. 46 � Imam Hasan – Filho de Ali, ocupa o segundo posto na sucessão dos doze imams. Morreu envenenado no ano de 670 DC após passar a maioria de seus dias recluso em Medina. 47 � Uma premissa teológica importante é a aplicação de justiça. Quando Khomeini cita “a qualidade humana de justiça” ele está apelando ao sentido pérsico de justiça: a sabedoria religiosa que faz o indivíduo sábio aos olhos de Deus e dos homens, incluindo o equilíbrio espiritual em todos os âmbitos sociais e uma abstenção de faltas graves onde todas as práticas do fiel estão em congruência com o decoro do Corão e seus deveres cultuais.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
51
para poder servir verdadeiramente à humanidade em lugar de pô-la em perigo
(Khomeini, 2004 [1971], p. 29).
Divergindo do pressuposto cristão48 e das premissas iluministas,
Khomeini assevera que somente os ignorantes separam a religião e a
política, pois dissociar o muçulmano do ativismo político seria o caminho para
uma exploração mais segura:
Esses gritos são promovidos pelos imperialistas e seus agentes políticos, para
evitar que a crença predomine nos assuntos deste mundo e conforme a
sociedade islâmica; e, ao seu lado, querem criar um abismo entre os eruditos
islâmicos por seu lado, e as massas e aqueles que lutam pela liberdade e pela
independência de outro. Dessa maneira (eles) tem sido capazes de dominar
nosso povo e saquear nossos recursos, que é o objetivo final que sempre tem
tido (Khomeini, 2004 [1971], p. 32).
Exaltando Maomé como um político e profeta, Khomeini conclama os
clérigos a um envolvimento político nacionalista, jamais visto desde o califado
de Medina, e paradigmático nos assuntos sociais, econômicos, políticos, nas
relações internacionais e nas resistências teológicas e culturais aos governos
considerados inimigos do Islã. Entretanto, vários pensadores modernistas
islâmicos refutam a união entre religião e política. São reformistas que tentam
conciliar o Islã com a modernidade ocidental – e com a própria tradição
islâmica - antagonizando as propostas unilaterais. Em linhas gerais os
reformistas recusam a sobreposição da din (fé) com o dawla (governo),
preferindo análises e prescrições decorrentes de uma releitura histórica das
fontes sagradas e uma hermenêutica livre de fontes totalitárias. Um desses
protagonistas é Mohammad Arkoun: 48 � No cristianismo bíblico – sob a revelação do Novo Testamento que antagoniza parte da história cristã ao longo dos séculos - o temporal e o político correspondem a reinos distintos: “Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (João 18:36). E ainda, “[...] Então ele lhes disse: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
52
Influenciado pela filosofia de Derrida e Foucault. Arkoun introduz um
estruturalismo islâmico. Seu projeto visa resgatar uma Islã libertário, mais
imaginativo. Crítico da tradicional leitura “logocêntrica” das fontes, Arkoun
distingue a escrita do Corão, uma irrupção expontânea e transcendente, da sua
leitura. Portanto, não existe mais a correspondência automática entre o texto e o
significado que os fundamentalistas supõem (Demant, 2004, p. 297,298).
Obviamente, tais pensadores são estigmatizados como hereges
corruptores. A perspectiva governamental concebe apenas uma forma de
liberdade, com uma interpretação de justiça social derivada da
homogeneidade dos homens sob o simbolismo xiita. A identidade permitida e
sacralizada é aquela adequada à coerção. No entanto, a penetração dos
ideais reformistas se fazem sentir onde as políticas públicas têm fracassado,
principalmente entre os jovens que não conheceram outra forma de governo
senão a imposta pela revolução.
3.c) A necessidade de implantar um governo islâmico.
Na visão política de Khomeini não é suficiente apenas um corpo de leis
conformando a sociedade ao Corão, deve ao mesmo tempo existir um poder
executivo49 sob a direção de um jurista denodado: “Por essa razão, Deus o
Altíssimo, além de revelar um corpo de leis (a Shari´a) tem estabelecido uma
forma peculiar de governo, assim como instituições executivas e
administrativas” (Khomeini, 2004 [1971], p. 35).
49 � Os deveres e funções de um estado muçulmano xiita são quatro: Executivo (para a administração civil e militar), Legislativo, Judiciário e Cultural. O Executivo não exige um exame muito apurado; é evidente por si só, e válido em qualquer lugar do mundo. A soberania cabe a Deus, e se trata de uma custódia administrada pelo homem, para o bem-estar de todos sem exceção. O Legislativo é coranista, isto é, o Alcorão é a fonte de lei para todas as demandas espirituais bem como as temporais. O Judiciário é administrado pelo conselho de guardiães e funciona como um servidor da tutela, onde a sociedade é orientada sob a égide dos ulemás e aiatolás. E o Cultural, é um poder moderador que tutela os demais.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
53
Imam Khomeini explicita a necessidade de um governo islâmico derivar
de cinco premissas: a razão, o testemunho do profeta, a vitaliciedade das leis
islâmicas, a compreensão de que a negativa do governo islâmico é a
negativa do xiismo implicitamente e a defesa do território islâmico. A
necessidade de se instalar um governo islâmico é clara,50 haja visto que
Maomé empenhou-se não somente em legislar, mas também em aplicar as
leis e executá-las, inclusive com a proeminência de um sucessor para esse
fim:51
Um poder que aplique as leis e os vereditos emitidos pelos tribunais, permitindo
ao povo beneficiar-se das leis e das justas sentenças que derivam destes atos.
Por isso, o Islã estabeleceu um poder executivo, da mesma forma que fez as
leis. Quem ostenta este poder executivo é conhecido como Wali ami52
(Khomeini, 2004 [1971], p. 36).
A revolução dos Aiatolás preconiza um Islã legalista cujas disposições
governamentais reivindicam serem vitalícias independemente da época ou
localidade em que o Islã estiver estabelecido:53
É evidente que a necessidade de se executar a lei, requisito que levou o profeta
(sobre ele sejam as bênçãos e a paz) a criar um governo, não se limitavam à
sua época, senão que continuam existindo depois de sua partida deste mundo.
[...] os mandamentos do Corão são permanentes e devem aplicar-se até o fim
50 � “O governo do faqih é um tema que, por ele mesmo recebe aceitação imediata e necessita de pouca demonstração; qualquer um que possua um conhecimento geral das crenças e ordenanças do Islã consentirá com o princípio do governo do faqih, e aquele que tropeçar com ele, logo o reconhecerá como necessário e evidente” (Khomeini, 2004 [1971], p. 19). 51 � “Quando o profeta designou um sucessor não era com propósito de expor artigos de fé e leis, senão para aplicar a lei e executar as ordenanças de Deus (a execução e o estabelecimento das leis islâmicas)” (Khomeini, 2004 [1971], p. 35). 52 � O termo Wali Ami significa literalmente: Aquele que detém a autoridade, um espécie
de governador geral. 53 � Para Khomeini, a penalidade certa que virá sobre um xiita que não participar da implementação de um governo islâmico é ser corrompido pela anarquia e degradação da sociedade corruptora: o Ocidente.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
54
dos tempos; [...] é também necessária a formação de um governo e o
estabelecimento de órgãos administrativos e executivos.
Sem a formação de um governo e o estabelecimento de tais órgãos, para se
assegurar que, através do cumprimento das leis, todas as atividades do
indivíduo tenham lugar sob um sistema justo, prevaleceriam o caos e a anarquia
e surgiriam a corrupção social, intelectual e moral. A única forma de se evitar a
aparição da anarquia e a desordem, e proteger a sociedade da corrupção, é
formar um governo que imponha ordem em todos os assuntos da país
(Khomeini, 1981, [1971], p. 42).
