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Revista de Letras Dom Alberto, v. 1, n. 1, jan./jul. 2012
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SOZINHO, QUE SENTIU BLOOM? MELANCOLIA EM ULISSES, DE JAMES JOYCE
___________________________________________________________________
Girvâni Seitel1
RESUMO Publicado em 1922, o romance Ulisses, de James Joyce, se insere ao rol das obras literárias canonizadas pela literatura universal. Aproveitando as considerações de Sigmud Freud acerca da melancolia (1974), de Marshall Berman sobre a modernidade (1986) e de Zygmunt Bauman com “vida líquida” (2009), o estudo reflete sobre a personagem protagonista da narrativa, Leopold Bloom, que faz da sua trajetória de um dia por Dublin um momento de reflexão acerca da sua existência. Em seu itinerário, a dualidade vida/morte assume relevância para que se compreenda a melancolia do sujeito moderno quando este se questiona sobre o seu estar-no-mundo.
Palavras-chave: Romance. Ulisses. Melancolia.
ABSTRACT Published in 1922, the novel Ulisses, by James Joyce, falls to the list of literary works by canonized literature. Taking advantage of the considerations about the melancholy Sigmud Freud (1974), Marshall Berman on modernity (1986) and Zygmunt Bauman to "liquid life" (2009), the study reflects on the character of the narrative protagonist, Leopold Bloom, who is the trajectory of a Dublin day for a moment of reflection about their existence. In his journey, the duality life / death is relevant to understanding the gloom of the modern subject when it is questioned about his being-in-world.
Keywords: Novel. Ulisses. Melancholy.
INTRODUÇÃO
O tema da viagem é sobremaneira intenso na literatura grega. Na Odisseia de
Homero, o retorno de Ulisses a Ítaca é exemplar por revelar um herói que rivaliza com
manifestações adversas da natureza, e não apenas a natureza exterior, mas também com
sua natureza interior. O herói homérico sobrevive ao canto das sereias, pois sabe
reprimir seus desejos por meio de um sacrifício contínuo.
James Joyce é considerado o pai da ficção moderna. Sua obra serviu de inspiração
para muitos escritores que tentaram afastar-se da narrativa tradicional, pois o autor
1 Mestrando em Letras. Área de Concentração Literatura Comparada. Universidade Regional Integrada do Alto
Uruguai e das Missões – URI. Campus de Frederico Westphalen – RS. E-mail: girvani1@yahoo.com.br
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inova no que tange à linguagem e às técnicas formais da prosa de ficção. Ulisses (1922) é
vista como a epopeia do homem moderno. Permeado por uma prosa inovadora e
audaciosa, a obra descortina aos olhos do leitor muitas áreas do conhecimento humano,
como filosofia, religião, ciências naturais e médicas, psicologia, política, sociologia,
economia, jornalismo, publicidade, literatura e artes plásticas.
Na literatura ocidental, o tema da “viagem de Ulisses” é retomado pela tradição
literária após a Odisseia, seja para confirmar o ideal do herói nostálgico, seja para
representar o afã do retorno à pátria. Nesse sentido, o romance Ulisses, do escritor
irlandês James Joyce, configura como uma ficção literária considerada uma das maiores
expressões do modernismo e da literatura universal. Considerada como uma espécie de
epopeia do homem moderno, a volumosa obra, que toma por base a Odisseia de Homero,
narra o caminho traçado por Leopold Bloom num dia comum, 16 de junho de 1904, em
Dublin, na Irlanda.
O romance de James Joyce pode ser lido de um viés que revele elementos que
corroboram para que se tenha uma representação dos sintomas de Leopold Bloom em
sua viagem de um dia por Dublin até retornar à sua casa, à noite, completando seu
itinerário. Como sintomas, pode-se elencar os anseios, as dúvidas, o medo, a ironia, o
prazer, a euforia e o desencantamento do mundo. Estes sintomas são próprios do sujeito
que se quer total, inteiriço, mas que sente seu universo fragmentado e artificial,
mimetizando os sintomas da personagem. O artigo tem por objetivo detectar no
romance Ulisses elementos voltados à melancolia do sujeito moderno.
SOZINHO, O QUE SENTIU BLOOM?
O aumento da densidade demográfica não é proporcional ao aumento da
densidade psicológica. Nas ruas das grandes cidades, os olhares perderam a serenidade
de observar as pessoas e a realidade com profundidade. Para o sujeito moderno, a
velocidade faz das cenas do cotidiano um imenso outdoor, uma grande e interligada
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imagem de um quebra-cabeça que passa aos olhos do transeunte moderno tão
rapidamente como se ele estivesse olhando da janela de um metrô.
