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Revista Ethnic No 18

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Psicologia Politica: Interfaces Contemporâneas

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CONTEÚDO DESTA EDIÇÃO

01. A Psicologia Política na Perspectiva da Psicologia Arquetípica: Uma Análise do Mito do Governante no Contexto do DLS. Sandro José Gomes .............................................................................................................. P. 02

02. O Imaginário Cristão E Os Fundamentos Democráticos Do Estado Moderno. Dr. Glauco Barreira Maglhães Filho...... ............................. P.12

03. O Governo Islâmico em Khomeini: Perspectivas e Paradigmas Xiitas. Eduardo Teixeira Gomes .................................................................... P.27

04. Teorias Modernas das Relações Internacionais. Dra. Maria A. Leonardo ............................................................................................. P.66

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A PSICOLOGIA POLÍTICA NA PERSPECTIVA DA PSICOLOGIA ARQUETÍPICA: UMA ANÁLISE DO MITO DO GOVERNANTE NO CONTEXTO DO DLS.

Sandro José Gomes*1

RESUMO

O presente artigo parte do pressuposto que a psicologia arquetípica é válida no contexto da Psicologia Política, pois trata fundamentalmente da psique coletiva, que é individualizada tanto pela cultura como por determinados sujeitos. O objetivo deste artigo é fornecer subsídios epistemológicos para a compreensão que a Psicologia Política, através da Psicologia Arquetípica e da Psicanálise poderá dar sua contribuição ao tratar da vinculação entre dimensão e dinâmica da personalidade e maturação para gerir o Desenvolvimento Sustentável no município. Nele é sustentado que gerir a coisa pública está estritamente vinculado ao grau de maturidade da personalidade humana, assim o DLS- Desenvolvimento Local Sustentável de um município dependerá do grau de maturidade das pessoas que constituem o governo municipal. Palavras-chave: Psicologia Política, Psicologia Arquetípica, Mito do Governante, DLS- Desenvolvimento Local Sustentável .

1 Pastor Metodista, Psicanalista Clínico, Licenciado em Ciências Naturais, Bacharel em

Teologia, Especialista em Política e Estratégia, Especialista em Gestão Escolar, Especialista

em Psicologia Clínica e do Aconselhamento, Mestre em Gestão do Desenvolvimento Local

Sustentável, Doutorando em Psicologia.

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1. INTRODUÇÃO

O tema deste artigo “a psicologia política na perspectiva da

psicologia arquetípica: uma análise do mito do governante no contexto

do DLS” foi delimitado partindo-se do pressuposto que a psicologia

arquetípica é válida no contexto da Psicologia Política, pois trata

fundamentalmente da psique coletiva, que é individualizada tanto pela

cultura como por determinados sujeitos. Desta forma, sua relação com o

desenvolvimento do modo de gerir institucionalmente, tem possibilidade

de delinear o grau de maturidade da comunidade e dos indivíduos.

Neste sentido a ação parlamentar dos vereadores e a gestão do

Prefeito pode requerer uma boa dose de maturidade, caso contrário, os

vereadores cairão na armadilha mais fascinante do ego, que é legislar em

causa própria e para si e o Prefeito gerir em benefício próprio. Nesta

perspectiva a Psicologia poderá dar sua contribuição ao tratar da

vinculação entre dimensão e dinâmica da personalidade e maturidade para

a ação parlamentar e a gestão da coisa pública. Particularmente, a

Psicologia Arquetípica trata do inconsciente coletivo e sua relação com o

individual; não sendo possível analisar uma dimensão dissociada da outra.

Todavia a imaturidade se constitui numa problemática que diz

respeito a ilusão que é possível favorecer o individual isolando o coletivo.

Portanto, a abordagem arquetípica harmoniza a compreensão dos pares de

opostos que estão presentes na forma pela qual a coisa pública é tratada.

O objetivo deste artigo é fornecer subsídios epistemológicos para a

compreensão que a Psicologia Política, através da Psicologia Arquetípica

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e da Psicanálise poderá dar sua contribuição ao tratar da vinculação entre

dimensão e dinâmica da personalidade e maturação para gerir o

Desenvolvimento Sustentável no município.

A justificativa quanto a originalidade deste artigo refere-se à

escassez de estudos similares no âmbito acadêmico, embora o presente

estudo abranja vários conceitos e princípios usuais entre estudiosos da

área, considerando que a expressão DLS- Desenvolvimento Local

Sustentável de um modo geral não é um tema abordado por especialistas

em Psicologia. Nele é sustentado por hipótese que os arquétipos atuam

como padrão da personalidade dos governantes, interagindo a partir da

maturidade desta personalidade, o que possuem implicações diretas na

governabilidade. Tal hipótese sustenta-se em duas premissas:

A primeira premissa sustenta que existe uma relação significativa entre o

Ego e o Si-mesmo, sintonizado com os estágios da consciência de que

tratam os doze arquétipos de Carol Pearson, nas ações parlamentares e na

gestão da coisa pública. A segunda premissa admite uma a relação entre o

comportamento dos indivíduos que exercem no município, a função de

governar, e a reflexão sobre o imaginário popular a respeito de como eles

se comportam frente ao modo de suas escolhas.

Desta forma, admitindo-se por pressuposto que gerir a coisa pública

está estritamente vinculado ao grau de maturidade da personalidade

humana, o DLS- Desenvolvimento Local Sustentável de um município

dependerá do grau de maturidade das pessoas que constituem o governo

municipal.

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2. 2. O DLS – DESENVOLVIMENTO LOCAL SUSTENTÁVEL E SUA RELAÇÃO COM A MATURIDADE DA PERSONALIDADE DO

GOVERNANTE

A expressão Desenvolvimento Local Sustentável vem sendo

utilizada, frequentemente, para indicar a gestão do desenvolvimento

dimensionado por uma gestão local. No entanto, de acordo com Lins

(2006), uma localidade específica pode perfeitamente refletir também o

universo macro e suas inter-relações com o sistema maior.

Jesus (2006) admite que: “ a compreensão e a crítica em torno do

Desenvolvimento Local supõem a compreensão e crítica em torno de

desenvolvimento”, para ele “a definição de desenvolvimento o indicará

como um processo que causa ou promove mudanças”(JESUS, 2006,

p.30). Conforme este autor, somente há desenvolvimento quando a

mudança contempla a totalidade de uma sociedade ou pelo menos traz

benefícios para uma maioria. Entretanto este autor esclarece que a

proposta de desenvolvimento sustentável torna-se difícil e complexa por

envolver mudanças estruturais e contar com resistências sociais e falta de

vontade política, decorrentes de privilégios e hábitos consolidados

(JESUS, 2006).

Assim sendo, considerando que o DLS trata, antes de tudo de sobre

o problema de gerir a coisa pública, este trata-se, portanto de gerir a

questão política a partir do grau de maturidade dos sujeitos envolvidos

para desempenhar tal papel; pois o campo político se traduz como veículo

do processo de desenvolvimento e a comunidade não é movida pela

ideologia; porém, anteriormente, a ideologia está sintonizada pela

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maturidade, ou orfandade de seu povo, conforme a abordagem arquetípica

de Pearson (1998) expressa.

3. O MITO DO GOVERNANTE NA PSICOLOGIA ARQUETÍPICA E SUA INTERPRETAÇÃO NA PSICLOGIA POLÍTICA

A Psicologia Arquetípica nasceu com o psiquiatra C. G. Jung, que

inicialmente fora discípulo de Sigmund Freud, no entanto Jung tem uma

posição em relação à ênfase sobre o papel da sexualidade na dinâmica da

personalidade diferente da psicanálise freudiana.

Conforme Lins (2006) Para Jung, o inconsciente coletivo é um

segundo sistema psíquico da pessoa. Diferentemente da natureza pessoal

de nossa consciência, ele tem um caráter coletivo e não pessoal. Jung o

chama também de “substrato psíquico comum de natureza suprapessoal”,

que não é adquirido, mas herdado. Consiste de formas preexistentes,

arquétipos, que só se tornam conscientes secundariamente. A psique, ou

alma, nutre-se dos símbolos que são de ordem transcultural, sendo esse o

domínio do inconsciente coletivo.

James Hillman retoma Jung e procura ampliar a idéia de Psicologia

Arquetípica. Hillman, em sua obra Psicologia Arquetípica escreve:

“ A psicologia arquetípica usa universal como adjetivo, denotando um valor essencial e duradouro o qual a ontologia define como hipóstase....Uma imagem arquetípica opera como o significado original da idéia ( do grego eidos e eidolon): não somente “ aquilo que se vê”, mas também “aquilo através do que se vê” (HILLMAN, 1983: 34 E 35).

Nesta perspectiva Carol Pearson, uma estudiosa da abordagem

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arquetípica, elaborou um modelo da psique humana, baseado em doze

arquétipos, os quais vão se dinamizando desde a infância até a

maturidade, que compreenderia a realização da totalidade psíquica.

Conforme Pearson (1998) os doze arquétipos são: 1-Inocente, 2-Órfão, 3-

Guerreiro, 4- Caridoso, 5- Explorador, 6-Destruidor, 7- Amante, 8-

Criador, 9- Governante, 10- Mago, 11- Sábio e 12-Bobo. Todos estes

arquétipos são estruturados pela polaridade persona / sombra.

Na abordagem arquetípica um dos pressupostos para o processo de

individuação (processo que rege a união psíquica do consciente e

inconsciente e amplia o ego para o Si-mesmo; consistindo em uma

progressão para o amadurecimento da personalidade em sua totalidade)

é a polaridade dos arquétipos.

Assim, cabe a persona delinear os papeis e o processo de

identificação do ego no contexto da cultura e da sociedade; enquanto que

a sombra conota o lado inibido pelo social e ao mesmo tempo um grande

manancial da potencialidade humana reprimida. Esta polaridade deve ser

integrada para a realização total da psique, que constitui o processo de

individuação; pois assumir apenas um lado significa infração do ego e

unilateralidade, o que implica uma falta de centralidade e equilíbrio da

personalidade.

Por esta razão os doze arquétipos de Pearson (1998) estão dispostos

no contexto da lei da polaridade de Jung.

No tocante ao tema desenvolvimento local sustentável, no contexto

da psicologia arquetípica, remete-se imediatamente para a figura daqueles

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que atuam no governo do município, que encerram nas variedades

míticas, o arquétipo do Governante; pois se trata de uma função que, além

de requerer o espírito público e de liderança, requer também autonomia e

sentimento de coletividade. Entretanto a dinâmica da organização dos

outros arquétipos pode implicar no direcionamento do ato de governar.

Na compreensão de Pearson (1998) o processo de desenvolvimento

da maturidade ocorre em três fases, nos quais participam quatro

arquétipos existenciais. Na primeira fase, ou estágio, participam os

arquétipos Inocente, Órfão, Guerreiro e Caridoso. No segundo estágio

compreende os arquétipos do Explorador, Destruidor, Amante e Criador.

O terceiro estágio inclui os arquétipos do Governante, Sábio e Bobo.

Embora estejam dispostos de forma linear, os arquétipos se comportam de

foram descontinua e suas atuações não são fixadas pela cronologia.

Pearson (1998), na formação hierárquica dos arquétipos, dispôs o

padrão do Governante no estágio relacionado ao amadurecimento da

psique.

O arquétipo do governante é melhor compreendido na relação entre

Ego e Si-mesmo; quando é vislumbrado a noção do individual e do

coletivo na abordagem arquetípica. Desta forma pode ser dito que:

“ O Si-mesmo é o centro ordenador e unificador da psique total ( consciente e inconsciente), assim como o ego é o centro da personalidade consciente.... A relação entre o ego e o Si-mesmo é altamente problemática e correspondente, de maneira bastante aproximada, à relação do homem com seu criador tal como é descrita na mística religiosa. O mito pode ser visto, na verdade, como expressão simbólica da relação entre ego e o Si-mesmo” ( EDINGER apud LINS, 2006).

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Na abordagem arquetípica, o Ego, é uma instância que, na visão da

psicanálise freudiana, conota o núcleo de conservação da vida e o espelho

das identificações sociais e culturais. Portanto o Ego, tem como uma de

suas qualidades básicas o apego pelo que se conquistou ou o sentimento

de abandono pelo que não se conseguiu. Neste ponto é necessário

compreender a relação entre o Governante a serviço do ego alienado ao

Órfão ou vinculado ao Si-mesmo dinamizado ao sábio.

Neste primeiro caso, os psicanalistas parecem compreender que a

governança está intimamente associada a orfandade. Neste contexto, para

Freud o homem renuncia a seus instintos agressivos substituindo-os pelas

agressões estatais, o Estado proíbe ao indivíduo infrações, não porque

queira aboli-las, mas sim, para monopolizá-las; assim a sociedade política

corresponde ao desejo irracional do homem em restaurar a autoridade;

pois, com a morte do pai primitivo, surge no homem, em sua orfandade, a

“nostalgia do pai”. Para ele, o governo não surge de um contrato social,

que ele enxergava apenas como uma reafirmação da vontade do pai acima

dos impulsos rebeldes dos filhos; mas, de uma resposta contra-

revolucionária, que emerge após a queda do governo patriarcal.

A imagem freudiana do pai, como modelo de autoridade, vincula-se

diretamente à idéia, que, a dimensão política funciona como extensão do

particular, ocorrendo a vitória do ego (consciente) sobre o Id

(inconsciente) possibilitando condição do domínio sobre o ambiente.

Também, o Ego se alimenta do que tem, e não estará disposto a

abrir do que conquistou a custo do Guerreiro; pois o território do Ego é

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delimitado pelas necessidades individuais, e neste caso o sujeito não

estará interessado no coletivo, pois como experiência interna, ele

desconhece o significado da palavra em termos de registro psíquico, ainda

que ocupe cargos públicos e discurse em termos coletivos. Assim

socialmente este sujeito utiliza máscaras, para que seus desejos possam de

alguma maneira, realizar-se no plano do ego, enquanto parcialmente

alimenta, ao mesmo tempo, o que está ausente existencialmente.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise bibliográfica usada como referencial teórico deste artigo

possibilitou vislumbrar as implicações do grau de maturidade dos

governantes municipais (prefeitos e vereadores) na promoção de ações

que fomentem o Desenvolvimento Sustentável nos Municípios.

Restou por conclusão que na abordagem arquetípica o Si-mesmo é

alimentado pela ressonância dos símbolos que têm significados para a

psique, sendo a preocupação a realização da totalidade da personalidade

humana, com perdas e conquistas, tendo sentido de acordo com o grau de

maturidade psíquica.

Nesta perspectiva é possível falar em governo na dimensão do

coletivo, pois o bem-estar não é individualizado apenas e neste contexto o

governante a serviço do Si-mesmo atua; porque o mundo externo e o

interno são um e o mesmo refletido na psique. Assim o Ego é

transcendido pelo Si-mesmo, assim a maturidade do governante

viabilizará a sustentabilidade que é tão debatida e requerida na

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contemporaneidade nos municípios.

4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HILLMAN, James. Psicologia Arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1983. JESUS. Paulo de. Sobre Desenvolvimento Local Sustentável: Algumas considerações conceituais e suas implicações em projetos de pesquisa. In: ASSUNÇÃO, Luiz Márcio; FILHO, Maciel Adalberto; PEDROSA, Ivo. Gestão do Desenvolvimento Local Sustentável. Recife, PE: Edupe, 2007. LINS, Luciano da Fonseca. O Mito do Significado no Contexto da Religiosidade numa Narrativa autobiográfica. Olinda: Livrorapido, 2006. _________. A Personalidade Humana. Olinda: Livrorapido, 2006. PEARSON, Carol. O Despertar do Herói Interior. São Paulo: Cultrix, 1998.

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O IMAGINÁRIO CRISTÃO E OS FUNDAMENTOS

DEMOCRÁTICOS DO ESTADO MODERNO.

Glauco Barreira Magalhães Filho.2*

RESUMO

O imaginário social é uma projeção de valores coletivos de uma sociedade ou de um grupo social. Nós destacamos o imaginário de grupos religiosos protestantes, bem como as articulações entre imaginário social e imaginário individual, imaginário e ação social. O objetivo da pesquisa é mostrar como as doutrinas protestantes se transpuseram analogicamente para o campo político de modo a estabelecer os fundamentos do Estado Democrático Moderno. O artigo científico segue o paradigma weberiano, o qual admite as crenças como motivo para as ações, bem como concebe a existência de uma força de transformação exercida pelas idéias. Palavras-chaves: Imaginário, Protestantismo, Estado Democrático Moderno

ABSTRACT

The social imaginary is a projection of society collective values of one society or social group. We highlght protestante religious group's imaginary, as well as the 2 Professor Adjunto II da Universidade Federal do Ceará, atuando principalmente nos seguinte temas: Filosofia do Direito, Hermenêutica jurídica, Teoria do Direito, Direitos Fundamentais e Imaginário Jurídico. É pesquisador da obra de C.S.

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articulations between social imaginary and individual imaginary, social action and the imaginary. This research aims to show how the Protestant doctrines are transposed by analogy to the political order to lay the foundations for the Modern Democratic State. The scientific article follows the Weberian paradigm, which recognize the beliefs as motive for the actions, thus conceives the existence of a transformation force which is exerted by ideias.. Keywords: Imaginary, Protestantism, Modern Democratic State

Cornelius Castoriadis define a instituição social como uma rede

simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam, em proporções e

em relações variáveis, um componente funcional e um componente

imaginário3.Para ele, o imaginário deve utilizar o simbólico não somente

para exprimir-se, mas também para existir.

Castoriadis, por outro lado, observa que, apesar de as instituições

formarem uma rede simbólica, elas remetem para algo que está além do

simbolismo. Se não fosse assim, não haveria de se entender porque foi

adotado um determinado sistema de símbolos em vez de outro. Também

não se poderia justificar porque um sistema de significantes tem como

correspondente um sistema de significados específicos.

O elemento que justifica preferência e sentido de um sistema de

símbolos é a funcionalidade social de tal sistema numa época

considerada.