Para ele, a negação do governo islâmico é uma negação da fé xiita.
Qualquer pessoa que negue a necessidade do governo islâmico nega a
universalidade, os símbolos e significados xiitas (Khomeini, 1981, p. 42). As
disposições islâmicas no terreno fiscal são para Khomeini outra evidência
proeminente da necessidade de se implantar um governo espiritualizado.
Doutra maneira, estabelecer-iam normatizações sobre os impostos para que
fim? Seja a jizya, ou o jaray, o jums e a Zakat,54 todos são impostos que
existem precípuamente para viabilizar uma efetiva governabilidade dentro da
umma55 islâmica.
A perspectiva khomeinista propõe uma espiritualização da cidadania:
cada muçulmano precisa viver como um tipo de encarnação do Corão, sob a
Sha´ria em todos os aspectos da vida humana, ficando o governo com a
obrigação de criar, e manter, condições para o desenvolvimento da
sociedade:
54 � Jizya – Imposto cobrado aos cidadãos não- muçulmanos de um Estado islâmico, em troca da proteção social que recebem do Estado. Principalmente pelo fato destes não serem obrigados a pagar a Zakat. Jaray - Imposto que se cobra por terras de uma determinada categoria agrícola. Jums - Imposto no valor de um quinto sobre a colheita agrícola e os lucros comerciais anuais. Zakat – Obrigação fundamental no Islã. Imposto sobre as classes mais ricas em favor das mais pobres, é praticado em atitude de esmolar, como símbolo da caridade. 55 � Khomeini vê a umma de uma forma universal, sem quaisquer diferenciações territoriais ou étnicas.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
55
O Islã prevê leis e instruções para todos os assuntos, orientar a criar seres
humanos virtuosos e íntegros que representem a encarnação da lei, ou seja, os
executores voluntários e instintivos da lei. [...] é impossível cumprir o dever de
executar as ordens de Deus sem haver estabelecido adequados e amplos
organismos administrativos e executivos (Khomeini, 2004 [1971], p. 39).
Sobretudo há ordenanças do Corão que apenas cumprir-se-iam num
governo islâmico, tais como: a guerra santa (jyhad), os castigos corporais e o
preço de sangue (punições sobre homicidas). Os omissos politicamente
tornam-se idólatras passivos, pois a não instalação de um governo islâmico
pressupõe a instalação de um governo infiel, afinado ou não com o
islamismo. Qualquer sistema de governo não islâmico é um kufr (opositor) e
seus governantes são um exemplo de taghut:56
[...] e nosso dever é eliminar da vida da sociedade muçulmana todo resto de kufr
e destrui-lo. Também é nosso dever criar um ambiente social favorável à
educação de indivíduos crentes e virtuosos, num ambiente que está em total
contradição com aquele produzido pelo governo dos taghut e seu poder
ilegítimo. O ambiente social criado pelos Taghut e pela sua shirk, levam
invariavelmente à corrupção, tal como vocês podem observar que acontece no
Irã: a corrupção denominada ´corrupção da terra´57 (Khomeini, 2004 [1971], p.
44).
Outro ativo fundamental para implantação de um governo islâmico é o
esfacelamento das pátrias muçulmanas. O imperialismo colonialista deixou
feridas que ainda não cicatrizaram e fomentam ódios e radicalismos:
Durante os séculos XVII e XVIII, uma hegemonia mundial europeia seria
construída com base no domínio econômico, nas instituições governamentais,
56 � Taghut – Um termo utilizado para líderes tiranos que excedem todos os limites da religião islâmica e glorificam a si próprios atribuindo para si prerrogativas divinas, ainda que implícitas. 57 � No xiismo o termo “corrupção na terra” tem um amplo espectro de significados. Inclui não somente a corrupção moral, mas também a subversão do bem público, o saque e a usurpação do bem estar geral, conspirando para derrubar uma ordem xiita já estabelecida.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
56
no poderio militar e no conhecimento profundo das comunicações. Reversões
dramáticas de poder aconteceriam. O império Otomano era o mais poderoso
estado no mundo no séc XVI; por volta de 1800, continuava a existir apenas
porque os poderes europeus não conseguiam chegar a um acordo quanto ao
que colocar em seu lugar. O Dar-al-Islã foi intimidado, explorado e degradado
pelos arrogantes ocidentais, e experimentou sua humilhação mais profunda no
séculos XIX e XX. Isso, em contrapartida, alimentou ressentimentos que ainda
estão entre nós [os ocidentais] (Fletcher, 2004, p. 165).
No século XX o imperialismo criou punhados de nações separadas
entre si sem respeitar as suas configurações culturais locais. Foi imposto não
somente um desmoronamento do bloco islâmico unificado sob os otomanos,
mas, também, um servilismo político-econômico às potências européias e
posteriormente aos Estados Unidos (pós-45). Governo títeres fracionaram a
umma islâmica, cujas populações locais foram acondicionadas em 15
pequenos estados na região do Oriente Médio.
Para assegurar a unidade da umma islâmica, para libertar a pátria islâmica da
ocupação e penetração dos imperialistas e de seus governos marionetes, é
imprescindível que estabeleçamos um governo. Para obter a unidade e a
liberdade dos povos muçulmanos, devemos destruir os governos opressores
instalados pelos imperialistas e criar um governo islâmico justo, que esteja a
serviço do povo. A formação deste governo, servirá para preservar a disciplina e
a unidade dos muçulmanos (Khomeini, 2004 [1971], p. 45).
Se aplicarmos tais premissas na América do Sul, entende-se que lutar
contra qualquer governo que não assegurasse a Shari´a para toda a
população é uma missão vital para o fiel e seu guia.58 Isto é, de Caracas às
58 � “Como podemos permanecer calados e quietos hoje em dia quando vemos um bando de traidores e usurpadores, agentes das potências estrangeiras, se apropriando da riqueza e do fruto do trabalho de centenas de milhões de muçulmanos – graças ao apoio de seus amos e pelo poder das baionetas – negando aos muçulmanos um mínimo de prosperidade?” (Khomeini, 2004 [1971] , p. 47).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
57
Malvinas, cada governo islâmico preconizaria um faqih que fortaleceria o
simbolismo xiita contra os símbolos ocidentais:
Não vemos nação ou comunidade religiosa que haja existido sem um indivíduo
responsável pelo mantimento de suas leis e instituições, isto é, um dirigente ou
líder, por isso é essencial uma pessoa assim para preservar os assuntos
religiosos e seculares. [...] Por tanto, hoje e sempre, a existência de um
possuidor de autoridade um governante que atua como administrador e
mantenedor das instituições e leis do Islã é uma necessidade. [...] um guardião
vigilante das criaturas de Deus, que guie os homem nas doutrinas, leis e
instituições do Islã; e que impeça desvios indesejáveis que os ateus e os
inimigos da religião querem introduzir nas leis e instituições islâmicas (Khomeini,
2004, [1971] , p. 49,50).
A exigência da instalação de um governo islâmico como condição para
que o xiita seja autêntico em sua crença, recrusdece a luta por um governo
islâmico a qualquer preço. Respalda-se o ocidentalismo ao se representar a
modernidade ocidental como corruptora e inimiga. O reforço das expressões
antimodernidade obsta sanciona o governo islâmico como a única alternativa
para as comunidades xiitas vivenciarem a plenitude da sua fé.
Objetivando obstar influências anti-islâmicas sobre a população, toda a
ação parlamentar (leis e projetos afins) deve ser subjugada aos preceitos
islâmicos. Os líderes religiosos arbitram as resistências ao estrangeirismo sob
qualquer forma, empreendendo uma liberdade política: “nos limites marcados
pela lei” (Art. 3º, Parágrafo 7).