No coração da cidade, os dramas diários daqueles que procuram soluções para
seus desacertos impõem ao sujeito o esfacelamento de toda e qualquer certeza diante de
uma realidade precária. Na modernidade, o sujeito transita pelos espaços da cidade
envolto pela multidão e, à medida que o tempo passa, a euforia dá lugar ao
desencantamento do mundo. Nessa direção, Ulisses é tecido sobre a tábua rasa de uma
natureza cosmopolita, em que o autor se presta a observar e a escrever sobre a condição
humana na esfera da modernidade, que é uma experiência vital através do tempo e
espaço e que sugere possibilidades e oferece perigos (BERMAN, 1986, p. 15). Mas esta
experiência é, no entender de Marshall Berman (1986), paradoxal, pois “despeja a todos
num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de
ambiguidade e angústia” (BERMAN, 1986, p. 15), o que caracteriza sujeitos descentrados
e, consequentemente, melancólicos.
No campo das artes, a melancolia já foi representada de várias maneiras:
pinturas, esculturas, obras literárias. Há um quadro intitulado Melancolia I, do alemão
Albrecht Dürer (1741-1528). Matos toma por base esta obra de arte para descrever o
estado melancólico do sujeito moderno.
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Dürer, Melancolia I
Em sua mirada crítica, Olgária Matos descreve a obra de Dürer. Para a autora, a
Melancolia é alada.
Está agachada em uma laje de pedra de um edifício cuja construção ficou inacabada. Situa-se em um ponto frio e solitário, não longe do oceano, fracamente iluminada pela luz do luar. Está acompanhada por um Eros moroso instalado em uma pedra afiada e abandonada. Ela rabisca qualquer coisa em uma lousa, perto de um cão arrepiado e maltratado. Está proscrita em uma inação melancólica: negligente no vestir, cabelos em desalinho, descansa a cabeça na mão e com a outra segura mecanicamente um compasso, seu braço apoiado em um livro fechado. Seus olhos estão erguidos, seu olhar é desperto, sombrio, fixo. O estado de espírito de seu gênio infeliz se reflete na quantidade de objetos em desordem. (...) a Melancolia está plenamente acordada, com o olhar fixo em busca desejada mas infrutífera. É inativa não por preguiça, mas porque o trabalho perdeu o sentido: sua energia está paralisada não pelo sono, mas pelo pensamento. A melancolia não é, deste ponto de vista, somente um caso mental, mas um ser pensante em perplexidade (MATOS, 1987, p. 151).
A descrição pretendida por Matos (1987) substantiva a racionalidade que conduz
o sujeito na sociedade moderna. Ela é a centelha para que possamos jogar luz sobre a
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personagem Leopold Bloom em sua trajetória melancólica por Dublin, no curso de um
dia.
No romance, esta experiência paradoxal é marcada quando Leopold Bloom revela
visão melancólica, às vezes irônica, dos acontecimentos que fazem parte da constelação
da modernidade. Um desses acontecimentos é a morte. No pensamento da personagem,
a ideia de morte acompanha seu itinerário pela urbe. Enquanto o sacerdote reza em
frente ao caixão fúnebre, o diálogo entre personagens caracteriza a incerteza e a
precariedade que caracteriza o sujeito moderno perante à ideia de algo além desta vida
terrena: “In paradisum. Disse que ele está para ir para o paraíso ou está no paraíso. Diz
isso para cada um. Espécie de trabalho mais para o cansativo. Mas ele tem de dizer
alguma coisa” (JOYCE, 1983, p. 105).
Vida. Morte. “Em meio à morte estamos com vida. Os extremos se tocam” (JOYCE,
1983, p. 51). Esta dualidade vem ao encontro das palavras de Zygmunt Bauman (2009),
que expressa que viver numa sociedade líquida-moderna é estar envolvido no bojo das
relações que oscilam sob o signo da incerteza e da precariedade. Tudo é precário e
incerto, e, nesta esteira, a fragmentação das relações humanas é reflexo de uma
modernidade em que o equilíbrio não é satisfatório. Assim, ninguém melhor que a figura
de Leopold Bloom para representar o arquétipo desse sujeito descentrado que busca um
sentido para seu estar-no-mundo.