Castoriadis, no entanto, ao longo de sua obra intitulada A

Instituição Imaginária da Sociedade, estabelece um critério permanente

(alheio às variações temporais) para valorar positiva ou negativamente

uma instituição (rede simbólica) existente: a capacidade de promover a

autonomia (liberdade) humana. São as suas próprias palavras:

3 CASTORIADIS, Cornelius. A Instituição Imaginária da Sociedade. 5a ed. Trad. Guy Reynaud. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1982, p. 159

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Existe, portanto, aqui uma dupla relação. As razões pelas quais visamos a autonomia são e não são da época. Não o são, porque afirmaríamos o valor da autonomia quaisquer que sejam as circunstâncias, e mais profundamente, porque pensamos que o desejo de autonomia tende fatalmente a emergir onde existem homem e história, porque, como a consciência, o objetivo de autonomia é o destino do homem, porque, presente, desde o início, ela constitui a história mais do que é constituída por ela.4

A noção de “autonomia” parece uma versão laica da idéia de

dignidade da pessoa humana anunciada pelo cristianismo. Afinal de

contas, até o próprio Karl Marx, hostil aos dogmas religiosos, reconheceu

que “a democracia assenta no princípio do indivíduo, o qual, por seu

turno, tem seus fundamentos no sonho do Cristianismo de que o homem

possui uma alma imortal5”.

C. S. Lewis confirma a conclusão de Marx com as seguintes palavras:

E a imortalidade produziria outra diferença que, diga-se de passagem, tem uma conexão com a diferença entre o totalitarismo e a democracia. Já que o homem vive apenas setenta anos, então um Estado, uma nação ou uma civilização, que podem durar mil anos, são mais importantes do que o indivíduo. Mas se o Cristianismo é verdadeiro, então o indivíduo é incomparavelmente mais importante, porque ele é imortal e a vida de um Estado, ou civilização, comparada com a sua, corresponde a apenas um momento.6

De acordo com Joseph Campbell7, enquanto as religiões orientais

procuram defender uma identidade da pessoa com o transcendente que

implica numa dissolução do indivíduo na divindade, o pensamento

4 Op. cit., p. 121 5 in Marx/Engels, WERKE, I, 550, ed. Diez Verlag, Berlin, 1966 6 Cristianismo Puro e Simples. 5a ed. Trad. Renira Cirelli e Milton A. Andrade. São Paulo: ABU, 1997, p. 41 7 CAMPBELL, Joseph. Tu és isso. Trad. Marcos Malvezzi Leal. São Paulo: Madras, 2003, p. 35-36

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judaico-cristão sustenta que deve haver uma relação entre o homem e

Deus.

Deus fez o mundo, logo o mundo e Deus não são a mesma coisa.

Há uma distinção ontológica e essencial entre o criador e a criatura. No

Oriente, cada indivíduo é um pedaço de Deus. No cristianismo, através de

Jesus (verdadeiro Deus e verdadeiro Homem), é possível um

relacionamento pessoal entre criador e criatura. Martin Buber entende que

o conceito de pessoa presume o de relacionamento (eu-tu). Kierkegaard,

por sua vez, entende que a relação Homem-Deus, o afirmar-se pessoa

diante do absoluto, maximiza a condição de pessoa. Como Deus interpela

cada um individualmente, o filósofo dinamarquês conclui que a resposta

pessoal singulariza cada homem diante de Deus de forma absoluta. No

judaísmo, o homem foi dignificado por ser considerado um ser criado à

imagem e semelhança de Deus. No cristianismo, o valor dado ao homem

aumentou pelo fato de o Filho de Deus ter-se feito homem e ter dado a

sua vida pela redenção do ser humano.

A igreja cristã primitiva, com uma organização

eclesiástica de natureza familiar e informal, enfatizava a

possibilidade de relacionamento direto do homem com Deus

na pessoa de Jesus Cristo.

Durante a Idade Média, porém, houve uma

institucionalização tão rigidamente orgânica da Igreja Católica

Romana que o indivíduo se perdia na conjuntura da Igreja,

ficando o seu acesso a Deus dependente da hierarquia

eclesiástica. Nesse período, a Igreja Romana criou a doutrina

da fé implícita, segundo a qual o fiel não precisava entender o

fundamento dos dogmas da igreja para ter fé, pois lhe bastava

crer em tudo que a igreja dissesse, mesmo naquilo cujo

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significado ignorasse. Assim, o padre celebrava a missa em

latim para um povo inculto, as crianças eram batizadas na

inconsciência e a fé em Deus se confundia com submissão à

igreja.

Essa postura da Igreja Romana levou-a a manifestar desprezo

pelos direitos humanos. O papa Inocêncio III condenou a Magna Carta da

Inglaterra, o papa Leão XII reprovou Luiz XVIII por ter aceitado a

“liberal” Constituição Francesa e o papa Gregório XVI condenou a

Constituição Belga de 1832. A encíclica de Gregório XVI (confirmada

em 1864 por Pio IX em seu Syllabus Errorum) condenou a liberdade de

consciência, considerando-a “uma tolice insana”, e a liberdade de

imprensa como sendo “um erro pestífero, que não poderá ser

suficientemente detestado.

No século XX, o catolicismo romano celebrou alianças com os

governos totalitários de Hitler e Mussolini. Os católicos foram proibidos

de se opor a Mussolini e foram estimulados a apoiá-lo. Em troca,

Mussolini (na Concordata de 1929 com o Vaticano) tornou o catolicismo

romano novamente a religião estatal oficial da Itália, além de favorecer a

Igreja com uma vasta soma em dinheiro e títulos. Por ter-se apropriado

dos territórios papais em 1870, a Itália pagou a Santa Sé 750 milhões de

liras em dinheiro e um bilhão de liras em bônus do Estado. Esse dinheiro

foi utilizado para abrir o Banco do Vaticano e para estranhos

investimentos como “uma fábrica de armas de fogo italiana e um

laboratório farmacêutico canadense que fabricava anticoncepcionais8”.

Em 1933, o Estado do Vaticano assinou uma Concordata com

Hitler. Um dos benefícios da Concordata foi uma soma equivalente a

8 Time, 26 de julho de 1982, p. 35

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centenas de milhões de dólares que a Igreja recebeu através da

Kirchensteur (imposto eclesiástico) durante toda a guerra. O teólogo

católico Michael Schmaus escreveu o seguinte sobre o regime nazista:

A forte ênfase da autoridade no novo governo é algo essencialmente familiar aos católicos. Ela é a contrapartida, a nível natural, da autoridade da Igreja no âmbito sobrenatural. Em parte alguma, o valor e o sentido da autoridade são tão evidentes como em nossa santa Igreja Católica.9

Durante o ano de 1933, um renomado prelado de Colônia,

Robert Grosche, escreveu no Die Schildgenossen:

Quando a infalibilidade papal foi definida em 1870, a Igreja estava antecipando, em um nível mais alto, a decisão histórica que agora foi tomada em nível político: uma decisão a favor da autoridade e contra a discussão, a favor do papa e contra a soberania do Concílio, a favor do Führer e contra o Parlamento.10

É perceptível que a resistência à idéia de um relacionamento

pessoal e direto do homem com Deus em Cristo conduziu o catolicismo a

posturas que favoreciam o autoritarismo.

O movimento monástico original (século IV) foi a primeira reação

contra a tentativa da Igreja de se interpor entre o homem e Deus. Os pais

do deserto escolheram o caminho da solidão através da qual se colocavam

individualmente diante de Deus. Posteriormente, entretanto, os monges

9 Apud HUNT, Dave. A mulher Montada na Besta. Vol. I. Trad. Mary Schultze/Jarbas Aragão. Porto Alegre: Actual, 2001, p. 223 10 Apud HASLER, Bernhard. How the Pope Became Infallible. Doubleday & Co., Inc., 1981, p. 257

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abandonaram a “amiga” solitude para viverem em grupos organizados nos

mosteiros. Desse modo, as ordens monásticas foram inseridas no contexto

da Igreja organizada. A partir daí, a valorização da condição individual do

homem diante de Deus se fez sentir nos escritos dos chamados místicos

cristãos.

A Reforma trouxe novo alento a valorização do indivíduo (cristão)

na medida em que ensinou a doutrina paulina da justificação pela fé.

Segundo esse ensino, o homem é declarado justo diante de Deus não por

sacramentos ou penitências que implicam em dependência da

administração da Igreja, mas pela sua fé pessoal em Jesus Cristo. A

reforma ainda enfatizou a competência do indivíduo para, sob a

iluminação do Espírito Santo, ler as Escrituras e decifrar o seu sentido

correto (Livre Exame das Escrituras). André Biéler fez o seguinte

comentário:

Um dos principais ensinamentos evangélicos exaltados pela Reforma, que mais transtornou a condição humana com relação às concepções da Idade Média, é a proclamação de que um chamamento individual é endereçado por Deus a cada indivíduo, qualquer que seja ele, e sem a intermediação necessária de uma hierarquia clerical, o que faz de cada indivíduo uma pessoa única e inteiramente responsável por si própria. Essa responsabilidade primeira dos indivíduos deve exercer-se em todos os domínios11.

11 BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes. Trad. Paulo Manoel Protasio. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 51

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O valor do indivíduo-pessoa ressaltado no protestantismo tem

muitas implicações para a vida social. Isso pode ser visto nas palavras

de C. S. Lewis mediante as quais ele denuncia o grande vício do mundo

moderno:

...a crescente exaltação da coletividade e a indiferença em relação às pessoas. As fontes filosóficas provavelmente são Rousseau e Hegel. Mas o caráter geral da vida moderna com a sua organização impessoal é mais potente do que qualquer filosofia [...]. Nada a não ser um Outro pode ser amado e um Outro só pode existir para um Eu. Uma sociedade, na qual ninguém tem consciência de si mesmo como pessoa diferente das outras pessoas; na qual não há a quem dizer ‘Eu te amo’, é de fato, imune contra (o pecado) do egoísmo, contudo, não por amor. Uma sociedade assim seria tão insípida e inodora quanto uma garrafa de água.12

Os puritanos ingleses, por sua vez, na sua luta por liberdade de

consciência e de crença, formaram a noção moderna de Estado de

Direito, ou seja, o Estado que se compromete através de um pacto

social a respeitar os direitos intrínsecos ao homem. A noção de

democracia representativa moderna foi influenciada tanto pelo

pensamento humanista laico dos franceses como pelo pensamento

religioso dos puritanos ingleses. Ambas as correntes se encontraram na

história norte-americana.

12 LEWIS, C. S. Of Other Worlds. New York: Harvest, 1975, p. 83-84

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É interessante notar que nenhuma ditadura moderna se estabeleceu

em país influenciado pela Reforma Calvinista. Lenin, Stalin, Hitler,

Mussolini, Franco, Salazar, Pinochet e tantos outros déspotas eram

todos de origem ortodoxa russa ou católico romana. André Biéler

observa:

Com a Reforma e nos séculos seguintes, surgem, na Europa, outros tipos de governo que se forjam a partir das mentalidades protestantes e das estruturas democráticas de suas igrejas. Desde o século XVI em Berna, Bale ou Genebra, no século XVII na Inglaterra (um século antes da Revolução Francesa), depois na Holanda, nos Estados Unidos, nos países nórdicos, por toda parte onde prosperam maiorias ou fortes minorias protestantes, instalam-se regimes liberais e democráticos, sob a forma de repúblicas ou de monarquias parlamentares constitucionais.13

A democracia encontra plena justificativa na concepção cristã de

natureza humana, a qual compreende o homem como ser sublime e ao

mesmo tempo caído. Conforme uma observação de G. K. Chesterton,

considerado como Homem, sou a maior criatura; considerado como um

homem, sou o maior dos pecadores14. No livro infantil O Príncipe

Caspian de C. S. Lewis, Aslam, o sábio leão, diz ao príncipe o que é ser

um descendente de Adão:

É honra suficientemente grande para que o mendigo mais miserável possa andar de cabeça erguida, e também vergonha

13 BIÉLER, André. A Força Oculta dos Protestantes. Trad. Paulo Manoel Protasio. São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 49 14 CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Eduardo Pinheiro. Porto: Livraria Tavares Martins, 1944, p. 142

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suficientemente grande para fazer vergar os ombros do maior imperador da Terra15.

A democracia encontra, portanto, duplo fundamento no

cristianismo. Todos são convidados a participar das deliberações públicas

por serem dotados de dignidade e nenhum deve governar sozinho, sem

fiscalização, em razão da inclinação humana para a corrupção existente

após o evento da sua queda. É verdade que o fato de todos os seres

humanos terem valor aos olhos de Deus não os torna igualmente

competentes para discussões de assuntos públicos ou para qualquer outra

coisa. O missionário cristão Stanley Jones, no entanto, afirma com

esperança:

...Alguém definiu a democracia como aquela loucura que vê nas pessoas algo que não é real, isto é, que elas podem governar a si mesmas. No entanto, sem esta crença o homem não poderia criar o tipo de humanidade a partir da qual a democracia pode ser alcançada. A fé cria as coisas em que acredita...16

C. S. Lewis, ressaltando o outro lado da moeda (a natureza humana

pecaminosa), explica:

Creio na igualdade política. Mas é possível ser democrata por dois motivos opostos. Você pode pensar que todos os homens são tão bons que merecem participar do governo, e tão sábios, que a comunidade necessita de seus conselhos. Em minha opinião, essa é a falsa e romântica doutrina da democracia. Por outro lado, você pode acreditar que os homens caídos são tão perversos que nenhum deles pode receber poder

15 LEWIS, C. S. Príncipe Caspian. Trad. Paulo Mendes Campos. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 210 16 A resposta divina. São Paulo: Imprensa Metodista, 1995, p. 34

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desmedido sobre seus companheiros ...Mas, uma vez que tomamos conhecimento do pecado descobrimos, como diz Lorde Acton, que ‘todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe absolutamente’. O único remédio é substituir os poderes por uma ficção legal de igualdade...Para mim, a igualdade equivale às roupas. É o resultado da queda e o seu remédio. Qualquer tentativa de reverter o caminho que nos conduziu ao igualatarismo e reinstalar as velhas autoridades no plano político é, para mim, tão absurda quanto tirar a roupa.17

O fato importante a ressaltar é que o mundo precisa de reformas

constantes. De acordo com uma observação de Chesterton, o termo

reforma é mais apropriado que evolução ou progresso. Isso porque

evolução é uma metáfora para um simples e automático desenrolar,

enquanto progresso é uma metáfora de um passeio ao longo de um

caminho. Por outro lado, o termo reforma aponta para uma tentativa de

mudar o mundo de acordo com uma imagem, um modelo. A reforma é

uma metáfora para os homens razoáveis e bem determinados: significa

que vemos uma coisa fora de forma e pensamos em colocá-la na forma

devida.

Chesterton explica que precisamos alterar o real para ajustá-lo ao

ideal, mas a idéia secular de progresso salienta mais um ideal que sempre

se distancia do que um real que podemos alterar. As pessoas acomodadas,

por sua vez, preferem alterar o ideal em lugar de tentarem mudar o real. O

literato inglês expressa uma verdade importantíssima quando diz:

Dissemos que temos de ser amigos deste mundo, mesmo até para o modificarmos. Acrescentemos agora que temos de ser

17 LEWIS, C. S. Peso de glória. 2a ed. Trad. Isabel Freire Messias. São Paulo: Vida Nova, 1993, p. 43-44.

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amigos de outro mundo (real ou imaginário), a fim de termos alguma coisa que oriente a modificação a fazer.18

O cristianismo oferece aos que crêem em Jesus Cristo um ideal

com poder transformador. Isso não quer dizer que o cristianismo seja

um sistema político ou tenha uma proposta específica para a economia.

Antes de tudo, a mensagem do Novo Testamento possibilita uma nova

compreensão do homem e pretende estabelecer o correto conhecimento

de Deus. A fé em Deus provoca o homem a agir, e a visão que o

homem tem de si e dos outros determina a natureza das suas ações no

mundo.

Jesus disse que os cristãos seriam (deveriam ser) sal da terra e luz

do mundo (Mateus 5:13). Como luz, o crente revela os pecados da

humanidade, descobrindo as verdadeiras causas de seus problemas;

como sal da terra, ele influencia positivamente o mundo assim como o

sal torna os alimentos mais agradáveis e apetecidos. O interessante a

observar é que o sal desaparece nos alimentos a que dá sabor. O

cristianismo é uma força oculta de transformação, ele age de baixo para

cima. Ao se tentar faze-lo atuar de maneira inversa, isto é, de cima para

baixo, produzir-se-á uma expressão deturpada da sua natureza.

18 CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Eduardo Pinheiro. Porto: Livraria Tavares Martins, 1944, p. 166

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Jacques Maritain, em seu livro Christianisme et démocratie

defende que os princípios democráticos formaram-se na consciência

profana pela ação do fermento evangélico. Ele sustenta que, muito

embora o cristianismo seja uma mensagem espiritual e religiosa, ele

atua nas profundezas da consciência e da existência profana,

funcionando, então, como uma energia histórica atuante no mundo.

