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Iniciação científica desenvolvida entre os anos 2005 e 2006 sob orientação do Prof. Dr. Peter Demant, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo. A pesquisa foi desenvolvida com financiamento da FAPESP e trata da história recente do Iraque, com foco no estudo do regime do Partido Baath – mais especificamente do governo de Saddam Hussein – durante o período 1968-1991. O trabalho busca abordar a questão sob quatro perspectivas: política, econômica e social, cultural/ideológica e internacional, levando-se em consideração eventos de relevância interna e externa, como as guerras Irã-Iraque (1980-1988) e do Golfo (1991).
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RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA – VERSÃO ESTENDIDA
TEMA: SADDAM HUSSEIN E O PARTIDO BAATH NA TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO IRAQUIANO (1968-1991)
Orientando: Sérgio Roberto Guedes ReisOrientador: Prof. Dr. Peter Robert Demant
Dez. 2006
1
Índice
Apresentação.........................................................................................................................6
CAPÍTULO 1 – O Iraque Antes de 1958..........................................................................101. Mesopotâmia Antiga...............................................................................................102. A Civilização Árabe-Islâmica................................................................................113. O Império Turco-Otomano....................................................................................144. A Primeira Guerra Mundial e o Mandato Britânico no Iraque (1920-1932)....205. O Período 1932-1946...............................................................................................276. Os Últimos Anos da Monarquia (1946-1958).......................................................36
CAPÍTULO 2 – O Período 1958-1968...............................................................................461. O Surgimento do Partido Baath............................................................................46
a) Ideologia...............................................................................................................48b) Saddam Hussein, Infância e Juventude............................................................52
2.) O Período 1958-1968: Desdobramentos Históricos............................................54a) O Governo de Abd al-Qarim Qasim (1958-63)................................................54
i. Política Doméstica............................................................................................55ii. Economia e Sociedade....................................................................................57iii. Relação com os curdos...................................................................................59iv. Política Externa..............................................................................................60v. O Baath no Período 1958-63..........................................................................62
b) O Baath no Poder (02.63-11.63)........................................................................63c) O Governo de Salam Arif (1964-1966)..............................................................65d) O Governo de Abd al-Rahman Arif (1966-1968).............................................66e) O Baath no Período 1964-68..............................................................................67
CAPÍTULO 3 – O Período 1968-1979...............................................................................691. Aspectos Políticos....................................................................................................70
a) A Consolidação do Poder...................................................................................70i. Os Julgamentos de 1969..................................................................................70ii. A Neutralização dos Baathistas Civis e Militares........................................71iii. A Tentativa de Golpe de Nadhim Kazzar em 06.73...................................72iv. O Sistema de Segurança do governo Baath.................................................73v. O Controle do Exército...................................................................................74vi. A Expansão do Partido e da Burocracia Estatal.........................................75vii. A Rede de Clãs, o Clientelismo e a Patronagem........................................75
b) A Relação com as Oposições..............................................................................76i. Os Comunistas..................................................................................................77ii. Os Curdos........................................................................................................78iii. Os Xiitas..........................................................................................................80
c) O Aumento da Influência de Saddam Hussein.................................................822.) A Ideologia..............................................................................................................84
2
a) O Autoritarismo do Regime...............................................................................85b) O Nacionalismo Mesopotâmico.........................................................................86
3.) Economia e Sociedade...........................................................................................87a) Economia e Ideologia..........................................................................................88b) A Nacionalização do Petróleo............................................................................89c) A Reforma Agrária.............................................................................................90d) O Desenvolvimento Econômico.........................................................................92e) Reformas Legislativas, a Educação e a Condição da Mulher.........................94
4. A Política Externa...................................................................................................96a) O Pan-Arabismo Radical (1968-1974)..............................................................96b) A Política Externa Pragmática (1975-79).........................................................98c) A Revisão do Conceito de Pan-Arabismo.......................................................101
CAPÍTULO 4 – O Período 1980-1988.............................................................................1031. A Guerra Irã-Iraque.............................................................................................103
a) O Contexto Regional e as Relações Bilaterais................................................104b) Razões, Objetivos e Motivações para a Realização da Guerra....................106c) A Estratégia do Exército Iraquiano................................................................108d) A Primeira Fase (1980-1981): Ofensiva Iraquiana........................................108
i. Os Erros e os Problemas na Estratégia de Saddam Hussein.....................109e) A Segunda Fase: Ofensiva Iraniana (1982)....................................................110f) O Impasse (1983-1986)......................................................................................111g) A Internacionalização da Guerra e a Vitória Iraquiana (1986-1988)..........112
2. A Política Externa.................................................................................................113a) A Relação com os Países Árabes......................................................................114b) Relação com a Europa e a União Soviética....................................................115c) Relações com os Estados Unidos......................................................................116
3. Política Doméstica.................................................................................................117a) A Assembléia Nacional.....................................................................................118b) A Centralização do Regime.............................................................................120c) A Relação com os Militares..............................................................................122d) Relação com os Xiitas.......................................................................................123
i. O SAIRI..........................................................................................................124ii. Razões para o Fracasso da Oposição Xiita.................................................124
e) Relação com os Curdos.....................................................................................126i. A Operação al-Anfal......................................................................................127
4. Ideologia.................................................................................................................128a) O Culto de Personalidade................................................................................129b) O Nacionalismo Mesopotâmico.......................................................................130c) Nova Revisão do Pan-Arabismo......................................................................132
5. Economia e Sociedade...........................................................................................132a) A Continuidade dos Programas de Desenvolvimento...................................133b) O Início da Liberalização Econômica.............................................................133c) Dívida Externa..................................................................................................134d) Impacto da Guerra na Infra-Estrutura e os Custos Humanos....................134e) Transformações na Estrutura Social do Iraque.............................................135
3
CAPÍTULO 5 – O Período 1989-1991.............................................................................137I) O Período Pré-Invasão..............................................................................................138
1. A Economia Iraquiana: 1989-90..........................................................................138a) O Ressurgimento da Política “Canhões e Manteiga”....................................139b) A Continuidade da Liberalização Econômica...............................................139c) Efeitos da Política Econômica..........................................................................140d) Outros Problemas: o Shatt, a Queda do Preço do Petróleo e a Dívida Externa...................................................................................................................141e) Razões do Insucesso e Eventuais Políticas Alternativas................................142
2. Política Doméstica.................................................................................................144a) Promessas de Liberalização.............................................................................145b) Centralização do Poder, Escândalos Familiares e o Neopatrimonialismo. .146c) Relações do Regime com Xiitas, Curdos e Militares.....................................147
3. Política Externa.....................................................................................................148a) A Diplomacia Moderada..................................................................................149b) A Diplomacia Agressiva e o Contexto da Ofensiva Iraquiana no Kuwait. .151
i. Relações com os Estados Unidos e o Ocidente.............................................152ii. A Alteração da Política Externa dos EUA perante o Iraque....................153iii. O Caso Bazoft e a Operação Argus............................................................153iv. A Reunião com April Glaspie.....................................................................154v. Relações com o Mundo Muçulmano e o Aumento das Pressões contra o Kuwait................................................................................................................155vi. Razões para a Não Negociação do Kuwait................................................156vii. A Decisão pela Invasão, as Razões e os Objetivos Imediatos..................158
II) A Invasão ao Kuwait, a Coalizão Anti-Iraque e a Guerra do Golfo...................1591. A Ocupação do Kuwait, Estratégias, Pretextos e Erros de Cálculo.................159
a) Repercussão Internacional...............................................................................160b) A Anexação do Kuwait e os Acordos com o Irã.............................................161c) Tentativas e Estratégias de Negociação..........................................................162
i. O Encontro Aziz-Baker em Genebra...........................................................163ii. A Retirada do Kuwait em Troca da Saída Israelense...............................164iii. A Crise dos Reféns e os Saques ao Kuwait................................................164
d) A Formação da Coalizão e a Opção pela Guerra..........................................165e) Inevitabilidade da Guerra?..............................................................................167
2. A Guerra do Golfo de 1991..................................................................................169a) Estratégias Iraquianas......................................................................................169
i. Ataques a Israel..............................................................................................170ii. Ataque às Bases da Coalizão na Arábia Saudita.......................................171iii. Busca de Apoio da URSS pelo Iraque, o Conflito por Terra e o Cessar-Fogo....................................................................................................................172
3. A Destruição Econômica e Humana Causada pela Guerra – a Resolução 687 das Nações Unidas.....................................................................................................1754. Repercussões da Guerra na Opinião Pública Internacional.............................1775. Desenvolvimentos Políticos Domésticos..............................................................178
a) A Intifada: Motivações e Desenvolvimentos...................................................178i. Razões de seu Fracasso..................................................................................180
III) Aspectos Ideológicos..............................................................................................183
4
1. Pré-Guerra: Confluência entre o Nacionalismo Árabe e o Islamismo.............1832. Pós-Guerra: Islamismo e a Ascensão do Tribalismo.........................................185
Epílogo (1991-2003)...........................................................................................................1871. Economia: Efeitos das Sanções das Nações Unidas sobre a População...........1882. Política Doméstica: A Manutenção e o Fortalecimento do Regime..................191
a) As Oposições Internas e os Grupos Exilados.................................................193i. As Fraquezas da Oposição............................................................................197
3. Política Externa: a UNSCOM, a Perda de Soberania e a Invasão dos EUA (2003)..........................................................................................................................199
Apêndice.............................................................................................................................205Mapa 1. Localização do Iraque no Oriente Médio (1993).........................................205Mapa 2. Iraque (Político) 2004.....................................................................................206Mapa 3. Composição Étnica do Iraque (1978)...........................................................207Mapa 4. Distribuição da Atividade Econômica Industrial no Iraque (1993)..........208Mapa 5. Uso da Terra no Iraque (2003)......................................................................209
Bibliografia........................................................................................................................210
5
Apresentação
Esta iniciação científica tem como propósito a análise do Iraque moderno – mais
especificamente, o regime do Baath (1968-2003), em especial no período em que se deram,
de maneira mais efetiva, as transformações mais significativas para a sociedade iraquiana
(de 1968 até a Guerra do Golfo de 1991). Para efeito de maior didatismo e capacidade
analítica, dividiu-se o estudo realizado em seis capítulos:
No primeiro capítulo, tratou-se de se compreender, em linhas bastante gerais, as
formações históricas, sociais e econômicas da sociedade iraquiana. Partindo-se da
Mesopotâmia Antiga, passando-se pela Civilização Árabe-Islâmica e chegando-se até o
Império Turco-Otomano, buscamos observar a composição étnica e sectária da população
iraquiana, além do legado de suas produções culturais e das distintas maneiras em que se
organizou a sua sociedade. Destacamos o peculiar aspecto geográfico e geopolítico da
região mesopotâmica, alvo de constantes disputas, e a importância do Islã, não só como
religião, mas como formador de consciência política e de diferenciação social e que
permitiu a elaboração de uma cosmovisão própria por parte dos habitantes daquela
localidade. A seguir, investigamos o nascimento do Estado moderno iraquiano (1920),
graças à intervenção ocidental no derrotado e fraturado Império Turco-Otomano. Em
termos gerais, investigamos a formação das instituições no novo país (Exército,
Parlamento, Burocracia, entre outros), a descoberta de petróleo ao norte do país (1925), a
relação desse evento com os curdos, a histórica participação de potências estrangeiras
(notadamente a Grã-Bretanha) na delimitação da soberania do país, além do surgimento de
ideologias, como o pan-arabismo e o reformismo social, que dominariam as disputas
políticas dentre os iraquianos. A análise, neste primeiro momento, se encerra em 1958, ano
de grande relevância na história do país, na medida em que representa, com expressiva
participação militar(influenciada pelo nasserismo, no Egito), a transição do regime
monárquico para o republicano o fim do regime monárquico e, com expressiva participação
militar, a sua substituição pela república.
6
No segundo capítulo, que trata do período 1958-1968, buscou-se compreender,
primeiramente, a formação e a ideologia do partido Baath, sua consolidação no Iraque e sua
participação nos eventos políticos de fins da década de 50/início da década de 60. Também
tratou-se de descrever, sucintamente, a biografia do jovem Saddam Hussein, identificando
suas origens e sua formação política. Em seguida, tratamos de descrever os
desenvolvimentos históricos dessa turbulenta década, identificando os diferentes governos
formados, a relevância do exército como ator político, os diversos pontos de tensão que se
consolidaram na heterogênea sociedade iraquiana, entre outros aspectos, até o golpe que
resultou na subida ao poder do Baath, em Julho de 1968.
No terceiro capítulo, tratamos, de maneira mais aprofundada, de acompanhar os
onze primeiros anos do novo regime e as suas medidas políticas, econômicas, sociais e
culturais, acompanhando as suas repercussões dentre os iraquianos. Procurou dar-se ênfase
às distintas interpretações sobre razões e motivações para processos relevantes, como a
nacionalização do petróleo, a reforma agrária, para as mudanças na política externa, além
das distintas descrições sobre o caráter da relação do regime com os grupos políticos mais
destacados (como curdos, xiitas e comunistas), bem como caracterizar a elaboração do
autoritarismo do regime, baseado em rígidos sistemas de segurança e na penetração do
Baath em todas as estruturas da sociedade. Também tratamos das distintas ideologias
empregadas pelo regime e do papel de Saddam Hussein no governo até sua subida ao
poder, em 1979.
No quarto capítulo, que compreende historicamente o período 1980-1988, tentamos
entender as diferenças entre o governo de Saddam Hussein, o novo presidente, e Hasan al-
Bakr, seu tio e predecessor. Para tanto, identificamos as continuidades e descontinuidades
existentes na condução da política externa, da política doméstica, da economia e da
ideologia. Evidentemente, a longa guerra contra o Irã, que delimita a extensão deste
capítulo, é o mais importante evento a ser tratado, e que influencia diretamente em todas as
demais políticas governamentais e as percepções da população iraquiana sobre o regime.
Nesse sentido, objetivamos trazer para a discussão do contexto e das razões, motivações e
objetivos de Saddam ao iniciar a guerra e as diferentes perspectivas de análise adotadas
pelos autores estudados. A mesma metodologia é empregada para investigar as eventuais
7
guinadas ocorridas nas distintas (mas altamente inter-influenciáveis) estruturas de análise
(como a política, a economia e a sociedade).
No quinto capítulo, em que é abordado o período 1989-1991, realizou-se o estudo
das conseqüências da guerra Irã-Iraque para os iraquianos, para o país e para o regime,
além de se abordar as linhas de política externa e as políticas econômicas adotadas e, ainda,
o comportamento da oposição perante as práticas do regime. Nesse contexto, trazemos as
distintas interpretações para a invasão do Kuwait pelo Iraque e as suas repercussões para o
país analisado e para a comunidade internacional. Posteriormente, investigamos as aspectos
concernentes à Guerra do Golfo de 1991: suas motivações, o papel da comunidade
internacional, os desenvolvimentos do conflito e as conseqüências para o regime iraquiano
(com destaque para a intifada, a revolta popular ocorrida no imediato pós-guerra).
Metodologicamente, para fins de maior clareza de compreensão dos eventos e perspectivas
estudados, dividiu-se este capítulo em três grandes seções: 1. O Período Pré-Invasão, 2. A
Invasão ao Kuwait, a Coalizão Anti-Iraque e a Guerra do Golfo, 3. Aspectos Ideológicos –
neste último segmento, são abordados os distintos empregos ideológicos adotados por
Saddam Hussein no decorrer da crise que levaria à invasão e à guerra e logo após seu
imediato término.
No Epílogo, tratamos de descrever, em linhas gerais, os desenvolvimentos dos doze
últimos anos do Baath e de Saddam Hussein no poder (1991-2003), até a invasão dos
Estados Unidos (Março/Abril de 2003) que pôs fim àquele regime. Foram elencados temas
de alta importância nesse momento histórico, como a substancial perda de soberania por
parte do Estado iraquiano, as repercussões do regime de sanções econômicas para a
população iraquiana (introduzidas pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas logo
após a invasão do Kuwait pelo Iraque, em Agosto de 1990), a conquista de autonomia pelos
curdos e as intensas disputas políticas internas subseqüentes, as estratégias de manutenção
do controle e do domínio do país por Saddam Hussein, além do estudo sobre a oposição
iraquiana exilada, seu papel com relação ao frágil governo de Saddam e eventuais razões
para o seu fracasso em fazer emergir um novo governo no país. Finalmente, descrevemos as
conflituosas relações internacionais do Iraque após o término da Guerra do Golfo de 1991,
passando pelo aprofundamento da crise com os Estados Unidos a partir da eleição de uma
nova administração nesse país em 2000, que culminou na ulterior invasão ao Iraque, em
8
Março de 2003, por uma nova coalizão pró-ocidente, que destituiu o repressivo regime de
Saddam Hussein do poder, mas que ainda não eliminou o clima de guerra civil existente no
território iraquiano desde então.
Metodologicamente, a pesquisa, que empregou majoritariamente o uso de fontes em
língua inglesa (dada a notória escassez de textos em português sobre a maioria dos temas
estudados e a falta de domínio da língua árabe por parte do orientando), objetivou, no
centro de sua análise (1968-1991), descrever não somente os eventos históricos, políticos e
econômicos mais proeminentes, mas principalmente dispor as diferentes correntes de
interpretação sobre as causas e as conseqüências elaboradas pelos acadêmicos acerca
daqueles processos e as suas relações entre si, a fim de se construir um relato mais
aprofundado sobre aquele momento histórico estudado. Foram utilizados artigos de
importantes periódicos e revistas especializadas sobre o Oriente Médio, além de várias das
obras centrais já publicadas em língua inglesa sobre o Iraque e, ainda, algumas biografias
sobre Saddam Hussein. Dados os distintos vieses dentre os autores, possibilitou-se discutir
vários dos temas sob óticas altamente contrastantes, o que permitiu abordar alguns dos
processos considerados mais importantes com satisfatória profundidade e, em última
instância, atendeu, de certa maneira, ao propósito de se apreender as relações (para dentro
da realidade iraquiana) entre o autoritarismo presente no governo baathista e sua políticas,
por vezes tidas como progressistas – e, subseqüentemente, entre estas esferas e a
configuração altamente heterogênea, multifacetada e, portanto, complexa, da sociedade
iraquiana que se formou sob o regime Baath (e que, contemporaneamente, convive sob uma
nova realidade ainda que, até o presente momento, se revele não muito mais promissora do
que a anterior).
9
CAPÍTULO 1 – O Iraque Antes de 1958
1. Mesopotâmia Antiga
A Mesopotâmia, região que hoje abriga o estado iraquiano, foi um dos grandes
berços da civilização humana. Na Antiguidade, viveram civilizações tão distintas como os
Sumérios, os Acádios, os Babilônios, os Hititas, os Hurrianos, os Kassitas, os Elamitas, os
Assírios, os Yazidis, entre outros, que surgiam e desapareciam violentamente. Aquela
localidade, denominada “terra entre rios”, possuía grande capacidade agrícola (elemento
distintivo para com os terrenos áridos que a rodeavam), e sua localização intermediária
entre a Europa e a Ásia era um ingrediente essencial em termos de importância estratégica,
sendo alvo, assim, de constantes e turbulentas disputas1. Os Sumérios e os Babilônios, em
especial, foram considerados uma das civilizações mais criativas daquele período histórico,
graças a contribuições como o desenvolvimento da escrita, da literatura, da poesia, da
matemática, da astronomia, da ciência e, inclusive, do Direito, graças à codificação de leis
efetuada por Hamurábi. O conhecimento desses povos foi negligenciado até pelo menos o
século XIX, mas durante o regime de Saddam Hussein, como se verá adiante, passou a ser
parte intrínseca da formação da tradição e da consciência iraquianas2.
Os Sumérios também foram particularmente importantes, já que desenvolveram as
primeiras cidades entre os rios Tigre e Eufrates. Foram também responsáveis pela criação
do calendário e pelo desenvolvimento de uma burocracia administrativa3. Os Assírios, por
sua vez, desenvolveram a primeira cultura militarista do mundo. Figuras como
Shalmanezer III (858-824 a.C.), Tiglathpileser III (744-727 a.C.) e Sargon II (722-705
a.C.), exerceram guerras expansionistas, reprimiam desordens com vigor e eram vistos, ao
mesmo tempo, como guerreiros destemidos e burocratas capacitados, capazes de evocar na
população sentimentos nacionalistas4. Os Babilônios e os Sumérios dominaram a região.
Contudo, ambos os reinos caíram nas mãos dos Persas, por meio de Ciro, por volta de 500
1 ABURISH, Said K. Saddam Hussein: The Politics of Revenge. Londres: Bloomsbury, 2000, pp. 1-2.2 MARR, Phebe. The Modern History of Iraq. Boulder, Colorado: The Westview Press, 2003, pp. 4.3 MILLER, Judith; MYLROIE, Laurie. Sadam Hussein e a Crise do Golfo. Trad. Vera Maluf. São Paulo: Scritta, 3ª. Ed., 1991. 4 KARSH, Efraim; RAUTSI, Inari. Saddam Hussein: A Political Biography. Nova Iorque: Grove Press, 2003 pp. 120.
10
a.C. A seguir, seria conquistada por Alexandre, o Grande, e a partir de então, se tornou uma
região bastante instável, com seguidas conquistas de diversas populações, até a chegada dos
árabes muçulmanos, no século VII d.C.
2. A Civilização Árabe-Islâmica
É imprescindível, para o entendimento desse período histórico e para a compreensão
de suas conseqüências na vida moderna iraquiana, que se observe o nascimento do Islã e a
sua relação com a política. Após a morte de Maomé (que havia recebido a revelação divina
em 614 d.C. na cidade de Meca), originou-se a oposição entre as duas tendências islâmicas
(xiitas e sunitas), baseada na escolha do sucessor do profeta. Enquanto um grupo defendia
que Ali ibn Abi Talib, genro de Maomé, deveria fazê-lo, o outro entendia que qualquer fiel
escolhido consensualmente pela comunidade poderia suceder o profeta. Companheiro de
Maomé, Abu Bakr foi o escolhido, e cumpriu a missão de desenvolver o poder muçulmano
entre os árabes. Umar ibn al-Khattab, seu sucessor, foi responsável pela conquista de várias
regiões fora da península (inclusive a Mesopotâmia, à época sob domínio dos decadentes
Persas, que foram derrotados na batalha de Qadisiyya em 637). A expansão se deu num
grau bastante acentuado, e a concentração de renda nas mãos de alguns clãs árabes (que
coordenavam as conquistas territoriais), acabou por dividir ainda mais os grupos. Ali
assume a comunidade, mas uma guerra civil se segue e ele é morto. Muawiyya assume seu
posto e funda a dinastia califal dos Omíadas, estabelecendo Damasco como capital do
império. A pacificação, a princípio, foi aceita, mas os seguidores de Ali, insatisfeitos com o
governo de Muawiyya, fundaram um partido, a xia, disseminando a crença ma legalidade
da sucessão hereditária regional. Yazid, filho de Muawiyya, o sucede, consagrando o
princípio da hereditariedade e a dinastia omíada. Os xiitas se rebelam e Hussein, herdeiro
de Ali, é decapitado em Karbala, tornando-se um mártir e fazendo com que aquela cidade
se tornasse sagrada para os xiitas, assim como Najaf, Kazimiyya e Nassíria, locais em que
morreram outros xiitas que contestavam a dominação sunita da política. Apesar das
derrotas, não desapareceram; em vez disso, consolidaram-se como uma ideologia não-
secular que pregava valores de justiça social e de martírio5.
5 DEMANT, Peter R. O Mundo Muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004, pp. 38-41.
11
Em décadas, o califado omíada dominaria regiões tão longínquas como a Espanha e
o rio Indo (região em hoje se localiza o Paquistão e a Índia). No início, não havia coação às
populações locais (majoritariamente cristãs e zoroastras – religião pagã persa) a se
converter ao Islã. Posteriormente, praticou-se uma espécie de tolerância religiosa para com
povos como os judeus, os cristãos e mesmo os hindus. Eles recebiam o status de dhimma
(comunidade protegida), submetendo-se a aceitação de símbolos, como o vestuário, que
representavam sua condição de inferioridade, e pagando impostos como maneira de
reconhecer a superioridade do Islã e sendo impedidos de ingressar nos exércitos (primazia
que era reservada aos muçulmanos), em troca da participação na sociedade e da permissão
para a prática de seus respectivos cultos. Contudo, paulatinamente, boa parte destes
acabaram por migrar para o Islã, em busca do acesso ao poder político (o que só se efetivou
na dinastia Abássida) e de uma maior integração ao império. Com isso, os cristãos se
tornaram minoria, enquanto que os convertidos passaram a participar do exército e a
contribuir no projeto expansionista muçulmano. Os zoroastras também acompanharam o
processo de conversão, contribuindo, mais tarde, para uma miscigenação cultural com os
árabes6.
Os mawali (novos muçulmanos), em 740, conseguem derrotar os omíadas, e com
isso estabelecem o império Abássida, e logo promovem a equivalência de direitos entre
todos os muçulmanos, pondo fim à supremacia árabe, base de constituição da civilização
árabe-islâmica em seus primórdios7. Símbolo da força dos não-árabes foi a mudança da
capital para Bagdá (que havia sido fundada em 762 pelo califa Mansur). Nos dois séculos
seguintes, erigiu-se um império próspero e em expansão que, por meio das influências
gregas e persas, consolidou uma brilhante civilização, que destacou tanto pela vigorosa vida
científica e intelectual, em que tinham a primazia da tradução dos trabalhos gregos e da
realização de experimentos científicos, como pelo comércio altamente profícuo, que se
estendia do mar Báltico até a China. Além disso, a agricultura também atingiu seu auge,
graças à extensão dos canais de irrigação8.
Contudo, ainda que os dois séculos de ouro da civilização muçulmana tenham sido
marcados pela estabilidade, os governos tornaram-se notórios pela pacificação pela força,
6 Idem, pp. 42.7 Idem, pp. 43.8 MARR, pp. 5.
12
constituindo um regime absolutista e que, pela influência persa, colocava os califas como
seres especiais, dotados de oratória quase divina (o que se contrapunha à visão árabe e
islâmica de considerar tal autoridade como alguém do povo). Isso irritou profundamente as
autoridades religiosas e aos radicais, notadamente o setor xiita9.
Nesse período próspero, a classe mercantil se tornara a classe dominante do império
(fazendo com que a economia gradualmente se tornasse mais relevante do que a fé e o
expansionismo) e base da ortodoxia religiosa. A arabização e a islamização dos territórios
conquistados têm seu ritmo intensificado (embora povos como os maronitas, os curdos, os
armenos e os turcos não tenham se submetido totalmente à essa conversão). A maioria da
população do império se torna muçulmana, enquanto que o assentamento de soldados
árabes e a expansão da religião viabilizaram a expansão da língua10.
Contudo, a fragmentação política ocorrida no século X (causada pelo enorme
tamanho do Império e a precariedade dos sistemas de comunicação e de transporte, que
resultavam na ineficiência na cobrança de impostos), a dinastia Abássida começa a
declinar. O vácuo político oriundo de atravessadores que tomavam para si os tributos que
eram enviados do interior para a capital propiciou o ingresso cada vez maior de turcos no
Oriente Médio. Antes utilizados como mercenários pelos califas, passaram a dominar a
corte, reduzindo o califa a um cargo formal. Durante esse processo de dominação, as
divisões ideológicas dentro do Islã se intensificaram, e a vitória da visão conservadora da
filosofia (a xaria, que rejeitava em princípios quaisquer dimensões não controladas pela
religião), acabou por alienar o império cultural e politicamente, fazendo com que, aos
poucos, se tornasse defasado perante o desenvolvimento europeu e asiático. A partir de
então, tribos nômades continuamente passaram a invadir, saquear e devastar comunidades
sedentárias11.
A região mesopotâmica gradualmente se isolou dos demais estados árabes, e passou
a sofrer cada vez mais com a desintegração social, a depressão econômica e o caos político,
sofrendo ataques constantes de exércitos estrangeiros. O maior deles ocorreu em 1258,
quando Hulagu, neto de Gênghis Khan, e sucessor de seu projeto de dominação global,
invadiu Bagdá, executou o último califa, destruiu os sistemas de irrigação e causou a morte
9 MILLER, pp. 63.10 DEMANT, pp. 44-46.11 Idem, pp. 48 e 53.
13
de mais de cem mil moradores, o que foi um golpe fatal no combalido império Abássida.
Anos mais tarde, seriam derrotados pelos mamelucos (dinastia de sultões-escravos) na
Palestina. Em 1401, Tamerlão, outro líder mongol, invadiu mais uma vez a região
mesopotâmica, e condenou-a e à boa parte do Oriente Médio um século turbulento, com
guerras civis e crise no comércio. Seriam os turcos, em meados do século XV, que
passariam a reverter esse quadro12.
3. O Império Turco-Otomano
Após a conquista de diversos territórios durante o século XV (entre eles o Império
Bizantino, possessões no Mar Negro e no Mediterrâneo e praticamente todo o Oriente
Médio), o eficiente exército otomano, composto pelos janízaros (jovens cristãos que, a
título de tributo, eram recebido das comunidades dhimmi para serem islamizados e
tornados soldados), se colide com os Safávidas, xiitas que controlavam a região da Pérsia.
Entre 1514 e 1555, conquistam toda a região mesopotâmica, e nesse momento atingem o
auge de sua expansão (freada somente em Viena). O governo assentado no território
iraquiano era estável e uniforme a essa altura. Sua origem sunita não o impediu de ter,
inicialmente, tolerância para com os xiitas, mas as constantes rusgas fronteiriças com os
Safávidas e a sua influência sobre as cidades sagradas ao sul de Bagdá fizeram com que,
progressivamente, se concedessem privilégios aos sunitas urbanos. Esta foi a origem da
dominação sunita no Iraque13. Nesse período tenso, Bagdá foi tomada algumas vezes pelos
persas, que dominaram a região entre 1623 e 1639, até que os otomanos conquistassem
novamente aquela localidade14. Cada vez que a região era controlada por um lado, a
população de origem similar a do inimigo era hostilizada. As rivalidades entre sunitas e
xiitas foram crescendo a tal ponto que, conforme os anos iam passando, desenvolvia-se
uma clivagem sócio-econômica, especialmente porque a preponderância turca no Iraque
durou muito mais do que a persa, dando aos sunitas vantagens substanciais em termos de
condições educacionais e de saúde claramente observáveis no início do século XX15.
12 DEMANT, pp. 54-55.13 MARR, pp. 5.14 FAROUK-SLUGLETT, Marion; SLUGLETT, Peter. Iraq Since 1958: From Revolution to Dictatorship. Londres e Nova Iorque: I.B. Tauris, 3a. ed., 2003, pp. 1. 15 ABURISH, pp. 3.
14
Com o desenvolvimento europeu que, por meio das grandes navegações retirou dos
muçulmanos a primazia do comércio com a Ásia (sua principal fonte de arrecadação, seja
pela venda das especiarias, seja pelo controle da Rota da Seda), o Império Otomano
começou a declinar em meados do século XVII. A estagnação militar e social já era visível,
e aos poucos o gigante império começa a encolher. A religião não evoluiu mais, e a falta de
dinamismo e de mudanças estruturais acelerou esse processo de decaimento16. Em 1704, os
otomanos perdem o controle direto de praticamente todo o Iraque para dinastias
mamelucas17.
Os mamelucos controlavam a região por meio de um sistema tributário, que
consistia na manutenção de si mesmo e de seus aliados de tal maneira que pudessem extrair
receitas, que os permitiriam defender o sistema contra todos os desafiantes internos e
externos. Confederações de tribos árabes controlavam vastas regiões do centro e do sul do
território, e constantemente alianças eram realizadas com ou contra elas, dependendo da
ocasião. Como o alcance do governo era bastante restrito (dadas as péssimas condições de
comunicação e inacessibilidade de boa parte do território), as taxas eram extraídas de
comunidades rurais próximas, e eram complementadas pelos impostos oriundos do
comércio que se fazia por toda a Mesopotâmia18. Esse contexto de relativa autonomia
administrativa, econômica e fiscal fazia com que poucos habitantes das províncias de
Basra, Bagdá e Mosul tivessem a sensação de que faziam parte de um grande império. Não
havia uma coesão geopolítica entre essas três províncias. Enquanto Basra se voltava para o
Golfo e para a Índia, Bagdá era um ponto de escala na rota entre a Síria e o Irã, e Mosul se
ligava mais fortemente com a Anatólia do que com Bagdá19.
As comunidades dessas províncias eram similares a de qualquer outra do império.
Na região curda de Mosul, ao norte, fortes ligações tribais e locais criaram comunidades
distintas, com práticas e identidades particulares, graças às identidades dinásticas,
paroquiais e tribais. Um exemplo disso era que o contato dessas comunidades com o
Império só se faziam pela família líder20. Nessa localidade se encontravam os Yazidis
(agrupamento étnica e lingüisticamente curdo, que resistiu constantemente às tentativas de
16 DEMANT, pp. 59.17 FAROUK-SLUGLETT, pp. 1.18 TRIPP, Charles. A History of Iraq. Cambridge: Cambridge University Press, 2a. ed., 2002, pp. 9. 19 FAROUK-SLUGLETT, pp. 2.20 TRIPP, pp. 10.
15
integração com a sociedade, crentes numa religião sincretista, baseada no Zoroastrismo), os
Cristãos (também conhecidos como Caldeus, são falantes do árabe e filiados a uma igreja
que se fundiu à Católica Romana no século XVI), os xiitas Turcomanos (agrupamento
oriundo dos turcos Seljúcidas, falantes do curdo e que, mais tarde, viriam a se integrar bem
à sociedade, especialmente dentro da burocracia criada no século XX) e Curdos (de origem
incerta, provavelmente descendentes dos Medos; foram quase que completamente
convertidos para o Islã, transformando-se em sunitas devido à influência do Império
Otomano)21. O restante de Mosul era muito mais integrado ao sistema otomano, devido
principalmente à sua população majoritariamente árabe sunita e ao seu comércio com a
capital.
Bagdá era parecida com outras cidades otomanas. Tinha os mamelucos georgianos
como elite militar, e como características peculiares a grande população xiita e a presença
dos judeus (presentes desde o cativeiro babilônico do século VI a.C., sendo
majoritariamente urbanos e se constituíam como comerciantes prósperos e influentes), que
compunham quase 20 por cento da população local. Assim como em Mosul, os governantes
de Bagdá governavam apenas nominalmente o resto da província, que ficava imune às
tributações e sofriam a influência do tribalismo e dos costumes locais. As quatro cidades
sagradas xiitas que a avizinhavam (Najaf, Karbala, Kazimiyya e Samarra) eram alvo de
constante preocupação. Cada vez mais os ulama (sábios em Direito e religião) xiitas eram
bem sucedidos em converter tribos nômades para o xiismo, enquanto que tribos persas, que
visitavam constantemente aquela região, chamavam a atenção dos Safávidas, o que criava
um clima tenso entre aqueles e os governantes locais22.
Em Basra, dadas as enormes diferenças doutrinárias e tribais entre a comunidade
local e o estado otomano, somada à força de algumas tribos, a extensão do governo
mameluco era bem restrita. A maioria da população era árabe e xiita, enquanto a elite
mameluca era sunita. A economia local se baseava na agricultura intensiva e nos postos de
comércio com o Golfo e o Oceano Índico23.
21 MARR, pp. 15-17.22 TRIPP, pp. 11-12.23 TRIPP, pp. 12.
16
Num contexto cada vez mais desfavorável para os otomanos (no qual a Europa
ampliava sua influência sobre o Oriente Médio, ao mesmo tempo em que os nacionalismos
começavam a surgir nos Bálcãs e o governador egípcio acumulava um poder considerável),
a elite política de Istambul decide tentar reverter o processo de encolhimento do território
sob seu controle. Em 1831, como parte desse projeto centralizante, um exército é enviado
para Bagdá, e consegue expulsar do poder o seu governador mameluco, encerrando o seu
domínio na região, tendo por conseqüência o restabelecimento das três províncias sob a
égide dos otomanos. Por algum tempo, as normas e os métodos de administração dos
mamelucos persistiu, e a retomada do controle otomano sobre as cidades não significou um
maior controle das fortes confederações de tribos do interior. Contudo, uma série de
reformas com moldes europeus viria a tentar mudar esse quadro nas décadas seguintes24.
As tanzimat, como ficaram conhecidas tais reformas, iniciaram-se na região
mesopotâmica ainda na década de 40, mas só se desenvolveram de maneira mais apropriada
sob o governo de Midhat Pasha em Bagdá (1869-1872). Por meio da Lei Otomana de
Terras, de 1858, tentou-se aumentar os poderes do Estado como coletor de impostos, mas
não houve sucesso. As razões para esse fracasso foram de origem cultural e sócio-
econômica: não haviam condições para o investimento financeiro nas propriedades privadas
que foram criadas, e tampouco as tribos (acostumadas em ter a posse coletiva da terra
fundada na habilidade em mantê-la perante os inimigos) interessaram-se em adquirir títulos
de propriedade. Comerciantes urbanos, fazendeiros e xeiques (líderes das tribos), foram
aqueles que perceberam as vantagens de se possuir aqueles documentos, e com isso ficaram
com grandes porções de terra. Contudo, a falta de uma estrutura burocrática capaz de cobrar
os impostos, o governo não conseguiu fazer os novos proprietários pagarem pela posse das
terras, e assim o intento reformista falhou em encerrar, num primeiro momento, o forte
componente tribalista do país25.
Entretanto, os xeiques, que em geral acabaram se tornando os proprietários das
terras, aliaram-se ao estado com o objetivo de obter auxílio na cobrança de impostos dos
inquilinos de suas propriedades (justamente os membros de sua tribo), o que acabou
significando uma ruptura importante do ponto de vista da estrutura social26.
24 Idem, pp. 14-15.25 FAROUK-SLUGLETT, pp. 4.26 TRIPP, pp. 16-17.
17
Contemporaneamente às reformas políticas do período, eventos como a abertura do
canal de Suez e a introdução da navegação a vapor nos rios Tigre e Eufrates deram um
incremento considerável na vida econômica da região, já que a mesopotâmia se tornou um
exportador de grãos e frutas, principalmente para o Golfo e para a Índia27. Além disso,
desenvolvia-se a imprensa escrita, que resultou na publicação dos primeiros jornais e, com
isso, no surgimento de uma incipiente sociedade civil.
A reforma mais importante, especialmente do ponto de vista da formação do estado
iraquiano, foi a educacional. Foram fundadas escolas técnicas, médias e duas secundárias
(para o serviço militar e civil). De caráter secular, permitiu aos jovens o conhecimento de
línguas ocidentais, matemática e ciências. Boa parte dos sunitas de classes médias e
inferiores optava por ir para as academias militares, local notório de ascensão social. O
Otomanismo, doutrina que pregava a igualdade jurídica entre as minorias e a população
sunita, foi largamente aplicada no período. O conjunto de reformas contribuiu, aos poucos,
para o assentamento e modernização da população28. A premente expansão ocidental e
incapacidade por parte do Estado em defender sua população fizeram com que sua
legitimidade fosse afetada, e um golpe altamente conservador acabou por cessar as tanzimat
e a influência européia na vida otomana29.
Hamid II (1876-1909), com idéias pan-islamistas, governou o império no mesmo
momento em que emergia a noção dentre os intelectuais árabes de que seu grupo de origem
formava uma entidade etno-linguística distinta e que eles tinham alguma forma de
autonomia dentro do estado otomano. Ao mesmo tempo, ficava claro que o autoritarismo
de Hamid era incapaz de fazer com que seu país se mantivesse intacto às incursões
européias. Logo, oposições internas começaram a se articular. Os “Jovens Turcos”, após
liderarem alguns protestos em Istambul, se tornaram o mais importante deles. Expressão da
nova realidade otomana, em que transformações sociais permitiam que estudantes de cada
província se encontrassem em Istambul para realizarem seus cursos de ensino superior, os
Jovens Turcos conseguiram promover uma revolução em 1908, e tiveram como uma das
primeiras deliberações a concessão do direito de expressão a grupos políticos suprimidos
em diversas províncias, inclusive na Mesopotâmia, o que resultou na disseminação de
27 FAROUK-SLUGLETT, pp. 3.28 MARR, pp. 7.29 DEMANT, pp. 79.
18
clubes, grupos, sociedades e jornais. Debates se davam em torno do constitucionalismo, do
liberalismo, da descentralização e do secularismo30. Contudo, as fortes políticas
centralizantes do Comitê da União e do Progresso (CUP – grupo que passou a liderar o
movimento revolucionário) logo tornaram claro que seu objetivo era o de simplesmente
promover a posição do elemento turco dentro do Império, o que fez ascender o
nacionalismo árabe31.
Diversas sociedades secretas árabes foram criadas. Em Basra, onde o contato com
principados árabes semi-independentes, como o Kuwait, e a interação com o Egito, que já
dotava de uma imprensa mais livre, proporcionaram a emergência de uma sociedade mais
cosmopolita, Said Talib al-Naqib tentou obter a independência da região (e mesmo do
Iraque, entendido como sendo a soma daquela província com Bagdá), fracassando após a
chegada dos britânicos. Em Bagdá, o movimento oposicionista não era tão forte, mas
partidos de oposição surgiram para contestar o excesso de centralização do novo governo
otomano. Após o golpe de estado promovido pelo CUP, porém, o receio de que a cultura
árabe fosse atingida, além da possibilidade da perda da autonomia existente levou à
emergência de mais sociedades secretas, dentre elas a al’-Ahd, que havia sido originada em
Istambul por oficiais iraquianos (dentre eles Nuri al-Saïd, que se tornaria figura célebre por
toda a monarquia), e tinha filiais em Bagdá e Mosul. A força cada vez maior do
nacionalismo turco fez emergir, pela primeira vez, a possibilidade de independência das
províncias árabes32.
A descoberta do petróleo e larga escala no Oriente Médio chamou a atenção da
Inglaterra e da Alemanha, que logo se apressaram em fazer propostas por concessões,
inclusive no território mesopotâmico. A Convenção da Ferrovia de Bagdá, assinada em
1903 entre o governo otomano e o alemão, previa a construção de uma ferrovia entre
Berlim e Bagdá, e permitia aos alemães a exploração de vasto terreno iraquiano. Logo os
britânicos reagiriam e, por meio de um grande conglomerado de empresas multinacionais,
fundou a Companhia Turca de Petróleo (CTP). Às vésperas da guerra, parecia claro que o
Império Otomano se aliaria às potências centrais, o que fez com que os ingleses se
preparassem para resguardar seus interesses no Golfo33.
30 TRIPP, pp. 21-23.31 FAROUK-SLUGLETT, pp. 6.32 TRIPP, pp. 24-28.33 FAROUK-SLUGLETT, pp. 8.
19
4. A Primeira Guerra Mundial e o Mandato Britânico no Iraque (1920-1932)
Em Novembro de 1914, um mês após a entrada do Império Otomano na guerra a
favor das potências centrais, a Inglaterra ocupa Basra, enviando forças expedicionárias
indianas. A princípio, não tinham o objetivo de conquistar a Mesopotâmica, mas a falta de
uma oposição turca fez com que até 1917, mesmo com um efetivo militar reduzido,
conquistassem toda aquela região. Paralelamente, em 1916, assinam o Acordo de Sykes-
Picot com a França, que consolida a divisão dos espólios otomanos entre as partes
(referendado em 1920, pela concessão de mandatos pela Liga das Nações do Iraque, da
Palestina e da Transjordânia para a Inglaterra e a Síria e o Líbano para a Inglaterra)34.
Com a proteção de seus campos de petróleo, a Inglaterra decide implantar uma
administração, baseada essencialmente na encontrada na Índia (expressão da predileção dos
ingleses por um governo direto, dada a sua crença na incapacidade dos árabes em se
administrarem). Logo, procuraram desmontar a administração otomana, criando legislações
civis e criminais nos moldes anglo-indianos, introduzindo a rúpia indiana como meio de
pagamento e dividindo a Mesopotâmia em distritos políticos, cada um sob o controle de um
oficial britânico. Efetivaram uma política tribal que primou pela aliança com os xeiques,
ligando-os aos administradores britânicos e fazendo-os coletarem a receita de suas tribos35.
Da perspectiva de Istambul, as três províncias mesopotâmicas não formavam um
todo coeso que as diferenciasse das demais localidades do império. Dentre a população, a
noção de um estado iraquiano era ainda incipiente, mas aos poucos começou a se tornar
mais relevante para os grupos que saíam de suas respectivas comunidades e iam estudar na
capital otomana, onde passavam a compartilhar experiências parecidas. Conforme essas
interações foram aumentando, Bagdá, como local dos quartéis das corporações otomanas da
região, fez uma atração gravitacional sobre as outras duas províncias. A intervenção
britânica foi o primeiro momento em que foi possível às sociedade políticas locais se
aproximarem de maneira mais clara36.
34 Idem, pp. 9-10.35 MARR, pp. 22.36 TRIPP, pp. 29.
20
Logo, a administração indiana deixaria insatisfeita a população local,
principalmente devido ao seu excessivo rigor e intromissão na vida tribal. O armistício de
Mudros, solicitado pelo governo otomano no final de 1918, era sinal claro de sua derrota.
Em Basra, as figuras locais rapidamente se acomodaram às autoridades inglesas, já que o
contato entre as partes devido ao comércio se desenvolvia há décadas. A grande maioria
xiita local não seguiu a declaração otomana de uma jihad contra os britânicos, mas o apoio
a estes jamais foi dado; em vez disso, requereu-se maior autonomia às cidades sagradas.
Em Najaf, foi fundada a Sociedade para o Reavivamento do Islã, com o objetivo de
defender a religião contra os infiéis ingleses. No Curdistão, inicialmente as forças britânicas
foram bem vindas. Shaikh Mahmud, líder local, foi escolhido para governar parte da região,
como parte de um projeto que daria o seu controle indireto aos ingleses. Contudo, seu
governo desagradou os ingleses, que logo o expeliram do poder. Em Bagdá, a reação à
presença inglesa foi cautelosa, principalmente devido à Declaração Anglo-Francesa de
1918, que prometia o autogoverno àquelas províncias. Enquanto isso, o grupo al-‘Ahd se
deslocava para Damasco, em suporte ao novo rei sírio, Faisal37.
No início de 1920, por meio da Conferência de San Remo, ficou estabelecido que o
Iraque se tornaria um protetorado britânico, onde seria eleito um governo civil resguardado
por um corpo de conselheiros britânicos, que controlaria as relações internacionais do país e
teria poder de veto em questões militares e financeiras. A população local, especialmente a
xiita, imediatamente reagiu, influenciada por vozes nacionalistas em Bagdá, por líderes
xiitas das cidades sagradas e por líderes tribais da região do Eufrates. Houve, aí, uma
cooperação sem precedentes entre as duas facções muçulmanas em nome da independência
do país, inaugurando uma série de protestos que ficaram conhecidos como as revoltas de
192038. A reação britânica aos protestos foi firme. Ainda sim, as tribos da região do meio-
Eufrates, insatisfeitas com a intrusão do governo britânico em sua realidade (principalmente
por meio da cobrança de impostos), dominaram a região, enquanto que os curdos, numa
atitude oportunista (já que não patrocinavam a causa), tomaram algumas cidades ao norte.
Todavia, o movimento era desorganizado, e sucumbiu em menos de três meses. Para os
iraquianos, esse evento fez parte do mito da fundação de seu nacionalismo39.
37 Idem, pp. 32-36.38 MARR, pp. 23.39 TRIPP, pp. 43-44.
21
Apesar do fracasso em conseguir a independência do país, a revolta foi pródiga em
fazer aumentar a participação dos iraquianos no primeiro governo nacional. Na Conferência
de Cairo, de 1921, os três pilares do estado Iraquiano foram concebidos: a monarquia, na
pessoa de Faisal, descendente direto do profeta; o tratado, que confirmaria a base legal para
o controle britânico; e a constituição, que buscaria integrar os elementos da população
numa fórmula democrática. Nesse momento, a dominação da minoria sunita passaria a ser
consolidada. Além da escolha de Faisal, um sunita, que elegeu para os altos cargos os seus
correligionários nacionalistas (alguns eram membros do al-‘Ahd), fora formado um
exército iraquiano, com preponderância de altos funcionários otomanos (sunitas), e sua
quase totalidade composta por árabes (excluindo diversas minorias, e integrando
minimamente os curdos). A outra deliberação da conferência, o tratado com os ingleses,
confirmou o seu governo indireto sobre o país (com todas as atribuições mencionadas na
Conferência de San Remo), de maneira a neutralizar a oposição local, e obrigou o governo
iraquiano a pagar metade dos custos pela instalação dos britânicos em seu território, em
troca da concessão de diversas ajudas ao Iraque (como auxílio militar e o ingresso do país
na Liga das Nações o quanto antes). A duração do tratado foi estabelecida em 20 anos40.
O governo civil foi formado, com massiva predominância dos árabes sunitas (sob a
justificativa do temor de um governo xiita radical, dada a liderança desse grupo nas revoltas
ocorridas meses antes, e do receio da inexperiência desse grupo em cargos administrativos
– já que haviam sido historicamente negligenciados do poder durante todo o governo
otomano). Um pequeno número de xiitas, cristãos e judeus ocupou algumas vagas no
conselho de ministros41.
Faisal, o escolhido para ser o rei do Iraque, era bem quisto tanto pela população
urbana como pelas tribos, sendo respeitado pelos xiitas por sua descendência direta de
Maomé. Suas experiências políticas na Síria (entre 1918 e 1920, até ser expulso do poder
pelos franceses), lhe deram um senso de realismo e objetividade para lidar num contexto
tão peculiar como o Iraque. A sua postura pela população em geral era, entretanto, fraca,
principalmente por ser um soberano num país sem soberania. A arabização da
40 MARR, pp. 24 e 27.41 TRIPP, pp. 45.
22
administração iraquiana (em oposição ao domínio turco de longa data), uma de suas
primeiras medidas, foi importante para a conquista de algum apoio da população42.
Duas questões que marcariam a década e seriam essenciais para a delimitação do
território iraquiano e para a receita do país para as próximas décadas eram os movimentos
independentistas curdos e a concessão do petróleo. A Turquia, que havia ganhado sua
guerra contra a Grécia, reclamou a província de Mosul para si. A região, altamente instável,
sofreu a penetração de forças turcas, e diversas tribos curdas, crentes na menor hostilidade
dos turcos para com sua população, acabaram se opondo aos ingleses, buscando afastar o
Curdistão do território iraquiano. Fora assinado um acordo que dava autonomia para a
região, mas uma série de divergências entre os líderes internos fez com que o documento
fosse cancelado. Enquanto isso, a Inglaterra, objetivando manter seus domínios petrolíferos
naquela região, assinou um acordo de paz com os turcos. Para os sunitas, que tinham
grande temor da saída dos curdos (o que aumentaria ainda mais a predominância dos xiitas
dentre as população), foi uma decisão importante43. Previamente, os políticos europeus
acreditavam que a população curda conseguiria sua autonomia ou independência ao final da
Primeira Guerra, mas todos os desentendimentos que surgiram e um contexto em que
parecia mais claro para os ingleses manter o Curdistão dentro do Iraque (o que lhes
possibilitaria um controle maior sobre os campos de exploração de petróleo) fizeram com
que, em 1925, a Comissão Arbitrária da Liga das Nações decidisse por incluir Mosul dentro
do território iraquiano, na condição de que o regime mandatário governasse por mais 25
anos (ou até que o Iraque se tornasse membro da Liga)44.
Meses antes, o parlamento iraquiano ratificara o acordo de concessão de petróleo
entre o governo e a Companhia Turca de Petróleo (que se tornaria da Companhia Iraquiana
de Petróleo em 1929), após manifestação claramente a favor do mesmo por parte dos
britânicos (que detinham o controle da empresa). Foi acertado que o governo não teria
qualquer participação nos lucros sobre o petróleo (ao contrário do que havia sido prometido
pelos britânicos no momento em que o mandato havia sido criado), e da exclusividade da
exploração em praticamente todo o país (à exceção de Basra) para a CTP. Em troca, o
governo receberia royalties pela descoberta de novos campos e ganharia a construção de
42 MARR, pp. 24-25.43 TRIPP, pp. 54-55.44 FAROUK-SLUGLETT, pp. 13.
23
uma refinaria e de um duto. Com isso, o gabinete concluía um documento altamente
contrário aos interesses iraquianos, em troca da demonstração, perante os britânicos, da
desejo de manter Mosul sob os seus domínios. Outro acordo, que estabelecia as condições
de ingresso de Mosul dentro do território iraquiano e renovava por mais 25 anos o mandato
britânico, passou sem problemas pelo parlamento em 1926, principalmente porque a elite
local acreditava que os britânicos concederiam em breve a independência do Iraque por
meio de seu ingresso na Liga das Nações45.
A constituição iraquiana e a Lei Eleitoral foram documentos essenciais para decidir
a alocação formal de poder e afetar as forças relativas entre aqueles que repousavam seu
domínio em apoio social e aqueles que se sustentavam às expensas do estado. À época, o
patrimonialismo, sistema em que o Estado formava uma aliança com os líderes tribais por
meio da concessão de porções de terra a eles em troca da manutenção do status quo, foi a
tônica da realidade iraquiana. O não pagamento de impostos por parte dos xeiques foi um
dos fatores para a grave crise econômica que se estendeu sobre o país no período. Num
cenário de crise mundial que afetou o comércio, além da necessidade contínua de
pagamento de indenizações aos ingleses, a economia do país vivia em penúria. Faltavam
fundos para o desenvolvimento, e com isso o país passou por uma período de grande
estagnação, em que grande parte da população permanecia analfabeta. O interior do país,
onde morava boa parte da população, mal havia tido contato com a modernização, e a
industrialização, por meio de indústrias têxteis e de construção civil, havia acabado de
começar. Contudo, como dependiam do Estado para se desenvolverem, acabaram por
sucumbir brevemente diante do cenário caótico46.
Nas cidades, uma pequena classe média de comerciantes e profissionais liberais
começou a emergir, mas a imensa maioria da população ainda estava no nível da pobreza.
A migração de campesinos para as zonas urbanas (devido às péssimas condições da
agricultura) e a falta de oportunidades levou à construção de enormes favelas47. Em meio a
esse quadro desolador, especialistas estrangeiros foram chamados para analisar o porque da
crise econômica e fiscal. Como a solução sugerida contrariou os interesses da elite política,
45 TRIPP, pp. 59-60.46 MARR, pp. 30.47 MARR, pp. 31.
24
medidas paliativas foram adotadas, como a transferência da cobrança dos impostos para os
trabalhadores rurais (que não tinham condições de arcar com tais despesas)48.
Alguns partidos políticos oposicionistas começaram a se organizar, compostos
principalmente por xiitas. Estes foram os únicos a pegar em armas contra o governo, mas
suas claras derrotas fizeram-nos perceber que nada conseguiriam enquanto os britânicos
permanecessem no território iraquiano. Alguns passaram a acreditar que o serviço militar
universal poderia erodir as lealdades entre a elite política local os líderes tribais e os
ingleses, já que o exército poderia se fazer com que um senso coletivo e de aproximação
com o estado fosse formado. Para boa parte dos xiitas e curdos, entretanto, o alistamento
era visto de maneira repugnante; pra os xeiques, era uma tentativa de centralizar a
administração e reduzir a autonomia das tribos 49.
Diante dessa realidade, parecia claro que, endogenamente, o país não dispunha de
condições de obter sua independência. As idéias inseridas no âmbito educacional por Sati’-
al-Husri, embora importantes nas décadas seguintes por fazer emergir um nacionalismo
árabe que seria vital nas disputas políticas que viriam, acabaram por fazer com que o
patriotismo iraquiano jamais surgisse naquele momento. A falta de um olhar mais para
dentro de si impediu o governo (artífice dessas ideologias) de observar mais atentamente os
enormes problemas internos e, com isso, buscar construir uma identidade iraquiana que
trouxesse um senso de unidade entre xiitas, curdos e sunitas50.
As disputas políticas internas eram marcadas por um personalismo atroz, que não
levava em conta projetos de país, mas somente interesses pessoais. Na Inglaterra, a
imprensa pressionava cada vez mais por sua saída do Iraque, e a subida ao poder do partido
trabalhista, em 1929, foi o evento que possibilitou a criação das condições para a
independência iraquiana. O novo governo escolheu Nuri al-Saïd para o cargo de primeiro-
ministro, o único que parecia, à época, controlar os distúrbios internos resultantes da
própria permanência da Inglaterra no território iraquiano. Em 1930, o Acordo Anglo-
Iraquiano foi assinado, e por meio dele o Iraque se tornaria independente em 1932, por
meio do seu ingresso na Liga das Nações (se tornando o primeiro país que sofria mandato
estrangeiro a fazê-lo). Contudo, a influência inglesa ia se perpetuar, graças à manutenção
48 TRIPP, pp. 70.49 Idem, pp. 63.50 MARR, pp. 26.
25
do direito de ingresso em todas as facilidades iraquianas, além do controle de duas bases e
manutenção de conselheiros e especialistas, em troca da assistência e treinamento do
exército iraquiano. O enorme sentimento antiimperialista de parte da população fez com
que os protestos não cessassem (pelo menos até 1958), e inclusive Curdos e cristãos
Assírios também se opuseram ao tratado, mas por razões opostas à dos árabes. Para eles, a
saída da Inglaterra poderia significar a sua própria desproteção51. Uma eleição geral
articulada por Nuri fez com que os apoiadores do tratado tivessem uma esmagadora vitória,
o que permitiu a sua ratificação logo depois. Numa tentativa de apaziguar os ânimos
curdos, leis foram introduzidas reconhecendo alguns de seus interesses e seu caráter
distinto. O país preparou, em atendimento à Liga, um documento que assegurava os direitos
dos estrangeiros e das minorias, além de garantir a elas liberdade de pensamento e de
religião. Essa garantia permitiu ao país livrar-se do mandato em Outubro de 1932 e, com
isso, tornar-se nominalmente independente52.