Os questionamentos de Leopold Bloom acerca da existência mostram que ele não
é inteiriço como o Ulisses de Homero. A personagem de James Joyce é fragmentada em
sua subjetividade. No romance, não mais há mais aquele abrigo comum da epopeia, para
onde o herói retornava após suas andanças e lutas; não há mais aquele “lar” para
resgatar o sentido da sua vida e restauração da sua existência. Se na epopeia o herói
homérico enfrenta as sereias e figuras míticas, o sujeito Bloom transita por sua cidade
em que os elementos da modernidade se apresentam aos seus olhos. “Sozinho, que
sentiu Bloom” (JOYCE, 1983, p. 657), interroga o narrador? Como resposta, o narrador
ordena, ironicamente, elementos próprios de uma modernidade precária e oscilante.
Para a personagem, sentir é também ver, pois são atos indissociáveis. Leopold Bloom
sente e vê:
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Música, literatura, Irlanda, Dublin, Paris, amizade, mulher, prostituição, dieta, a influência da luz de gás ou luz de arco ou lâmpada de filamento no crescimento de árvores para-heliotrópicas adjacentes, latas de lixo de emergência da prefeitura expostas, a igreja católica romana, o celibato eclesiástico, a nação irlandesa, educação jesuítica, carreiras (...) (JOYCE, 1983, p. 619).
A justaposição dos elementos postos em tela configura como integrantes de um
mundo moderno fragmentado, em que tudo é visto de maneira caleidoscópica pela
personagem. Ao passo que Ulisses homérico transita por um mundo em que o objeto da
representação é o passado absoluto dos deuses e dos heróis, o herói moderno, Leopold
Bloom, faz suas andanças num tempo transitório, em que não é dado ao homem da
modernidade líquida mais crer na ideia da eternidade. Na “vida líquida” (BAUMAN,
2009), a infinitude é a regra, é ela o tempo ao qual o sujeito deve render-se. Infinitude é
o tempo presente protelado, esticado. Segundo Bauman, “o dia de hoje pode-se esticar
para além de qualquer limite e acomodar tudo aquilo que um dia se almejou vivenciar
apenas na plenitude do tempo” (BAUMAN, 2009, p. 14-15).
Nesse sentido, ao ter-se conhecimento da “caminhada” da personagem joyceana
pela capital irlandesa, o que fica é essa sensação de eventos que se repetem no curso do
tempo. A “vida líquida” da personagem é uma sucessão de reinícios. A esta altura, já é
possível perguntar onde teria ocorrido a perda de Leopold Bloom? O que perdeu o
sujeito que circula pela escritura das páginas do romance? Lendo a narrativa, percebe-se
que suas perdas são interiores, e que se avolumam e ganham forma em seu pensamento.
A personagem sofreu perdas consideráveis: a morte de seu amigo Paddy Dignam e a
explícita rejeição da mulher.
Matos expressa que a “viagem de Ulisses é a viagem metafórica que a
humanidade precisou realizar para efetuar a passagem da natureza à cultura, do instinto
à sociedade, da auto-repressão ao autodesenvolvimento” (MATOS, 1987, p. 145). O herói
homérico é a figuração do sujeito que busca uma vida independente das vicissitudes do
acaso e das tentações do cotidiano. O traçado oscilante da longa viagem feita por Ulisses
para chegar a Ítaca traz outra marca, além da cicatriz que Odisseu busca esconder dos
que lhe recebem: a do reencontro e do reconhecimento, que advém da volta à pátria, o
nostos.
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Nostos vem do grego, e significa decorrente do regresso, do retorno, vontade de
retornar (MIRANDA, 2003, p. 49). O Ulisses homérico sente uma vontade demasiada
grande e profunda em regressar para junto dos seus entes queridos. Corajoso e astuto,
ele enfrenta as inúmeras adversidades da natureza e provações postas pelos deuses. Já
Leopold Bloom, com seu nostos - retorno para sua casa -, demarca o território da
observação e da linguagem no que tange a suas múltiplas referências de suas sensações
e impressões sobre a urbe moderna.
Leopold Bloom faz da sua trajetória pela cidade moderna um momento de
reflexão acerca da sua existência. Em seus pensamentos, a dualidade vida/morte revela
o descentramento do sujeito moderno, que faz das interrogações um modo de
questionar o sentido da vida e também da morte: “E o que é a morte, a de sua mãe ou a
sua ou a minha? (...) Eu as vejo cada dia na Mater ou em Richmond pipocar e na sala de
dissecção pôr as tripas à mostra. É uma coisa animal e nada mais (JOYCE, 1983, p. 11).