Chesterton comenta o seguinte sobre a fertilidade transformadora da

mensagem cristã:

Se desejarmos derrubar um próspero tirano não o poderemos fazer com a nova doutrina da perfectibilidade humana; fa-lo-emos apenas com a velha doutrina do Pecado Original. Se desejarmos arrancar pelas raízes crueldades inatas ou erguer do marasmo em que jazem populações perdidas, não o poderemos fazer com a teoria científica de que a matéria precede o espírito; fa-lo-emos com a teoria sobrenatural de que o espírito precede a matéria. Se desejarmos, inclusivamente, acordar um povo para uma constante vigilância social e para uma luta sem tréguas, nada conseguiremos com as teorias da imanência de Deus ou da Luz Interior, porque estas são, quando muito, razões para contentamento; temos de insistir sobre a transcendência de Deus e o fulgor que flutua e se escapa: isso significa o descontentamento divino. Se desejarmos, particularmente, radicar a idéia de um equilíbrio generoso contra a idéia de uma autocracia pavorosa, teremos de ser trinitários e nunca unitários. Se queremos que a civilização européia seja um verdadeiro ‘raid’ e uma libertação, devemos insistir em que as almas correm um perigo real e pôr de parte a idéia de que tal perigo é, em última análise, meramente fictício. E, se queremos ainda exaltar o proscrito e o crucificado, temos de nos lembrar de que um verdadeiro Deus, e não um simples sábio ou herói, foi crucificado também. Acima de tudo, se desejarmos proteger os pobres, teremos de lançar mão de regras fixas e de dogmas certos. O regulamento de um clube pode, ocasionalmente,

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pretender favorecer os membros pobres, mas a sua inclinação é sempre a favor dos membros ricos.19

C. S. Lewis explica que o fato de a promessa maior do evangelho se referir à

vida futura não torna o cristão inerte nessa vida. O olhar para a eternidade, que é

uma obrigação do cristão, não consiste em alimentar uma ilusão, mas, sim, em uma

virtude, a esperança. Como toda virtude tem um potencial de transformação, a

esperança se torna uma energia ativa na vida do cristão neste mundo:

Se consultarmos a História, veremos que os cristãos que mais fizeram por este mundo foram justamente os que mais pensaram no outro mundo. Os próprios apóstolos, que empreenderam a conversão do Império Romano, os grandes homens que construíram a Idade Média, os evangélicos ingleses que aboliram o mercado de escravos, todos deixaram sua marca na Terra precisamente porque suas mentes estavam ocupadas com as coisas do céu. Desde que os cristãos pararam de pensar na outra vida é que começaram a falhar nesta. Quem almejar o céu, terá a Terra como acréscimo; quem almejar a Terra, não terá nem uma nem outra coisa. Parece uma regra estranha, mas podemos observar algo semelhante em outros setores. A saúde é uma grande benção mas, quando esta começa a ser um de nossos objetivos principais e diretos, começamos a nos tornar rabujentos e a imaginar que alguma coisa não vai bem. Só poderemos ter saúde se buscarmos outras coisas mais: alimento, esporte, trabalho, diversão, ar livre. Da mesma maneira, nunca salvaremos a civilização se esta for o nosso principal objetivo. Devemos aprender a querer algo mais.20

Conclusão

Pelo exposto, fica evidente que o cristianismo teve um papel

essencial na formação dos regimes democráticos do Estado moderno,

19 CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Trad. Eduardo Pinheiro. Porto: Livraria Tavares Martins, 1944, p. 219-220. 20 Cristianismo Puro e Simples. 5a ed. Trad. Renira Cirelli e Milton A. Andrade. São Paulo: ABU, 1997, p. 76

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pois o imaginário cristão é dotado de uma poderosa força de

transformação social.

O cristianismo atua até mesmo na consciência profana sem ser

reconhecido, influenciando as representações coletivas da sociedade

que está ou esteve sob sua influência.

BIBLIOGRAFIA

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São Paulo: Cultura Cristã, 1999

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O GOVERNO ISLÂMICO EM KHOMEINI: PERSPECTIVAS E PARADIGMAS XIITAS.

Eduardo Teixeira Gomes21

RESUMO

Estre trabalho enseja abordar, com serenidade altruísta, as relações entre o binômio política/religião na concepção xiita de um governo islâmico. Objetivar-se-á compreender paradigmas constitutivos da ótica de Khomeini, artífice da revolução iraniana, para construir pontes dialógicas que mitiguem antagonismos e desvelem os pressupostos do governo islâmico xiita sob o binômio religião/politica. A situação atual é, sem dúvida, definida pelos esforços do regime de Teerã em alargar sua presença na América Latina onde objetiva aprofundar bases políticas e religiosas. A receptividade antiamericana em alguns países latinoamericanos e a pretensão do Brasil como interlocutor junto às tensões internacionais que circundam o projeto nuclear iraniano, alçam a temática para uma pauta relevante. A presença crescente de um país fundamentalmente xiita em um continente marcado pelas instituição laicas e (relativa) liberdade religiosa merece ser notado. Evidenciar-se-á, principalmente nos tempos atuais, a emergência da necessidade de interação diante de um outro, menos impermeável do que parece, possibilitando descobertas mútuas e interações dialógicas. Palavras-Chave: revolução – ocidentalismo – política - diálogo – religião

21 Historiador e Educador no Ensino Fundamental e Superior. Mestre em História Social das Relações Políticas (UFES). Especialista em Educação (IFES). [email protected]

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Introdução.

“Todo dia é Ashura, todo lugar é Karbala“.22 (Ruhullah Khomeini)

Neste trabalho observar-se-á os paradigmas constitutivos do governo

islâmico a partir da prédica de Khomeini em sua obra “o governo islâmico”23,

concatenando com as vicissitudes do Irã atual e seu universalismo24, uma

vez que a linha política de Khomeini é amplamente seguida pelo seu

sucessor, o atual líder supremo Ali Khamenei.

Abordar-se-á, bibliograficamente, tal temática sob a égide da

congruência entre a história cultural e a história social das relações politicas.

A história cultural, tal como pretendida antropologicamente por Gellner e

Geertz, é inevitavelmente política (Gellner, 1997, p. 7), pois invade a política

em vários aspectos, principalmente implicando na composição de uma visão

de mundo, que formata a sociedade sob representações simbólicas. A

confluência entre a religião e a política salienta a produção das alteridades e

identidades na turbulenta relação entre etnias do Oriente Médio e a

modernidade ocidental.

A presença do xiismo iraniano, com seu típico universalismo, nas

relações internacionais com a latinoamerica e as tensões que permeiam o Irã 22 � Palavra de ordem da Revolução Iraniana, onde Khomeini cita Ali Shari'ati. A Ashura é uma das mais importantes comemorações do calendário cívico xiita; Ela exalta a determinação de Hussein de resistir até ao martírio na luta contra as ofensas ao Islã. Essa comemoração assevera a visão xiita de resistência a governos que julgar corruptos e sua prontidão ao martírio pela sua fé. Karbala é o lugar onde Hussein, filho de Ali Talib, enfrentou o exército do governo com 72 homens e foi sumariamente derrotado, em 680 d.C. 23 KHOMEINI, M. Ruhullah. El gobierno Islâmico. Madri: Biblioteca Islâmica Ahlul Biab, 2004 [1971]. 24 Pensamento religioso da Idade Média que estendia a salvação ou redenção a todo gênero humano. O exemplo xiita não coaduna com a perspectiva ecumênica original. Preconiza-se a redenção da humanidade pela submissão ao islã sob a tutela xiita.

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como um ator politico nuclear no Oriente Médio do século XXI, outorgam uma

relevância singular ao tema do governo islâmico. Principalmente por

Khomeini evocar um escrituralismo xiita que regulamenta as relações

políticas, sociais e religiosas do Estado com a umma (termo árabe

provavelmente derivado da palavra umm – mãe), sob a égide do Corão25.

O que não é história cultural ainda não alcançou uma resposta

definitiva satisfatória (Burke, 2005). Ressaltar-se-á dimensões da história

cultural ao levarmos em conta o campo religioso, suas instituições e

acontecimentos. Identificando as complexas relações existentes no binômio

religião/política, percebe-se que, com relação ao Islã, o sistema religioso

tornou-se uma dimensão do político na medida em que o espaço privilegiado

para a vivência materializada da fé é o Estado Islâmico juridicamente

constituído.

Na primeira parte deste trabalho ensejo desvelar o governo islâmico

como instrumento imprescindível para um tipo de revolução islâmica.

Ressaltando os parâmetros de revolução elencado por Arendt e Khomeini.

Este propôs uma reconstrução das instituições ocidentais sob uma ótica

muçulmana xiita, o que faz do Irã muito menos um exemplo ideal do que um

método pragmático. Na sua teologia política os três poderes republicanos

foram submetidos à vigilância/orientação de um notável jurista muçulmano

(faqih) circundado por notáveis: os fuqaha26 (Khomeini, 2004 [1971], p. 88).

25 Comumente chamado Alcorão, o Corão (nome advindo árabe qu´àn, que significa ´leitura salmodiada´) é o livro sagrado dos muçulmanos. Reúne em 114 suras (capítulos) e 6.236 versículos, um conjunto de revelações sobre a divindade atribuídos a Maomé, tendo sido transmitido oralmente até a época do terceiro califa, quando elaborou-se a redação definitiva do texto. “O texto, que em alguns trechos evoca temas do Velho e Novo Testamento, nem sempre é muito claro. E, quando Maomé ainda vivia, muitas vezes era solicitada sua intervenção para esclarecê-lo” (Jacono, 2002, p. 38). Diverge da Bíblia Sagrada em vários pontos no que tange à salvação do homem, divindade de Jesus, dicotomia entre as esferas do terreno e do celestial, escatologia, ressurreição, entre outros... 26

Fuqaha - Plural de Faqih. Homens sábios nos princípios e regulamentações da lei islâmica e, em geral, em todos os aspectos da fé. Formam um corpo de sábios estudiosos das leis islâmicas com a missão de proteger o líder supremo, bem como, de expandir suas políticas entre os diversos estamentos sociais.

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Na segunda parte apresentar-se-á as matizes do conceito de

fundamentalismo, atentando para o perigo do ocidentalismo27, uma vez que o

orientalismo já é bem debatido. É tempo das proposições políticas estearem-

se na tolerância na diversidade cultural, suplantando o autoritarismo

adestratório para enfatizar responsabilidades compartilhadas. O livre arbítrio

religioso e político não pode ser o alvo, antes, constitui-se o caminho.

Na terceira parte desvelar-se-á os paradigmas do governo islâmico sob

a égide das propostas de Khomeini, enfatizando seu ocidentalismo, as

especificidades endógenas da necessidade do governo islâmico, e a coroa da

obra de Khomeini: a doutrina da tutela do jurista no binômio religião/política. A

doutrina khomeinista foi um sólido elemento de coesão nacional durante o

processo revolucionário iraniano na década de 1970, unificando politicamente

um país dividido, onde uns defendiam instituições ocidentais e outros as

tradições religiosas. Para ele a política é uma graça divina concedida aos

homens para que lutem pela justiça social xiita. Assim, cada muçulmano é

desafiado a se envolver nos assuntos políticos, pois as revelações da

divindade são tão religiosas quanto políticas.

A percepção antropológica de Geertz acentua a congruência dos

símbolos sagrados com os processos sócioestruturais engendrados pela

dimensão religiosa:

A religião nunca é apenas metafísica. Em todos os povos as formas, os veículos

e os objetos de cultos são rodeados de uma aura de profunda seriedade moral.

Em todo o lugar, o sagrado contém em si mesmo um sentido de obrigação

intrínseca: ele não apenas encoraja a devoção como a exige; não apenas induz

a aceitação intelectual como reforça o compromisso emocional. [...] a religião

fundamenta as exigências das mais específicas da ação humana nos contextos

mais gerais da existência humana (Geertz, 1989, p. 143).

27 � Citamos ´ocidentalismo´ inspirado no conceito de orientalismo invocado por Said (1990). Para a perspectiva xiita o Ocidente é o mal em ação, e deve ser destruído para que o fundamentalismo religioso seja praticado livre de um inimigo corruptor. Tal visão estreita e reducionista dentro do xiismo é sustentada por clérigos radicais, historicamente nutrida pelo belicismo norte-americano e práticas xenófobas européias.

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A revolução islâmica no Irã produziu uma cosmovisão da política sob a

fé antagonizando à modernidade ocidental. Na reinterpretação proposta por

Khomeini o Irã deveria ser uma “República Islâmica” e não uma “República

Democrática Islâmica”. Onde, sob a égide da doutrina Walayat-al-faqih – a

tutela do jurista - se fundamentam reivindicações para constituição de um

Estado islâmico.

Apesar de sua mítica figura ser alvo de controvérsias entre diversos

setores da sociedade iraniana, Khomeini foi um relevante artífice do projeto

político revolucionário. Além de idealizador ele foi um dos mais engajados

realizadores da revolução com uma linguagem simples e direta que atingiu

uma ampla penetração entre as massas populares:

A relevância de Khomeini é tríplice: ele foi o maior idealizador e teórico

da Revolução Iraniana, seu principal estrategista e líder revolucionário, além de

ter sido ainda o governador que moldou a face pública do país no período

formativo pós-revolucionário. [...] Khomeini providenciou o projeto da futura

República Islâmica sob o auspício da simbologia islâmica (Demant, 2004, p.

229).

Além disso, a República dos Aiatolás28 estimulou uma ousadia política

aos grupos minoritários islâmicos em todo o planeta, aglutinando interesses

xiitas ao redor do mundo:

Foi a derrubada do regime Pahlevi no Irã, em 1979, de longe a maior de

todas as revoluções da década de 1970, e que entrara para história como

uma das grandes revoluções sociais do século XX. Era a resposta ao

programa relâmpago de modernização e industrialização (para não falar

armamentos) empreendido pelo Xá, com base em sólido apoio dos EUA e

na riqueza petrolífera do país, de valor multiplicado após 1973 pela

revolução de preços da OPEP (Hobsbawm, 2005, p. 440).

28 O termo Aiatolá significa – Sinal de Deus. No xiismo é um título concedido aos altos intérpretes da lei islâmica, em especial aqueles considerados iluminados com qualidade, autoridade e virtudes para engendrar a hermenêutica do Corão. Além disso, para os xiitas são teólogos dotados de infalibilidade moral.

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Obviamente, as propostas de Khomeini encontram resistências dentro

de grande parte do Irã atual, principalmente entre a juventude que não viveu

os dias revolucionários e anseia por mais liberdade em seus espaços

identitários. Ora, a força dos modelos culturais não anula os espaços próprios

de sua recepção (Chartier, 2009, p.46), outorgando tensões crescentes entre

a norma e a conduta, entre o discurso e o vivido.

Se a história é um profeta com o olhar voltado para traz, a fim de dizer

o que é e o que pode ser, então faz-se oportuno observar valores e propostas

do governo islâmico defendido por um interlocutor que se aproxima do Brasil

e América Latina, com relevante consistência, como faz o Irã. Uma presença

crescente que faz parte de uma estratégia dupla: angariar apoio diante das

pressões internacionais ao seu projeto nuclear; e, concomitantemente,

sedimentar a natureza universalista do governo islâmico insuflando projetos

islamizadores na latinoamerica.

Apreender para compartilhar vivências e aspirações, uma vez que

ambos - xiismo e ocidente - precisam tecer uma democracia social com

amplos espaços para a diversidade cultural preconizada no livre arbítrio

outorgado pelo Criador. Até porque, há caminhos que aos olhos dos homens

parecem direitos, mas o seu fim são caminhos de morte (Pv. 10:25).

1. . O governo islâmico no Irã: tradição, revolução e universalismo

O paradigma khomeinista é a base teórica da República Islâmica

iraniana, portanto, conhecê-lo é fundamental para compreensão nítida de

seus pressupostos constitutivos. O Irã, que ocupa 1,6 milhão de km² no

sudoeste da Ásia, está situado numa zona de passagem privilegiada entre o

Médio Oriente, a Ásia Central e o subcontinente indiano. Sua posição

geográfica permite o controle da passagem de navios petroleiros pelo Estreito

de Ormuz, região estratégica para o transporte de petróleo pelo Golfo

Pérsico.

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Importante ator político na região, com milênios de história, possui

mais de 77 milhões de habitantes (2009) que abarca uma diversidade de

grupos étnicos, cuja maioria é xiita29 (cerca de 90%) e um conjunto de

línguas associadas ao farsi (cerca de 75%).

Antes de ser denominado Irã pelo Xá Reza Pahlevi (primeiro Xá

Pahlevi, 1925), a região era conhecida como Pérsia. Nomenclatura cunhada

por Ciro30 para o seu vasto império que abarcava todo o Mediterrâneo oriental

(Kinzer, 2004, p. 36), por ter-se expandido a partir da cidade de Pars. Após as

conquistas de Ciro (o Grande, 539 AC) a dinastia dos Aquemênidas31 foi

consolidando o seu domínio, e, com Dário I, chegou a controlar mais de 5

milhões de Km2. As invasões árabes por volta de 630 introduziram o Islã no

Irã, mas apenas em 1502 a dinastia Safávida32 implementou o xiismo como

religião oficial. Buscava antagonizar grupos sunitas rivais (Hourani, 2005).

29 O termo xiita deriva da palavra árabe “Shi´a” que significa “partidário” ou “façção”. O desacordo, entre sunitas e xiitas, emana da sucessão de Maomé quando o partido de Ali Ibn Abi Talib (doravante citado apenas como Ali Talib) insistia na linha sucessória hereditária (ele era genro, primo e sobrinho de Maomé) alegando a necessidade uma pureza profética; um outro grupo insistia que qualquer coraixita (tribo árabe do profeta) poderia suceder Maomé. Ali Talib se tornou o quarto califa e governou enfraquecido com disputas internas até ser assassinado por um caridita em Najaf. O coraixita Mu´awiya tomou o poder e assassinou o filho mais velho de Ali, Hassam. Yazid, filho de Muawiya continuou no poder após a morte do pai, sendo interpretado como o figura do mal pelos seguidores do partido (SHIA) de Ali: os shi´itas ou xiitas. Em 680 DC o filho mais novo de Ali Talib, Hussein, enfrentou o usurpador Yazid e foi massacrado. O massacre inspirou o xiismo a jamais retroceder diante da causa justa de Talib. Segundo os xiitas Maomé determinou a continuidade do poder à pessoas da sua família, a “ahl-al-bait”. 30 Ciro II, o Grande - Rei da Pérsia e criador do Império Aquemênida (? - 529 AC). Sendo governador de uma província se junta aos súditos do seu avô, que se revoltam, e conquista Ecbátana - atual Hamadam (554 AC), capital da Média. Instala a sua capital em Paságarda e empreende uma série de campanhas vitoriosas. Em 546 AC derrota Creso, rei da Lídia, incorpora as suas possessões juntamente com as colônias gregas da Jónia. Entre 545 e 539 AC submete ao seu poder numerosos territórios orientais, e em 539 AC conquista a Babilônia com o que obtém o controle da Mesopotâmia, da Síria e da Palestina. 31 Célebre dinastia de soberanos persas que governou entre os séculos VII e IV AC sendo assim chamada pelo nome de seu fundador, Aquêmenes. Sua relevância inicia-se com Ciro ao fundar o império persa, assinalando a supremacia dos indo-europeus sobre a região do Oriente Próximo. O mais famoso Aqueménidas foi Dario (521-486 AC), que fundou Persépolis e penetrou na Macedônia em 513 AC. O Estado aquemênida extinguiu-se no século IV AC quando Alexandre Magno, rei dos macedônios, derrotou o último. 32 Dinastia iniciada em 1501 e que perdurou até 1722. O Estado safávida é um dos acontecimentos mais importantes da história do Irã Moderno. Tratava-se de uma época áurea da sua história política, cultural e religiosa, marcada principalmente pela introdução do xiismo no ambiente cultural persa.