Artigo 4º
Todas as leis e decretos civis, penais, financeiros, econômicos,
administrativos, culturais, militares e políticos, etc. e no que diz respeito a
recursos naturais devem basear-se em preceitos islâmicos. Este artigo tem
absoluta e universal prioridade sobre todos os outros artigos da Constituição tal
como cobre todos os decretos e regulamentos que venham a ser decididos
pelos jurisprudentes do "Conselho de Vigilância" (Irã, artigos 2º e 4º, 1979).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
58
3.d) A regência do faqih e os fuqaha no governo islâmico:
blindagem e ampliação para o poder dominante.
O Faqih é o principal pilar do poder na República Islâmica e
comandante supremo das Forças Armadas, com poderes para ordenar a
mobilização geral e declarar a guerra ou a paz59. Na tradição política, a tutela
do jurista significava uma inflexão do alto clero sobre a arena política todas as
vezes que a comunidade islâmica estiver ameaçada por forças contrárias.
Khomeini citava a presença dos clérigos em tempos de crise para defender a
soberania iraniana e proteger sua população dos abusos externos, tais como:
a crise do tabaco em 1891, a revolução constitucional de 1906 e as
resistências contra as reformas do Xá em 1963 (Kinzer, 2004, p. 140).
Nesta sacralização da política, o faqih é um vice-regente do imam
oculto (Khomeini, 2004 [1971], p. 63) sob um elemento escatológico que
escruta a governabilidade: O advento do imam oculto preconiza a
59 Artigo 110º da constituição iraniana. São deveres e responsabilidades do Líder:
1. Designar os jurisconsultos do Conselho de Vigilância. 2. Nomear a suprema autoridade judicial do País. 3. Na capacidade de comandante-chefe das forças armadas:
a) Nomear e demitir o Chefe do Estado Maior.
b) Nomear e demitir o Sepah Pasdaram (Corpo de Guardas) da Revolução Islâmica.
c) Constituir o Conselho Superior da Defesa, que consiste dos seguintes membros:
O Presidente. O Primeiro-Ministro. O Ministro da Defesa. O Chefe do Estado-Maior.
O Comandante-Geral dos Corpo de Guardas (Sepah Pasdaran) da Revolução. E dois conselheiros nomeados pelo Líder.
4. Assinar as credenciais do Presidente depois da eleição pelo povo. A competência dos candidatos à presidência que reúnem as condições citadas na presente lei deverá ser confirmada pelo Conselho de Vigilância antes das eleições e, em caso do primeiro período presidencial, pelo Líder. 5. Demitir o Presidente devido a considerações de interesse nacional, depois que tal decisão foi emitida pelo Supremo Tribunal confirmando a desobediência do Presidente às responsabilidades que oficialmente lhe competem, ou por votação da Assembleia por incompetência política do Presidente. 6. Garantir anistia aos condenados ou reduzir-lhes as penas no enquadramento dos princípios islâmicos e sob proposta prévia do Supremo Tribunal (Irã, 1979).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
59
necessidade de uma sociedade apta para sua chegada; assim, todos os
membros do governo devem congruir esforços (mentoreados pelos fuqaha)
na depuração da sociedade. Logo, o faqih se constitui num mítico líder. A
tutela do faqih revolucionou politicamente um clero60 estimulado a não
participar da política (Armstrong, 2001b, p. 231). Apesar da teoria da tutela
do jurista já ter sido discutida anteriormente por juristas xiitas e sunitas,61
Khomeini a utilizou para reconfigurar as necessidades do Estado moderno
sob uma roupagem islâmica:
Tradicionalmente o termo Walayat-al-faqih significava o cuidado que os
ulemás mais graduados deveriam ter com os órfãos, as viúvas e os
miseráveis. Os clérigos orientavam e protegiam os desvalidos. O termo
também designava a inflexão dos clérigos sobre assuntos políticos quando,
temporalmente, a sociedade islâmica estivesse ameaçada.
Posto que os fuqaha62 não são profetas, devem ser os sucessores ou delegados
dos profetas, portanto chegamos a conclusão de que o faqih é o delegado do
Mais Nobre Mensageiro (a paz seja sobre ele) e ademais, durante a ocultação
do imam (Majli), ele é o líder dos muçulmanos e chefe de toda a comunidade
(Khomeini, 2004 [1971] , p. 88).
O faqih, acompanhado de vários fuqaha, é um tutor com o dever de
aclarar o simbolismo xiita, tão ocidentalista quanto universal:
É o dever dos imams e dos fuqaha justos usar as instituições governamentais
para aplicar a lei divina, estabelecer a justa ordem islâmica. O governo em si
não representa nada exceto problemas e preocupações, mas, então, o que
podem fazer? Eles tem aceitado uma responsabilidade, uma tarefa que devem
levar ao término. O governo do faqih não é nada além do desempenho de um
dever (Khomeini, 2004 [1971], p. 66). 60 � Compelindo-o a tornar-se progressista e ativo na politização da fé, tanto como único meio de manter sua emancipação social e política, como ainda o instrumento da realização da vontade de Deus sobre a umma. 61 Ela realmente era muito pouco conhecida fora dos círculos teológicos, inclusive sendo para alguns considerada como excêntrica e até herética. 62 � Líderes sábios, versados nas doutrinas e costumes do xiismo.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
60
Logo, a doutrina no Walayat-al-faqih não está fundamentada na isolada
tutela de um jurista com poderes supremos; antes, tornar-se-á real – apenas -
pela blindagem de um círculo de sábios, consultados “democraticamente”. A
consulta ao círculo de sábios (fuqaha) cristaliza o comprometimento com o
líder supremo, algo como uma shura-al-fuqaha.63 O conselho dos guardiães (a
metade composta por ulemás), presidido pelo próprio Khomeini, conferiria as
leis do parlamento vetando-as caso não coadunassem com as normas
islâmicas.64 Além disso, o paradigma Khomeinista reforça um pressuposto
duplo: submeter-se à autoridade do faqih supremo é submeter-se ao querer
divino:
Obedecer e seguir aos que detém autoridade é também uma obrigação, eles
são, de acordo com as nossas crenças, os imams (sobre eles sejam a paz). Por
ser assim, a obediência aos seus decretos de governo é também uma forma de
obediência a Deus (Khomeini aqui está falando apenas do faqih supremo). Posto
que o Deus Todo-Poderoso nos tenha ordenado seguir ao mensageiro e aos
que detenham a autoridade, nossa obediência a eles é, atualmente, uma
expressão de obediência a Deus (Khomeini, 2004 [1971], p. 97).
A prédica do exclusivismo xiita incita o fiel a repelir os governos não-
islâmicos, pois o governo islamico normatiza demandas judiciais,.65Khomeini
exorta o cidadão muçulmano a aceitar apenas a justiça dos clérigos
islâmicos, sob pena de despropriação e maldições. Categoricamente, exorta
63 � Shura-al-fuqaha – Invocada como fundamento de uma democracia sob o islamismo, a shura é uma consulta realizada ao conselho de sábios (fuqaha) em casos de demandas legais. Na teoria política islâmica, o governador ampara-se num conselho que corrobora suas decisões. Para os xiitas modernistas é um exemplo de democracia. 64 � Foi este órgão que bloqueou todas as reformas liberais e democráticas propostas pelo presidente Mohammad Khatami em fins da década de 1990. 65 � “[...] Se os métodos jurídicos dos Islã fossem aplicados, e os juízos da Sha´ria, em cada cidade assistidos unicamente por um par de juizes com somente uma pluma (caneta) e um caderno à sua disposição, resolveriam velozmente os conflitos entre as gentes, devolvendo-os às suas ocupações” (Khomeini, 2004 [1971], p. 57).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
61
os xiitas66 a implantarem um governo islâmico para usufruírem plenamente de
seus direitos civis.