Nesse período, entretanto, falhas importantes criaram condições para a instabilidade
da monarquia por toda a sua existência, conforme será visto a seguir. Uma das marcas mais
substanciais foi a descrença de grande parte dos iraquianos nas instituições democráticas, o
que era fruto tanto do forte sentimento antiimperialista, que via todas as produções
ocidentais como atentatórias à soberania, como a fraqueza da própria constituição, que foi
incapaz de dar um rumo para o país. O governo, ao privilegiar um modelo político auto-
interessado, alienou camadas importantes da população, que em algum momento voltar-se-
iam contra ele e gerariam bastante turbulência.
5. O Período 1932-1946
No momento da independência do país, era clara a influência do tribalismo. Além
de controlar o sistema de comunicações do país e boa parte da terra (que era símbolo do
poder e da diferenciação), influenciavam ideologicamente boa parte da população
iraquiana, graças a valores defendidos e solidamente cultuados como a lealdade à família e
à tribo na vida social e política no Iraque, que reverberavam em imensa preocupação com a
família, com o clã, com a tribo, a devoção à honra pessoal, o faccionalismo. Todas essas
51 MARR, pp. 34-35.52 TRIPP, pp. 67 e 75.
26
características eram incompatíveis com a sociedade civil moderna que surgia em outros
locais do mundo e que se tentava implantar, exogenamente, no Iraque53. Essa realidade era
incompatível, na verdade, com a criação de um Estado moderno, principalmente se nele
carecessem estruturas materiais e ideológicas fortes o suficiente para transcender o apego
tribalista pelo local em vez do nacional. Num país frágil como o Iraque, o quadro de
incipiência de um processo transformação social nas cidades contribuiu para a criação de
uma dicotomia cidade-tribo, o que só seria de alguma forma apaziguado décadas mais
tarde, especialmente durante o início do regime Baath. Ainda sim, alguns eventos nesse
período histórico a ser analisado contribuiriam para a modernização da sociedade.
Em 1933, ainda como reflexo da independência iraquiana, teve início a crise assíria,
na qual a comunidade reclamava sua autonomia baseada em seu status prévio de
comunidade religiosa separada, atribuição concedida ainda na época dos otomanos54.
Apesar de seu tamanho diminuto, a comunidade era considerada um problema de segurança
nacional por parte dos iraquianos, e o fato de que este grupo fora assentado no Iraque pela
forças britânicas logo após a Primeira Guerra Mundial fazia com que tanto árabes como
curdos fossem hostis a eles; alguns chegavam a relacionar a sua permanência no território
iraquiano como um plano sinistro por parte das forças inglesas em recuperar para si o norte
no Iraque, onde se localizavam55.
Após uma tentativa fracassada de migrarem para a Síria, foram abordados por forças
iraquianas em seu retorno. O exército dos Levies, força britânica convocada pelos Assírios
para a sua defesa, foi utilizada. Entretanto, a concentração das forças do general iraquiano
Bakr Sidqi acabou no massacre de metade de toda a população assíria. Cerca de quinhentos
conseguiram fugir para a Síria, mas os demais sobreviventes dos ataques foram mortos,
inclusive por forças curdas que, contaminadas por um forte sentimento antiassírio,
invadiram vilarejos e os destruíram totalmente. Internacionalmente, o país foi severamente
criticado, e sua capacidade de lidar com minorias e mesmo para se autogovernar56.
Internamente, contudo, Bakr Sidqi passou a ser visto como um herói nacional, e a vitória
sobre os assírios significou o triunfo do novo estado perante aqueles que queriam evitar a
53 MARR, pp. 18.54 Idem, pp. 38.55 TRIPP, pp. 80.56 MARR, pp. 39.
27
união nacional e pretendiam se aliar aos britânicos57. O mais importante desse evento,
contudo, foi o surgimento do exército com proeminência nacional pela primeira vez. Sua
glorificação perante a opinião pública fez com que grupos tribais e curdos, desejosos em se
integrar à realidade iraquiana, buscassem ingressar no exército, o que resultou na aprovação
na cláusula que criaria a declaração de alistamento e, conseqüentemente, fortaleceria os
militares e nacionalistas58.
Do ponto de vista ideológico, o nascimento e desenvolvimento de duas correntes de
pensamento dentre a população iraquiana seria um dos eventos principais do período. Por
um lado, estavam os árabes nacionalistas, interessados nas instituições de estado e na
expansão da influência iraquiana no mundo árabe. Em outro lado, estavam os reformistas
sociais, movidos pelo constante reconhecimento do descontentamento social e das
discrepâncias na riqueza e nas oportunidades. Empiricamente, duas escolas influenciavam o
pensamento político iraquiano. Uma era claramente influenciada pelos modelos ditatoriais
europeus, especialmente o alemão e o italiano, em cujos países podia-se observar um
grande e rápido desenvolvimento econômico, aliado a uma grande mobilização social. Para
os iraquianos que estudaram naquelas localidades, esse modelo de governo parecer ser o
mais efetivo para unir países fragmentados, como o próprio Iraque. A Turquia de Mustafá
Kamal foi um dos países que aderiu a esse modelo, tendo o estado sido um ator
extremamente relevante no desenvolvimento de sua indústria, da agricultura e da educação.
Logo os jovens que haviam se identificado com essas idéias se aliariam aos nacionalistas
árabes que existiam desde a época do mandato, mas até então jamais haviam conseguido se
articular para formar um grupo político sólido. A outra escola, de cunho socialista
democrático, era oriunda muito mais do movimento trabalhista britânico do que a União
Soviética. A geração mais nova dos iraquianos, a primeira a receber uma educação
plenamente ocidentalizada, apreciava a economia como a base do poder, e via a
necessidade da criação de uma reforma social que questionasse a oligarquia dos políticos e
proprietários que governavam o país. Enfatizando concepções como a justiça social, a
distribuição mais justa de poder e riqueza e uma reforma econômica genuína, os jovens
57 TRIPP, pp. 80.58 MARR, pp. 39.
28
reformistas criaram uma pequena organização denominada Ahali, que se tornou bastante
popular dentre os xiitas e as minorias59.
Ainda em 1933, falece subitamente o rei Faisal, e em seu lugar assume Ghazi, seu
filho de 21 anos de idade. Embora não tivesse a mesma afinidade do pai para lidar com a
política, sua educação no colégio militar fê-lo identificar-se com os jovens oficiais do
exército, compartilhando com eles o senso pan-arabista60. Seu sentimento antibritânico fez
com que as relações com os britânicos esfriassem e, com isso, as classes populares que
emergiam passaram a admirá-lo. Nesse contexto em que se expandia uma classe urbana, no
interior iniciava-se a transição de uma sociedade baseada na organização tribal para outra,
baseada na agricultura. O aumento da força do Estado rumo ao interior, graças à sua
gradativa burocratização, e a implantação da lei de alistamento fizeram com que os shaiks
cada vez mais perdessem sua importância administrativa. Aos poucos, parecia que o
patrimonialismo cederia a um novo conceito de uso da terra, baseado na produção e no
investimento. Contudo, o não fornecimento das condições adequadas para o assentamento
das tribos fez com que houvesse o aumento da insatisfação dos xiitas61.
Simultaneamente a esse quadro hostil no interior, ocorriam seguidas manifestações
xiitas nas zonas urbanas, clamando por maior representatividade no parlamento e nos
cargos públicos, além de uma melhor divisão dos recursos. Os xiitas mais conservadores se
recusavam a ingressar num governo que consideravam ilegítimo (já que era sunita, secular
e dominado por forças estrangeiras), enquanto que os de mesma etnia que já haviam se
adaptado melhor à configuração política do país recém formado acabaram por aderir às
disputas políticas institucionais62.
Em 1935, o Partido da Irmandade Nacional, ao perceber que o caminho para a
conquista do poder pelo caminho constitucional era inviável, organizou uma conspiração
com o objetivo de remover do poder o gabinete, promovendo uma insurgência tribal. Em
resposta a esse ato, o rei decidiu alocar a oposição num novo ministério. Entretanto, na
formação desse novo governo, parte substancial dos apoiadores dos protestos foram
excluídos, e então estes passaram a se rebelar no sul do país. Grupos que estavam
ressentidos com o enfraquecimento tribal, outros que almejavam apossar terras e facções
59 MARR, pp. 37 e 45; TRIPP, pp. 85.60 TRIPP, pp. 81.61 MARR, pp. 41. 62 Idem, pp. 42.
29
que se moviam por sentimentos religiosos contribuíram para a geração de um caos
generalizado na região do meio-Eufrates63.
O governo agiu com extremo vigor para controlar as desestabilizações. O exército,
controlado por Bakr Sidqi, controlou os primeiros focos; a continuidade das revoltas,
porém, fez com que o uso dos meios de violência se intensificasse a níveis similares ao do
massacre acometido contra os assírios, três anos antes. Os Yazidis, ao norte, também se
rebelaram, mas contra o alistamento obrigatório; logo também foram massacrados pelas
forças do exército. Ainda assim, seus remanescentes negaram-se a participar da
conscrição64. Paralelamente a essas ações, o parlamento liderado por Yasin al-Hashimi
tratou de fortificar e expandir o exército e a burocracia, além de patrocinar campanhas
nacionalistas árabes na imprensa. Claramente via-se que o governo caminhava para uma
ditadura. Logo, Yasim, o “Bismack dos Árabes”, como ficou conhecido, dissolveria o seu
próprio partido e a oposição, e demandaria um governo de dez anos para realizar seu
projeto de país65. Tal movimento acionou um movimento conspiratório, essencial na
história do país, tanto por representar o ingresso quase definitivo do exército na vida
política do país, como por criar uma aliança entre esse grupo e os esquerdistas, rompendo o
status quo estabelecido desde 1920.
Desde o início dos anos 30, Bakr Sidqi introduzia no exército idéias que faziam
alusão a um Estado forte e com forças armadas modernas e que governassem o país. Com o
governo de Yasin, ficou claro para ele que esse objetivo não seria alcançado. Enquanto
isso, Hikmat Sulaiman, um dos apoiadores do novo gabinete que havia sido excluído do
processo político, tinha o objetivo de acelerar o desenvolvimento econômico do país com
justiça social (o que remetia a um Fabianismo socialista). Ao aderir ao Ahali, contribuiu
para que o grupo saísse do campo das idéias de fosse disputar o poder. Sua proposta de
golpe pareceu, de início, radical, mas logo os integrantes da facção entenderam que aquele
momento era uma oportunidade única de pôr em prática seus ideais transformadores66.
Em Outubro de 1936, enquanto aviões despejavam folhetos sobre Bagdá, Sidqi
liderava uma marcha do exército sobre Bagdá. De início, o rei ficara apreensivo sobre o
caráter do golpe, mas ao perceber que a monarquia não seria abalada, aquiesceu ao
63 MARR, pp. 42.64 TRIPP, pp. 87.65 MARR, pp. 43.66 MARR, pp. 44 e 46.
30
movimento. Yasim resignou-se do cargo de primeiro-ministro e, juntamente com ele, vários
políticos (entre eles, Nuri al-Said) exilaram-se. Sulaiman foi indicado como primeiro
ministro, consolidando um golpe histórico para o país, já que retirou do poder a elite
política que se mantinha no alto escalão do governo desde a fundação do estado, o que
significou a possibilidade de direcionar as ações domésticas de uma outra maneira.
Vários dos componentes do grupo Ahali ocuparam cargos em ministérios cujo
escopo fosse social ou econômico. Pela primeira vez, estavam no poder reformistas liberais
e esquerdistas. A base de apoio migrou da aliança entre políticos sunitas e proprietários de
terras rurais para uma ampla constituição entre as classes médias e inferiores. Não havia, no
novo governo, qualquer defensor do pan-arabismo, e o número de sunitas com cargos
relevantes era pequeno67.
Na política externa, viu-se uma alteração significativa: o país realizou acordos com
o Irã (como o que estabeleceu novas fronteiras entre as partes, baseada no aumento da
jurisdição iraniana dos limites do Shatt-al-Arab, ao sul), Turquia e Afeganistão (compondo
um bloco de países que, juntamente com o próprio Irã, buscou frear a influência soviética
na região). Contudo, a opinião pública veria de maneira negativa essa ampliação de
parceiros nas relações internacionais. A elite sunita árabe entendia que os laços com o
mundo árabes estavam sendo preteridos; os acordos com o Irã significariam a traição dos
árabes do Khuzistão (província iraniana de maioria árabe). O governo, por sua vez,
assinalava que essa reorientação de política externa era a expressão da política “Iraque em
Primeiro Lugar”, o que significava que a ênfase dos governantes se daria no sentido de
viabilizar uma identidade nacional livre da hegemonia nacionalista árabe sunita. No campo
doméstico, reformas no sistema educacional, a distribuição de terras do Estado, a anulação
de leis contra os camponeses, o encorajamento de uniões comerciais e o desenvolvimento
da cultura entre as massas pareceu indicar, a princípio, a força dos reformistas, que
pareciam vitoriosos em atacar o vigente sistema de privilégios das elites68.
Entretanto, cada vez era mais evidente que a única similaridade entre Sidqi e os
reformistas era o desejo de destronar o governo anterior. Como chefe das forças armadas,
passou a exigir cada vez mais por investimentos no exército, e o não atendimento de suas
demandas passou a incomodá-lo. Enquanto isso, as ações reformistas também acabavam
67 Idem, pp. 47.68 MARR, pp. 47-48; TRIPP, pp. 89-92.
31
por irritar as tribos, que perdiam o seu predomínio regional. O estopim para o fracasso do
reformismo veio quando tribos que apoiavam o antigo regime se rebelaram, e Sidqi e
Sulaiman optaram por contê-los pela força, sem consultar o parlamento, o que causou a
demissão dos ministros reformistas. Sulaiman dissolveu o parlamento, disposto a promover
a subida de elementos mais conservadores ao alto escalão. Este fato acabou por afastar
definitivamente a esquerda do poder até a década de 50; ainda sim, o regime não foi salvo,
graças à influência de membros do antigo regime sobre o exército e a falta de carisma de
Sidqi, que foi emboscado e morto, forçando a renúncia de Sulaiman69.
A partir de então, o poder passou a gravitar nas mãos dos conservadores e dos
nacionalistas. Entre 1937 e 1941, sete parlamentos foram colocados no poder, em geral
devido às ações do exército, que se tornou o principal elemento dentro do Iraque70. Nesse
momento, três conjunturas permearam a política iraquiana: um foi o restabelecimento dos
políticos do establishment, que continuaram com suas lutas pelo poder e a negar as pressões
sociais e a ameaçadora situação internacional que se espreitava; outro foi a re-emergência
da questão palestina, que fez ressurgir e se intensificar os sentimentos antibritânicos e pan-
arabistas, principalmente entre a intelectualidade, os oficiais e os estudantes. A terceira foi
a contínua erosão do sistema constitucional, causada principalmente pela constante
intervenção do exército na vida política do país71. Símbolo desse período foi também a
militarização do sistema educacional, graças à introdução, por parte dos políticos, de
noções como disciplina e obediência, com o objetivo de criar uma sociedade submissa em
nome de um certo nacionalismo árabe. Contudo, a contradição desse sistema de ensino com
a realidade (assentada nos privilégios econômicos, nas hierarquias e nas diversas formas de
discriminação) fariam com que o projeto conservador não vingasse completamente72.
Os eventos políticos do período supracitado também se dariam em termos das
articulações de Nuri al-Said, que buscava se aproximar dos britânicos e punir os
revolucionários depostos. A morte do rei Ghazi em um acidente de carro foi um alívio tanto
para Nuri como para os britânicos. As declarações do monarca advogando a absorção do
Kuwait pelo Iraque, condenando o aumento da influência britânica no Golfo e o sionismo
na Palestina haviam estremecido as relações com a Inglaterra. Nuri, que sempre defendera a
69 MARR, pp. 48.70 FAROUK-SLUGLETT, pp. 20.71 MARR, pp. 49.72 TRIPP, pp. 95.
32
aliança com os britânicos, procuraria uma nova reaproximação. O filho de Ghazi, de apenas
quatro anos, foi tutelado por um regente, Abd-al-Ilah, primo de Ghazi e notoriamente pró-
britânico, o que satisfez Nuri.
Todavia, a crise na Palestina, em que a população local se revoltara contra o
domínio inglês, tornou a posição de al-Said insustentável. Os jovens oficiais, que haviam
conquistado posições políticas relevantes graças ao primeiro-ministro, recearam que a sua
saída significasse a perda de seus próprios privilégios, e então o impediram de resignar-se.
A emergência da guerra e a intensificação dos sentimentos altamente hostis à Inglaterra,
especialmente por parte dos oficiais, criou uma conjuntura altamente polarizada. De um
lado, ficara Nuri, agora como ministro das relações exteriores, e o regente, ambos crentes
na vitória dos aliados, fazendo-os sugerir o apoio iraquiano aos britânicos. De outro lado,
Rashid Ali, o primeiro-ministro, e os oficiais, que entendiam que o país deveria ficar neutro
barganhar politicamente com a Inglaterra. A conjuntura interna propiciou a vitória do
segundo grupo, mas as negociações com a Alemanha foram decepcionantes. Os britânicos
irritaram-se, e exigiram o apoio iraquiano aos aliados, o que desencadeou uma série de
eventos, que culminaram no golpe de Rashid Ali, amparado pelos oficiais73.
O novo governo era composto inteiramente pelo partido nacionalista, e o regente foi
oficialmente deposto, tendo sido colocado em seu lugar um parente distante. Em Abril de
1941, logo após o golpe, entretanto, os britânicos demandaram, baseados no acordo de
1930, que suas tropas se instalassem no país. O nacionalismo árabe extremado dos oficiais
fez com que exigissem que os ingleses retirassem imediatamente suas forças do território
iraquiano, o que foi entendido como um ato de guerra, e resultou no ataque britânico ao
exército iraquiano. Logo, estes sucumbiram, e o governo não foi capaz de se preparar para
situações de emergência, já que a Alemanha de Hitler preparava um ataque à União
Soviética e não dispunha de efetivo para ajudar os iraquianos. Com isso, os ingleses
dominaram o território e um governo emergencial foi formado para assinar um armistício.
Nesse momento, setores da população, numa exemplificação do sentimento altamente anti-
sionista, atacaram os Judeus e seus negócios em Bagdá, num evento que resultou na morte
de mais de 200 pessoas e fez com que a relação entre essa etnia e os iraquianos em geral,
antes minimamente amistosa, fosse a partir de então tensa74. Em Junho, os políticos do
73 MARR, pp. 52-54.74 TRIPP, pp. 106.
33
antigo establishment retornaram e formaram um governo composto inteiramente por
membros pró-britânicos. Mais uma vez, uma revolta com o objetivo de encerrar a
influência britânica no país (ainda que desta vez com a presença peculiar de outro elemento
ocidental, a barganha com o nazismo, para fazer frente àquela potência estrangeira) acabou
com a vitória dos ingleses75.
No lado positivo, a vitória significou alguns anos de alguma estabilidade para o
regime, o que, com relativa intensidade, propiciou o estabelecimento de fundações mais
sólidas para o país. O sistema constitucional foi restabelecido, assim como as relações com
as potências européias. Negativamente, o elemento autoritário, assim como em todo o resto
da história iraquiana, também se faria presente nesse momento, desta vez por meio das
condenações à morte daqueles que lideraram a resistência iraquiana de 1941. Além disso, a
segunda ocupação britânica revelou a fraqueza da monarquia, que provavelmente teria
caído caso os eventos se desenrolassem sem interferência exógena, dada a preponderância
dos oficiais dentro da realidade iraquiana naquele momento e seu intento de livrarem o país
de tudo o que fizesse lembrar a influência estrangeira76.
Com o restabelecimento das elites dirigentes, Nuri formou o novo gabinete. Cada
vez mais ficava evidente a dependência do regime para com os britânicos, assim como era
clara a alienação da classe média do processo político. O núcleo de poder parecia mais
restrito do que antes. Nuri, que se tornaria uma figura central dentro do país até 1958,
procurou, primeiramente, reduzir o tamanho e a influência do exército. Procurou-se excluir
os oficiais que tivessem sido treinados aos moldes otomanos, substituindo-os
temporariamente por britânicos. Na educação, foi entendido que o sentimento pró-nazista
que havia se estabelecido no país era fruto do nacionalismo extremo que era ministrado nas
escolas (tanto civis como militares), e um novo currículo foi preparado. Houve um processo
de centralização no governo, traduzida por meio da emenda constitucional que permitia ao
rei demitir o primeiro-ministro caso julgasse necessário77.
Todas essas medidas enfraqueceram os nacionalistas árabes e, com isso, elementos
liberais, que haviam apoiado o grupo Ahali, começaram a penetrar no governo. Nesse
período de estabilidade, vários esquerdistas (inclusive marxistas) passaram a ocupar altos
75 MARR, pp. 54-55.76 Idem, pp. 56.77 MARR, pp. 58.
34
cargos na educação. Jornais comunistas passaram a ser distribuídos livremente, o que deu a
oportunidade para o partido e outros movimentos de esquerda, então totalmente alijados do
contato social e do poder (desde 1937), chegassem às escolas e aos trabalhadores, que
passaram a serem cada vez mais relevantes socialmente, conforme a sociedade e a
economia se modernizavam. Logo, a intelligentsia adotaria os ideais comunistas, apesar das
perseguições que se avizinharia78. Digno de nota nesse período foi a crescente oposição
entre Nuri al-Said e Abd-al-Ilah, o regente, que passaram a disputar a capacidade de decidir
pelo país num conflito cada vez mais pessoal e menos político, e que duraria mesmo após a
maioridade de Faisal II, o futuro rei do Iraque79.
Na economia, os cinco últimos anos desse período, por influência da guerra e das
péssimas condições internas, o quadro foi cada vez pior. O ingresso de forças britânicas no
país (com poder de compra substancialmente maior do que a população iraquiana),
associada a falta de produtos em geral fez com que o preço das mercadorias aumentassem
drasticamente. Esse aumento substancial dos preços num período tão curto fez com que a
distância entre ricos e pobres aumentasse enormemente. Como conseqüência, laços antigos
entre famílias e comunidades foram quebrados. As conexões entre o poder político e a
riqueza, que propiciavam a exploração do resto da população e o aumento dos lucros, fez
com que a legitimidade do regime fosse questionada. A classe média de funcionários civis,
membros do exército e professores, que ganhava salários fixos, viu sua condição piorar
substantivamente. Os mais pobres atingiam níveis de penúria poucas vezes observados na
história do país, o que levou a uma série de greves e manifestações no final do período de
guerra80. No próximo período, emergiriam uma série de partidos políticos que
conseguiriam, cada vez mais, mobilizar a população, e fazer com que, paulatinamente, o
regime se tornasse mais frágil. Mais do que nunca, eventos e ideologias externas iriam
marcar a realidade doméstica, enquanto que o petróleo possibilitaria alguns surtos de
desenvolvimento. Contudo, o isolamento do país acabou por viabilizar o projeto
revolucionário dos oficiais e dos esquerdistas, como será visto a seguir,
6. Os Últimos Anos da Monarquia (1946-1958)
78 Idem, ibidem.79 TRIPP, pp. 111-112.80 FAROUK-SLUGLETT, pp. 38; MARR, pp. 59; TRIPP, pp. 111-112.
35
Os políticos do establishment, apoiados pelos xeiques, pelos novos ricos das zonas
urbanas e pelas camadas superiores do exército, pareciam sólidos no poder. A pobreza
generalizada e a emergência de novos grupos sociais, como os trabalhadores e os partidos
políticos, trouxeram uma crescente e fundamentada oposição ao regime, que demandava, de
um lado, uma rápida mudança social, uma sociedade mais igualitária e maiores liberdades
individuais, e de outro, um movimento mais rápido em nome da unidade árabe e uma maior
independência perante o oeste. Apesar de o sentimento antibritânico ser o único traço em
comum entre essas correntes, pouco fez o velho regime para contra-atacar essas idéias.
Seus programas de desenvolvimento, em vez de resolver os problemas, só os visava evitá-
los81.
Os novos partidos políticos, atores fundamentais desse novo momento histórico
iraquiano, passaram a politizar os novos grupos sócio-econômicos, como a classe média
educada e a nova classe trabalhadora, utilizando-se da imprensa, do rádio e do sistema
educacional, estruturas que se disseminavam e, aos poucos, estavam ao alcance de boa
parte da população82.
Um dos grupos que surgiu nesse período foi o Partido Socialista Árabe Baath,
originalmente formado na Síria logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Em 1949,
foi introduzido no Iraque por jovens sírios que estudavam em Bagdá. Seu programa
combinava linhas de pensamento político que dominaram a intelligentsia desde os anos 30:
o pan-arabismo e a mudança social radical. Desde o início, adotara a tática comunista de se
organizarem em células, o que logo fez com que se tornasse um dos partidos mais bem
organizados e disciplinados do Oriente Médio. Liderado, no início dos anos 50, por Fuad-
al-Rikabi, um xiita do sul, o Baath, nesse período, era um partido não sectário, que tinha
apelo tanto para os árabes xiitas como os sunitas. Paulatinamente, começou a penetrar em
escolas e faculdades, de onde extraiu muito de sua liderança e apoio. Vários dos jovens que
ingressavam no grupo eram xiitas do sul, atraídos justamente pelo caráter aberto e
modernizante do partido, que favorecia as idéias mais radicais e socialistas do período.
Como se verá posteriormente, a adesão após 1958 aumentará bastante, e contatos com
oficiais do exército começariam a ser feitos. Estes eram sunitas de cidades provinciais do
81 MARR, pp. 61.82 Idem, pp 62.
36
norte e oeste de Bagdá, e seus interesses eram pragmáticos, por vezes auto-contemplatórios.
Logo tentativas de golpe seriam executadas, e as conseqüências seriam bastante
controversas83.
Para ganhar o apoio da população, o regente viabilizou uma fórmula que consistia
no aumento da liberdade de expressão e na modificação do tratado com a Inglaterra. Em
fins de 1945, concedeu permissão para os partidos políticos, uma nova lei eleitoral, medidas
para melhorar a seguridade social e o desemprego e alguma distribuição de renda. Cinco
partidos surgiram, e dois deles, o Istiqlal (Independência) e o Partido Democrático
Nacional, moldaram a mentalidade da classe média, capturando a atenção dos jovens
iraquianos e tendo um papel relevante até o período pós-58. Nesse momento, ampliavam-se
as tensões entre Nuri al-Said e Abd-al-Ilah, o regente84. Cada um procurava direcionar as
decisões políticas de acordo com a sua própria concepção, e rápidas inflexões
programáticas davam a noção de que o país não tinha um rumo definido.
O Istiqlal era antibritânico e pan-arabista. Reclamava a independência de
Muhammara (hoje Khuzistão) e a causa palestina. Era contrário ao desenvolvimento de
uma identidade iraquiana em separado. Tinha como fraqueza a falta de um programa social.
Ganhou o apoio da população árabe sunita, embora seu líder fosse xiita. Não havia curdos
no partido. O Partido Democrático Nacional era um desenvolvimento do antigo movimento
Ahali, enfraquecido desde os eventos de 1937. Basicamente, retomavam o discurso de
outrora, em que predominava um apelo pelas liberdades políticas, por uma reforma agrária,
pela abolição dos monopólios e por uma distribuição mais igualitária de renda por meio de
impostos progressivos, atualizando-o à conjuntura iraquiana daquele momento. O novo
partido dava, assim, grande ênfase na política doméstica. Sua falta de interesse no pan-
arabismo, ideologia tão ligada aos sunitas, atraiu as minorias, assim como aos xiitas e aos
elementos liberais e de esquerda em geral da classe média educada85.
Ambos os partidos eram contrários à aliança com o ocidente. Enquanto atingiam
totalmente a classe média, seu impacto nas camadas populares era mínimo. Nenhum era
disseminado ou organizado de maneira coesa. Apesar de seus defeitos, dominava a
83 MARR, pp. 77 e 115.84 Idem, pp 62.85 MARR, pp. 63.
37
oposição política, e contribuíram para criar um crescente clima de hostilidade ao governo e
ao seu laço externo.
O Partido Comunista, embora não constasse dentre os partidos licenciados, era
certamente o mais bem organizado em 1946. Originado na década de 30, era composto por
jornalistas, professores e advogados. Quase metade dos seus membros era de judeus,
cristãos ou xiitas, o que indicava a sua aceitação perante minorias e grupos despojados do
poder. A base do apoio do partido se dava, em parte, pela intelligentsia (estudantes,
burocratas, professores) da classe média-baixa, além de trabalhadores, especialmente os dos
setores petrolífero, portuário e ferroviário. Suas fraquezas principais em termos de apelo
social eram a pouca influência entre os camponeses e a ausência de preocupação com o
nacionalismo árabe, incluindo a causa palestina86.
Logo a contraditoriedade do regime no início do pós-guerra ficaria expressa. O
aumento da influência dos comunistas, especialmente sobre os trabalhadores da Companhia
de Petróleo Iraquiana em Kirkuk, fez com que estes demandassem um sindicato para
representar os seus interesses. A negação por parte da empresa levou a seguidas
manifestações e protestos nas ruas. O governo, até então com um razoável componente
liberal e tolerante, massacrou os trabalhadores, causando nove mortes. O gabinete seria
desmantelado, e uma gama de políticos mais conservadores e do meio rural passou a ocupar
os ministérios. Salih Jabr, o primeiro-ministro eleito, foi o primeiro xiita a chegar a tal
cargo na história do país, o que representou um passo adiante na integração dessa etnia no
cenário político do país. Contudo, revelou-se ainda menos liberal do que seus predecessores
ao banir os dois partidos de esquerda de então87.
O próximo evento que marcaria a vida iraquiana seria a renovação do acordo feito
com a Inglaterra em 1930. Historicamente, uma das maiores demandas de boa parte da
opinião pública era o cancelamento do tratado e o fim da dependência do Iraque aos
britânicos. O regente passou a concentrar-se em renegociar o tratado de maneira a silenciar
a oposição, mas o fato é que, para esta, não havia nada a ser negociado. Em 1947,
iniciaram-se as discussões em Bagdá, sem a participação da oposição, que passou a
protestar veementemente por sua participação e pela criação de um debate público sobre o
tema, objetivando criar um clima que inviabilizasse sua assinatura. Contudo, a delegação
86 TRIPP, pp. 91; MARR, pp. 63.87 FAROUK-SLUGLETT, pp. 39; MARR, pp. 64.
38
iraquiana ignorou essas exigências, e partiu para a Inglaterra para continuar as negociações,
que se encerraram no início de 1948 por meio do tratado de Portsmouth. Ele foi uma
melhoria perante o que havia sido acordado 18 anos antes, já que agora havia ficado
acertado que as tropas inglesas sairiam do território iraquiano, a soberania iraquiana sobre
as bases seria efetivada, mas ainda sim o país estava atado aos britânicos em termos de
suprimentos e treinamento militar, e a concessão de bases aos britânicos em caso de guerra
impedia qualquer possibilidade de neutralidade. O tratado teria sua duração estendida até
197388.
Contudo, a recepção da população ao tratado foi a mais hostil possível. A crise,
conhecida como Wathba (rebelião), integraria praticamente todos os elementos articulados
do país, como estudantes, professores, o parlamento e as camadas inferiores, que se
voltaram contrariamente ao documento, e propiciaram uma atmosfera de guerra civil em
Bagdá. O que era novo nisso era o tamanho, a extensão e o descontentamento expressos nas
manifestações, demonstrado o papel cada vez maior das ruas na dinâmica política, e o
quanto a oposição estava conquistando a população urbana. Ao final daquele mês, um
confronto sem precedentes na história recente do país entre os manifestantes e a polícia
resultou em pelo menos 77 mortes, o que estarreceu o regente, e fê-lo proclamar que o
acordo não atendia às aspirações do país. Após a chegada do primeiro-ministro, outra
gigantesca manifestação ocorreu, forçando-o a renunciar. Com isso, a oposição havia
alcançado seu objetivo de cancelar o tratado e causar a derrocada do gabinete89.
A wathba demonstrou o ressentimento da direita e da esquerda perante o regime e
sua ligação com o estrangeiro. Embora tenha silenciosamente chocado os britânicos, do
ponto de vista jurídico, o cancelamento do tratado pouco fez diferença para eles, já que
passou a prevalecer, então, o documento assinado em 1930. A revolta deu à oposição
argumentos para desafiar o establishment de maneira mais agressiva, e outras revoltas,
ainda que com menor repercussão, sacudiram as ruas da capital iraquiana. A “grande
marcha”, passeata de trabalhadores em meados de 1948 que demandavam aumento de
salários e melhores condições de trabalho, seria o exemplo mais claro de como a monarquia
e o regime como um todo cada vez mais se tornavam insustentáveis. A prática política da
época se tornara tão ambígua quanto ineficaz: as crises faziam com que Nuri e seus colegas
88 MARR, pp. 64-65.89 FAROUK-SLUGLETT, pp. 40; MARR, pp. 64-65.
39
(os únicos fortes o bastante para proteger o trono) fossem chamados. Com isso, a oposição
entrava em erupção, o que fazia com que o regente nomeasse alguém mais moderado para o
cargo de primeiro ministro, com o propósito de apaziguar a oposição. Isso dava a
oportunidade a ela de demandar mudanças mais drásticas na política doméstica e externa, o
que resultava na deterioração da situação, levando à re-convocação de Nuri, num círculo
vicioso que gerava manifestações cada vez maiores nas ruas e repressões cada vez mais
brutais por parte da polícia90.
Esse maneira de lidar com os momentos de instabilidade seria posta em prática,
mais uma vez, devido a mais uma crise externa: a guerra na Palestina. A independência de
Israel, referendada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1947, levou a uma
abrupta guerra com os árabes palestinos. O evento logo atraiu a atenção dos iraquianos, e o
latente sentimento anti-sionista dentre a população fez com que quase toda a sua totalidade,
incluindo xiitas e sunitas, ricos e pobres, religiosos e seculares, se unissem para manifestar
o apoio à insurgência árabe. Tropas iraquianas foram enviadas, e passaram a lutar
conjuntamente com as legiões da Jordânia. Uma vitória rápida era esperada, mas a falta de
comunicação entre as tropas impediu o seu avanço, e um cessar-fogo imposto pelas Nações
Unidas deu vantagem para as forças israelenses. No recomeço dos conflitos, os israelenses
foram mais bem sucedidos, e conquistaram a vitória. Inicialmente, os Estados Unidos e os
ingleses foram escolhidos como os culpados pela derrota, mas em seguida a tese dominante
entre a população foi a de que as condições tenebrosas do ponto de vista econômico, social
e político do Iraque é que causaram a derrota. Tal consideração, que levou à conclusão de
que uma maior unidade árabe poderia significar a redenção iraquiana, criou o momentum
para o aumento da força do pan-arabismo na cena política91.
O resultado da vitória israelense na Palestina repercutiu, no domínio doméstico
iraquiano, em hostilidades sem precedentes para com os judeus. A partir de um certo
momento, em que as agressões passaram a significar dezenas de mortes e a destruição dos
negócios judeus em Bagdá, o governo autorizou a saída daqueles que assim o desejassem.
Para a sua surpresa, praticamente a totalidade da comunidade judia (cerca de 100 mil
pessoas) abandonou o país, em 1951, o que deixou um vácuo na esfera comercial iraquiana.
Isso abriu a oportunidade para xiitas e cristãos, que usaram esse novo espaço como um
90 Idem, pp. 40-41; ibidem, pp. 66.91 MARR, pp. 66-67.
40
canal de mobilidade. A nova geração dos xiitas engajou-se na medicina, no direito e nas
finanças, e alguns daqueles que descendiam de tribos proprietárias de terras utilizaram o
capital adquirido para se tornarem empresários, fazendo emergir uma nova classe média
xiita92.
Na esfera econômica e social, a década de 50 foi um período de consideráveis
mudanças. O aumento das receitas petrolíferas, dada a descoberta de campos de exploração
enormes, como o de Zubair e Rumaila, fizeram com que, pela primeira vez, o país
alcançasse superávits comerciais. Logo, o Iraque se tornou um país rentista, que dependia
cada vez mais dos royalties obtidos da exploração do petróleo, e não exatamente de uma
produção industrial que significasse o motor do desenvolvimento. Contudo, a importância
crescente desse novo elemento deu a Nuri a oportunidade de implantar um programa de
desenvolvimento de longo prazo que, embora não tenha atendido a maioria de seus
objetivos (tanto pela falta de investimentos em questões estruturais, como educação e
ensino, como pela derrocada do regime no final da década e a conseqüente alteração na
destinação dos recursos), foi importante para dar início a algumas transformações que
atingiriam seu auge no regime do partido Baath, a partir de 196893.
A primeira prioridade foi a agricultura, com projetos que visavam controlar as
enchentes do rio Eufrates e diques em seus afluentes em todas as regiões do país. A
segunda se deu em termos de investimentos estruturais no setor das comunicações e do
transporte. Estradas, ferrovias, portos, aeroportos, usinas de força, refinarias e pequenas
indústrias foram construídos. A grande destinação de recursos para essas áreas impediu,
naquele momento, investimentos em setores mais sociais, como saúde e educação94.
Os resultados do programa foram positivos, já que a área de cultivo e a produção
aumentaram consideravelmente. Contudo, a maior parte do crescimento de seu no setor
privado, devido a investimentos individuais em estruturas de produção, e não exatamente
devido ao programa. Além disso, pouco foi feito para modernizar as práticas de agricultura
existentes, que eram extremamente rudimentares e resultavam em baixíssima
produtividade. Apesar dos problemas, Nuri havia conseguido um trunfo provisório; cada
vez mais o seu poder pessoal fazia a diferença (dentre os 20 gabinetes que seriam formados
92 Idem, pp. 67; TRIPP, pp. 123-126.93 MARR, pp. 67-68.94 MARR, pp. 69.
41
naquela década, ele estaria presente em pelo menos 14). Contudo, a fraqueza do regime,
que titubeava de lado a lado, mas não expandia sua base de apoio, faria com que a queda
seria vertiginosa a partir de meados dos anos 5095.
Havia pouco desenvolvimento industrial para empregar a população rural que
migrava para as cidades. Praticamente todos os trabalhadores que exerciam sua profissão
em indústrias que não a de petróleo faziam-na em estruturas primárias e de pequeno porte, e
por meio de serviços manuais. Quase nada foi feito em termos de projetos de curto prazo
que elevariam o padrão de vida, em especial das novas camadas urbanas, que observavam o
avanço cada vez mais pujante da indústria do petróleo, bem como seus lucros exultantes.
Cerca de 90 por cento da população era analfabeta, enquanto que o número de graduados
no ensino superior era pouco superior a mil por ano. Apesar de alguns avanços nos serviços
de saúde, as epidemias ainda eram disseminadas. A maioria das cidades não tinha
eletricidade, e nenhuma contava com serviço de saneamento básico. Essa conjuntura de
altos lucros para uma fatia diminuta da população e a penúria para a restante seria a
conjuntura marcante dos últimos anos da monarquia, apesar de suas tímidas tentativas de
mudar a situação96.
A subida de Musaddiq no Irã e a conseqüente nacionalização do petróleo em 1951
inspirou demandas dos partidos de esquerda, especialmente o comunista, para que o mesmo
fosse feito em território iraquiano. Em 1952, um grupo de jovens oficiais conseguiu
derrubar a monarquia egípcia, o que acendeu a chama antiocidental no Iraque (dados os
duros discursos de Nasser) e fez crer na população a possibilidade de que seria possível
acabar com o regime altamente dependente da Inglaterra. Uma greve de estivadores foi
seguida de uma greve estudantil, e várias manifestações e insurgências passaram a ocorrer
freqüentemente em outras cidades iraquianas. A escolha de um governo militar pela
monarquia resultou no banimento de todos os partidos políticos, da declaração de um toque
de recolher e na prisão de agitadores e políticos. Cada vez mais, o elemento autoritário era
o único componente capaz de manter a ordem no país. Com isso, os jovens (dentre eles,
Saddam Hussein), passaram a crer que só atividades clandestinas mais rudes poderiam
fazer com que a monarquia caísse97.
95 FAROUK-SLUGLETT, pp. 42.96 MARR, pp. 70.97 MARR, pp. 71.
42
Em 1953, Faisal II atinge a maioridade e se torna rei do Iraque. Sua educação
ocidentalizada e suas idéias democráticas poderiam fazê-lo identificar as novas classes
ocidentalizadas que emergiam nas cidades. Contudo, sua falta de experiência e sua
distância para com a opinião pública impediram que a monarquia desse uma guinada
substancial para atender as demandas populares e, assim, se manter. Além disso, o regente
Abd al-Ilah, que controlava Faisal II com força, não parecia disposto a delegar os poderes
reais ao rei. Pelo contrário, ele pretendia isolar Nuri e continuar com suas próprias políticas,
dissolvendo o parlamento e convocando uma nova eleição98.
As eleições de 1954 foram as mais livres da história do país, produzindo o
parlamento mais representativo já eleito até então. A princípio, tinha-se a noção de que
reformas ocorreriam; entretanto, o tratado Anglo-Iraquiano de 1930 voltou a ser o tema da
vez. Como o tratado expiraria em 1957, precisaria ser renegociado. Para que não
houvessem grandes manifestações e o acordo pudesse ser revisto com calma, os políticos
entenderam, mais uma vez, que somente Nuri era capaz de governar o país. Ele, contudo,
exigiu a dissolução do parlamento, a pretexto de criar condições de governabilidade, o que
demoliu as chances de um reformismo99. Em seguida, Nuri suprimiu todas as atividades
políticas, especialmente as esquerdistas, numa prática que denominou como uma luta
contra o comunismo (numa aparente tentativa de ganhar um apoio britânico que
viabilizasse um acordo favorável aos iraquianos). Além disso, cortou relações diplomáticas
com a União Soviética. Nos próximos quatro anos, a atividade política fora totalmente
suprimida, e o governo passou a se assentar totalmente no exército e na polícia. Na mesma
medida, forças clandestinas surgiriam para combater, de maneira definitiva, o regime
monarquista100.
O tratado com a Inglaterra começou a ser renegociado. A fraqueza do regime
internacionalmente fez com que os políticos optassem pela realização de acordos bilaterais
com países como Turquia, Irã e Paquistão, numa tentativa de armar uma defesa coletiva
contra os britânicos. Enquanto isso, o Egito de Nasser buscava afastar-se dos ocidentais,
propagando discursos altamente pan-arabistas. Contudo, Nuri acabou realizando a primeira
opção, que teve a contrapartida da mediação norte-americana. Isso irritou profundamente
98 TRIPP, pp. 133.99 Idem, pp. 134.100 FAROUK-SLUGLETT, pp. 44; MARR, pp. 73; TRIPP, pp. 137.
43
Nasser, que queria formar uma confederação árabe, e as relações com os egípcios ficaram
estremecidas. O tratado, que ficou conhecido como Pacto de Bagdá, foi efetivado em 1955,
e teve como pressuposto o controle iraquiano de duas bases que antes pertenciam aos
ingleses, em troca do direito britânico de passagem aérea no território iraquiano. Em caso
de ataque ao Iraque, forças do Reino Unido lhe forneceriam auxílio. Positivamente, esse
pacto fortaleceu a defesa interna do país e contribuiu para o desenvolvimento de sua infra-
estrutura. Além disso, o acordo com países como Turquia e Irã foi positivo no sentido de
apaziguar os ânimos de curdos e xiitas. Contudo, acabou por dividir o mundo árabe,
levando o Iraque a um contínuo isolamento perante seus vizinhos101.
Em 1956, Nasser nacionaliza o canal de Suez, e um contra-ataque conjunto de
França, Inglaterra e Israel criam um clima de caos no Iraque, com manifestações superiores
ao Wathba, em 1948. Oleodutos e outras facilidades foram destruídos, e ficou clara a
incompetência do governo em controlar a situação de maneira pacífica. A formação da
República Árabe Unida entre a Síria e o Egito (com o objetivo de evitar uma maior
penetração do comunismo no país) foi outro evento de relações internacionais que fez
piorar a situação iraquiana. O Iraque, ao aceitar a proposta de rei Hussein da Jordânia em
formar uma federação foi um dos últimos eventos governamentais controlados pela
monarquia102.
A oposição, desde 1953 (mesmo na ilegalidade), estava se organizando. O Istiqlal
passou a cooperar com o Partido Democrático Nacional. Em 1957 o Partido Comunista e o
Baath (renascimento) foram incluídos no que foi denominado Frente de União Nacional. Os
problemas com o exército eram um problema ainda pior para o regime. Em 1956, o
entrevero se iniciou após a descoberta de um plano para derrubar o regime. Apesar de os
líderes terem sido controlados, fontes da inteligência revelaram que novas conspirações
estavam sendo armadas em 1958. Novamente, devido a suas medidas repressivas, Nuri foi
acometido por um falso senso de segurança. Em maio de 1958 a guerra civil eclodiu no
Líbano. Com medo de que esse movimento se disseminasse, o rei da Jordânia solicitou
auxílio às tropas iraquianas, requisitando que fossem para as fronteiras entre os países. Esse
evento selou o destino da monarquia no Iraque, já que em vez de se dirigirem para a
101 MARR, pp. 74-75.102 MARR, pp. 76.
44
Jordânia, as tropas marcharam para Bagdá, executando um golpe rápido que acabou com a
dinastia hashemita e o regime de Nuri em 14 de Julho de 1958103.
O golpe levou ao fim um período de 48 anos, marcado pela presença da Grã-
Bretanha, dos Hashemitas, de ex-oficiais otomanos, além de proprietários de terra e shaiks
que haviam abraçado o status quo. O período seguinte seria de esperança por um
reformismo social e econômico rápido e eficiente. Contudo, como será visto
posteriormente, essas expectativas seriam frustradas, mais uma vez, por um excesso de
autoritarismo e por brigas ferrenhas pelo poder entre esquerdistas e pan-arabistas. O Baath,
partido que conseguiu amalgamar essas duas correntes ideológicas, sairia vitorioso, dez
anos depois, ainda que com muita violência. Ainda sim, as esperanças de transformação
seriam renovadas.
103 Idem, pp. 77-78.
45
CAPÍTULO 2 – O Período 1958-1968
Neste capítulo, buscaremos tratar, primeiramente, da formação ideológica do
partido Baath e de Saddam Hussein até 1958, identificando principais linhas ideológicas
defendidas até então. Em seguida, trataremos do período entre 1958 a 1968, década
marcada por grande instabilidade política. O objetivo será analisar, sucintamente, os
desenvolvimentos históricos do governo de Abd al-Karim Qasim (1958-1963), do curto
regime do Baath (02.63 a 11.63) e, finalmente, as presidências de Abd al-Salam Arif (1963-
1966) e de seu irmão, Abd al-Rahman Arif (1966-1968), que governa até o derradeiro golpe
do Baath e de setores militares em Julho de 1968.
1. O Surgimento do Partido Baath
O Partido Socialista Árabe Baath (“Renascimento”, em árabe), fundado nos anos
40, é produto da fusão, em momentos diferentes, de três grupos: os árabes (de segmento
Alawi, com interpretação radical do xiismo) de Alexandretta (hoje Iskenderun, distrito sírio
entregue para a Turquia com consentimento da França em 19391); jovens estudantes sírios,
notadamente Michel Aflaq e Salah al-Bitar, e o grupo tribal de Akran Hurani, estabelecido
em Hama, cidade Síria.
O Partido Nacionalista Árabe é fundado em 1940 pelos Alawis, inicialmente como
maneira de resistência contra a entrega daquele território para os turcos como parte de um
acordo para que estes se juntassem aos aliados no início da II Guerra Mundial2; décadas
mais tarde, o grupo dos oficiais Alawi dominaria o Baath sírio, resultando em fratura
definitiva com o Baath iraquiano. Aflaq e Bitar,que se aliaram aos Alawis em 1944, se
tornariam, paulatinamente, as figuras mais importantes do partido, especialmente nas
décadas de 40 e 50, tornando-se responsáveis pelo embasamento ideológico do mesmo. A
dupla estudara na Sorbonne em meados da década de 30, sendo influenciados por
pensadores e ideologias distintas, como Nietzche, Marx, Lênin, Hegel, o socialismo e o
fascismo. O grupo de Hurani, por sua vez, seria responsável por ampliar a penetração do
1 BATATU, Hanna. Old Social Classes and the Revolutionary Movements in Iraq, pp. 722.2 al-KHALIL, Samir (Kanan Makiya). Republic of Fear, pp. 186.
46
partido em setores tribais e do exército, o que seria de grande relevância para o Baath,
concentrado até o início dos anos 50 na classe média instruída e com pouca visibilidade
para a maioria da população.
Em 1947, partido organiza primeiro congresso e constituição, fortemente baseada
nos escritos de Aflaq, é aprovada. O partido adota o lema “Unidade, Liberdade e
Socialismo”. No final da década, com a crise na Palestina devido à criação do estado de
Israel, desenvolvem-se filiais do Baath sírio na Jordânia (1947), no Líbano (1949) e no
Iraque. No Iraque, grupo surge na Universidade de Bagdá em 1949, e é reconhecido
oficialmente como sendo parte do Baath em 19523. O grupo tem boa aceitação dentre o
grupo estudantil e durante a década as filiais se expandem, levando à formação do primeiro
Congresso Nacional do Baath em 1954; aí são estabelecidas regras organizacionais que se
tornariam, mais tarde, uma das marcas da penetração do regime baathista na vida de todos
os cidadãos a partir de 1968.
Reconhecendo a superioridade tática dos comunistas, baathistas adotam divisão
hierárquica do escopo de atuação de seus membros4, desde o nível mais baixo, a célula
(bairros), composta de três a sete pessoas; duas ou mais células formavam a seção
(cidades), e duas ou mais seções formavam uma sucursal (província); duas ou mais
sucursais formavam uma região (país), e acima desta estava a nação árabe (âmbito
nacional). Criavam-se, então, o Comando Regional e o Comando Nacional, que
deliberavam, respectivamente, sobre assuntos do partido no âmbito dos países e de toda a
região árabe. Outra divisão era significativa, a diferenciação em termos da filiação ao
partido: apoiador organizado, partidário de segundo grau, partidário de primeiro grau,
candidato, membro em treinamento (que passava por um período de seis meses para ser
admitido) e, finalmente, membro ativo, que possuía eleger líderes e ter responsabilidades
dentro do grupo5.
O partido sofria forte concorrência por parte de outras agremiações, principalmente
os comunistas, que eram bastante populares dentre a população no final da década de 50,
como veremos mais adiante. Sua ideologia complexa, conforme será brevemente
apresentado a seguir, também afastava boa parte dos iraquianos. Em 1955, por exemplo, o
3 BATATU, pp. 743.4 Idem, pp. 744-745.5 Makiya, pp. 224.
47
número de membros ativos não chegava a 300, conforme aponta Batatu6, embora
crescimento de partidários fosse notável naquele momento.
a) Ideologia
O contexto do surgimento do Baath é marcado, no âmbito iraquiano, pela
decadência momentânea do pan-arabismo como ideologia predominante, em especial
devido à queda do regime de Rashid Ali al-Gailani em 1941 após intervenção e ocupação
britânica, resultado em intensa perseguição de elementos nacionalistas naquela década, o
que permite que as alas mais reformistas e, inclusive, o comunismo, ascendam como forças
políticas mais preponderantes no Iraque naquela década. Contudo, no mundo árabe, a crise
da Palestina e a subida ao poder de Nasser no Egito em 1952 e seu subseqüente ideário pan-
arabista e reformador dão novo vigor a essa ideologia. Aliado a isso estão ainda, conforme
mencionado, as experiências intelectuais de Michel Aflaq e Salah al-Bitar na Europa dos
anos 30.
Buscando realizar síntese que congregue o pan-arabismo e o reformismo social,
com foco político mais voltado para dentro de cada país – conceitos até então fortemente
opostos no Iraque e no mundo árabe dos anos 30 –, o Baath, em sua constituição de 1947,
adota a união dialética entre “unidade, liberdade e socialismo” como expressão de sua
práxis revolucionária e seu ideal de construção de “um novo homem e uma nova sociedade
iraquianos”, conforme veremos a seguir.
A liberdade, para o Baath, significa liberdade perante o imperialismo e o sionismo,
contra forças externas que prejudiquem a soberania nacional7. Trata-se, então, da liberdade
da nação em controlar seus próprios assuntos. Mas enquanto Batatu afirma que há
preocupação teórica com liberdade em termos do indivíduo, com sua valorização dentro do
grupo e de seus direitos pessoais8, al-Khalil afirma que a soberania pessoal é vista como
egoísmo e como parte do sistema capitalista, e então a liberdade defendida pelo partido não
seria garantia para o indivíduo de que estaria salvo de imposições em seus pensamentos e
ações originados no Estado ou na sociedade9. Contudo, há de se salientar, como diversos
6 BATATU, pp. 743.7 Makiya, pp. 253.8 BATATU, pp. 734-735.9 MAKIYA, pp. 139; 253.
48
autores o fazem, de que os primeiros textos de fundamentação teórica do partido, em geral
escritos por Aflaq, são confusos, contraditórios e não sistematizados, enquanto o Baath dos
anos 50, especialmente o sírio, sofre influências do marxismo, enquanto declinava
influência de Aflaq, graças à grande penetração de novos elementos ao partido naquela
década10. De qualquer forma, Makiya afirma que, no Iraque, o Baathismo ortodoxo e Aflaq
mantiveram-se dominantes nesse período e depois, apesar da participação crescente do
método leninista de organização partidária, admirado pelo próprio ideólogo11.
A ligação da liberdade com o socialismo se dá em termos da rejeição da democracia
burguesa e da afirmação da democracia socialista, com o povo como fundamentação do
regime. O comunismo tem forte influência na conceituação da visão baathista do
socialismo, mas o partido procura atrelá-lo às especificidades da condição árabe, sendo
então a ignorância, a pobreza e a pobreza como empecilhos para a realização do fim
socialista.12 O Baath realiza forte crítica aos grupos dominantes, e propõe combate radical
contra eles, por crer que ideário nacionalista não mudará seu caráter opressor13. Mais
especificamente, acreditam no papel do Estado como o provedor de um mínimo para os
cidadãos; ficam explícitas determinações como a nacionalização dos recursos, serviços e
utilidades públicas, além da planificação econômica, controle estatal do comércio interno e
exterior, garantia da seguridade social, gratuidade dos serviços médicos e educacionais14. O
programa econômico, nesse sentido, se aproxima bastante daquele moldado pelo Partido
Comunista Iraquiano (PCI), mas ao contrário destes, o Baath valoriza a propriedade e a
herança como direitos naturais, dentro dos limites do interesse nacional (árabe), e então os
comunistas realizam contínuas críticas ao socialismo baathista como burguês. Isso geraria
tensões que se reproduziriam nas décadas de 50, 60 e 70, até a formação da coalizão entre
os grupos e posterior desmonte do PCI pelo Baath, como será visto mais adiante.
A união é expressa no pan-arabismo, com o fim dos regionalismos, vistos como
criação artificial, oriunda do imperialismo. A união entre os povos é inevitável, já que estes
possuem língua, história, identidade da experiência atual (i.e. sofrimento perante o
imperialismo), interdependência entre seus interesses de defesa e suas economias agrárias e
10 BATATU, pp. 730.11 MAKIYA, pp. 226-227.12 Idem, pp. 254.13 BATATU, pp. 737.14 Idem, pp. 738.
49
habitáts geográficos comuns15. Esse formato de pan-arabismo contrastava com a visão
comunista, que imaginava a união somente em termos federativos, o que geraria críticas do
Baath nos anos 50 e 60; gradualmente, porém, os baathistas adotariam essa perspectiva de
agregação entre os países, principalmente após a conquista definitiva do poder. A liberdade
se realiza nessa união, assim, quando todas as formas de identidade que não o nacionalismo
árabe forem repelidas, para que a massa se torne cada vez mais homogênea; nesse sentido,
interpreta Makiya que o momento de êxtase da liberdade é alcançado quando a mente for
completamente dissolvida no outro, criando, então, a massa humana perfeita, o auge da
auto-realização, ao mesmo tempo em que é símbolo do socialismo em termos da destruição
da separação entre os povos e as pessoas16.
Unidade, liberdade e socialismo são conceitos que se realizam, assim, somente
quando cada um está implicitamente presente no outro. Mas o partido evoca outros
princípios que também aparecem nessas conceituações e que marcam fortemente os seus
princípios, como um marcante grau de romantismo e, inclusive, de messianismo.
Continuamente, o partido fez esforços no sentido de extirpar excesso de
racionalidade na compreensão teórica de sua ideologia. Em termos da construção da
identidade árabe, o partido define que a qualidade do ser árabe não de dá em termos
étnicos, mas sim na crença da mensagem arabista17. Isso explicaria, então, o pouco esforço
em tratar especificamente das minorias, como os curdos (o que contribui, juntamente com a
mensagem pan-arabista, para o seu afastamento dos quadros do Baath). Mais tarde, aponta
Makiya, isso seria importante para compreender a maneira diferenciada com que o partido
trataria criminosos comuns de criminosos políticos18. A ditadura do proletariado e a
ditadura baathista se diferenciariam, dessa forma, no sentido de que, enquanto o primeiro
inclui inimigos do partido, o segundo os exclui, inclusive em termos de cidadania. O
socialismo não seria explicado unicamente em termos científicos, mas sim espirituais (o
que também geraria tensões com os comunistas); a nação possui alma ou espírito, que está
intimamente ligado com o Islã; então o nacionalismo é uma não-idéia e uma não-teoria,
existindo como amor antes de tudo; a nação é, primeiramente, extensão da família (o que
resgata o nacionalismo europeu do século XIX); então, conforme mencionado, não tem
15 BATATU, pp. 732.16 Makiya, pp. 256-257.17 MAKIYA, pp. 134.18 Idem, pp. 135.
50
base em raça ou sangue, mas no espírito. É impassível de escolha pelo árabe, ao mesmo
tempo em que se constitui como tendência humanitária e, assim, como vértice para a
liberdade19.