No diálogo com seu amigo, logo ao principiar da sua odisseia, Leopold Bloom comenta
sobre a morte de sua mãe. A morte é um enigma aos olhos da personagem – E o que é a
morte? – ressoa sua voz na narrativa.
As indagações da personagem protagonista vêm ao encontro do exposto por
Sigmund Freud em Luto e melancolia (1974). Segundo ele, os dois termos mostram que a
melancolia trata de uma reação à perda de um objeto querido. O melancólico denota um
sentimento doloroso, associado à indiferença em relação ao mundo e ao retraimento do
eu. No pensamento de Leopold Bloom, a morte “tudo vê”, é ela que o investiga através
dos olhos do morto, à espreita:
Seus olhos perscrutadores, fixando-se-me da morte, para sacudir e dobrar minha. alma. Em mim somente. O Círio dos mortos a alumiar sua agonia. Lume agonizante sobre face torturada. Seu áspero respirar ruidoso estertorando-se de horror, enquanto todos rezavam aos seus pés. Seus olhos sobre mim para redobrar-me (JOYCE, 1983, p. 13).
Enquanto Leopold Bloom e seus amigos observam o ritual de encomendação da
alma de Dignam – Et ne nos inducas in tentationem – feito pelo sacerdote da igreja, o
narrador tece digressões sobre a morte que ocupa o corpo do ser humano. A morte, na
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visão da personagem, habita o homem, nasce com ele e o acompanha durante sua
existência. Irônico, à beira do túmulo, a personagem divaga:
Teu coração talvez mas que é que vale para o sujeito entre quatro tábuas comendo margaridas pela raiz? Não tocante isso. Sede das afeições. Coração partido. Uma bomba ao cabo de tudo, bombeando milhares de galões de sangue todo dia (JOYCE, 1983, p. 106-7).
Nesta passagem, de linguagem imagética, o coração é comparado a uma máquina
– uma bomba ao cabo de tudo – que, “um belo dia ela se entope e eis tudo. Porções deles
jazendo aí em redor: pulmões, corações, fígados. Velhas bombas enferrujadas: tudo mais
é uma história” (JOYCE, 1983, p. 106-7). A melancolia toma ares de ironia, pois o
narrador põe em xeque a aura de esperança que a todos encobre. Esta atitude condiz à
raiz do romance moderno, em que narrar requer uma atitude irônica diante do efêmero
e do contraditório.
A ressurreição e a vida. Uma vez que estás morto, estás morto. Essa ideia do juízo final. Pipocando todos de suas tumbas. Levanta-te, Lázaro! E ele chegou em quinto e perdeu o lugar. Levanta! Dia final! Então cada gajo a esquadrinhar em torno por seu fígado e por seus olhómetros e pelo resto de sua traquitanda (JOYCE, 1983, p. 107).
Em Leopold Bloom a elaboração da perda não se completa, pois o sujeito
melancólico não sabe exatamente o que se perdeu, o que sugere que “a melancolia está
de alguma forma relacionada a uma perda objetal retirada da consciência” (FREUD,
1974, p. 168), o que pode ser uma pessoa amada, um ideal, um sonho ou até mesmo a
pátria.
Na narrativa, lê-se que Leopold Bloom perdeu um amigo. E, olhando o corpo do
amigo depositado no caixão, desabafa “Pobre Dignam! Seu último jazer sobre a terra na
sua caixa. (...) Bem, é um longo repouso. Não sentir mais. É no momento que se sente.
Deve ser infernalmente desagradável” (JOYCE, 1983, p. 111) Não mais sentir, não mais
ver. Melancolicamente, o narrador afirma que não há redenção na morte: “Não se pode
crer no início” (JOYCE, 1983, p. 111), não há reinício, só fim, pois como escreveu Freud,
“o objetivo de toda a vida é a morte” (FREUD, 1976, p. 56).
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No romance, a matéria-prima em que se prende à escritura se origina das pulsões
de que trata Freud no texto Além do princípio do prazer (1976), em que Eros (pulsões de
vida) e Thanatos (pulsões de morte) denotam a dualidade originada de uma escrita
altamente imagética que compõe o romance. Em Ulisses é notório a relação das pulsões
vida/morte. Nesta relação, Thanatos sobressai nos movimentos cíclicos do dia. Mas,
mesmo sabendo que a morte é a única certeza que guia o homem no curso da existência,
no romance a perda não é reconhecida. Há uma identificação do ego com algo que se
perdeu no curso do tempo, do qual fala Freud, e assim, “devido ao processo de
identificação do ego com o objeto perdido, no caso da melancolia, a perda objetal é
equivalente a uma perda do próprio ego” (FREUD, 1974, p. 166).