É proibido aos muçulmanos recorrer em solução de seus assuntos aos reis e
governos tirânicos, assim como aos juízes que atuam como seus agentes,
inclusive se eles tem algum direito bem fundado que desejam requerer. Inclusive
se um filho de muçulmano tem sido assassinado, ou sua casa arrasada, este
não tem o direito de recorrer aos poderes opressores para obter justiça. [...] Se
um muçulmano (xiita) recorre a eles nos casos acima e obtém seus inalienáveis
direitos por meio desses poderes e destas autoridades ilegítimas, o resultado é
uma maldição e ele não terá direito de fazer uso destas vantagens (Khomeini,
2004 [1971], p. 100,101).
CONCLUSÃO.
Como se vê no discurso de Khomeini não se objetiva apenas alianças
políticoeconômicas, mas também a ampliação do governo islâmico pelo
planeta. Weber lembra que o líder carismático insurge contra a ordem
institucionalizada, estabelecendo pontos de ruptura que reordenam as ações
de seus seguidores. Instalando um senso de utopia cuja racionalidade é o
conjunto de desencantamentos temporais e também um feixe de
reapropriações do sagrado.
Ao contrário, o carisma conhece apenas determinações e limites
imanentes O portador do carisma assume as tarefas que considera
adequadas e exige obediência e adesão em virtude da sua missão. Se as
encontra, ou não, depende do êxito. Se aqueles aos quais ele se sente
enviado não reconhecem a sua missão, sua exigência fracassa (Weber,
1999, p. 324). 66 � “Se tens uma peleja com alguém por uma dívida, ou uma herança e necessitas estabelecer a verdade sobre o assunto em questão, deves procurar o juiz designado pelo imam e referir apenas e ele e a nenhum outro. Esta é a obrigação universal de todos os muçulmanos” (Khomeini, 2004 [1971], p. 102).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
62
A exiguidade de espaço nos priva de análises mais profundas sobre a
temática (para tal vide Gomes, 2010). Espero contribuir para uma exposição
historicocrítica do governo islâmico que permita dialogar com suas propostas,
respeitando suas especificidades sob a égide de uma consciência política
crítica. Romper autoritarismos em favor da democracia social é viabilizar
desenvolvimento humano. A história cultural pensa a articulação entre os
discursos e as práticas de forma a destacar suas apropriações e resistências
(Certeau, 1990), para tecer diálogos contributivos entre os agentes culturais.
O xiismo apropria-se da modernidade veiculando seus valores e
signos, através das tecnologias, tecendo sempre formatos propícios à
governabilidade islâmica. Ao combater as diversas formas de propaganda em
que o Ocidente veicula seus valores e crenças o xiismo cunha um
ocidentalismo radical, tão letal quanto o orientalismo que condena. Para
Khomeini, o Ocidente é nocivo, pois solapa bases existenciais do movimento
revolucionário xiita (o seguir o corão sem arguir, o messianismo
duodecemista, o nacionalismo xenófago e a universalização xiita).
Dias antes de sua morte o aiatolá fez seu último discurso onde
implorava que os cidadãos continuassem a estudar o irfan, conjunto de
tradições místicas do islamismo, pois não haveria uma verdadeira revolução
islâmica se não houvesse um aprofundamento dos valores tradicionais dos
signos xiitas no imaginário popular (Armstrong, 2001b, p. 171), submetendo-
os ao domínio pessoal de Khomeini. “Tanto o poder carismático quanto o
poder patrimonial se fundamentam na entrega pessoal à líderes naturais e na
autoridade pessoal destes” (Weber, 1999, p. 328). Khomeini dizia que a
aceitação dos valores ocidentais, sob qualquer aspecto, tornar-se-ia um ponto
de ruptura no governo islâmico. Prédica corroborada pelo seu sucessor, o
aiatolá Ali Khamenei.
No mundo contemporâneo a necessidade de afirmação – e negação –
das identidades coletivas construídas, inspira uma reescrita do passado que
deforma as contribuições do saber histórico (Hobsbawm, 1994). Portanto, é
imprescindível uma leitura sob a égide historicidade, a fim de dissipar as
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
63
nebulosas manipulações adestratórias. A história faz muito mais do que
narrar/descrever, ela deve submeter as construções interpretativas à critérios
objetivos de validação, ou negação (Chartier, 2009, p. 30).
O Irã e a América Latina estão cada vez mais colaborativos, o que não
é ruim, pois aproximar é melhor do que alijar. O momento é propício a trocas
e descobertas, em uma parousia de vida abundante. Edificados sobre a rocha
da serenidade, urge construirmos pontes com o outro diferente e menos
inacessível do que se pensa. É fundamental que o façamos sob a égide das
demandas da diversidade cultural nas liberdades compartilhadas (religiosas,
políticas e individuais).
À guisa de uma conclusão final, afirmo que leituras da revolução
iraniana são fundamentais para que governos e cidadãos latinoamericanos
posicionem suas participações ressaltando alteridades e identidades. O
diálogo reflexivo perpassa, também, (re)pensar crenças e princípios sob a
égide do sagrado.
Concatená-las com o arbítrio e a liberdade compartilhada é legado da
racionalidade outorgada no Éden. Como as questões no Oriente Médio são
também questões de crenças e tanto ocidente como o mundo islâmico estão
indubitavelmente um no caminho do outro, a oportunidade é preciosa. Até
porque, tanto o Ocidente como a Pérsia já ouviram, desde a antiguidade, que
o temor do Senhor é o principio da sabedoria e apartar-se do erro, a
inteligência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALI, Tariq. Confronto de Fundamentalismos: Cruzadas, Jihads e Modernidade. Rio
de Janeiro: Record, 2002.
_____. A nova face do império. Rio de Janeiro: Ediouro. 2006.
ARBEX JR., José. Islã: um enigma da nossa época. São Paulo: Moderna, 1996.
ARENDT, Hannah. Da revolução. 2. ed. São Paulo: Ática/UNB, 1990.
ARMSTRONG, Karen. O Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
64
BINGEMER, M. C. L. (Org.). Violência e Religião. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1996.
______. O poder simbólico. São Paulo: DIFEL. 1989.
BURUMA, Ian; MARGALIT, Avishai. Ocidentalismo: o Ocidente aos olhos de seus
inimigos. Rio de Janeiro: ZAHAR, 2006.
BURKE, Peter. O que é história cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
CARDOSO, C. F.; MALERBA, J (Org.). Representações: contribuição a um debate
transdisciplinar. Campinas, SP: Papirus, 2000.
CHARTIER, Roger. A história ou a leitura do tempo. Belo Horizonte: Autêntica. 2009.
______. A história cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: B. Brasil,
1990.
CROUTOT, Aline. Religião e Política. In: Remond, R (Org.). Por uma história política.
Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. p. 330-350.
DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004.
DUBET, F. As desigualdades multiplicadas. Rio Grande do Sul:UNIJUÍ. 2003.
FALCON, Francisco J. História e representação. In: Cardoso C; Malerba J (Org.).
Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas, SP: Papirus,
2000.
FIORIN, José Luiz. Elementos da análise do discurso. 2. ed. São Paulo: Contexto,
2002
FLETCHER, Richard. A Cruz e o Crescente: Cristianismo e Islã, de Maomé à
Reforma. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.
GEERTZ, Clifford. Observando o Islã. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.