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34

O Irã não é um país árabe33, antes, é um país Persa governado desde

1979 pelos xiitas de tendência duodecimista que aplicam o Corão

rigorosamente sobre a vida econômica, social e política do país. O mundo

islâmico, longe da homogeneidade,34 encontra no viés religioso uma busca

pela restauração da sua supremacia perdida e um ativo identitário

(Armstrong, 2001b, p. 128). Ressentimentos que geram radicalismos.

O Irã quer aumentar sua influência na América Latina, tanto para fugir das

sanções impostas nas tensões nucleares, como para expandir seu

universalismo religioso. Por um lado, não quer depender apenas do petróleo

e está buscando novos mercados para seus produtos, e, por outro, quer

irradiar apoio aos projetos islamizadores que propiciam ativos

políticoeconômicos. Mas, o movimento tem alcance mundial. Em todo o

mundo várias minorias islâmicas passaram a olhar a Revolução Iraniana

como uma real possibilidade política. Ela descortinou o xiismo duodécimo35

para o Ocidente como um movimento sóciorreligioso com uma expressão

política própria e uma visão singular da modernidade. A realidade nuclear

aguça expectativas tanto nas minorias xiitas estacionadas na periferia do

mundo capitalista, como dos países concorrentes na região.

33 Contrariando o sendo comum no Ocidente o Islã não pode ser resumido ao conceito de Arábia, pois os árabes são minoritários no mundo islâmico contemporâneo. Embora o árabe seja o idioma de seu livro sagrado, o país com maior população muçulmana do mundo é a Indonésia (210 milhões de muçulmanos). 34 Tendo em vista os séculos VII a X no Oriente Próximo pode-se até contemplar uma relativa unidade, mas no mundo contemporâneo isso se desfaz. Atualmente impera um plural de “Islãs” com suas derivações locais, cada qual vivendo sob as conveniências de suas próprias convicções políticas e sociais, embora reivindiquem o Corão como livro de princípios e procurem sustentar práticas religiosas comuns: a obrigatoriedade de peregrinação a Meca, as cinco orações diárias e a proclamação pública da fé islâmica. 35 � Husseim foi o terceiro Iman xiita. De sua família saiu um total de doze Imans que foram martirizados com exceção do último que sobrenaturalmente desapareceu do mundo no século IX. Acredita-se que voltará no fim dos tempos como Al-Mahdi (o messias); tal advento é visto pelo xiismo como a redenção das sociedades humanas, pois o Iman oculto será a luz da justiça para um mundo corrompido (Demant, 2004, p. 51). Nem todos os xiitas são duodecimanos; os Zaydistas seguem o Iman Zayd al-shahid (não limitam o número de Iman a doze) e os Ismalitas seguem o Iman Ismail Ibn Yafar, filho do sexto Iman Yafar al-Sadiq.

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35

Ahmadinejad, presidente iraniano desde 2005, busca novos parceiros

comerciais em regiões antes ignoradas. O Brasil, que possui uma grande

quantidade de muçulmanos é visto como um estratégico parceiro de negócios

e possível mediador com o Ocidente. Entre 2007 e 2010 o Irã aumentou sua

presença econômica e diplomática na América Latina, com o anúncio de

abertura de escritórios comerciais e embaixadas no Chile, Colômbia,

Equador, Nicarágua, Bolívia e Uruguai. O foco da política externa do Irã

mudou da África para a América Latina, com uma impressionante penetração

política e econômica no continente em apenas três anos. O comércio entre

Brasil e Irã gira em torno de US$ 2 bilhões por ano, além da Petrobras operar

no país.

Venezuela e Cuba foram, junto com a Síria, os únicos três países que

apoiavam o programa nuclear iraniano durante uma votação na Agência

Internacional de Energia Atômica da Organização das Nações Unidas, em

2006. Ahmadinejad e Chavez defendem a formação de um eixo

antiamericano36 definido por Chavez como G-2. Bilhões de dólares iranianos

em ajuda e assistência financiam projetos sociais na América Latina.

Durante a visita do ministro do Exterior brasileiro, Celso Amorim ao Irã,

em novembro de 2008, seu homólogo iraniano Manouchehr Mottaki disse que

"o Irã merece maior prioridade na política estrangeira da América do Sul e

que o Brasil está em uma posição privilegiada para isso". O Brasil tem o Irã

como prioridade em política externa o que desafia a hegemonia americana na

região37.

Não se pode confundir o sentido de antiamericanismo para países da

América Latina e para o xiismo iraniano. Os signos são distintos apesar da 36 Ahmadinejad fez três viagens diplomáticas à America Latina buscando alianças nos "países revolucionários". Ele visitou Venezuela, Nicarágua, Equador e Bolívia. Ele também hospedou os presidentes Chávez, Ortega, Correa e Morales no Irã. Durante a Conferência Internacional sobre a América realizada em Teerã, em fevereiro de 2007, o ministro das Relações Exteriores anunciou a abertura de embaixadas no Chile, Colômbia, Equador, Nicarágua e Uruguai, e um escritório representativo na Bolívia.

37 Conforme disponível em:<http://noticias.uol.com.br/bbc/2010/05/14/ao-visitar-ira-brasil-desafia-politica-externa-dos-eua-diz-financial-times.jhtm>. Acesso em 14 mai 2010.

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36

semelhança nos discursos. A história recente da revolução xiita nos lembra

que a luta anti-imperialista – para Khomeini e seguidores - não é econômica,

antes, é islâmica. Não se luta contra o imperialismo para erradicar a pobreza

e/ou alienação socioeconômica, mas, principalmente, para fundamentar um

governo islâmico que preconize o xiismo como centralidade do cotidiano

politicossocial.

1.a) Xiitas e a Sha´ria.

O Islã é, sobretudo, um fenômeno histórico, cultural e social muito

complexo e tão abrangente que definitivamente não pode resumir-se numa

simples fórmula religiosa ou política (Merad, 1988, p. 15). Faz-se necessário

observá-lo na amplitude de sua história cultural, com seus processos sociais

e políticos que conectam o passado e o presente materializando suas

tradições, seus sistemas de valores e as suas formas institucionais próprias

(Hunt, 2001, p. 6).

Tais representatividades históricas, como a dialética da produção

simbólica da teologia política xiita38, muito tem a contribuir na aclaração da

compreensão ocidental tão comumente reducionista. Apesar do xiismo

representar apenas 15% do mundo muçulmano (o sunismo39 representa

38 O modelo de teologia política proposto por Gilvan V. Silva é compatível para o xiismo: “a concepção de que o regime político reproduz em alguma medida o que ocorre nas esferas celestes [ou sobrenaturais] dado aos homens por intermédio das potestades sobrenaturais e que a legitimidade do governante é sobrenatural” (Silva, 2003, p. 103). O iman (líder) adquiriu algumas características semidivinas, podendo mobilizar energias políticas incomuns, tanto em seus seguidores como em seus rituais clericais. O próprio xiismo popular atribui aos imans poderes semimágicos e os descrevem com atributos relativamente sobrenaturais, ora profética ora magicamente. 39 Sunitas é a denominação dada pelo muçulmanos àqueles que seguem “a Sunna – Literalmente significa: o caminho trilhado”, que contem os gestos e pronunciamentos de Maomé configurando seus costumes e hábitos religiosos. A Sunna é por conseguinte cultuada e utilizada para resolver os casos dúbios, não considerados pelo Corão. Os sunitas negam aos descendentes do quarto califa, Ali Talib, o direito ao poder político, opondo-se nesse particular aos xiitas. Eles veneram os companheiros do profeta Maomé e seus seguidores, mormente o ensino da tradição (hadices e Sunna) , posicionando a Sunna, não raro, no mesmo nível do Corão.

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37

85%), a sua fervorosa crença e seu projeto político peculiar são motivos de

atenção dentro do universo islâmico e fora dele.

Desde o início as escolas de pensamento (xiitas e sunitas) viviam em

tensão, também, devido ao cotidiano dos povos conquistados, pois a

expansão do Islã trouxe um confronto com os costumes que vigoravam nos

novos territórios. Para defender a unidade da religião desenvolveu-se a fiqh,

uma técnica semi-jurídica de interpretação das fontes religiosas cuja precípua

função era dirimir tensões no cotidiano (social e religioso):

Uma vez estabelecidos e aceitos esses princípios, era possível tentar relacionar

o conjunto de leis e preceitos morais com eles. Esse processo de pensamento

era conhecido como fiqh [e formava jurisprudência], e o produto dele acabou se

chamando Sha´ria (Hourani, 2005, p. 84).

A Sha´ria40 (a saber, “o caminho por excelência”) é, portanto, uma

tentativa por esforço humano de prescrever detalhadamente o estilo de vida

que aglutinasse as orientações do Corão e do Hadith (ou hadice). Os hadices

são muito importantes na tradição islâmica, pois derivam do estudo do

comportamento do profeta Maomé:41

O estudo do comportamento que havia tido o profeta Maomé nas múltiplas

circunstâncias de sua vida foi de particular valor para iluminar o julgamento dos

doutores da lei. Esses hadiths, ou hadices, completam o Corão e fundamentam

a tradição ortodoxa. Foram recolhidos, discutidos, verificados e interpretados

graças a considerável esforço dos historiadores islâmicos. Por certo as

necessidades do sagrado restringiam muitas vezes o espírito crítico (Lacoste,

1991, p. 218).

40 �Sha´ria significa: o rumo para uma fonte; Trata-se do Código Legal islâmico que estabelece regras para diversos aspectos da vida cotidiana. Baseada no Corão, na Sunna e no Hadice (tradições dos ensinamentos e ações do profeta não encontradas no Corão), a Sha´ria estabelece punições - e diretrizes - para diversos crimes comuns e questões religiosas; constituindo-se, portanto, em uma normatização da vida social. 41 � A pronuncia correta é Mohammad, no entanto, utilizaremos o vocábulo Maomé pela sua generalização latina.

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A história detém um lugar preponderante na cultura islâmica, ela é o

ambiente onde o sagrado se materializa. No Islã a história homologa a fé. Ela

é politizada e politizante, nada menos que a arena do sagrado. Por isso, a

Sha´ria normatiza a vida humana sob os desígnios do sagrado definindo os

atos de culto, relacionamentos, profissões de fé, abarcando todas as atitudes

do fiel para com Deus e o próximo (Hourani, 2005, p. 173).

No século XX Ruhullah Khomeini defende a personalização destas

técnicas, argumentando que se um jurista qualificado engendra fidedignas

interpretações dos textos coranistas, tal jurista é denominado “faqih”, a

encarnação da revelação - e exegese - escrita (fiqh). No entanto, os ditames

do livro sagrado eram por vezes obscuros e contraditórios” (Demant, 2004, p.

46).

As interpretações, e suas aplicabilidades sócio-políticas no governo

islâmico, são para o xiismo uma manifestação do sagrado também

carregadas “[...] de potência, de ação criadora, que é colocada em movimento

para produzir a realidade e garantir sua perpetuação” (Silva, 2003, p. 100).

1.b) Khomeini e a perspectiva xiita sob o conceito de revolução.

Atualmente ampliam-se as investigações científicas sobre a

congruência entre o político e o sagrado principalmente ressaltando as

vicissitudes do saber local, um saber que se refere a universos significativos

próprios e às perspectivas inerentes que lhes conferem suas singularidades

(Geertz, 2002, p. 26). Sem deter o olhar na superfície das coisas, precisa-se

historicizar as relações fundamentais, na sociedade xiita, entre o espiritual e o

temporal; tratando-os como um fenômeno histórico que preconiza a inflexão

do espiritual sobre o social e o político. Essa foi uma premissa do ineditismo

da revolução iraniana face às revoluções tradicionais: o conceito de revolução

está inextrincavelmente ligado à noção de que o curso da História começa

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subitamente de um novo rumo, de que uma História inteiramente nova

(Arendt, 1990, p.23).

Desta forma a ideia de revolução não é apenas uma revolta ou

sublevação, mas uma consciência do novo, da ruptura com o anterior,

pautada pela busca da liberdade. Acima de uma insurreição, a revolução se

materializa na instituição do novo que reivindica liberdade para se consolidar,

no caso iraniano: reivindica o governo islâmico sob a égide do escrituralismo

governamental, isto é, a submissão de todas as demandas governamentais à

exegese xiita do Corão. A revolução, portanto, concatena a ideia de ruptura

com a ordem secular vigente e o compromisso com o novo libertário que

efetiva consolidações revolucionárias. Arendt enfatiza que a violência social é

um identificador menos adequado dos movimentos revolucionários do que as

mudanças políticas:

Todos esses fenômenos [mudanças políticas, violência, transformação social,

imaginário revolucionário de um novo começo] têm em comum com a revolução

o fato de que foram concretizados através de violência, e essa é a razão pela

qual eles são, com tanta frequência, confundidos com ela. Mas a violência não é

mais adequada para descrever o fenômenos das revoluções que a mudança;

somente onde ocorrer mudança, no sentido de um novo princípio, onde a

violência for utilizada para constituir uma forma de governo completamente

diferente, para dar origem à formação de um novo corpo político, onde a

libertação de opressão almeje, pelo menos, a constituição da liberdade, é que

poderemos falar de revolução (Arendt, 1990, p. 28).

No sentido moderno de se compreender uma revolução (Arendt, 1990,

p. 34), a Revolução Iraniana engendra a implementação da fé que emancipa

a comunidade islâmica de ativos corruptores, tal como, a cultura ocidental.

Seus atores sociais são convictos de que a predominância dos significados

religiosos deriva de um governo reconfigurado sob a égide xiita.

Na formação discursiva de Khomeini o conceito de teocracia tradicional

é incompatível com a teoria da teocracia constitucional do aiatolá, pois no

modelo tradicional, caracteriza-se uma forma de governo cujos dirigentes

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consideram-se designados por Deus para representá-lo na terra. Segundo o

governo islâmico Khomeinista, a fórmula tradicional onde o chefe político

mantinha uma relação privada particular com o mundo divino, e por ele é

legitimado sobrenaturalmente (Silva, 2003, p. 103) é herética. A sacralização

da realeza, ou do governante, caracteriza a shirk (idolatria). Khomeini

abomina a monarquia.

O paradigma político de Khomeini compreende o sagrado entendido

como um espaço no qual se revela a realidade fundamental, ontológica e

transcendental dos seres, preconizando a soberania da escritura sobre a

governabilidade, em detrimento da figura mítica do líder, a priori, qualificada

como servo do sagrado, todavia, jamais uma figura sagrada. Sob um

fundamentalismo religioso a revolução substituiu o velho regime imperialista,

com notório engajamento popular (Hobsbawm, 2005, p. 442), compondo uma

política estatal permeada de conexões entre política e religião.

2. Fundamentalismos ocidentalistas: representações do orientalismo.

Para evitarmos a imprecisão no que tange ao tema fundamentalismo, é

importante lembrar que o termo significa: “tornar aos fundamentos” ou

“invocar os alicerces”. Comumente se compreende fundamentalismo como

uma ação armada eivada de religiosidade e ocasionalmente violenta. E o pior,

se atribui a esta prática signos puramente islâmicos. Armstrong lembra que “o

fundamentalismo é um fato global e em toda religião importante tem surgido

como resposta aos problemas da nossa modernidade” (Armstrong, 2001b, p.

220). Obviamente, há fundamentalismos no judaísmo, no cristianismo, no

hinduísmo, no budismo e até no confucionismo.

O fundamentalismo é um expressão política que contém sementes de

utopia em seu interior, por isso tantas religiões abrigam em seu seio embriões

de uma fundamentalização inerte, mas nem todas na mesma quantidade ou

intensidade. As crises e decepções com as diferentes formas, ou

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intensidades, da invasão moderna gera condições propícias para o

fundamentalismo. Khomeini vaticinava a volta aos “fundamentos” do xiismo

medinense.

O radicalismo islâmico busca envolver inteiramente o fiel na

materialização de sua fé através das transformações políticas sob a égide

do simbolismo radicalista. O poder do simbólico religioso quando

institucionalizado por um conjunto sistemático de doutrinas e perspectivas

teológicas interdependentes configura e norteia a visão de mundo de um

homem politizado pela sua fé (Bourdieu, 1996, p.105).

Para um fundamentalista o sacrifício é um sinal da dedicação à Deus, e

esta, por sua vez, um fundamento da prosperidade islâmica. Said Qutb, um

dos mestres teóricos de Khomeini, afirmava: “A miséria do mundo muçulmano

é o resultado dos muçulmanos terem se esquecido de Deus!”. Tal como a

perspectiva de Sifrônio (patriarca de Jerusalém na rendição da cidade aos

muçulmanos em 638 DC) quando vaticinava que a queda da cidade santa

decorria da punição divina pelos pecados dos cristãos em sua época.

O fundamentalismo islâmico é um produto antimoderno da

modernidade (Demant, 2004, p.319). O Oriente não sente apenas frustração

em relação ao desenvolvimento do Ocidente, mas também um tipo de relação

de desejo, um desejo pelos avanços da modernidade. Ao contemplar tais

avanços uma parte do mundo islâmico enseja incorporá-los sem perder a

proeminência da cultura religiosa na sociedade. No entanto, a própria

complexidade da civilização ocidental é antípoda de valores inerentes à

espiritualidade islâmica. Essa relação de frustração/desejo, sufocada e

desfigurada, alimenta um sentimento conflitante que muitas vezes se traduz

em aversão e repugnância aos signos da modernidade. Note-se a ampla

apropriação que simpatizantes do Hezbollah e do Hamas – também na

América do Sul e Latina – fazem do pensamento de ocidentalista de

Khomeini. O xiita, fundamentalista, sabe que apenas no governo islâmico sua

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fé será plena, logo, todas formas de governo laicas são obstáculos a sua

expressão do sagrado (Khomeini, 2004 [1971], p. 73).

O ocidente é visto aos olhos de seus inimigos por lentes que ele

próprio teceu, isto é, ao tecer o oriente, percebe-se que o rosto formado é o

seu próprio (Said, 1990). Não é uma tarefa fácil definir o contexto histórico

que insufla o radicalismo, pois há relações e sobreposições demais para se

estabelecer uma coerência perfeita (O capitalismo globalizante, a fé cega no

mercado, as grandes cidades e suas dissoluções, a especialização do

conhecimento, a desfiguração da coletividade, as liberdades civis e o

individualismo laicizante). É um embate de representações sociais, onde o

sentimento e o pensamento assumem o lugar do próprio objeto (Bourdieu,

1996).