Descentrado e tomado de desalento, Leopold Bloom lamenta que não pode crer
mais nos reinícios que o cotidiano da vida moderna enseja. E sendo a morte a única
certeza, a personagem quer dela fugir, esconder-se: “Se nos tornássemos todos de
repente outros quaisquer” (JOYCE, 1983, p. 111), enfatiza. Isto corrobora com que Freud
destacou em Reflexão para os tempos de guerra e morte (1996), ao escrever que “no
fundo ninguém crê em sua própria morte, ou, dizendo a mesma coisa de outra maneira,
que no inconsciente cada um de nós está convencido de sua própria imortalidade”
(FREUD, 1996, p. 299).
No romance joyceano é possível notar a presença de um sentimento em forma de
alegoria, em que Eros e Thanatos, forças antagônicas, duelam no embate psicológico que
emana do discurso da obra. Esse “descobrir” da dualidade denota que as pulsões
freudianas de morte e de vida se relacionam através do pensamento de Leopold Bloom
ao refletir a respeito da vida e da morte. A passagem: “se nos tornássemos todos de
repente outros quaisquer” (JOYCE, 1983, p. 111) caracteriza o desânimo e baixa estima
da personagem, atitudes que são próprias do sujeito melancólico (FREUD, 1974, p. 166).
Alternando ironia com uma capacidade de compaixão, o narrador sente que sair
da vida para entrar na morte é somente uma mudança de lugar, nada mais:
Estamos rezando agora pelo repouso de sua alma. Desejando que sejas eterno e não no inferno. Bela mudança de clima. Da frigideira da vida para o fogo do purgatório. (...) A terra caía mais leve. Começa a ser esquecido. Longe dos olhos, longe do coração (JOYCE, 1983, p. 111).
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Em outra passagem do romance, o sentimento de perda é combatido com uma
ácida ironia. O narrador busca suavizar a aura de melancolia que encobre o momento
funesto. Em tom sarcástico, ele comenta que “os mortos mesmos, pelo menos os homens,
gostariam de ouvir uma piada salgada ou as mulheres de saber qual é a moda. (...)
Precisa-se de rir por vezes, assim é melhor fazê-lo dessa forma” (JOYCE, 1983, p. 110).
Na epopeia de Homero há sempre a ânsia do retorno, daí a jornada arquetípica
feita por Ulisses para retornar a sua Ítaca. Na terceira parte da Odisseia, denominada
Nostos, lê-se um sentimento de nostalgia pela terra adorada. No romance também há um
capítulo denominado Nostos, que caracteriza o desejo de regresso e corresponde a um
desejo erotizado, pleno de Eros, o qual conduz a energia da vontade de vida, da ação de ir
ao encontro de si mesmo (MIRANDA, 2003).
A representação no romance de James Joyce contempla o mito do eterno retorno,
do qual fala Mircea Eliade (1985). Neste mito, o tempo cósmico é cíclico, pura repetição,
o eterno retorno, que vem do sujeito arcaico e se revela, substantivamente, no sujeito
moderno. A trajetória de Leopold Bloom em seu nostos é própria do sujeito moderno que
não encontra repouso em si mesmo, e suas andanças são simbólicas, pois revelam “como
o fim está no início e o início no fim; ou de como uma aventura – por exemplo, a vida – é
um ciclo, isto é, algo que se desdobra formando como um roteiro em círculo que se
fecha” (HOUAISS, 2005, p. 60). O Ulisses de James Joyce caminha sobre um terreno
pantanoso que é o chão da modernidade, em que a personagem oscila entre
contradições extremas e limites, demarcando seu descentramento.
Ao teorizar a respeito da obra romanesca, Mikhail Bakhtin fala sobre o tema
interior do romance, que é a “inadequação de um personagem ao seu destino e à sua
situação” (BAKHTIN, 1998, p. 425). Leopold Bloom não consegue se adequar ao seu
destino. Para o Ulisses de Homero, a melancolia traz em seu âmago a nostalgia em
retornar à sua cidade. E para sanar a saudade só há um remédio: Ítaca (MATOS, 1987, p.