GELLNER, E. G. Antropologia e Política: revolução no bosque sagrado. Rio de
Janeiro: Zahar, 1997.
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
2005.
HUNT, L. A Nova História Cultural. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
KINZER, Stephen. Todos os homens do Xá. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2004.
KHOMEINI, R. El gobierno islâmico. Madri: Biblioteca Islâmica Ahlul Biab, 2004.
KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. São Paulo: Edusc, 2002.
LARI, Sayyid Mujtaba Muavi. Los fundamentos de la doctrina islâmica. Editora:
Fundacion para la difusion de la cultura islâmica en el mundo, 19??.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
65
MEDDED Abdelwahab. A doença do Islã. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
MERAD, Ali. El Islã Contemporáneo. D.F: Universidad del México, 1988.
MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,
1976.
NOVAES, Adauto (Org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras. 1992.
SAID, Edward W. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
TORRES, Arlindo. Intelectuais árabes e europeus face ao desafio do “islamismo
político”. Lisboa, 2003. Preleção no Encontro da Academia Internacional da Cultura
Portuguesa.
VERNET, Juan. As origens do Islã. São Paulo: Globo, 2004.
Referência Eletrônica.
Brasil desafia política externa dos EUA. Financial Times. Washington, USA, 14 mai
2010. Política. Disponível em:<http://noticias.uol.com.br/bbc/2010/05/14/ao-visitar-
ira-brasil-desafia-politica-externa-dos-eua-diz-financial-times.jhtm>. Acesso em 14
mai 2010.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
66
TEORIAS MODERNAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Dra Maria A. Leonardo*67
Introdução: O dilema do sistema internacional
Inside/Out é a perspectiva da dicotomia baseada no
princípio de soberania, onde Walker discute basicamente a
distinção entre teoria política e relações internacionais, tendo
como foco espacial do inside como o campo doméstico, e o
outside como espaço fora dos domínios dos estados soberanos,
constituindo portanto, campo de estudo das teorias de Relações
Internacionais. A seu ver, as teorias de RI envolvem uma
compreensão da política moderna limitada pelo espaço do
* Antropóloga e Cientista Social. Mestrado em Relações Internacionais pela PUC Minas (2008). Pós-doutorado em Comunicação Intercultural pela FACULDADE ETNIA - Faculdades Integradas Interetnicas (2007). Doutorado em Antropologia pela Universidade Nova de Lisboa (2009-2012).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
67
soberano, como expressões dos limites do imaginário
contemporâneo quando confrontados com afirmações e
evidências de transformações históricas e estruturais. O tema de
sua abordagem são as relações internacionais como uma teoria
política. Walker cita Gaston Bachelard, The Poetics of Space
“Outside e inside formam uma dialética de divisão, a geometria
óbvia a qual nos cega tão logo quanto a trazemos para o jogo de
domínios metafóricos [...] Filósofos, quando confrontados com o
outside e inside, pensam em termos de estar e não estar. [...] As
dialéticas do aqui e lá tem sido promovidas com forte grau de
absolutismo, por meio dos quais infelizes advérbios de lugar são
favorecidos com poderes não supervisionados da determinação
ontológica” (Walker, 1993 apud Bachelard, p.1), essa dimensão
política parte de dentro para além dos contornos seguros do moderno
estado territorial. Vale posicionar esse debate no contexto histórico das
décadas de 80 como releituras das teorias de RI.
Além da dicotomia dentro/fora do domínio soberano do estado,
Walker busca interpretar esse debate também no contexto da dicotomia
espaço-tempo nas perspectivas das práticas políticas contemporâneas.
Esse é justamente o debate em torno do conceito geopolítico do estado-
nação em RI. Walker toma a argumentação de que as articulações espaço-
temporais da política moderna são baseadas no princípio da soberania
estatal, associada ao realismo político. O debate das relações espaço-
tempo está também associado às controversas teorias do pós-modernismo
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
68
e do pós-estruturalismo. Walker faz uma abordagem da transformação da
vida política alocados em três grupos de problemas emergentes, O
primeiro refere-se à interpretação dessas estruturas e processos por meio
dos quais, as identidades políticas, têm sido construídas historicamente.
Nesse grupo entram as intersubjetividades e da construção social. O
segundo grupo de problemas refere-se às categorias dentro das quais as
considerações de mudanças históricas foram moldadas na teoria política e
social. O terceiro grupo envolve as formas contemporâneas de crítica
teórica, especialmente aquelas fixadas sob eminentemente insatisfação
rotuladas como pós-modernismo, pós-estruturalismo e outras.
Considerando o duelo e influência das teorias do pós-modernismo e
do pós-estruturalismo em RI, pontuamos que Walker opta por fazer uma
abordagem pós-estruturalista ao analisar a política contemporânea,
principalmente as de RI. “A teoria pós-estruturalista conscientizou-nos
para o fato de que teorias são construtos, produtos de discursos, práticas e
instituições sociais específicas, e que, portanto, não transcendem seu
próprio campo social. As teorias tradicionais que afirmam ser fundamento
de verdade, conhecimento universal a transcender as condições sociais, ou
metateoria dona verdade a transcender os interesses de teorias
particulares, têm sido amplamente rejeitadas”. Segundo Walker as teorias
de RI lidam com questões de fronteiras (territoriais ou intelectuais), ao
estabelecer o que está dentro e o que está fora dela. O foco do discurso
moderno em RI aborda a questão da política mundial e rearticulação
espaço-tempral da comunidade política, e identidade política em um
mundo de “profunda aceleração temporal” e “deslocamento espacial”.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
69
De alguma forma a abordagem de Walker caminha com Bartelson
que partilham os mesmos horizontes da teoria política moderna e o
conceito de estado moderno. Bartelson aborda três teses que por sua vez
se aproximam dos problemas e idéias levantados por Walker. Seu
objetivo é o de problematizar os horizontes teóricos e práticos que são
aplicáveis ao contexto das RI.
Walker levanta um conjunto de idéias que respondem aos dilemas
de identidade política, mudança histórica e a crítica em torno
contemporaneidade. A primeira linha de análise interpreta Maquiavel e
Hobbes, a segunda linha busca resposta para as críticas o racionalismo,
cujos teoristas são Morgenthau, Aron, e Walker especialmente foca, Max
Weber. O terceiro grupo de idéias está associado emarranhamento
heterogêneo de pós-modernismo, do pós-estruturalismo e teóricos
interpretativos. Walker faz uma ampla leitura de Maquiavel na análise da
política moderna.
Walker faz ainda uma abordagem da inter-conexão espaço-tempo-
democracia, onde as pretensões cosmopolitas da teoria democrática
implica em considerar também as conseqüências do termo política
mundial para além do mero sinônimo do espaço territorial (p.142). As
idéias de cidades cosmopolitas e democracia conduzem ao espaço da
internacionalidade no meio internacional. O inside/outside são
reenforçados pelo meio internacional, onde quem faz a separação entre o
inside/ouside não é mais o estado, mas o internacional. A idéia de
globalização fortaleceu essas dimensões do sistema internacional
associado ao poder e magnetismo de estar dentro ou estar fora. Nesse
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
70
ponto, a questão do subnacional é trazido para o contexto do
internacional, através das grandes cidades cosmopolitas.
Walker desenvolve os conceitos de desconstrução em RI,
especialmente voltadas para desconstrução da metáfora inside/outside,
espaço-tempo, e outras dualidades existentes que postulavam que a
realidade era formada por polaridades. E conclui o seu livro reforçando os
questionamentos centrais: como é possível articular considerações de
identidade, democracia, comunidade, responsabilidade ou segurança sem
assumir a presença do espaço territorial, uma linha clara entre aqui e lá, as
celebradas teologias da vida política moderna dentro do estado moderno?