O meio de conquista dos objetivos do Baath, o golpe de estado (inqilab), ou
revolução, também é fenômeno espiritual, baseado na transformação dos valores árabes e
da maneira de pensar, que alteram todos os sentidos da vida. É aí em que partido exorta
uma série de valores e códigos morais para a formação de uma nova sociedade iraquiana,
como a coragem, o sacrifício, o heroísmo, o entusiasmo, a fé, a militância e o altruísmo; a
espontaneidade, o idealismo e o desapego como bens da nação20. O Baathismo se constitui,
então, como um constante sonho por mudanças, ao mesmo tempo em que crê que atitudes
erradas e elementos hostis surgem sempre de fora, ou quando pessoas se afastam de suas
comunidades.
O Baath se coloca como o único capaz de realizar a missão de concretizar a nação
árabe; o passado mesopotâmico, de grandes impérios (como os Acádios, os Babilônicos e
os Sumérios), é resgatado para mostrar tendência irresistível de grandeza do mundo árabe e
sua missão eterna de união; mais do que tudo, o Baath se coloca como um meio de vida,
que se estende a todos os aspectos daquela. Para isso, e entendendo que o partido é aquele
responsável pela direção dos interesses da massa, desenvolve-se organizacionalmente aos
moldes leninistas em que, conforme já visto, é criada rígida estrutura vertical e
diferenciação entre membros e apoiadores; nesse sentido, incorpora o centralismo
democrático como método de decisão e o princípio da vanguarda, formada por aqueles
capazes de se dedicarem inteiramente à causa revolucionária21. Ainda dentro do forte
caráter messiânico, o partido acredita que sua existência é indicativo da revolução em
andamento; a distância do Baath implica na distância da nação, e o caminho do Baath é o
caminho da nação – com isso, nenhum outro partido pode tomar seu lugar22. O Estado
Baathista é um meio, um instrumento para a chegada da nova sociedade e do novo
indivíduo iraquiano, ambos imbuídos de valores, conceitos e condutas revolucionários23,
19 BATATU, pp. 733-734.20 Idem, pp. 738-741.21 Ibidem, pp. 739.22 Ibidem, pp. 740.23 MAKIYA, pp. 137-145. O autor ainda comenta, em razão do forte apelo do partido à crença como definidor da identidade árabe e, portanto, da participação na sociedade e no partido, que há grande similitude de raciocínio com o nazismo; contudo, este buscaria raça pura, e não a crença.
51
enquanto o partido é o educador e o mobilizador das massas para o aproveitamento das
estruturas do Estado para o fim determinado.
Alguns dos temas principais, como o formato do socialismo e o sistema político
ideal, com somente um partido no poder, só seriam oficialmente integrados à doutrina do
partido no Sexto Congresso Pan-Arabista, de 1963 (mesmo ano em que tanto o Baath sírio
como o iraquiano chegam ao poder)24, mas mesmo na década de 50 estavam na pauta das
discussões dos congressos regionais do partido. Dentro das lutas partidárias que se
seguiriam, houve esforço contínuo de diferenciação perante os comunistas, e o pan-
arabismo extremado, em oposição à tese federalista do PCI, é um dos trunfos ideológicos
mais significativos. O anti-sionismo, também ausente nas formulações dos comunistas, e
visto pelo Baath como extensão mais significativa do imperialismo ocidental no Oriente
Médio, é outra das características que eram continuamente reforçadas não só para explicar a
rejeição às fronteiras iraquianas, mas também para distanciar o Baath do PCI,
razoavelmente próximos no debate econômico do país nos anos 50.
No fim daquela década, participaria de manifestos anti-monarquia, e ganharia
alguma popularidade após a crise de Suez, em 1956. A maioria de seus componentes era
ainda de jovens universitários, e a liderança contava com vários xiitas. A ideologia do
partido não havia afastado a parcela dos xiitas que migrava em números cada vez maiores
para as grandes cidades em razão da crescente diferença de desenvolvimento entre os
setores rural e urbano, e que se tornavam cada vez mais secularizados. Para os xiitas mais
conservadores, a clara divisão entre religião e política feita pelo Baath e a noção implícita
de que o Islã era um impedimento à política causavam repulsão, mas o “ateísmo” dos
comunistas era um problema muito maior naquele momento.
b) Saddam Hussein, Infância e Juventude
Uma breve descrição desse período da vida de Saddam Hussein, que se tornaria a
figura central do Baath a partir de meados dos anos 70 e um dos personagens de maior
influência no Oriente Médio último quartel do século XX é relevante tanto para a
24 BARAM, Amatzia. Culture, History and Ideology in the Formation of Ba’thist Iraq (1968-89), pp. 10.
52
observação da sociedade iraquiana dos anos 40 e 50 como para compreender algumas de
suas atitudes quando no poder.
Saddam Hussein nasceu no vilarejo de Al Awja, próximo de Tikrit, cidade
historicamente conhecida por ser a de origem de Saladin e bastante empobrecida nos anos
40; o solo da região era pouco produtivo, então pouco atraente para empreendedores
privados. A data de nascimento é controversa: oficialmente nascera em 28 de Abril de 1937
(mais tarde, transformaria-a em feriado nacional, como parte do projeto de culto de sua
personalidade), mas há informações sobre nascimento em 1939. A possível alteração teria
ocorrido tanto para que ganhasse mais respeito frente aos Baathistas nos anos 60 como para
que tivesse mesma idade da prima, com quem se casaria em 1962 (casamentos com
mulheres mais velhas são feito incomum na sociedade iraquiana, fortemente marcada pelo
tradicionalismo25).
Descendente da tribo Albu Nasser e do clã Majid (sunita), mantém sobrenome
Tikriti como sinal de status (já que era costume entre os iraquianos os nomes que
evocassem suas regiões de origem); isso se tornaria relevante conforme regime baathista se
tornasse cada vez mais concentrado em parentes mais próximos de Saddam, o que levaria,
em razão de desconforto social com tal preponderância, a criação de leis eliminando esse
costume social. Seu pai biológico morre antes de nascer, e então Subha Talfah, sua mãe,
casa-se com Hassan Ibrahim; ambos, como maioria da população, são analfabetos. As
condições de sobrevivência são muito ruins: casas eram de barro, sem banheiros, água
corrente, eletricidade e cozinha; não havia condições mínimas de higiene, nem sistemas de
saúde, e então cidade era infestada por doenças como tênia e malária. Pela falta de espaço
nas casas, crianças tendiam a ficar fora das casas o dia todo; o padrasto o molestava, e era
compelido, como a maioria das crianças da região, a roubar ovos e galinhas para alimentar
família. Era comum a formação de gangues infantis para roubo de fazendeiros; por tudo
isso, maioria das crianças não ia à escola.
Saddam se identifica com tio, Khairallah Talfah, ex-tenente que participou do
regime nacionalista de Rashid Ali, mas que após intervenção britânica fora expulso do
exército e então tornara-se professor (após subida do Baath ao poder, tornaria-se prefeito de
Bagdá, e nos anos 80 tornaria-se conhecido pelos casos de corrupção); ainda sim, tinha vida
25 ABURISH, Said K. Saddam Hussein, The Politics of Revenge, pp. 11.
53
muito mais próspera do que a família de Hussein. Decide fugir de casa para morar com ele
aos 10 anos e ter oportunidade de estudo. Sofre traumas por ser bem mais velho do que
crianças da escola e por ser órfão, característica que culturalmente implica em hostilidades
na sociedade iraquiana26. Conhece primo, Adnan Khairallah, que mais tarde seria nomeado
para Ministério da Defesa em seu governo. Vai morar em Bagdá com o tio no início dos
anos 50, e participa, fortemente influenciado pelo tio, das manifestações anti-monarquia
que ocorriam; tem primeiro contato com xiitas nos subúrbios da capital, e como vários
deles, vai trabalhar como cobrador de ônibus, vendedor de cigarros e atendente em cafés.
Então tenta ingressar em escola militar, aos 18 anos, para seguir carreira do tio e de vários
conterrâneos de Tikrit (que formavam base do exército juntamente com a maioria dos
xiitas), mas falha. Tio se aproxima de Ahmad Hasan al-Bakr, também parente da família,
mas de boa colocação social, sendo membro do alto escalão do exército (filiaria-se ao
Baath em 1959 e tornaria-se o presidente do Iraque com golpe baathista de 1968).
Saddam forma consciência política em meio à polarização da sociedade iraquiana,
em que há forte alienação de xiitas, curdos e sunitas pobres frente classe dirigente sunita.
Hussein freqüenta escola secundária, mas atua maior parte do tempo coordenando gangue
de pequenos ladrões nos subúrbios da capital. Com influência do tio, aproxima-se do Baath,
tornando-se apoiador do partido. Com isso, usa seu grupo para aumentar corpo das
manifestações contra o regime e realizar, ao mesmo tempo oposição armada aos
comunistas. Mas ainda em 58, ano da revolução que derruba monarquia, não tem
proeminência política dentro do Baath, não chegando ainda a ser membro efetivo.
2.) O Período 1958-1968: Desdobramentos Históricos
a) O Governo de Abd al-Qarim Qasim (1958-63)
O golpe que derrubou a monarquia em Julho de 1958 foi montado primordialmente
por um grupo de militares descontentes com o regime, os Oficiais Livres, que começaram a
se organizar secretamente desde o início da década de 50, inspirados pelos
desenvolvimentos revolucionários e as reformas sociais subseqüentes ocorridos no Egito de
26 ABURISH, pp. 16. KARSH, Efraim; RAUTSI, Inari. Saddam Hussein: A Political Biography, pp 9.
54
Nasser27. Conforme o clima tenso dentro do país aumentava, o grupo clandestino ganhava
mais apoio dentro da própria corporação. Partidos políticos como o Baath, o Partido
Democrático Nacional e o Partido Comunista Iraquiano foram alertados para a iminência da
revolução, e então mobilizam a população para ida às ruas após consecução do golpe. Este
fora coordenado por Abd al-Qarim Qasim, de tendências mais reformistas, e Abd-al Salam
Arif, pró-nacionalismo árabe.
Apesar de uma participação muito mais simbólica por parte da população28, as
intensas celebrações nas ruas indicaram os sentimentos negativos da população perante a
monarquia e envolvimento histórico desta com a Grã-Bretanha e, com isso, expressavam
um forte desejo de mudanças na política iraquiana. Vários esforços foram objetivados nesse
sentido, mas em geral fracassaram, levando à queda do governo em 63, para que então o
Iraque passasse por diversos golpes e um crescente domínio do setor militar sobre a
política.
i. Política Doméstica
O regime de Qasim, que se iniciara num clima de aparente grande coesão popular
em razão da derrubada da monarquia, foi marcado pela forte divisão interna entre pan-
arabistas e reformistas, que se espelhava na própria briga entre ele e Arif. Desde o início,
ficava claro que a união entre os Oficiais Livres só se dava em termos da derrota de um
inimigo comum, traduzido no que era visto como a simbiose entre a monarquia e o
imperialismo (representado pela Grã-Bretanha e seus interesses petrolíferos). O grupo tinha
diversas divisões internas sobre como conduzir o país, e então o uso da força, representada
pelo exército, era maneira de dirimir tensões. Mas o afastamento crescente do governo
perante a população, e o não afastamento do exército da política seriam fatores importantes
para a queda do regime em 63 e para o aumento da instabilidade no país nos cinco anos
seguintes.
Num contexto de frustração histórica com as relações com o Ocidente e as
implicações daquela no solo iraquiano, a rejeição às instituições liberais era um dos poucos
aspectos em que havia quase unanimidade por entre a população. Um dos únicos grupos
27 MARR, Modern History of Iraq, pp. 83. 28 TRIPP, Charles. A History of Iraq, pp. 150.
55
que defendia a criação de instituições representativas, nos moldes da democracia européia,
era o Partido Democrático Nacional (PDN), descendente político do grupo reformista
Ahali, que conseguira chegar ao poder em 1936-37 e sofrera influência do trabalhismo
inglês. Dessa maneira, um dos primeiros atos do novo governo foi a abolição do
parlamentarismo. Uma constituição temporária seria formulada, em que afirmaria o caráter
republicano do novo regime, o Iraque como parte da união árabe e o Islã como religião de
Estado. Não haveria distinções entre os poderes legislativo e executivo, e tampouco se
buscava delimitar o papel do exército perante a política. Um ministério, altamente
heterogêneo, seria formado, buscando compreender boa parte dos segmentos populacionais
e das ideologias (excetuando-se os comunistas e o PDN).
As desavenças entre Qasim, primeiro-ministro, e Arif, seu imediato subordinado,
em pouco tempo se tornariam incontornáveis. Após discordâncias sobre a união do país à
federação formada por Egito e Síria, Qasim exonera Arif de seu cargo (apenas cinco dias
após formação do gabinete) e o envia para a embaixada da Alemanha Ocidental. Tal ato
significou um forte desequilíbrio político do país, que favoreceu principalmente os
comunistas, que emergiam como grupo mais organizado, e que se aproxima cada vez mais
de Qasim. Com o enfraquecimento relativo dos nacionalistas, o PCI busca ampliar sua
penetração nos meios de comunicação e organizações profissionais, ao mesmo tempo em
que pressiona Qasim pelo licenciamento dos partidos políticos.
Em 1959, o partido intensificaria seus atos, aumentando a polarização não somente
entre eles e os nacionalistas, mas mesmo entre os diversos segmentos populacionais do
país. Em dois desses eventos em que buscaria demonstrar sua força – a inauguração da
organização dos Partidários da Liberdade em Mosul, em 03.59, e demonstrações em Kirkuk
em 07.59 – a oposição gerada levaria a confrontos que se aproximariam de uma guerra
civil, com centenas de mortos.
Num cenário de grande polarização social, Qasim tentaria se distanciar dos
comunistas, condenando a realização das manifestações e suas repercussões. Os
nacionalistas, alienados dos processos políticos, passam a ver golpes como saída para
reversão do quadro. Além da primeira tentativa, ainda no início de 1959, por Rashid Ali
(que havia comandado o país em 1941) e que, supostamente, contara com Arif (que vai
preso), haveria outra, executada pelo partido Baath, em 10.59, e que teria apoio de vários
56
dos Oficiais Livres, que almejavam participar do governo após revolução, mas que, desde
então, haviam sido colocados em posições subalternas. Ambos falham. Qasim decide,
então, licenciar os partidos políticos; em outra tentativa de se afastar dos comunistas,
legaliza outra organização, extremamente frágil, que havia se colocado como representante
dos comunistas, deixando o PCI numa situação bastante difícil. Além disso, organizações
chefiadas pelos comunistas, como a Liga dos Jovens Iraquianos e os Partidários da Paz
foram fechados. O governo concedeu licenças para alguns partidos, inclusive o Partido
Democrático Curdo e o Partido Islâmico, representante dos xiitas, mas excluiu todos os
nacionalistas. Menos de um ano após a legalização, contudo, a maioria dos grupos seria
cassada, e seus líderes perseguidos.
A partir de 1961, nenhum civil passa a compor o ministério. Qasim depende cada
vez mais do exército e da burocracia que instalara. O governo se torna mais autoritário, e
Qasim, isolado, tenta se utilizar de seu carisma perante a população e suas tentativas de
reformas econômicas para manter ordem e poder. Enquanto isso, partidos na
clandestinidade, principalmente o Baath, se articulam com o exército para a execução de
um golpe. A oposição, em geral, também está enfraquecida, necessitando de um agente
externo ou o braço das forças armadas para reverter situação. Dada a penetração histórica
do pan-arabismo nos quadros do exército, são os nacionalistas que conseguirão impor golpe
em 1963.
ii. Economia e Sociedade
O regime de Qasim foi o primeiro, na história moderna do país, a ter orientação
prioritária para o país (Iraq First). Dada a notória instabilidade política e social do período,
as reformas, embora com conteúdo bastante progressista, tiveram, em geral, pouca
aplicabilidade, e ocorriam de maneira bastante lenta. A falta de uma burocracia
especializada também contribuiu para a relativa ineficácia do governo no setor econômico.
Finalmente, boa parte das reformas acabaram por se concentrar mais na destruição das
estruturas do antigo regime do que a proposição de novos processos de desenvolvimento,
embora tivesse sido esse o comprometimento de Qasim e a centralização do poder tivesse
viabilizado a implantação de alguns projetos.
57
A economia seguiu o método planificado de direcionamento de recursos, com quase
total participação do Estado nos investimentos, priorizando gastos em infra-estrutura, como
habitação, saúde e educação (notável em termos da expansão do acesso à população, às
expensas de uma qualidade inadequada), e revertendo tendência monárquica de
preponderância de gastos na agricultura para a expansão industrial. Mas pouco foi
realmente aplicado antes da queda do governo.
A política com relação ao petróleo é um dos aspectos centrais do regime de Qasim.
Com o objetivo de ampliar o controle do país sobre essa riqueza, negocia com Companhia
Iraquiana de Petróleo (CIP) para equalizar participação do governo na empresa e pressionar
pelo aumento do preço do petróleo29, o que ampliaria receitas do país. Sem sucesso, baixa a
Lei Pública 80 em 12.61, que retirava da companhia 99.5 por cento de sua área de
concessão, ao mesmo tempo em que promovia a criação da Companhia Nacional Iraquiana
de Petróleo (CNIP). A CIP não aceita a resolução, e reduz a produção do petróleo em
retaliação ao governo; além disso, as empresas estrangeiras não se disponibilizaram a
participar da concessão de petróleo nas áreas tomadas pelo governo, inviabilizando a
competição entre as empresas e gerando crise econômica. Ainda sim, devido à forte
associação da CIP com a Grã-Bretanha, a medida de Qasim teve grande repercussão
popular.
A reforma agrária também foi paradigmática em termos normativos, e mesmo em
termos práticos, já que desmantelou várias oligarquias rurais que dominavam parte do
país30. A medida buscava instaurar sociedades cooperativas, redistribuição em larga escala
de terras e atribuição de teto nos valores dos aluguéis. A lei teve impacto positivo para
maioria da população, mas a lentidão do processo levou ao descontentamento dos
camponeses. Alguns passaram a realizar invasões e, com a participação dos comunistas,
que buscavam insuflar movimento, os proprietários passaram a se recusar a colaborar com
o governo; vários formam grupos de pressão e boicotes conjuntos de produção, forçando
Qasim a realizar uma série de concessões. Mais uma vez, não havia um maquinário estatal
grande o suficiente para que expropriação das terras ocorresse em ritmo razoável; tendo em
vista que vários dos proprietários das terras eram líderes tribais e que o estado
simplesmente não conseguia fazer autoridade frente a eles, a estrutura agrária não mudou
29 TRIPP, pp. 167.30 SLUGLETT, pp. 218.
58
substancialmente. A não adaptação de parte dos camponeses ao novo sistema, baseado em
pequenas propriedades privadas, fez declinar enormemente a produção, levando a um
empobrecimento do setor rural, forçando novas ondas de imigrações, similares às que
ocorriam desde a década de 40 no país.
Em termos sociais, destacam-se a reformulação da Lei de Status Pessoal, que
conferiu às mulheres novos direitos, como igualdade no recebimento da herança perante os
homens e o controle da poligamia, e a unificação dos códigos e dos tribunais de julgamento
de sunitas e xiitas e cidadãos do campo e da cidade. A secularização das leis e o
crescimento do comunismo fizeram emergir o descontentamento xiita, que fora apaziguado
com o aumento da representação política de seus membros e a repercussão positiva de
algumas das reformas econômicas no sul do país.
iii. Relação com os curdos
Crendo que um novo regime seria mais favorável às causas curdas do que a
monarquia, o Partido Democrático Curdo apóia abertamente a revolução, embora não
participe diretamente da mesma. De fato, Qasim atende várias das reivindicações históricas
dos curdos, como a liberdade de imprensa, e retorno de exilados (como Mustapha Barzani)
e, notadamente, a igualdade jurídica com os árabes, presente na constituição provisória de
1960. Além disso, o partido, com uma forte retórica antiimperialista, conseguiu autorização
para se licenciar, e então conseguiu erigir estrutura para se tornar, apesar das diversas
disputas regionais, o principal representante dos interesses curdos. De fato, um novo
entendimento entre governo central e Curdistão parecia estar em curso. Contudo, temendo
pela fragmentação do país, Qasim não cedia em nome do aumento da autonomia da região,
o que fora sempre a maior demanda curda, o que levaria a um crescimento das tensões ao
ponto de se iniciar uma guerra entre as tribos locais, os peshmerga, e as tropas do governo.
O PDC tinha duas bases de apoio: uma mais urbana, intelectualizada, formada por
Ibrahim Ahmad e seu filho, Jalal Talabani; outra, mais tribal, ligada a proprietários de terra
das zonas mais montanhosas, era chefiada por Mustapha Barzani e seu clã, que cuidava da
face militar do partido. Barzani era uma das figuras históricas mais proeminentes do
movimento curdo, tendo participado da fracassada tentativa de instauração de uma
59
república curda no Irã em 1946 (o que o levou a exilar-se na União Soviética, que havia
patrocinado o experimento). A relação entre os movimentos era tensa e frágil, mas os
objetivos em comum em alcançar a autonomia curda os mantêm unidos até 1975.
Tendo contatos com a URSS, Barzani viaja para Moscou no início de 1961,
buscando acionar governo soviético contra governo de Qasim; mas esse intento é
infrutífero, e ainda resulta em hostilidades por parte do primeiro-ministro iraquiano, que
estimula tribos rivais curdas a enfrentar os peshmerga. Barzani vence inimigos locais, e
aumenta pressão contra o governo central, que responde enviando exército. Logo um
conflito em larga escala eclode, e as derrotas do exército perante as táticas de guerrilha dos
curdos, que se beneficiavam da topografia de difícil acesso da região, desmoralizam o
governo.
Gradualmente, há relativa recomposição de setores da oposição; Qasim tenta utilizar
nacionalistas como aliados contra os curdos, mas ao invés isso são estabelecidos contatos
entre alguns partidos, principalmente o Baath, e o PDC, em que se acorda pelo apoio a um
golpe em troca da autonomia dos curdos. Com o direcionamento de parte dos gastos
destinados para promover desenvolvimento do país para o enfrentamento dos curdos,
regime também perde parte de sua popularidade, e fica no auge de seu isolamento político
no início de 1963.
iv. Política Externa
Os Estados Unidos e Grã-Bretanha foram pegos de surpresa pela revolução. A
Guerra Fria entre EUA e URSS tinha marcantes repercussões no Oriente Médio, num
histórico recente de confrontação em razão da emergência de Nasser no Egito, a crise de
Suez e a formação da União das Repúblicas Árabes em 1958. Por um lado, os EUA temiam
o surgimento de regimes comunistas, enquanto que a Grã-Bretanha estava apreensiva pelo
aumento do nacionalismo árabe na região, o que afetaria diretamente seus interesses geo-
estratégicos. Aburish relata um encontro entre Qasim e enviados especiais ingleses, em que
o líder iraquiano teria assegurado o caráter endógeno da revolução e, com isso, a
viabilização de uma política externa independente. Com isso, a Inglaterra via no Iraque um
60
freio ao nacionalismo egípcio, e então não havia necessidade de intervenções diretas. Os
EUA, sem contatos dentro do Iraque, também não procura reverter o quadro.
Qasim buscava-se distanciar do ocidente, e o primeiro ato se deu com o
cancelamento com o Pacto de Bagdá; subseqüentemente, aproxima-se da União Soviética, e
consegue importante apoio financeiro e técnico, no início de uma relação que se estenderia
por décadas. Esses eventos esfriam relações com a Turquia e o Irã, o que chega a causar
algumas escaramuças nas fronteiras entre esses países.
A adesão ou não à União das Repúblicas Árabes foi o tema que resultou na primeira
grande polarização política do regime e levaria à saída de Arif do posto de vice primeiro-
ministro, após demandar abertamente pela união do país com Egito e Síria. A orientação do
regime de Qasim era a de sempre refutar esquemas pan-arabistas, mantendo-se coerente
com seu projeto de priorizar políticas domésticas. Mas, com isso, Qasim pagaria pelo
aumento da alienação do Iraque perante alguns de seus vizinhos, empolgados com a
possibilidade de união árabe, e então o país vê-se cada vez mais distante de relações
bilaterais proveitosas.
A questão do Kuwait foi o último aspecto que contribuiu para um total isolamento
do regime. Com a independência do país, em 1961, o Kuwait se tornara um semi-
protetorado inglês, de maneira similar ao que ocorrera com o Iraque nos anos 20. Mas
embora a maioria dos países felicitava o surgimento do novo país, Qasim revivia demandas
históricas sobre aquele território, sob a afirmação de que o Kuwait fazia parte da província
de Basra durante o Império Otomano. Embora não tivesse condições de impor seu desejo
de anexação pela força (já que maioria do exército estava concentrado ao norte,
combatendo os curdos), e tampouco não tenha feito declarações ameaçadoras nesse
sentido31, o Kuwait solicita intervenção britânica, e a chegada de tropas inglesas no Oriente
Médio aumenta significativamente a rejeição de Qasim no mundo árabe, com deterioração
expressiva das relações com o Egito. A Liga Árabe admite o Kuwait como um novo
membro, e se compromete a substituir os britânicos em sua proteção, enquanto que o Iraque
retirava seu corpo diplomático daquela representação e cortava relações com diversos
países que reconheceram a independência dos kuwaitianos. Com isso, o único parceiro
substancial do país em 1962-63 era a URSS, embora a relação estivesse ainda em estágio
31 TRIPP, pp. 166.
61
inicial de desenvolvimento e os soviéticos estivessem mais preocupados, àquela altura, em
melhorar suas relações com o Egito.
v. O Baath no Período 1958-63
Após ter apoiado a revolução por meio de mobilizações populares, o Baath recebe
um dos ministérios do novo governo para governar, e aproveitam a oportunidade para
expandir suas estruturas e bases de apoio. Contudo, com a saída de Arif do governo e o
aumento da preponderância dos comunistas, adversários históricos do partido, o baath
pouco a pouco se convence de que não haveriam maneiras de interferir nos processos de
tomada de decisão de Qasim e a cúpula do regime, de tal forma que um golpe surge como o
mecanismo de ação mais viável.
Em decorrência dos graves tumultos ocorridos em Mosul e Kirkuk, em que, além
dos conflitos étnicos e sócio-econômicos desastrosos houve embates sangrentos entre
milícias do Baath e do PCI, o partido é forçado a atuar na clandestinidade, e vários de seus
membros são presos. Ahmad Hasan al-Bakr, coronel do exército, aproxima-se do Baath,
especialmente após reaproximação com seu primo, Khairallah, e então desponta como uma
liderança do setor militar do partido.
O Baath organiza uma tentativa de assassinato contra Qasim, efetuada em 10.59 por
alguns de seus membros mais jovens, dentre eles Saddam Hussein. O atentado é ineficiente,
e então seus autores fogem para a Síria, mas logo o governo descobre quem foram os
organizadores. Saddam Hussein também acompanha o grupo, e então entra em contato pela
primeira vez com Michel Aflaq, que lhe concede o título de “membro ativo”. Vai, então,
estudar no Egito, e rapidamente se torna líder de uma sucursal do partido na Universidade
do Cairo. Aburish aponta que tanto Saddam como representantes do Baath na Síria
começam a estabelecer contatos com a CIA, para que então fosse articulado um golpe
definitivo contra o regime de Qasim; de acordo com essa fonte, o governo norte-americano
asseguraria o reconhecimento do novo regime logo que revolução se iniciasse, e que então
novas relações entre os dois países fossem firmadas32.
32 ABURISH, Said. Saddam Hussein, The Politics of Revenge, pp. 54-59.
62
Enquanto isso, os remanescentes do partido no Iraque eram julgados em cortes
sumárias, e a maneira impassível com que confirmavam seus planos conspiratórios e seus
objetivos pan-arabistas acaba por projetar o Baath nacionalmente pela primeira vez. O
partido passa por dificuldades no período 1959-61, mas então começa a se reestruturar,
ampliando contatos com o exército, especialmente alguns dos oficiais livres, que estavam
bastante descontentes com a não participação no governo.
Embora o partido tivesse crescido substancialmente no período, à época do golpe
possuía ainda cerca de apenas 850 membros ativos e alguns milhares de simpatizantes33.
Apesar da repressão do regime de Qasim, o estabelecimento dos contatos entre as alas civil
e militar do partido (além de elementos nacionalistas não-Baathistas) era relativamente
fácil. Contudo, o planejamento do golpe não havia sido bem feito, e forças do governo
chegaram a prender alguns dos conspiradores dias antes do ato. Ainda sim, foi executado
em 02.63, e colocou o Baath no poder pela primeira vez. Quase simultaneamente, outro
golpe colocaria o Baath sírio no poder.
b) O Baath no Poder (02.63-11.63)
Dentre aqueles que apoiaram e atuaram diretamente no sangrento golpe
empreendido pelo partido estava Salam Arif, que fora então colocado como presidente, a
princípio para conferir legitimidade ao novo regime e para que fosse apenas uma figura no
poder, mas tendo no partido o controle real das funções executivas e legislativas. O partido,
contudo, estava desde o início bastante dividido, com diversas clivagens internas: os
jovens, da parte civil da organização e com tendências mais esquerdistas, em oposição aos
mais experientes, em geral do setor militar; no centro, um setor mais conciliador (mas
também mais conservador), formado por Bakr e Saddam, que retornara do Egito para
ocupar postos secundários no novo governo. Essas divisões implicavam em problemas
essenciais de governabilidade, que opunham intentos de se formarem coalizões com outros
partidos com o desejo de aplicação imediata dos programas do partido. Rapidamente esses
conflitos se escalonariam e tornariam inviável a permanência do Baath no poder.
33 SLUGLETT, pp. 83.
63
A perseguição ostensiva aos comunistas e demais opositores se tornou uma das
marcas mais efetivas do breve governo, que deixou impressões bastante negativas para a
população civil. Houve muito poucas realizações domésticas no curto governo, e as
executadas tinham em geral um caráter conservador (como o cancelamento da Lei de Status
Pessoal), indicando preponderância no controle do poder por parte dos militares.
As relações com os curdos também foram tensas, já que, após o apoio inicial do
PDC em troca da promessa de autonomia ao Curdistão, o Baath ignorou maioria das
demandas de Barzani. Aproximação do Iraque com Egito e prenúncio de união árabe
fizeram aumentar as declarações hostis dos curdos, e então, novamente, o conflito entre o
exército e as milícias peshmerga se reiniciou. Da mesma forma que antes, curdos obtiveram
seguidas vitórias, e desmoralização do exército repercutiu no aumento da insatisfação de
diversos segmentos da corporação, aumentando caos de um governo já marcado pela
instabilidade.
O governo se preocupou primordialmente com a política externa. As relações com
os EUA foram melhoradas e, apesar de intensas disputas internas, deliberou-se pela
assinatura de um tratado de reconhecimento da independência do Kuwait, recebendo-se em
troca vultuosas somas de dinheiro. Negocia-se, desde o princípio, a união com Nasser, mas
claras discordâncias ideológicas esfriaram o projeto; após uma tentativa de golpe feita por
nasseristas em Bagdá, o Baath rompe com o Egito, e então as filiais iraquiana e síria
priorizam suas relações em busca de uma união. Entretanto, o nível de faccionalismo se
torna ainda maior e, após vitória de idéias pró-marxistas do grupo civil na conferência do
partido, o setor militar intervêm e consegue afastar esse setor do comando da política
nacional. Comando Nacional do Partido, majoritariamente Síria, intervém e expulsa setor
mais conservador, e então partido fica totalmente desestruturado. A população não vê com
bons olhos a intervenção Síria, e então Arif e seus apoiadores dão um golpe, removendo
Baath do poder e desmontando sua milícia, que se tornara extremamente impopular devido
ao seu caráter repressor.
c) O Governo de Salam Arif (1964-1966)
64
O governo de Abd al-Salam Arif contou com a participação dos nasseristas, tanto
militares como civis, mas era dividido entre aqueles que almejavam mais unidade e
controle da economia pelo estado e os mais pragmáticos, que tinham a prioridade de
estabilizar o país. Arif optou, internamente, pela planificação econômica, mas sem
abandonar o incentivo aos investimentos privados, e por uma reforma agrária mais
eqüitativa, que avançava lentamente.
A ala mais radical pressionava por uma maior integração com o Egito, e então
reuniões entre Arif e Nasser foram feitas, e houve concordância no sentido de ajustar os
sistemas político e econômico de cada país antes de uma possível reunião. Seria criada uma
União Socialista Árabe entre os países, viabilizando um comando militar conjunto.
No plano doméstico, o aumento do nasserismo repercutiu, primeiramente, na
elaboração de uma constituição provisória, baseada no modelo egípcio, em que estabelecia
que o país seria democrático, socialista, árabe e islâmico. Contudo, dadas as peculiaridades
da formação da população iraquiana, grande ênfase seria dada para o Islã. O segundo
evento em que se tornou clara a preponderância nasserista foram as leis de nacionalização,
que transferiram para o governo o controle de companhias de seguro, bancos e empresas
estratégicas, como as de cigarro, construção civil e indústrias têxteis. Além disso, a
importação e distribuição de diversos produtos, como alimentos, remédios e carros passou a
ser monopólio governamental.
Todavia, os efeitos imediatos dessas mudanças estruturais não foram claramente
positivos, e então Arif buscou reduzir a influência dos nasseristas, principalmente o setor
militar, apontando civis para cargos estratégicos e empreendendo políticas clientelistas com
tribos para promover a estabilidade do país.
Para os curdos, o momento foi inicialmente favorável, já que Arif assinara um
cessar-fogo e reconhecera diversos direitos da etnia, embora sem conceder autonomia. A
aceitação desses termos por Barzani, contudo, irritou a ala civil do partido, dividindo
internamente o PDC. Embora o grupo político tivesse ficado enfraquecido no período 64-
65, o seu controle pelas forças militarizadas de Barzani rearticulou as demandas curdas, e
então as pressões pela autonomia se reiniciaram. Mais uma vez, um governo iraquiano
responde por meio da força, e novamente é derrotado em seguidas batalhas. Um novo
acordo, em 06.66, seria concluído. Este seria o entendimento mais progressista entre as
65
partes na história moderna do país até então: o curdo seria reconhecido como uma língua
oficial, haveria permissão par a composição de uma administração descentralizada na
região, a nacionalidade curda seria reconhecida e os curdos teriam representação
proporcional nas instituições do Estado. Entretanto, a repentina morte de Arif num acidente
de helicóptero e os desenvolvimentos futuros fizeram com que esse acordo jamais fosse
implementado.
d) O Governo de Abd al-Rahman Arif (1966-1968)
Rahman Arif, irmão mais velho de Salam Arif, assume o governo após pressão dos
militares. O governo, extremamente frágil, foi incapaz de realizar articulações políticas
capazes de manter um mínimo de estabilidade, não cumpriu as determinações dos acordos
com os curdos, e a falta de um programa político coeso levou à ascensão do faccionalismo
dentre os militares, com seguidas tentativas de golpe, até o derradeiro, promovido pelo
Baath, em 07.68. Finalmente, os acontecimentos internacionais também foram um fator de
desestabilização, graças ao fracasso da coalizão árabe em enfrentar Israel na Guerra dos
Seis Dias.
Com a rejeição dos termos do acordo com os curdos, o conflito armado foi
reiniciado, e o exército continuou a sofrer pesadas derrotas no Curdistão, terreno de difícil
acesso para as tropas. Mas a questão principal do regime seria o petróleo, que afetaria o
país em termos domésticos e internacionais.
Inicialmente, em razão da preponderância dos interesses mais conservadores no
governo, foi criada uma parceria entre a CIP e a CNIP, estatal criada ainda no período
Qasim. Com isso, a empresa estrangeira teria acesso a todos os campos de petróleo que
haviam lhes sido retirados da concessão por meio da Lei Pública 80, inclusive o campo de
Rumaila (que, embora descoberto, ainda não havia sido explorado). O acordo seria positivo
no sentido de propiciar receitas imediatas, mas em razão da rejeição histórica da população
à CIP, a realização da parceria repercutiu muito mal. A desestabilização criada forçou a
troca de primeiros-ministros, até o ponto em que os nasseristas voltaram a ter o predomínio
sobre as tomadas de decisão. Com isso, foi baixada a Lei Pública 97, restabelecendo o
domínio da CNIP sobre a maioria do território iraquiano. Dada a falta de estrutura e de
66
capital de investimento, a empresa seria forçada a explorar os campos com ajuda
estrangeira. Então o país assinaria um acordo de intenções com a URSS, aprofundando as
relações entre os países, e com a ERAP, estatal francesa. Seguindo determinações similares
às de outros momentos, a CIP não reconhece a nova legislação, e continua a boicotar o
governo, gerando a continuidade das crises econômicas.
Apesar do relativo ganho de popularidade com essas medidas, predominava no país
o sentimento hostil da população em relação à derrota dos árabes na Guerra dos Seis Dias,
em parte pela própria incapacidade iraquiana de enviar soldados para o front, já que estes
estavam excessivamente concentrados no combate aos curdos. Nesse contexto de forte
oposição aos desenvolvimentos nacionais, dada a continuidade do boicote da CIP, e
internacionais, o sentimento anti-ocidental no país atinge seu auge, e uma série de
manifestações ocorreriam em Bagdá em 68, várias delas lideradas pelo Baath. O partido
emergiria novamente como o mais articulado para o golpe, e em aliança com membros
descontentes do setor militar do núcleo duro do grupo de Arif (como Abd al-Nayif, diretor
da inteligência militar, e Ibrahim al-Daud, chefe da guarda republicana), efetuariam o bem
sucedido golpe que removeria Arif do poder.
e) O Baath no Período 1964-68
Após a queda do instável governo de nove meses, o Baath passa a operar na
clandestinidade, mas passa a ser perseguido pelo novo governo. Internamente, também
ocorrem expurgos, que acabam por eliminar boa parte do setor militar e os xiitas; o grupo
de Bakr e Saddam sai fortalecido, e então Michel Aflaq o recomenda para o Comando
Regional do partido, onde então começa a rearticular o grupo. Consegue expandir filiais
pelo país, e por meio de Bakr o Baath volta a se aproximar dos militares. Em 1964, Saddam
articula golpe contra Arif, mas o plano é mal sucedido, e então acaba sendo preso.
Na Síria, a ala militar do partido assume o controle, e dá um golpe interno, que
retira do comando do partido Aflaq e Bitar. Em razão da rejeição do grupo iraquiano a um
domínio militar do partido, as relações entre as filiais iraquiana e Síria estremecem. O
segmento sírio amplia o controle sobre o Comando Nacional, e então expulsa Saddam e
Bakr do Comando Regional Iraquiano. Com a ajuda de Aflaq, Baath de Saddam e Bakr cria
67
novo Comando Nacional, e assim rompem-se relações, de maneira quase definitiva, com o
Baath sírio. Desde então, passaram a competir pela legitimidade do Baath e do pan-
arabismo no Oriente Médio.
A partir de então, Saddam e Bakr reformulam estruturas do partido, formulando um
aparato de segurança e a Milícia Popular, organizações criadas para proteger o partido no
poder em caso de tentativa de golpe das forças armadas, e expandir sua penetração nos
círculos sociais. Saddam consegue fugir da prisão e então tem oportunidade de expandir
movimentos conspiratórios; partido se aproxima de oficiais do exército insatisfeitos com
governo de Rahman Arif, que organizam secretamente o Movimento Revolucionário
Árabe. Estes não tinham nem credibilidade popular, nem estrutura organizacional para
empreenderem um golpe, por isso também se aproximaram do Baath que, apesar da
repressão governamental, se tornara novamente grupo razoavelmente organizado.
A ala civil do partido, por sua vez, penetrava nas organizações de massa e liderava
greves sindicais e estudantis, além de manifestações contra o regime de Rahman Arif,
contribuindo para a desestabilização do regime.
Daud e Nayif, líderes da oposição secreta do exército, impõem condição de
ocuparem cargos mais relevantes no novo governo, às vésperas do golpe. O Baath, sem
muitas alternativas, é forçado a aceitar, e então tomada de poder é realizada em 17 de Julho
de 1968, sem resistência e, assim, sem violência. A população reage com pouco entusiasmo
com as declarações dos novos governantes, já que o golpe parecia ser somente mais um na
já consolidada história de conspirações e contra-conspirações dentro do estado iraquiano34.
Diferentemente de 1958, não havia grande expectativa popular quanto a significativas
mudanças de orientação política: o Baath tinha deixado uma péssima lembrança com o
governo de 1963, e a participação preponderante do exército na execução do golpe não foi
nada diferente dos diversos movimentos que ocorreram durante a década de 58-68.
34 BATATU, pp. 1075.
68
CAPÍTULO 3 – O Período 1968-1979
Com o súbito golpe de estado em aliança com o exército, o Baath novamente se via
com a oportunidade de ocupar o poder e materializar seu projeto de modernização do país
até então cunhado em discursos que amalgamavam um forte senso pan-arabista com a
necessidade de uma transformação socialista do país.
O partido, mais maduro e pragmático do que aquele que governou o Iraque em 1963
buscaria, internamente, consolidar sua hegemonia interna, perseguindo todos aqueles que,
de acordo com sua perspectiva, eram contrários à “Revolução”. Paralelamente, o regime
viabilizaria uma das transformações sócio-econômicas mais significativas ocorridas no
então denominado “terceiro mundo”, graças ao controle e exploração de seus recursos
naturais. Por meio de um sistema econômico rentista, que pouco taxava a sociedade, o país
atingiu altas taxas de crescimento do PIB nessa década, o que viabilizou tanto uma
economia de bem-estar social como ambiciosos projetos de industrialização e, em
atendimento ao intento histórico de hegemonia regional, a militarização e o surgimento de
infra-estruturas capazes de gerar a criação de armamentos, inclusive os de tipo não
convencional.
Na política externa, a busca de proeminência implicou, num primeiro momento, em
forte radicalização da retórica pan-arabista, que só isolou o país. Com a nacionalização do
petróleo, porém, o país adotou postura mais moderada, aproximando-se das monarquias
mais conservadoras do Golfo e mesmo de diversos países do ocidente, ao mesmo tempo em
que buscava se desvencilhar da dependência soviética.
No fim da década, Saddam Hussein emergiria como a figura mais preponderante do
partido, virtualmente controlando a maioria das estruturas do governo. Apesar da
demolição de boa parte da oposição, o regime tornava-se cada vez mais autoritário,
penetrando em todos os setores da vida iraquiana. Ideologicamente, emergia o início do
culto de personalidade a Saddam e grandes esforços no sentido de se constituir uma
identidade puramente iraquiana, remontando-se a tradições mesopotâmicas, que buscavam
atenuar as diferenças étnicas, religiosas, sociais e sectárias dos diversos grupos do país.
69
Em 1979, por meio de um golpe não-tradicional na história iraquiana (conforme
veremos a seguir), Saddam Hussein se torna o presidente do país. O nosso objetivo, a partir
de agora, será o de investigar os principais eventos e temas do período e, quando possível,
realizar uma comparação bibliográfica entre os autores, a fim de se estabelecer as diferentes
interpretações sobre essa década.
1. Aspectos Políticos
a) A Consolidação do Poder
As divergências entre o Baath e Daud e Nayif (os líderes da facção do exército que
realizou o golpe) repercutiu, ainda antes do golpe, em dificuldades sobre a divisão dos
cargos e, após 17 de Julho, na total inoperância do gabinete, totalmente dividido em termos
de propostas de governo. Temendo que o partido, como em 1963, fosse removido pelos
militares, Saddam e al-Bakr articulam um novo golpe, que se sucede em 30 de Julho,
removendo os oficiais não-baathistas do novo regime. Bakr se proclama presidente e
Saddam Hussein é escolhido como vice. É criado o Conselho do Comando Revolucionário
(CCR), autoridade designada com atribuições executivas e legislativas, e ocupada por civis
e militares do partido.
i. Os Julgamentos de 1969
Os julgamentos daqueles considerados traidores da revolução expressam o primeiro
grande esforço no sentido de mostrar à população a força do novo governo. Seguindo uma
vigorosa retórica antiimperialista e anti-sionista, as forças de segurança passaram a
perseguir judeus, comunistas, nasseristas, baathistas pró-Síria, ex-ministros, ex-oficiais,
empresários, iraquianos representantes de firmas ocidentais e civis de maneira aleatória1,
acusando-os de espionagem para os Estados Unidos, Israel e Irã e de traição à revolução. O
governo conclamava a população por meio de todos os meios de comunicação disponíveis
1 SLUGLETT, pp. 118.
70
para que esta fosse assistir aos julgamentos, que em geral resultavam na morte dos
“conspiradores”2. Para Karsh, o reino de terror imposto serviu para ganhar legitimidade
perante a população e para educá-la à maneira baathista de governo, baseado no medo e no
respeito3. Makiya vê os julgamentos de forma similar, e os entende como uma espécie de
ritual imposto pelo governo para conectá-lo com a massa, além de servir como precursor
para os assassinatos políticos mais relevantes que viriam mais tarde e, finalmente, para que
fosse criado senso popular que ligasse instantaneamente aquilo que fosse de fora do Iraque
com a idéia de conspiração4. Marr vê esses julgamentos, que duraram cerca de um ano,
como o mecanismo mais importante para a consolidação do regime, graças à enorme
mobilização conseguida pelo governo durante os tribunais ocorridos no centro de Bagdá
(cerca de 500 mil iraquianos)5. Aburish ressalta que a reputação do regime foi seriamente
abalada no âmbito internacional, mas as potências ocidentais pouco teriam feito para
contestar a rudeza do novo regime6.
ii. A Neutralização dos Baathistas Civis e Militares
Bakr e Saddam buscariam, a seguir, reduzir a influência do exército no comando do
governo, expresso no domínio do Conselho do Comando Revolucionário e nos ministérios;
Hardan al-Tikriti e e Salih Ammash, oficiais baathistas que tinham maiores aspirações de
poder, são afastados, e o CCR é ampliado, a fim de abrigar mais civis. Contudo, uma
tentativa de golpe de Nayif, supostamente com a ajuda do Irã7. Karsh, porém, insere
alegação do golpe em si como falso. A descoberta dos conspiradores e seu posterior
assassinato, como o de dezenas de outros oficiais no período, fazia parte de um contexto
maior de invenção de golpes e espiões, como parte do projeto do partido em reprimir
mesmo a idéia de subversão enquanto penetrava cada vez mais, por meio de suas
estruturas8.
2 ABURISH, pp. 823 KARSH, pp. 39.4 MAKIYA, pp. 55-58.5 MARR, pp. 141.6 ABURISH, pp. 89.7 Idem, pp. 91.8 KARSH, pp. 40-45.
71
A dupla Saddam-Bakr começava a ampliar preponderância sobre as demais facções
do partido. Antecipando-se às conseqüências do descontentamento causado àqueles grupos,
destituem os civis mais antigos de cargos relevantes, como cadeiras no Comando Regional
do Baath, colocando em seu lugar aliados mais próximos. Tanto para Marr9 como para
Sluglett10, as perseguições e expurgos, mesmo no caso de Wafiq Sammarra’i (principal
teórico esquerdista do partido, entusiasta de reformas sociais radicais), se davam em termos
pessoais, e não ideológicos, dado o caráter altamente personalizado da política iraquiana.
iii. A Tentativa de Golpe de Nadhim Kazzar em 06.73
Kazzar, um dos vários xiitas que se juntou ao Baath nos anos 50 e um dos poucos
que remanesceu após o fracasso do governo de 1963, havia se tornado um dos homens de
confiança mais relevantes para Saddam, e por isso era o chefe do setor de segurança, um
dos mais estratégicos para o regime. Contudo, apesar da proximidade com Saddam,
empreendeu uma tentativa de golpe que se revelou fracassada. O plano, de derrubar o avião
de Bakr quando este retornasse de uma viagem internacional, acaba falhando com o atraso
do vôo e a suspeita de que os líderes do governo haviam descoberto a subversão. Kazzar
decide seqüestrar os ministros do interior e da defesa (Sadun Ghaidan e Hamid Shehab)
para negociar anistia com Bakr, mas forças de segurança do governo o interceptam e o
matam. Para Aburish e Batatu, essa foi a tentativa mais séria de derrubar o governo em todo
o período11. A maioria dos autores considera que a tentativa de golpe teria sido motivada
pelo crescente ressentimento de Nadhim com o aumento da dominação sunita e, mais
especificamente, dos clãs de Tikrit, sobre o regime, além do receio de ser eliminado pela
liderança do partido quando ficasse mais claro conflito entre seus interesses e os de Bakr-
Saddam.
Inicialmente, as repercussões para Saddam foram altamente negativas, já que se
chegou a suspeitar de sua participação no golpe12. Posteriormente, todavia, o evento foi
importante para sedimentar de maneira ainda mais clara o domínio do grupo liderado por
ele e por Bakr, graças ao uso do golpe para o aumento da perseguição aos elementos civis
9 MARR, pp. 143.10 SLUGLETT, pp. 134.11 ABURISH, pp. 103; BATATU, pp. 1094.12 MAKIYA, pp. 13.
72
do partido, para o aprofundamento da baathização do exército13, ou seja, a penetração de
membros do partido na estrutura das forças armadas, inclusive na alta hierarquia, de modo a
torná-lo um mero apêndice da organização. Ao final de 1973, desta forma, Saddam e Bakr
haviam conseguido controlar praticamente todo o partido, dirimindo as disputas e
possibilitando um foco maior nas relações com a população e os grupos da oposição.
iv. O Sistema de Segurança do governo Baath
Um dos mecanismos mais relevantes para a consolidação e a manutenção do poder
do Baath neste período e depois foi aquele montado a partir de estruturas de segurança em
geral oriundas do próprio partido que, paulatinamente, foram incorporadas ao estado. Isso
fez parte do que se denominou a “baathização do regime”, sedimentada na penetração de
quadros do partido e do Estado em praticamente todas as estruturas da sociedade, até o
ponto em que a maioria dos cidadãos acaba, de alguma maneira, ficando comprometida e
dependente do regime, resultando, como afirma Makiya, na incorporação da sociedade civil
pelo Estado.14
O aparato de segurança, de início utilizado contra aqueles que eram denominados os
“inimigos da revolução”, foi sendo expandido e organizado por Saddam Hussein, conforme
o Baath consolidava seu poder interno. A partir de 1973, as agências seriam reordenadas. O
Diretório de Segurança Pública era a organização oficial do governo para as investigações
criminais, sendo ligada ao Ministério do Interior15. O Serviço de Inteligência Geral era
designada para vigiar as atividades de outras redes de segurança e de instituições como
departamentos governamentais e organizações de massa, além dos iraquianos que viviam
fora do país. Dentro dessa estrutura, fica compreendida a Milícia Popular, pertencente ao
partido, e responsável principalmente por realizar contrapeso ao exército16 e também para
ser presença quase onipresente nas ruas, além de criar imagem de apoio popular ao
regime17, dada seu constante crescimento na década de 70. A Inteligência Militar também
atuava na espionagem estrangeira, e buscava fiscalizar as atividades do exército, o ator
13 KARSH, pp. 54.14 MAKIYA, pp. 44.15 MARR, pp. 150.16 MAKIYA, pp. 30-32.17 TRIPP, pp. 196.
73
político mais relevante da década anterior. O Escritório Militar, originalmente uma
organização intra-partidária, se tornaria mais relevante que a própria Inteligência Militar no
final da década18. Outras instituições, como a Guarda Republicana (responsável pela
proteção exclusiva do Presidente), os Guardas de Fronteira, a Força Policial Móvel de
Ataque e o Departamento Geral de Nacionalidade também contribuiriam no esforço de
fiscalização da atuação de virtualmente todos os cidadãos iraquianos. Cada uma delas se
reportava individualmente para o CCR, de tal forma que eventuais traições de um ou outro
grupo ficariam mais fáceis de serem descobertas.
Embora os dados disponíveis sejam ainda contraditórios, os dados apresentados por
Makiya indicam que cerca de vinte por cento da população economicamente ativa do
Iraque (670 mil de 3.4 milhões) estava institucionalmente comprometida, em 198019, com
um desses setores mencionados acima. Dessa forma, a participação da população nessas
estruturas funcionou como uma das maneiras para que o regime ampliasse sua penetração
sobre distintas esferas da sociedade e, com isso, fortalecesse seu poder internamente.
v. O Controle do Exército
O exército, considerado por diferentes autores como o ator político mais relevante
da década 58-68, gradualmente teve seu papel diminuído no governo Baath. Em paralelo
com a neutralização da cúpula militar do partido, realizava-se a “baathização” do exército,
por meio da infiltração de civis na estrutura de comando e em escalões intermediários. O
Baath cria uma instrução que quebra a hierarquia da corporação; nela, estabelece que os
soldados não devem carregar consigo nenhuma ordem sem antes consultar o partido20. Com
isso, o exército teve sua coesão enfraquecida, e passou a ser mais um apêndice da estrutura
de segurança do partido; contudo, se as forças armadas perderam sua relevância como
atores políticos, ganharam preponderância com os grandes gastos armamentistas do
governo, conforme será visto mais adiante.
vi. A Expansão do Partido e da Burocracia Estatal
18 MARR, pp. 150.19 MAKIYA, pp. 3820 BATATU, pp. 1094-1095.
74
Outro mecanismo de fortalecimento do poder baathista foi o grande aumento no
número de seus membros e apoiadores quando em comparação com o momento da tomada
de poder, além do crescimento da burocracia civil do governo. Apesar dos dados
controversos, diversos autores21 apontam para o número de dez mil membros ativos e 500
mil apoiadores (de acordo com o ranking de filiação descrito no capítulo anterior). Esses
membros e apoiadores do Baath cada vez mais criavam e controlavam organizações de
massa, especialmente ligadas aos jovens (a Tali’a, responsável pela doutrinação de crianças
do ensino fundamental; a Futuwwa, para os jovens adolescentes, e a Shabab, que atingia os
jovens universitários)22, e a imprensa e os meios de comunicação em geral, de onde
emanavam discursos defendendo a ideologia do partido.
A expansão da burocracia estatal não era marcada somente por integrantes das
forças de seguranças, mas também por indivíduos que trabalhavam em empresas
gerenciadas pelo estado, além dos baixos escalões ministeriais e instituições financeiras.
Somando-se o exército, a burocracia civil e o setor de segurança, cerca de 1.5 milhão de
iraquianos estavam empregados no Estado23, o que compreendia quase cinqüenta por cento
da população economicamente ativa do país no final da década de 70. Com isso, a
dependência econômica de boa parte da população perante o governo ficava estabelecida e,
desta forma, também se assentava a continuidade da dominação política do regime no
período.
vii. A Rede de Clãs, o Clientelismo e a Patronagem
Representando tanto em parte a sedimentação do poder do regime como, mais
especificamente, o aumento da influência de Saddam Hussein no regime, o instrumento da
rede de clãs passou a ser empregado na cúpula do partido, mais especificamente no
Comando Regional do Baath, além do CCR e do exército. Gradualmente, Saddam Hussein
e Hasan al-Bakr substituíam figuras mais distantes de seus centros de poder por outras; a
preferência inicial era por sunitas, mas com o passar do tempo o grau de especificidade de
21 MAKIYA, pp. 39; MARR, pp. 149; SLUGLETT, pp. 136.22 MARR, pp. 150.23 MAKIYA, pp. 33; 38; 41.
75
tornava maior, levando à escolha de Tikritis, membros da tribo Albu Nasser e do clã Majid
(exatamente as origens de ambos), numa busca crescente por figuras confiáveis e leais não
à ideologia do partido, mas pessoalmente a Bakr e, primordialmente, a Saddam.
O clientelismo que, como visto no estudo do período 1920-58, fundamentou boa
parte das relações entre o governo e as lideranças locais (notadamente os proprietários de
terras, chefes das tribos) e que tentou ser dirimido no período 58-68, retornou no governo
Baath, mas com peculiaridades. A patronagem seletiva foi, como aponta Tripp24, um
princípio relacional utilizado com toda a população, mas especialmente com grupos
oposicionistas mais relevantes, como xiitas e curdos. Por meio de uma política de
cooptação e repressão (conforme será visto mais adiante), o governo financiava e
patrocinava grupos, atrelando, em tese, sua sobrevivência ao próprio estado que pretendiam
combater. Por vezes, porém, as oposições realizavam demandas que superavam a
disposição do governo em cumpri-las, e então a tensão desembocava em duros conflitos.
b) A Relação com as Oposições
Os comunistas, os curdos e os xiitas foram, para os autores estudados, os principais
desafios internos para o regime. Marr acrescenta a oposição liberal em seu estudo, embora
enfatize sua organização pouco coesa e a facilidade com que o regime conseguira controlá-
la. Os liberais, críticos do desenvolvimento econômico do país e do seu modelo socialista,
estavam concentrados principalmente nas universidades e nas classes profissionais25. Por
meio do controle dos cursos ministrados nas universidades, da constante troca de
professores e da participação ativa de seus membros em sindicatos, o Baath conseguiu
neutralizar quaisquer atividades políticas desse segmento, concentrando sua atenção, então,
nos comunistas, nos curdos e nos xiitas.
i. Os Comunistas
No momento do golpe de 68, os comunistas eram um dos grupos mais fortes do
país, embora internamente estivessem divididos. Inicialmente, Bakr oferece alguns cargos
24 TRIPP, pp. 20525 MARR, pp. 170-171.
76
no ministério para o Partido Comunista Iraquiano, mas este rejeita, sob a consideração de
que a mera participação no regime baathista não resultaria no emprego das teses do
partido26. O Comando Central, uma das facções do grupo, parte para a guerrilha no sul do
país, e é duramente combatido pelas forças de segurança do regime; mesmo assim, realizam
atos terroristas contra representantes do governo. Apesar das contínuas perseguições, Bakr
faz esforço contínuo para que comunistas integrem o que denomina por Frente Patriótica
Nacional, uma coalizão de grupos progressistas, liderados pelo Baath, capaz de unir
politicamente o país contra “inimigos da revolução”. Os comunistas aderem em 1973, e
então têm sua atuação legalizada e permissão para desenvolverem suas atividades, mas em
menos de dois anos voltam a ser hostilizados e, no final da década, o partido praticamente
deixa de existir, já que a maioria de seus líderes havia se exilado.