O historiador descobre os traços culturais pela leitura que faz dos

símbolos, temas, signos e suas representações sociais. As representações

sociais são produzidas pelas interações e comunicações discursivas no

interior dos grupos sociais, nesse sentido a noção de representação social

nos remete a: “[...] um conjunto de conceitos, afirmações e explicações

originadas no cotidiano, no curso das comunicações interindividuais”

(Moscovici, 1976, p.181).

O conceito de representação ocupa uma posição cada vez mais crucial

no pensamento político moderno; “uma teoria do simbólico, uma vez que o

objeto ausente é reapresentado à consciência por intermédio de uma imagem

ou símbolo” (Falcon, 2000, p.46). A representação é uma mediação da

realidade - ou do conhecimento desta realidade - agindo como uma força

reguladora da vida coletiva, definindo lugares e hierarquias, direitos e

deveres, valores e símbolos. “[...] um objeto construído no e pelo discurso -

objetos históricos e mutáveis -, logo um objeto distante, portanto, de qualquer

universalidade ou validade intrínseca” (Cardoso, 2000, p. 12). A

representação assume o lugar do sentimento, ou do objeto. Permeia e

regulamenta o cotidiano, as delimitações sociais e de gênero, os aparelhos

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políticos e suas representações, e as diversas questões de valores laicos ou

religiosos.

Sob um conjunto de imagens e relações de imagens que articulam

representações do mundo social com o próprio mundo social. A perspectiva

weberiana no estudo científico da religião salienta que a unidade básica do

social são os indivíduos. Diante do desencantamento do mundo os indivíduos

engendram uma racionalização crescente penetrando em todas as esferas da

vida, entre as quais: a religião e a política. A imposição integral da

interpretação unilateral do Corão catalisa o ressentimento contra o avanço

ocidental no mundo islâmico, enaltecendo um forte sentimento vingativo que

alimenta um xenofobismo crescente e, principalmente, a convicção entre os

radicais de que a ruína ocidental é o ativo condicionante da paz universal

(Meddeb, 2003, p. 11).

Todavia, esse radicalismo não é privilégio do Islã. Voltaire lembra o

fanatismo como um realidade presente na fé católica e Mann relata o excesso

do espírito prometéico nazista como a ruína alemã. As próprias contradições

entre os princípios e a práticas ocidentais aguçam a rivalidade com o mundo

islâmico:

[...] O não-reconhecimento do Islã pelo Ocidente como representante de

alteridade interior; a maneira de encurralá-lo no estatuto do excluído; o modo

pelo qual o Ocidente renega seus próprios princípios desde que o interesse o

reclame; e, enfim, a maneira que tem o ocidental (nos dias atuais na forma do

americano) de exercer impunemente sua hegemonia segundo a política de dois

pesos duas medidas que alimenta a revolta do islamismo (Meddeb, 2003, p.

12,13).

A islamização da sociedade preconiza concepções individualizantes

incorporadas em símbolos que formatam valores e procedimentos na vida

pública e privada com tal intensidade que o fiel é possuído pela religiosidade

(Geertz, 2004, p. 105) a tal ponto que a interação do binômio

pertencimento/missão é o ativo primário de sua existência. Ele se vê

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pertencendo a fé (sua visão de mundo) cujo ethos é a materialização desta,

“em consonância com o próprio contexto cultural de sua época, a fim de que

tenhamos a produção de uma instituição social e não uma experiência

efêmera circunscrita a um círculo limitado” (Silva, 2003, p. 106). Sob a égide

do escrituralismo governamental o sujeito islâmico se vê pensado e não

pensador.

Por razões difíceis de entender para um cientista social orientado para

organizações, o mundo muçulmano é saturado por reverência pela variante da

alta cultura do Islã: igualitária, escrituralista, puritana e nomocrática. Esse ethos

parece ter vida e autoridade próprias, e não é visivelmente dependente de

qualquer corporificação institucional (Gellner, 1997, p. 190).

O universalismo xiita encontra ressonância nas minorias xiitas pelo

mundo. A revolução xiita iraniana foi para muitos um resgate da dignidade

islâmica. Uma afirmação do direito de ser moderno em outros formatos que

não o ocidental. A visão política e religiosa de Khomeini norteia paradigmas

políticos no Irã e incita expectativas nos grupos minoritários xiitas em todo o

planeta através da configuração de um sistema político universalista. A

revolução foi uma mensagem clara aos governos árabes apelando para a

justiça social, o nacionalismo e o sentimento de lealdade islâmica:

A revolução islâmica no Irã de 1978-1979, ainda que ocorresse num país não-

árabe, evocou grandes esperanças entre as massas do mundo árabe e,

concomitante, instilou pânico entre os regimes existentes. Por um lado, os

limites do potencial emancipador daquela revolução não ficaram logo claros. A

face repressiva do regime de Khomeini levou tempo até se manifestar. [...] a

revolução, ainda que atípica por sua cor religiosa foi tida como progressista.

Logo os novos líderes do Irã incitaram os muçulmanos no mundo árabe a depor

seus governos ´traiçoeiros´ e a instaurar regimes autenticamente islâmicos

(Demant, 2004, p. 118).

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3. Paradigmas para um governo islâmico na perspectiva de Khomeini.

O Aiatolá Khomeini era quase um denominador comum a todos os

setores que antagonizavam o imperialismo do Xá, desde as massas

tradicionais aos mais secularizados, e até os setores mais religiosos. Suas

ideias engendraram pontos inéditos na história política iraniana, tais como: A

chamada política para o ativismo político clerical; a tutela de um guardião

configurando um aparato político norteado pelo escrituralismo governamental

(Khomeini, 1981, p. 27). Além disso, Khomeini promoveu um tipo de

despersonificação: a lei (o Corão) tornou-se o que mais importava e não

quem a implementaria. Assim a centralidade da lei religiosa substituiu a da

pessoa religiosa.

3.a) representações políticas antiocidentais: uma análise dos

discursos

Chartier argumenta que: “o saber histórico pode contribuir para

dissipar as ilusões e os desconhecimentos que durante longo tempo

desorientaram as memórias coletivas!” (Chartier, 2009, p. 24). Assim, a

história recente faz-se muito útil na construção de um conhecimento sob a

égide da racionalidade contemporânea. A história do presente dissipa ilusões

de ótica que a distância alimenta nos historiadores.42

Os discursos, seus componentes e representações, são importantes

objetos da história cultural, principalmente para salientar as formas culturais

que se quer legitimar. O historiador desvela os padrões culturais contidos em

textos e imagens que, como espelhos, forjam regras culturais a refletir os

problemas históricos de seu tempo (Burke, 2005, p. 19). Nos discursos se

refletem o alcance dos papéis sociais pré-estabelecidos nas diversas esferas 42 � “[...] a história do presente é um bom remédio contra a racionalização a ´posteriori´, contra as ilusões de ótica que a distância e o afastamento podem gerar” (Remond, 1996, p. 209).

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da sociedade (Khomeini, 2004 [1971], p. 24), e a naturalização das

representações que desempenham um papel crucial no ajuste do sujeito em

seu meio social (Chartier, 1990:17).

Cabe lembrar que a palavra texto provém do verbo latino textus, que quer dizer

tecer. Da mesma forma que um tecido não é um amontoado desorganizado de

fios, o texto não é um amontoado de frases, [...] Dar destaque à noção de que o

texto é um objeto histórico leva a preocupar-se primordialmente com a forma

ideológica de que ele é expresso, com as relações polêmicas que, numa

sociedade dividida em classes, estão na base da constituição das diferentes

formações discursivas (Fiorin, 2002, p. 40).

Os discursos são uma dispersão, isto é, são formados por elementos

que não estão ligados por nenhum princípio de unidade, no entanto, estão

sob um ritual discursivo que determina para os sujeitos que falam, ao mesmo

tempo, propriedades singulares e papéis pré-estabelecidos. Cabe, portanto, a

análise do discurso descrever esta dispersão sob um ritual com propriedades

e papéis peculiares na teatrologia do político, buscando notar as regras43 que

regem a formação discursiva (Brandão, 2002, p. 28).

Cada homem aprende a ver o mundo pelos discursos que assimila,

portanto, produzir discursos é produzir mediações, isto é, interpretações ou

pré-interpretações do mundo e seus contextos:

[...] o que define o conteúdo da consciência são fatores sociais, que determinam

a vida concreta dos indivíduos nas condições do meio social. O discurso não é,

pois, a expressão da consciência, mas a consciência é formada pelo conjunto

dos discursos interiorizados pelo indivíduo ao longo de sua vida (Fiorin, 2002, p.

35).

43 � Para Foucault, as regras geralmente são: Os objetos que aparecem, coexistem e se transformam num espaço comum discursivo; Os diferentes tipos de enunciação que permeiam um discurso e precisam ser identificados; Os conceitos em suas formas de aparecimento e transformação num espaço discursivo estão relacionados em um sistema comum de construção discursiva; Os temas e teorias no discurso formam um sistema de relações entre diversas estratégias postuladas para dar base à formação discursiva, operando até de forma a excluir outros discursos, ou partes destes outros temas ou teorias.

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O discurso precisa ser analisado como um jogo estratégico de ação e

reação, uma luta de dominação e esquiva.

[...] O discurso não pode mais ser analisado simplesmente sob seu aspecto

linguístico, mas como jogo estratégico de ação e reação, de pergunta e de

resposta, de dominação e de esquiva, e também como luta. O discurso é o

espaço em que saber e poder se articulam, pois quem fala, fala de algum lugar,

a partir de um direito reconhecido institucionalmente. Esse discurso, que passa

por verdadeiro, que veicula saber (o saber institucional) é gerador de poder

(Brandão, 2002, p. 31).

Há uma luta de representações no embate ocidente e xiismo. A mente

ocidental valoriza a fragmentação da sociedade e do ser humano, sob a

divisão do trabalho e a competição de mercado (Buruma; Margalit, 2006, p.

81). Já a visão xiita preconiza a valorização da mente não fragmentada,

organicamente entrelaçada com a sociedade material, onde a fé é o quinto

elemento da natureza. Para o fiel, lutar e morrer pela sua crença não é

fanatismo, antes, a verdadeira racionalidade integral. A sociedade moderna

ocidental, secular e liberal, é que representa – para os radicais - o algoz do

islamismo.

Na perspectiva khomeinista, o xiita existe para cumprir uma missão

divina na política (Khomeini, 1981 [1941], p. 170), pois a mente ocidental está

cauterizada pelo materialismo consumista, por isso não entende a idéia de

sociedade governada por objetivos espirituais islâmicos. A composição da

religiosidade já não se satisfaz apenas com a subjetividade mística particular,

ela alça vôos sobre territórios de uma história cultural com a mesma

intensidade de seu messianismo. Khomeini objetivava uma Teerã

organicamente islamizada que resplandecesse a justiça islâmica para o

mundo.

Os dis cursos de Ruhullah Khomeini afirmam que o tema do governo

islâmico – e sua premissa sobre a tutela do jurista - é pouco explicitado

devido às circunstâncias sociais existentes entre os muçulmanos em geral e

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as precárias condições de autonomia das instituições religiosas islâmicas em

particular. Para ele, os judeus e os ocidentais estão conluiados globalmente

arrefecendo a soberania islâmica (Khomeini, 2004 [1971], p. 20), opondo-se à

conjunção do sagrado e do político:

Estes novos grupos começaram sua penetração imperialista nos países

muçulmanos, há aproximadamente trezentos anos, e trabalharam pela

liquidação do Islã até as últimas consequências. Seu objetivo não era alienar as

massas do Islã com a intenção de promover o cristianismo entre eles, porque na

realidade, os imperialistas não possuem crenças religiosas, nem cristãs, nem

islâmicas (Khomeini, 2004 [1971], p. 19).

Geertz enfatiza que a religião é um fato social (Geertz, 2001, p. 150)

que mesmo propondo-se supraterrena, no entanto, tem-se aproximado cada

dia mais das questões terrenas: política, sociedade, economia e cotidiano.

Essa inflexão do religioso sobre a ordem do cotidiano conforma mentes e

corações ao simbolismo xiita. O acelerado processo de secularização que

ocorreu no Oriente Médio, nas décadas de 1950 a 1970 não foi absorvido

pela grande maioria da população que alijada da inclusão social e política

concede aos grupos religiosos ortodoxos a missão de tutoreá-los.

A geração após a revolução iraniana questiona a dominação religiosa,

como se vê nos sangrentos protestos contra a reeleição do atual presidente,

duramente reprimidos desde Julho de 2009. A retaliação levou a milhares de

prisões, mortes e centenas de desaparecidos. Em Maio de 2010, um

jornalista iraniano-canadense foi condenado a 74 chibatadas e 13 anos de

prisão para afirmar o início de "uma brutal onda de repressão" com o objetivo

de impedir protestos pelo aniversário das eleições de junho passado.

3.b) A política como arena da fé e das armas.

A revolução iraniana concretizou o processo de mudança de uma

comunidade religiosa para uma comunidade política, islamizando a

sociedade:

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O Islã é o Din44 dos indivíduos militantes que confiam na verdade e na justiça. É

o Din daqueles que desejam a liberdade e a independência. [...] A visão

defeituosa sobre o Islã visa privar o Islã de seus aspectos vitais, e

revolucionários, para impedir assim que os muçulmanos possam despertar o

desejo de conquistar sua liberdade, aplicar as ordenanças dos Islã e estabelecer

um governo que os assegure a felicidade e lhes permita viver vidas dignas de

seres humanos (Khomeini, 2004 [1971], p. 20).

Em qualquer parte, o objetivo do governo islâmico é converter a fé em

projeto político unilateral, mesmo que autoritário (Hourani, 2005). Em

Khomeini, a dimensão religiosa é imprescindível para arquitetura das

identidades xiitas e efetivação do governo islâmico. Se o ocidente é corruptor

então um governo islâmico não pode estar submetido às leis ocidentais: “A

imposição de leis estrangeiras em nossa sociedade islâmica tem sido fonte

de numerosos problemas e dificuldades” (Khomeini, 2004 [1971], 25).

O racionalismo é uma crença de que a razão, e apenas a razão pode explicar o

mundo. A isso se liga a ideia de que a ciência é a única fonte de compreensão

dos fenômenos naturais. Outras fontes de conhecimento, especialmente a

religião, são descartadas pelos racionalistas como superstições (Buruma;

Margalit, 2006, p. 95).

Khomeini preconiza o envolvimento do cidadão semelhantemente ao

de um combatente militar. Isto é, caso não tenha espaço para fazer política

deve lutar em armas para alcançar seu espaço. Uma participação orgânica

(comum nos sistemas culturais onde o sagrado é partícipe do fôlego de vida

individual) cuja resistência/combate é a vitória.

As coisas têm chegado agora a tal ponto que alguns consideram as roupas de

soldado incompatíveis com a verdadeira coragem e justiça, apesar dos líderes 44 � Din, a fé ou crença, é um termo que denota compromisso ou pacto de obediência. Trata-se de um conjunto de normas, crenças e por extensão, um acordo que livremente se estabelece entre o crente e a divindade, objetivando o cumprimento das obrigações islâmicas.

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de nossa fé terem sido todos chefes, soldados e guerreiros. [...] O próprio Emir

dos crentes45 (a paz seja sobre ele) colocou um bendito elmo em sua cabeça,

vestiu sua cota de malha e cingiu-se da espada. O Imam Hasan46 e o senhor

dos mártires (Husseim) fizeram o mesmo. [...] Mas agora vestir roupas militares

é sinônimo de menosprezo da qualidade humana da justiça47 e se diz que não

devem se vestir de uniformes militares. Se nós vamos formar um governo

islâmico temos que fazê-lo pois com nossos mantos e turbantes; se contrário,

estaremos cometendo uma ofensa contra a decência e a justiça (Khomeini,

2004 [1971], p. 28).

Na visão do Aiatolá o verdadeiro muçulmano precisa estar “em armas”

pela implantação do governo islâmico. Para ele, o Ocidente descaracteriza o

fiel muçulmano apartando-o dos mantos militares, objetivando depreciar as

políticas islâmicas e seus processos judiciais, substituindo-os por políticas

angloeuropéias. Em qualquer lugar que o xiita estiver, ele deve realizar um

duplo serviço: refratar o ocidente corruptor e propiciar avanços para o xiismo,

principalmente, através do cenário político. Ao separar a religião e política, os

ocidentais evitariam um governo islâmico; aceitando no máximo um governo

ocidentalizado com figuras islâmicas.

Para ele, as soluções da problemática social derivam da reestruturação

do espiritual, explicitando que as vitórias islâmicas emanam do reforço da

identidade xiita:

Para solucionar a problemática social é necessário apoiar-se na fé e na moral;

adquirir poder e força material, unicamente, conquistando a natureza e o espaço

físico, não tem efeito algum em si mesmo; o poder político deve ser

complementado com a fé e equilibrado com a convicção e a moralidade do Islã, 45 � Ali Talib foi o primeiro dos doze imams dentro da crença xiita. 46 � Imam Hasan – Filho de Ali, ocupa o segundo posto na sucessão dos doze imams. Morreu envenenado no ano de 670 DC após passar a maioria de seus dias recluso em Medina. 47 � Uma premissa teológica importante é a aplicação de justiça. Quando Khomeini cita “a qualidade humana de justiça” ele está apelando ao sentido pérsico de justiça: a sabedoria religiosa que faz o indivíduo sábio aos olhos de Deus e dos homens, incluindo o equilíbrio espiritual em todos os âmbitos sociais e uma abstenção de faltas graves onde todas as práticas do fiel estão em congruência com o decoro do Corão e seus deveres cultuais.

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para poder servir verdadeiramente à humanidade em lugar de pô-la em perigo

(Khomeini, 2004 [1971], p. 29).

Divergindo do pressuposto cristão48 e das premissas iluministas,

Khomeini assevera que somente os ignorantes separam a religião e a

política, pois dissociar o muçulmano do ativismo político seria o caminho para

uma exploração mais segura:

Esses gritos são promovidos pelos imperialistas e seus agentes políticos, para

evitar que a crença predomine nos assuntos deste mundo e conforme a

sociedade islâmica; e, ao seu lado, querem criar um abismo entre os eruditos

islâmicos por seu lado, e as massas e aqueles que lutam pela liberdade e pela

independência de outro. Dessa maneira (eles) tem sido capazes de dominar

nosso povo e saquear nossos recursos, que é o objetivo final que sempre tem

tido (Khomeini, 2004 [1971], p. 32).