Como é possível comprometer-se com aspirações para a emancipação
sabendo que muitas delas afirmam uma particularidade paroquial
disfarçada de universal? Como é possível comprometer-se com os outros
sem recair nos rituais de identidade e não-identidade, afirmação e negação
que estão profundamente gravadas nos discursos constitutivos da política
moderna?
A obra The Genealogy of Sovereignty, de Bartelson (1995) traz
uma abordagem da dimensão dalém do conflito agência e estrutura para
uma genealogia da soberania. Cabe lembrar que o conceito de soberania é
central nas teorias de RI e da formação do Estado. O foco de sua obra é o
de prover fundamento para a convencional separação entre política
moderna em termos de esferas domésticas e internacionais. Bartelson foca
essência do conceito histórico de soberania, por ele titulado de
“genealogia”, interpretando o contexto histórico dos períodos da
Renascença, era clássica e modernidade, compreendido como um
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
71
discurso político. Três direcionamentos principais do conhecimento
ocorrem segundo a interpretação de Bartelson, o conhecimento da
Renascença na formação da teoria geral do estado; o conhecimento da
soberania clássica, o conhecimento clássico e arranjo da divisão entre o
inside/ouside. E na terceira forma, a varredura da diferenciação clássica e
o conhecimento no despertar da modernidade.
A abordagem do tema é problematizado no capítulo 5 de seu livro
sob o direcionamento: “como a política tornou-se externa na interpretação
da Era Clássica?”. Teorias de RI assumem o pressuposto de que o sistema
internacional no século XVII com a “Peace of Westphalia” como o ponto
decisivo desta emergência (Bartelson, p.137). Nisso argumenta Bartelson
que esta tese recai em compreensão presentista de ambos os termos
“internacional” e “sistema”, assegurando que o termo que hoje chamamos
de sistema internacional não existiu na Era Clássica. No período final da
idade média e da renascença se forma o conceito de estados individuais e
a origem e forma do corpo político. O foco da soberania é orientado pela
pessoa do príncipe e do estado como um todo, como princípio de
identificação. O rei tornou-se a metáfora do estado. Na interpretação de
Bartelson a Renascença torna-se o fundamento de ordem na era do
absolutismo. Vale ainda lembrar do impacto da reforma e das guerras
religiosas. Essa mudança provocou mudanças na fundação do
conhecimento que ocorre no início do século XVII. O Primeiro passo
rumo a uma teoria da soberania é atribuído a Jean Bodin – coloca o
estado como “o mais alto, absoluto e perpétuo poder sobre os cidadãos e
membros da comunidade”. Bartelson critica esta teoria como sendo
modernamente superficial. O edifício epistêmico da argumentação de
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
72
Bodin é demolido no início do século XVII embora tenha sido mantido o
núcleo da lógica da teoria da soberania.
Bartelson argumenta que ideologicamente o arranjo ontológico e
epistemico possuem pelo menos quatro importantes conseqüências
relacionadas à identidade do estado e da soberania. A primeira trata da
relação estrutural entre soberania e estado, e a continuidade entre
autoridade personificada e entidade abstrata em termos iguais. A segunda
recai no aspecto da teoria da representação política e a articulação
estritamente paralela do conceito de representação social da linguagem e
conhecimento. A terceira, a presença tácita da soberania indivisível em
termos de conhecimento conta d deificação ideológica de autoridade
soberana, e explora o pensamento de Bodin sobre o posicionamento da
soberania acima da lei e fonte única de direito e errado no estado, sendo
que o rei possui essa prerrogativa. Quarta, colocada como a mais
importante, é a soberania sendo definida como propriedade de ambos,
governo e estado como um todo, conferindo indubitabilidade sobre a
existência de ambos – e afirma: “o que faz um estado um estado é a
presença da soberania. O que constitui este espaço como absoluto, é a
presença da soberania em seus domínios. A noção de espaço é
analiticamente geométrica e como resultado, o estado, em sua formação
indivisível como entidade espacial, é constituído como um objeto de
conhecimento” (Bartelson, p.152-154).
Sobre a análise de interesses, na perspectiva histórica do final do
século XVI e início do século XVII, entra a reconstrução do conflito entre
a política e religião, entre o secularismo e os princípios cristãos. O
conceito de interesse é também analisado em termos de suas
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
73
conseqüências como um precursor do capitalismo na arena doméstica,
onde interesses fizeram rápida trajetória desde as câmaras reais para o
mercado.
Nesse estágio, Bartelson pontua a distinção entre o doméstico e
política externa, que era opaco e muito problemático na Renascença e
para teoristas da Era Clássisa, podem ter agora uma clara e analítica
distinção entre o Estado e o que está dentro de si. O jogo de interesses
entre estados tem sua contrapartida no jogo de interesses da arena
doméstica e o supremo problema estratégico do absolutismo. O contexto
da arena externa chama à existência a prática diplomática, onde a
diplomacia do século XVII e recente XVIII está relacionada à articulação
entre interesses dos estados. A diplomacia clássica era governada pela
noção de interesse, devidamente pontuda por Bartelson como jogo que
envolve relações de articulabilidade entre soberania e conhecimento, onde
a função da diplomacia gira em torno das relações de soberania e
interesse.
Bartelson discorre no capítulo 6 sobre a reorganização da realidade
em termos de soberania, modernidade e o internacional. A emergência do
internacional, por ele pontuada, deve ser entendida como logicamente
ligada à emergência do conceito de estado soberano moderno, ainda que
não esteja reduzido a isto. Ambos, estado moderno e sistema
internacional acontecem não somente no mesmo pacote epistemico e
ontológico, mas um manual sobre como entendê-los e explicá-los. Vale
lembrar, conforme recoloca Bartelson, que o conceito clássico de estado é
baseado no campo problemático da identificação da pessoa da soberania
com o aspecto abstrato de poder e interesse, baseados na pessoa do rei e
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
74
do estado. Já a noção de interesse geral ou vontade, forma um link crucial
entre a nação e estado, tendo em vista o estado no esquema moderno de
soberania, onde a autoridade soberana pode ser fortalecida mediante
participação popular (p.211), que segundo a argumentação de
d’Argenson, “o fortalecimento consiste na união das partes”, residindo o
problema dos políticos, o descobrir o verdadeiro interesse geral entre a
massa de particular interesses, entre homens e nações (Teoria do Interesse
Geral).
Com a modernidade a historicidade começa a permear todos os
aspectos da existência humana e adequar o homem e suas entidades
políticas e sociais com limites cronológicos e geográficos e origens fixas.
A era iluminismo, era das luzes, rompe o homem da idade média para
uma posição de essência individual e desta forma teorias sociais
posicionam o homem no contexto macro-social (macrosociologia de
Weber). O foco da era clássica tinha os interesses do estado como
principal objeto, ao passo que a soberania do estado moderno foca a
transcendência em torno do eixo: homem, estado e a paz.