Tripp acredita que a aproximação entre o Baath e os comunistas em razão da
necessidade do regime em obter mais apoio por parte da União Soviética, que já havia se
tornado o principal parceiro do país naquele momento; Bakr e Saddam buscam, também,
descobrir o tamanho da força do partido legalizando-o, a fim de que este pudesse
desenvolver suas atividades e, assim, tornar-se mais vulnerável às investigações das forças
de segurança do Estado, de tal forma que o PCI pudesse, então, ser eliminado27. Para
Aburish, a assinatura da Carta de Ação Nacional, que viabilizou a formação da parceria
entre os partidos, foi importante para que o Iraque adquirisse uma imagem democrática, o
que fortaleceria suas relações com grupos oposicionistas, e teve implicações positivas para
o governo, como a pressão soviética para que os curdos reduzissem a oposição ao regime28.
Para Sluglett, a pressão baathista para a conclusão de um acordo com os comunistas se
insere na questão curda, já que a crise com Barzani requeria o fortalecimento da liderança
do país, e os comunistas, com relações históricas com os curdos, seriam o parceiro ideal
para aquele fim29. Karsh entende que aproximação com PCI é puramente pragmática, já que
a penetração dos comunistas nos setores sociais mais pobres era vista como perigosa; não
havia, para ele, competição doutrinária entre os partidos30.
26 BATATU, pp. 1098.27 TRIPP, pp. 196.28 ABURISH, pp. 102.29 SLUGLETT, pp. 150.30 KARSH, pp. 45-47.
77
Hanna Batatu considera que o fim das opressões contra os próprios comunistas e
demais opositores foi a motivação para a assinatura do acordo, além do próprio contexto da
nacionalização do petróleo, vista pelo partido como grande salto progressista31. Makiya vê a
melhoria das relações entre Iraque e URSS, especialmente o Tratado de Amizade de 72
como incentivo para a formação da Frente32, assim como Aburish33. O afastamento entre os
partidos era dado, segundo Sluglett, tanto em razão do descontentamento de parte
considerável da classe média, que rechaçava o aumento da retórica socialista do regime
como pela repercussão excessivamente negativa das monarquias conservadoras do Golfo e
o Ocidente, em meio a um contexto de guinada da política externa isolacionista do país a
partir de meados da década34. Para Aburish, o afastamento e a conseqüente perseguição
implacável dos comunistas se deu tanto em razão das diferenças ideológicas entre os
partidos como na não mais necessidade por parte do governo em ter o apoio do grupo
esquerdista, já que a oposição curda havia sido controlada em 197535. Phebe Marr destaca
que a deterioração das relações entre o Iraque e os soviéticos e o subseqüente receio dos
baathistas em sofrerem um golpe levaram aos expurgos comunistas36.
ii. Os Curdos
Assim como perante os comunistas, a relação com os curdos, no âmbito
institucional era pautada pela busca de cooperação. Com o objetivo de alcançarem a
autonomia, os curdos apoiaram o golpe baathista; o novo regime, então, promete viabilizar
os acordos de 1966. Em razão de um forte faccionalismo curdo entre os grupos de Barzani
e Talabani, as negociações não avançam, e logo o clima de tensão se transforma em
conflito armado. Saddam Hussein desloca o apoio do governo de Talabani para Barzani, e
posteriormente consegue aprovar o Manifesto de Março de 1970, documento que estabelece
os mais amplos direitos curdos reconhecidos até então. Dentre os 15 pontos acordados,
havia o reconhecimento da autonomia curda nas províncias em que a etnia fosse maioria, a
garantia de representação proporcional dos curdos num futuro corpo legislativo, a eleição 31 BATATU, pp. 1106-1108.32 MAKIYA, pp. 231.33 ABURISH, pp. 102.34 SLUGLETT, pp. 150-151.35 ABURISH, pp. 123.36 MARR, pp. 171.
78
de um vice-presidente curdo, o reconhecimento da língua curda como oficial e a garantia do
direcionamento de lucros provenientes do petróleo no desenvolvimento regional; as
medidas teriam um prazo de quatro anos para serem cumpridas.37 Contudo, o Baath buscou
arabizar regiões curdas por meio do deslocamento populacional de xiitas do sul, e não
cumpriu o acordo. Hostilidades mútuas levaram à eclosão de uma guerra em larga escala a
partir de 1974, com muitas perdas para o exército iraquiano, principalmente devido à ajuda
iraniana aos revoltosos38. Em 06.75, Iraque e Irã assinam o Acordo de Algiers, que termina
com a ajuda iraniana aos curdos em troca de uma demarcação favorável ao Shah no Shatt
al-Arab, fronteira entre os países no sul. Com isso, o exército rapidamente acaba com a
resistência e, assim, com a guerra. No final da década, o regime implantaria sua versão da
autonomia concedida, e ainda realizaria uma grande alteração na composição social do
Curdistão, graças à deportação de centenas de milhares para outras regiões do país,
notadamente o sul, na busca de desmantelar definitivamente a oposição curda.39
Em geral, os autores convergem sobre as razões para que o governo tenha optado,
primeiramente, por uma resolução pacífica com os curdos (por meio do Manifesto). As
teses de Marr, sobre o receio de Saddam, que negociara o acordo, em fazer aumentar o
poder do exército que combatia no Curdistão (como acontecera em 1963, no primeiro
governo do Baath), além de seu desejo em acabar com o conflito devido ao receio de perder
aquela região para o Irã, já que este país continuamente apoiava os curdos40, são
amplamente aceitas. Sluglett tem a mesma concepção, embasando seu argumento no
entendimento de que o regime ainda era muito instável naquele momento, e que então o
acordo com os curdos seria mal menor41. Karsh enfatiza os cálculos pessoais de Saddam
dentro daquela conjuntura; uma vitória esmagadora dos militares diminuiria seu papel
dentro do governo; um impasse no conflito seria importante para descreditar Hardan al-
Tikriti, ministro da defesa à época. Contudo, isso poria em risco todo o regime, e então tais
considerações fariam com que optasse pelo acordo42. Aburish acredita que a falta de apoio
da União Soviética em patrocinar uma ofensiva definitiva do exército iraquiano contra os
curdos (em parte pelos contatos de Barzani com lideranças moscovitas) foi um fator 37 Idem, pp. 154-155.38 SLUGLETT, pp. 169-170.39 MARR, pp. 158.40 Idem, pp. 154.41 SLUGLETT, pp. 130-131.42 KARSH, pp. 71.
79
considerado por Saddam para buscar a paz43. Batatu vê os curdos como principal ameaça à
estabilidade do regime, o que teria levado a um acordo que, em sua visão, teria sido
amplamente desfavorável ao Baath44.
Sobre as razões para a assinatura do Acordo de Algiers, Marr45 aponta para três
fatores: 1. nem Irã, nem Iraque tinham o objetivo de aumentar conflito a ponto de causar
guerra aberta entre os países; 2. havia pressões por parte dos países árabes para uma maior
dedicação do Iraque ao combate a Israel, e a guerra com os curdos simplesmente impedia
esse auxílio; 3. o Shah iraniano temia que a rebelião aumentasse de tamanho e reverberasse
do lado iraniano, o que levaria a uma grande guerra civil interna. Karsh lista como
motivações preponderantes o receio de insurgência xiita, já que a base do exército era
formada por esse segmento e já havia morrido cerca de 60 mil soldados; havia ainda falta
de armamentos para o combate, o que simplesmente inviabilizava a continuação da guerra;
subseqüentemente, a guerra causava enormes gastos econômicos, que geravam receio de
crise46.
iii. Os Xiitas
A atividade política xiita ganhou vigor a partir da década de 50, principalmente
como sinal de rechaço ao grande aumento da penetração a ideologia comunista sobre os
xiitas47, especialmente aqueles que migraram para Bagdá nos anos 40-50 e haviam se
tornado o estrato social mais pobre do país. A organização mais forte que emergira foi a
Da’wa (“O Chamado Islâmico”), liderada por Muhammad Baqir al-Sadr, jovem clérigo que
se tornaria referência no mundo muçulmano por seus notáveis escritos filosóficos e
econômicos, em que critica o pensamento marxista sob a ótica islâmica48. Diferentemente
dos xiitas iranianos, porém, os iraquianos seguidores desse segmento tinham uma linha
mais quietista e apolítica49, e então os clérigos locais tendiam a criticar o ativismo político
43 ABURISH, pp. 86.44 BATATU, pp. 1094.45 MARR, pp. 156.46 KARSH, pp. 81.47 SOETERIK, Robert. The Islamic Movement of Iraq (1958-1980), pp. 6-8.48 SLUGLETT, pp. 196-197.49 DEMANT, pp. 243.
80
de Sadr. Contudo, o Da’wa ganha proeminência, e se torna a liderança da contestação
política ao secularismo do Baath nos anos 70.
As relações com o governo baathista são, desde o início, bastante tensas, já que s
xiitas foram um dos principais grupos perseguidos pelo regime durante os primeiros anos
do novo governo. Dentre as medidas utilizadas pelo governo para ampliar o controle sobre
a comunidade, as mais notáveis foram a intimidação dos peregrinos, a não mais isenção de
estudantes e funcionários religiosos da conscripção militar, o confisco da propriedade de
instituições religiosas, a deportação de iraquianos com suposta origem persa, além da
seguida prisão das famílias xiitas mais influentes, como a Hakim e a Yasin.50 Ainda sim, os
conflitos entre os xiitas e as forças governamentais ainda são de baixa magnitude.
A partir de 1974, porém, os xiitas passam a se tornar maior ameaça para estabilidade
do regime; o governo gradativamente restringe direitos das comunidades, inclusive as
habituais celebrações religiosas, o que leva, em 1977, a grandes conflitos entre população e
a polícia. Nesse ínterim, o regime baixa decretos que retiram a posse das terras dos ulemás,
aumentando sua dependência perante o Estado. Com a revolução iraniana em 02.79, a
insurgência xiita alcançaria níveis bastante superiores aos anteriores, abalando as estruturas
do regime, até então seguro pelo esmagamento das demais oposições (curdos e comunistas)
e pelo controle dos xiitas, especialmente por meio de grandes melhorias econômicas na
região, graças às enormes receitas do petróleo, e por algumas concessões políticas, como a
eleição de xiitas para o CCR em 1977.
Motivado pelo sucesso da revolução e pela ascensão de Ayatollah Khomeini no Irã,
Sadr, responsável pela composição da constituição do regime teocrático iraniano, realiza
campanhas massivas de exortação popular contra o regime, entendendo que haviam
condições objetivas de causar golpe similar ao ocorrido em Teerã, mas em solo iraquiano.
Até o momento da subida de Saddam Hussein ao poder, em 07.79, centenas de xiitas são
presos e mortos; Sadr e outros clérigos são seguidamente detidos e, devido ao clamor
popular, acabam liberados. Como será visto no próximo capítulo, somente em 1980 as
tensões seriam debeladas, mas com a contrapartida do conflito com o Irã.
Contudo, apesar da tese preponderante sobre a relação entre o governo e os xiitas
indicar, por parte do primeiro, um crescente sectarismo perante o segundo51, Peter e
50 SOETERIK, pp. 15-18.51 DEMANT, pp. 243.
81
Marion-Farouk Sluglett52 contestam essa afirmação. Para eles, não haveria nenhum
indicativo cabal de que o governo “sunita” dos anos 70 teria tentado privilegiar a
perspectiva sunita do Islã. Dessa maneira, a divisão fundamental no Iraque não se daria
entre xiitas e sunitas, mas sim entre pobres e ricos. Os autores atribuem a pobreza da
maioria dos xiitas aos mais ricos do próprio segmento, os líderes tribais que teriam
expropriado os demais a partir do momento em que a propriedade privada na região havia
sido instituída, ainda no final do século XIX, e também pelo distanciamento histórico entre
os xiitas e as instituições de Estado, em boa parte, de acordo com essa argumentação, com a
aversão religiosa àquela organização, intimamente relacionada ao secularismo nessa
perspectiva. Hipoteticamente, poder-se-ia entender, dessa forma, que o aumento sucessivo
de membros sunitas de Tikrit se daria não convicções ideológicas, mas sim por afinidades
pessoais, calcadas num senso tribal de lealdade e proximidade com os líderes do Baath.
c) O Aumento da Influência de Saddam Hussein
Paralelamente ao que costumou denominar a “baathização” do regime, seguia em
curso, principalmente após a segunda metade da década de 70, o que se chamou de
“saddamização” do partido Baath, levando, subseqüentemente, ao controle de Saddam e de
seus aliados das esferas de poder mais relevantes do país, até o momento da conquista de
poder em 07.79 após um golpe que preveniu o tio, mas atingiu centenas de membros do
Baath em todos os escalões.
A maioria dos estudiosos afirma que a relação entre Saddam e Bakr fora amistosa, e
que havia uma espécie de divisão de tarefas entre ambos: enquanto Saddam definia as
políticas e confrontava os adversários da dupla dentro da cúpula de poder, Bakr sancionava
as decisões e ganhava popularidade53. Mas, ao mesmo tempo, Saddam ampliava sua rede de
contatos e acesso a áreas estratégicas às quais não tinha acesso, principalmente o exército.
Também assume controle cada vez maior sobre o aparato de segurança e a cúpula do
partido. Aprofundando os ditames da lógica tribalista de controle do Estado (conforme
52 SLUGLETT, pp. 190-195.53 MARR, pp. 144-146.
82
visto na seção “A Rede de Clãs, o Clientelismo e a Patronagem”), coloca parentes próximos
em cargos relevantes desses setores estratégicos54.
Em seguida, amplia controle sobre o Comando Regional do Baath, indicando a
maioria de seus membros. Como será analisado mais tarde, isso teria fortes implicações
ideológicas no funcionamento do partido. Possivelmente, o golpe mais significativo se deu
com a determinação, em 1977, de que todos os membros do Comando Regional passariam
a fazer parte do CCR, o que significou, em resumo, a fusão entre partido e Estado e o fim
do Baath como um corpo independente55. Com a significativa ampliação de seu poder,
Saddam deixa de se conceder papel secundário no regime, e empreende uma intensa
campanha de culto de personalidade, preparando-se para assumir o poder com legitimidade
popular.
A tomada de poder viria em 16 de Julho de 1979, com a anunciação da resignação
de Bakr, alegando “problemas de saúde”. Logo a seguir, anunciaria a descoberta de uma
tentativa de golpe sírio, que utilizaria como pretexto para perseguir membros do partido, do
exército, da milícia popular, dos sindicatos, das associações estudantis e outros
departamentos56. Com isso, Saddam emergia como líder maior e, graças às perseguições,
sem oposições aparentes, tendo então liberdade cada vez maior para implantar sua visão
sobre o Estado iraquiano e todas as demais esferas, conforme centralizava o poder em si
durante os anos 80.
Para Karsh57, Saddam não ocupara o cargo de presidente desde 1974 por não sentir-
se preparado nem possuir a respeitabilidade pública e o prestígio de Bakr; dessa maneira,
seu tio era indispensável para que pudesse implementar sua estratégia de longo prazo
mantendo-se, em tese, impune perante os descontentes. Aburish considera que, até 1976,
Bakr poderia ter evitado que Saddam tomasse o seu lugar; contudo, as contínuas delegações
das funções mais importantes do país para o vice-presidente tornaram Bakr uma figura
meramente alegórica, responsável somente pela assinatura de documentos preparados por
Hussein58. Marr afirma que a transição de poder entre Bakr e Saddam resultou num
afastamento do último com relação aos instrumentos de deliberação do estado, como o
54 ABURISH, pp. 124-125.55 SLUGLETT, pp. 208.56 ABURISH, pp. 170.57 KARSH, pp. 85-89.58 ABURISH, pp. 125.
83
CCR, o Comando Regional do partido e o gabinete; o vice-presidente, ao colocar seus
aliados mais próximos nessas burocracias, também se inseriu acima delas, o que fez com
que elas se tornassem, assim como seu tio, apenas figuras decorativas, sem capacidade de
deliberação. Em contrapartida, Saddam passou a se aproximar da população, enquanto
iniciava uma intensa campanha de culto à sua personalidade.59
Existem diferentes interpretações sobre as motivações e razões do golpe de Saddam
em 1979. Conforme será visto na seção sobre política externa, Aburish60 considera o golpe
intimamente relacionado com a tentativa de unificação entre o Iraque e a Síria, entre 1978-
79, que lhe retiraria boa parte dos poderes. O autor também vê uma grande oposição de
elementos intra-partidários à ascensão de Saddam, o que então explicaria as grandes
perseguições do novo presidente a políticos de todos os níveis do governo e mesmo
indivíduos de fora dessa estrutura que, minimamente, contestassem sua figura. Uma das
razões para essa tensão se daria pela visão de alguns líderes do partido de que Saddam era
individualista e distante das ideologias do partido. Karsh também referenda a noção de
pouco comprometimento ideológico de Saddam com a doutrina baathista61, e explica a
subida de Hussein ao poder por este achar que Bakr não tinha os requisitos necessários para
conter o avanço do Irã revolucionário (e as repercussões internas, como as insurgências
xiitas) sobre o regime62.
2.) A Ideologia
Levando-se em conta o enorme problema histórico do Iraque moderno em adquirir
para si uma identidade nacional que apazigúe a persistência da forte tensão entre os
diversos grupos, temos como objetivo nesta seção identificar algumas das distintas linhas
ideológicas adotadas pelo regime e por Saddam Hussein que não tratem especificamente da
política externa e da economia (tratadas a seguir), e que tenham servido, de alguma
maneira, para se tentar criar uma coesão interna. Dentre os tópicos relevantes analisados
pelos especialistas, destacam-se as implicações da baathização-saddamização, a saber, a
centralização do regime e o culto de personalidade a Hussein (ainda antes de chegar ao
59MARR, pp. 151-152.60 ABURISH, pp. 168-174.61 KARSH, pp. 92.62 Idem, pp. 109-110.
84
poder – analisado no próximo capítulo), e o nacionalismo mesopotâmico, amplamente
tratado por Amatzia Baram63, e brevemente discutido nesta pesquisa.
a) O Autoritarismo do Regime
O aumento da violência praticada pelo regime, especialmente a partir da segunda
metade da década de 70, parece estar relacionado ao aumento da penetração das instituições
estatais e partidárias em todas as esferas da sociedade e no estímulo governamental para
que os cidadãos espiassem uns aos outros, a fim de continuar a “estabilidade da revolução”.
Sluglett aponta que o grande crescimento do Baath tornou cada vez mais difícil para que
indivíduos criticassem o governo e mesmo se envolvessem na política, o que fazia com que
muitas pessoas confinassem suas atividades somente a um círculo restrito de parentes e
amigos, dado o receio de perseguição por parte das onipresentes forças de segurança.64
Makiya também aponta para o desaparecimento do diálogo político no país, que levou, em
última instância, a penetração do Baath em todos os aspectos da vida teria levado à
destruição da personalidade pessoal dos iraquianos, apesar da dificuldade do partido em
penetrar nas redes de famílias, clãs e tribos, vistas como “autodefesa”.65
Aburish66 indica a eficiência dos sistemas de segurança, por meio dos contínuos
seqüestros de famílias na composição de grandes fissuras étnicas, religiosas e políticas,
presumivelmente pela consideração de que a ação intermitente da inteligência acabava por
rejeitar a formação de um senso de comunidade mínimo entre as pessoas, já que estas se
identificavam, subjetivamente, como espiãs. O autor interpreta que essas ações repressivas
eram vistas por Saddam como algo necessário para a modernização do país e sua liderança
regional, nos moldes em que pretendia Napoleão e, principalmente, Stalin.
Makiya, que enfatiza a enorme relevância dada pelo Baath na doutrinação dos
jovens, vistos como o “futuro da revolução”,67 desenvolve a tese de que o medo se
63 BARAM, Amatzia. Culture, History and Ideology on the Formation of Ba’thist Iraq; BARAM, Amatzia. “Re-inventing Nationalism in Ba’thi Iraq 1968-1994: Supra-Territorial and Territorial Identities and What Lies Below”.64 SLUGLETT, pp. 185.65 MAKIYA, 60-62; 104-106.66 ABURISH, pp. 125-128.67 MAKIYA, pp. 76-82
85
constituiu como o cimento social do regime68, já que todas as instituições, que contavam
com grande participação popular, realizavam a sua mediação com a sociedade por meio da
violência. Ao mesmo tempo, a fusão entre o partido e o Estado, que extinguia a sociedade
civil, concedia toda a legitimidade as ações do regime.
b) O Nacionalismo Mesopotâmico
Um aspecto ideológico bastante significativo, e visto como contraditório à noção
clássica do partido Baath sobre o pan-arabismo, foi a campanha sem precedentes que
buscou enfatizar a peculiaridade dos iraquianos perante os demais povos, inclusive os
árabes. Aburish destaca a esse esforço como parte da tentativa do regime em moldar uma
nova identidade social, especialmente para enfrentar o Irã69. Para Baram, a opção por essa
ideologia teria se dado, em parte, em razão do retumbante fracasso do primeiro regime
baathista (1963) em mobilizar a população, inclusive os xiitas, por meio de um radical pan-
arabismo e, por outro lado, na tentativa de criar um sistema de idéias que desse aos xiitas
um maior senso de igualdade para com os sunitas e de pertencimento à comunidade política
iraquiana, além de dar indicativo a estes e aos curdos de que seu futuro estava seguro, e que
o país não se dissolveria numa união árabe70.
A mobilização da população por meio de um pujante nacionalismo se dava por meio
de diversas esferas71: incentivo à arqueologia, a busca em indicar a relevância da história
antiga do país (incluindo era pré-islâmica), introdução de nomes, cerimônias e símbolos de
todas as épocas na vida política, administrativa e cultural do país, incentivo ao folclore, à
arte em geral, à arquitetura e mesmo aos currículos escolares. Todos esses elementos
traziam à tona um novo elemento, de caráter mesopotâmico, que amalgamava os feitos das
culturas antepassadas que habitaram o território iraquiano, e tinham o propósito de indicar
os iraquianos contemporâneos como herdeiros e prosseguidores desse enorme legado, e
como uma “raça” peculiar, distinta simplesmente dos árabes, ou do mesmo do segmento
muçulmano.
68 Idem, pp. 60.69 ABURISH, pp. 127.70 BARAM, pp. 7; 19-20; 24.71 Idem, pp. 25-26.
86
Com o folclore, buscava-se mostrar ao público, por meio de festivais anuais, a
imensa variedade de etnias que formam o corpo político iraquiano e uma única tradição
iraquiana, que precisava ser resgatada e preservada para demonstrar a peculiaridade do país
perante o mundo.72 Em cada região do país, os festivais realizados buscavam aproximar os
grupos locais da nova identidade que se pretendia criar; nesse sentido, o regime buscou dar
grande atenção às tradições curdas, incorporando-as às demais e exibindo-as em outras
províncias.73 Os artistas que buscavam emular obras das culturas antepassadas tinham
grandes vantagens financeiras e prestígio; as peças de teatro e as novelas da televisão eram
altamente politizadas.
A polêmica criada pela incorporação de culturas que não continham a priori o
elemento árabe, como os Babilônios ou os Assírios resultou, por um lado, em teses que
indicavam o componente étnico único dos iraquianos, que os distinguia dos sírios e dos
libaneses, e num posicionamento menos radical, que enfatizava somente a continuidade
cultural do país; dessa maneira, os árabes não eram vistos como uma etnia, mas sim como
uma cultura, somente a “última reencarnação” do legado iraquiano-mesopotâmico.74
Enquanto isso, o partido colocava-se a si mesmo como o líder dessa revolução cultural e
como aquele capaz de despertar a consciência popular sobre sua verdadeira história. A
partir da década de 80, essa ideologia guinaria para uma associação mais personalizada,
atrelando Saddam Hussein aos grandes líderes das culturas antepassadas; com isso,
conforme será visto mais adiante, realizava-se a amalgamação entre o culto de
personalidade e o nacionalismo mesopotâmico, o que teria efeitos diversos sobre a
população.
3.) Economia e Sociedade
O desenvolvimento econômico foi, possivelmente, um dos aspectos mais relevantes
em termos da transformação societal promovida pelo Baath. Medidas como a reforma
agrária e a nacionalização do petróleo tiveram, em geral, grande aceitação popular e
repercutiram em grandes modificações na estrutura social do Iraque. Com uma nova
72 Ibidem, pp. 33-34.73 Ibidem, pp. 54.74 Ibidem, pp. 97-99.
87
legislação trabalhista e social, que dava um novo tratamento às mulheres e dava prioridade
à educação, o regime pôde sobreviver politicamente e, especialmente após a ascendência de
Saddam Hussein ao poder, viabilizou um ambicioso programa militar, que teria
reverberações até a contemporaneidade. Nesta seção, buscaremos tratar das interpretações
essenciais sobre os tópicos mais relevantes mencionados.
a) Economia e Ideologia
Um dos temas de maior debate entre os estudiosos dentro do estudo sobre a
economia iraquiana se dá sobre a fórmula econômica adotada pelo regime. Peter Gran
entende que o governo Baath buscou, gradativamente, afastar-se do corporativismo dos
governos anteriores rumo a um neoliberalismo, passando por um período intermediário de
“liberalismo dirigido”, até o início da segunda metade da década de 7075. Karsh76 enxerga as
políticas econômicas adotadas pelo governo, principalmente a partir do momento em que
Hussein passa a ter maior controle sobre as instituições, como sendo uma das maneiras
mais eficazes de garantia a sobrevivência do Estado; nesse sentido, o estado continuamente
teria adaptado suas políticas às necessidades do momento para satisfazer as demandas
populares de bem estar e assim, para que seus governantes continuassem no poder. Com
isso, Saddam fazia uma interpretação populista do socialismo baathista, em que
paulatinamente liberalizava o setor econômico não só para, em tese, torná-lo mais eficiente,
mas principalmente para que fosse criada uma nova classe social, uma “burguesia
nacional”, cujos interesses econômicos transcenderiam linhas sectárias e que deveriam sua
ascensão ao próprio líder iraquiano.77
Phebe Marr, em contrapartida, entende que, de fato, o regime buscou atingir o
socialismo (ou ao menos um dirigismo estatal progressista), já que a participação do estado
na economia teria crescido de 31 para 80 por cento de 1968 a 1977; além disso, o Baath
dedicou especial atenção (conforme será visto a seguir) na reforma agrária por meio da
coletivização agrícola, e num controle planificado da economia, o que era visto por ela
como parte de uma agenda socialista.78 Tripp, contudo, vê as práticas baathistas como
75 GRAN, Peter. Beyond Eurocentrism, pp. 71-73.76 KARSH, pp. 89-94.77 Idem, pp. 92.78 MARR, pp. 162-163.
88
essencialmente populistas, e como parte do sistema patrimonialista implantado pelo
governo, em que se buscava cada vez mais tornar dependentes os setores sociais mais
estratégicos, como a classe média ascendente e os líderes tribais do interior e, ao mesmo
tempo, prejudicar os que eram vistos como inimigos do regime, como alguns grupos xiitas
e os estrangeiros, por meio do seqüestro dos bens.79 Sluglett80 entende que o partido não
estava comprometido em construir uma ordem socialista ou transformar as relações de
produção, mas sim desenvolver o sistema capitalista dentro do Iraque. O progressismo do
regime estava representado na tentativa de promover os princípios da igualdade jurídica e
da distribuição de renda; numa sociedade multifacetada, a aplicação destes projetos, sob a
rubrica do “socialismo árabe”, era uma das maneiras mais convincentes de atingir o apoio
popular da “vontade geral” da nação, o que permitia ao regime se manter no poder,
expandir suas estruturas e desenvolver seu plano de governo sem pressões oposicionistas.
b) A Nacionalização do Petróleo
Apesar da fundação da Companhia Nacional Iraquiana de Petróleo (CNIP) e da
formação de uma parceria com a URSS para a exploração dos campos do sul de Rumaila, o
país ainda estava extremamente dependente das receitas oriundas da exploração de petróleo
da estrangeira CIP (que representavam cerca de 80 % da receita total arrecadada pelo
governo entre 1959 e 1970)81. Por ter o petróleo como único grande produto para
exportação, a dependência do conglomerado multinacional continuava, e as pressões
governamentais no sentido de ampliar a produção daquele bem não repercutiam. O Iraque
continuava a ser bastante pobre, com uma renda per capita inferior a 120 dólares82. Sem
conseguir avançar nas negociações com a CIP em 1971, o governo iraquiano busca apoio
soviético para inaugurar a produção petrolífera em Rumaila, o que ocorrem em 04.1972.
Com isso, a CIP realiza um boicote de cinqüenta por cento da produção em Kirkuk, o que
leva o governo a nacionalizar a produção de petróleo em 1º de Junho do mesmo ano,
79 TRIPP, pp. 205-206.80 SLUGLETT, pp. 228.81 Idem, pp. 145.82 Idem, ibidem.
89
compensando a empresa estrangeira e removendo o último elemento de controle externo da
vida nacional do país.83
Dentre as razões que determinaram o sucesso de longo prazo da nacionalização,
Aburish destaca tanto o comprometimento da União Soviética em realizar grandes compras
de petróleo antes que a nacionalização fosse feita, como os acordos feitos por Saddam com
diversos países (como Itália e Brasil) no mesmo sentido, além da busca por uma relação
positiva com alguns dos países que faziam parte do consórcio estrangeiro, principalmente a
França.84 Tripp adiciona que as fortes medidas austeras do governo (como corte de
salários), também contribuíram para que a redução temporária das receitas obtidas não
atrapalhasse o plano; além disso, enfatiza o enorme poder de patronagem (graças ao
controle da estatal que passou a explorar o recurso natural) de que passaram a deter os
membros dos círculos de poder, o que ajudou a manter a estabilidade do país.85 Como os
demais autores, Sluglett menciona a nacionalização do petróleo como um dos atos mais
importantes da história moderna do Iraque, o que permitiu ao governo capitalizar
politicamente tal intervenção por muitos anos86. Finalmente, Marr destaca o contexto
externo altamente favorável, em razão do choque do petróleo de 1973, que quadruplicou o
preço do produto e permitiu um rápido acúmulo de capital por parte do governo87.
c) A Reforma Agrária
Desde a década de 1950, diversas reformas agrárias foram tentadas, tanto com o
objetivo de ampliar a produtividade e, com isso, melhorar as condições do campo como
para tentar romper com o poder político e social dos latifundiários que, em geral, também
eram líderes tribais. Quando o Baath assume o poder em 1968, as condições no campo
refletiam um imenso atraso88, o que contribuía para um contínuo processo de migração e
inchaço das cidades. Um dos problemas históricos identificados pela liderança era a
necessidade de pagamento das expropriações das terras, o que acarretava em enormes
gastos para o governo. Outro era a própria condição da terra, que se tornava cada vez mais 83 TRIPP, pp. 208.84 ABURISH, pp. 99-102.85 TRIPP, pp. 208.86 SLUGLETT, pp. 147.87 MARR, pp. 161.88 SLUGLETT, pp. 138.
90
improdutiva em razão da salinidade dos rios Tigre e Eufrates. Em 05.1969, o governo
decide acabar com as compensações aos proprietários pelo seqüestro das terras e, ainda, os
camponeses não mais precisariam pagar pela terra concedida pelo governo. No ano
seguinte, promulga uma vasta reforma agrária, estabelecendo o tamanho máximo das
propriedades de acordo com suas condições e sua produtividade, além de um sistema de
coletivização agrícola baseado em cooperativas e financiado com grande ajuda
governamental (especialmente por meio do barateamento dos insumos essenciais). Após
1975, o programa de distribuição de terras seria aprofundado, especialmente no norte, após
o término da guerra com os curdos89. Contudo, conforme será apresentado no próximo
capítulo, o regime passaria a adotar o sistema de pequenas propriedades individuais a partir
do início da década de 80.
Dentre as conseqüências dessa reforma, Sluglett aponta para a melhoria das
condições de vida dos camponeses, mas ainda com forte predomínio dos médios e grandes
proprietários; além disso, houve grande aumento do número de serviços públicos, como
saúde e educação – o que resultou, também, em grande penetração do estado no interior e a
subseqüente introjeção da doutrina baathista90. Tripp91 considera que a política adotada
tinha um caráter muito mais simbólico do que real, já que havia, em sua opinião, pouco
empenho do governo; também afirma que a produtividade agrícola continuou a cair,
forçando inclusive a importação de alimentos. Mais uma vez, a concessão de terras fora
usada como um importante trunfo político de relacionamento entre as elites, permitindo um
grande controle social do interior. Aburish considera que o que levou a mudança de um
sistema de propriedades para outro fora a não adaptação popular ao modelo mais próximo
do soviético.92 Karsh afirma que a gerência ineficaz dos recursos e a corrupção, presente
em todas as áreas do governo, afetaram o insucesso relativo da reforma agrária,
repercutindo no aumento da desigualdade social entre as áreas urbana e rural93. Batatu
entende que a reforma agrária foi um instrumento eficaz tanto na aproximação entre o
partido e as massas (gerando grande popularidade do Baath no campo) como em
modernizar e secularizar o estado, apesar dos contratempos ocorridos, inclusive o controle
89 MARR, pp. 163-164.90 SLUGLETT, pp. 138-139.91 TRIPP, pp. 205-207.92 ABURISH, pp. 113.93 KARSH, pp. 91.
91
do fluxo do rio Eufrates pela Síria nos anos de 1975-76 (num aparente ato de hostilidade ao
regime), que contribuiu para a redução da fertilidade do solo iraquiano, especialmente no
sul.94
d) O Desenvolvimento Econômico
O controle da produção e exportação do petróleo e os expressivos aumentos do
preço do petróleo em 1973 e 1979 permitiram a implantação de um programa de
desenvolvimento econômico sem precedentes na história moderna do Iraque, e um dos
maiores já implementados por um país do “terceiro mundo”95. As receitas foram
amplamente utilizadas para promover o surgimento de indústrias pesadas (como ferro, aço
e petroquímicas), o desenvolvimento de infra-estrutura (estradas, ferrovias, portos e
aeroportos), além de serviços públicos, como escolas, hospitais, eletricidade e telefonia. O
Produto Interno Bruto cresceu cerca de dez vezes no período 1968-79, e a Renda per Capita
elevou-se aproximadamente em 400 %.96 Mais especificamente no setor militar, o país
começou a desenvolver seu programa de desenvolvimento de armas não-convencionais, em
geral por meio de parcerias com empresas ocidentais, notadamente de países como Estados
Unidos, Alemanha e França.97
Os investimentos e a eliminação de impostos (além da gratuidade de todos os
serviços públicos98) repercutiram em notável transformação social, gerando grande
mobilidade entre as classes. Formou-se uma nova estrutura de classe99, com um estrato de
novos ricos (composto por locatários, empreendedores e outros intermediários), que se
beneficiou dos esforços do governo em incentivar o desenvolvimento do setor privado.
Houve crescimento da classe média, e a formação de grupos endógenos relacionados ao
processo de modernização do Estado (como profissionais liberais, acadêmicos,
engenheiros, médicos, funcionários públicos de alto escalão); também cresceu a classe
média trabalhadora, inclusive formada pela imigração crescente de trabalhadores
94 BATATU, pp. 1095-1096.95 ABURISH, pp. 107.96 SLUGLETT, pp. 232.97 ABURISH, pp. 106-108.98 MARR, pp. 164.99 Idem, pp. 167-168.
92
estrangeiros, principalmente egípcios100. Pela primeira vez, o setor urbano se tornava mais
preponderando do que o rural na composição demográfica do país. Porém, o programa de
desenvolvimento teve diversos revezes, e os estudiosos sobre o tema realizaram diversas
interpretações dessas falhas.
Efraim Karsh101 considera que a ineficiência, o gasto público mal empregado e a
corrupção fizeram com que as desigualdades sociais fossem pouco alteradas; de acordo
com seus dados, os cinco por cento mais pobres do país possuíam somente 0.6 por cento da
renda nacional, enquanto que os cinco por cento mais ricos ficavam com 22.9 por cento
daquele valor. Quatro milhões de pessoas ainda moravam em casas feitas com barro, e a
enorme migração para Bagdá tinha gerado favelas com quase dois milhões de habitantes.
Marr102 menciona que a era de prosperidade criou uma sociedade de consumo altamente
dependente dos empregos governamentais, já que o Estado se tornou o motor de
desenvolvimento nacional. De acordo com seus números, a porcentagem de funcionários
públicos nas cidades era equivalente a um terço de sua população total. Esse grande
aumento do setor de serviços teria negligenciado outras áreas importantes, como a indústria
de manufatura e a agricultura. Uma parcela excessiva da receita (30 por cento) teria sido
empregada em gastos militares. Finalmente, o governo falhou em diversificar a economia;
pelo contrário, o Iraque se tornou cada vez mais dependente do petróleo, apesar dos
esforços em se criar um setor industrial de grande porte. Sluglett critica a enorme
especulação imobiliária, que gerou um aumento substancial dos preços dos aluguéis das
casas; argumenta que a exploração do petróleo, totalmente monopolizada pelo Estado,
permitiu o enriquecimento de muitos dos parentes de Saddam e dos baathistas mais
poderosos, além do crescimento da força do próprio Estado, que se tornou capaz de
arregimentar forças de coerção e vigilância de enorme proporção (conforme visto na seção
“O Sistema de Segurança do Governo Baath”). Sobre a diversificação econômica, entende
que o abandono gradual dos investimentos no setor agrário foi um forte indicativo de que o
país não se encaminhava para um desenvolvimento sustentado, dada a própria
imprevisibilidade do mercado petrolífero.103
100 ABURISH, pp. 117.101 KARSH, pp. 91.102 MARR, pp. 164-166.103 SLUGLETT, pp. 227-254.
93
e) Reformas Legislativas, a Educação e a Condição da Mulher
O período 1968-79 também foi marcado por alterações significativas em aspectos
relevantes da cultura e sociedade iraquianas. A partir de 1973, passou a ser implementado
um programa educacional que visava erradicar o analfabetismo no país; a empreitada foi
acelerada em 1977 com a Campanha Nacional pela Educação Compulsória, que convocava
todos os homens e mulheres com idade entre 15 e 45 anos a aprenderem a ler e escrever; a
ausência aos desobedientes, porém, era a prisão.104 O programa contou com a participação
de cerca de dois milhões de pessoas num período de cinco anos, e seu sucesso implicou na
premiação pela UNESCO, que o colocou como modelo para outros países seguirem105. Boa
parte da burocracia governamental e dos meios de comunicação foi mobilizada para
viabilizar o ambicioso projeto, que contava ainda com o uso de diversos prédios públicos, a
construção de milhares de centros de alfabetização e a elaboração de escolas itinerantes.106
Atrelada à educação estava a condição da mulher, já que estas compunham boa
parte dos analfabetos do país. Com emendas na Lei de Status Pessoal, em 1978, colocava-
se fim aos casamentos forçados, retiravam-se o direitos dos homens dos clãs e das tribos
sobre as mulheres do grupo; foi permitido o ingresso das mulheres nas forças armadas, e
havia incentivos para que elas ingressassem no mercado de trabalho, principalmente no
setor produtivo.
Novas leis foram criadas, entre 1969 e 1971, regulando as condições de trabalho, a
criação de sindicatos, pensões e seguridade social. Foram estabelecidos salários mínimos, a
duração da jornada de trabalho, a proibição do trabalho infantil e da demissão sem justa
causa. Outras leis, em 1977, procuraram ajustar a cidadania iraquiana. Contrariamente aos
pressupostos clássicos de Estado-Nação, não havia definições sobre o povo em termos
étnicos, religiosos ou sectários. A cidadania se dava de acordo com a crença na revolução e
na mensagem baathista107. As deportações de xiitas de origem persa (ocorridas em 1979 e
1980), desta maneira, poderiam ser explicadas, de acordo com a doutrina do partido, não
por um senso sectário do regime, mas simplesmente por entender que haveria uma conexão
104 ABURISH, pp. 114.105 Idem, ibidem.106 MAKIYA, pp. 87.107 MAKIYA, pp. 132-135.
94
irresistível entre aquele grupo e os iranianos revolucionários, que eram, portanto, contrários
aos valores baathistas.
Para Makiya108, os esforços do governo em acabar com o analfabetismo só podem
ser entendidos diante do intento baathista em se formular uma nova sociedade, baseada
num modelo de identidade que evocasse um comportamento social leal e comprometido
com os valores do Baath; tratava-se, assim, de uma doutrinação ideológica de cunho
totalitário. Marr entende que os esforços na área da educação faziam parte da tendência
igualitária do regime109, assim como Karsh110, que vê nesses projetos e na tentativa de
emancipação da mulher atos decididamente progressistas, embora considere que a mudança
na Lei de Status Social tenha sido produto muito mais de um intento do Baath em substituir
o patriarcalismo como cultura social do que uma preocupação sincera com a histórica
submissão da mulher no mundo árabe. Nesse sentido, Kanan Makiya vê o esforço do
partido em colocar em prática sua própria versão do Islã e da modernidade, mas sem
romper definitivamente com o tradicionalismo existente, já que, em outras estruturas da
sociedade (principalmente as mais poderosas, como a chefia de empresas, o CCR e o
exército), o domínio masculino continuou a prevalecer111. Entretanto, Aburish112 crê que as
medidas do regime com relação ao gênero feminino foram significativas, principalmente se
comparadas com o conservadorismo no trato da questão por países como a Arábia Saudita;
todavia, considera também que o excesso de demanda por trabalho devido ao grande
desenvolvimento econômico também motivou esse rompimento com as leis islâmicas.
4. A Política Externa
A política externa iraquiana do período 1968-79 passou da defesa de um pan-
arabismo radical – que isolou o país nos seis primeiros anos do regime e o tornou altamente
dependente da União Soviética – para uma fase mais pragmática, conciliando-se com as
monarquias mais conservadoras e, por um breve momento, com a Síria. Secretamente, o
país realizava acordos comerciais com países europeus, que lhe forneciam a tecnologia
108 Idem, pp. 87-88.109 MARR, pp. 164.110 KARSH, pp. 90-94.111 MAKIya, pp. 91-93.112 ABURISH, pp. 115.
95
necessária para o desenvolvimento de seu programa nuclear em troca do acesso do mercado
iraquiano para as multinacionais estrangeiras. No final da década, o regime começaria a
enfrentar mais presentemente o desafio iraniano, que tentaria ser eliminado (conforme será
visto no próximo capítulo) militarmente. Nesta seção, buscaremos analisar as interpretações
principais sobre os eventos mais importantes e sobre as opções do país pelas linhas de
conduta externa adotadas.
a) O Pan-Arabismo Radical (1968-1974)
Dentro de um contexto internacional negativo para o mundo árabe (já que Israel
havia vencido, em 1967, a Guerra dos Seis Dias), o Iraque adotou uma retórica altamente
agressiva, de cunho antiimperialista e anti-sionista. Com a saída britânica do Golfo, em
1969, formaram-se pequenos e frágeis estados; os Estados Unidos inauguraram a Doutrina
Nixon, que favorecia apoio financeiro e militar a todos os países dispostos a defenderem a
segurança de sua região. Irã, Arábia Saudita, Omã e Bahrein aceitaram o auxílio. O Iraque,
que havia rompido suas relações com os EUA ainda em 1967, sentiu-se cercado, embora
tivesse mantido relações diplomáticas com aquelas monarquias. Para Phebe Marr, a adoção
de uma retórica hostil se ligava com a fragilidade do regime em duas maneiras: a busca pela
capitalização política do sentimento popular anti-EUA e anti-Israel, para que se criasse
minimamente uma coesão interna e para que a população desviasse sua atenção das
medidas repressoras aplicadas pelo governo; a percepção de que o país estava isolado
internacionalmente, e que então era necessário um distanciamento a tempo de fortalecer o
governo baathista.113
Nos anos de 1969-70, fracassou a tentativa de união do país com o Egito. Numa das
marcas da agressividade da política externa do período, o Iraque rejeitou a Resolução 242
da ONU (assinada pelo Egito), que clamava por uma resolução pacífica no trato da causa
Palestina. Aburish considera que não fora esse evento que distanciara os dois países, mas
sim a própria falta de vontade de dividir a soberania do país com os egípcios.114 Embora o
país buscasse se mostrar como o “campeão” da causa Palestina, o evento conhecido como
Setembro Negro – no qual o exército da Jordânia confrontou-se com os palestinos por estes
113 MARR, pp. 147.114 ABURISH, pp. 89.
96
utilizarem o território daquele país para atacarem Israel, o que era visto como uma ameaça
à estabilidade do estado jordaniano pelo Rei Hussein – foi indicativo, para a maioria dos
estudiosos, da predominância do caráter retórico do pan-arabismo advogado pelo Baath, já
que cerca de vinte mil soldados iraquianos estavam presentes na região do combate e
ficaram inertes ao combate, que resultou em milhares de palestinos mortos.115 Karsh
justifica a inação do exército do ponto de vista militar, já que o exército jordaniano seria, à
época, muito mais poderoso. A repercussão da inércia iraquiana gerou críticas sírias, já que
o país de Hafiz Asad tentou intervir a favor dos palestinos, o que, apesar da derrota, deu-lhe
uma vitória moral sobre o Iraque.116 Aburish afirma que os baathistas temiam por uma
retaliação ocidental no próprio território iraquiano, e que havia grande prioridade do regime
em se consolidar internamente antes de qualquer aventura estrangeira.117
Um dos maiores indicativos do isolamento internacional do regime se deu na Guerra
de Yom Kippur, em 1973. Egito e Síria, que planejaram o ataque a Israel, fizeram pouco
para incluir o Iraque na coalizão; durante a guerra, a situação não se alterou: informações
sobre a estratégia de combate não chegavam ao comando iraquiano, que fora rapidamente
derrotado; as negociações para o cessar-fogo não contaram com representantes iraquianos.
Contudo, a retórica anti-ocidental de Saddam Hussein, que clamou por um boicote total do
petróleo contra o ocidente; com a recusa dos países árabes, adotou uma política externa
independente com relação à exportação do produto, o que permitiu ao país acumular
grandes ganhos no período, enquanto continuava a criticar os acordos de paz feitos por
Egito e Síria.118
A União Soviética era vista pelo Iraque como o grande contrapeso ao ocidente nos
termos de uma parceria estratégica. A cooperação, iniciada ainda antes do governo Baath,
ampliou-se consideravelmente, primeiro com os acordos de exploração de campos de
petróleo em 1969, e depois com o Tratado de Cooperação e Amizade assinado em 04.1972,
que estabelecia parcerias em termos políticos, econômicos, técnicos e culturais; com isso, o
país pôde dar início ao desenvolvimento de seu programa bélico, que ganharia bastante
força a partir da segunda metade da década de 70. Karsh afirma que a relação não tinha
nenhuma veia ideológica, mas que serviu, no âmbito externo, para controlar as ações do Irã,
115 KARSH, pp. 58.116 Idem, pp. 59.117 ABURISH, pp. 90.118 ABURISH, pp. 105-106.
97
que temia a formação de um bloco socialista, e no âmbito interno, para melhorar as relações
com os comunistas e com os curdos.119
A relação com os demais países árabes, principalmente as monarquias mais
conservadoras, eram tensas. A Arábia Saudita rejeitava o apoio iraquiano ao Iêmen do Sul e
ao Iêmen do Norte, de caráter esquerdista, assim como o financiamento da Frente Popular
para a Liberação do Golfo Árabe Ocupado, uma organização marxista destinada a derrubar
regimes conservadores na região. 120 Com o Kuwait, a relação também foi conflituosa, em
parte por um esforço do regime em capitalizar internamente um eventual sentimento
nacionalista como também em razão das ameaças de ocupação iraquianas por interesses
econômicos e geo-estratégicos121 (principalmente em razão da reivindicação histórica de
soberania sobre as ilhas de Warba e Bubiyan, que ampliariam o acesso iraquiano ao Golfo
Pérsico).
b) A Política Externa Pragmática (1975-79)
A partir de 1975, o Iraque teve o curso de sua política externa bastante alterado.
Com o Acordo de Algiers (06.1975), melhorou as relações com o Irã; logo concluiria uma
série de acordos bilaterais com a Arábia Saudita, incluindo demarcações de fronteira, que
foram historicamente pontos de discórdia. Relações também melhoraram com algumas das
monarquias do Golfo, incluindo o Kuwait. Enquanto isso, o país buscava se afastar da
União Soviética (até o ponto de quase rompimento, em 1979, após o patrocínio da potência
socialista a um golpe esquerdista no Afeganistão e do apoio militar soviético à Etiópia
contra a Somália)122 e expandia seus parceiros comerciais, chegando à Europa e aos EUA
(apesar da continuação do rompimento diplomático). Com os acordos de Camp David, em
09.1978 (em que Israel e Egito cooperavam para um processo de paz, contra a vontade de
vários países árabes), o Iraque busca organizar um encontro em oposição àquela parceria;
simultaneamente, as relações com a Síria, um dos principais inimigos regionais, melhora
bastante, a ponto de se propor uma união entre os países. Todavia, não há grande progresso,
119 KARSH, pp. 75-76.120 MARR, pp. 147.121 KARSH, pp. 65-66.122 MARR, pp. 168.
98
e com o anúncio baathista da descoberta de um suposto golpe interno pró-sírio, as
divergências retornam.
Dentre as motivações para a guinada, Marr123 enfatiza o novo status econômico do
Iraque, graças às suas monumentais receitas oriundas do petróleo, que teriam levado o país
a diminuir o tom de seu discurso e a procurar fontes para suas necessidades, principalmente
em termos de serviços e tecnologias; daí a virada para o ocidente. Aburish124 entende que,
até 1974, o foco do regime fora exclusivamente o de consolidar-se internamente, buscando
afastar-se de comprometimentos externos. Após estabilizar minimamente a situação política
e econômica, o país buscou ampliar sua participação nas relações internacionais. Karsh
considera que a mudança ocorrida foi fruto da ascensão de Saddam Hussein a uma posição
de mais destaque no regime, o que teria lhe permitido formatar a política externa iraquiana
de maneira a dar proeminência regional a ele e ao país.125 Sluglett afirma que o contexto
internacional após 1973 produziu uma atmosfera de crescente pressão sobre o Iraque, de tal
forma que era necessário diminuir a retórica “extremista” de maneira a evitar rompimentos
externos ainda mais sérios.126 Baram relata que a mudança de política externa se deu em
razão do crescimento interno no Baath do grupo pragmático, liderado por Saddam, em
detrimento dos mais esquerdistas da ala civil e dos militares que, gradualmente, conseguiu
reduzir as oscilações e inconsistências do discurso de tal forma a direcionar as ações
externas a objetivos mais definidos, principalmente a liderança regional.127
O afastamento da União Soviética também é explicado sob diversas perspectivas.
Além da já mencionada128, explicada em termos do receio de um golpe pró-soviético em
território iraquiano, Sluglett129 vê o distanciamento em razão do objetivo iraquiano em
desenvolver seu programa de desenvolvimento o mais rápido possível, o que não seria
viável mantendo-se excessivamente atrelado à URSS, já que esta não possuía a tecnologia
sofisticada e a expertise necessária para empreender tal aceleração. Além disso, a
subseqüente procura pelo ocidente se dava pelo desejo iraquiano em diversificar sua fonte
de obtenção de armamentos, o que não teria sido possível até 1975, já que o exército
123 MARR, pp. 168.124 ABURISH, pp. 115.125 KARSH, pp. 100-101.126 SLUGLETT, pp. 201.127 BARAM, pp. 24-25.128 cf. nota 122. 129 SLUGLETT, pp. 180-181.
99
nacional estava comprometido em combater os curdos e simplesmente era inviável realizar
tal mudança. Tripp vê a mudança como uma necessidade natural do regime iraquiano, em
razão da capitalização de sua economia, que necessitava de bens cada vez mais variados, e
do próprio contexto de paz entre Irã e Iraque após a assinatura do Acordo de Algiers, que
diminuiu muito a relevância da União Soviética como um parceiro estratégico contra o
então inimigo persa.130 Aburish comenta que a aproximação com o ocidente só teria sido
possível com a percepção daqueles de que Hussein buscava realizar uma política de
priorização ao próprio Iraque, e não tentativas mais ousadas de pan-arabismo; além disso, a
visão do Iraque como um país radical e socialista por parte de europeus e norte-americanos
teria sido desconstruída com o desenvolvimento no Iraque de uma economia de mercado e
da diminuição das coletivizações agrícolas.131
A tentativa de união com a Síria é um dos tópicos controversos dentro do debate
acadêmico. Para Phebe Marr, a aproximação fazia parte do esforço feito por alguns países
do Oriente Médio em conter a détente, o que faria com que o apaziguamento das
hostilidades entre os países fosse um fenômeno temporário.132 Karsh entende que a
aproximação entre os países fazia parte do plano de Saddam em colocar-se como o líder
regional do mundo árabe (já que a repercussão da política externa do Egito fora negativa) e
do intento de, finalmente, fazer com que a Síria, receando uma ofensiva israelense, desse
mostras de sua submissão por meio de uma união com o Iraque.133 Além do colocado por
Karsh, Tripp comenta que a união com a Síria daria ao Iraque um papel central no trato da
crise árabe-israelense, o que significaria, definitivamente, a ascensão de Saddam como líder
do mundo árabe, muito embora o autor afirme a idéia de união jamais fora levada a sério
pelos países, tendo servido como um instrumento retórico durante aquele momento
histórico.134 Aburish, porém, fornece uma explicação absolutamente diferente: a idéia de
união com a Síria fora a última tentativa de Bakr em impedir a ascensão do sobrinho ao
poder. Isso porque a união daria a ele, Hasan, a presidência, e a Assad, o segundo posto;
Saddam, nesse contexto, perderia boa parte do controle que tinha sobre o país naquele
momento. Segundo o próprio autor, Assad não teria aceitado o plano por imaginar que
130 TRIPP, pp. 215.131 ABURISH, pp. 163-164.132 MARR, pp. 169.133 KARSH, pp. 103.134 TRIPP, pp. 219-220.
100
Saddam poderia dar um golpe em Bakr antes da união de fato, o que poria em risco o
próprio controle dos recursos sírios.135
Nesse contexto de insucesso do plano, conforme visto, Saddam utilizaria uma
suposta tentativa de golpe sírio para viabilizar uma substantiva perseguição aos elementos
do partido e do governo que tivesse qualquer entusiasmo com a união, ou que mesmo
discordassem de sua subida ao poder ou de suas opções políticas. No final da década,
Saddam Hussein emergiria, assim, como presidente do Iraque, e dispondo de recursos e de
capacidade de influência em todos os setores e esferas do país que lhes permitiriam um
controle cada vez maior do país e a possibilidade de seguir, inclusive por via militar, um
projeto de desenvolvimento nacional capaz de colocar o país como um dos mais relevantes
no âmbito regional e, inclusive, dentre todos aqueles que recebiam o título de “terceiro-
mundistas”.
c) A Revisão do Conceito de Pan-Arabismo136
No decorrer da década, o partido não só alterou a perspectiva de sua política
externa, mas também a sua própria visão sobre o que significaria uma união árabe. No final
da década, a relação entre uma ideologia interna marcada pela busca de uma identidade
iraquiana e uma retórica externa pan-arabista não se tornou mais tão descolada. Conforme
aponta Baram, a perspectiva original apontava para um futuro estado árabe em que se
fundiam as regionalidades, formando então uma nova sociedade; contudo, a discussão
específica sobre o formato exato dessa união não fora discutido. Uma das tendências, a de
preservar os regionalismos, era vista como um vestígio burguês; reconhecia-se, contudo, a
necessidade da aplicação da descentralização, para que a democracia socialista fosse viável.
Outra visão já destacava a necessidade de federação, sem divisão geográfica, mas sim
econômica, para fortalecer regiões com problemas específicos. Com o desenvolvimento
econômico do país e a ascensão de Saddam Hussein ao poder, porém, passou-se a irradiar o
entendimento de que a situação local e suas peculiaridades não são fraquezas de uma nação;
pelo contrário, são atributos importantes, que uma amalgamação poderia por em risco.
Cada vez mais transparecia nos discursos a idéia de uma federação árabe, composta por
135 ABURISH, pp. 164-166.136 BARAM, pp. 117-121.
101
partes que, gradativamente, cooperariam sob o formato pan-arabista. Contudo, essa união
teria uma liderança, expressa exatamente pelo Iraque de Saddam137, que começava a
conquistar um status de “herói das massas árabes”.138 Na próxima década, o discurso se
tornaria ainda mais voltado para dentro, num crescente abandono do ideário pan-arabista,
apesar de uma certa manutenção de sua retórica.
137 MARR, pp. 170.138 ABURISH, pp. 117.
102
CAPÍTULO 4 – O Período 1980-1988
O novo regime, que emergiria a partir do final de 1979, controlaria um país que
havia crescido enormemente durante a década, com a contrapartida de um sistema de
repressão que desmobilizou quase toda a oposição. A estabilidade interna e a proeminência
do país nas relações internacionais seriam abaladas pela emergência do Irã, que se tornou,
então, o maior desafio para o regime Baath até então.