Exaltando Maomé como um político e profeta, Khomeini conclama os

clérigos a um envolvimento político nacionalista, jamais visto desde o califado

de Medina, e paradigmático nos assuntos sociais, econômicos, políticos, nas

relações internacionais e nas resistências teológicas e culturais aos governos

considerados inimigos do Islã. Entretanto, vários pensadores modernistas

islâmicos refutam a união entre religião e política. São reformistas que tentam

conciliar o Islã com a modernidade ocidental – e com a própria tradição

islâmica - antagonizando as propostas unilaterais. Em linhas gerais os

reformistas recusam a sobreposição da din (fé) com o dawla (governo),

preferindo análises e prescrições decorrentes de uma releitura histórica das

fontes sagradas e uma hermenêutica livre de fontes totalitárias. Um desses

protagonistas é Mohammad Arkoun: 48 � No cristianismo bíblico – sob a revelação do Novo Testamento que antagoniza parte da história cristã ao longo dos séculos - o temporal e o político correspondem a reinos distintos: “Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus; mas agora o meu reino não é daqui” (João 18:36). E ainda, “[...] Então ele lhes disse: Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mateus 22:21).

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Influenciado pela filosofia de Derrida e Foucault. Arkoun introduz um

estruturalismo islâmico. Seu projeto visa resgatar uma Islã libertário, mais

imaginativo. Crítico da tradicional leitura “logocêntrica” das fontes, Arkoun

distingue a escrita do Corão, uma irrupção expontânea e transcendente, da sua

leitura. Portanto, não existe mais a correspondência automática entre o texto e o

significado que os fundamentalistas supõem (Demant, 2004, p. 297,298).

Obviamente, tais pensadores são estigmatizados como hereges

corruptores. A perspectiva governamental concebe apenas uma forma de

liberdade, com uma interpretação de justiça social derivada da

homogeneidade dos homens sob o simbolismo xiita. A identidade permitida e

sacralizada é aquela adequada à coerção. No entanto, a penetração dos

ideais reformistas se fazem sentir onde as políticas públicas têm fracassado,

principalmente entre os jovens que não conheceram outra forma de governo

senão a imposta pela revolução.

3.c) A necessidade de implantar um governo islâmico.

Na visão política de Khomeini não é suficiente apenas um corpo de leis

conformando a sociedade ao Corão, deve ao mesmo tempo existir um poder

executivo49 sob a direção de um jurista denodado: “Por essa razão, Deus o

Altíssimo, além de revelar um corpo de leis (a Shari´a) tem estabelecido uma

forma peculiar de governo, assim como instituições executivas e

administrativas” (Khomeini, 2004 [1971], p. 35).

49 � Os deveres e funções de um estado muçulmano xiita são quatro: Executivo (para a administração civil e militar), Legislativo, Judiciário e Cultural. O Executivo não exige um exame muito apurado; é evidente por si só, e válido em qualquer lugar do mundo. A soberania cabe a Deus, e se trata de uma custódia administrada pelo homem, para o bem-estar de todos sem exceção. O Legislativo é coranista, isto é, o Alcorão é a fonte de lei para todas as demandas espirituais bem como as temporais. O Judiciário é administrado pelo conselho de guardiães e funciona como um servidor da tutela, onde a sociedade é orientada sob a égide dos ulemás e aiatolás. E o Cultural, é um poder moderador que tutela os demais.

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Imam Khomeini explicita a necessidade de um governo islâmico derivar

de cinco premissas: a razão, o testemunho do profeta, a vitaliciedade das leis

islâmicas, a compreensão de que a negativa do governo islâmico é a

negativa do xiismo implicitamente e a defesa do território islâmico. A

necessidade de se instalar um governo islâmico é clara,50 haja visto que

Maomé empenhou-se não somente em legislar, mas também em aplicar as

leis e executá-las, inclusive com a proeminência de um sucessor para esse

fim:51

Um poder que aplique as leis e os vereditos emitidos pelos tribunais, permitindo

ao povo beneficiar-se das leis e das justas sentenças que derivam destes atos.

Por isso, o Islã estabeleceu um poder executivo, da mesma forma que fez as

leis. Quem ostenta este poder executivo é conhecido como Wali ami52

(Khomeini, 2004 [1971], p. 36).

A revolução dos Aiatolás preconiza um Islã legalista cujas disposições

governamentais reivindicam serem vitalícias independemente da época ou

localidade em que o Islã estiver estabelecido:53

É evidente que a necessidade de se executar a lei, requisito que levou o profeta

(sobre ele sejam as bênçãos e a paz) a criar um governo, não se limitavam à

sua época, senão que continuam existindo depois de sua partida deste mundo.

[...] os mandamentos do Corão são permanentes e devem aplicar-se até o fim

50 � “O governo do faqih é um tema que, por ele mesmo recebe aceitação imediata e necessita de pouca demonstração; qualquer um que possua um conhecimento geral das crenças e ordenanças do Islã consentirá com o princípio do governo do faqih, e aquele que tropeçar com ele, logo o reconhecerá como necessário e evidente” (Khomeini, 2004 [1971], p. 19). 51 � “Quando o profeta designou um sucessor não era com propósito de expor artigos de fé e leis, senão para aplicar a lei e executar as ordenanças de Deus (a execução e o estabelecimento das leis islâmicas)” (Khomeini, 2004 [1971], p. 35). 52 � O termo Wali Ami significa literalmente: Aquele que detém a autoridade, um espécie

de governador geral. 53 � Para Khomeini, a penalidade certa que virá sobre um xiita que não participar da implementação de um governo islâmico é ser corrompido pela anarquia e degradação da sociedade corruptora: o Ocidente.

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dos tempos; [...] é também necessária a formação de um governo e o

estabelecimento de órgãos administrativos e executivos.

Sem a formação de um governo e o estabelecimento de tais órgãos, para se

assegurar que, através do cumprimento das leis, todas as atividades do

indivíduo tenham lugar sob um sistema justo, prevaleceriam o caos e a anarquia

e surgiriam a corrupção social, intelectual e moral. A única forma de se evitar a

aparição da anarquia e a desordem, e proteger a sociedade da corrupção, é

formar um governo que imponha ordem em todos os assuntos da país

(Khomeini, 1981, [1971], p. 42).

Para ele, a negação do governo islâmico é uma negação da fé xiita.

Qualquer pessoa que negue a necessidade do governo islâmico nega a

universalidade, os símbolos e significados xiitas (Khomeini, 1981, p. 42). As

disposições islâmicas no terreno fiscal são para Khomeini outra evidência

proeminente da necessidade de se implantar um governo espiritualizado.

Doutra maneira, estabelecer-iam normatizações sobre os impostos para que

fim? Seja a jizya, ou o jaray, o jums e a Zakat,54 todos são impostos que

existem precípuamente para viabilizar uma efetiva governabilidade dentro da

umma55 islâmica.

A perspectiva khomeinista propõe uma espiritualização da cidadania:

cada muçulmano precisa viver como um tipo de encarnação do Corão, sob a

Sha´ria em todos os aspectos da vida humana, ficando o governo com a

obrigação de criar, e manter, condições para o desenvolvimento da

sociedade:

54 � Jizya – Imposto cobrado aos cidadãos não- muçulmanos de um Estado islâmico, em troca da proteção social que recebem do Estado. Principalmente pelo fato destes não serem obrigados a pagar a Zakat. Jaray - Imposto que se cobra por terras de uma determinada categoria agrícola. Jums - Imposto no valor de um quinto sobre a colheita agrícola e os lucros comerciais anuais. Zakat – Obrigação fundamental no Islã. Imposto sobre as classes mais ricas em favor das mais pobres, é praticado em atitude de esmolar, como símbolo da caridade. 55 � Khomeini vê a umma de uma forma universal, sem quaisquer diferenciações territoriais ou étnicas.

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O Islã prevê leis e instruções para todos os assuntos, orientar a criar seres

humanos virtuosos e íntegros que representem a encarnação da lei, ou seja, os

executores voluntários e instintivos da lei. [...] é impossível cumprir o dever de

executar as ordens de Deus sem haver estabelecido adequados e amplos

organismos administrativos e executivos (Khomeini, 2004 [1971], p. 39).

Sobretudo há ordenanças do Corão que apenas cumprir-se-iam num

governo islâmico, tais como: a guerra santa (jyhad), os castigos corporais e o

preço de sangue (punições sobre homicidas). Os omissos politicamente

tornam-se idólatras passivos, pois a não instalação de um governo islâmico

pressupõe a instalação de um governo infiel, afinado ou não com o

islamismo. Qualquer sistema de governo não islâmico é um kufr (opositor) e

seus governantes são um exemplo de taghut:56

[...] e nosso dever é eliminar da vida da sociedade muçulmana todo resto de kufr

e destrui-lo. Também é nosso dever criar um ambiente social favorável à

educação de indivíduos crentes e virtuosos, num ambiente que está em total

contradição com aquele produzido pelo governo dos taghut e seu poder

ilegítimo. O ambiente social criado pelos Taghut e pela sua shirk, levam

invariavelmente à corrupção, tal como vocês podem observar que acontece no

Irã: a corrupção denominada ´corrupção da terra´57 (Khomeini, 2004 [1971], p.

44).

Outro ativo fundamental para implantação de um governo islâmico é o

esfacelamento das pátrias muçulmanas. O imperialismo colonialista deixou

feridas que ainda não cicatrizaram e fomentam ódios e radicalismos:

Durante os séculos XVII e XVIII, uma hegemonia mundial europeia seria

construída com base no domínio econômico, nas instituições governamentais,

56 � Taghut – Um termo utilizado para líderes tiranos que excedem todos os limites da religião islâmica e glorificam a si próprios atribuindo para si prerrogativas divinas, ainda que implícitas. 57 � No xiismo o termo “corrupção na terra” tem um amplo espectro de significados. Inclui não somente a corrupção moral, mas também a subversão do bem público, o saque e a usurpação do bem estar geral, conspirando para derrubar uma ordem xiita já estabelecida.

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no poderio militar e no conhecimento profundo das comunicações. Reversões

dramáticas de poder aconteceriam. O império Otomano era o mais poderoso

estado no mundo no séc XVI; por volta de 1800, continuava a existir apenas

porque os poderes europeus não conseguiam chegar a um acordo quanto ao

que colocar em seu lugar. O Dar-al-Islã foi intimidado, explorado e degradado

pelos arrogantes ocidentais, e experimentou sua humilhação mais profunda no

séculos XIX e XX. Isso, em contrapartida, alimentou ressentimentos que ainda

estão entre nós [os ocidentais] (Fletcher, 2004, p. 165).

No século XX o imperialismo criou punhados de nações separadas

entre si sem respeitar as suas configurações culturais locais. Foi imposto não

somente um desmoronamento do bloco islâmico unificado sob os otomanos,

mas, também, um servilismo político-econômico às potências européias e

posteriormente aos Estados Unidos (pós-45). Governo títeres fracionaram a

umma islâmica, cujas populações locais foram acondicionadas em 15

pequenos estados na região do Oriente Médio.

Para assegurar a unidade da umma islâmica, para libertar a pátria islâmica da

ocupação e penetração dos imperialistas e de seus governos marionetes, é

imprescindível que estabeleçamos um governo. Para obter a unidade e a

liberdade dos povos muçulmanos, devemos destruir os governos opressores

instalados pelos imperialistas e criar um governo islâmico justo, que esteja a

serviço do povo. A formação deste governo, servirá para preservar a disciplina e

a unidade dos muçulmanos (Khomeini, 2004 [1971], p. 45).

Se aplicarmos tais premissas na América do Sul, entende-se que lutar

contra qualquer governo que não assegurasse a Shari´a para toda a

população é uma missão vital para o fiel e seu guia.58 Isto é, de Caracas às

58 � “Como podemos permanecer calados e quietos hoje em dia quando vemos um bando de traidores e usurpadores, agentes das potências estrangeiras, se apropriando da riqueza e do fruto do trabalho de centenas de milhões de muçulmanos – graças ao apoio de seus amos e pelo poder das baionetas – negando aos muçulmanos um mínimo de prosperidade?” (Khomeini, 2004 [1971] , p. 47).

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Malvinas, cada governo islâmico preconizaria um faqih que fortaleceria o

simbolismo xiita contra os símbolos ocidentais:

Não vemos nação ou comunidade religiosa que haja existido sem um indivíduo

responsável pelo mantimento de suas leis e instituições, isto é, um dirigente ou

líder, por isso é essencial uma pessoa assim para preservar os assuntos

religiosos e seculares. [...] Por tanto, hoje e sempre, a existência de um

possuidor de autoridade um governante que atua como administrador e

mantenedor das instituições e leis do Islã é uma necessidade. [...] um guardião

vigilante das criaturas de Deus, que guie os homem nas doutrinas, leis e

instituições do Islã; e que impeça desvios indesejáveis que os ateus e os

inimigos da religião querem introduzir nas leis e instituições islâmicas (Khomeini,

2004, [1971] , p. 49,50).

A exigência da instalação de um governo islâmico como condição para

que o xiita seja autêntico em sua crença, recrusdece a luta por um governo

islâmico a qualquer preço. Respalda-se o ocidentalismo ao se representar a

modernidade ocidental como corruptora e inimiga. O reforço das expressões

antimodernidade obsta sanciona o governo islâmico como a única alternativa

para as comunidades xiitas vivenciarem a plenitude da sua fé.

Objetivando obstar influências anti-islâmicas sobre a população, toda a

ação parlamentar (leis e projetos afins) deve ser subjugada aos preceitos

islâmicos. Os líderes religiosos arbitram as resistências ao estrangeirismo sob

qualquer forma, empreendendo uma liberdade política: “nos limites marcados

pela lei” (Art. 3º, Parágrafo 7).

Artigo 4º

Todas as leis e decretos civis, penais, financeiros, econômicos,

administrativos, culturais, militares e políticos, etc. e no que diz respeito a

recursos naturais devem basear-se em preceitos islâmicos. Este artigo tem

absoluta e universal prioridade sobre todos os outros artigos da Constituição tal

como cobre todos os decretos e regulamentos que venham a ser decididos

pelos jurisprudentes do "Conselho de Vigilância" (Irã, artigos 2º e 4º, 1979).

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3.d) A regência do faqih e os fuqaha no governo islâmico:

blindagem e ampliação para o poder dominante.

O Faqih é o principal pilar do poder na República Islâmica e

comandante supremo das Forças Armadas, com poderes para ordenar a

mobilização geral e declarar a guerra ou a paz59. Na tradição política, a tutela

do jurista significava uma inflexão do alto clero sobre a arena política todas as

vezes que a comunidade islâmica estiver ameaçada por forças contrárias.

Khomeini citava a presença dos clérigos em tempos de crise para defender a

soberania iraniana e proteger sua população dos abusos externos, tais como:

a crise do tabaco em 1891, a revolução constitucional de 1906 e as

resistências contra as reformas do Xá em 1963 (Kinzer, 2004, p. 140).

Nesta sacralização da política, o faqih é um vice-regente do imam

oculto (Khomeini, 2004 [1971], p. 63) sob um elemento escatológico que

escruta a governabilidade: O advento do imam oculto preconiza a

59 Artigo 110º da constituição iraniana. São deveres e responsabilidades do Líder:

1. Designar os jurisconsultos do Conselho de Vigilância. 2. Nomear a suprema autoridade judicial do País. 3. Na capacidade de comandante-chefe das forças armadas:

a) Nomear e demitir o Chefe do Estado Maior.

b) Nomear e demitir o Sepah Pasdaram (Corpo de Guardas) da Revolução Islâmica.

c) Constituir o Conselho Superior da Defesa, que consiste dos seguintes membros:

O Presidente. O Primeiro-Ministro. O Ministro da Defesa. O Chefe do Estado-Maior.

O Comandante-Geral dos Corpo de Guardas (Sepah Pasdaran) da Revolução. E dois conselheiros nomeados pelo Líder.

4. Assinar as credenciais do Presidente depois da eleição pelo povo. A competência dos candidatos à presidência que reúnem as condições citadas na presente lei deverá ser confirmada pelo Conselho de Vigilância antes das eleições e, em caso do primeiro período presidencial, pelo Líder. 5. Demitir o Presidente devido a considerações de interesse nacional, depois que tal decisão foi emitida pelo Supremo Tribunal confirmando a desobediência do Presidente às responsabilidades que oficialmente lhe competem, ou por votação da Assembleia por incompetência política do Presidente. 6. Garantir anistia aos condenados ou reduzir-lhes as penas no enquadramento dos princípios islâmicos e sob proposta prévia do Supremo Tribunal (Irã, 1979).

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necessidade de uma sociedade apta para sua chegada; assim, todos os

membros do governo devem congruir esforços (mentoreados pelos fuqaha)

na depuração da sociedade. Logo, o faqih se constitui num mítico líder. A

tutela do faqih revolucionou politicamente um clero60 estimulado a não

participar da política (Armstrong, 2001b, p. 231). Apesar da teoria da tutela

do jurista já ter sido discutida anteriormente por juristas xiitas e sunitas,61

Khomeini a utilizou para reconfigurar as necessidades do Estado moderno

sob uma roupagem islâmica:

Tradicionalmente o termo Walayat-al-faqih significava o cuidado que os

ulemás mais graduados deveriam ter com os órfãos, as viúvas e os

miseráveis. Os clérigos orientavam e protegiam os desvalidos. O termo

também designava a inflexão dos clérigos sobre assuntos políticos quando,

temporalmente, a sociedade islâmica estivesse ameaçada.

Posto que os fuqaha62 não são profetas, devem ser os sucessores ou delegados

dos profetas, portanto chegamos a conclusão de que o faqih é o delegado do

Mais Nobre Mensageiro (a paz seja sobre ele) e ademais, durante a ocultação

do imam (Majli), ele é o líder dos muçulmanos e chefe de toda a comunidade

(Khomeini, 2004 [1971] , p. 88).