Bartelson conduz sua argumentação ao questionamento: “como o
estado soberano e o sistema internacional serão conectados no futuro?”,
que a seu ver, tem dois futuros: um na profecia da expansão, que projeta a
presença do sistema internacional, e a outra na promessa de
transcendência, que projeta a dialética do estado no futuro do espaço
internacional globalizado. (Bartelson, p. 229). E questiona ainda, “como
pode o estado moderno, espaço de discórdia e guerra, ser transformado
em uma direção mais cosmopolitana?”. O argumento estratégico de
Bartelson (p.85-86) propõe três hipóteses: Primeira, a hipótese da
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
75
renascença: baseada nos historiadores do século XIX e XX e teoristas de
RI (Wight), o sistema internacional moderno tem sua origem embrionária
na política de cidade-estado da Renascença (Itália) com o aumento de
comunicações diplomáticas, cientifização, e monopolização do bem-estar
como manifestações chefes. Segunda, a hipótese Westphalian: o sistema
internacional foi formado a partir do tumulto da Guerra dos 30 Anos,
propulcionado pela consolidação dos estados-europeus. Terceira, a
hipótese da modernidade: onde o sistema internacional moderno teria que
esperar sua emergência até o surgimento de nação-estado como a
dominante forma de vida política na Europa, com a expansão da
soberania popular, democracia e fervente nacionalismo como causas e
efeitos da internacionalização destes traços.
SOBRE O MITO DE 1648
Esta revisão introdutória visa chamar a atenção para o foco do tema
do Mito de 1648 dentro dos estudos desta disciplina RI: as relações
internacionais modernas, e também a perspectiva da teoria marxista em
RI. O próprio título do livro foca o mito de 1648 e a formação das
relações internacionais modernas. Em sua introdução, Teschke discorre
sobre as teorias do realismo e construtivismo, e concorda que os Tratados
de Westphalia foram pontos decisivos na história das RI, tratados esses,
findaram com a Guerra dos Trinta Anos de, 1618 a 1648. Na verdade,
1648 foi a culminação da época do estado absolutista, marcou o
reconhecimento e regulação internacional, mais precisamente percebidas
como relações inter-dinásticas, relações do absolutismo, e política
dinástica. O clássico sistema “westphaliano” rotulado pela primazia do
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
76
moderno, soberania territorial do estado, está sendo recolocado por pós-
territorial, pós-moderna e ordem global, trazendo uma mudança estrutural
no sistema internacional. É interessante pensar em termos de dois de seus
questionamentos gerais: se a soberania moderna e o moderno sistema de
estado estão em declínio, como eles vieram à existência? Se, estamos no
espaço de uma nova ordem, que lições podemos aprender das prévias
transformações geopolíticas?
A proposta de Teschke em Desmystifying the Westphalian States-
System, é a de desmistificar a teoria do sistema de estado westphaliano,
que tem o seu fundamento na idéia codificada pela Westphalia em termos
de soberania do estado, exclusividade territorial, igualdade legal, política
secular, não-intervenção, constante diplomacia, lei internacional, e
congresso multilateral.
Teschke argumenta que a chave para entender as dimensões do
conflito geopolítico e o sistema internacional moderno é a compreensão
das divergentes trajetórias da formação do estado/sociedade na França e
Inglaterra; e a transição do feudalismo para absolutismo na França, e do
feudalismo para capitalismo na Inglaterra. Ele manterá o seu foco na
experiência inglesa para reconstruir a transição para as Relações
Internacionais Modernas. Cita Gross, para pontuar a significância da
Westphalia da perspectiva realista, “A paz de Westphalia, para melhor ou
pior, marca o fim de uma época e a abertura para outra. Representa o
majestoso portal que guia do velho para o novo mundo”. (Teschke, 2003,
apud Groos, p.216).
Debates neo-realista e construtivista respondem de formas
diferentes ao argumento (p.216). A interpretação de Teschke sobre a
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
77
Westphalia leva radicalmente a diferentes conclusões. Argumenta “que
existe relações distintas da geopolítica não-moderna entre a dinástica e a
pré-moderna comunidades políticas caracterizadas pelo sistema
Westphalia. Enquanto essas relações eram competitivas, elas eram
determinadas nem pela anarquia estrutural, nem pelo conjunto de novas
regras constitutivas acordadas em Westphalia, nem pela exclusiva
territorialidade. Pelo contrário, elas eram enraizadas na pré-capitalista
social relação de propriedade. A lógica das relações inter-dinásticas
estruturam a precoce moderna ordem geopolítica até a alta irregularidade
regional e prolongada transição do século dezenove para modernidade
internacional”.(p217).
Ele acomoda em seu discurso as três teorias básicas em temos de
constituição, operação, e transformação da ordem geopolítica. Primeira, a
presença da anarquia no sistema geopolítico reflete fundamentalmente
diferentes princípios de relações internacionais. Segunda, as relações de
propriedade configuram diferentes regimes políticos e geram coesas e
antagônicas estratégias de ação que governam as relações internacionais.
Terceira, o problema da temporal coexistência de heterogeneos atores
internacionais em um cenário de caso misto. Cujo resultado na Europa
leste foi um sistema geopolítico hetegonêneo.
Teschke divide a abordagem do tema da desmistificação do
sistema de estado Westphaliano em sete itens:
• As teorias da constituição, operação e transformação do sistema
geopolítico;
• Estrutura e agência na ordem Westphalia;
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
78
• Relações geopolíticas da Westphalia: política externa e negócios da
família dinástica;
• Espaços dos territórios circulantes, dos príncipes circulantes:
território demarcado em função da dinastia;
• Predatório dinástico equilíbrio de poder e a balança de poder;
• Desmistificando a paz de Teschke;
• O fim de 1648.
O raciocínio de Teschke de conduzir sua argumentação desde o
absolutismo até o capitalismo, é porque firmemente crê que no sistema
Westphalia como um fenômeno histórico e não como conceitual
estenografia de RI para as relações internacionais modernas. Defende o
enraizamento em relações pré-capitalistas relações de propriedade e
soberania dinástica; e chama atenção para uma análise histórica e de
conjuntura do período 1688 até 1989 como uma longa transformação
caracterizada pelas relações internacionais em modernização, a legalidade
da Westphalia e o absolutismo como um sistema rudimentar de estados
territorialmente ligados, (p.268). Afirma estar o sistema de estados
moderno marcado mais pelo capitalismo do que pela Westphalia (p.249).
Essa é a sua desmistificação do mito de 1648, tirando o foco do sistema
Westphalia para a emergência do capitalismo. Ele agrega em sua
abordagem as idéias dos “pós”, despertando para o fato de que a
configuração internacional estar agora em processo de ser transcendida
pela globalização e governança global, zumbindo agora em tons de pós-
Westphalia e dada ordem geopolítica pós-moderna, não mais em aspectos
internacionais, mas global. Encerra seu argumento com a afirmativa: “as
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
79
relações internacionais modernas possivelmente tenham justamente
chegado à escala global” (p.268).
Teschke abre a abordagem desta trajetória com o questionamento:
como poderemos entender a transformação do absolutismo para relações
internacionais modernas? Seu argumento é que essa mudança estava
diretamente ligada à formação do capitalismo, a emergência do estado
moderno na Inglaterra, e o despertar da Grã Bretanha como o maior poder
internacional no século dezoito. “A mudança decisiva em direção às
relações internacionais modernas não é marcada pela Paz de Westphalia,
mas vem com o surgimento o primeiro estado moderno: a Inglaterra pós-
revolucionária” (Teschke, 2003, p.249). Dentre tantos fatores, o regime
de propriedade agrário-capitalista; a militarização, a associação dos lords
à política e governança; e mais que tudo a mudança de dinástica para
soberania parlamentar; inclusive como sinais de consolidação da
soberania moderna. À luz de suas interpretações, a Inglaterra puxou o
desenvolvimento e conduziu o processo da modernidade.
Teschke pontua com historicidade e conjuntura a transição do
feudalismo e capitalismo na Inglaterra; atentando para os detalhes das
relações franco-inglesas; com Espanha, as relações dinásticas e
aristocráticas, as relações protestantes e as relações católicas; o controle
do parlamento e poder militar; o controle do parlamento sobre as taxas, e
a revolução financeira do século dezoito. Conforme esclarece bem, o
parlamento revolucionou além do sistema militar, fiscal, financeiro e
administrativo, o investimento de capital em companhias no exterior.