Saddam Hussein, que esperava derrotar o inimigo em três semanas, teve de esperar
oito anos até fazê-lo, com custos enormes. As perdas de centenas de milhares de soldados
representaram a perda de uma geração inteira de iraquianos; os contínuos gastos
econômicos encerraram a grande onda de prosperidade econômica, forçando uma grande
austeridade e o emprego de políticas neoliberais. A instabilidade política gerada pela guerra
forçou um aumento ainda maior da centralização política em elementos cada vez mais
próximos de Saddam e distantes da população; apesar dos grandes gastos governamentais
para a promoção do culto de personalidade ao presidente, sua imagem sofreria revezes ao
final do conflito. O contexto da guerra permitira uma aproximação ainda maior com o
Ocidente, viabilizando a continuação do programa de desenvolvimento de tecnologia
nuclear e de armas não convencionais, mas o regime voltaria a encontrar-se isolado ao final
de 1988.
Neste capítulo, buscaremos analisar os desenvolvimentos gerais da guerra: suas
motivações, seus efeitos sobre a população iraquiana, sobre o regime, as implicações
econômicas, as repercussões para as minorias, as linhas de política econômica adotadas, o
foco ideológico-cultural do regime e as linhas de política externa adotadas. O objetivo do
texto será o de realizar uma análise comparativa das diferentes interpretações dos
acadêmicos sobre os temas abordados, a fim de se compreender a complexidade dos
eventos em estudo.
1. A Guerra Irã-Iraque
103
O estudo do conflito é geralmente dividido em quatro fases: a ofensiva iraquiana
(1980-1982), que permitiu o país avançar algumas dezenas de quilômetros dentro do
território persa; a ofensiva iraniana (1982), que expulsou o exército iraquiano de seu
território e começou a avançar para o lado ocidental do Shatt al-Arab, região fluvial que
separa ambos os países ao sul; o impasse (1983-1986), em que cada país alcançou vitórias
nas batalhas, mas não o suficiente para que os rumos da guerra fossem alterados; a
internacionalização da guerra e a preponderância iraquiana (1986-1988), em que, com o
aumento e, por vezes, com o envolvimento de potências ocidentais, o Iraque conseguiu
vitórias sucessivas até a saída do exército iraniano e a declaração do cessar-fogo. Nesta
seção, procuraremos investigar o contexto e as motivações para o conflito, além dos
desenvolvimentos históricos de cada sub-período mencionado.
a) O Contexto Regional e as Relações Bilaterais
Historicamente, as relações entre Irã e Iraque em geral sempre foram tensas1; ainda
antes da formação dos dois estados, o Império Otomano e os Safávidas disputavam zonas
territoriais na região do Shatt al-Arab e na zona central mesopotâmica. Com a descoberta
de petróleo na região, inicia-se a interferência por parte das potências estrangeiras. Acordos
fronteiriços, como o Protocolo de Constantinopla, de 1913, e o Tratado de Saadabad, de
1937, privilegiam interesses externos, como a abertura do Shatt para a navegação de todos
os países. Após a tentativa frustrada iraniana, no governo Mossadegh (1951-53) de seguir
uma política externa mais independente, o Shah Reza Pahlevi, pró-EUA, ocupa o poder e,
gradualmente, busca tornar o país uma potência regional. Dentro desse projeto, abroga o
tratado de 1937 em 04.1969, e apóia a insurgência curda no Iraque. A continuidade da crise
interna leva à aprovação do Acordo de Algiers, em que o governo iraquiano concede uma
zona territorial no sul do país aos iranianos. A tensão diminui temporariamente, mas a
Revolução Iraniana de 1979 e a subida ao poder de Ayatollah Khomeini (que passara
exilado treze anos em Najaf, no sul do Iraque) desequilibram novamente a détente entre os
países fronteiriços.
1 HIRO, Dilip. The Longest War: The Iran-Iraq Military Conflict, pp. 8-18.
104
Apesar dos esforços de Bakr e Saddam em travarem uma relação amistosa com o
novo regime, desde o início Khomeini se mostra hostil perante o governo iraquiano. O líder
iraniano, defensor de um regime formado por juristas teólogos, tinha total aversão ao
regime secular do Baath, considerado herético2. Os revolucionários de Teerã, após a
consecução do golpe interno, pretendiam em sua visão, libertar as populações reprimidas
em estados considerados corruptos (as monarquias) e ateus (seculares). O Iraque era visto
como primeiro alvo não só pelo caráter pouco islâmico de seu regime, mas também pela
opressão sofrida pela maioria xiita do país, a existência de seis santuários xiitas no país 3, e
mesmo a consideração de que o regime de Saddam era o maior opositor geopolítico à
ascensão iraniana4. O aspecto mais significativo da relação entre os países e o contexto
regional era o de que, até então, a monarquia conservadora iraniana era vista, especialmente
pelo ocidente, como a responsável pela estabilidade da região, enquanto que o Iraque
baathista, com sua retórica socialista e sua aproximação com a União Soviética e os países
do leste europeu era, até então, a maior ameaça à harmonia do Oriente Médio5. Contudo, a
revolução iraniana desequilibrou e inverteu permanentemente esse quadro, de tal forma que
a segurança das monarquias da região (pró-Estados Unidos), passou a estar em risco, e a
guerra o mecanismo viável de defesa.
Conforme será visto mais especificamente na seção sobre os xiitas, o Irã
revolucionário manterá firmes contatos com a Da’wa de Sadr, que promoverá seguidas
insurgências xiitas entre 1979 e 1980, e buscará reavivar a oposição curda. Saddam
Hussein, por seu turno, receberá ajuda de membros do antigo regime iraniano, que lhe
fornecerá informações sobre a situação de Teerã; o governo iraquiano também patrocinaria
uma tentativa de golpe militar em 07.80, mas não obtém sucesso. Nesse contexto, em que
as tensões se convertem em escaramuças diárias entre os países na fronteira, Hussein opta
pela guerra como maneira de resolver a crise, denunciando o Acordo de Algiers de 1975 e
atacando veementemente aviões iranianos em 22 de Setembro de 1980, dando início à
guerra.
b) Razões, Objetivos e Motivações para a Realização da Guerra
2 ABURISH, pp. 191.3 HIRO, pp. 28.4 KARSH, pp. 138.5 HIRO, pp. 28.
105
O estudo das razões e motivações para a escolha da guerra por Saddam Hussein
como maneira de enfrentar o Irã é um dos temas mais abordados pelos especialistas em
Oriente Médio. Oposições históricas em termos culturais e políticos foram, em geral,
levantados como motivações clássicas para o conflito, mas a maioria dos autores se
reportou a analisar as condições materiais do conflito.
Marr afirma que a opção iraquiana pela guerra foi um ato de oportunismo, já que os
contatos iranianos anti-Khomeini informavam que o novo regime estava fraturado, sem
apoio do exército e isolado internacionalmente (em especial devido ao seqüestro da
embaixada norte-americana em Teerã, ainda em 1979). Saddam teria objetivado, então,
recuperar os territórios perdidos em 1975 e, eventualmente, derrubar o regime iraniano,
além de “liberar” o Khuzistão, região com considerável minoria árabe no Irã.6 Sluglett
aponta, além das considerações mencionadas, o desejo de Saddam em se colocar como o
líder regional mais importante do mundo árabe; o autor também acredita que a guerra era
do interesse dos Estados Unidos e das monarquias do Golfo, de tal forma que, com uma
eventual vitória, o Iraque conseguiria manter relações privilegiadas com esses países.7
Charles Tripp enxerga a situação iraniana similar à do Iraque nos primeiros anos do
segundo governo Baath, nos quais o regime ainda consolidava seu poder e fora forçado a
realizar concessões ao Irã para manter-se no poder. Para o autor, Saddam não objetivava
somente revisar somente os acordos feitos com o Irã: ele buscava manter a aliança com boa
parte dos setores sunitas de sua população, cujo apoio permitia a manutenção das redes de
clientelismo que sustentavam o regime; a guerra com o Irã também era uma maneira de
mostrar comprometimento com a causa árabe sem se enredar com a Síria; finalmente, por
colocar-se como o “protetor do Golfo”, o Iraque poderia conseguir concessões históricas do
Kuwait (principalmente no aspecto territorial), que lhe permitiriam desenvolver seus portos
na região.8
Aburish vê a querela sob uma perspectiva diferente: para ele, em termos
intelectuais, tratava-se de uma guerra pautada sob a dicotomia Estado (Iraque) versus
Religião (Irã)9. Dessa maneira, o choque representava o embate entre uma visão sobre a
6 MARR, pp. 182-183.7 SLUGLETT, pp. 257.8 TRIPP, pp. 231-232.9 ABURISH, pp. 192.
106
modernidade e outra sobre a tradição. Karsh, sob outra perspectiva, entende que Saddam
não tinha aspirações que não a contenção da ameaça iraniana à sua própria sobrevivência
política. Assim, a decisão de ir à guerra não buscaria um “grande desígnio” como a
liderança árabe, mas sim a manutenção de seu regime e mesmo da integridade do país, dado
o risco de desintegração xiita e curda.10 Hiro atesta, da mesma forma que Karsh, que a
liderança iraquiana temia por uma guerra civil interna, mas também que o país tinha
aspirações à liderança do mundo árabe. A escolha daquela data para o ataque se dava pelo
entendimento de que, ainda antes das eleições, os EUA poderiam resolver a crise com o Irã,
e então regime revolucionário já não seria mais tão vulnerável.11
Makiya desconsidera todas as explicações clássicas para a guerra, inclusive as
baseadas na busca de expansão territorial e as motivadas pelo receio de guerra civil. Para
ele, a insurgência xiita interna não fora um produto da revolução iraniana, mas sim do
acúmulo de tensões entre xiitas e sunitas, graças ao sectarismo produzido pelo Baath; além
disso, as organizações políticas xiitas, como o Da’wa, haviam sido destruídas antes do
início da guerra. A disputa territorial não teria sido causa da guerra, em sua opinião, porque
aquele não seria o atributo fundamental da relação entre os países, como ocorreria, de
acordo com ele, entre israelenses e palestinos. Para o autor, não seria possível
“racionalizar” sobre as motivações da guerra, já que a decisão por realizá-la havia sido
fruto unicamente das percepções “megalomaníacas” de Saddam; contudo, logo em seguida
aponta o desejo de Saddam de se tornar o maior líder da história do mundo árabe como
eventual razão para suas opções políticas, incluindo-se, aí, a guerra.12 Demant afirma que as
elites árabes temiam mais o islamismo do Irã do que o imperialismo pan-arabista advogado
pelo Iraque, o que teria repercutido no apoio das monarquias da região a Saddam Hussein;
também entende que nenhum esforço diplomático foi feito para diminuir as tensões entre os
países.13 Finalmente, Peter Gran concebe a guerra como um esforço contínuo do regime de
Saddam em controlar as classes média e baixa para manter um controle social capaz de
prolongar o liberalismo econômico do regime.14
10 KARSH, pp. 147-148.11 HIRO, pp. 37-38.12 MAKIYA, pp. 262-273.13 DEMANT, pp. 119.14 GRAN, pp. 73.
107
c) A Estratégia do Exército Iraquiano
A análise da estratégia empregada pelo exército iraquiano no início da guerra contra
o Irã também pode ser um indicativo dos objetivos de Saddam Hussein. Charles Tripp
afirma que a liderança militar buscava empreender uma guerra limitada, que funcionaria
como uma demonstração de força capaz de forçar o governo iraniano a negociar
rapidamente pelo fim das hostilidades, de forma a reconhecer a superioridade do Iraque no
equilíbrio de poder regional.15 Aburish menciona que os ataques funcionariam como uma
emulação do blitzkrieg israelense de 1967, para causar a rendição de Khomeini em poucos
dias.16 Karsh considera que a limitação dos objetivos e dos alvos do exército fora um
indicativo da relutância com que Saddam teria optado pela guerra.17
d) A Primeira Fase (1980-1981): Ofensiva Iraquiana
De fato, o exército iraquiano concentrou suas forças no sul da fronteira entre os
países, buscando primeiramente destruir os aviões iranianos para em seguida avançar com o
exército, especialmente por meio do Khuzistão, aonde Saddam considerava mais fácil
atravessar, dada a suposta aprovação pela população árabe que vivia naquela região. O
Iraque consegue vitórias sucessivas na primeira semana do conflito, mas logo pára ao se
aproximar de cidades mais relevantes daquela província iraniana. Saddam menciona
vontade de cessar-fogo, o que é rechaçado pelo Irã. Dentre as razões para a tentativa de
encerrar o conflito, estava não somente o propósito de forçar o Irã a realizar concessões,
mas também o receio de causar excessivas perdas militares, que certamente repercutiriam
negativamente na zona xiita, e a própria capacidade do exército em manter longas linhas de
comunicação dentro do território iraniano.18
Os avanços iraquianos eram cada vez mais lentos, apesar da superioridade de suas
forças armadas. Com um mês, os iranianos começaram a reverter a desvantagem, e durante
o ano de 1981 o exército do Iraque gradualmente foi forçado a recuar, ainda dentro do
15 TRIPP, pp. 232-233.16 ABURISH, pp. 195.17 KARSH, pp. 148.18 MARR, pp. 185.
108
território iraniano. Em 05.1982, porém, o Irã conseguiu recuperar praticamente todo o seu
território, forçando o retorno iraquiano para dentro de sua fronteira.
i. Os Erros e os Problemas na Estratégia de Saddam Hussein
Vários erros estratégicos repercutiram no insucesso do exército iraquiano em atingir
os objetivos políticos que o regime almejara para iniciar a guerra. Além das peculiaridades
geográficas (com um território três vezes maior do que o Iraque) e demográficas (com uma
população quatro vezes maior do que a iraniana) do Irã, as informações dadas pelos
opositores antes do início da guerra mostraram-se infundadas, já que o exército iraniano se
mostrou mais forte, mais unido e mais bem equipado do que se previra19; o exército
iraquiano era bem menos competente do que se calculara20; o comportamento dos xiitas
dentro do território iraquiano (melhor discutido na seção sobre os xiitas) demonstrou que
Saddam teria reagido de maneira exagerada ao iniciar guerra caso realmente a tivesse
concebido para evitar guerra civil interna21; a própria tática de contenção do exército
enquanto se realizavam vitórias sucessivas também permitiu a reorganização das forças
iranianas e o início da contra-ofensiva22; isso incluía mesmo a desorganização na escolha
dos alvos durante as batalhas e na coordenação das operações terra-ar, além da excessiva
centralização das decisões, inclusive as operacionais, nas mãos de Saddam, o que repercutia
em ineficiência nos conflitos23. Makiya, porém, contesta a tese de que Saddam teria
buscado poupar o exército para diminuir perdas que poderiam gerar críticas xiitas ou
porque Iraque possuía população bastante inferior à iraniana. Em sua opinião. a
consideração de que o país era formatado pelo medo fazia com que, num confronto direto
entre soldados iraquianos e iranianos, os primeiros desertariam rapidamente, já que o
cimento social iraquiano seria, em realidade, muito frágil, repercutindo na alta
vulnerabilidade das tropas.24 Gradualmente, o exército iraquiano, com o aumento das
derrotas, teve sua moral diminuída, e então o Irã, apesar das perdas humanas superiores,
conseguiu expelir o rival de seu território, dando início à segunda fase da guerra.19 ABURISH, pp. 196.20 TRIPP, pp. 233.21 SLUGLETT, pp. 257.22 KARSH, pp. 148.23 HIRO, pp. 47.24 MAKIYA, pp. 277-278.
109
e) A Segunda Fase: Ofensiva Iraniana (1982)
Apesar dos esforços de Saddam Hussein em causar um cessar-fogo (inclusive com o
patrocínio de um ato terrorista, em 06.1982, contra o embaixador israelense na Inglaterra,
com o objetivo de, com a esperada retaliação de Israel contra os palestinos no Líbano, parar
a guerra para o combate aos “sionistas”25), o Irã mantém sua ofensiva mesmo após a
retirada do exército iraquiano para dentro de seu próprio território. Apesar de esforços de
mediação de grupos externos, como o Conselho de Cooperação do Golfo, Khomeini afirma
que a guerra somente cessaria após o pagamento de indenizações pelo Iraque no valor de
150 bilhões de dólares26, o que é rejeitado por Saddam Hussein. A partir da segunda metade
de 1982, o exército iraniano avançaria para dentro do território iraquiano; a tática iraniana
de atacar as forças iraquianas com ondas humanas continua. O objetivo estratégico era o de
cortar a linha de comunicações entre Basra e Bagdá, para então avançar até a capital
iraquiana e derrubar o presidente iraquiano.27 A decisão iraniana de continuar a guerra
representou uma vitória da linha-dura interna, que acreditava poder usar os campos
iraquianos da região fronteiriça como fonte de barganha28. A razão principal vista pelos
autores para a continuidade da guerra era, no entanto, o receio de que o fim da mesma
repercutiria na perda da coesão interna, o que poderia levar a uma guerra civil e mesmo ao
fim do regime revolucionário29. Desde o início da guerra, Khomeini havia conseguido
mobilizar parcelas cada vez maiores da sociedade, enquanto eliminava seus oponentes
internos e diminuía as lutas de poder palacianas. Com a continuidade do conflito, poderia
manter o controle sobre a população, enquanto desestabilizava o inimigo.
f) O Impasse (1983-1986)
Apesar das vitórias iniciais iranianas, logo a defesa montada pelo exército iraquiano
se mostrou um adversário difícil de ser superado. O quadro se tornou semelhante ao que
25 ABURISH, pp. 211.26 KARSH, pp. 157.27 TRIPP, pp. 236.28 HIRO, pp. 86.29 KARSH, pp. 149.
110
ocorrera ainda no Irã entre 1981-1982, com conquistas incapazes de alterar dramaticamente
o curso da disputa. Saddam Hussein buscava mobilizar cada vez mais apoio externo e
empréstimos para alimentar a máquina de guerra; o Irã conseguia se manter sem,
praticamente, nenhum apoio estrangeiro, por meio de grande austeridade econômica e
manutenção das exportações, já que o Iraque havia sido pouco eficiente em destruir os
campos de petróleo iranianos. Os esforços de paz por parte de países da região, como a
Arábia Saudita (que propõe um plano de indenização ao Irã na ordem de 70 bilhões de
dólares, mas aquele o rejeita)30, e por organizações internacionais, como as Nações Unidas,
são rechaçados pelos iranianos, apesar da continuidade do impasse.
Um aspecto importante do conflito nesse momento é o de que os soldados
iraquianos, quando passaram a lutar dentro de seu próprio território, ganharam moral
elevada31. O início do uso de armas químicas pelo exército iraquiano, a partir de 1984,32
também foi um dos responsáveis pela contenção das tropas iranianas, que passaram a lutar
de maneira mais cautelosa. Para Aburish, a falta de um apoio decisivo externo a um dos
lados (apesar da tácita preferência da maioria dos países por uma vitória iraquiana,
conforme será mais bem analisado na seção de política externa) foi um dos principais
motivos para o impasse do período, apesar da superioridade do exército iraquiano e das
táticas de Saddam em cooptar elementos anti-Khomeini, especialmente dentro das forças
armadas iranianas.33 Makiya vê o impasse como conjuntural àquela guerra: a falta de
estratégia teria sido o padrão da disputa entre ambos os países, com nenhum lado sendo
capaz de precisar as fraquezas e forças do adversário, afora a inabilidade das tropas em
lidar com os equipamentos utilizados.34 Sluglett vê a pacificação dos mercados de petróleo
mundiais durante a guerra (após a extremamente tensa década de 70, com aumentos
contínuos dos preços daquele produto) como uma motivação para que não houvesse
grandes pressões para o fim do conflito e, portanto, a ajuda dos países ocidentais e árabes
não se tornara decisiva até a segunda metade da década.35
g) A Internacionalização da Guerra e a Vitória Iraquiana (1986-1988)30 HIRO, pp. 91.31 MARR, pp. 186.32 Idem, ibidem.33 ABURISH, pp. 227-231.34 MAKIYA, pp. 280-281.35 SLUGLETT, pp. 265-266.
111
Desde 1984, Saddam Hussein busca mudar a tática de combate, de forma a trazer
para a arena de disputa países do Ocidente e da região que apoiavam marginalmente o
Iraque. Com esse propósito e o de afetar mais decisivamente as exportações de petróleo
iranianas36 que a força aérea iraquiana passa a atacar os navios petroleiros iranianos no
Golfo, dando início ao que ficaria conhecido como “Guerra dos Petroleiros”. Como o
Iraque exportava seu petróleo por meio da Turquia, o Irã retaliou por meio de ataques a
navios de aliados, notadamente o Kuwait, que então pediu proteção aos EUA e URSS.37
Uma bem sucedida ofensiva iraniana, em 02.1986, consegue conquistar Fao, imprimindo
aos iraquianos a maior derrota da guerra. Contudo, com o crescente apoio dos Estados
Unidos, o exército de Saddam consegue retomar o controle da cidade em 04.1988. 38 Outra
tática empregada pela liderança militar foi o que se denominou “Guerra das Cidades”, na
qual o Iraque atacava cidades importantes do Irã (inclusive sua capital) com mísseis
balísticos, com o propósito de causar uma comoção dentro do território persa capaz de
forçar Khomeini a um cessar fogo39. Com o aumento da repercussão internacional sobre o
uso iraquiano de armas químicas (especialmente no combate às tropas inimigas no
Curdistão, conforme será visto na seção sobre os curdos), a reação cada vez mais
atemorizada da população civil iraniana foi, de fato, um forte componente para o
enfraquecimento do exército e de Khomeini40. O exército iraquiano passou a colecionar
vitórias, penetrando inclusive no território iraniano. O Irã, com muitos problemas para
convocar voluntários para o front41, com inferioridade cada vez mais acentuada com relação
ao equipamento militar iraquiano (já que este contava com envio de armas de 29 países,
embora a maioria declarasse neutralidade)42, e com uma população civil cada vez mais
descontente com a guerra (dado o grande número de mortos e a crise econômica)43, passou
a considerar um cessar-fogo, que viria em 17 de Julho de 1988, mas sem a conclusão de um
processo de paz que reajustasse as fronteiras entre os países. Apesar dessa indefinição, que
36 Idem, pp. 266.37 ABURISH, pp. 245.38 Idem, pp. 248.39 KARSH, pp. 174.40 MARR, pp. 191.41 HIRO, pp. 244.42 ABURISH, pp. 230.43 KARSH, pp. 175.
112
manteve o Shatt al-Arab fechado para a navegação, Saddam Hussein, pelo contexto da
aceitação de paz por Khomeini, declarou-se vencedor da guerra, e buscou, então capitalizar
ao máximo tal conquista com a população iraquiana.
2. A Política Externa
O Iraque, que em fins da década de 70 e início da década de 80 almejava uma
política externa cada vez mais independente, capaz de influenciar as políticas tanto da
União Soviética como dos Estados Unidos44, torna-se cada vez mais dependente das
grandes potências ocidentais e dos países árabes conforme a guerra avança sem vencedores.
Com o prolongamento da disputa do Irã e a continuidade dos ataques dentro do território
iraquiano, Saddam Hussein deixa escapar um dos maiores objetivos nas relações
internacionais: a liderança do Movimento dos Não-Alinhados. Em 1979, o país participa
pela primeira vez do encontro45, e neste havia sido decidido que Bagdá seria a cidade que
abrigaria a sétima edição da reunião do grupo de quase cem países. Contudo, a conferência,
que seria realizada em 1982 (e permitiria a Saddam liderar e representar o movimento por
três anos), acabou sendo transferida para a Índia, e então o país viu diminuir sua influência
de maneira definitiva nos rumos dos Não-Alinhados. No final da década, apesar de, com a
ajuda das duas superpotências, ter vencido a guerra (além de ter conseguido expandir a sua
exportação de petróleo e adquirir equipamentos militares avançados), havia contraído
empréstimos bilionários com vários países, o que criou uma série de restrições à soberania
do país.
a) A Relação com os Países Árabes
Antes do início da guerra, o país gozava de relações promissoras com a maioria dos
países árabes da região. Logo em 02.1980, Saddam Hussein promove a assinatura – em
parceria com os países árabes que participaram das conferências que promovera em 1978-9
para repudiar a adesão egípcia aos acordos com Israel – de uma Carta Árabe, um manifesto
rejeitando a presença de bases soviéticas e norte-americanas na região, rechaçando conflitos
44 ABURISH, pp. 119.45 KARSH, pp. 130.
113
entre países árabes e promovendo a solidariedade árabe em caso de guerras com países não-
árabes.46 O documento era o símbolo mais evidente da tentativa iraquiana de se colocar
como líder do mundo árabe47, idéia que, em geral, não mudaria com o decorrer do embate
com o Irã.
Jordânia e, principalmente, Arábia Saudita e Kuwait foram os principais
colaboradores ao regime iraquiano em termos de empréstimos financeiros durante a guerra,
além de serviços de inteligência e armamentos. Ao final da guerra, as transferências árabes
ultrapassariam 50 bilhões de dólares, além da produção de petróleo na zona neutra entre os
países (ao norte do Kuwait), com o envio das receitas obtidas para o Iraque. 48 Karsh
considera que o apoio dado por esses países é explicado tanto pelos crescentes distúrbios
internos causados pelas minorias xiitas, que atendiam aos apelos subversivos de Khomeini,
como pela própria possibilidade de, com a guerra, os dois países mais poderosos da região
enfraquecerem e, dessa forma, permitirem, políticas externas mais autônomas pelos países
da região.49
De fato, em 05.1981, os países do Golfo Pérsico (excetuando-se os dois
beligerantes) formaram o Conselho de Cooperação do Golfo, com o propósito declarado de
coordenar a segurança interna e as economias dos estados, mas com os objetivos tácitos de
demonstrar neutralidade no conflito para tentar apaziguar as críticas iranianas50 e de
desfrutar de relações privilegiadas com o ocidente51. Conseqüentemente, o espaço de
manobra iraquiano se tornava menor, forçando-o a procurar mais parcerias para financiar e
alimentar sua máquina de guerra.52
O Egito surge como uma dessas alternativas, apesar de sua expulsão da Liga Árabe
ainda em 1978. Com o afastamento da URSS no princípio da guerra, o Iraque se viu
forçado a comercializar com países que dispusessem de material de reposição de origem
soviética, a fim de substituir os equipamentos perdidos no front.53 Em troca, Saddam
negociaria a reentrada do Egito na Liga Árabe, o que ocorreria em Novembro de 1987. 54 As
46 MARR, pp. 169.47 TRIPP, pp. 230-231.48 KARSH, pp. 158.49 KARSH, pp. 158.50 HIRO, pp. 78.51 ABURISH, pp. 206.52 MARR, pp. 194.53 SLUGLETT, pp. 261.54 KARSH, pp. 162.
114
relações com a Turquia melhorariam, graças ao receio turco de insurgências
fundamentalistas e curdas, que levariam a operações conjuntas de ataques a curdos
instalados na fronteira entre os países.55 Em oposição a isso, a relação com a Síria, que
apoiara o Irã, estava em seu nível mais hostil em anos, o que repercutiria no fechamento da
fronteira entre os países e na obstrução síria dos oleodutos iraquianos que passavam pela
região, reduzindo temporariamente as receitas iraquianas pela metade.56
b) Relação com a Europa e a União Soviética
A participação de vários dos países europeus no conflito se deu especialmente por
meio do comércio ilegal de armas (inclusive químicas e biológicas)57 para ambos os lados
da guerra, apesar das declarações de repúdio à guerra (o que gerou seguidos escândalos).58
O principal objetivo iraquiano era o de reduzir a dependência bélica com relação aos
soviéticos59 e aumentar a tecnologia de seu equipamento militar. A França fora seu
principal parceiro durante a guerra; não só fornecera reatores nucleares para o Iraque
(destruídos por Israel em 1981), mas também aviões de última geração60 e empréstimos
financeiros, que tornariam o regime iraquiano ao mesmo tempo fortalecido militarmente e
dependente economicamente dos europeus.
A relação com a União Soviética, por sua vez, passaria por um revés inicial, devido
à declaração de guerra por parte do Iraque sem nenhuma menção prévia a Moscou, o que
significaria o desrespeito ao acordo de amizade e cooperação assinado ainda em 1972. Nos
dois primeiros anos da guerra, os soviéticos buscariam manter a neutralidade, recusando-se
a comercializar armas com os iraquianos. Entretanto, após as ofensivas iranianas que
expulsaram as tropas de Saddam Hussein do Khuzistão e penetraram no território
iraquiano, o Kremlin decidiu voltar atrás e respeitar o acordo, além de promover outros,
ampliando o envio de material bélico para o Iraque.61 Há se de ressaltar, porém, que a
55 SLUGLETT, pp. 263.56 MARR, pp. 194-195.57 TRIPP, pp. 238. Para maior detalhamento sobre o funcionamento das redes de busca por armamentos não-convencionais pela inteligência iraquiana na Europa e nos Estados Unidos, cf. Aburish, pp. 240-244.58 HIRO, pp. 1-2.59 MARR, pp. 196.60 ABURISH, pp. 204; 230.61 HIRO, pp. 121-122.
115
URSS, por meio de contatos com a Coréia do Norte, também enviou armas ao Irã,62
realizando o mesmo jogo duplo promovido por diversos países, dentre eles os Estados
Unidos. Até o final da guerra, a União Soviética continuaria a armar o exército iraquiano,
além de procurar manter-se no Golfo para realizar um contra-peso aos EUA.
c) Relações com os Estados Unidos
Embora o Iraque continuasse na lista de países terroristas da inteligência norte-
americana até 02.198263, as relações comerciais entre os países já haviam avançado
bastante durante a década de 70, levando à criação de uma seção encarregada de cuidar dos
interesses dos EUA na embaixada da Bélgica em Bagdá. Aburish64 afirma que a cooperação
diplomática entre os países teria começado ainda antes da guerra, contemporaneamente às
críticas de Saddam à URSS, à aproximação cada vez maior do Iraque com as monarquias
conservadoras do Golfo e à crise dos reféns da embaixada norte-americana em Bagdá.
Marr65 aponta o início das dificuldades na guerra com Irã como o fator principal para que,
logo em 1981, Saddam realizasse esforços maiores para melhorar as relações com os EUA.
Paralelamente, o discurso anti-Israel, fortemente presente mesmo durante a mudança
pragmática da política externa iraquiana a partir da segunda metade da década de 70,
passou a ser cada vez menos utilizado66, mesmo após o ataque israelense aos reatores
nucleares iraquianos em 1981. Com isso, o apoio do governo e dos meios de comunicação
estadunidenses ao Iraque se tornou cada vez mais pronunciado. Os EUA passaram a enviar
créditos alimentícios, aviões e, com as derrotas iraquianas em 1982, os norte-americanos
passaram a ajudar ostensivamente a liderança militar iraquiana com informações de
inteligência sobre a estratégia dos combatentes iranianos.67 Em 1983, lançaram a “Operação
Estanque”, destinada a evitar o envio de armas por países aliados (principalmente Israel) ao
Irã68, o que contribuiria para isolar internacionalmente ainda mais o país persa.
62 Idem, pp. 123.63 KARSH, pp. 159.64 ABURISH, pp. 187-188.65 MARR, pp. 195.66 SLUGLETT, pp. 261-262.67 ABURISH, pp. 210.68 MARR, pp. 188.
116
Embora o país, a partir de 1984, passasse a enviar armas ao Iraque69, a relação com
os iraquianos ainda era muito frágil. Os EUA mantinham sua declaração de neutralidade na
guerra70, sem contribuir decisivamente para a resolução do conflito; a relação deteriorou-se
bastante com a descoberta, em 1986, do envio secreto de armas pelos norte-americanos ao
Irã em troca da soltura de reféns norte-americanos capturados por xiitas pró-Khomeini em
Beirute, no que ficou conhecido como o caso Irã-Contras.71 A repercussão do caso foi
altamente negativa para o governo Reagan e para a visão da comunidade internacional
sobre os Estados Unidos72.
Com a “Guerra dos Petroleiros”, os Estados Unidos se envolveram definitivamente
na guerra, com o argumento de que o Irã estava pondo em risco a integridade de seus
aliados principais na região, o Kuwait e a Arábia Saudita. Os ataques da frota norte-
americana destruíram um terço da marinha iraniana73; o apoio militar e logístico continuou,
e por meio deles o Iraque conseguiu promover as ofensivas que, em 1988, levaram ao final
da guerra.74
3. Política Doméstica
A subida de Saddam Hussein ao poder e os desenvolvimentos da guerra tiveram
importantes implicações na configuração da política doméstica. Alguns esforços, ainda que
retóricos, foram feitos para tentar liberalizar a política. Contudo, os seguidos insucessos na
guerra levaram até mesmo a uma crise de legitimidade por parte de Saddam no poder,
criando pressões internas que teriam como conseqüência o aumento da centralização do
poder e da dependência de redes de clientes cada vez mais próximos da liderança política,
ao passo em que as tomadas de decisões ficaram cada vez mais nas mãos de Hussein. Os
militares, que ganhariam bastante relevância no período, questionariam a excessiva
concentração de poder nas mãos do presidente, e obteriam ganhos de autonomia para a
condução das estratégias de guerra. As oposições curda e xiita, enfraquecidas pela política
repressora do governo na década de 70, tentariam, cada uma à sua maneira, se reorganizar. 69 Idem, ibidem70 ABURISH, pp. 225.71 ABURISH, pp. 247.72 HIRO, pp. 219.73 ABURISH, pp. 248.74 TRIPP, pp. 240.
117
Entretanto, a violência, especialmente perante os curdos, seria a maneira de se relacionar
travada pelo Estado, repercutindo em grandes perdas humanas.
a) A Assembléia Nacional75
Desde 1958, em que, com o fim da monarquia extinguiu-se o parlamento, o Iraque
havia ficado sem um organismo de representação política. Na constituição provisória
promovida pelo Baath em 1970 havia sido anunciada a previsão de criação de uma
Assembléia Nacional. Contudo, somente após a subida ao poder de Saddam Hussein é que
ela viria a existir, em meio a um clima interno instável devido às perseguições aos xiitas.
Em Junho de 1980, ocorreriam as primeiras eleições, que elegeriam 250 candidatos para
um mandato de quatro anos. Todos os iraquianos com mais de dezoito anos poderiam
votar76, mas nem todos, apesar das anistias concedidas pelo novo governo, poderiam
concorrer e, principalmente, se eleger. Isso porque um comitê eleitoral analisava a
candidatura dos concorrentes, e utilizavam três critérios para a aprovação da participação
na eleição77: a crença na revolução baathista, a não participação em classes vistas como
apoiadoras do “imperialismo” (como feudalistas, financistas e capitalistas em geral), e a
cidadania “completa” (estipulada em termos da nacionalidade iraquiana, com pai iraquiano
e sem envolvimento conjugal com estrangeiros, principalmente persas). Outras medidas
tacitamente visavam evitar a participação de militares; era permitida a participação de
candidatos “independentes” (mesmo curdos e comunistas), com o objetivo de demonstrar a
aceitação do Baath em todos os círculos sociais.78
Os candidatos tinham todas as origens sociais, étnicas e sectárias; o perfil dos
eleitos, contudo, era similar: membros do partido, jovens, com curso superior, em geral
com poucas posses e com grande ativismo em sindicatos, corporações e organizações de
moradia; vários eram professores (principal classe afiliada ao Baath).79 A assembléia,
embora dotada de várias competências (como redação e proposição de leis, aprovação de
75 Para uma análise minuciosa sobre o funcionamento e os resultados das eleições para a Assembléia Nacional de 1980, cf. BARAM, Amatzia. The June 1980 Elections to the National Assembly in Iraq: An Experiment in Controlled Democracy, pp. 391-412.76 MARR, pp. 180.77 BARAM, The June 1980 Elections, pp. 395-397.78 Idem, ibidem.79 Idem, pp.404-408; 410-411.
118
orçamentos e planos de desenvolvimento, aprovação de acordos internacionais e debates
sobre atuações de ministros), tinha suas decisões somente com força de consulta. O
Conselho do Comando Revolucionário ficava, na prática acima dele e, com alterações na
legislação feitas pelo próprio Saddam, a presidência também ficaria imune às deliberações
do CCR.80
Para Marr, a assembléia funcionou como uma válvula de escape e uma maneira de
distração para os setores descontentes da população iraquiana, enquanto o regime se
tornava cada vez mais personalizado.81 Tripp considera que a assembléia fora criada com o
propósito de passar aos cidadãos a ilusória idéia de que supervisionavam o governo, além
de servir como um símbolo de união nacional e como parte do projeto de culto de
personalidade a Saddam Hussein; na prática, essa e outras instituições atuavam como um
importante mecanismo de patronagem, dada a eleição de representantes de todos os lugares
do país e, com isso, do aumento do controle estatal sobre tais regiões.82 Karsh, além de
destacar a grande repercussão internacional das eleições (com reportagens de vários meios
de comunicação ocidentais), enfatiza a relevância da assembléia como parte do plano de
disseminação do culto de personalidade à figura do líder, numa tentativa de alterar a relação
dele com a população de medo para adoração.83 Sluglett aponta que o único papel efetivo
da assembléia era o de investigar a atuação dos ministros, e a sua continuidade no decorrer
da década como um indicativo de abertura política que viabilizasse a fracassada tentativa de
liberalização econômica84 (discutida mais adiante). Baram insere a criação daquele
organismo no contexto da crise interna ocorrida no país em razão dos expurgos partidários
promovidos por Saddam, que teria forçado a criação de mecanismos que ampliassem a
aceitação do novo presidente perante a população e vê a instituição como uma maneira de
controlar os novos escalões superiores do Baath e de premiar, por meio das eleições,
correligionários mais próximos.85 Finalmente, Aburish considera a criação da Assembléia
Nacional como o primeiro esforço sério rumo à democracia desde a democracia,
principalmente por assegurar a proporção de cerca de 40 por cento das cadeiras para os
xiitas; todavia, critica a pouca profundidade do compromisso de Saddam com a 80 Idem, pp. 397-398.81 MARR, pp. 181.82 TRIPP, pp. 226.83 KARSH, pp. 120-121.84 SLUGLETT, pp. 276-277.85 BARAM, pp. 393; 398; 412.
119
liberalização, conforme outros anúncios (como a legalização dos partidos), não eram
cumpridos.86
b) A Centralização do Regime
A chegada de Saddam Hussein ao poder transformou mais profundamente a
dinâmica política do regime, privilegiando cada vez mais familiares no topo da cadeia de
comando e colocando-se como o único tomador de decisões legítimas, ao mesmo tempo em
que ampliava os setores de segurança e a estrutura do partido. Mas este tinha sua relevância
cada vez mais reduzida, tanto como fonte ideológica como em termos da formulação de
decisões políticas minimamente relevantes.
Com as seguidas derrotas iraquianas em 1982, sua legitimidade foi posta em
cheque; o Irã pressionava para que em caso de negociações, Saddam Hussein estivesse fora
da presidência. É convocada uma reunião especial com as Forças Armadas, o Comando
Regional do Baath e o CCR, sem a presença de Saddam; o grupo oferece um cessar-fogo ao
Irã, que rejeita a proposta. Para Karsh, essa foi uma tentativa de Saddam em implicar a
cúpula do poder iraquiano com a sua política, com o tácito entendimento de que, caso o Irã
ganhasse a guerra, todo o governo, e não só o líder, seria removido.87 Após o incidente,
Saddam aceleraria o seu fortalecimento no poder, com a remoção de oito ministros e oito
membros do CCR.88
A “Saddamização” do regime implicaria na formação de círculos de poder formados
pelos associados mais próximos do líder, que se associavam por meio de parentesco, uma
história de confiança pessoal e um mesmo local de origem, Tikrit. Formava-se um Estado
cada vez mais patriarcal e personalizado, com redes de alianças e privilégios, altamente
impermeável ao mundo externo.89 Do ponto de vista demográfico, os escalões
intermediários do partido e do Estado eram representados por membros de todo o país,
tendo funções específicas: a elite do norte do país governa e gerencia, integrando-se
completamente no cenário político de Bagdá e formando a segurança interna, a burocracia
do partido e compondo os ministérios e os setores econômicos; a elite do sul media as
86 ABURISH, pp. 182-183; 202.87 KARSH, pp. 165.88 Idem, pp. 166.89 TRIPP, pp. 224-225.
120
relações do governo central com as populações locais, estando atrelada ao CCR e às
organizações populares.90 O aumento da participação de sua família nos altos escalões do
poder resultou no aumento substancial da corrupção, que não era controlada, de acordo com
Aburish, por aquela ter se configurado como a grande base de poder do regime.91 Tripp92
enfatiza a ambivalência desse formato de estado: por um lado, se desenvolvia uma
complexa burocracia, que tornava aos indivíduos a idéia de se compreender a estrutura do
país como sendo uma tarefa complicada, ao mesmo tempo em que se tornavam altamente
vulneráveis por serem peças facilmente identificáveis dentro desse sistema organizado e
disciplinado; por outro lado, o círculo de poder efetivo ao redor de Saddam era
extremamente restrito, e marcado pelo descolamento perante a outra realidade.
O partido, por sua vez, se expandira enormemente no período, abandonando de
maneira definitiva a sua concepção emprestada do leninismo, calcada em grande coesão
ideológica e no centralismo democrático da vanguarda revolucionária. Ao se tornar um
partido de massas, ampliou ainda mais sua penetração na população, alcançando um
número de apoiadores próximo de dois milhões em meados da década de 80, o que
significava que um em cada sete iraquianos participava, de alguma maneira, das atividades
do partido, o que tornava o Iraque um “Estado de informantes”93. Contudo, o aumento do
tamanho do Baath não representou o ganho de sua relevância dentro dos círculos mais
poderosos; embora a filiação ao Baath passasse a significar cada vez mais uma
possibilidade de ascensão social e profissional94, o seu significado verdadeiramente político
foi paulatinamente sendo esquecido pela liderança do estado. As formulações, mesmo as de
cunho ideológico, passaram a ser controladas quase que exclusivamente por Saddam
Hussein, que passou a empreender um substantivo culto à sua personalidade (conforme será
visto mais adiante).
Assim, a base de poder do regime passou a ser (além das redes de clientela e de clãs
familiares), mais do que nunca, as forças de segurança, que continuaram a se expandir
vigorosamente. Quatro organizações passaram a cuidar da segurança pessoal de Saddam;
mais de quinze por cento de todos os funcionários públicos se responsabilizavam pelo setor
90 BARAM, The June 1980 Elections, pp. 408-410.91 ABURISH, pp. 252.92 TRIPP, pp. 224.93 KARSH, pp. 178.94 MARR, pp. 210.
121
de segurança.95 Como aponta Sluglett, o Estado continuou a basear sua intermediação com
a população por meio dos vários instrumentos de coerção96, perpetuando a banalização da
violência no cotidiano iraquiano.
c) A Relação com os Militares
Com a guerra, os militares voltaram a ter, como na década de 60, um grande papel
político no Estado iraquiano, seja pela própria militarização da política, seja pelos gastos
crescentes do governo nesse setor.97 Para evitar que esse aumento de relevância repercutisse
na ameaça à sua continuidade no poder, Hussein empreendeu diversas táticas. Como parte
do processo de centralização das funções do Estado, a definição das estratégias militares no
front necessariamente passava por Saddam Hussein, que a comunicava para membros do
exército que fossem do partido, para que então a mensagem fosse encaminhada para as
tropas.98 Mesmo em ações militares simples, a rotina era seguida; diversos autores
consideram que a burocratização das decisões do exército foi uma das maiores responsáveis
pelo fracasso das tropas iraquianas no início da guerra, além dos equívocos na própria
escolha das estratégias por Saddam.99 Críticas à condução da guerra por Saddam levavam à
execução de centenas de oficiais; em contrapartida, conferia honrarias a soldados que
praticassem atos de heroísmo para evitar a desmoralização das tropas tanto pelas derrotas
como pelos seus atos repressivos.100
Todavia, a derrota iraquiana em Fao no início de 1986 levou a uma crise mais grave
com os militares, que passaram a exigir mais firmemente a autonomia de suas ações no
front para garantir o sucesso nas batalhas, o que se tornara inviável com a continuidade da
centralização do controle das estratégias por Saddam. O presidente, notando a solidariedade
a esta posição em diversos setores das forças armadas101, cedeu, permitindo a
profissionalização do exército. Para Karsh, este evento foi um dos responsáveis pela virada
95 ABURISH, pp. 208.96 SLUGLETT, pp. 276.97 Idem, ibidem.98 ABURISH, pp. 234.99 MAKIYA, pp. 276-278.100 KARSH, pp. 191.101 TRIPP, pp. 241.
122
na guerra a partir de 1986102, que permitiu ao comando militar conquistar vitórias
importantes, inclusive a reconquista de Fao, tendo como última conseqüência a aceitação
do cessar-fogo pelo Irã. Entretanto, Saddam ainda faria esforços para prevenir que generais
que conquistassem grandes vitórias aparecessem como heróis; constantemente rotacionava
líderes de pelotões, também para evitar a formação de ligações entre os membros de patente
superior e inferior.103 Com tudo isso, mantinha o controle sobre o exército, que não se
configurou como um potencial opositor ao regime.
d) Relação com os Xiitas
Antes do início do conflito com o Irã, a relação entre o governo e os xiitas
permaneceu tensa. Saddam Hussein, logo após assumir o poder, buscou aproximar-se
daquele segmento por meio de práticas populistas104, como a distribuição de dinheiro e
eletrodomésticos durante visitas aos vilarejos no sul do país. As insurgências promovidas
pela Da’wa e os discursos de Sadr, entretanto, aumentaram de tom, e então o governo
voltou a se utilizar de meios repressivos para lidar com a oposição. Após uma tentativa
malsucedida em assassinar o vice-primeiro ministro Tariq Aziz, Saddam publicou uma lei
punindo com a morte a filiação à Da’wa.105 Os ataques terroristas, contudo, continuaram, e
então o presidente, que até então havia evitado criar um mártir, acaba por ordenar a prisão e
a execução de Sadr e sua irmã, além de dezenas de outros correligionários. Em seguida, o
regime deportaria muitos iraquianos de “origem persa” (o número chegou a 200 mil ao final
da guerra)106, desmobilizando boa parte da oposição xiita ao regime, que passou a ser
organizar no exterior, principalmente no próprio Irã.
i. O SAIRI
A Assembléia Suprema para a Revolução Islâmica no Iraque (SAIRI, em inglês), foi
o principal grupo oposicionista xiita montado contra o governo de Saddam Hussein. O
102 KARSH, pp. 192.103 SLUGLETT, pp. 273.104 KARSH, pp. 144.105 ABURISH, pp. 185.106 MARR, pp. 198.
123
grupo era formado por diferentes grupos, como o Da’wa, a Organização para a Ação
Islâmica e a família Hakim, uma das mais importantes do Iraque xiita, e que tinha o
controle efetivo da organização, e direcionava os seus esforços rumo à criação de um
governo de “juristas teólogos”, num molde similar ao do regime iraniano.107 Entretanto, o
grupo foi incapaz de mobilizar um grande levante popular ou qualquer ato que pusesse em
risco o domínio de Saddam.
Enquanto isso, o presidente iraquiano alternava discursos em que buscava afirmar
seu compromisso e sua crença para com o Islã com outros que buscavam enfatizar o caráter
árabe do xiismo iraquiano, buscando criar uma fissura entre os soldados xiitas iraquianos e
seus opositores iranianos.108 Ao mesmo tempo, ampliava a vigilância sobre as atividades
dos clérigos nas cidades sagradas e tentava torná-los cada vez mais dependentes do estado,
enquanto perseguia xiitas de grupos oposicionistas importantes.
ii. Razões para o Fracasso da Oposição Xiita
O insucesso dos xiitas (principalmente seu setor mais organizado, o SAIRI) em
mobilizar seus correligionários durante a guerra – mesmo com o substancial patrocínio do
Irã – é um dos temas mais analisados pelos estudiosos do período. Aburish considera que os
grupos em geral não tinham apoio popular, além de concordarem somente em termos da
oposição à guerra; além disso, falharam primordialmente em estabelecer conexões com
setores do exército, o grupo político mais forte naquele momento.109 Sluglett aponta que,
embora o regime iraquiano fosse odiado pela maioria dos xiitas, o Irã não conseguiu criar
grandes tensões dentro do Iraque e falhou mesmo em gerar um grande número de deserções
por parte dos soldados xiitas pela consideração de que a idéia um eventual regime
teocrático nos moldes iranianos seria ainda pior do que o Estado autocrático baathista de
acordo com a perspectiva populacional.110 Karsh aponta que a subversividade em si dos
xiitas em geral era menor do que Saddam calculara antes da guerra e as organizações
clandestinas gostariam; isso fez com que a população mantivesse seus laços em termos da
etnia árabe; além disso, o presidente iraquiano teria dedicado boa parte de seus gastos
107 Idem, ibidem.108 TRIPP, pp. 234.109 ABURISH, pp. 198-199; 239.110 SLUGLETT, pp. 258.
124
orçamentários para a zona xiita, o que ajudou a apaziguar os descontentamentos e a noção
de sectarismo sunita.111 Makiya entende a continuidade da participação dos iraquianos na
guerra como uma exemplificação de como o medo, que seria o grande aglutinador social do
Iraque, faz a população perder o sentido de si mesma e de suas identidades; a guerra seria,
nesse sentido, uma espécie de canalização da violência que molda internamente o país.112
Tripp faz colocações similares às de alguns dos autores anteriores: é difícil crer que as
identidades promovidas pelo regime tenham sido as responsáveis pelo comportamento da
população perante o Irã; o mais provável é que, para a participação na guerra ou a não
mobilização contra o regime tenham entrado cálculos de pragmatismo, como a pura
necessidade de defesa contra um inimigo externo ou o receio de que a inação repercutisse
em hostilidades por parte do Estado.113 Por fim, Dilip Hiro considera que três fatores,
relativamente conectados entre si, fizeram com que os xiitas permanecessem leais a
Saddam Hussein: a divisão em termos de clãs e tribos, que impediu o desenvolvimento de
uma identidade sectária; a precedência do sentimento nacionalista sobre o sectarismo
conforme o Irã avançava sobre o território iraquiano; e o sentimento comum entre xiitas e
sunitas de que uma vitória iraniana implicaria na interrupção violenta de suas vidas em caso
de uma vitória de Khomeini.114
e) Relação com os Curdos
Com a revolução iraniana, a família Barzani, que se encontrava exilada no território
persa, foi permitida a retornar para o Curdistão, violando o Acordo de Algiers. Desde então,
o novo regime de Teerã buscou alimentar o Partido Democrático Curdo (PDC) em troca de
apoio ao esmagamento do partido homônimo no Irã115, o que preocupava Jalal Talabani, da
União Patriótica do Curdistão (UPC)116. Enquanto isso, o regime continuava a reprimir
controlar e reprimir fortemente a região, impedindo o fortalecimento de uma articulação
capaz de por em risco a integridade do regime baathista durante a guerra. Para Karsh, a
fragmentação tribal e lingüística da comunidade curda e a inimizade entre os dois maiores 111 KARSH, pp. 167-168.112 MAKIYA, pp. 274-276.113 TRIPP, 247.114 HIRO, pp. 257.115 MARR, pp. 199.116 SLUGLETT, pp. 263.
125
grupos oposicionistas locais impediram que a ameaça curda se tornasse atentatória ao
governo.117 Com a transformação do apoio financeiro iraniano com o PDC em aliança
militar (levando a conquistas de algumas cidades na região em 1983 e, com isso, criando
um segundo front contra o exército iraquiano)118, Saddam buscou, primeiramente,
aproximar-se informalmente com os turcos, que ganharam, então, legitimidade para
realizarem incursões no norte do país para combater os curdos119; com o aumento das
tensões, o presidente iraquiano resolveu se envolver mais diretamente na dinâmica da
região, mantendo contatos com Talabani (que se rejeitava a combater os curdos iranianos
para ganhar apoio de Teerã) e ampliando o clientelismo do governo da região, buscando
envolver o setor urbano curdo na burocracia do estado e, com isso, aumentando as
clivagens entre os grupos da região, inclusive comunistas, que buscavam rearticular sua
oposição por meio da guerrilha.120
Saddam Hussein prometera a Talabani eleições livres e democráticas na região, o
que tornaria o Curdistão uma região autônoma. Em troca, a UPC formaria um exército de
40 mil homens para combater o Irã.121 Entretanto, após dois anos, nada havia sido feito, e
então Talabani resolve aliar-se aos Barzanis e promover um conflito de larga escala contra
o regime. O governo forma milícias curdas para tentar combater os insurgentes, mas não
obtém sucesso. Em 1987, a coalizão curda envolvia não somente os dois maiores partidos,
mas também os socialistas, os comunistas e o Movimento Democrático Assírio, além do
apoio iraniano, o que permitia o controle de quase toda a fronteira iraquiana ao norte do
país.122
i. A Operação al-Anfal
Em meio a essa crise, o líder iraquiano nomeia seu primo Ali al-Majid (conhecido
posteriormente como Ali Químico) para o comando das forças na região, dando-lhe poder
absoluto para controlar as insurgências.123 A intenção de Majid era a de despopular a área,
117 KARSH, pp. 168.118 MARR, pp. 199.119 ABURISH, pp. 239.120 TRIPP, pp. 229; 234.121 KARSH, pp. 168.122 MARR, pp. 200.123 ABURISH, pp. 248.
126
especialmente as fronteiras, de modo a evitar que os habitantes da região apoiassem os
guerrilheiros124, além de destruir as estruturas de defesa da região, principalmente os
vilarejos.125 Tripp insere a decisão de Saddam em combater os curdos com o máximo de
força no contexto do enfraquecimento de seu poder em 1986 (após os entreveros com os
militares).126 Tanto iraquianos como iranianos usaram armas químicas na região, mas os
últimos o faziam em escala muito menor; apesar disso, continuaram a vencer as batalhas
em 1987.127 Isso levou a um aumento do nível dos ataques iraquianos, que passou a não
poupar mais crianças e mulheres. Cerca de quinhentos mil curdos foram movidos para
campos de concentração; 1.5 milhão haviam fugido para o sul ou para a Turquia; quatro mil
vilarejos foram destruídos.128 O nível de atrocidades ficou conhecido após a divulgação,
pela imprensa iraniana, dos ataques iraquianos a Halabja (03.1988), que resultaram na
morte de cerca de cinco mil civis com armas químicas. Para Tripp, a devastação causada
pelo regime, que resultou em grande número de mortos, era uma demonstração de força, ao
final da guerra, a todos aqueles que desviassem dos padrões de conduta estabelecidos por
Saddam Hussein.129
Karsh afirma que Hussein tinha muito mais cuidado em usar armas químicas contra
o Irã do que contra sua própria população, sob o argumento de que o advento de tais
instrumentos contra Teerã poderia desagradar os apoiadores árabes de Saddam e a União
Soviética, além do próprio receio de que o Irã contra-atacasse da mesma maneira.130 Marr
argumenta que o uso de armas químicas foi indiscriminado, tanto contra a população civil,
como contra as tropas iranianas, e que, embora o Ocidente tivesse tomado conhecimento
das operações durante todo o tempo, não houve protestos à época.131 Sluglett entende que o
quietismo ocidental se dava pelo receio de que as condenações aos ataques seriam
negativas para os negócios.132 Aburish, corroborando a tese anterior, afirma que, no
momento da repercussão dos casos de genocídio, os Estados Unidos culparam os iranianos
pelos crimes, enquanto se verificava nos locais onde os ataques haviam ocorrido que
124 SLUGLETT, pp. 270.125 MARR, pp. 200.126 TRIPP, pp. 243.127 ABURISH, pp. 248.128 Idem, pp. 248-249.129 TRIPP, pp. 246.130 KARSH, pp. 169-170.131 MARR, pp. 186-187.132 SLUGLETT, pp. 270.
127
somente as máscaras de gás que os EUA forneceram aos iraquianos poderiam protegê-los
dos efeitos dos gases nocivos, o que indicava o conhecimento prévio do país sobre a
estratégia iraquiana e, tacitamente, o seu apoio.133
4. Ideologia
A década de 80 viu emergir no Iraque uma campanha de culto de personalidade sem
precedentes na história moderna do país. Mesclada a esse novo paradigma ideológico,
estava o nacionalismo mesopotâmico dos anos 70, que buscava aliar a figura de Saddam
aos grandes líderes das civilizações mesopotâmicas do passado, como Hamurábi e
Nabucodonosor. Aliado a isso e às circunstâncias da guerra, o presidente iraquiano buscaria
tornar o elemento islâmico como algo mais predominante dentro da ideologia que pregava,
reduzindo cada vez mais a “pureza” do Baathismo; além disso, a revisão acerca do pan-
arabismo árabe chegaria ao seu auge, conforme será visto nas seções a seguir.
a) O Culto de Personalidade
“[...]. A large painted cutout figure of Saddam Husain towers over the
entrance of every Iraq village; often at night it emits a lurid fluorescent glow. A
thirty-foot high version can be seen near Baghdad city center. Photographs
adorn every shop, school, police station, army barracks, and public building,
and can be seen in people’s offices and living rooms and overhanging the
streets from the parapets of houses. No official will appear before a camera
without a picture of the president in the background, and his name is evoked in
every public address.”
“On radio, in a typical political broadcast, his name is mentioned thirty to
fifty times an hour, along with reams of titles suited to the occasion. News
broadcasts shower him with congratulatory telegrams and groveling speeches.
The streets of Baghdad grind to a halt whenever he leaves the presidential
palace; sirens go off, soldiers line the route, and busy people rush to the public
squares to see him pass. School children memorize verses in his honour,
praising his qualities. Slogans attributed to him are visible everywhere. School 133 ABURISH, pp. 249-250.
128
notebooks carry his portrait on the front and his latest sayings on the back.