O faqih, acompanhado de vários fuqaha, é um tutor com o dever de

aclarar o simbolismo xiita, tão ocidentalista quanto universal:

É o dever dos imams e dos fuqaha justos usar as instituições governamentais

para aplicar a lei divina, estabelecer a justa ordem islâmica. O governo em si

não representa nada exceto problemas e preocupações, mas, então, o que

podem fazer? Eles tem aceitado uma responsabilidade, uma tarefa que devem

levar ao término. O governo do faqih não é nada além do desempenho de um

dever (Khomeini, 2004 [1971], p. 66). 60 � Compelindo-o a tornar-se progressista e ativo na politização da fé, tanto como único meio de manter sua emancipação social e política, como ainda o instrumento da realização da vontade de Deus sobre a umma. 61 Ela realmente era muito pouco conhecida fora dos círculos teológicos, inclusive sendo para alguns considerada como excêntrica e até herética. 62 � Líderes sábios, versados nas doutrinas e costumes do xiismo.

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Logo, a doutrina no Walayat-al-faqih não está fundamentada na isolada

tutela de um jurista com poderes supremos; antes, tornar-se-á real – apenas -

pela blindagem de um círculo de sábios, consultados “democraticamente”. A

consulta ao círculo de sábios (fuqaha) cristaliza o comprometimento com o

líder supremo, algo como uma shura-al-fuqaha.63 O conselho dos guardiães (a

metade composta por ulemás), presidido pelo próprio Khomeini, conferiria as

leis do parlamento vetando-as caso não coadunassem com as normas

islâmicas.64 Além disso, o paradigma Khomeinista reforça um pressuposto

duplo: submeter-se à autoridade do faqih supremo é submeter-se ao querer

divino:

Obedecer e seguir aos que detém autoridade é também uma obrigação, eles

são, de acordo com as nossas crenças, os imams (sobre eles sejam a paz). Por

ser assim, a obediência aos seus decretos de governo é também uma forma de

obediência a Deus (Khomeini aqui está falando apenas do faqih supremo). Posto

que o Deus Todo-Poderoso nos tenha ordenado seguir ao mensageiro e aos

que detenham a autoridade, nossa obediência a eles é, atualmente, uma

expressão de obediência a Deus (Khomeini, 2004 [1971], p. 97).

A prédica do exclusivismo xiita incita o fiel a repelir os governos não-

islâmicos, pois o governo islamico normatiza demandas judiciais,.65Khomeini

exorta o cidadão muçulmano a aceitar apenas a justiça dos clérigos

islâmicos, sob pena de despropriação e maldições. Categoricamente, exorta

63 � Shura-al-fuqaha – Invocada como fundamento de uma democracia sob o islamismo, a shura é uma consulta realizada ao conselho de sábios (fuqaha) em casos de demandas legais. Na teoria política islâmica, o governador ampara-se num conselho que corrobora suas decisões. Para os xiitas modernistas é um exemplo de democracia. 64 � Foi este órgão que bloqueou todas as reformas liberais e democráticas propostas pelo presidente Mohammad Khatami em fins da década de 1990. 65 � “[...] Se os métodos jurídicos dos Islã fossem aplicados, e os juízos da Sha´ria, em cada cidade assistidos unicamente por um par de juizes com somente uma pluma (caneta) e um caderno à sua disposição, resolveriam velozmente os conflitos entre as gentes, devolvendo-os às suas ocupações” (Khomeini, 2004 [1971], p. 57).

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os xiitas66 a implantarem um governo islâmico para usufruírem plenamente de

seus direitos civis.

É proibido aos muçulmanos recorrer em solução de seus assuntos aos reis e

governos tirânicos, assim como aos juízes que atuam como seus agentes,

inclusive se eles tem algum direito bem fundado que desejam requerer. Inclusive

se um filho de muçulmano tem sido assassinado, ou sua casa arrasada, este

não tem o direito de recorrer aos poderes opressores para obter justiça. [...] Se

um muçulmano (xiita) recorre a eles nos casos acima e obtém seus inalienáveis

direitos por meio desses poderes e destas autoridades ilegítimas, o resultado é

uma maldição e ele não terá direito de fazer uso destas vantagens (Khomeini,

2004 [1971], p. 100,101).

CONCLUSÃO.

Como se vê no discurso de Khomeini não se objetiva apenas alianças

políticoeconômicas, mas também a ampliação do governo islâmico pelo

planeta. Weber lembra que o líder carismático insurge contra a ordem

institucionalizada, estabelecendo pontos de ruptura que reordenam as ações

de seus seguidores. Instalando um senso de utopia cuja racionalidade é o

conjunto de desencantamentos temporais e também um feixe de

reapropriações do sagrado.

Ao contrário, o carisma conhece apenas determinações e limites

imanentes O portador do carisma assume as tarefas que considera

adequadas e exige obediência e adesão em virtude da sua missão. Se as

encontra, ou não, depende do êxito. Se aqueles aos quais ele se sente

enviado não reconhecem a sua missão, sua exigência fracassa (Weber,

1999, p. 324). 66 � “Se tens uma peleja com alguém por uma dívida, ou uma herança e necessitas estabelecer a verdade sobre o assunto em questão, deves procurar o juiz designado pelo imam e referir apenas e ele e a nenhum outro. Esta é a obrigação universal de todos os muçulmanos” (Khomeini, 2004 [1971], p. 102).

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A exiguidade de espaço nos priva de análises mais profundas sobre a

temática (para tal vide Gomes, 2010). Espero contribuir para uma exposição

historicocrítica do governo islâmico que permita dialogar com suas propostas,

respeitando suas especificidades sob a égide de uma consciência política

crítica. Romper autoritarismos em favor da democracia social é viabilizar

desenvolvimento humano. A história cultural pensa a articulação entre os

discursos e as práticas de forma a destacar suas apropriações e resistências

(Certeau, 1990), para tecer diálogos contributivos entre os agentes culturais.

O xiismo apropria-se da modernidade veiculando seus valores e

signos, através das tecnologias, tecendo sempre formatos propícios à

governabilidade islâmica. Ao combater as diversas formas de propaganda em

que o Ocidente veicula seus valores e crenças o xiismo cunha um

ocidentalismo radical, tão letal quanto o orientalismo que condena. Para

Khomeini, o Ocidente é nocivo, pois solapa bases existenciais do movimento

revolucionário xiita (o seguir o corão sem arguir, o messianismo

duodecemista, o nacionalismo xenófago e a universalização xiita).

Dias antes de sua morte o aiatolá fez seu último discurso onde

implorava que os cidadãos continuassem a estudar o irfan, conjunto de

tradições místicas do islamismo, pois não haveria uma verdadeira revolução

islâmica se não houvesse um aprofundamento dos valores tradicionais dos

signos xiitas no imaginário popular (Armstrong, 2001b, p. 171), submetendo-

os ao domínio pessoal de Khomeini. “Tanto o poder carismático quanto o

poder patrimonial se fundamentam na entrega pessoal à líderes naturais e na

autoridade pessoal destes” (Weber, 1999, p. 328). Khomeini dizia que a

aceitação dos valores ocidentais, sob qualquer aspecto, tornar-se-ia um ponto

de ruptura no governo islâmico. Prédica corroborada pelo seu sucessor, o

aiatolá Ali Khamenei.

No mundo contemporâneo a necessidade de afirmação – e negação –

das identidades coletivas construídas, inspira uma reescrita do passado que

deforma as contribuições do saber histórico (Hobsbawm, 1994). Portanto, é

imprescindível uma leitura sob a égide historicidade, a fim de dissipar as

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nebulosas manipulações adestratórias. A história faz muito mais do que

narrar/descrever, ela deve submeter as construções interpretativas à critérios

objetivos de validação, ou negação (Chartier, 2009, p. 30).

O Irã e a América Latina estão cada vez mais colaborativos, o que não

é ruim, pois aproximar é melhor do que alijar. O momento é propício a trocas

e descobertas, em uma parousia de vida abundante. Edificados sobre a rocha

da serenidade, urge construirmos pontes com o outro diferente e menos

inacessível do que se pensa. É fundamental que o façamos sob a égide das

demandas da diversidade cultural nas liberdades compartilhadas (religiosas,

políticas e individuais).

À guisa de uma conclusão final, afirmo que leituras da revolução

iraniana são fundamentais para que governos e cidadãos latinoamericanos

posicionem suas participações ressaltando alteridades e identidades. O

diálogo reflexivo perpassa, também, (re)pensar crenças e princípios sob a

égide do sagrado.

Concatená-las com o arbítrio e a liberdade compartilhada é legado da

racionalidade outorgada no Éden. Como as questões no Oriente Médio são

também questões de crenças e tanto ocidente como o mundo islâmico estão

indubitavelmente um no caminho do outro, a oportunidade é preciosa. Até

porque, tanto o Ocidente como a Pérsia já ouviram, desde a antiguidade, que

o temor do Senhor é o principio da sabedoria e apartar-se do erro, a

inteligência.

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TEORIAS MODERNAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Dra Maria A. Leonardo*67

Introdução: O dilema do sistema internacional

Inside/Out é a perspectiva da dicotomia baseada no

princípio de soberania, onde Walker discute basicamente a

distinção entre teoria política e relações internacionais, tendo

como foco espacial do inside como o campo doméstico, e o

outside como espaço fora dos domínios dos estados soberanos,

constituindo portanto, campo de estudo das teorias de Relações

Internacionais. A seu ver, as teorias de RI envolvem uma

compreensão da política moderna limitada pelo espaço do

* Antropóloga e Cientista Social. Mestrado em Relações Internacionais pela PUC Minas (2008). Pós-doutorado em Comunicação Intercultural pela FACULDADE ETNIA - Faculdades Integradas Interetnicas (2007). Doutorado em Antropologia pela Universidade Nova de Lisboa (2009-2012).

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soberano, como expressões dos limites do imaginário

contemporâneo quando confrontados com afirmações e

evidências de transformações históricas e estruturais. O tema de

sua abordagem são as relações internacionais como uma teoria

política. Walker cita Gaston Bachelard, The Poetics of Space

“Outside e inside formam uma dialética de divisão, a geometria

óbvia a qual nos cega tão logo quanto a trazemos para o jogo de

domínios metafóricos [...] Filósofos, quando confrontados com o

outside e inside, pensam em termos de estar e não estar. [...] As

dialéticas do aqui e lá tem sido promovidas com forte grau de

absolutismo, por meio dos quais infelizes advérbios de lugar são

favorecidos com poderes não supervisionados da determinação

ontológica” (Walker, 1993 apud Bachelard, p.1), essa dimensão

política parte de dentro para além dos contornos seguros do moderno

estado territorial. Vale posicionar esse debate no contexto histórico das

décadas de 80 como releituras das teorias de RI.

Além da dicotomia dentro/fora do domínio soberano do estado,

Walker busca interpretar esse debate também no contexto da dicotomia

espaço-tempo nas perspectivas das práticas políticas contemporâneas.

Esse é justamente o debate em torno do conceito geopolítico do estado-

nação em RI. Walker toma a argumentação de que as articulações espaço-

temporais da política moderna são baseadas no princípio da soberania

estatal, associada ao realismo político. O debate das relações espaço-

tempo está também associado às controversas teorias do pós-modernismo

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e do pós-estruturalismo. Walker faz uma abordagem da transformação da

vida política alocados em três grupos de problemas emergentes, O

primeiro refere-se à interpretação dessas estruturas e processos por meio

dos quais, as identidades políticas, têm sido construídas historicamente.

Nesse grupo entram as intersubjetividades e da construção social. O

segundo grupo de problemas refere-se às categorias dentro das quais as

considerações de mudanças históricas foram moldadas na teoria política e

social. O terceiro grupo envolve as formas contemporâneas de crítica

teórica, especialmente aquelas fixadas sob eminentemente insatisfação

rotuladas como pós-modernismo, pós-estruturalismo e outras.

Considerando o duelo e influência das teorias do pós-modernismo e

do pós-estruturalismo em RI, pontuamos que Walker opta por fazer uma

abordagem pós-estruturalista ao analisar a política contemporânea,

principalmente as de RI. “A teoria pós-estruturalista conscientizou-nos

para o fato de que teorias são construtos, produtos de discursos, práticas e

instituições sociais específicas, e que, portanto, não transcendem seu

próprio campo social. As teorias tradicionais que afirmam ser fundamento

de verdade, conhecimento universal a transcender as condições sociais, ou

metateoria dona verdade a transcender os interesses de teorias

particulares, têm sido amplamente rejeitadas”. Segundo Walker as teorias

de RI lidam com questões de fronteiras (territoriais ou intelectuais), ao

estabelecer o que está dentro e o que está fora dela. O foco do discurso

moderno em RI aborda a questão da política mundial e rearticulação

espaço-tempral da comunidade política, e identidade política em um

mundo de “profunda aceleração temporal” e “deslocamento espacial”.

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De alguma forma a abordagem de Walker caminha com Bartelson

que partilham os mesmos horizontes da teoria política moderna e o

conceito de estado moderno. Bartelson aborda três teses que por sua vez

se aproximam dos problemas e idéias levantados por Walker. Seu

objetivo é o de problematizar os horizontes teóricos e práticos que são

aplicáveis ao contexto das RI.

Walker levanta um conjunto de idéias que respondem aos dilemas

de identidade política, mudança histórica e a crítica em torno

contemporaneidade. A primeira linha de análise interpreta Maquiavel e

Hobbes, a segunda linha busca resposta para as críticas o racionalismo,

cujos teoristas são Morgenthau, Aron, e Walker especialmente foca, Max

Weber. O terceiro grupo de idéias está associado emarranhamento

heterogêneo de pós-modernismo, do pós-estruturalismo e teóricos

interpretativos. Walker faz uma ampla leitura de Maquiavel na análise da

política moderna.

Walker faz ainda uma abordagem da inter-conexão espaço-tempo-

democracia, onde as pretensões cosmopolitas da teoria democrática

implica em considerar também as conseqüências do termo política

mundial para além do mero sinônimo do espaço territorial (p.142). As

idéias de cidades cosmopolitas e democracia conduzem ao espaço da

internacionalidade no meio internacional. O inside/outside são

reenforçados pelo meio internacional, onde quem faz a separação entre o

inside/ouside não é mais o estado, mas o internacional. A idéia de

globalização fortaleceu essas dimensões do sistema internacional

associado ao poder e magnetismo de estar dentro ou estar fora. Nesse

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ponto, a questão do subnacional é trazido para o contexto do

internacional, através das grandes cidades cosmopolitas.

Walker desenvolve os conceitos de desconstrução em RI,

especialmente voltadas para desconstrução da metáfora inside/outside,

espaço-tempo, e outras dualidades existentes que postulavam que a

realidade era formada por polaridades. E conclui o seu livro reforçando os

questionamentos centrais: como é possível articular considerações de

identidade, democracia, comunidade, responsabilidade ou segurança sem

assumir a presença do espaço territorial, uma linha clara entre aqui e lá, as

celebradas teologias da vida política moderna dentro do estado moderno?

Como é possível comprometer-se com aspirações para a emancipação

sabendo que muitas delas afirmam uma particularidade paroquial

disfarçada de universal? Como é possível comprometer-se com os outros

sem recair nos rituais de identidade e não-identidade, afirmação e negação

que estão profundamente gravadas nos discursos constitutivos da política

moderna?

A obra The Genealogy of Sovereignty, de Bartelson (1995) traz

uma abordagem da dimensão dalém do conflito agência e estrutura para

uma genealogia da soberania. Cabe lembrar que o conceito de soberania é

central nas teorias de RI e da formação do Estado. O foco de sua obra é o

de prover fundamento para a convencional separação entre política

moderna em termos de esferas domésticas e internacionais. Bartelson foca

essência do conceito histórico de soberania, por ele titulado de

“genealogia”, interpretando o contexto histórico dos períodos da

Renascença, era clássica e modernidade, compreendido como um

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discurso político. Três direcionamentos principais do conhecimento

ocorrem segundo a interpretação de Bartelson, o conhecimento da

Renascença na formação da teoria geral do estado; o conhecimento da

soberania clássica, o conhecimento clássico e arranjo da divisão entre o

inside/ouside. E na terceira forma, a varredura da diferenciação clássica e

o conhecimento no despertar da modernidade.

A abordagem do tema é problematizado no capítulo 5 de seu livro

sob o direcionamento: “como a política tornou-se externa na interpretação

da Era Clássica?”. Teorias de RI assumem o pressuposto de que o sistema

internacional no século XVII com a “Peace of Westphalia” como o ponto

decisivo desta emergência (Bartelson, p.137). Nisso argumenta Bartelson

que esta tese recai em compreensão presentista de ambos os termos

“internacional” e “sistema”, assegurando que o termo que hoje chamamos

de sistema internacional não existiu na Era Clássica. No período final da

idade média e da renascença se forma o conceito de estados individuais e

a origem e forma do corpo político. O foco da soberania é orientado pela

pessoa do príncipe e do estado como um todo, como princípio de

identificação. O rei tornou-se a metáfora do estado. Na interpretação de

Bartelson a Renascença torna-se o fundamento de ordem na era do

absolutismo. Vale ainda lembrar do impacto da reforma e das guerras

religiosas. Essa mudança provocou mudanças na fundação do

conhecimento que ocorre no início do século XVII. O Primeiro passo

rumo a uma teoria da soberania é atribuído a Jean Bodin – coloca o

estado como “o mais alto, absoluto e perpétuo poder sobre os cidadãos e

membros da comunidade”. Bartelson critica esta teoria como sendo

modernamente superficial. O edifício epistêmico da argumentação de

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Bodin é demolido no início do século XVII embora tenha sido mantido o

núcleo da lógica da teoria da soberania.

Bartelson argumenta que ideologicamente o arranjo ontológico e

epistemico possuem pelo menos quatro importantes conseqüências

relacionadas à identidade do estado e da soberania. A primeira trata da

relação estrutural entre soberania e estado, e a continuidade entre

autoridade personificada e entidade abstrata em termos iguais. A segunda

recai no aspecto da teoria da representação política e a articulação

estritamente paralela do conceito de representação social da linguagem e

conhecimento. A terceira, a presença tácita da soberania indivisível em

termos de conhecimento conta d deificação ideológica de autoridade

soberana, e explora o pensamento de Bodin sobre o posicionamento da

soberania acima da lei e fonte única de direito e errado no estado, sendo

que o rei possui essa prerrogativa. Quarta, colocada como a mais

importante, é a soberania sendo definida como propriedade de ambos,

governo e estado como um todo, conferindo indubitabilidade sobre a

existência de ambos – e afirma: “o que faz um estado um estado é a

presença da soberania. O que constitui este espaço como absoluto, é a

presença da soberania em seus domínios. A noção de espaço é

analiticamente geométrica e como resultado, o estado, em sua formação

indivisível como entidade espacial, é constituído como um objeto de

conhecimento” (Bartelson, p.152-154).