(p.254).
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
80
Outro aspecto de sua abordagem é sobre a figura da Inglaterra indo
além do capitalismo e da soberania moderna para um equilíbrio ativo. E
para este fim argumenta: como isto aconteceu e quais foram os efeitos na
política européia? A atitude britânica para com a Europa, agora no fim do
século dezessete, tendo agora sua soberania no parlamento e não mais no
rei, assume uma política externa desconexão da outrora soberania com
base em interesses dinásticos para o interesse nacional. Inglaterra entrou
com um papel diplomático de transformar relações inter-disnásticas em
interesses nacionais, para isto atuando com uma “nova função de
balanceador da pentarquia européia”(p.258). Conforme enfatiza Teschke,
dois regimes de balança de poder estavam operando na Europa no século
dezoito: “enquanto estados absolutistas continuavam a política de
equilíbrio territorial, partições e compensações, o parlamento britânico
buscou manejar o equilíbrio do sistema europeu pela intervenção indireta,
em forma de subsídios e pensões para poderes menores, enquanto ainda
não contatos alguma ambição imperial-hegemônica”(Teschke, 2003, apud
McKay and Scott, p.249). As características britânicas no balanço de
poder foram sua dinâmica, produtiva e expansiva economia capitalista.
Outro estágio desta transformação para o sistema moderno, é a
combinação geopolítica e o desenvolvimento social não uniforme. O
velho sistema de acumulação territorial, ora confrontado pelo surgimento
do capitalismo, passa por um processo de manipulação pela Inglaterra
para com os velhos inter-disnásticos predatórios equilíbrios, mediante a
nova concepção de balanceamento ativo. Teschke, afirma que no fim do
século dezoito, o “balanceamento britânico não mais serviu
exclusivamente às funções de segurança e ordem, mas teve outro efeito de
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
81
forçar os estados continentais a responder e finalmente adequarem-se ao
superior modelo sócio político britânico, especialmente sob o impacto da
revolução industrial” (p.263).
Teschke contra-argumenta com Karl Marx, Friedrich Engels e
Skocpol. A inserção de Karl Marx no cenário tem a intenção de refutar a
teoria capitalista, e conforme argumenta alguns teóricos, ele não tinha
pretensões de relações internacionais em si. Deixaram um grande
referencial teórico: “a expansão do capitalismo estava para criar um
mundo após a sua própria imagem”.
The need of a constandy expanding market for its products chases the bourgeoisie over the whole surface of the globe. It must nesde every-where, settle everywhere, establish connectíons everywhere. The bourgeoisie hás through its exploitatíon of the world market given a cosmopolitan character to productíon and consumption in every country. ... In place of the old local and natíonal seclusion and self-sufficiency, we have intercourse in every directíon, universal interdepend-ence of nations. . . . The cheap prices of its commodities are the heavy artülery with which it batters down ali Chinese walls, with which it forces the barbariam' intensely obstínate hatred of foreigners to capitulate. It compels ali natíons, on pain of extinction, to adopt die bourgeois rnode of production. (Teschke, 2003, p.264 apud Mane and Engels 1998). The international states system as a transnational structure of military "j competition was not originally created by capitalism. Throughout modem world history, it represents an analytically autonomous levei of transnational reality — interdependent in its structure and dynamics with world capitalism, but not reducible to it. (Teschke, 2003, p.265 apud Skocpol 1979: 22)
A teoria marxista enxergava a expansão do capitalismo mais termos de transnacionalidade que internacionalidade. Teschke encara a teoria marxista com algumas afirmações (p. 266-268):
• A transposição do capitalismo para o continente e resto do mundo, de fato agregava conflitos sociais e desenvolvimento não-uniforme;
• A criação de um império transnacional da sociedade civil não causou a destruição do sistema de estados;
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
82
• O capitalismo nem causou a divisão territorial do sistema de estados, nem requereu do sistema de estados esta reprodução;
• O capitalismo é a condição para universalização do princípio de auto-determinação nacional;
• O funcionamento do mercado mundial são perrogativas na existência de estados que mantenham governo da lei, segurança das transações transnacionais, e mantenham os princípios de abertura de economias nacionais;
• O universal capitalista mercado mundial deve e pode coexistir com o fragmentado sistema de estados.
À título de conclusões: a dialética das relações internacionais, Teschke reenfatiza alguns pontos( p.271-275):
• O movimento histórico em RI tem ajudado a quebrar a roupagem ortodoxa estato-centrica em RI, deslocado o foco da atenção das relações geopolíticas na sociedade-estato e providenciado explicações da formação do sistema de estados moderno, e explicações da constituição da anarquia moderna.
• O neorealismo tem na verdade reproduzido o mito de 1648, e falhado em explicar a variável conduta dos atores políticos dentre as diferentes ordens geopolíticas, e obscurece a natureza da formação do estado e transformação geopolítica enraizadas em relações de classes.
• O construtivismo providenciou uma série inovadoras aproximações social e histórica que desafia as certezas positivistas da corrente principal em RI.
• Enquanto a tradição marxista possivelmente não tenha teorizado a relevância das RI para o desenvolvimento histórico mundial, o aparato conceitual de Karl Marx, “pace Skocpol, Mann et al, provêem um guia seguro para suas explicações.
• A economia e o político, o doméstico e o internacional nunca são constituídos um do outro. E a constituição, operação e transformação das relações internacionais são fundamente governadas por sociais relações de propriedades.
• A relação entre estrutura e agência não são ciclos recursivos, não existindo polaridades, e a seu ver para ambas, necessidade e liberdade combinam em diferentes formas, tanto doméstico como internacionalmente.
Revista Ethnic. No 17. Ano 09. Jun. 2012 ISSN 1983-1935
83
• Concorda com Onuff que de fato, “este é um mundo de nossa fabricação”, não como um processo de estruturação, mas de desenvolvimento dialético.
• O neorealismo é uma ciência de dominação, presa à concepção positivista da ciência para explicar políticas internacionais. Expressa a tecnologia do poder do estado em termos de racionalidade instrumental. Em termos de poder explanatório, mais obscurece que revela e comprime a rica história de desenvolvimento humano em forma repetitiva de cálculo de poder.
• Seu livro é uma intervenção crítica contra um progressivo processo mundial de exploração e dominação. O pulsar da dialética está despertando.
A título de complementação sobre a abordagem marxista, vale pontuar duas citações:
“Uma das lições chaves do século vinte apontam que o pensamento
marxista somente conduz a um beco sem saída histórico. O futuro é liberal e capitalista [...] O próprio Marx proveu muito pouco em termos de análise teórica de relações internacionais” – Hobden e Jones. A concepção ontológica para o paradgima marxista é que “realidade é um sistema social economicamente dominado, cujo funcionamento é a) independente da consciência humana; b) independente da consciência humana, exceto quando mudanças estruturais acontecem pela ação política”. – Edgar Alencar, 1998, p.47.
OBRAS RESENHADAS
BARTELSON, Jens. A genealogy of sovereignty, Cambridge studies in international relations; 39. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 1995. CAMPBELL, David. Writing security: United States foreign policy and the politics of identity. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992. TESCHKE, Benno. The Myth of 1648: Class, geopolitics, and the Making of Moderns International Relations. London UK: Verso, 2003. Chapters: 7 - 8, Conclusion WALKER, R.B.J. Inside/outside: international relations as political theory. Cambridge studies in international relations; 24. Cambridge England; New York: Cambridge University Press: 1993.
Recommended