Iraqi teenagers wear Saddam Husain T-shirts, and the real enthusiast can buy a
gold wristwatch with Saddam Husain peering through the dials.”134
Embora o início do culto de personalidade de Saddam tenha se iniciado ainda antes
de sua chegada ao poder, é somente a partir de 1980 que ele assume proporções
impressionantes. Além do nível de penetração de sua imagem em todas as localidades e
esferas sociais, como apontado na citação de Makiya, Saddam buscava se colocar como o
representante de todos os povos iraquianos, tanto em suas identidades particulares como em
sua condição comum de sujeitos do governo iraquiano.135 O líder iraquiano aparecia como
camponês, oficial, guerreiro ou mesmo como um penitente religioso136 – não faltariam,
inclusive, representações do líder como um pai caridoso, um grande estadista, um eficiente
burocrata, um profundo filósofo e como um revolucionário radical137. Sua imagem
transcendia o território iraquiano, e cada vez mais ele se convertia no “herói das massas
árabes”, graças à sua retórica de liderança de um grande conflito árabe-persa.138
b) O Nacionalismo Mesopotâmico
A irradiação da ideologia que relacionava o regime baathista como a continuidade
de cinco mil anos de glória mesopotâmica continuou durante a guerra, embora os gastos
com construções e festivais tenham diminuído no decorrer do conflito, e se tornasse cada
vez mais predominante o amálgama desse ideário com a figura de Saddam Hussein. A
guerra contra o Irã foi denominada a “Qadisiyya de Saddam”, em referência ao conflito
ocorrido ainda no século VII em que os árabes muçulmanos derrotaram os persas
“pagãos”.139 O presidente “lutador” se colocava ainda como a última personificação de
Hamurábi, Sargão e Nabucodonosor140, enquanto dedicava parte dos gastos governamentais
134 MAKIYA, pp. 110-111.135 TRIPP, pp. 226.136 MARR, pp. 210137 KARSH, pp. 151.138 ABURISH, pp. 203.139 MARR, pp. 211.140 KARSH, pp. 152.
129
à construção de esculturas para celebrar o heroísmo dos soldados, que os comparavam às
tropas babilônicas que liberaram a Palestina no século VI a.C.141
Mas um elemento ideológico que ganharia bastante ascendência durante a década de
80 seria o comprometimento com o Islã, existente desde o início das tensões com o Irã, mas
institucionalizado com o domínio do Oitavo Congresso Regional do Baath, em 1982, por
Saddam Hussein, que marcou a diminuição da relevância do pan-arabismo e do socialismo
e a proeminência do nacionalismo iraquiano, do significado da religião e da importância da
criação de riquezas e da empresa privada142. O exemplo mais notório da união imagética
entre Saddam e aquela religião, apesar do forte secularismo do regime, seria a sua suposta
descendência de Maomé e do Imã Ali, o que significava uma concentração especial no
ganho de apoio dos xiitas.143 O presidente iraquiano buscaria, ainda, fazer freqüentes visitas
aos santuários das cidades sagradas; no final da década, o componente árabe-islâmico se
tornaria mais predominante do que o nacionalismo mesopotâmico.144 Para Adeed Dawisha,
o elemento árabe seria, na realidade, o principal utilizado por Saddam durante a guerra, já
que tanto no islamismo como no nacionalismo mesopotâmico o elemento comum era o
arabismo, visto como peça fundamental de união do país contra os “persas iranianos”.145
Mas isso não implicava num comprometimento maior com o pan-arabismo; pelo contrário,
como será visto a seguir, o nacionalismo árabe clássico seria definitivamente rejeitado por
Saddam.
Para Aburish, a propaganda de Saddam, embora superficial, deu certo, já que,
graças à sua penetração pelas estruturas partidárias e estatais, os apelos religiosos de
Khomeini se tornaram cada vez mais vazios e pouco efetivos durante a guerra.146 Makiya
entende que o massivo culto de personalidade de Saddam tinha um fim específico: o poder
de gerar medo na população, que se sentia vigiada o tempo todo pelo presidente iraquiano,
e temia que a não incorporação de seus símbolos resultaria em duras retaliações das forças
de segurança.147 Marr acredita que as ideologias não foram empregadas somente para gerar
uma identidade maior com o Estado, mas também para justificar a legitimidade do regime
141 BARAM, Culture, History and Ideology, pp. 78.142 TRIPP, pp. 236.143 MARR, pp. 211.144 BARAM, pp. 116.145 DAWISHA, Adeed. “Identity” and Political Survival in Saddam’s Iraq, pp. 13-14.146 ABURISH, pp. 202.147 MAKIYA, pp. 111.
130
personalizado em Saddam; embora o líder tenha conseguido centralizar ainda mais o
governo, a eficácia dos ideários utilizados é dúbia, principalmente se se notar a
continuidade da insatisfação das oposições.148 Sluglett, porém, entende que o hábil uso da
propaganda, em associação com o receio populacional de que fosse implantado um regime
iraniano e a própria rudeza da forças de segurança iraquianas foram os três caracteres que
permitiram a sobrevivência do regime na década de 80.149 Baram150 acredita que as
ideologias empregadas nas décadas de 70 e 80 tiveram sucesso limitado, e lista diversos
motivos para o relativo fracasso: a dificuldade de se disseminar um conceito novo numa
sociedade com tradicionais bases islâmicas e pan-arabistas (embora estas se opusessem
entre si); o abandono da tentativa de integração dos curdos à ideologia no final da década
de 70 inviabilizou sua “arabização”, levando o seu apoio aos iranianos. Ainda sim, foi
razoavelmente eficaz na assimilação dos xiitas, já que o discurso de dissolução do país
numa união islâmica perdeu força. Todavia, a aceitação de Saddam como o continuador do
legado mesopotâmico foi aceito mais como resultado do medo e da indiferença. O aspecto
principal a ser considerado sobre o sistema de idéias implantado é o de que, embora tenha
contribuído para a formação de uma certa coesão nacional, não serviu como substituto para
a real participação política, o que repercutiu na erosão das estruturas sociais tradicionais,
como a tribo, a família e a religião.
c) Nova Revisão do Pan-Arabismo
Apesar intenso uso discursivo do arabismo na política externa como maneira de
ganhar apoio dos países vizinhos, Saddam Hussein radicalizaria sua visão (e, por extensão,
a do Baath) cautelosa sobre essa doutrina. Em entrevistas concedidas entre 1988 e 1989151,
o presidente iraquiano deixaria claro que o máximo de cooperação possível entre os estados
árabes já havia sido alcançado, e que então o caminho a ser trilhado seria o de procurar
continuamente melhorar as relações entre os países árabes, mas sem abandonar a
independência entre eles. Assim, a união, tanto federativa como unitária, poderiam jamais
ocorrer. Contudo, como se tornaria cada vez mais claro (como na invasão do Kuwait, em
148 MARR, pp. 210-212.149 SLUGLETT, pp. 262.150 BARAM, pp. 112; 138-140.151 Idem, pp. 121-122.
131
1990, vista no próximo capítulo), a maleabilidade dos discursos de Saddam era um
indicativo evidente de seu pragmatismo e de seu descomprometimento cada vez maior com
convicções ideológicas, senão aquelas que lhe permitiriam manter-se no poder.
5. Economia e Sociedade
O longo conflito com o Irã resultou em danos à economia do país que não foram
recuperados até os dias de hoje. Muito do vertiginoso crescimento econômico da década de
70 seria perdido, e então o regime iraquiano, nos anos finais da guerra, buscaria mudar a
política econômica. Conforme será visto no próximo capítulo, muitas das medidas (que,
inclusive, foram aprofundadas) se revelaram ineficazes, e com isso o país não conseguiu
voltar a crescer. Nesta seção, buscaremos analisar a política do governo para a economia
nos primeiros anos da guerra, além de ver as implicações desta para a população iraquiana.
a) A Continuidade dos Programas de Desenvolvimento
Até 1983, Saddam Hussein buscou manter os investimentos estatais no país como se
o país não estivesse em guerra. As destruições causadas pela guerra, especialmente no sul, e
o fechamento do oleoduto que passava pela Síria (1982) reduziram substantivamente a
exportação de petróleo iraquiano. Em 1979, o país havia conseguido exportar 26 bilhões de
dólares; quatro anos depois, o valor havia sido reduzido para apenas 10 bilhões de dólares
(também em parte pela queda dos preços do petróleo).152 Apesar disso, os investimentos
para a modernização de Bagdá (na fracassada tentativa de hospedar o encontro do
Movimento dos Não-Alinhados em 1982) continuaram, assim como a importação em larga
escala de alimentos e equipamentos militares e a manutenção da construção de indústrias
estratégicas e do programa de armas não convencionais (nucleares, químicas e biológicas),
que foi, inclusive, acelerado.153 Em suma, o gasto público aumentou de 21 bilhões de
dólares em 1980 para 29.5 bilhões em 1982.154 Com isso, conforme apontam diversos
152 MARR, pp. 203.153 TRIPP, pp. 238.154 KARSH, pp. 153.
132
especialistas, Saddam conseguiu isolar a população, principalmente do centro do país, dos
efeitos da guerra155.
b) O Início da Liberalização Econômica
Apesar dos esforços do governo, já em 1982 a renda per capita do país começou a
regredir, e em 1983 o país se encontrava numa profunda crise econômica.156 Com a enorme
contração das reservas internacionais (de 30 para 3 bilhões de dólares)157 e os seguidos
empréstimos junto a diversos países (detalhados na seção “Dívida Externa”), o presidente
iraquiano decide encorajar o setor privado da economia, enquanto buscava frear os gastos
do governo. Saddam corta os gastos com o projeto de desenvolvimento em um terço, reduz
as importações em quase três quartos e o salário dos servidores públicos civis em um
quinto.158 Pôs-se um fim à coletivização agrícola, buscando-se aumentar sua produtividade
por meio da concessão de créditos ao setor privado; as privatizações também ocorreriam na
indústria e no setor comercial, com a venda de supermercados, postos de gasolina e
pequenas fábricas a empreendedores.159 Para Aburish, a abertura econômica consoante ao
distanciamento da URSS (vista como a confirmação das inclinações capitalistas de
Saddam) foi um fator importante para que os Estados Unidos se aproximassem ainda mais
do Iraque no início dos anos 80.160
c) Dívida Externa
Com os custos da guerra sendo superiores a 15 bilhões de dólares por ano161 e com o
esgotamento das reservas internacionais em meio a um impasse no front de batalha com o
Irã, Saddam Hussein buscou aproximar-se, primeiramente, das monarquias do Golfo e,
posteriormente, do Ocidente e da União Soviética, não somente para a aquisição de
equipamentos militares, mas também para a concessão de empréstimos. Acordos bilionários
155 SLUGLETT, pp. 264.156 HIRO, pp. 109.157 SLUGLETT, pp. 264.158 HIRO, pp. 109.159 MARR, pp. 204.160 ABURISH, pp. 217.161 TRIPP, pp. 238.
133
foram concedidos e, conforme o país se aproximava da derrota (como em 1986), o
financiamento se tornava ainda maior, já que os credores receavam uma moratória caso o
Iraque perdesse a guerra. Ao final da guerra, o país contraíra uma dívida de quase 90
bilhões de dólares (empréstimos de 8 bilhões da União Soviética; 27 bilhões do Ocidente e
da Ásia, principalmente Alemanha, França, EUA e Japão; 10 bilhões de países como Brasil,
Turquia e Coréia do Sul e entre 40 e 50 bilhões dos países árabes; no caso destes,
notadamente Arábia Saudita e Kuwait, havia ainda de 30 a 40 bilhões conseguidos por
meio da venda de petróleo em nome dos iraquianos em campos de petróleo fronteiriços)162.
d) Impacto da Guerra na Infra-Estrutura e os Custos Humanos
Como visto, a guerra se concentrou majoritariamente no sul, o que repercutiu num
grande grau de destruição, em especial de cidades importantes, como Basra (um dos
principais alvos dos iranianos). Com os ataques naquela região, muitas das facilidades
petrolíferas e dos complexos industriais (como grandes fábricas de aço e ferro) foram
perdidos. Tanto no sul, como no norte, o setor agrícola foi severamente afetado; o centro do
país, porém, manteve-se praticamente intacto, e desenvolveu-se bastante no período, com
grandes pólos petroquímicos e refinarias, além de novos hospitais e milhares de moradias,
especialmente na região de Tikrit163, o local de origem de boa parte da elite política do país.
Os custos humanos, porém, foram altíssimos. Fontes164 colocam o número de mortos
iraquianos nas batalhas entre 125 mil e 300 mil, além cerca de 50-100 mil mortos na
campanha de Anfal e dos 250 mil feridos. Contudo, mais do que os números, a guerra
representou a perda de uma geração inteira de jovens e trabalhadores165, o que repercutiu,
juntamente com as transformações econômicas sofridas, numa nova configuração da
estrutura social iraquiana.
e) Transformações na Estrutura Social do Iraque
162 MARR, pp. 205.163 Idem, pp. 206-207. 164 MAKIYA, pp. 259-260; MARR, pp. 207-208; TRIPP, pp. 248.165 MARR, pp. 208.
134
O primeiro aspecto relevante sobre o tema é que a mobilização de quase dois
milhões de soldados repercutiu em grande falta de mão-de-obra, e requereu, para isso, tanto
um ingresso massivo de mulheres no mercado de trabalho como a vinda de trabalhadores
estrangeiros, como indianos, filipinos, coreanos, egípcios, iemenitas e jordanianos,
totalizando cerca de 1.5 a 2 milhões de imigrantes, ou quase 40 por cento da força de
trabalho do país.166 Vários deles chegaram a compor as forças armadas, e a abertura do país
para a chegada de árabes de países em geral mais pobres repercutiu em grande aumento de
popularidade de Saddam no mundo muçulmano.167
A guinada da política econômica resultou em drásticas alterações na composição
das classes sociais, o que mudaria mesmo a base de apoio central do regime. O
neoliberalismo afetou a mobilidade social, um dos grandes trunfos do governo baathista168.
A queda dos salários dos servidores públicos e a venda de algumas das empresas estatais
para a iniciativa privada (e o início da desregulamentação das leis trabalhistas e do
enfraquecimento dos sindicatos)169 irritaram bastante a classe média tradicional,
enfraquecendo o apoio desse grupo ao regime. Com as privatizações, emergiu uma sólida
classe de nouveaux riches, formada por membros de todos os grupos e etnias170, e que se
aliaria fortemente ao Estado durante a guerra (o que era positivo para o regime, na medida
em que parecia indicar o seu não sectarismo, além de viabilizar o aumento do controle
social em todas as regiões do país). Logo, a desigualdade social voltaria a ser um problema
alarmante, já que a posição privilegiada de alguns grupos de locatários e empreendedores –
que atuariam como intermediários entre as firmas estrangeiras e os construtores locais e
controlariam várias empresas e propriedades agrícolas – resultaria em grandes lucros e,
dessa forma, em rápido enriquecimento171.
166 HIRO, pp. 4.167 ABURISH, pp. 200-201.168 MARR, pp. 208.169 SLUGLETT, pp. 275.170 MARR, pp. 208.171 SLUGLETT, pp. 274.
135
136
CAPÍTULO 5 – O Período 1989-1991
O Iraque emerge vencedor após o término da maior guerra convencional do século
XX1 mas, apesar das grandes celebrações, não havia nada palpável em termos de conquistas
a serem exibidas aos iraquianos. Pelo contrário, além de o cessar-fogo com o Irã não ter
sido sucedido por um imediato acordo de delimitação de fronteiras, trocas de prisioneiros
de guerra e, eventualmente, indenizações, o país mesopotâmico encontrava-se altamente
endividado e com diversos problemas para gerar receitas, em meio à lenta recuperação na
produção do petróleo (praticamente seu único bem exportável), à queda ainda maior de seu
preço e a problemas logísticos para seu envio para outros países. Ao mesmo tempo, a
população iraquiana aguardava por ansiedade para um comportamento da economia similar
ao pré-guerra, levando a liderança a prometer novos planos de desenvolvimento de larga
escala.
Na política externa, o regime de Saddam Hussein buscaria, de início, travar boas
relações, principalmente com os vizinhos, esperando pela continuidade do apoio
econômico, o que não ocorre. O presidente iraquiano passa, então, a pressionar pelo
aumento do preço do petróleo para que, assim, pudesse ampliar a entrada de recursos que
pudesse alimentar o setor produtivo como outrora; o aumento do tom da retórica,
especialmente contra o Kuwait, não repercute em ganhos. Paralelamente, o novo governo
dos Estados Unidos, presidido por George H. W. Bush, após inicialmente mostrar-se a
favor do governo iraquiano, muda de estratégia, condenando-o pelas infrações aos direitos
humanos. Isolado internacionalmente e com um país ainda sem recuperação econômica,
Saddam decide invadir o Kuwait em Agosto de 1991.
Embora a invasão fosse um sucesso, sua repercussão é altamente negativa,
principalmente no bloco ocidental, que imediatamente, por meio das Nações Unidas, reage
por meio de agressivas sanções econômicas ao Iraque. Após três meses de tentativas de
negociação dos dois lados, é aprovado documento autorizando a remoção à força das tropas
de Saddam do Kuwait, o que acontece após cerca de seis semanas de combate. Logo em
1 HIRO, pp. 1.
137
seguida, os Baathistas enfrentariam ainda a maior intifada da história moderna do país, só
controlada após um mês de conflitos e com a conivência dos Estados Unidos e demais
aliados. Contudo, uma nova intervenção ocidental, desta vez com alegado caráter
humanitário, protege os curdos das tropas iraquianas, viabilizando, no longo prazo, um
verdadeiro governo autônomo no Curdistão. Assim, no final de 1991 a liderança de Saddam
Hussein passa por seu momento mais frágil até então, tendo a crise econômica interna ainda
mais agravada com as sanções da ONU e, com isso, distancia-se ainda mais de suas bases
de poder e da população em geral.
Neste capítulo, buscaremos discutir os tópicos principais tratados pelos especialistas
neste período estudado, como as políticas econômicas adotadas, as linhas da política
externa, as razões, objetivos e os desenvolvimentos históricos, políticos, econômicos e
ideológicos da invasão do Kuwait e da subseqüente Guerra do Golfo de 1991, além da
relação do regime com as opções e o estudo mais acurado sobre as razões do fracasso da
intifada de 03.91, considerada um momento de grande relevância na história recente do
país. Para efeitos de didatismo e organização o estudo dos macro-temas mencionados se
dividirá em dois momentos: antes da invasão do Kuwait e da Guerra do Golfo e durante os
mesmos para que, no Epílogo, sejam vistos os doze últimos anos do regime (1991-2003).
Os aspectos ideológicos empregados pela liderança iraquiana serão estudados numa seção à
parte, no final deste capítulo.
I) O Período Pré-Invasão
1. A Economia Iraquiana: 1989-90
Ao término da guerra, como visto anteriormente, o país se encontrava numa
situação econômica adversa, dados os altos custos humanos e econômicos, a dívida externa
e a necessidade de se fortalecer o próprio regime perante a opinião pública, que esperava
pela retomada do ritmo de crescimento obtido durante a década de 70 e ainda nos primeiros
anos da guerra. A política econômica adotada, por um lado, reforçou seu caráter neoliberal
(que começara a se tornar cada vez mais relevante ainda durante o embate com o Irã); por
outro, retornou com gigantescos projetos (de infra-estrutura e de celebração pela “vitória”
138
do país na guerra) com forte preponderância do Estado. As práticas e os efeitos de tais
escolhas serão debatidos nas seções seguintes.
a) O Ressurgimento da Política “Canhões e Manteiga”
A euforia popular existente logo após o final da guerra com o Irã foi alimentada por
promessas do governo em fazer o país voltar a manter altas taxas de crescimento
econômico. Como mostra desse empenho, Saddam Hussein anunciou uma série de obras de
infra-estrutura pelo país: a criação de um sistema de metrô em Bagdá, um aeroporto em
Mosul, mais de três mil quilômetros de ferrovias, seis auto-estradas conectando o país à
Turquia e à Jordânia, duas grandes represas e fábricas de produtos químicos.2 O governo
ainda investiu quatro bilhões de dólares na reconstrução de Basra e Fao, além da expansão
do porto de Umm Qasr e do complexo industrial3, ambos na região sul do Iraque. O regime
também concentrou grandes esforços na construção de estátuas, obras e monumentos de
grande proporção para celebrar a vitória do país, ao mesmo tempo em que a conectava à
figura de Saddam Hussein.4 Finalmente, os gastos com armamentos militares (inclusive
não-convencionais) aumentavam continuamente; o número de pessoas trabalhando no setor
da industrialização militar chegava a cem mil, e o valor total gasto nesses programas
bélicos chegava a 88 por cento de todas as exportações petrolíferas.5
b) A Continuidade da Liberalização Econômica
Os onerosos gastos estatais em setores de grande visibilidade popular (e em áreas
estratégicas), que atuaram como uma maneira efetiva de mobilização a favor do regime
logo ao término da guerra, não atenuaram a crise econômica.6 Os custos de reconstrução
eram calculados em 230 bilhões de dólares, o que significaria que, mesmo que o país
investisse todo o dinheiro obtido por meio das exportações do petróleo para aqueles
esforços, a reparação só seria completada após duas décadas; no imediato pós-guerra, as 2 CLAWSON, Patrick. “Iraq’s Economy and International Sanctions”, in Amatzia Baram e Barry Rubin (eds.), Iraq’s Road to War (Londres: Macmillan, 1993), pp. 72.3 MARR, pp. 213.4 KARSH, pp. 195-196.5 ABURISH, pp. 261.6 MARR, pp. 219.
139
receitas anuais vindas das exportações (13 bilhões de dólares) mal cobriam as importações
civis (12 bilhões), e eram insuficientes para os gastos militares, e o pagamento das dívidas
(5 bilhões)7. O aprofundamento das privatizações e da liberalização econômica foram as
medidas tomadas pelo governo à época. O governo removeu o controle de preços sobre os
produtos, vendeu ativos do Estado e incentivou uma maior participação do setor privado
nas importações8, além da própria redução nas taxações sobre a compra de produtos
estrangeiros. Cada vez mais multinacionais foram trazidas para viabilizarem projetos de
capital intensivo; subsídios agrícolas foram cortados. O governo encorajou a formação de
empresas de capital misto, buscando atrair principalmente os recursos de empresas árabes.
Uma medida significativa desse processo de liberalização foi o que se denominou a
“revolução administrativa” em que, visando reduzir o poder da burocracia (e, por
conseguinte, do próprio partido), o regime diminuiu o tamanho do setor público por meio
da privatização de 47 empresas estatais, responsáveis pela produção de alimentos, têxteis,
construção civil, plásticos e alumínio; agricultores tiveram permissão para vender
diretamente para os comerciantes; paralelamente, direitos trabalhistas continuavam a ser
reduzidos.9 Apesar de não implementadas, idéias tidas como radicais para a alteração da
estrutura do país, como a formação de uma bolsa de valores e a privatização de todo o setor
bancário, foram circuladas, o fazia com que observadores internacionais vissem todas essas
medidas com maior seriedade do que as anteriores.10
c) Efeitos da Política Econômica
Apesar das transformações promovidas e do eventual ganho de eficiência, a crise
econômica no país continuou a vigorar. A inflação continuava a subir, chegando a cerca de
45 por cento em 1990, o que atingia principalmente os funcionários públicos, que recebiam
salários fixos; com isso, o governo foi forçado a retornar o controle de preços em algumas
áreas. Os cortes feitos na burocracia levaram a um nível alto de desemprego; nesse
contexto, a desmobilização de cerca de um milhão de soldados era inviável, já que a
presença das mulheres e de trabalhadores estrangeiros no mercado de trabalho durante a
7 KARSH, pp. 201-202.8 TRIPP, pp. 251.9 SLUGLETT, pp. 274-276.10 KARSH, pp. 197.
140
guerra não poderia ser simplesmente negligenciada11. A população, em especial a classe
média, passou a ficar cada vez mais descontente, sentindo-se deslocada e insegura. Em
resposta às pressões, Saddam afirmava que o aumento do preço do petróleo seria a solução
para o retorno ao desenvolvimento econômico, o que indica, para Marr, que o regime
demonstrava cada vez mais o seu despreparo para lidar com a situação.12
d) Outros Problemas: o Shatt, a Queda do Preço do Petróleo e a Dívida
Externa
O Shatt-al-Arab continuava fechado após a guerra, tanto pela grande concentração
de detritos e pela contaminação da água com armas químicas, como pelo não ajustamento
das fronteiras entre Iraque e Irã. Com isso, Saddam fora forçado a deslocar suas
exportações para o porto de Umm Qasr, na fronteira com o Kuwait; além disso, a
exploração dos campos de petróleo de Majnun (um dos mais prósperos do país), na zona
fronteiriça com o Irã, também foi inviabilizada, dado o receio de retaliações iranianas
(levando-se em conta o frágil cessar-fogo assinado entre os países no final da guerra).13
Uma questão bastante relevante para a continuidade da crise econômica no país fora
a queda no preço do petróleo. De acordo com Marr14, o produto estava cotado em 21
dólares em Janeiro de 1990; três meses depois, o valor caíra para menos de 18 dólares; às
vésperas da invasão ao Kuwait, uma nova queda, para cerca de 11 dólares; com esse valor,
segundo ela, o país só não faliria se realizasse uma moratória. De fato, segundo ela, a
Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) produzia, no início de 1990, 24
milhões de barris de petróleo por dia, dois milhões a mais do que o estipulado, sendo que
Kuwait e os Emirados Árabes Unidos eram responsáveis por 75 por cento desse excesso,
que se iniciara ainda durante a guerra Irã versus Iraque como maneira de repor a
diminuição da produção iraquiana nesses anos e que, após o fim do conflito, se recusaram a
baixar sua produção. Patrick Clawson, no entanto, entende que não havia superprodução
por parte do Kuwait, considerando que as determinações da OPEP eram obrigações
11 SLUGLETT, pp. 278.12 MARR, pp. 220.13 MARR, pp. 206-207; 219-220.14 Idem, pp. 221.
141
invioláveis para aquele país.15 Aburish, por sua vez, afirma que as monarquias mencionadas
aumentaram substancialmente sua produção de petróleo no dia seguinte ao cessar-fogo
entre Irã e Iraque, o que, desde o início, teria colocado o segundo pai sob uma pressão
econômica ainda maior.16
A dívida externa também se constituiu como uma grave dificuldade para o país,
muito embora os autores tendam a considerar a maneira como o regime lidou como o
problema como uma das razões para seu agravamento. De acordo com Karsh17, Saddam
Hussein se utilizava de várias táticas para lidar com os credores: lidando com cada um
separadamente, jogava uns contra os outros e se assegurava de que eles não consolidariam
seus interesses; Saddam ainda prometia àqueles que concedessem mais créditos seriam
favorecidos na oferta de contratos pelo governo. Marr afirma que o presidente iraquiano se
recusava a pagar as dívidas, preferindo rolá-las em troca de novos empréstimos, levando a
um substancial aumento do débito externo.18 Contudo, Clawson não entende a dívida como
um grande problema para o regime (e que, portanto, não seria, em última instância, um
fator para a invasão do Kuwait), já que outros países do chamado terceiro mundo tinham
dívidas proporcionalmente muito maiores e, ainda sim, não se utilizaram de meios militares
para resolvê-la.19
e) Razões do Insucesso e Eventuais Políticas Alternativas
Os autores, em geral, tendem a culpar primordialmente o próprio governo pelo
fracasso das políticas econômicas adotadas. Sluglett entende que, embora os investimentos
na reconstrução das cidades, da infra-estrutura e das indústrias fossem necessários, os
exorbitantes gastos em armamentos e na construção de monumentos consagrando Saddam
Hussein e a vitória iraquiana na guerra eram ambas altamente dispensáveis; além disso, o
caráter das reformas implementadas fez com que, ao invés de os empresários investirem na
busca do capital produtivo, buscaram simplesmente especular, alcançando ganhos rápidos e
15 CLAWSON, pp. 71.16 ABURISH, pp. 260.17 KARSH, pp. 202.18 MARR, pp. 220.19 CLAWSON, pp. 72.
142
fáceis e, com isso, aumentando o fosso social entre ricos e pobres.20 Karsh21 argumenta que
as privatizações jamais dariam certo enquanto o setor petrolífero, responsável pela
esmagadora maioria das receitas do país, ficasse nas mãos do Estado; ele justifica o
comportamento dos capitalistas em razão do caráter repressivo do regime e das periódicas
convulsões sociais, que tornariam o Iraque um país constantemente instável e, desta forma,
o investimento em capital produtivo seria demasiado arriscado. É possível dizer que, nesse
sentido, o autor se aproxima de Sluglett22, que entende a liberalização econômica como
viável somente em paralelo com a liberalização política e com o Estado de Direito.
CLawson afirma que faltou ao governo definir prioridades (já que seria inviável
desenvolver todos os problemas mencionados simultaneamente); além dos investimentos
inapropriados, o governo teria ainda colocado excessivas regulações sobre o setor privado,
o que teria levado a uma sub-otimização das capacidades produtivas do país; nesse sentido,
a liberalização econômica do país teria sido muito pequena, incapaz de diminuir o tamanho
do Estado na economia. Pior, faltaria um verdadeiro projeto de desenvolvimento para o
país, que teria sido colocado de lado para manter um controle estrito sobre a sociedade.23
Aburish24, contudo, afirma que Saddam tinha um plano de desenvolvimento de longo prazo,
mas o contexto internacional de indisposição dos até então parceiros na guerra contra o Irã
em ajudar a reconstruir o país a partir do fim do conflito inviabilizou suas políticas. Ele
também acredita, no entanto, que a recusa em seguir um programa econômico
verdadeiramente austero e a continuação em tentar manter a população “bem alimentada”
fizeram com que as práticas adotadas fossem um fracasso. Marr crê que as opções de
investimento bélico e de grandes esforços de reconstrução foram equivocadas, além da
maneira com que o regime buscou negociar sua dívida externa (que repercutiu na fuga de
capitais estrangeiros que ajudariam bastante na revitalização da economia iraquiana).25
Dentre as alternativas apontadas para a solução de curto prazo da crise, Sluglett
aponta para um direcionamento prudente e seletivo dos recursos do país, além de um
controle rígido das importações e do próprio gasto público.26 Marr afirma que um re-
20 SLUGLETT, pp. 277-278.21 KARSH, pp. 202-203.22 SLUGLETT, pp. 277.23 CLAWSON, pp. 70-72.24 ABURISH, pp. 259-262.25 MARR, pp. 22026 SLUGLETT, pp. 277.
143
escalonamento da dívida externa – vista por ela como o maior problema para o regime –
para prazos mais longos aumentaria a confiança internacional e viabilizaria a vinda de
créditos de curto-prazo necessários para o equilíbrio do setor econômico do Estado.27
Clawson indica que, em vez de dedicar grandes somas de dinheiro na elaboração de
projetos sofisticados, o regime poderia dedicar seus recursos para investimentos de pequeno
porte, que seriam segundo ele, muito mais efetivos no crescimento de um país; nesse
sistema, empreendedores internacionais poderiam viabilizar o capital necessário para que,
por exemplo, o setor agrário fosse reavivado e, com isso, o país não tivesse que importar
tantos alimentos.28 Aburish, todavia, afirma que, no curto prazo, as saídas mais eficientes
para o país eram o aumento do preço do petróleo e de sua produção e/ou o empréstimo de
mais dinheiro.29
Um sub-tema importante desta discussão é o debate sobre as reais condições da
economia iraquiana, visto que, conforme será visto mais adiante, a economia era vista como
uma das razões para a invasão do Kuwait. Por um lado, Karsh e Marr entendem que, no
período 1988-90, a economia iraquiana esteve cada vez mais próxima do colapso, tendo já
saído do conflito com o Irã em péssimas condições (também pelos altíssimos custos
humanos).30 Por outro lado, Clawson e Sluglett defendem que a situação do Iraque não era
tão desesperadora, buscando comprovar suas teses tanto pelo indicativo de que a situação
econômica do país em 1990 era melhor do que em 1988 (graças ao aumento das
importações e das exportações e do seu contínuo pagamento das dívidas)31, como pela
consideração de que o país possuía extensivas reservas petrolíferas, e que não teria havido
uma redução significativa do preço do petróleo no período; assim, a desesperação das
posições financeiras do país (como a manutenção do poder e a liderança do mundo árabe)
seria fruto muito mais das prioridades de Saddam Hussein do que um fato objetivo.32
2. Política Doméstica
27 MARR, pp. 220.28 CLAWSON, pp. 72.29 ABURISH, pp. 259-260.30 KARSH, pp. 201; MARR, pp. 220.31 CLAWSON, pp. 71.32 SLUGLETT, pp. 277-279.
144
Ao fim de um longo conflito – iniciado, em parte, pelo receio de subversão interna
por parte dos xiitas e culminado com uma repressão sem precedentes sobre a minoria curda
–, o regime de Saddam Hussein dava mostras de que, mesmo com o rígido controle do país
e com uma intensa campanha de culto à sua personalidade, a coesão nacional, um dos
grande problemas históricos do Iraque, ainda não havia sido plenamente assentada, muito
embora pudesse ser considerada uma vitória a integridade do país após todos os
desenvolvimentos da década de 80. No intervalo entre as duas guerras, o presidente
iraquiano buscaria voltar a ganhar apoio popular enquanto tentava retomar o domínio das
esferas estratégicas do Estado, não sem sofrer crises internas.
a) Promessas de Liberalização
Ainda dentro da forte campanha promovida pelo governo para celebrar a vitória
iraquiana, Saddam Hussein realizou uma série de promessas públicas em que, juntamente
com a abertura econômica, promoveria uma notável ampliação de direitos políticos. Dentre
as medidas anunciadas, estavam uma anistia geral aos prisioneiros políticos do país; a idéia
do estabelecimento de um sistema multipartidário no país; uma nova constituição, que
asseguraria a realização de eleições diretas para presidente; a formação de partidos de
oposição e de uma imprensa livre e o desmantelamento do Conselho do Comando
Revolucionário. Num demonstrativo da aparente seriedade de seu esforço, convocaria
reuniões entre o CCR e o Comando Regional do Baath para discutir suas propostas e
elaborar um comitê para formular uma versão prévia da constituição.33 O líder iraquiano
convocava a população para a crítica aos ministros do governo e à burocracia do estado;
porém, as manifestações adversas eram, de fato, somente permitidas a alguns setores,
notadamente aqueles de perfil mais técnico e que, no momento crítico que o país vivia,
eram colocados como culpados pelo próprio círculo de poder de Saddam (eximindo-se de
quaisquer culpas), como os economistas e os tecnocratas ligados a esse setor.34 Indivíduos
que não pertencessem ao Baath poderiam concorrer às cadeiras da Assembléia Nacional
(que continuava a ser mera porta-voz do regime)35, mas vários continuaram a ser vetados
33 KARSH, pp. 197.34 TRIPP, pp. 250.35 SLUGLETT, pp. 276-277.
145
pela comissão eleitoral. Para Karsh, a “democratização” da política iraquiana não era
realizada unicamente por pressões domésticas, ou mesmo como uma maneira de viabilizar
uma infra-estrutura para as privatizações na economia; os esforços se direcionavam
também (e, possivelmente, com maior intensidade), para melhorar a imagem iraquiana no
Ocidente, que se abalava cada vez mais com as denúncias de infração aos direitos
humanos.36
b) Centralização do Poder, Escândalos Familiares e o Neopatrimonialismo
Na prática, o que ganhava força no pós-guerra, era uma tentativa de centralização
ainda maior do poder por parte de Saddam Hussein. Apesar do fato de o CCR e os
comandos nacional e regional do partido continuarem a realizar suas reuniões regularmente
e, em tese, discutirem os problemas do país eles, mais do que nunca, passaram a cumprir
função meramente cerimonial dentro do funcionamento do estado iraquiano. Saddam
Hussein havia substituído todas as estruturas políticas do país como idealizador e tomador
de decisões37, tornando mesmo seus círculos mais próximos inefetivos que, então, se
tornaram meros coadjuvantes, aceitando todas as deliberações do presidente iraquiano
mesmo que pudessem vir a ser contraditórias entre si. Em última instância, tal
comportamento cada vez mais afetaria a capacidade de Hussein em julgar o mundo real,
conforme aponta Karsh38. Tal raciocínio é referendado por Aburish, ao enumerar os
monumentos feitos por Saddam para homenagear a si mesmo, além de outras
extravagâncias que o pretendiam colocar como “um novo conquistador árabe” perante
todos, inclusive a ele mesmo.39
Paralelamente a essa acumulação de funções por Saddam Hussein e um número
extremamente restrito de pessoas, aprofundavam-se inúmeros casos de corrupção e outros
escândalos familiares. Embora alguns fossem relacionados com disputas políticas, como a
substituição de parentes na área de segurança oriundos do clã Nida para o al-Majid40 (ao
qual pertencia o próprio presidente), outros se referiam a disputas puramente pessoais;
36 KARSH, pp. 198. Aburish (pp. 260-261) apresenta argumentação similar.37 ABURISH, pp. 264-265.38 KARSH, pp. 188-189.39 ABURISH, pp. 265-266.40 TRIPP, pp. 250.
146
ainda sim, repercutiam em instabilidades e subseqüentes mudanças na distribuição de poder
dentro dos níveis superiores do governo. Por vezes, as contínuas substituições levavam
mesmo à perda de eficiência do Estado, como a colocação de parentes inexperientes, pouco
comprometidos e sem conhecimento algum sobre as áreas que passaram a gerenciar.41
A crise econômica e a subseqüente liberalização, entretanto, alteraria a estrutura de
clientela que também ajudava a sustentar o regime. Por um lado, a falta de recursos para
manter o sistema de patronagem42; por outro lado, o favorecimento de setores ligados ao
capital privado retirava o apoio de boa parte da população que, por ter estado
historicamente envolvida pelo poder público, havia se acostumado à estabilidade do
emprego e o subsídio estatal dos produtos para o consumo.43 A imagem pública de Saddam
Hussein, graças a essa conjuntura, passou a deteriorar-se cada vez mais no plano
doméstico; a piora das condições econômicas do país contribuiu enormemente para isso.
c) Relações do Regime com Xiitas, Curdos e Militares
Com a enorme repressão feita pelo regime contra as organizações oposicionistas das
comunidades xiita e, em especial, curda durante o conflito contra o Irã, o período 1988-90
foi marcado por pouca atividade coordenada desses grupos, que passaram, em geral, a
adotar uma política de conciliação: vários dos xiitas que realizaram oposição ativa durante
a guerra exilaram-se em outros países, enquanto os partidos curdos buscavam, por meio da
aproximação com o governo, a conservação do pouco que restara dos vilarejos do
Curdistão.44 A coesão nacional certamente havia se tornado mais precária após o fim da
guerra, e vastos segmentos populacionais continuavam a estar alienados do regime.45
Contudo, nem o governo, nem as instituições que representavam os iraquianos eram
capazes, à época, em identificar com maior precisão o aumento do descontentamento
popular contra o governo de Saddam (pois não contava com pesquisas elaboradas sobre as
condições sócio-econômicas dos iraquianos), já que o seu motivo, a crise econômica,
transcendia sectarismos e classes sociais46.41 ABURISH, pp. 266.42 TRIPP, pp. 250-251.43 SLUGLETT, pp. 278.44 al-JABBAR, Faleh Abd. Why the Uprisings Failed, pp. 4. 45 MARR, pp. 217.46 al-JABBAR, pp. 5.
147
A maior ameaça naquele período parecia vir do setor militar, que emergira bastante
popular no imediato pós-guerra47, apesar dos esforços de Saddam em evitar ao máximo a
exposição pública de figuras tidas como “heróis” da guerra. Devido ao fato de que a
corporação militar havia crescido substancialmente durante a década de 80, ela havia se
tornado bastante heterogênea, o que inviabilizava a formação de um senso forte de
identidade entre seus membros. Isso permitiu ao presidente iraquiano utilizar as táticas de
discriminação e prisão de oficiais que se tornaram figuras notórias e a promoção de oficiais
menos reconhecidos (especialmente aqueles que eram de Tikrit), tornando-os, por esse
favorecimento, mais dependentes de Hussein.48 Além disso, Hussein continuava a promover
expurgos de centenas de oficiais, justificando-os por meio do anúncio de denúncias de
tentativas de golpes militares nos anos de 1989 e 199049.
3. Política Externa
A vitória conquistada sobre o Irã (entendida em termos da conquista da manutenção
do regime e do refreamento da exportação da revolução islâmica) não significou, no plano
internacional, o aumento da capacidade iraquiana em influenciar seus vizinhos ou,
eventualmente, o ocidente. As relações internacionais passavam por um ajuste importante,
marcado pelo enfraquecimento da União Soviética, aliado histórico do Iraque e
contraposição ao predomínio norte-americano no Oriente Médio durante a Guerra Fria. Ao
mesmo tempo, a crise econômica enfrentada pelo regime de Saddam Hussein, que
ameaçava a continuidade de seu governo, fora entendida como conseqüência da situação
internacional, notadamente a questão do petróleo e a busca por apoio financeiro.
Inicialmente, Saddam adotaria uma postura mais moderada, buscando-se, pela diplomacia,
garantir vantagens comerciais relevantes para o Iraque. A partir de meados de 1990, sem
obter respostas que considerasse positivas, o presidente iraquiano aumentaria cada vez mais
sua retórica agressiva, até o ponto da invasão ao Kuwait, em Agosto. Nesta seção,
buscaremos analisar as relações iraquianas com os países vizinhos e com os Estados
Unidos, identificando continuidades e descontinuidades na postura dessas interações;
47 Idem, ibidem.48 TRIPP, pp. 249.49 BARAM, Amatzia. “The Iraqi Invasion of Kuwait: Decision-Making in Baghdad”; in BARAM, Amazia e RUBIN, BARRY, Iraq’s Road to War, pp. 8.
148
finalmente, faremos uma investigação, também sob moldes bibliográficos, sobre os
objetivos, razões e motivações para a invasão do Kuwait.
a) A Diplomacia Moderada
Com o fim da ameaça iraniana, o apoio externo ao Iraque não era mais tão
significativo quanto antes.50 Com os problemas econômicos que o país possuía, Aburish51
afirma que Saddam Hussein possuía duas alternativas de política externa para voltar a
influenciar os países da região, e que só seriam eficientes sem interferência externa: 1.
continuar o programa de armas não convencionais, de forma a tornar o Iraque uma potência
regional forte e ameaçadora o bastante para assumir uma posição de liderança dentre os
países do Golfo; 2. assumir a posição de liderança árabe se colocando como o campeão da
causa palestina e confrontando Israel. Ambas, em tese, permitiriam ao país forçar o apoio
dos países árabes e, inclusive o Ocidente, que poderia conceder créditos para barrar os
distúrbios iraquianos que pudessem afetar o equilíbrio regional entre árabes e israelenses;
para o autor, Saddam optara por uma combinação entre as duas possibilidades
mencionadas. A agenda iraquiana era, segundo Baram52, bastante extensa: a disputa
territorial com o Kuwait; a questão palestina; a presença norte-americana no Golfo e o
declínio da URSS nessa região; disputas sobre os preços do petróleo e sobre quotas de
produção; demandas iraquianas pelo cancelamento das dívidas e por ajuda financeira dos
países árabes do Golfo.
Nesse primeiro momento, a moderação iraquiana se deu em diversas arenas. No
final de 1988, apoiou o histórico reconhecimento de Israel pela Organização para a
Libertação da Palestina. Em Fevereiro de 1989, juntamente com o Egito, o Iêmen do Norte
e a Jordânia, o Iraque fundou o Conselho de Cooperação Árabe (CCA), grupo criado com o
objetivo de promover s causa palestina, resistir à hegemonia iraniana e pressionar a Síria.53
Em seguida, assinaria um pacto de não-agressão com a Arábia Saudita, e buscaria uma
aproximação ainda maior com o Egito. Mais especificamente com o Kuwait, Saddam 50 ABURISH, pp. 253.51 Idem, pp. 254.52 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait”, pp. 9.53 KARSH, pp. 200. Marr (pp. 213) afirma que os objetivos da organização não eram claros; Aburish (pp. 257) concorda com essa afirmação, entendendo que se sua elaboração era mais um esforço iraquiano de liderança regional.
149
buscou pressionar, ainda por via diplomática, a cessão das ilhas de Bubiyan e Warba no sul
(que permitiriam ao país não só um grande aumento nas capacidades do porto de Umm
Qasr, mas também a efetivação de uma marinha iraquiana, até então virtualmente
inexistente)54 e o cancelamento da dívida; a visão por parte dos kuwaitianos de que sua
ajuda durante a guerra anterior contra o Irã55 e a sua contrapartida de demarcação em partes
não-definidas da sua fronteira com o Iraque56 (o que não foi aceito por Saddam)
inviabilizaram os avanços diplomáticos. A aproximação com esses países, em geral
considerados moderados, tiveram repercussão positiva no Ocidente.57
Contudo, a repercussão internacional do uso iraquiano de armas químicas contra a
população curda no final da guerra foi tremendamente negativa, o que começou a afetar a
relação do Iraque com os Estados Unidos. Durante o ano de 1989, no entanto, apesar dos
relatórios da inteligência norte-americana indicando a continuidade do programa bélico
iraquiano, a pressão do Congresso por sanções econômicas contra o regime de Saddam e o
aumento das reportagens críticas por parte dos meios de comunicação, o executivo,
influenciado pelo exponencial aumento no comércio bilateral com o Iraque58 (em especial
no setor de armamentos, com a venda de motores para helicópteros, bombas à vácuo para
usinas nucleares, equipamentos de comunicação, amostras de bactérias e toneladas de gás
Sarin)59, manteve relações razoavelmente cordiais com Hussein. Para Khadduri, os Estados
Unidos não entendiam o Iraque como um aliado, mas acreditavam que o país poderia atuar
como uma força a favor da moderação e da paz no Oriente Médio.60
b) A Diplomacia Agressiva e o Contexto da Ofensiva Iraquiana no Kuwait
Embora a maioria dos especialistas tenda a considerar isoladamente um ou outro
fator como preponderante para o reajuste da política externa iraquiana a partir do início de
54 MARR, pp. 218-219.55 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait”, pp. 10.56 KOSTINER, Joseph. “Kuwait: Confusing Friend and Foe”; in Iraq’s Road to War, pp. 111.57 KARSH, pp. 200.58 Idem, pp. 199. De acordo com o autor, o crescimento comercial também era lucrativo para a Grã-Bretanha. Aburish (pp. 267-268) também argumenta sobre o descolamento entre o comportamento do poder executivo e da inteligência no período.59 ABURISH, pp. 269.60 KHADDURI, Majid; GHAREEB, Edmund. War in the Gulf, 1990-91, pp. 96-97.
150
199061, a junção de diferentes eventos parece ganhar uma maior capacidade explicativa para
compreender as ações iraquianas que, em última instância, levaram à invasão do Kuwait em
Agosto daquele ano.
Tripp considera que a continuidade da crise econômica dentro do país, auxiliada
pelo insucesso das reformas econômicas implementadas por Saddam e pela continuidade do
declínio do preço do petróleo levaram o regime iraquiano a buscar persuadir a OPEP a
diminuir as quotas de produção e a cobrar mais empenho à Arábia Saudita e ao Kuwait a
ajudar o Iraque.62 Clawson concorda com a ênfase econômica dada por Tripp na explicação
para a alteração da postura de Saddam, mas salienta que a atitude do líder iraquiano era
baseada na sua indisposição em abandonar suas políticas tidas como populistas, somente
viáveis pelo contínuo aumento do preço do petróleo.63 Aburish responsabiliza
principalmente a continuidade das seguidas críticas do Congresso norte-americano ao seu
regime, o que, pelas reverberações negativas (como o aumento das pressões por sanções
econômicas, cessação do envio de créditos alimentícios e corte de envios de equipamentos
para uso militar), punha em risco a capacidade iraquiana tanto de proporcionar bem-estar à
população como de manter seu programa de desenvolvimento bélico, que mantinha as
aspirações iraquianas de liderança regional; além disso, o aumento da produção de petróleo
por Kuwait e os Emirados Árabes Unidos, em desacordo com as quotas estabelecidas pela
OPEP, teriam colocado o país num apuro ainda maior.64 Karsh insere a mudança de
orientação da política externa iraquiana no contexto das várias quedas de regimes, a seu
ver, similares ao iraquiano na Europa Oriental, que significariam o aumento da
predominância dos Estados Unidos na arena internacional e, com isso, cresceriam as
chances de uma conspiração para a derrubada de seu governo.65 Khadduri66 considera como
61 Autores como Fred Halliday (cf. Islam and the Mith of Confrontation, pp. 84) entendem que a reorientação da política externa iraquiana tenha ocorrido ainda em 1989, mas só se tornado aparente a partir de 1990. De acordo com ele, Saddam Hussein esperava que, com a morte de Khomeini, o Iraque pudesse negociar um acordo com o Irã que lhe fosse favorável, supondo que este estivesse enfraquecido após a morte de seu líder. No entanto, ao contrário de sua previsão, o novo governo iraniano se estabeleceu com bastante solidez; sem conseguir extrair vantagens do vizinho maior, teria resolvido tentar suas chances contra o menor e mais frágil, Kuwait.
62 TRIPP, pp. 251-252.63 CLAWSON, pp. 72. Conforme visto (cf. nota 31), o autor discorda sobre os efeitos do declínio do petróleo na economia iraquiana já que, em números absolutos, as exportações continuavam a aumentar no período.64 ABURISH, pp. 258-260.65 KARSH, pp. 208.66 KHADDURI, pp. 95-100.
151
pano de fundo para o aumento da agressividade iraquiana três fatores: a instabilidade no
Oriente Médio após o término da guerra com o Irã, já que o cessar-fogo com o vizinho era
extremamente frágil, e requeria, em sua consideração, a continuidade do rearmamento
iraquiano para manter a estabilidade na região; tal aumento da capacidade militar teria
aumentado as preocupações dos Estados Unidos e de seu aliado regional, Israel, de que o
equilíbrio de poder regional fosse alterado, levando a relações cada vez mais duras entre
eles e o Iraque; o aumento das tensões estremeceu as relações iraquianas com os norte-
americanos, levando a uma contínua desconfiança mútua que resultou em escaladas
retóricas cada vez mais agressivas. Baram67 acredita que os vários eventos mencionados,
incluindo o fechamento do rio Eufrates pela Turquia em 01.1990 para encher uma represa
local (e que gerou grandes protestos nas comunidades xiitas do sul) criaram um grande
senso de vulnerabilidade por parte do governo iraquiano, que passou a defender-se com
críticas cada vez mais duras ao ocidente e seus aliados na região. Em outras palavras, teria
havido, no seio da liderança iraquiana, a convergência de sentimentos de insegurança
internos (motivados principalmente por fatores econômicos) com um grande senso de
insegurança externa, dada a configuração diferenciada que tomada a ordem mundial e a
impossibilidade gradativa de se implantar os planos de liderança regional dentro desse novo
contexto.
i. Relações com os Estados Unidos e o Ocidente
A partir do início de 1990, o relacionamento iraquiano com o Ocidente
(principalmente os Estados Unidos) se deteriorou rapidamente. De forças essenciais para a
vitória iraquiana apenas dois anos antes, transformaram-se, cada vez mais, em opositores
claros às demandas iraquianas, muito embora alguns esforços de mediação, ainda que
falhos, foram realizados. Nesta seção, investigaremos as eventuais motivações para a
mudança de postura ocidental e as repercussões de eventos importantes do período, como a
condenação à morte sob acusação de espionagem de um repórter anglo-persa e o encontro
de Saddam Hussein com a embaixadora norte-americana em Bagdá, às vésperas da invasão.
67 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait”, pp. 10.
152
ii. A Alteração da Política Externa dos EUA perante o Iraque
Majid Khadduri68 defende a tese de que, dentro dos círculos de poder norte-
americanos, a corrente que defendia a cooperação com o Iraque, aceita pelo Departamento
de Defesa, prevaleceu de 1986 (após o caso Irã-Contras) até o início de 1990, quando a
linha mais dura, advogada pelo Congresso, pela Inteligência e pela imprensa passou a
delimitar as ações norte-americanas. A distinção comportamental entre os discursos de
Bush e as denúncias dos meios de comunicação não era bem compreendida e aceita pela
cúpula iraquiana. Eventos concomitantes, que continuaram a expressar esse indevido
entendimento da dinâmica política norte-americana, e a repercussão pública da apreensão
de material nuclear iraquiano deram força para a segunda corrente, cada vez mais
preponderante conforme Saddam aumentava o tom de suas críticas aos Estados Unidos e a
seus aliados. Aburish69 afirma que a descoberta da opinião pública norte-americana sobre a
participação de diversas corporações norte-americanas no rearmamento iraquiano, mesmo
com as críticas feitas pela imprensa, resultaram em grande pressão para o governo Bush,
que então passou a apoiar Saddam mais cautelosamente. Com a denúncia pública de
representantes norte-americanos sobre os direitos humanos existentes no Iraque e,
paralelamente, com as várias tentativas de assassinato ao presidente iraquiano, Saddam
passou a se convencer cada vez mais de que sofreria uma conspiração, e então passou a
criticar abertamente os EUA.
iii. O Caso Bazoft e a Operação Argus
Ainda em Março de 1990, Farzad Bazoft, jornalista anglo-iraniano, seria morto sob
acusações de espionagem. O caso repercutiu em todo o hemisfério ocidental de maneira
bastante negativa, resultando num isolamento definitivo do Iraque perante a maioria dos
países daquela região, o que seria particularmente importante para a formação da coalizão
anti-Iraque que removeria, um ano mais tarde, as tropas de Saddam do Kuwait. Para
Karsh70, a execução do jornalista ocorrera pela percepção de Hussein de que Bazoft seria
68 KHADDURI, pp. 96-99.69 ABURISH, pp. 271-272.70 KARSH, pp. 208.
153
um conspirador da aliança Irã-Inglaterra, e que sua morte, então, seria um recado claro de
força contra os potenciais golpistas ao regime iraquiano. Baram71 acredita que a pena tenha
sido aplicada para mostras de impassibilidade às potências ocidentais e, com isso,
minimizar as chances de apoio destas ao Kuwait; além disso, Saddam teria calculado que a
perda no comércio bilateral com a Inglaterra, da ordem de 400 milhões de dólares, não
seriam relevantes em relação ao que conquistaria adiante, já que as corporações inglesas
continuariam a vender armas para o Iraque (o que, por algum tempo, acabou ocorrendo).
Ainda em 1988, por meio da denominada Operação Argus, a inteligência norte-
americana passou a investigar o desenvolvimento iraquiano de armas não convencionais,
principalmente as nucleares. As contínuas apurações resultaram na interceptação, em
Março/Abril de 1990, de diversos componentes utilizados para a construção de bombas
atômicas; os estudos feitos pela CIA indicavam que o país estava a apenas alguns anos de
conseguir viabilizar aquele artefato bélico72. A resposta iraquiana, por meio de ameaças a
Israel, recebida com entusiasmo no mundo árabe, foi bastante criticada no ocidente,
contribuindo para deteriorar as relações do Iraque com aqueles países.73
iv. A Reunião com April Glaspie
A uma semana da invasão iraquiana, Saddam Hussein convidou a embaixadora
norte-americana em Bagdá, April Glaspie, para uma reunião, em que foram discutidas as
relações entre os países, as críticas iraquianas ao Kuwait e a percepção dos EUA sobre o
tema; dentre as afirmações da embaixadora, duas são especialmente relevantes: o
entendimento da crise como um assunto unicamente árabe, sem pretensão de envolvimento
dos Estados Unidos, e a confirmação da não assinatura de um pacto de defesa norte-
americano com os países do Golfo.74 As razões (afora a importância do encontro, discutida
mais adiante) para as declarações dadas pela representante estadunidense e para a própria
existência da reunião foram alvo de diversas interpretações. Para Baram75, tratou-se da
tentativa iraquiana de testar verdadeiramente a posição norte-americana sobre a querela do 71 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait”, pp. 11.72 RUBIN, Barry. “The United States and Iraq: From Appeasement to War”; in BARAM, Amatzia, e RUBIN, Barry. Iraq’s Road to War, pp. 262.73 KHADDURI, pp. 100.74 ABURISH, pp. 281-282.75 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait!, pp. 19-21. Karsh (pp. 215-216) possui posição similar.