Sobre a análise de interesses, na perspectiva histórica do final do

século XVI e início do século XVII, entra a reconstrução do conflito entre

a política e religião, entre o secularismo e os princípios cristãos. O

conceito de interesse é também analisado em termos de suas

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conseqüências como um precursor do capitalismo na arena doméstica,

onde interesses fizeram rápida trajetória desde as câmaras reais para o

mercado.

Nesse estágio, Bartelson pontua a distinção entre o doméstico e

política externa, que era opaco e muito problemático na Renascença e

para teoristas da Era Clássisa, podem ter agora uma clara e analítica

distinção entre o Estado e o que está dentro de si. O jogo de interesses

entre estados tem sua contrapartida no jogo de interesses da arena

doméstica e o supremo problema estratégico do absolutismo. O contexto

da arena externa chama à existência a prática diplomática, onde a

diplomacia do século XVII e recente XVIII está relacionada à articulação

entre interesses dos estados. A diplomacia clássica era governada pela

noção de interesse, devidamente pontuda por Bartelson como jogo que

envolve relações de articulabilidade entre soberania e conhecimento, onde

a função da diplomacia gira em torno das relações de soberania e

interesse.

Bartelson discorre no capítulo 6 sobre a reorganização da realidade

em termos de soberania, modernidade e o internacional. A emergência do

internacional, por ele pontuada, deve ser entendida como logicamente

ligada à emergência do conceito de estado soberano moderno, ainda que

não esteja reduzido a isto. Ambos, estado moderno e sistema

internacional acontecem não somente no mesmo pacote epistemico e

ontológico, mas um manual sobre como entendê-los e explicá-los. Vale

lembrar, conforme recoloca Bartelson, que o conceito clássico de estado é

baseado no campo problemático da identificação da pessoa da soberania

com o aspecto abstrato de poder e interesse, baseados na pessoa do rei e

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do estado. Já a noção de interesse geral ou vontade, forma um link crucial

entre a nação e estado, tendo em vista o estado no esquema moderno de

soberania, onde a autoridade soberana pode ser fortalecida mediante

participação popular (p.211), que segundo a argumentação de

d’Argenson, “o fortalecimento consiste na união das partes”, residindo o

problema dos políticos, o descobrir o verdadeiro interesse geral entre a

massa de particular interesses, entre homens e nações (Teoria do Interesse

Geral).

Com a modernidade a historicidade começa a permear todos os

aspectos da existência humana e adequar o homem e suas entidades

políticas e sociais com limites cronológicos e geográficos e origens fixas.

A era iluminismo, era das luzes, rompe o homem da idade média para

uma posição de essência individual e desta forma teorias sociais

posicionam o homem no contexto macro-social (macrosociologia de

Weber). O foco da era clássica tinha os interesses do estado como

principal objeto, ao passo que a soberania do estado moderno foca a

transcendência em torno do eixo: homem, estado e a paz.

Bartelson conduz sua argumentação ao questionamento: “como o

estado soberano e o sistema internacional serão conectados no futuro?”,

que a seu ver, tem dois futuros: um na profecia da expansão, que projeta a

presença do sistema internacional, e a outra na promessa de

transcendência, que projeta a dialética do estado no futuro do espaço

internacional globalizado. (Bartelson, p. 229). E questiona ainda, “como

pode o estado moderno, espaço de discórdia e guerra, ser transformado

em uma direção mais cosmopolitana?”. O argumento estratégico de

Bartelson (p.85-86) propõe três hipóteses: Primeira, a hipótese da

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renascença: baseada nos historiadores do século XIX e XX e teoristas de

RI (Wight), o sistema internacional moderno tem sua origem embrionária

na política de cidade-estado da Renascença (Itália) com o aumento de

comunicações diplomáticas, cientifização, e monopolização do bem-estar

como manifestações chefes. Segunda, a hipótese Westphalian: o sistema

internacional foi formado a partir do tumulto da Guerra dos 30 Anos,

propulcionado pela consolidação dos estados-europeus. Terceira, a

hipótese da modernidade: onde o sistema internacional moderno teria que

esperar sua emergência até o surgimento de nação-estado como a

dominante forma de vida política na Europa, com a expansão da

soberania popular, democracia e fervente nacionalismo como causas e

efeitos da internacionalização destes traços.

SOBRE O MITO DE 1648

Esta revisão introdutória visa chamar a atenção para o foco do tema

do Mito de 1648 dentro dos estudos desta disciplina RI: as relações

internacionais modernas, e também a perspectiva da teoria marxista em

RI. O próprio título do livro foca o mito de 1648 e a formação das

relações internacionais modernas. Em sua introdução, Teschke discorre

sobre as teorias do realismo e construtivismo, e concorda que os Tratados

de Westphalia foram pontos decisivos na história das RI, tratados esses,

findaram com a Guerra dos Trinta Anos de, 1618 a 1648. Na verdade,

1648 foi a culminação da época do estado absolutista, marcou o

reconhecimento e regulação internacional, mais precisamente percebidas

como relações inter-dinásticas, relações do absolutismo, e política

dinástica. O clássico sistema “westphaliano” rotulado pela primazia do

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moderno, soberania territorial do estado, está sendo recolocado por pós-

territorial, pós-moderna e ordem global, trazendo uma mudança estrutural

no sistema internacional. É interessante pensar em termos de dois de seus

questionamentos gerais: se a soberania moderna e o moderno sistema de

estado estão em declínio, como eles vieram à existência? Se, estamos no

espaço de uma nova ordem, que lições podemos aprender das prévias

transformações geopolíticas?

A proposta de Teschke em Desmystifying the Westphalian States-

System, é a de desmistificar a teoria do sistema de estado westphaliano,

que tem o seu fundamento na idéia codificada pela Westphalia em termos

de soberania do estado, exclusividade territorial, igualdade legal, política

secular, não-intervenção, constante diplomacia, lei internacional, e

congresso multilateral.

Teschke argumenta que a chave para entender as dimensões do

conflito geopolítico e o sistema internacional moderno é a compreensão

das divergentes trajetórias da formação do estado/sociedade na França e

Inglaterra; e a transição do feudalismo para absolutismo na França, e do

feudalismo para capitalismo na Inglaterra. Ele manterá o seu foco na

experiência inglesa para reconstruir a transição para as Relações

Internacionais Modernas. Cita Gross, para pontuar a significância da

Westphalia da perspectiva realista, “A paz de Westphalia, para melhor ou

pior, marca o fim de uma época e a abertura para outra. Representa o

majestoso portal que guia do velho para o novo mundo”. (Teschke, 2003,

apud Groos, p.216).

Debates neo-realista e construtivista respondem de formas

diferentes ao argumento (p.216). A interpretação de Teschke sobre a

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Westphalia leva radicalmente a diferentes conclusões. Argumenta “que

existe relações distintas da geopolítica não-moderna entre a dinástica e a

pré-moderna comunidades políticas caracterizadas pelo sistema

Westphalia. Enquanto essas relações eram competitivas, elas eram

determinadas nem pela anarquia estrutural, nem pelo conjunto de novas

regras constitutivas acordadas em Westphalia, nem pela exclusiva

territorialidade. Pelo contrário, elas eram enraizadas na pré-capitalista

social relação de propriedade. A lógica das relações inter-dinásticas

estruturam a precoce moderna ordem geopolítica até a alta irregularidade

regional e prolongada transição do século dezenove para modernidade

internacional”.(p217).

Ele acomoda em seu discurso as três teorias básicas em temos de

constituição, operação, e transformação da ordem geopolítica. Primeira, a

presença da anarquia no sistema geopolítico reflete fundamentalmente

diferentes princípios de relações internacionais. Segunda, as relações de

propriedade configuram diferentes regimes políticos e geram coesas e

antagônicas estratégias de ação que governam as relações internacionais.

Terceira, o problema da temporal coexistência de heterogeneos atores

internacionais em um cenário de caso misto. Cujo resultado na Europa

leste foi um sistema geopolítico hetegonêneo.

Teschke divide a abordagem do tema da desmistificação do

sistema de estado Westphaliano em sete itens:

• As teorias da constituição, operação e transformação do sistema

geopolítico;

• Estrutura e agência na ordem Westphalia;

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• Relações geopolíticas da Westphalia: política externa e negócios da

família dinástica;

• Espaços dos territórios circulantes, dos príncipes circulantes:

território demarcado em função da dinastia;

• Predatório dinástico equilíbrio de poder e a balança de poder;

• Desmistificando a paz de Teschke;

• O fim de 1648.

O raciocínio de Teschke de conduzir sua argumentação desde o

absolutismo até o capitalismo, é porque firmemente crê que no sistema

Westphalia como um fenômeno histórico e não como conceitual

estenografia de RI para as relações internacionais modernas. Defende o

enraizamento em relações pré-capitalistas relações de propriedade e

soberania dinástica; e chama atenção para uma análise histórica e de

conjuntura do período 1688 até 1989 como uma longa transformação

caracterizada pelas relações internacionais em modernização, a legalidade

da Westphalia e o absolutismo como um sistema rudimentar de estados

territorialmente ligados, (p.268). Afirma estar o sistema de estados

moderno marcado mais pelo capitalismo do que pela Westphalia (p.249).

Essa é a sua desmistificação do mito de 1648, tirando o foco do sistema

Westphalia para a emergência do capitalismo. Ele agrega em sua

abordagem as idéias dos “pós”, despertando para o fato de que a

configuração internacional estar agora em processo de ser transcendida

pela globalização e governança global, zumbindo agora em tons de pós-

Westphalia e dada ordem geopolítica pós-moderna, não mais em aspectos

internacionais, mas global. Encerra seu argumento com a afirmativa: “as

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relações internacionais modernas possivelmente tenham justamente

chegado à escala global” (p.268).

Teschke abre a abordagem desta trajetória com o questionamento:

como poderemos entender a transformação do absolutismo para relações

internacionais modernas? Seu argumento é que essa mudança estava

diretamente ligada à formação do capitalismo, a emergência do estado

moderno na Inglaterra, e o despertar da Grã Bretanha como o maior poder

internacional no século dezoito. “A mudança decisiva em direção às

relações internacionais modernas não é marcada pela Paz de Westphalia,

mas vem com o surgimento o primeiro estado moderno: a Inglaterra pós-

revolucionária” (Teschke, 2003, p.249). Dentre tantos fatores, o regime

de propriedade agrário-capitalista; a militarização, a associação dos lords

à política e governança; e mais que tudo a mudança de dinástica para

soberania parlamentar; inclusive como sinais de consolidação da

soberania moderna. À luz de suas interpretações, a Inglaterra puxou o

desenvolvimento e conduziu o processo da modernidade.

Teschke pontua com historicidade e conjuntura a transição do

feudalismo e capitalismo na Inglaterra; atentando para os detalhes das

relações franco-inglesas; com Espanha, as relações dinásticas e

aristocráticas, as relações protestantes e as relações católicas; o controle

do parlamento e poder militar; o controle do parlamento sobre as taxas, e

a revolução financeira do século dezoito. Conforme esclarece bem, o

parlamento revolucionou além do sistema militar, fiscal, financeiro e

administrativo, o investimento de capital em companhias no exterior.

(p.254).

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Outro aspecto de sua abordagem é sobre a figura da Inglaterra indo

além do capitalismo e da soberania moderna para um equilíbrio ativo. E

para este fim argumenta: como isto aconteceu e quais foram os efeitos na

política européia? A atitude britânica para com a Europa, agora no fim do

século dezessete, tendo agora sua soberania no parlamento e não mais no

rei, assume uma política externa desconexão da outrora soberania com

base em interesses dinásticos para o interesse nacional. Inglaterra entrou

com um papel diplomático de transformar relações inter-disnásticas em

interesses nacionais, para isto atuando com uma “nova função de

balanceador da pentarquia européia”(p.258). Conforme enfatiza Teschke,

dois regimes de balança de poder estavam operando na Europa no século

dezoito: “enquanto estados absolutistas continuavam a política de

equilíbrio territorial, partições e compensações, o parlamento britânico

buscou manejar o equilíbrio do sistema europeu pela intervenção indireta,

em forma de subsídios e pensões para poderes menores, enquanto ainda

não contatos alguma ambição imperial-hegemônica”(Teschke, 2003, apud

McKay and Scott, p.249). As características britânicas no balanço de

poder foram sua dinâmica, produtiva e expansiva economia capitalista.

Outro estágio desta transformação para o sistema moderno, é a

combinação geopolítica e o desenvolvimento social não uniforme. O

velho sistema de acumulação territorial, ora confrontado pelo surgimento

do capitalismo, passa por um processo de manipulação pela Inglaterra

para com os velhos inter-disnásticos predatórios equilíbrios, mediante a

nova concepção de balanceamento ativo. Teschke, afirma que no fim do

século dezoito, o “balanceamento britânico não mais serviu

exclusivamente às funções de segurança e ordem, mas teve outro efeito de

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forçar os estados continentais a responder e finalmente adequarem-se ao

superior modelo sócio político britânico, especialmente sob o impacto da

revolução industrial” (p.263).

Teschke contra-argumenta com Karl Marx, Friedrich Engels e

Skocpol. A inserção de Karl Marx no cenário tem a intenção de refutar a

teoria capitalista, e conforme argumenta alguns teóricos, ele não tinha

pretensões de relações internacionais em si. Deixaram um grande

referencial teórico: “a expansão do capitalismo estava para criar um

mundo após a sua própria imagem”.

The need of a constandy expanding market for its products chases the bourgeoisie over the whole surface of the globe. It must nesde every-where, settle everywhere, establish connectíons everywhere. The bourgeoisie hás through its exploitatíon of the world market given a cosmopolitan character to productíon and consumption in every country. ... In place of the old local and natíonal seclusion and self-sufficiency, we have intercourse in every directíon, universal interdepend-ence of nations. . . . The cheap prices of its commodities are the heavy artülery with which it batters down ali Chinese walls, with which it forces the barbariam' intensely obstínate hatred of foreigners to capitulate. It compels ali natíons, on pain of extinction, to adopt die bourgeois rnode of production. (Teschke, 2003, p.264 apud Mane and Engels 1998). The international states system as a transnational structure of military "j competition was not originally created by capitalism. Throughout modem world history, it represents an analytically autonomous levei of transnational reality — interdependent in its structure and dynamics with world capitalism, but not reducible to it. (Teschke, 2003, p.265 apud Skocpol 1979: 22)

A teoria marxista enxergava a expansão do capitalismo mais termos de transnacionalidade que internacionalidade. Teschke encara a teoria marxista com algumas afirmações (p. 266-268):

• A transposição do capitalismo para o continente e resto do mundo, de fato agregava conflitos sociais e desenvolvimento não-uniforme;

• A criação de um império transnacional da sociedade civil não causou a destruição do sistema de estados;

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• O capitalismo nem causou a divisão territorial do sistema de estados, nem requereu do sistema de estados esta reprodução;

• O capitalismo é a condição para universalização do princípio de auto-determinação nacional;

• O funcionamento do mercado mundial são perrogativas na existência de estados que mantenham governo da lei, segurança das transações transnacionais, e mantenham os princípios de abertura de economias nacionais;

• O universal capitalista mercado mundial deve e pode coexistir com o fragmentado sistema de estados.

À título de conclusões: a dialética das relações internacionais, Teschke reenfatiza alguns pontos( p.271-275):

• O movimento histórico em RI tem ajudado a quebrar a roupagem ortodoxa estato-centrica em RI, deslocado o foco da atenção das relações geopolíticas na sociedade-estato e providenciado explicações da formação do sistema de estados moderno, e explicações da constituição da anarquia moderna.

• O neorealismo tem na verdade reproduzido o mito de 1648, e falhado em explicar a variável conduta dos atores políticos dentre as diferentes ordens geopolíticas, e obscurece a natureza da formação do estado e transformação geopolítica enraizadas em relações de classes.

• O construtivismo providenciou uma série inovadoras aproximações social e histórica que desafia as certezas positivistas da corrente principal em RI.

• Enquanto a tradição marxista possivelmente não tenha teorizado a relevância das RI para o desenvolvimento histórico mundial, o aparato conceitual de Karl Marx, “pace Skocpol, Mann et al, provêem um guia seguro para suas explicações.

• A economia e o político, o doméstico e o internacional nunca são constituídos um do outro. E a constituição, operação e transformação das relações internacionais são fundamente governadas por sociais relações de propriedades.

• A relação entre estrutura e agência não são ciclos recursivos, não existindo polaridades, e a seu ver para ambas, necessidade e liberdade combinam em diferentes formas, tanto doméstico como internacionalmente.

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• Concorda com Onuff que de fato, “este é um mundo de nossa fabricação”, não como um processo de estruturação, mas de desenvolvimento dialético.

• O neorealismo é uma ciência de dominação, presa à concepção positivista da ciência para explicar políticas internacionais. Expressa a tecnologia do poder do estado em termos de racionalidade instrumental. Em termos de poder explanatório, mais obscurece que revela e comprime a rica história de desenvolvimento humano em forma repetitiva de cálculo de poder.

• Seu livro é uma intervenção crítica contra um progressivo processo mundial de exploração e dominação. O pulsar da dialética está despertando.

A título de complementação sobre a abordagem marxista, vale pontuar duas citações:

“Uma das lições chaves do século vinte apontam que o pensamento

marxista somente conduz a um beco sem saída histórico. O futuro é liberal e capitalista [...] O próprio Marx proveu muito pouco em termos de análise teórica de relações internacionais” – Hobden e Jones. A concepção ontológica para o paradgima marxista é que “realidade é um sistema social economicamente dominado, cujo funcionamento é a) independente da consciência humana; b) independente da consciência humana, exceto quando mudanças estruturais acontecem pela ação política”. – Edgar Alencar, 1998, p.47.

OBRAS RESENHADAS

BARTELSON, Jens. A genealogy of sovereignty, Cambridge studies in international relations; 39. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 1995. CAMPBELL, David. Writing security: United States foreign policy and the politics of identity. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992. TESCHKE, Benno. The Myth of 1648: Class, geopolitics, and the Making of Moderns International Relations. London UK: Verso, 2003. Chapters: 7 - 8, Conclusion WALKER, R.B.J. Inside/outside: international relations as political theory. Cambridge studies in international relations; 24. Cambridge England; New York: Cambridge University Press: 1993.