154
Iraque com o país vizinho, de tal forma a verificar seu comportamento no caso de uma
invasão; para ele, os Estados Unidos promoveram o encontro para melhorar as relações
bilaterais com o Iraque, e não para pressionar o regime. Khadduri também vê a reunião
como uma maneira de Saddam buscar analisar o real posicionamento dos EUA após as
tensas relações que haviam sido estabelecidas entre os países nos meses anteriores; afirma
também que o posicionamento de Hussein não foi conciliatório, o que indicava que o
regime estava disposto a ir para a guerra.76 Marr77 apresenta duas outras explicações: o
encontro como marca do receio iraquiano de interferência norte-americana, servindo,
assim, como um aviso claro para mantê-lo fora da crise; outra, afirmava que o debate com a
embaixadora fazia parte de uma estratégia para enganar os Estados Unidos e, assim,
conseguir mais tempo para atacar o Kuwait sem sofrer retaliações prévias.
v. Relações com o Mundo Muçulmano e o Aumento das Pressões contra o
Kuwait
A partir do início de 1990, o aumento das críticas iraquianas em reuniões da OPEP e
da liga árabe se tornou cada vez mais evidente. Saddam Hussein requisitaria enfaticamente
para que os países árabes, em especial o Kuwait e os Emirados Árabes Unidos, passassem a
respeitar suas quotas de produção de petróleo. Representantes do governo iraquiano
realizavam, continuamente, rodadas de viagens pelos países do Golfo solicitando um
comprometimento maior destes com as demandas iraquianas.78 Mais especificamente,
Saddam aumentava suas críticas para com o Kuwait. Contudo, pouco era alcançado em
termos de concessões até alguns meses antes da invasão, a não ser a disposição da Arábia
Saudita em cancelar a sua parte da dívida iraquiana.79 Com o fim dos empréstimos norte-
americanos em Maio e informes sobre visitas de representantes da CIA ao Kuwait
(seguidas por novos aumentos na produção de petróleo kuwaitiano), o presidente iraquiano,
que se dedicava a lançar discursos anti-sionistas, passou a focar suas atenções no pequeno
país árabe.80 Em reunião extraordinária da Liga Árabe no final daquele mês, ataques mais
76 KHADDURI, pp. 113-114.77 MARR, pp. 227.78 KHADDURI, pp. 105-108.79 MARR, pp. 220.80 ABURISH, pp. 276-277.
155
duros à política do país vizinho se tornaram mais claras, como a declaração de Hussein de
que, de fato, a continuidade da recusa do Emir do Kuwait em atender as suas exigências era
“uma declaração de guerra contra o Iraque”81, além de demandar aos países árabes por uma
espécie de Plano Marshall, com investimentos de cerca de 30 bilhões de dólares para a
recuperação da economia iraquiana.82 Até o início de Julho, Saddam não havia recebido
nenhuma resposta clara do Kuwait, até que, num encontro de ministros do Iraque, Arábia
Saudita, Kuwait e Emirados Árabes Unidos fora estabelecido, finalmente, o cumprimento
das quotas de produção de petróleo estabelecidas pela OPEP. No entanto, no dia seguinte,
representantes do Kuwait declararam que o respeito ao promulgado na reunião seria revisto
dali em três meses, com possibilidade de cancelamento, o que fez as negociações recuarem
naquele momento.83 As tensões escalaram enormemente até o final do mês; o presidente
Mubarak, do Egito, tentara realizar a mediação entre Saddam e o Emir; conseguira um
encontro de representantes no final do mês, e acreditava que, com isso, a crise se
resolveria.84 Contudo, o encontro em Jidda, a 31 de Julho, foi um fracasso e, logo em
seguida, as tropas iraquianas (que já se movimentavam para a região fronteiriça entre os
países desde o início daquele mês)85 invadiram e conquistaram o Kuwait.
vi. Razões para a Não Negociação do Kuwait
O comportamento do Kuwait, visto como quase inercial (e, por vezes, impassível)
pela maioria dos autores86 e sua relação com a subseqüente invasão iraquiana são
justificados por diversos autores. Para Karsh87, os kuwaitianos simplesmente não
acreditaram na seriedade dos discursos de Saddam, e que quaisquer concessões feitas ao
Iraque seriam um sinal de fraqueza, que levaria a infinitas demandas no futuro pelo
presidente iraquiano. Para Kostiner88, o Kuwait acreditava que a estratégia de
81 MARR, pp. 221.82 KARSH, pp. 211-212.83 BARAM, “The Iraqi Invasion of Kuwait”, pp. 16-17.84 KHADDURI, pp. 110.85 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 17.86 A exceção mais clara para esse entendimento parece estar em Kostiner (“Kuwait: Confusing Friend and Foe”, pp. 113), que argumenta que o Kuwait fora flexível nas negociações em Jidda, mas que os representantes iraquianos rejeitaram suas propostas. 87 KARSH, pp. 212.88 KOSTINER, pp. 112-114.
156
prolongamento das negociações (“a maneira beduína”), baseada em mediações por
diferentes fóruns internacionais, poderia resultar num melhor ajustamento para o caso; na
realidade, o encontro de Jidda seria somente o primeiro de uma série de outros em que o
assunto seria tratado mais seriamente, o que indica que o ataque iraquiano fora uma
surpresa para as lideranças políticas locais. Aburish89, no entanto, vê de outra maneira. Para
ele, a posição altamente desafiadora do Kuwait só poderia ser entendida por meio das
profundas relações do país com países como Estados Unidos e Inglaterra; juntamente com a
Arábia Saudita, o Kuwait era o principal enclave pró-ocidental da região do Golfo.
Recebendo apoio da inteligência norte-americana, o governo do Kuwait não só teria se
recusado a negociar de maneira mais cuidadosa, mas também teria se responsabilizado em
suprir a demanda ocidental durante a guerra Irã-Iraque, preenchendo a lacuna iraquiana.
Exemplo desse comprometimento seria a própria fuga da família real kuwaitiana, que teria
sido orquestrada com a CIA meses antes da invasão iraquiana.90 Khadduri é favorável a
essa interpretação, indicando a indisposição do Kuwait em negociar mesmo no encontro de
Jidda, tendo sido seus representantes aconselhados pelo Emir:
“Whatever you may hear from the Saudis or the Iraqis about brotherhod
and Arab solidarity, forget it. Every one of us has his own interests. The Saudis
want to weaken us … so that they can press us in the future to give them
concessions in the neutral zones. The Iraqis want to compensate for their losses
in the war at our expense. Neither of these should happen. That is the view of our
friends in Egypt, Washington, and London. We are more powerful than they
imagine. With all my wishes for your success, Jabir.”91
vii. A Decisão pela Invasão, as Razões e os Objetivos Imediatos
O momento da decisão pelo uso da força é tema controverso dentre os autores
estudados. Para Amatzia Baram92, embora a cúpula iraquiana já cultivava a idéia de invadir
o Kuwait desde 1988, a opção pela resolução da crise por meios militares teria sido tomada
89 ABURISH, pp. 260; 276-280.90 Idem, pp. 283.91 KHADDURI, pp. 114-115. O trecho destacado faz parte das anotações feitas pelo Rei Fahd, da Arábia Saudita, antes do início da reunião entre as partes.92 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 14-15.
157
em Abril de 1990, já que, nesse momento, Saddam se aproximava de Rafsanjani, o líder
iraniano, de forma a buscar um tratado com o vizinho de forma a conseguir uma garantia de
paz, o que lhe permitiria focar-se no Kuwait. Marr considera que a preparação das tropas
militares teria sido iniciada pelo menos em Maio (dado o aumento do tom das declarações
de Saddam) e que, conforme o Kuwait continuava a recusar-se a ceder, mais apoio interno
o líder iraquiano obtinha para a invasão.93 Karsh, no entanto, acredita que a opção pelo uso
da força teria vindo somente em Julho, após a rejeição kuwaitiana, pela última vez, em
cumprir com as determinações de produção da OPEP.94
Com relação às motivações para a invasão ao Kuwait, Sluglett95 enxerga três
origens: a ambição quase patológica de Saddam Hussein e seu desejo de conquistar um
grande papel de liderança no mundo árabe; o fato de possuir uma imensa máquina militar,
que não podia ser simplesmente posta de lado; as mudanças na conjuntura internacional,
como o enfraquecimento da União Soviética, requeriam um posicionamento agressivo por
parte dessa liderança do mundo árabe. Karsh96, mais objetivamente, vê na “combinação
dialética entre onipotência e impotência” por parte do Iraque, a grande crise econômica no
país, o receio de ataques de Israel e um senso de humilhação à imagem de Saddam Hussein,
causado pelas recusas de concessão por parte do Kuwait como as circunstâncias que
sedimentaram a idéia de uma invasão iraquiana.
Para Tripp, o Kuwait seria utilizado como uma espécie de produto de barganha, que
poderia ser concedido em troca de concessões e recursos que aliviariam a posição
iraquiana, aumentariam a autoridade de Hussein e colocaria o Iraque como líder do mundo
árabe e como controlador do mercado de petróleo.97 Rubin98 vê a ofensiva iraquiana como
parte de um projeto maior, que permitiria ao Iraque produzir mais armas não
convencionais, que o tornariam capaz de invadir outros países e intimidar qualquer
oposição. Nesse contexto, responsabiliza os Estados Unidos e seus aliados regionais por
não terem se colocado em posição de neutralidade, o que colocava Saddam com excessiva
liberdade de ação.
93 MARR, pp. 225. 94 KARSH, pp. 213.95 SLUGLETT, pp. 284.96 KARSH, pp. 211.97 TRIPP, pp. 252.98 RUBIN, Barry. “The United States and Iraq”, pp. 263. Halliday (pp. 84-85) possui opinião similar sobre o comportamento do ocidente.
158
II) A Invasão ao Kuwait, a Coalizão Anti-Iraque e a Guerra do Golfo
1. A Ocupação do Kuwait, Estratégias, Pretextos e Erros de Cálculo
De acordo com Baram99, havia dois planos formulados para a invasão do Kuwait.
No primeiro, as tropas ocupariam somente as ilhas que o Iraque reclamava para si e os
campos de petróleo próximos da fronteira entre os países; no segundo, o exército ocuparia
todo o país. Para o autor, a ocupação apenas de parte do Kuwait não resolveria a crise
financeira do Iraque, e poderia repercutir na superprodução de petróleo por outros países
árabes como retaliação. A conquista de todo o Kuwait, no entanto, permitia a Saddam não
só capturar os ativos do pequeno país, avaliados em 220 bilhões de dólares, como ainda
colocar todo o Golfo de maneira submissa a ele e tornar-se um herói para os árabes.
A decisão de Saddam pela segunda estratégia foi tomada de última hora, apesar da
aparente oposição de membros do CCR100; além disso, os militares, ainda que de forma
velada, teriam criticado o timing da invasão, sob a argumentação de que um ataque no
verão permitiria o avanço rápido das forças ocidentais para a retaliação, enquanto que
outros, dentro da corporação, entendiam que qualquer ataque enfraqueceria o país, dadas as
tensas relações travadas no Oriente Médio naquele momento; com isso, o Iraque corria o
risco de ser atacado pela Turquia, ao norte, pelo Israel, ou mesmo pelo Irã, ao sul.101 Marr
salienta que, possivelmente, a tomada de decisão tenha sido fruto de pouquíssimas pessoas,
geralmente familiares próximos de Saddam; mesmo aliados de Tikrit, como ministros e
chefes de setores estratégicos do governo seriam somente informados da invasão.102
A conquista de todo o Kuwait relacionava-se com outro aspecto importante: a
remoção da família real kuwaitiana. Caso ela fosse removida e substituída por uma elite
política amigável ao Iraque, forças estrangeiras não conseguiriam penetrar na região, seja
devido ao grande predomínio iraquiano, seja pela conseqüente repercussão negativa no
mundo árabe caso algum país permitisse o uso de suas bases para a chegada de tropas
99 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 23-25.100 ABURISH, pp. 297.101 al-JABBAR, pp. 6.102 MARR, pp. 226.
159
ocidentais.103 Com isso, sedimentou-se a retórica de que o país havia sido chamado pela
população kuwaitiana para ser “liberada”. Contudo, a fuga do Emir e a recusa dos
principais candidatos eleitos por Saddam para sua sucessão (já que não foram sequer
previamente consultados)104 inviabilizaram o projeto. Um jovem oficial do exército do
Kuwait, que liderava um grupo de nômades que não tinham a cidadania kuwaitiana
reconhecida, acabou aceitando chefiar o governo-fantoche.
Diversos autores105 atestam o quanto a centralização do regime na figura de Saddam
Hussein e, em razão disso, o comportamento passivo dos membros mais próximos da
cúpula de poder (além da crescente campanha de culto de personalidade), fizeram com que
a visão de mundo do líder iraquiano se tornava bastante restrita: para ele, os líderes árabes
veriam a invasão como uma jogada legítima, enquanto que a comunidade internacional,
incluindo-se aí os Estados Unidos, reconheceria sua liderança regional e, com isso,
negociaria a saída iraquiana em termos favoráveis a Hussein o que, como será visto a
seguir, jamais ficou perto de ocorrer.106
a) Repercussão Internacional
A posição da maioria dos países foi marcadamente contrária ao ato iraquiano. À
exceção da Jordânia, Iêmen do Norte e a Organização para a Libertação da Palestina, todos
os demais países árabes condenaram a invasão do Kuwait.107 No Ocidente, imediatamente
após o anúncio da ocupação, os Estados Unidos congelaram os ativos do Kuwait e do
Iraque em seu país, e promoveram sanções econômicas contra o país de Saddam Hussein. A
mesma opção foi seguida pela Comunidade Européia e pelo Japão, enquanto a URSS (que
havia assinado uma declaração conjunta com os EUA condenando a invasão) e a China
interromperam o seu comércio de armas para o Iraque108. Logo em seguida, as Resoluções
660 e 661 seriam aprovadas pelo Conselho de Segurança da ONU, nas quais era exigida a
retirada incondicional do Iraque e se implantava um regime de sanções econômicas que,
103 KHADDURI, pp. 122.104 ABURISH, pp. 284-285. Mesmo a liderança baathista do Kuwait rejeitou a proposta de dirigir o país, sob a argumentação de que a união árabe não poderia ser construída por meio de ocupações militares.105 SLUGLETT, pp. 284; MARR, pp. 228; ABURISH, pp. 264-266; BARAM, pp. 28.106 TRIPP, pp. 252.107 SLUGLETT, pp. 281.108 KARSH, pp. 218.
160
por permitir somente o envio de alimentos e remédios, fora considerada a mais dura da
história das Nações Unidas.109 Para Khadduri, a segunda resolução fora aprovada após
grande pressão dos Estados Unidos; os únicos que votariam contra seriam o Iêmen e
Cuba.110
Apesar da manifestada oposição por parte da maioria dos países árabes, num
encontro extraordinário da Liga Árabe feito no Cairo deliberara que por uma resolução da
crise que fosse tratada somente por membros árabes. Contudo, com pressões de Mubarak,
presidente do Egito, e a divulgação de mapas pela inteligência norte-americana que
revelavam o risco de ataque iraquiano à Arábia Saudita (que se revelariam inexistentes)111,
o rei Fahd solicitou ajuda norte-americana, e então os Estados Unidos estacionaram suas
tropas na região.
b) A Anexação do Kuwait e os Acordos com o Irã
Saddam Hussein respondera às críticas internacionais de maneira agressiva,
promulgando oficialmente a anexação do Kuwait ao território iraquiano e colocando-o
como a 19ª província do país. Para Karsh, a partir da forte reação internacional, não se
tornava mais possível para as tropas iraquianas sair imediatamente do Kuwait, já que se
tornaria inviável a criação de um regime que fosse conveniente para o país e que fosse visto
como legítimo pelo Ocidente.112 Em seguida, Hussein assinaria um tratado com o Irã; ficara
acertado, no final das negociações, o respeito aos acordos de 1975, o que virtualmente
indicava, afinal, que a longa guerra ocorrida entre os dois países não tinha alterado em nada
as suas fronteiras territoriais. Entretanto, o ajuste de contas permitiria a Saddam deslocar
suas tropas do Shatt al-Arab e concentrá-las no Kuwait; ainda sim, a postura do líder
iraquiano repercutiria em perda de confiança por parte do setor militar.113
c) Tentativas e Estratégias de Negociação
109 MARR, pp. 231.110 KHADDURI, pp. 136-139.111 ABURISH, pp. 288-289.112 KARSH, pp. 221.113 MARR, pp. 232.
161
Até Janeiro de 1991, diversas tentativas de negociação foram realizadas por diversos
países e órgãos internacionais, paralelamente à aprovação de resoluções da ONU que, em
última instância, autorizariam o uso da força para a retirada iraquiana do Kuwait num prazo
de 45, caso aquela não fosse concluída de maneira pacífica. Contudo, os autores divergem
claramente sobre a postura dos atores e sobre as conseqüências de seus atos para a crise.
Para Phebe Marr, no período entre Setembro de 1990 a Janeiro de 1991, o Iraque
permanecera intransigente, enquanto que a coalizão insistia em sua saída do Kuwait sem
contrapartidas e por meio da ameaça de uso militar. As táticas de Saddam eram claras:
absorver o Kuwait, tentar enfraquecer o grupo liderado pelos Estados Unidos e criar
erupções populares dentro dos países árabes que se aliassem à coalizão.114 Halliday afirma
que os esforços possíveis de negociação foram feitos, mas que Saddam Hussein
simplesmente os rechaçou, por não acreditar que, de fato, os aliados não atacariam o
Iraque; com a falha da diplomacia, não haveria outra saída que não a guerra.115 Aburish116,
no entanto, acredita que a liderança iraquiana fez diversos esforços para buscar uma
negociação que trouxesse alguma vantagem para o país. Desde o início da crise, os Estados
Unidos teriam se preparado para a guerra e planejavam, se possível, a remoção de Hussein
do poder. As tentativas de mediação teriam sido, em sua maioria, fruto dos esforços
iraquianos e, por vezes, desconsiderados a priori pelo Departamento de Estado norte-
americano; a não compreensão da lógica de funcionamento do mundo ocidental por
Saddam se tornaria mais um obstáculo para a resolução pacífica do entrevero, o que o
isolaria internacionalmente cada vez mais. Majid Khadduri117 critica o papel das Nações
Unidas na resolução da crise, ao afirmar a categórica diferença de seu comportamento neste
caso quando comparado com a longa guerra entre Iraque e Irã (em que, de acordo com o
autor, nenhuma atitude mais séria fora tomada pelo Conselho de Segurança); além disso, a
rapidez na aprovação de resoluções condenando a atitude iraquiana também é alvo de
ressalva, bem como o tratamento diferenciado do organismo perante o Iraque quando
comparado à complacência com que Síria e Israel foram recebidos após as suas ações no
Líbano.
114 Idem, pp. 233.115 HALLIDAY, pp. 85-86.116 ABURISH, pp. 293; 296; 299-300.117 KHADDURI, pp. 158-161.
162
i. O Encontro Aziz-Baker em Genebra
O exemplo mais claro em que se podem observar as diferentes interpretações sobre
os reais esforços de mediação de cada parte na crise é a análise do encontro, às vésperas do
início da guerra, entre o ministro das relações exteriores do Iraque, Tariq Aziz, e o
secretário de estado dos Estados Unidos, James Baker. Enquanto Barry Rubin118 argumenta
que a reunião fora feita como um último esforço dos Estados Unidos para evitar o conflito
armado, Aburish119 afirma que Baker, ainda antes do início da negociação, já havia redigido
um documento rejeitando todas as propostas iraquianas. Khadduri120, por sua vez, entende
que nem Aziz, nem Baker estavam dispostos a negociar, já que enquanto os norte-
americanos demandavam a saída imediata do Kuwait pelas tropas iraquianas para o início
de alguma concessão ocidental, os iraquianos mantinham-se em sua convicção de retirada
somente após o atendimento de algumas de suas requisições. Em outras palavras, a
intransigência e os erros de cálculo de ambas as partes inviabilizaram as barganhas que, em
última instância, evitariam a guerra.
ii. A Retirada do Kuwait em Troca da Saída Israelense
Em razão tanto da forte rejeição do mundo ocidental à invasão do Kuwait e da
relação próxima daquele com vários dos países árabes do Oriente Médio (iniciando
entendimentos que resultariam na formação de uma coalizão anti-Iraque)121, como também,
em parte, motivado por um desejo de se tornar o campeão do pan-arabismo e de fazer com
que o tema do Kuwait fosse deixado de lado temporariamente na agenda internacional122,
Saddam Hussein condicionou a resolução da crise no Golfo à retirada de Israel de
territórios ocupados na Palestina, na Síria e no Líbano. De fato, o ato de Saddam repercutiu
tanto num distanciamento entre os líderes árabes e sua população (já que foram realizadas,
a partir de então, grandes manifestações anti-guerra)123, como em esforços por parte de 118 RUBIN, pp. 269.119 ABURISH, pp. 300.120 KHADDURI, pp. 156.121 ABURISH, pp. 290-291.122 KARSH, pp. 226-231.123 ABURISH, pp. 291.
163
vários países (notadamente a França e a União Soviética)124 em discutir a realização de
conferências de paz que buscassem resolver os impasses na Palestina. Contudo, as ruas do
mundo árabe se insularam menos contra seus governos do que Saddam pretendia (apesar da
firme negação por parte dos governos árabes em aceitar tal proposta de Saddam)125 e, na
opinião de Marr126, podem ter sido responsáveis, em alguma medida, no aumento das
pressões internacionais para a opção pela guerra contra o Iraque.
iii. A Crise dos Reféns e os Saques ao Kuwait
Logo após a invasão do Kuwait, as tropas iraquianas mantiveram boa parte dos
estrangeiros (principalmente ocidentais) que estavam no pequeno país ocupado sob seu
domínio; também foram notórios os saques promovidos pelas tropas iraquianas, até a
destruição de vários campos de petróleo kuwaitianos após o início da guerra com a coalizão
ocidental. A cada visita de representantes de países membros da coalizão, Saddam permitia
a liberação de seus nacionais, até a decisão de soltura de todos os estrangeiros presentes no
território invadido. Para Karsh127, Saddam pretendia, com o seqüestro então em curso,
impedir quaisquer chances de ataque militar por parte da coalizão; usando os reféns como
barganha, buscava tanto conseguir vantagens materiais, como o fim de sanções bilaterais
aplicadas por diversos estados, como mesmo o enfraquecimento da coalizão, especialmente
pela soltura de cidadãos de alguns países, mas não de outros; a liberação de todos os
estrangeiros teria sido um dos últimos intentos para alterar o curso das relações com o
ocidente, que já estabelecia a guerra como maneira de resolver a crise. Contudo, a opinião
pública ocidental reagiu com indignação ao seqüestro dos estrangeiros, o que acabou por
dificultar ainda mais os esforços diplomáticos. Aburish128, no entanto, destaca o papel da
imprensa ocidental, que teria tornado o evento muito mais grave do que o teria sido de fato,
e compreende tal atitude como parte do esforço de setores governamentais dos Estados
Unidos, notadamente o Pentágono, em controlar os meios de comunicação de forma a
disseminarem uma imagem de Saddam Hussein como um criminoso, dotado de distúrbios
124 KARSH, pp. 230.125 ABURISH, pp. 291.126 MARR, pp. 233.127 KARSH, pp. 231-239.128 ABURISH, pp. 294-295.
164
psicológicos, que o inviabilizariam como negociador e deixariam a guerra como a única
saída para a paz. Halliday129 condena o tratamento iraquiano dado aos cidadãos do Kuwait e
aos estrangeiros, além da destruição de parte da infra-estrutura do país; contudo, destaca
que, ao contrário do considerado pela imprensa e por representantes dos Estados Unidos, o
comportamento das tropas iraquianas não possuía nada de peculiar, e tampouco os atos das
forças do Iraque poderia ser comparado com o tratamento feito pelos próprios norte-
americanos aos prisioneiros de guerra vietnamitas durante a guerra ocorrida entre 1965-
1975.
d) A Formação da Coalizão e a Opção pela Guerra
Embora a formação da coalizão anti-Iraque e a decisão institucional pela guerra –
referendada pela aprovação da resolução 678 do Conselho de Segurança da ONU, que
permitia o uso da força para a expulsão do Iraque do território kuwaitiano num prazo de 45
dias caso aquele não saísse voluntariamente – como maneira mais eficiente de enfrentar o
inimigo seja vista pelos analistas, em geral, como decorrências do rompimento da ordem
internacional por Saddam Hussein (ou mesmo por um senso ético universal despertado
perante os abusos cometidos pelas tropas iraquianas à população e à economia do Kuwait),
autores como Fred Halliday e Saïd Aburish consideram a atuação persuasiva dos Estados
Unidos como a razão central para a aglutinação de forças tão díspares lado a lado (como a
Síria e os próprios EUA) e para o não veto de outros países, como a China, à resolução
mencionada130. Aburish131 afirma que a criação da coalizão foi marcada “pelo maior
suborno já documentado na história”. De acordo com ele, os Estados Unidos, a Arábia
Saudita e o Kuwait formaram, inicialmente, um banco de fundos que passou a ser
disponibilizado para diversos países, em troca, aparentemente, do ressarcimento dos custos
de guerra; a seguir, outras instituições participariam do processo. Os Estados Unidos teriam
129 HALLIDAY, pp. 99-100.130 HALLIDAY, pp. 91-92. De acordo com o autor, a abstenção da China no Conselho de Segurança da ONU teria se dado em razão da anistia dos Estados Unidos ao governo chinês com relação ao massacre ocorrido na Praça da Paz Celestial, em 1989. Aburish (pp. 294) referenda essa observação. Mais especificamente sobre as implicações da abstenção chinesa de voto na discussão sobre a resolução 678 nas Nações Unidas, Khadduri discute a validade e a força do documento aprovado, haja vista que, em sua interpretação sobre os dispositivos da Carta das Nações Unidas, entende que o uso da força só poderia ser referendado em caso de aprovação por todos os membros do Conselho de Segurança; para mais informações, cf. KHADDURI, pp. 150-153.131 ABURISH, pp. 293-294.
165
pagado ao Egito cerca de 7.1 bilhões de dólares; à Turquia teria sido prometido 2.5 bilhões
de dólares e 8 bilhões em equipamentos militares; alem de pacotes de ajuda econômica, a
URSS receberia 6 bilhões de dólares do Kuwait e da Arábia Saudita; o Clube de Paris
eliminaria a dívida egípcia, calculada em 10 bilhões, enquanto o Conselho de Cooperação
do Golfo forneceria ao país de Hosni Mubarak e à Síria a quantia de 5 bilhões de dólares. O
autor ainda afirma que o Iêmen teria sido punido o seu veto no Conselho de Segurança à
resolução pró-uso de força militar por meio da expulsão, pela Arábia Saudita, de cerca de
800 mil trabalhadores iemenitas de seu país. Em contrapartida, Karsh132 afirma que o Iraque
teria buscado comprar o apoio de diversos países com exportações de petróleo livres de
cobranças, especialmente aqueles do chamado terceiro mundo (mas também a URSS e a
China), com o propósito de mantê-los fora da coalizão.
Com relação à opção pela força pelos Estados Unidos e pela coalizão para a
expulsão do Iraque do território kuwaitiano, Marr argumenta que o receio da manutenção
da coalizão unida por muitos meses, a continuidade da intransigência por parte do Iraque e
as atrocidades cometidas por suas tropas foram motivações para tal decisão.133 Halliday134
elenca diversas razões – apontadas tanto por apoiadores da guerra como por seus críticos,
considerando todas plausíveis – para a ida à guerra: a proteção à soberania do Kuwait, a
restauração da dinastia kuwaitiana ao poder, a garantia de oferta de petróleo, a proteção aos
países do Oriente Médio e, por outro lado, a defesa de interesses monopolistas por parte de
empresas de petróleo monopolistas do Ocidente, a proteção de oligarquias tribais, o desejo
de subordinar os rivais comerciais da Europa e do Japão, o desejo de intimidar o terceiro
mundo por meio de uma ação exemplar, a necessidade de distrair a opinião pública norte-
americana dos problemas domésticos e os subseqüentes esforços de Bush para ser reeleito.
Rubin135, por sua vez, argumenta que, dentro do contexto de uma nova ordem mundial,
pautada pela liderança dos Estados Unidos, o conflito com o Iraque era uma oportunidade
de reduzir os conflitos internacionais; a falha em condenar veementemente os atos de
Saddam Hussein poderia repercutir numa série de depredações e crises em diferentes
pontos do mundo. Aburish considera que, para além de algumas das motivações apontadas 132 KARSH, pp. 231.133 MARR, pp. 234.134 HALLIDAY, pp. 98-99. O autor aprofunda a discussão, dentro da Teoria da Guerra Justa, abordando o conceito de intenção justa (i.e. o limite da extensão dos objetivos numa guerra) para identificar as efetivas conseqüências da Guerra do Golfo para os Estados Unidos.135 RUBIN, pp. 263.
166
por alguns autores, a ofensiva norte-americana estava ligada, num contexto maior, a uma
tentativa da liderança em restaurar o orgulho dos estadunidenses por meio da “exorcização
dos fantasmas do Vietnã”136.
e) Inevitabilidade da Guerra?
A temática da possibilidade de se ter resolvido o impasse no Golfo de maneira
diplomática é alvo de estudo de diversos especialistas, e se torna importante, na medida em
que, com sua observância, também se permite observar os limites das ações dos atores que
interagiram naquela situação, bem como seus interesses e a implicação de seus atos para a
vida iraquiana.
Khadduri137, autor que busca trazer uma perspectiva árabe de análise, entende que a
guerra não era inevitável; para ele, caso houvesse um esforço maior por parte dos países
árabes – primeiramente no encontro de Jidda, às vésperas da invasão e, posteriormente, nos
primeiros dias da ocupação iraquiana – em mediar a crise, apresentar propostas mais sólidas
ao Iraque e refutar condenações públicas à ofensiva das tropas de Saddam Hussein,
possivelmente o líder iraquiano poderia, finalmente, sentir que seus apelos fossem
compreendidos e, então, evitasse a ocupação ou então a encurtasse até o completamento das
negociações. Não tendo isto ocorrido, as potências ocidentais se aproveitaram da hesitação
e tomaram o controle do direcionamento do impasse, o que levou, então, ao atendimento
prioritário de seus interesses. Nesse sentido, a responsabilidade pela guerra seria dividida
tanto pelos árabes como pelo mundo ocidental. Rubin138 também acredita que a guerra
poderia ter sido evitada, mas a iniciativa visando tal fim seria do Iraque. Para ele, algumas
concessões iraquianas, especialmente um recuo estratégico para uma porção territorial
menor do Kuwait, poderia ser uma demonstração de vontade mais clara de resolução
pacífica, que faria a opinião pública ocidental a pressionar seus governos a avançarem as
negociações e mesmo criar tensões dentro da coalizão, ao menos retardando o início da
guerra. Baram139 crê que, de fato, a paz poderia ter sido alcançada no Golfo, mas entende
que impeditivos relevante seriam as posições ambíguas de países como França e URSS e as
136 ABURISH, pp. 306.137 KHADDURI, pp. 255-260.138 RUBIN, pp. 268-269.139 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 28.
167
manifestações anti-guerra no Ocidente que, aliadas a uma visão peculiar do mundo por
parte de Hussein, o fizeram acreditar que a ofensiva da coalizão seria um mero blefe, e que
então poderia continuar com seu comportamento intransigente. Karsh140, no entanto,
considera que uma mudança no comportamento iraquiano seria inconcebível, já que a
guerra seria, na realidade, a única possibilidade da sobrevivência política de Saddam
Hussein e de florescimento econômico do Iraque; recuar sem nenhuma conquista efetiva
seria uma derrota grande demais para o líder iraquiano, enquanto que mesmo uma derrota
poderia significar a sua consagração como “o herói das massas árabes que enfrentou o
imperialismo ocidental e sobreviveu”. Aburish141 veria como eventual saída para o
entrevero a negociação entre o Iraque e a URSS (considerada pelo autor como o único país
efetivamente capaz de alterar a situação da crise); contudo, também acredita que os erros de
cálculo de Saddam – representados nas declarações de que os Estados Unidos sofreriam os
mesmos problemas enfrentados no Vietnã caso atacassem Bagdá – sejam um forte
indicativo de que uma mudança de postura seria improvável por parte do líder iraquiano
naquele momento, graças também à assessoria equivocada e contemplatória de seus
aliados.
2. A Guerra do Golfo de 1991
Após o fim do período de 45 dias dado pelas Nações Unidas para a saída
incondicional do território kuwaitiano pelo Iraque, a coalizão, formada por 32 países e
liderada pelos Estados Unidos, iniciou (em 16.01.1991) a guerra, adotando a seguinte
tática142: realização de ataques aéreos, primeiro atingindo alvos estratégicos – como centros
de comunicação, comando e controle, e fábricas de armas –, depois visando destruir
reservas importantes e a destruição de canais de comunicação entre as tropas iraquianas no
front, para que então se preparasse taticamente uma invasão por terra, que levaria, enfim, à
expulsão dos iraquianos do Kuwait. O exército iraquiano adotou diversas medidas para
conter as ofensivas da coalizão e para envolver outros atores no conflito, como o
lançamento de mísseis contra Israel e ataques a bases localizadas na Arábia Saudita, mas
140 KARSH, pp. 241-243. 141 ABURISH, pp. 301.142 KHADDURI, pp. 175. Aburish (pp. 301) afirma que a coalizão também decidiu incluir, de última hora, alvos não militares, como monumentos, supermercados e fábricas.
168
não obteve sucesso. Após 38 dias, as tropas norte-americanas passaram a se envolver em
conflitos no chão, enfrentando tropas altamente combalidas pelos seguidos ataques aéreos.
Em quatro dias, e com grande facilidade, haviam conseguido expulsar os iraquianos do
Kuwait, e ainda penetrar no território mesopotâmico. Em 3 de Março, o Iraque, finalmente,
aceitou todas as resoluções aprovadas pelas Nações Unidas, conseguindo obter um cessar-
fogo.
a) Estratégias Iraquianas
A discussão sobre as táticas empregadas por Saddam Hussein no conflito leva a
diferentes percepções sobre os atos das tropas iraquianas (melhor analisadas nas seções
seguintes). Em linhas gerais, existem duas correntes de interpretação: Marr e Karsh143
argumentam que o líder iraquiano, tendo consciência da fraqueza de suas forças armadas
perante as forças da coalizão, buscaria o quanto antes forçar um confronto aberto por terra,
de forma a causar o máximo de vítimas dentre os soldados inimigos, pressionando a
opinião pública a negociar em termos favoráveis ao Iraque e levando a guerra, assim, ao
seu término o mais cedo possível. Aburish144, por outro lado, entende que Saddam,
inicialmente, optara pelo uso de sua força aérea e de seu sistema de defesa terra-ar, que
falharam completamente em razão da grande superioridade tecnológica do equipamento
militar dos adversários. Em seguida, buscaria, também como mencionado pelos demais
estudiosos, o fim antecipado do conflito; mas, ao contrário daqueles, tentava evitar ao
máximo um conflito por terra, que levaria a muitas mortes entre suas tropas e a uma
conseqüente insatisfação popular. Tripp145 afirma que, em razão da rapidez e do nível das
ofensivas aliadas, torna-se difícil afirmar o quão sério Hussein realmente pretendia
defender o Kuwait, sendo possível que tivesse tomado a decisão de abandonar o país, no
final de Fevereiro, deixando as tropas iraquianas à sua própria sorte, o que indicaria o
despreparo estratégico da liderança iraquiana em enfrentar a guerra e suas implicações.
Jabbar146 afirma, pelo contrário, que Saddam, possivelmente ainda com uma percepção
equivocada sobre a vitória contra o Irã, de fato acreditava ser capaz de derrotar as forças
143 KARSH, pp. 244-248; MARR, pp. 236.144 ABURISH, pp. 301-303.145 TRIPP, pp. 254-255.146 al-JABBAR, pp. 6-8.
169
aliadas, especialmente por meio de um conflito por terra, no qual esperava causar pelo
menos 30 mil mortes dentre os inimigos. Contudo, como afirma o autor, o exército
iraquiano não teria lutado mesmo se tivesse recebido ordens contínuas de estimular ataques
no solo, dada a devastação causada pos bombardeios da coalizão e a total falta de
alimentação no front (dados os efeitos das sanções econômicas), que desmoralizava
completamente os soldados iraquianos.
i. Ataques a Israel
Logo após o início da guerra, Saddam Hussein atacou, por meio do lançamento de
dezenas de mísseis Scud, as cidades de Haifa e Tel Aviv, matando cerca de dezenas de
israelenses147, no que ficou conhecido como a primeira ofensiva militar de um estado árabe
contra centros populacionais israelenses desde a fundação desse país, em 1948.148 Diversos
especialistas, especialmente Karsh149, consideram o evento como a tentativa mais evidente
da liderança iraquiana em trazer Israel para a coalizão, forçando uma retaliação que, muito
provavelmente, enfraqueceria o grupo aliado, dadas as históricas relações hostis entre
aquele e os países árabes. O clima de tensão gerado também repercutiria, segundo o autor,
na mudança da estratégia das forças multinacionais para um confronto por terra (já que
receavam pelo fim da coesão do grupo), o que seria, em tese, favorável ao Iraque.
Khadduri150 também vê no ataque iraquiano o propósito de retaliação israelense, e enfatiza a
sua ineficácia, já que o governo de Tel Aviv fora persuadido pelos Estados Unidos a não
retaliarem em troca do envio de grande quantidade de equipamento militar ao país e de
doações dos próprios EUA (cerca de um bilhão de dólares), da União Européia e de
Alemanha, o que simbolizaria uma forte aproximação do bloco ocidental a Israel nesse
momento de crise. Marr151 destaca a importância da ofensiva iraquiana para o arsenal de
propagandas de Hussein, que passava a proclamar a vulnerabilidade de Israel, conclamando
ataques similares por países árabes da região – que não responderam.
147 KHADDURI, pp. 171.148 KARSH, pp. 248.149 Idem, pp. 248-250.150 KHADDURI, pp. 171-172.151 MARR, pp. 236.
170
ii. Ataque às Bases da Coalizão na Arábia Saudita
Com cerca de duas semanas de conflito, as tropas iraquianas empreenderam a
primeira grande medida ofensiva contra os aliados. Por meio de um ataque surpresa a
posições da coalizão na Arábia Saudita, conseguiram conquistar a cidade de Khafji e
mantiveram o seu controle sobre a mesma por dois dias, até serem derrotados por massivos
ataques aéreos, não sem antes infligirem as primeiras perdas às forças multinacionais no
solo. Para Aburish152, a medida era uma missão suicida do exército iraquiano, já que as
unidades estavam sem alimentação por dias e sofriam com os intensos bombardeios aéreos
da força aérea da coalizão; para ele, era um indício de que o Iraque estava perto de entrar
em colapso, mas que tal consideração não alterou o planejamento militar dos aliados (que
continuaram a atacar a infra-estrutura civil e militar de Bagdá). Marr153 afirma que, com as
derrotas iraquianas, a solução negociada começou, pela primeira vez, a ser contemplada por
Saddam. Karsh154 argumenta que o ataque iraquiano se inseria dentro da estratégia de
causar, o quanto antes, um conflito por terra, e que a ofensiva seria vista com empolgação
pelo mundo árabe, além de aumentar a moral dos soldados. Ambos os lados declararam
vitória, mas a continuidade dos seguidos ataques aéreos dos aliados continuou a minar a
resistência das tropas iraquianas, que contavam com pouco auxílio de sua força aérea.
iii. Busca de Apoio da URSS pelo Iraque, o Conflito por Terra e o Cessar-Fogo
A partir da segunda semana de Fevereiro, Saddam Hussein passa a se mostrar cada
vez mais disposto a negociar a saída do Kuwait. Por meio de negociações com a União
Soviética, passa a apresentar propostas para a retirada das tropas iraquianas do território
kuwaitiano. Inicialmente, o líder iraquiano associava a saída do Kuwait ao cancelamento de
todas as resoluções da ONU e, ainda, à saída de Israel dos territórios ocupados, além da
definição do futuro do Kuwait sem interferência ocidental.155 Com as seguidas recusas dos
Estados Unidos, que afirmavam que seriam eles quem deveriam propor condições para que
152 ABURISH, pp. 302.153 MARR, pp. 236-237.154 KARSH, pp. 255-256.155 KHADDURI, pp. 176.
171
fosse evitada uma guerra por terra156, o Iraque passou a diminuir suas demandas, e aceitou
um plano de paz proposto por Mikhail Gorbachov, presidente da União Soviética, que
referendava o cumprimento da resolução 660 das Nações Unidas (que requeria a saída
incondicional do território do Kuwait pelo Iraque) num prazo de 21 dias, a soltura de todos
os prisioneiros de guerra e o gerenciamento do cessar-fogo por tropas da ONU em troca do
cancelamento das resoluções punitivas do Conselho de Segurança.157 No entanto, os
Estados Unidos rejeitaram a proposta; Bush dera o ultimato para a saída de todo o efetivo
iraquiano em dois dias (entre 21 e 23 de Fevereiro), a restauração e o reconhecimento do
governo do Kuwait, o pagamento de reparações aos kuwaitianos e a continuidade das
sanções econômicas contra o Iraque.158 Novas tentativas de negociação foram rechaçadas
por Washington, e então o conflito por terra se iniciou.
Para Phebe Marr159, a negociação de última hora de Saddam com os soviéticos
indicava que, a essa altura, o objetivo de manter o controle do Kuwait já haviam sido
deixados de lado, o que seria comprovado pela tentativa de destruição, às vésperas da
invasão por terra dos norte-americanos, das instalações petrolíferas kuwaitianas (o que não
cessou a ofensiva aliada). Karsh160 afirma que o Pentágono compreendera a tentativa de
Saddam em negociar como um ato de desespero, o que justificou o grande aumento dos
ataques aéreos dos aliados nos últimos dias antes da ofensiva por terra; além disso,
qualquer adiamento do plano da coalizão reverberaria em ganhos para Saddam Hussein, e
então, devido a isso, manteve-se a data-limite para a retirada, considerando-se que as
concessões do Iraque teriam vindo “tarde demais”. Aburish161, contudo, é bastante crítico
ao posicionamento dos norte-americanos nas negociações; para ele, uma saída unilateral
das tropas iraquianas poderia resultar em grande pressão popular para o fim dos
bombardeios (e, com isso, a administração Bush, sem ter tomado o controle e a iniciativa da
expulsão das tropas iraquianas, poderia ser vista como frágil e impopular). Por isso, os
EUA ordenaram a saída de centenas de milhares de soldados iraquianos em pouco tempo,
fato visto pelo autor como sendo uma “impossibilidade física”.
156 Idem, ibidem.157 ABURISH, pp. 303-304.158 KHADDURI, pp. 176.159 MARR, pp. 237.160 KARSH, pp. 259-262.161 ABURISH, pp. 303-304.
172
O conflito por terra teve duração extremamente curta (cerca de 100 horas), e foi
marcado por grande superioridade das forças da coalizão. A facilidade com que os aliados
expulsaram as tropas iraquianas do Kuwait também foi marcada por suas estratégias de
combate em diferentes fronts, que surpreenderam os militares iraquianos,162 e pela grande
força empregada pelas tropas e pelos aviões da coalizão multinacional, que resultaram na
fuga em massa de centenas de milhares de soldados163, enquanto que cerca de 90 mil se
renderiam aos militares aliados.164 Com dois dias de conflito, os aliados já haviam
conseguido atingir o seu objetivo de guerra (i.e. o fim do controle kuwaitiano pelo Iraque),
mas ainda assim os aviões do grupo continuaram a atacar Bagdá. Para Karsh165, os Estados
Unidos queriam o reconhecimento oficial de Saddam Hussein da derrota iraquiana, que
viriam por meio da aceitação de todas as resoluções da ONU – o que seria um incentivo a
mais para a queda de seu regime. Paralelamente, Tariq Aziz buscava negociar um cessar-
fogo; todas as suas propostas que rechaçavam pelo menos uma das resoluções da ONU que
pregavam sanções ao Iraque foram rapidamente rejeitadas pelo Conselho de Segurança;
com a continuidade da incursão das tropas da coalizão para dentro do Iraque, Saddam
finalmente aceitou todas as condições impostas pelos Estados Unidos. Com isso,
finalmente, o cessar-fogo fora obtido.
Apesar da fulgurante vitória das tropas aliadas, um evento em especial gerou
controvérsias dentre os analistas: o ataque ao exército e a civis iraquianos que se retiravam
do Kuwait ainda antes início do conflito por terra inaugurado pelo grupo liderado pelos
EUA. As forças da coalizão, por meio de aviões, lançaram bombas e mísseis sofisticados
que atingiram o início e o final do comboio iraquiano, imobilizando-o e criando uma cilada.
Presos, os iraquianos, sem possibilidade de defesa, foram bombardeados; um número não
calculado de pessoas – possivelmente superior a dezenas de milhares – foram abatidas.166
Karsh167 reproduz discurso do presidente Bush, em que é afirmado que não se poderia
diminuir a intensidade dos ataques aliados, já que “Saddam Hussein não estaria interessado
na paz, mas sim em reagrupar suas forças para voltar a lutar e a tentar controlar o Oriente
Médio”. Khadduri, por seu turno, subscreve a afirmação de jornalistas ingleses, que 162 KHADDURI, pp. 178.163 TRIPP, pp. 255.164 MARR, pp. 239.165 KARSH, pp. 263.166 KHADDURI, pp. 178-179.167 KARSH, pp. 264.
173
consideraram o ato “um dos maiores massacres sobre um exército em retirada da história
das guerras”, e entende que, aparentemente, a coalizão não queria, de fato, encarar uma
retirada dos iraquianos, já que a fuga deles, tornada pública, destoava do discurso norte-
americano de insensibilidade de Saddam Hussein às demandas dos Estados Unidos; o autor,
ancorado em opiniões de conselheiros norte-americanos, também cogita a tese de que
aquele país tinha o objetivo de realizar, com os ataques por terra, uma demonstração de seu
poderio no imediato fim da Guerra Fria.168 Halliday169, por outro lado, entende que a
ofensiva ocidental estava totalmente dentro do uso legítimo da força definido no Direito
Internacional, já que soldados em recuo que não se renderam, em sua consideração, não
estão isentos de ataques; além disso, aqueles seriam usados por Saddam para,
posteriormente, confrontar a própria população, o que, então, validaria os atos da coalizão.
Aburish170 rejeita veementemente a interpretação de Halliday, afirmando que não haveria
lógica militar alguma no ataque (que fora suspenso somente 40 horas após o seu início,
quando fora aceito o cessar-fogo por Bush), e que o ato, essencialmente norte-americano,
ferira todas as convenções internacionais, especialmente aquelas relacionadas aos direitos
humanos e, mais especificamente, a de Genebra (1949), que protege os civis afetados pela
guerra. Para o autor, a tônica central da relação entre os Estados Unidos e o Iraque na crise
de 1990-91 fora a confusão feita entre a pessoa de Saddam Hussein (pela qual o governo
estadunidense, certamente de maneira não equivocada, nutria péssimas percepções) e a
população iraquiana; ao punirem vigorosamente os cidadãos iraquianos, pretendiam atingir
o presidente iraquiano. Contudo, essa fusão entre os iraquianos e seu líder, em última
instância, continuaria após a guerra e fortaleceria Hussein, que se utilizaria de um forte
senso anti-americano para permanecer no poder, apesar da grande fraqueza do regime.
3. A Destruição Econômica e Humana Causada pela Guerra – a Resolução 687
das Nações Unidas
A quantidade de bombas lançadas pela coalizão fora superior ao infligido durante a
Segunda Guerra Mundial, e destruiu boa parte da infra-estrutura civil e militar do Iraque,
168 KHADDURI, pp. 178-179; 286.169 HALLIDAY, pp. 101.170 ABURISH, pp. 304-306.
174
como dezenas de usinas de energia, estações de irrigação, escolas, hospitais171, praticamente
todas as fábricas de armas químicas e biológicas conhecidas à época, além de refinarias e
outras instalações petrolíferas.172 As perdas militares também eram enormes: somente dez
por cento da artilharia iraquiana havia restado.173 No total, as perdas iraquianas foram
estimadas em 170-200 bilhões de dólares.174 Conforme aponta Hiro, os bombardeios e as
sanções econômicas reduziram o Iraque a um estágio pré-industrial.175 Mais
especificamente, as sanções econômicas, em vigor desde Agosto de 1990, afetaram
intensamente o Iraque, já que a impossibilidade de exportação de petróleo impedia
investimentos para recuperar a infra-estrutura durante a guerra: não havia eletricidade, nem
água potável na maioria das cidades iraquianas; havia risco de cólera e outras epidemias, e
o racionamento de combustível levou ao colapso do sistema de transportes do país176. Além
disso, a inflação retornava a níveis ainda maiores do que antes da guerra, e a
impossibilidade de comércio levava a uma escassez crônica de alimentos. Como assinala
Marr, os problemas enfrentados após a Guerra Irã-Iraque pareceriam contornáveis se
comparados ao pós-Guerra do Golfo.177
Os custos humanos foram igualmente impressionantes. Há grande discordância
entre os analistas quanto ao número de iraquianos mortos. Estatísticas mais conservadoras,
como a de Marr, Karsh e Hiro, revelam entre 30-80 mil mortos.178 Outros, no entanto, por
considerarem como inverídicas as afirmações da coalizão sobre o uso de armas com
tecnologia de ponta e grande precisão179, colocam o número de vítimas num nível mais
elevado. Sluglett180 aponta para cerca de 100 mil mortos e 300 mil feridos, enquanto
Khadduri181 sugere que até 200 mil pessoas tenham perdido a vida durante a Guerra do
Golfo. Contudo, como será visto a seguir e no Epílogo, essas estatísticas (assim como
aquelas que tentaram representar a profundidade da Guerra Irã-Iraque) também pouco
171 Idem, pp. 302. O autor denuncia, ainda, o uso de bombas Napalm e nucleares de baixa intensidade pela coalizão.172 KHADDURI, pp. 173.173 MARR, pp. 239.174 SLUGLETT, pp. 288.175 HIRO, Dilip. Iraq: In the Eye of the Storm, pp. 39.176 KARSH, pp. 258177 MARR, pp. 240-241.178 HIRO, In the Eye of the Storm, pp. 39; KARSH, pp. 258; MARR, pp. 239.179 HALLIDAY (pp. 87) afirma que, ao contrário do propalado pela propaganda ocidental, o equipamento militar empregado pelos aliados havia sido elaborado há pelo menos vinte anos.180 SLUGLETT, pp. 288.181 KHADDURI, pp. 179.
175
representam os efeitos do conflito, principalmente se comparadas com a grande insatisfação
popular – que repercutiu na intifada – e com os efeitos das sanções econômicas que
continuaram a vigorar no país até 2003.
A resolução 687 do Conselho de Segurança, considerada a mais completa e exigente
da história das Nações Unidas182, foi o documento que estabeleceu o controle internacional
sobre os setores militar e econômico do regime iraquiano. Para que as sanções econômicas
fossem retiradas, o Iraque deveria destruir todas as suas armas de destruição em massa,
além de mísseis convencionais (para tanto, era necessária a presença de equipes de inspeção
chefiados pela ONU) ; teria que aceitar a presença de uma força de paz em sua fronteira,
realizar reparações ao Kuwait e reconhecer a existência do estado kuwaitiano. Enquanto
isso, ao governo de Saddam Hussein era permitido somente importar remédios, alimentos e
outras necessidades vitais e, inicialmente fora proibida a circulação de aviões iraquianos.
4. Repercussões da Guerra na Opinião Pública Internacional
Com a invasão iraquiana do Kuwait, a negação de retirada das tropas desse país e a
subseqüente Guerra do Golfo, o Iraque emergiria absolutamente isolado internacionalmente
no imediato pós-guerra. Todos os países que participaram da coalizão haviam cortado
relações com o país de Saddam Hussein, e participavam do sistema de sanções aprovado
pelas Nações Unidas.183 Com isso, a possibilidade de ajuda internacional e de realização de
comércio exterior que pudesse levantar fundos para a recuperação do país não eram viáveis
naquele momento e, como será visto no epílogo, mesmo vários anos após o término da
guerra.
O comportamento da coalizão durante a guerra também foi alvo de críticas por parte
da comunidade internacional. A intensidade dos bombardeios repercutira em manifestações
populares anti-guerra em diversas regiões do mundo, como em dezenas de países ocidentais
(incluindo Grã-Bretanha, Estados Unidos, França e Alemanha) e árabes, que questionavam
a participação de seus governos na guerra.184 Após a negativa repercussão dos ataques por
182 MARR, pp. 239-240.183 Idem, pp. 241.184 Karsh (pp. 257) assinala que a convocação de Saddam Hussein para a presença da imprensa ocidental em território iraquiano fazia parte de seu esforço de propaganda para mobilizar grupos pró-paz na Europa e nos EUA a pressionarem pelo fim do conflito.
176
terra (Operação Sabre do Deserto), os Estados Unidos sofreram duras críticas, tanto por
parte da imprensa nacional como internacional, incluindo-se aí representantes da União
Soviética, França e Itália (forçando a resignação de membros do gabinete dos dois últimos
países); houve, ainda, diversos casos de deserções de membros das forças multinacionais no
front185. Contudo, o grupo manteve-se unido até o final da guerra, e os países, em geral,
permaneceram hostis ao Iraque.
5. Desenvolvimentos Políticos Domésticos
Conforme afirma Jabbar, 186 “a população não queria outra guerra”. Os iraquianos,
em geral, aceitaram a ofensiva de Saddam, mas tinham a esperança de que a derrota no
conflito implicasse na queda de seu regime. A oposição exilada (que recebia ajuda
financeira de diversos países com interesses específicos), era extremamente dividida em
termos ideológicos e pessoais, era incapaz de construir uma agenda conjunta que superasse
o patamar mínimo de rejeição ao Baath iraquiano e à Saddam Hussein.187 A oposição
interna, embora houvesse rejeitado a invasão e a anexação do Kuwait, demandaram pela
retirada iraquiana. Contudo, receavam que poderiam perder seu direito moral de opor ao
regime caso não se alinhassem ao Iraque contra o “Ocidente”. Com isso, membros do
SAIRI se alinharam a setores do exército para combater a coalizão; a Frente do Curdistão
decidiu evitar atacar o exército iraquiano no norte do país; os comunistas denunciaram o
que entenderam como a “agressão dos Estados Unidos”.188 Alguns grupos dentre os
militares, tanto de baixo como de alto escalão, acreditavam que a derrota iraquiana na
guerra era clara; parte dos soldados, que já atuara na guerra contra o Irã, estava exausta.
Para combater as deserções, o governo decidiu deter parentes daqueles que já haviam
fugido do exército.189
a) A Intifada: Motivações e Desenvolvimentos
185 ABURISH, pp. 302; 304-306.186 al-Jabbar, pp. 5-7.187 BENGIO, Ofra. “Iraq’s Shi’a and Kurdish Communities: From Resentment to Revolt” in BARAM, Amatzia, e RUBIN, Barry, Iraq’s Road to War, pp. 56-57.188 al-Jabbar, pp. 7.189 Idem, pp. 7-8.
177
A insurgência que tomou conta do sul e do norte do Iraque em Março de 1991
significou, possivelmente, a maior manifestação popular da história moderna do país190.
Embora tenha fracassado, contribuiu fortemente para a delimitação da dinâmica política
que marcou os doze últimos anos do regime. Dentre as razões e motivações apontadas pelos
autores para o surgimento dos conflitos, que se aproximaram, em intensidade, de uma
guerra civil, destacam-se o apoio retórico da coalizão, a destruição em grande escala das
forças armadas e das zonas civis191 e a sensação popular de fraqueza do regime após a
derrota, aliada a um grande senso de descontentamento em razão da grande crise econômica
que assolava o país e, ainda, pelo sofrimento com a continuidade da repressão
governamental.192
A intifada iniciou-se como um movimento marcadamente espontâneo, tendo seu
primeiro ato na revolta de alguns soldados que, considerando que o regime os havia
abandonado à própria sorte em condições adversas de sobrevivência (dados os pesados
bombardeios aliados), atacaram símbolos de Saddam Hussein em cidades ao sul do Iraque,
conforme fugiam do Kuwait.193 Rapidamente, a revolta se disseminou por todo o país,
contando com a participação de parte considerável da população, especialmente jovens das
zonas urbanas.194 No Curdistão, apesar do despreparo inicial das lideranças locais, a melhor
organização permitiu a concentração em alvos mais específicos, como a conquista de
Kirkuk. Um aspecto simbólico relevante, tratado por diversos autores,195 é o fato de que o
foco central dos ataques da população eram as estruturas do Baath (físicas e humanas,
como membros da inteligência e da Milícia Popular) e os monumentos de Saddam Hussein.
Apesar da pouca organização do movimento (principalmente no sul, que não
contava com milícias paramilitares e organizações partidárias, a não ser a participação de
membros do SAIRI196), os insurgentes chegaram a conquistar mais de 60 por cento do
país197. Em tese, somente as províncias do centro do país (incluindo Bagdá), mantiveram-se
sob controle estatal. Contudo, a falta de apoio desse setor seria um fator importante para a
190 ABURISH, pp. 310.191 KHADDURI, pp. 189.192 MARR, pp. 242.193 al-Jabbar, pp. 8-9.194 MARR, pp. 243.195 BENGIO, pp. 61; al-JABBAR, pp. 8;13; KHADDURI, pp. 203; MARR, pp. 249-250.196 MARR, pp. 243.197 ABURISH, pp. 308.
178
derrota do movimento. Partes remanescentes do exército que se mantiveram leais ao regime
e a Guarda Republicana (que se mantivera, em boa parte, em Bagdá), começaram a ser
organizados por Saddam, que passou a incluir membros mais próximos da sua família na
liderança das tropas para abater os movimentos198. Apesar da grande derrota na guerra,
ainda possuíam equipamentos bélicos bastante superiores aos da população civil (muitos
cidadãos confrontavam os tanques possuindo somente paus e pedras)199 e, com a permissão
dada pelos Estados Unidos tanto para o uso de helicópteros pelo governo como para a
passagem de membros da Guarda Republicana por entre as tropas da coalizão 200, as forças
do regime, utilizando-se de extrema brutalidade, conseguiram derrotar os insurgentes no
sul, para então concentrarem-se no abatimento dos curdos, o que veio no final do mês. O
receio da população local de que o exército voltasse a usar armas químicas gerou um êxodo
populacional sem precedentes, da ordem de dois milhões de pessoas.201 Em mais um evento
marcado pela extrema violência (de ambos os lados), as estatísticas de vítimas superam a
barreira das dezenas de milhares.202
i. Razões de seu Fracasso
Os diversos autores estudados apontam diversas causas para o insucesso da intifada
em derrubar o regime, apesar de, por um lado, ter controlado parte do país e, por outro,
enfrentar o governo iraquiano no auge de sua fraqueza.
Um aspecto considerado relevante por vários dos especialistas é a falta de apoio dos
Estados Unidos e da coalizão aos insurgentes (e mesmo o seu apoio logístico ao regime,
incluindo-se aí não somente a permissão para o uso de helicópteros por parte dos iraquianos
e para a circulação da Guarda Republicana mas, supostamente, a interceptação dos
rebeldes, impedindo-os de alcançar depósitos de armas, a construção de trincheiras para
dificultar a sua movimentação e o envio de informações sobre locais de esconderijos dos
amotinados às tropas iraquianas203), apesar de seus seguidos pedidos de auxílio àqueles. O
argumento utilizado pelos norte-americanos fora o de que seu governo não havia feito 198 BENGIO, pp. 60.199 ABURISH, pp. 310.200 MARR, pp. 247.201 BENGIO, pp. 62.202 MARR (pp. 251) coloca o número de mortos superior a 30 mil; SLUGLETT (pp. 290) e ABURISH (pp. 312) cogitam até 300 mil vítimas fatais.
179
promessas de ajuda nem aos xiitas, nem aos curdos, e que a população estadunidense não
estaria disposta a ver seus soldados no meio de uma guerra civil.204 Tripp interpreta que a
coalizão já havia conseguido atingir seu objetivo com a expulsão das tropas iraquianas do
Kuwait, e então não possuiria nem um mandato, nem estava disposta a penetrar para dentro
do território iraquiano; além disso, temiam que a crise no país acentuasse o grau de guerra
civil existente e levasse à fragmentação do Iraque.205 Algumas motivações paralelas, como
a de que a coalizão poderia ser desfeita caso fosse decidido o auxílio aos insurgentes (dado
o receio da Arábia Saudita de que tal apoio beneficiaria os xiitas206 e a oposição da Turquia
a um suporte aos curdos, já que uma eventual independência curda lançaria a semente para
a criação de um grande país curdo, que eventualmente capturaria parte de seu território 207)
também parecem ter influenciado a atitude dos EUA. Contudo, a análise dos objetivos
desse país para com o Iraque pode indicar de maneira mais apropriada o porquê de sua
inércia. Autores como Aburish, Bengio, Hiro, Khadduri e Sluglett208 concordam que, na
pior das hipóteses, os Estados Unidos desejariam um golpe militar dentro do regime, mas
sem alterar a sua estrutura autoritária, e que pudesse manter a integridade do país e,
eventualmente, que se tornasse um aliado próximo de Washington. A recusa em apoiar a
intifada teria se dado, então, pelo temor de que a derrubada do regime pudesse implicar na
formação de um governo xiita ligado ao Irã, formando uma vigorosa aliança anti-EUA no
extremo Oriente Médio.
O tema da eventual participação do Irã nas insurgências (o que, em última instância,
preveniu o apoio da coalizão aos iraquianos rebeldes) é alvo de controvérsia dentre os
acadêmicos, embora a participação da milícia do SAIRI seja evidente. Hiro209 afirma que
houve participação da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã, o que é corroborado por
Bengio, que assinala que o Irã forneceu não só combatentes, mas apoio logístico e
político210. Aburish211, por outro lado, entende que o apoio iraniano fora residual, e
203 ABURISH, pp. 308. O autor cita membros do alto escalão do exército iraquiano que aderiram aos rebeldes e membros da oposição exilada como fontes para tais afirmações.204 HIRO, In the Eye of the Storm, pp. 44-45.205 TRIPP, pp. 255; 258.206 SLUGLETT, pp. 289-290.207 HIRO, In the Eye of the Storm, pp. 44.208 ABURISH, pp. 309; BENGIO, pp. 60; HIRO, pp. 42-45; KHADDURI, pp. 205; SLUGLETT, pp. 289-290.209 HIRO, In the ..., pp. 41.210 BENGIO, pp. 58-59.211 ABURISH, pp. 310.
180
justamente isso também impedira o sucesso da intifada. Marr212 também entende que o Irã
fizera muito pouco para alterar minimamente os rumos da disputa, o que teria irritado
membros da oposição iraquiana exilada.
Entretanto, a retórica pró-islâmica que fora ecoada por alguns dos insurgentes –
afora a distribuição de cartazes de Khomeini e Mohammad al-Sadr, o líder da oposição
xiita nos anos 70 – principalmente nas cidades sagradas, teve efeito negativo para o
movimento. O discurso tinha pouco apelo nacional se comparado ao enunciado por sunitas
militares, ex-baathistas, esquerdistas, entre outros213, e permitia ao regime utilizar o
sectarismo alheio como propaganda contra a rebelião.214 A violência e a destruição
praticados pelos rebeldes foi outro fator considerado para a falência da intifada. Por um
lado, a brutalidade no trato aos baathistas uniu a maioria do partido em torno de Saddam
Hussein215; por outro, os militares, que atuavam a favor da rebelião como indivíduos (sem
contar, contanto, com a estrutura da corporação), também, em parte, foram hostilizados, o
que resultou na aglutinação de alguns setores desses grupos a favor do regime.216 A
violência também estava associada com a desorganização dos grupos que, à exceção dos
curdos, não possuíam lideranças (já que o Ayatollah al-Khu’i, principal figura xiita do
Iraque, possuía divergências com as linhas teológicas khomeinistas, e então buscara adotar
uma posição política mais quietista)217, refletindo a grande fraqueza e desunião, tanto da
oposição interna como dentre a que se encontrava exilada. Esse contexto de instabilidade
afastou a classe média-alta das cidades218 e mesmo boa parte da zona rural e das tribos –
boa parte delas atuou ao lado da Guarda Republicana.219
Os curdos, embora melhor organizados e dispondo de milícias a seu favor
(incluindo cerca de 60 mil membros guerrilheiros jash e Fursan, que até então atuavam a
favor do regime220, além de militares que desertaram no início da intifada), tiveram que
lidar com a Guarda Republicana que, àquela altura, já havia controlado as rebeliões no sul e
212 MARR, pp. 246.213 al-JABBAR, pp. 10.214 MARR, pp. 243.215 al-JABBAR, pp. 13.216 ABURISH, pp. 310-311.217 KHADDURI, pp. 193.218 MARR, pp. 243. A zona central do país, em especial, funcionara como uma espécie de “tampão” entre o norte e o sul, impedindo a comunicação entre os insurgentes e carecendo de estruturas organizacionais capazes de ativar um movimento revolucionário local (cf. al-JABBAR, pp. 12).219 TRIPP, pp. 256.220 BENGIO, pp. 59.
181
dispunha de um melhor preparo, o que lhes possibilitou, com grande violência, retomar o
controle do Curdistão em cerca de dez dias. Com isso, o regime de Saddam Hussein que,
com seus erros de cálculo, havia despertado uma grande insatisfação popular, conseguira
manter-se no poder, ainda que – no longo prazo – as restrições impostas pelo insucesso da
guerra tornassem-no extremamente frágil.
III) Aspectos Ideológicos
No período em análise, Saddam Hussein empregou diversas ideologias para
cimentar a legitimidade social para seu regime e para suas ações. Para além da continuidade
(e da ampliação) do culto de sua personalidade221, simbolizado pela construção de mais
monumentos em sua homenagem, o líder iraquiano empreendeu, convenientemente, tanto o
pan-arabismo como o islamismo como doutrinas para justificar suas demandas, intenções e
feitos. O nacionalismo mesopotâmico – altamente vigente nas duas décadas anteriores –
fora gradualmente abandonado, conforme a grandeza do país não mais se relacionava com
o forte declínio da economia a partir da segunda metade da década de 1980. Com o fim da
Guerra do Golfo de 1991 e o fracasso iraquiano, viria à tona, aos poucos, a evocação do
tribalismo que, ancorado em versões peculiares do islamismo, se tornaria a ideologia
dominante nos últimos anos do regime. Conforme será identificado no epílogo, a retórica
seria acompanhada de um forte privilegiamento das tribos mais leais ao regime. O que
ficava cada vez mais evidente conforme Saddam ampliava seu controle sobre as estruturas
políticas do país era o distanciamento de seus discursos dos princípios elencados
historicamente pelo Baath.
1. Pré-Guerra: Confluência entre o Nacionalismo Árabe e o Islamismo
Com o fim da guerra contra o Irã, as referências de Saddam Hussein ao Islã não
cessaram. Símbolo dessa continuidade estava a elaboração de uma nova legislação
islâmica, a shari’a, que dava poderes para os homens de uma família a tirarem a vida das
221 Cf. Karsh, pp. 194-196.
182
mulheres do grupo em caso de adultério ou outros crimes passionais.222 Paralelamente, o
regime mantinha uma postura nacionalista, embasada no apoio à causa palestina, e tanto
com o objetivo de recolocar o Iraque como o líder do mundo árabe223 como para angariar
apoio das “ruas árabes” contra os Estados Unidos, conforme este se posicionava
contrariamente às suas políticas.224 Dentro desse contexto, e também com a meta de desviar
a atenção da população iraquiana da grave crise econômica que assolava o país naquele
momento,225 Saddam Hussein passou a ampliar suas críticas contra Israel, chegando a
ameaçá-lo com um ataque nuclear. A reação dentre a população árabe foi amplamente
positiva, o que o levou a ampliar a dosagem de suas mensagens pan-arabistas, consagrando-
o como um herói para as massas árabes.226 O presidente iraquiano também buscava utilizar
o discurso nacionalista para obter apoio econômico dos vizinhos árabes; contudo, como
visto, obtivera pouco sucesso227, já que o descolamento entre o posicionamento dos líderes
árabes e as populações nacionais não foi capaz de desestabilizar a região e, com isso,
implicar numa mudança séria de atitude de figuras centrais, como Fahd, da Arábia Saudita,
e Mubarak, do Egito.
O uso dessa retórica contra o Kuwait também foi empregado, muito embora as
declarações sobre aquele território como pertencendo historicamente ao Iraque (tal qual
fizera Qasim, em 1961) não fossem feitas até a data da invasão228. Após a ocupação, no
entanto, se tornava evidente nas declarações de Hussein o resgate do ideário classicamente
encampado pelos nacionalistas iraquianos, isto é, a injustiça cometida pelos “imperialistas”
britânicos em separar, artificialmente, o Kuwait do Iraque. Com isso, Saddam intentava
mobilizar um senso de orgulho nacional com o que classificava como o “alcance dos
objetivos nacionais do Iraque”.229
Com a resposta negativa por parte dos líderes árabes à invasão e, principalmente,
com a instalação de tropas ocidentais (majoritariamente norte-americanas) na Arábia
Saudita, o lar das cidades e santuários sagrados, Hussein aumentou o tom da oratória
222 BARAM, Amatzia. “Re-Inventing Nationalism in Ba’thi Iraq 1968-1994: Supra Territorial and Territorial Identities and What Lies Below”, in Journal of Middle Eastern Studies, nº 51, 1996, pp. 39.223 ABURISH, pp. 254-256.224 DAWISHA, pp. 559.225 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 11-14.226 MARR, pp. 222-223.227 KARSH, pp. 210.228 BARAM, “The Iraqi ...”, pp. 17-18.229 TRIPP, pp. 253.
183
islamista, tornando-a predominante em seus discursos a partir de então.230 De acordo com
Dawisha, a adesão de Saddam ao islamismo (com intensidade muito superior ao ocorrido
durante a guerra com o Irã) teve resposta bastante positiva de grupos radicais islâmicos, que
se surpreenderam com a guinada de um regime até então marcado pelo secularismo.231 Um
dos símbolos dessa conversão é apontado por Baram: às vésperas da guerra com a coalizão,
o presidente iraquiano ordenara a colocação da frase “Alah é grande” na bandeira de seu
país.232 Nem com a adoção do islamismo, nem com a evocação do pan-arabismo (que
também chegou a ser empregado inclusive com o propósito de atrair a esquerda do mundo
árabe, que receava o domínio total do Oriente Médio pelo Ocidente após a queda da
URSS)233 tiveram quaisquer efeitos na atenuação da situação iraquiana na crise.
2. Pós-Guerra: Islamismo e a Ascensão do Tribalismo
Com a incontestável derrota iraquiana na guerra, o nacionalismo árabe foi
solenemente rejeitado dos discursos de Saddam Hussein, que então buscava colocar o
Iraque como vítima de uma conspiração imperialista-sionista e com a ajuda de seus aliados
regionais.234 A discussão entre os autores se dá em termos da permanência do islamismo
como componente ideológico do regime. Enquanto Baram afirma que, logo após o final da
guerra, Saddam iniciou um processo de islamização nas esferas jurídica, educacional e
institucional, ainda que de maneira peculiar235, Dawisha236 entende que as medidas que
buscavam trazer à tona o elemento religioso eram apenas um suporte e uma maneira de
identificação para com o tribalismo, que teria se tornado, de fato, a ideologia predominante
nos últimos anos do regime. Nos discursos do presidente iraquiano, se tornava cada vez
mais evidente a valorização de termos como coragem, sacrifício, e solidariedade social,
enquanto participava da celebração de festas tribais e afirmava que o partido Baath era a
230 DAWISHA, pp. 559-561.231 DAWISHA, pp. 561.232 BARAM, “Re-Inventing Nationalism ...”, pp. 40.233 SLUGLETT, pp. 286.234 MARR, pp. 265.235 BARAM, “Re-Inventing Nationalism ...”, pp. 40-42. A peculiaridade do islamismo adotado estava, principalmente, na conexão mais rígida das punições a infrações econômicas.236 DAWISHA, pp. 562-563.
184
“tribo que abrangia todas as tribos”.237 Baram238 considera que o tribalismo, em associação
com o islamismo, se tornara o ideário mais efetivo em manter a coesão social iraquiana, já
que as tribos ainda eram a principal maneira de organização social do país e havia a
necessidade de se obter o mínimo de consentimento da comunidade xiita, principalmente
após a falha de sua insurgência contra o regime. Ambos os autores estudados239 destacam a
contraditoriedade entre os princípios históricos do Baath, pautados sob o secularismo e o
modernismo (condenando a evocação de símbolos tribais como “atrasados” e
contraproducentes à causa árabe), e o posicionamento adotado por Saddam Hussein após a
Guerra do Golfo de 1991.
237 Idem, pp. 563-567.238 BARAM, “Re-Inventing Nationalism ...”, pp. 43-45.239 BARAM, “Re-Inventing Nationalism ...”, pp. 46-47; DAWISHA, pp. 566-567.
185
186
Epílogo (1991-2003)
A derrota na Guerra do Golfo de 1991, a continuidade do rigoroso regime de
sanções econômicas implantado pelas Nações Unidas e a conflituosa relação com as
oposições foram fatores que marcaram a dinâmica do frágil governo de Saddam Hussein
até a sua queda, em 2003. Com uma base de poder ainda mais estreita, o presidente
iraquiano aumentaria o autoritarismo de seu regime e basearia parte de seu sistema de
aliança nas tribos. Na política externa, o Iraque emergiria do conflito absolutamente
isolado, e procuraria, nestes doze últimos anos, revisar as restrições de soberania impostas
pela comunidade internacional, como a proibição das exportações livres de petróleo, a
criação das zonas de exclusão aérea ao norte e, posteriormente, ao sul do país, e as
inspeções de equipes da ONU em território iraquiano em busca de armas de destruição em
massa. Os curdos obteriam uma autonomia de facto ao norte, mas diversas disputas internas
e o subseqüente clima de guerra civil tornariam o auto-governo quase inviável. Com a
continuação das sanções econômicas, o Iraque se tornaria um dos países mais pobres do
mundo; milhões de crianças e adultos morreriam de fome. Outros milhões sairiam do país,
e a parte substancial da classe média seria forçada a vender seus bens e ir para as ruas em
busca de auxílio. Contudo, um pequeno setor da sociedade, ligado ao líder iraquiano,
continuaria a desfrutar de boas condições de vida, graças ao benefício do controle dos
poucos recursos que entravam no país.
A oposição exilada (que contava, em geral, com ajuda estrangeira) tentaria se
organizar, mas sem obter sucesso em efetivar a derrocada do regime baathista, mesmo em
seu momento mais frágil desde a subida ao poder. Com isso, apesar das péssimas condições
enfrentadas pelo país, Saddam ainda contava, às vésperas da crise que levaria à invasão
norte-americana, com uma capacidade bastante razoável de governo. Todavia, apesar da
continuidade do duro regime de sanções econômicas (que se suavizariam em algum grau
dadas as péssimas repercussões no mundo ocidental após seguidas exibições de imagens
degradantes mostrando a profundidade da crise humanitária iraquiana), o novo governo
norte-americano de George W. Bush pressionaria pelo retorno das inspeções de equipes da
ONU nas cidades iraquianas em busca de equipamento bélico. O atendimento parcial por
187
parte do governo iraquiano (após anos de obstruções e impedimentos) não fora suficiente
para diminuir as tensões, que culminariam na ofensiva (desta vez sem o aval do Conselho
de Segurança das Nações Unidas) dos Estados Unidos e da Inglaterra de uma pequena
coalizão de outros países, pondo fim ao longo regime do Baath.
Neste breve epílogo, trataremos, em termos gerais, dos aspectos e temas mais
relevantes que marcaram os doze últimos anos do governo de Saddam Hussein, tanto na
política (doméstica e internacional) como na economia e sociedade iraquianas.
1. Economia: Efeitos das Sanções das Nações Unidas sobre a População
O regime de sanções econômicas imposto pela ONU continuou a vigorar no Iraque
durante os doze últimos anos do governo de Saddam Hussein. Para que as limitações à
exportação de petróleo fossem retiradas, o país deveria atender a quatro pré-requisitos: a
eliminação das armas de destruição em massa (contando-se aí com equipes de inspeção da
ONU); a soltura de todos os kuwaitianos e outros estrangeiros mantidos no Iraque; o
reconhecimento da soberania do Kuwait e o pagamento de todos os danos causados a esse
país (por meio de vendas em petróleo). Contudo, até a queda de Saddam em 2003, somente
havia ocorrido o reconhecimento das fronteiras do Kuwait (em Novembro de 1994).1
Contudo, com a grande piora das condições econômicas dentro do país,
gradualmente a severidade das sanções econômicas foi atenuada. Primeiramente, em Abril
de 1991, fora permitida a importação de alimentos e artefatos essenciais para as
necessidades civis; em Agosto do mesmo ano, por meio da Resolução 706, a ONU permitiu
a venda semestral (renovável) de 1.6 bilhões de dólares em petróleo para importações
essenciais. Com o agravamento da crise humanitária e os grandes constrangimentos
sofridos pela coalizão, fora aprovada, em 1995, a resolução 986, que ficaria conhecida
como o programa “Petróleo por Comida”. Esse projeto, que posteriormente fora ampliado,
viabilizava o aumento das exportações brutas para 5.26 bilhões de dólares; um terço desse
valor seria enviado para o pagamento das reparações ao Kuwait.2 Em troca, aumentariam as
inspeções de equipes da ONU em busca de instalações e depósitos de armas de destruição
em massa. Saddam Hussein, que rejeitou a ajuda internacional por diversas vezes, entendia
1 SLUGLETT, pp. 291.2 Idem, ibidem.
188
que o programa da ONU implicava num aumento ainda maior da perda de soberania do
país e que o auxílio humanitário gradual seria pouco efetivo no longo prazo; sua crença nos
movimento progressivos da ONU em atenuar a força do sistema de sanções fazia-no
acreditar que, em breve, elas seriam suspensas sem contrapartida, o que acabou não
ocorrendo.3 Entretanto, após bastante relutância, acabou por aceitar, em Dezembro de 1996,
a implementação do programa. Em contrapartida, a enorme burocracia criada para a
aprovação das importações de cada produto requerido pelo Iraque e a indisposição de
países como Estado Unidos e Inglaterra em aceitar cada um dos pedidos tornou a ajuda da
comunidade internacional pouco eficiente naquele momento.4 Em 1999, o limite para a as
exportações seria aumentado para 8.2 bilhões de dólares, já que a situação humanitária do
Iraque era muito mais grave do que se calculava inicialmente. Dez anos após o início das
sanções, a ONU permitiria a livre exportação de petróleo, mas ainda controlava as
importações, embora permitisse a vinda de equipamentos que visassem recuperar a
indústria petrolífera. Nos últimos anos do regime, o Iraque passou a exportar cerca de 25-30
bilhões de dólares em petróleo por ano5, quantia similar ao que era enviado ao exterior
quando o país estava no auge de seu desenvolvimento econômico, em 1980.
Para a população iraquiana, o regime de sanções foi o mais deletério possível. Já em
1991, com a grande destruição da infra-estrutura do país pelas forças da coalizão e com o
embargo econômico, os níveis de mortalidade infantil haviam se elevado para padrões não
existentes no Iraque em 40 anos6. A renda per capita do país, que alcançara quatro mil
dólares logo antes do início da guerra contra o Irã7 e estava em pouco mais de dois mil
dólares antes do início da Guerra do Golfo havia caído, já em 1992, para 609 dólares8. A
atenuação da força do regime de sanções, excessivamente lenta, não melhorou esse quadro
até o final da década, onde já se supunha que a renda per capita já havia caído para cerca de
200 dólares9. Cerca de dois milhões dos iraquianos que tinham condições de sair do país o
3 MARR, pp. 270; 281-2824 ABURISH, pp. 343.5 Idem, pp. 282-283.6 TRIPP, pp. 261.7 ABURISH, pp. 344.8 MARR, pp. 268.9 al-SAADI, Sabri Zire. Oil Wealth And Poverty In Iraq: Statistical Adjustment Of The Government GDP Estimates (1980-2002), in Middle East Economic Survey, vol. XLVIII, nº 16, 18 de Abril de 2005.
189
fizeram; a maioria da comunidade exilada era formada pelo pessoal mais qualificado
daquela sociedade (como médicos, engenheiros e administradores), o que dificultava
substancialmente a recuperação do país10. Com a hiperinflação, que desvalorizou a moeda
iraquiana de 0.3 dólares/dinar para 2600 dólares/dinar, a classe média empobreceu
significativamente.11 Com a crônica desnutrição (os iraquianos recebiam somente um terço
das calorias necessárias para a sobrevivência), um número extremamente elevado de
iraquianos havia morrido já em meados da década, tendo aumentado desde então.12 Diante
desse quadro, o Iraque havia se tornado um dos países mais pobres do mundo, e símbolo de
uma das crises humanitárias mais significativas da última década do século XX.
Com a abertura proposta pelo programa “Petróleo por Comida”, a situação iraquiana
melhorou, embora ainda se mantivesse distante da vivida mesmo durante a crise econômica
após a guerra contra o Irã. Com os esforços do regime em atrair capital estrangeiro, muitas
multinacionais de dezenas de países passaram a ingressar no mercado iraquiano; a
diversificação e o aumento da quantidade e da qualidade dos alimentos, a população dos
maiores centros puderam desfrutar de melhores condições de vida.13 Houve um controle
maior da inflação, um tímido processo de reindustrialização e algumas melhorias no
sistema de saúde, mas se tornava notória a péssima qualidade do sistema educacional (que
10 ABURISH, pp. 330.11 MARR, pp. 268.12 ABURISH (2000: 344), citando estudos do British Journa lof Independent Studies de Março de 1997, estima o número de mortos em 1.5 milhão. No entanto, o tema é um dos mais controversos debates sobre o Iraque contemporâneo, primeiramente após os estudos da UNICEF, divulgados em 1999 (disponíveis em http://www.unicef.org/newsline/99pr29.htm) – em que foi afirmado que, caso a diminuição dos níveis de mortalidade no Iraque dentre os anos de 1991 e 1998 ocorresse ao mesmo nível dos anos 80, teriam morrido, em tese, 500 mil crianças a menos –, e que criaram ondas de novos estudos, por parte dos que se consideravam a favor e contra o regime de sanções, que visavam, respectivamente, diminuir e referendar (ou mesmo aumentar) esses números; secundariamente, após as declarações de Osama bin Laden, que em parte culpava os atentados de 11 de Setembro de 2001 no regime de sanções imposto pelas Nações Unidas, que “teria matado mais de 1.5 milhão de crianças”. Os estudos com números mais conservadores, como o de Richard Garfield, da Universidade de Columbia (realizado em 1999, revisado em 2001, e disponível em http://www.columbia.edu/cu/news/media/00/richardGarfield/index.html), apontam para cerca de 350 mil crianças mortas – o autor destaca que nem todas as crianças teriam morrido unicamente pelo regime de sanções, destacando outras hipóteses, principalmente os efeitos militares da Guerra do Golfo de 1991, que destruiram boa parte da infra-estrutura iraquiana. De qualquer forma, é necessário ressaltar, em primeiro lugar, a dificuldade de se realizar pesquisas acuradas diante da própria situação em que se encontrava o Iraque, econômica e politicamente, naquele período; em segundo lugar, independentemente do eventual número exato que se possa apresentar, é certo que o regime de sanções, tanto pela intransigência internacional, como pelo descaso e corrupção do governo ditatorial de Hussein se constituiu como uma grande tragédia humanitária, que terá, assim como o regime baathista em si e a atual ocupação norte-americana, graves conseqüências para as próximas gerações iraquianas. 13 TRIPP, pp. 278-279.
190
havia permitido a queda das taxas de alfabetização de 67 por cento para 57 por cento em
uma década) e a continuidade dos altos índices de desnutrição.14
2. Política Doméstica: A Manutenção e o Fortalecimento do Regime
A coalizão esperava que o regime de sanções resultasse, em última instância, na
queda do regime, mas o que se viu foi o seu exato contrário.15 Logo após o controle da
intifada, Saddam Hussein buscou reestruturar o sistema de segurança do Estado e o setor
militar. Ao mesmo tempo em que expulsava milhares de “traidores” das corporações e das
organizações do partido e do Estado, promovia, ainda mais do que antes, o seu clã e sua
família para postos estratégicos; paralelamente, a Guarda Republicana, até então
responsável pela guarda da integridade do presidente, fora ampliada, substituindo o exército
como força de segurança predominante no país.16
A estrutura do estado iraquiano no período 1991-2003 evidenciou o caráter do
regime de Saddam Hussein, que privilegiava, com os recursos do petróleo17, cerca de 500
mil iraquianos com alguns benefícios para manter o governo funcionando, deixando o
restante da população à própria sorte. Formando um regime semi-dinástico, favorecia,
incluía e excluía setores da população conforme visse que pudesse maximizar as suas
possibilidades de permanência no poder. Dentro de seu círculo de poder mais próximo,
repetia aquela prática. Ali, dividiam-se os interesses familiares em três segmentos: seus
meio-irmãos; o clã al-Majid, de seu pai; e seus dois filhos, Uddayy e Qusayy.18 Um aspecto
bastante significativo da configuração do sistema político iraquiano nesse momento
histórico fora a grande ênfase dada pelo regime nas alianças com as tribos, revivendo o
tribalismo como prática política (embora o Baath, historicamente, condenasse a
organização tribal como atrasada). Shaiks eram rearmados para manter a ordem no interior
14 MARR, pp. 282-283; 294-297.15 Idem, pp. 269.16 MARR, pp. 264.17 Autores como ABURISH (pp. 315) e TRIPP (pp. 269) consideram que, nos doze últimos anos do governo de Saddam Hussein no Iraque a população local tenha sofrido com suas sanções: a externa, imposta pelas Nações Unidas e perpetuada pela coalizão pró-ocidente, e a interna, obra da intensificação das redes de patronagem de Saddam, que excluíam a maioria dos iraquianos.18 TRIPP, pp. 264-266. Aburish (pp. 326) compara a família de Saddam Hussein a uma máfia, já que vários de seus membros passaram a realizar contatos com russos e colombianos para o tráfico de drogas e com jordanianos para a venda de comida e remédios conseguidos por meio da ajuda humanitária.
191
do país, e recebiam grandes somas de dinheiro para uso pessoal.19 Saddam ainda reeditava
leis que permitiam o retorno dos costumes tribais dentre a sociedade (como o registro de
terras coletivas em seus nomes, a permissão do uso de nomes tribais, o trato de membros da
tribo por superiores sem garantias trabalho com condições estabelecidas por lei e o trato
hierárquico dos homens perante as mulheres), enquanto revertia parte do programa de
reforma agrária que o havia consagrado nos anos 70.20
Por outro lado, a dependência dos clientes para com o regime se tornava cada vez
mais evidente. A maioria daqueles que se colocavam como leais a Saddam tinham
consciência de que, caso este fosse deposto, eles perderiam seus privilégios.21 Essa
simbiose dificultava consideravelmente a subversão interna, embora ela houvesse ocorrido
por diversas vezes nesses doze últimos anos do Baath no poder.
Entre 1991 e 1995, dezenas de tentativas de conspiração em setores militares, tribais
(inclusive dentre aquelas localizadas em Tikrit) e da Guarda Republicana foram
descobertas. Disputas por notoriedade e poder dentro da família de Hussein repercutiram
em deserções que abalaram o regime e causaram constrangimento internacional para
Saddam, já que, no caso de seus genros, Saddam e Hussein Kamel (que se exilaram na
Jordânia com as filhas do presidente após ameaças de morte por Uddayy22), as delações ao
Ocidente sobre a existência de mais locais dentro do território iraquiano onde havia
facilidades para a elaboração de armas de destruição em massa resultaram em grande
pressão para a intensificação dos trabalhos de inspeção por parte da ONU.
No final da década de 1990, Saddam Hussein, aparentemente influenciado pelos
diversos casos de golpe e deserção ocorridos dentro de seu grupo de poder e pelo
descontentamento populacional com os casos de corrupção notórios em sua família, decidiu
resgatar o papel ideológico do Baath, especialmente por meio da promoção de membros
antigos do partido e não tão próximos do presidente iraquiano a cargos importantes.23
Contudo, se tornava evidente àquela altura que o Baath tinha perdido completamente o seu
apelo para a nova geração de iraquianos e, mais ainda, para a população em geral, que via
no partido uma mera estrutura de avanço profissional.24
19 MARR, pp. 262.20 ABURISH, pp. 324-225.21 SLUGLETT, pp. 309; TRIPP, pp. 264; 267; 291.22 ABURISH, pp. 337.23 SLUGLETT, pp. 307-308.24 MARR, pp. 293.
192
Em resposta às diminuições de sua base de poder, Saddam ampliou o autoritarismo
de seu governo. Leis foram criadas para punir com mutilações os desertores e ladrões, e
mais dezenas de milhares de pessoas continuaram a desaparecer subitamente.25 Os xiitas,
principalmente os árabes pantaneiros (grupo localizado no sudeste do país que realizou
diversos protestos contra as medidas de Saddam, principalmente a drenagem dos pântanos
para que, em tese os rios Tigre e Eufrates se tornassem menos salinos26), foram fortemente
perseguidos, seja com execuções sumárias e expulsões, seja com a destruição de boa parte
dos pântanos da região, que levaram a milhares de mortes e ao esvaziamento das atividades
daquele grupo. Com o aumento da possibilidade de intervenção norte-americana em 2002,
Saddam buscou preparar-se para a contenção de golpes por meio da perseguição de
membros do alto escalão do exército e dos serviços de segurança, além de renovar o
clientelismo na capital do país.27
a) As Oposições Internas e os Grupos Exilados
A supressão da intifada repercutiu de maneiras diferentes dentre os principais
grupos de oposição dentro do Iraque. Para os xiitas, a derrota do movimento implicou numa
grande alienação de seu segmento perante o regime (possivelmente num grau nunca visto
na história moderna do país), no sofrimento peculiarmente maior diante da grande
destruição material e humana (principalmente dentre os jovens) e, notadamente, num
considerável aumento do sentimento anti-americano (e, em menor grau, anti-iraniano),
graças ao pouco (ou nenhum) auxílio dado por estes países para que a intifada fosse eficaz
em derrubar o presidente iraquiano, apesar das retóricas de apoio.28 No norte do país, a
evasão de milhões de curdos e a igualmente devastadora destruição material causada pelo
exército iraquiano acabaram por repercutir enormemente na imprensa ocidental
(diferentemente da questão xiita), o que gerou grandes pressões por apoio àquela
comunidade. A interferência especial da Turquia, que não estava disposta a receber os
25 SLUGLETT, pp. 301-303.26 ABURISH, pp. 321-323. Diferentemente dos demais autores, Aburish argumenta que, embora o projeto tenha sido imposto com extrema brutalidade, ele acabou por significar um grande aumento de fertilidade nas margens dos rios, e que as críticas ocidentais a ele seriam infundadas, já que a drenagem daquela região fora elaborada originalmente por empresas inglesas nas décadas de 1940 e 1970. 27 TRIPP, pp. 289.28 MARR, pp. 252.
193
milhares de curdos fugitivos29, foi decisiva para a implantação por parte da coalizão (sem o
aval inicial das Nações Unidas) da “Operação Provide Comfort”, que deu aos curdos uma
zona de segurança e uma zona de exclusão aérea para acima do 36º paralelo, protegendo a
população local de eventuais ataques de helicópteros iraquianos.30 Com o objetivo de
ampliar a área sob o controle curdo, Barzani e Talabani, os líderes daquela região,
encontraram-se com Saddam durante o ano de 1991.31 Contudo, com a recusa do governo,
novos conflitos por terra eclodiram, levando ao envio de forças de paz da ONU para o
Curdistão. Com a continuidade dessa intervenção internacional, os curdos haviam
conseguido, de fato, a tão reivindicada autonomia, apesar do bloqueio econômico imposto
pelo governo central.32
Todavia, a situação no Curdistão diante dessa nova realidade não melhorou
substancialmente. As eleições para o primeiro Governo Regional do Curdistão, em 1992,
terminaram virtualmente empatadas entre o Partido Democrático Curdo (PDC), de Barzani,
e a União Patriótica do Curdistão (UPC), de Talabani,33 e, desde então, disputas pela
jurisdição de determinadas áreas e competências tornaram o clima extremamente tenso no
norte do Iraque. Enquanto o apoio ao PDC se concentrava em tribos localizadas no noroeste
do país, nas proximidades da fronteira com a Turquia, o suporte à UPC vinha do nordeste e
sudeste, nos setores mais urbanos e nas proximidades da fronteira com o Irã.34 Ambos os
partidos possuíam suas próprias milícias; com o acirramento das desconfianças e das
disputas, elas seriam utilizadas, dando início a um conflito aberto no final de 1993.
O que se tornou muito patente desde esse momento até o final da década fora o
envolvimento de outros países no conflito e, inclusive, do exército iraquiano (já que
Barzani solicitara ajuda governamental para expulsar tropas iranianas que ajudavam o
PDC35). Por meio da formação de diversas alianças e do patrocínio de pequenos partidos do
Curdistão, países como Irã, Síria e Turquia36 – que possuem em seus territórios grande parte
da população curda – envolveram-se substancialmente naquela região, o que repercutiu no
29 Idem, pp. 253-254.30 ABURISH, pp. 312-313.31 SLUGLETT, pp. 295-296.32 MARR, pp. 279.33 TRIPP, pp. 271-272.34 SLUGLETT, pp. 296-297.35 MARR, pp. 285-286.36 ABURISH, pp. 340; MARR, pp. 285-286; SLUGLETT, pp. 297-298; TRIPP, pp. 272.
194
prolongamento da guerra entre as facções, no aumento do número de vítimas e no
enfraquecimento da entidade autônoma criada.
A participação das forças iraquianas dentro do Curdistão repercutiu em grande
condenação por parte dos Estados Unidos, que retaliou por meio do lançamento de mísseis
contra alvos iraquianos no sul37 e, mais tarde, por meio da intermediação de acordos de paz
entre as lideranças curdas.38 Entretanto, as tensões, ainda que em menor grau, continuaram
a vigorar no norte do país. Por outro lado, a autonomia permitiu, em alguma medida, o
reavivamento da cultura curda e da formação educacional que colocavam o Curdistão em
grande relevância, ainda que não como uma entidade separada do Iraque.39
A oposição xiita, frágil e ainda distante de sua população e adotando um discurso
cada vez mais pró-democracia,40 continuou a ser duramente perseguida pelo regime, o que
era evidenciado pela morte de vários clérigos e de outros líderes religiosos que não se
submetiam ao clientelismo imposto pelo regime, especialmente durante o final da década
de 90.41 Os conflitos entre dissidentes e o governo continuaram até a sua derrocada, muito
embora as ofensivas dos primeiros tinham objetivos pouco amplos (como ataques a
indivíduos que participavam das forças de segurança), pois o regime ainda conseguia ter o
domínio da maioria das estruturas sociais. Numa tentativa de evitar o aumento da
participação das forças armadas no sul, a coalizão também impôs uma zona de exclusão
aérea no sul, primeiramente iniciada a partir do 32º paralelo, posteriormente adiantado até o
33º. Com isso, a soberania iraquiana sobre o seu espaço aéreo, até o final do regime Baath,
seria reduzida a um terço do tamanho original.42
Os grupos exilados, por sua vez, se não foram eficazes em contribuir para a
derrubada do regime, ao menos receberam grande atenção por parte da comunidade
internacional. Para além da maioria dos membros dos maiores grupos (espalhados pela
Síria, Jordânia, países do Golfo, Irã, Inglaterra e Estados Unidos), como o SAIRI, o Da’wa,
o Partido Democrático Curdo, a União Patriótica do Curdistão, e mesmo o Partido
Comunista Iraquiano43, havia nacionalistas árabes, como o Acordo Nacional do Iraque,
37 MARR, pp. 288.38 SLUGLETT, pp. 299.39 MARR, pp. 299.40 SLUGLETT, pp. 300-301.41 TRIPP, pp. 270-271.42 MARR, pp. 281.43 Idem, pp. 273-274.
195
formado por dissidentes do Baath e por grupos sociais que até então eram favorecidos pelo
regime. Esse grupo buscava organizar conspirações dentro dos grupos de confiança de
Saddam Hussein, mas não obteve nenhum sucesso.44
Para superar as divisões entre os grupos de oposição iraquianos, formou-se, em
1992, o Congresso Nacional Iraquiano (CNI). Logo se tornaria evidente o ativo patrocínio
dos Estados Unidos, o que acabou por afastar, em pouco tempo, diversos segmentos
daquela organização.45 No entanto, os seguidos contatos da CIA norte-americana com
membros próximos da família de Saddam e comprometidos com a lógica autoritária do
governo baathista pareceram indicar que a estratégia estadunidense era mais pragmática,
preferindo a substituição de Hussein por alguém politicamente alinhado a ele próprio, mas
mais voltado a cooperar pelo ocidente, à viabilizar a emergência, no longo prazo, de
movimentos democráticos, baseados em organizações populares.46 Contudo, nenhuma
conspiração organizada pela CIA, seja envolvendo a oposição iraquiana com Washington,
seja buscando coordenar esforços conjuntos com governos árabes ou ainda por meio da
cooptação de elementos do núcleo duro do regime obteve resultados.47 Nesse sentido, o Ato
de Liberação Iraquiana (transferência, em 1998, de 100 milhões de dólares a grupos
oposicionistas iraquianos devido a pressões do partido Republicano para que Bill Clinton, o
então presidente dos EUA, radicalizasse sua política perante Saddam Hussein), teve, para
diversos autores, um significado muito mais simbólico do que estratégico48, já que havia
pouco controle sobre o uso do dinheiro por parte dos grupos exilados nem a formatação de
esquemas de conluio com alguma viabilidade.
O CNI buscaria, então, criar bases dentro do território iraquiano e, com o apoio
internacional, conseguiria criar rádios clandestinas e passaria a distribuir panfletos e
jornais. Os integrantes com maior peso dentro do grupo seriam, certamente, o PDC e a
UPC; entretanto, o aumento das tensões entre esses grupos retiraria parte da capacidade do
CNI em elaborar alternativas para a situação iraquiana. Com o agravamento das tensões no
Curdistão, que geraram uma complexa rede de apoios estrangeiros a diferentes grupos
instalados dentro do Iraque, o CNI decidiu rechaçar a presença do exército na região,
44 TRIPP, pp. 277.45 MARR, pp. 274.46 ABURISH, pp. 320.47 Idem, pp. 356.48 ABURISH, pp. 350; TRIPP, pp. 281-282.
196
contando com o apoio da UPC. A não participação do PDC na coalizão anti-regime em
meio ao grande aumento de popularidade do grupo de Talabani fez com que houvesse uma
grande derrota para o Congresso Nacional Iraquiano, que tivera seus quartéis no Curdistão
destruído por forças governamentais, e fora, assim, expulso do Iraque. Com isso, o CNI se
tornaria somente mais um grupo oposicionista a Saddam, sendo incapaz de agregar os
iraquianos descontentes com o regime em busca de um projeto comum.49
i. As Fraquezas da Oposição
Apesar do apoio de vários países e da existência de vários grupos oposicionistas
organizados, não foi possível realizar nenhum movimento conspiratório verdadeiramente
efetivo nestes doze últimos anos do regime baathista, muito embora Saddam Hussein
tivesse alegado algumas tentativas de golpe (vários atentados ocorreram, mas não se pôs
seriamente em risco a permanência de seu governo). Várias justificativas foram elencadas
pelos especialistas, pela própria oposição e por seus financiadores. Desde a morte do líder
do movimento xiita, Muhammad Hakim Baqir al-Sadr, em Abril de 1980, não emergiu no
Iraque (ou mesmo no exílio) nenhuma outra figura carismática capaz de atrair o apoio da
população iraquiana e se converter num contraponto a Saddam Hussein.50 O sistema criado
pelo líder iraquiano, por sua vez, se mostrou extremamente eficiente, desde a década de
1970, em desmobilizar quaisquer organizações populares não baathistas (como a destruição
do Partido Comunista Iraquiano a partir da segunda metade da década de 1970) com aguda
brutalidade. O Baath e a engenhosa rede de segurança elaborada (e a subseqüente relação
travada com a população baseada na violência) acabavam por penetrar em todas as esferas
sociais, deixando pouco (ou nenhum) espaço para o desenvolvimento interno de
agrupamentos e organizações descentralizadas e que visem instaurar no país uma ordem
democrática e pluralista.51 Mesmo conspirações de caráter mais autoritário (eventualmente
formada por membros do alto escalão do exército e dos sistemas de segurança, que foram,
em geral, financiados pela CIA) falharam em derrubar Saddam, tanto pela rigidez do
regime implantado por Hussein (que virtualmente impede reuniões que contem com mais
49 TRIPP, pp. 276.50 MARR, pp. 304-305.51 TRIPP, pp. 276.
197
de três pessoas), como pelo próprio senso nacionalista que acaba sendo criado diante da
continuidade dos ataques da coalizão (que ocorreram por quase todo o tempo).52
Um aspecto central para a falha das oposições em viabilizar uma alternativa ao
autoritário regime iraquiano é, sem dúvida, a falta de coesão dentre os grupos, estejam eles
dentro ou fora do país. Há relatos sobre a existência de 60, 70 e, mais precisamente, 82
partidos de oposição existentes fora do Iraque53. Há notória falta de coesão entre a maioria
dos grupos54: para além de divergências políticas, ideológicas e pragmáticas entre os grupos
de maior peso, alguns exageram sobre os seus feitos alcançados, outros anunciam
programas que parecem refletir somente o auto-interesse de seus líderes; há aqueles que
objetam à cooperação com a CIA ou com o Pentágono; outros rejeitam a colaboração com
o SAIRI e a subseqüente interferência do Irã; alguns grupos se tornaram excessivamente
dependentes dos países árabes que, por sua vez, careceram em apresentar programas de
governo viáveis (preferindo exercer uma espécie de competição regional para ver quem
apoiaria mais determinado segmento); há ainda agrupamentos que se consolidaram como
meras oposições profissionais, recebendo grandes quantias de dinheiro para dar declarações
contra Saddam Hussein. A dependência mencionada também se estende a países como
Israel e, principalmente, os Estados Unidos, de quem se esperaria um papel mais
pragmático na mudança de regime por meio do financiamento de oposições. No entanto, a
transição freqüente de ajuda de um grupo a outro (sem justificações claras) se mostrou cada
vez mais contraproducente.55 Esse auxílio sem um único foco viabilizou, em última
instância, a multiplicação de grupelhos (incluindo-se aí oficiais desertores do exército) que
se colocavam uns como mais legítimos do que os outros56. A participação externa, tida
como essencial para a derrocada do regime, falhou redundantemente em tornar possível um
programa de governo alternativo e viável ao Baath, ou mesmo em efetivar um golpe de
estado, ainda que montado por elementos mais autoritários dentro do cenário iraquiano.
Relacionado aos problemas mencionados está a própria incapacidade em se manter
contatos entre as oposições localizadas dentro do Iraque. Não só os curdos tiveram grandes
problemas dentre seus partidos, mas também, por sua grande relevância dentro do contexto
52 ABURISH, pp. 325.53 ABURISH, pp. 329.54 Idem, pp. 329-330.55 Idem, pp. 353; 357-358.56 TRIPP, pp. 287-288.
198
iraquiano, pouco contribuíram na promoção de alianças internas com outros grupos,
notadamente os xiitas, em parte por terem conquistado a tão almejada autonomia e, com
isso, passaram a recear que suas atitudes pudessem colocar em risco tal feito.57 O Da’wa e o
SAIRI, as duas maiores agremiações xiitas, além de manterem um distanciamento físico
perante o seu segmento e falharem, em alguns momentos, em apresentarem propostas que
abranjam uma parcela maior da heterogênea população iraquiana58, também,
historicamente, foram grupos que receberam muito pouco apoio de atores relevantes para a
crise iraquiana, como os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, o Kuwait e a Arábia Saudita,
dado o receio destes de que, eventualmente, um governo xiita iria contra os seus interesses
regionais (muito embora, conforme já mencionado59, vários dos agrupamentos xiitas
tenham se mostrado cada vez mais favoráveis à democracia, inclusive pela percepção de
que este sistema seria favorável dentro da realidade iraquiana, já que contam com uma
substantiva maioria dentro do país).
Diante de todos esses constrangimentos, a oposição iraquiana e as potências
ocidentais (e seus aliados regionais) tiveram pouco sucesso em alterar dramaticamente a
realidade iraquiana; pelo contrário, essas falhas, por vezes, contribuíram até mesmo para o
fortalecimento da figura de Saddam Hussein, na medida em que se tornava claro para o
líder iraquiano que a “inércia política” existente dentro do Iraque seria mudada
primordialmente por meio de uma intervenção externa direta, como acabou ocorrendo no
início de 2003.
3. Política Externa: a UNSCOM, a Perda de Soberania e a Invasão dos EUA
(2003)
O isolamento internacional do Iraque após o término da Guerra do Golfo de 1991
foi acompanhado de medidas bastante intrusivas, que reduziram substantivamente a
soberania do regime de Saddam Hussein, ainda que fosse possível para o líder iraquiano
manter, por meio dos instrumentos de violência, o controle sobre o país e ainda
proporcionar para seus aliados as condições econômicas de outrora. Durante os doze
57 ABURISH, pp. 324; 358.58 MARR, pp. 276-277.59 Cf. nota 40 do Epílogo.
199
últimos anos do regime, a liderança iraquiana buscaria reverter o quadro de pesadas sanções
econômicas, restrição do uso do espaço aéreo e as freqüentes inspeções por equipes da
ONU em busca de armas de destruição em massa.
Com o objetivo de localizar e destruir as armas de destruição em massa localizadas
em território iraquiano, foi formada, em Maio de 1991, a Comissão Especial das Nações
Unidas (UNSCOM na sigla em inglês), composta por químicos, biólogos, especialistas em
armas e diplomatas de cerca de vinte países60. Apesar da evidente rejeição por Saddam
Hussein à intrusão das equipes de inspeção treinadas pela ONU, as ameaças de retaliação
militar pelos Estados Unidos caso não aceitasse a presença daqueles forçou-o a permitir a
visita dos inspetores a centenas de depósitos e facilidades, aonde foi possível verificar o
desenvolvimento relativamente avançado de tecnologia nuclear e de armas químicas e
biológicas.61 Por outro lado, Saddam buscava manter intacta parte do seu programa bélico
(enquanto realizava ameaças de retaliação armada sempre que pressionado a ceder mais às
equipes de inspeção), enquanto alegava destruir os seus armamentos.62 Por diversas vezes, a
negação de Hussein em aceitar a investigação de membros da ONU resultava em conflitos
militares abertos entre suas forças e equipes da coalizão, enquanto a força aérea dos
Estados Unidos atacavam supostas instalações iraquianas.
Para buscar apoio internacional, Saddam Hussein buscava erodir a coesão da
coalizão por meio de benefícios na comercialização do petróleo, mas sem obter sucesso.63
Além disso, tentou tornar mais positivas as relações com países do Golfo, principalmente
Oman, Qatar e os Emirados Árabes Unidos, que passaram, então, a pedir pelo fim do
embargo ao Iraque.64 A continuidade das sanções econômicas e o sofrimento do povo
iraquiano também foram largamente utilizados para comover a opinião pública
internacional; a Grã-Bretanha e, principalmente, os Estados Unidos, no entanto,
radicalizaram a retórica agressiva contra o regime caso este não cumprisse as
determinações da ONU, e responsabilizando a continuidade das sanções nos abusos de
direitos humanos cometidos pelo regime baathista.65 A materialização da oposição ocidental
em ataques maciços a Bagdá repercutiu num ganho de popularidade de Saddam dentre a 60 ABURISH, pp. 316.61 TRIPP, pp. 260-261.62 MARR, pp. 267.63 Idem, pp. 265.64 TRIPP, pp. 262.65 Idem, pp. 263.
200
população do mundo árabe.66 Por outro lado, e especialmente motivados por razões
oportunistas, países como França, China e Rússia também passaram a denunciar o regime
de sanções.67
Apesar das barreiras colocadas por Saddam Hussein aos trabalhos das equipes de
inspeção, a UNSCOM, num período de cinco anos, foi bastante efetiva em desmontar o
arsenal bélico iraquiano. Foram encontrados e destruídos 150 mísseis Scud, 691 armas
químicas, 28 mil munições químicas, 19 mil litros de toxinas causadoras de botulismo, 8
mil litros de antraz e 32 estabelecimentos envolvidos na elaboração e fabricação de armas
químicas, agentes biológicos e urânio enriquecido.68 Outras dezenas de toneladas de gases e
líquidos altamente venenosos foram descobertos, e já em 1994 a Agência Internacional de
Energia Atômica (AIEA) declarara que o programa nuclear iraquiano já havia sido
completamente terminado.69 No final de 1998, Fred Halliday70 calculara que cerca de 95 %
de todo o programa de armas do Iraque já havia sido destruído.
No entanto, a defecção de vários dos integrantes da cúpula de poder de Saddam
(especialmente entre 1994 e 1996, no auge da crise econômica do país) e as suas posteriores
declarações indicaram que o Iraque continuava a produzir armas de destruição em massa,
levando à intensificação das inspeções da UNSCOM e à descoberta de novas facilidades e
depósitos de mísseis. A extensão das novas investigações passou a atingir, inclusive, os
palácios presidenciais, o que despertou grande insatisfação de Hussein.71 A crise entre a
comissão e o governo iraquiano, em alta desde 1997, atingiu o ápice com a revelação de
que vários membros da UNSCOM realizavam serviços de espionagem para Israel e para o
governo norte-americano.72 Com isso, Saddam Hussein passou a rejeitar, ao final de 1998, a
participação de equipes da ONU no Iraque. A maioria da Comunidade Internacional, que já
rejeitava a continuidade das sanções (entendendo-as como contraproducentes, na medida
em que atingiam primordialmente a população iraquiana, e não ao presidente iraquiano),
tentou mediar a nova crise por meio da diplomacia. Entretanto, os Estados Unidos e a Grã-
Bretanha preferiram retaliar militarmente o Iraque, por meio da operação “Raposa do
66 ABURISH, pp. 332-333.67 SLUGLETT, pp. 291.68 ABURISH, pp. 360.69 MARR, pp. 267.70 Citado por ABURISH, pp. 360.71 SLUGLETT, pp. 292-293.72 MARR, pp. 289.
201
Deserto”, que atingiu não somente os palácios presidenciais, mas também instalações
petrolíferas e supostos alvos estratégicos, resultando na morte de dezenas de iraquianos.73 A
escolha anglo-saxã demonstrou ser bastante contraproducente: não só o rechaço de vários
países do Oriente Médio e da Europa repercutiu no fim da UNSCOM,74 como permitiu a
Saddam fortalecer-se ainda mais e a adotar um discurso fortemente anti-americano,
possivelmente o único recurso ideológico com penetração na maior parte da sociedade
iraquiana naquele momento.
Gradualmente, o isolamento internacional do Iraque foi atenuado. Após o
reconhecimento da soberania e das fronteiras do Kuwait (revistas em termos favoráveis ao
Emir)75 e da aproximação com alguns dos países do Golfo, Saddam Hussein,
surpreendentemente, voltou-se para a Síria, conseguindo, em 2000, a reabertura do
oleoduto que passava por esse país, fechado desde 1982, e para a Turquia, viabilizando
acordos para envios de alimentos e outros produtos essenciais.76 Com o aumento da
agressividade da retórica dos Estados Unidos, especialmente sob a nova administração, de
George W. Bush, o Iraque voltou a aproximar-se da Liga Árabe, conseguindo avançar
negociações para a reintegração naquela comunidade em 2002.77 Com a diminuição da
rigidez das sanções, o Iraque voltou a integrar-se na economia global, seja pelas
exportações de petróleo, seja pelas facilidades oferecidas para a participação de
multinacionais no país.78 Além disso, Saddam Hussein passou a desafiar algumas das
determinações da ONU, notadamente a proibição de vôos comerciais. Isso permitiu,
inclusive, a realização de vôos regulares entre Damasco e Bagdá. A não-resposta das
Nações Unidas e o apoio de vários países à eliminação total das zonas de exclusão aérea
não foram suficientes, no entanto, para mudar a atitude dos Estados Unidos perante o
Iraque.79
Pelo contrário, o posicionamento de Washington, considerado rígido ainda sob a
administração Clinton, tornar-se-ia muito mais radical sob George W. Bush. Os
Republicanos, que viam as decisões do executivo chefiado pelos Democratas como sendo
73 ABURISH, pp. 351.74 MARR, pp. 289-280.75 Idem, pp. 266.76 SLUGLETT, pp. 305.77 MARR, pp. 291.78 TRIPP, pp. 278-279.79 MARR, pp. 291.
202
frágeis e vergonhosas, pressionavam por uma intervenção mais efetiva no Iraque.80 Com
isso, ainda antes de subirem ao poder, defenderam o paradigma da “mudança de regime”
como maneira de relacionamento perante o Iraque, apoiando a criação de outro grupo
responsável pela verificação da existência de armas de destruição em massa em território
iraquiano, a Comissão de Monitoração, Verificação e Inspeção das Nações Unidas
(UNMOVIC na sigla em inglês). Saddam Hussein, no entanto, esperava que os passos da
ONU em relação às sanções eram demonstrações da vontade da comunidade internacional
em acabar com as restrições à soberania iraquiana, e então rejeitou veementemente a
entrada das novas equipes de inspeção.81
Com a vitória republicana nas urnas, a retórica acentuada se transformou em ações,
como o lançamento de mísseis contra alvos militares iraquianos e pressões para a revisão
do sistema de sanções, o que foi rejeitado por vários países da comunidade internacional,
incluindo-se aí a Síria, a Turquia e a Jordânia, receosos de perderem o lucrativo comércio
de fronteira que passaram a nutrir com o Iraque desde o final da década anterior.82 Os
atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 (Saddam Hussein foi o único líder árabe a
não condenar publicamente os ataques)83 serviram como pretexto para uma política
internacional intervencionista, a “Guerra contra o Terror”, que incluiu no “Eixo do Mal”
países como a Síria, o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte. O presidente dos Estados Unidos,
para justificar uma eventual intervenção no Iraque, passou a apresentar diversos
argumentos: a suposta ligação entre Osama bin Laden, o chefe da organização terrorista Al-
Qaeda (A Base) – responsável pelos ataques de 11 de Setembro – e Saddam Hussein; a
continuidade da posse de armas de destruição em massa pelo Iraque; a necessidade da
exportação da democracia para aquele país em razão do recorde altamente negativo do
regime em termos do respeito aos direitos humanos.84
Após muita pressão dos Estados Unidos, o Iraque aceitou colaborar com a
UNMOVIC em Novembro de 2002. As inspeções diárias dos responsáveis pela comissão
não revelaram nenhuma nova descoberta de armas ou instalações bélicas. Porção
significativa da comunidade internacional (principalmente Rússia, China e Alemanha)
80 TRIPP, pp. 281.81 Idem pp. 280.82 Idem, pp. 282.83 Idem, pp. 284.84 MARR, pp. 304.
203
colocou-se contrariamente a uma intervenção militar. Sem obter apoio das Nações Unidas,
Bush lançou um ultimato para a saída de Saddam Hussein do Iraque, que não foi atendido.
Com isso, em 20 de Março de 2003, forças de uma pequena coalizão, chefiada pelos
Estados Unidos e pela Inglaterra (e adicionada por aliados regionais na Europa e por
protetorados norte-americanos no Pacífico) invadiu o Iraque e, sem muita resistência,
venceu a guerra em cerca de três semanas, pondo fim ao longo regime baathista e ocupando
o território iraquiano, dando início a uma nova narrativa na história iraquiana – que, até o
presente momento, em razão do clima de guerra civil e do alto número de vítimas, se revela
como incerta e, infelizmente, não muito mais promissora do que a vivenciada pela
população iraquiana durante o autoritário período dominado pelo Baath e por Saddam
Hussein.
204
Apêndice1
Mapa 1. Localização do Iraque no Oriente Médio (1993)
1 Os mapas foram produzidos pela Central Intelligence Agency (CIA) e extraídos da Biblioteca de Mapas Perry-Castañeda, em http://www.lib.utexas.edu/maps/iraq.html (Universidade do Texas, Estados Unidos).
205
Mapa 2. Iraque (Político) 2004
206
Mapa 3. Composição Étnica do Iraque (1978)
207
Mapa 4. Distribuição da Atividade Econômica Industrial no Iraque (1993)
208
Mapa 5. Uso da Terra no Iraque (2003)
209
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