154). Já para Leopold Bloom, o retorno à sua casa caracteriza a perda de algo
inominável, daí sua reflexão sobre a existência, o que substantiva, sobremaneira, seu
estado melancólico.
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A personagem sente que algo mudou. “O que poderia mudar num ser humano
num curto espaço de tempo de um dia?” Perguntar-se-á o leitor. Sim, mudam as pessoas,
haja vista que a ciclicidade do Cosmos e a velocidade do tempo demarcam relações que
ocasionam perdas, rupturas e fragmentações, não só nos relacionamentos, mas também
na própria concepção de tempo que os homens fazem desta convenção.
Num corte temporal, Leopold Bloom reflete acerca das suas perdas. Estando em
casa depois da jornada por Dublin, a personagem se sente um “homem-criança cansado,
o criança-homem no ventre” (JOYCE, 1983, p. 762). Deitado, seu corpo interioriza a
experiência da morte. Ele vê Paddy Digman, como se a imagem do amigo morto estivesse
registrada na retina dos seus olhos.
O nostos de Leopold Bloom deixou uma cicatriz diferente que aquela que o Ulisses
homérico escondeu ao retornar a Ítaca. A cicatriz de Leopold Bloom é o corte na alma.
Em pensamento, ele contabiliza todos que com ele convivem: Jack Power (na cama),
Simon Dedalus (na cama), Ned Lambert (na cama), Tom Kernan (na cama), Joe Hynes
(na cama), John Henry Menton (na cama) [...], Paddy Dignam (no túmulo)” (JOYCE, 1983,
p. 729). O reconhecimento de que Paddy só pode ser reavivado na memória, desenovela
a melancolia, pondo a personagem a repensar a “cota” da vida diária, contada minuto a
minuto.
Descentrado, Leopold Bloom busca reconstruir sua personalidade num mundo
desfigurado. Sente “a necessidade da ordem, um lugar para cada coisa e cada coisa no
seu lugar” (JOYCE, 1983, p. 662). A personagem necessita que as coisas e humanos em
seu entorno estejam ordenadas. Contudo, a órbita desordenada do mundo moderno
impossibilita ao herói a relação de completude com ele mesmo e com a natureza, pois
não tem consciência do abandono pelos deuses, nem do caráter ínfimo da vida cotidiana
na urbe moderna.
Em seu retorno para casa, Leopold Bloom não teve espaço e tempo para feitos
grandiosos, posto que o descentramento do sujeito moderno resume-se na aporia da
individualização. A leitura de Ulisses de um ângulo que revele o descentramento de
Leopold Bloom e, consequentemente, sua melancolia, revela que o heroísmo moderno
advém da busca pela sobrevivência numa constante situação de conflito interior. Ulisses
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instaura a anulação das distâncias entre o fato narrado e sua verossimilhança. Tem-se,
pois, como enfatiza Bakhtin, a destruição da distância épica, em que o objeto da
representação artística se dá ao nível de uma realidade imediata, inacabada e fluída
(BAKHTIN, 1998), em que o processo de evolução do romance não está concluído, pois é
esta a sensação que se tem ao ler a narrativa.
O filósofo Heráclito de Éfeso, pré-socrático da Grécia, comentou em certa
explanação que ninguém entra num mesmo rio uma segunda vez, pois quando isso
acontece já não se é o mesmo, assim como as águas que já são outras. Leopold Bloom, em
seu nostos, não é mais o mesmo dentro do movimento cíclico do universo moderno, pois
sua viagem de apenas um dia refez a jornada que o homem faz em si mesmo para
encontrar respostas para seu “inacabamento” como ser pensante. Viajar, sair, retornar a
si mesmo: condição primeira do sujeito para encontrar respostas para os enigmas da
existência. Ainda que Leopold Bloom faça da sua viagem por Dublin uma jornada de
reconhecimento, ao final da peregrinação descobre que o homem nunca consegue fugir
de si mesmo, pois “quando você pensa que está escapando você volta para si mesmo”
(JOYCE, 1983, p. 413).
Ao cabo da odisseia do herói moderno, mister esclarecer que a melancolia que
caracteriza a personagem protagonista se dá através da linguagem. É pela e através da
linguagem e pelo pensamento que o sentido de perda se instaura em sua existência. O
sentido de perda vai além do corpóreo, não é possível tocar, sentir. A trajetória de
Leopold Bloom é a representação do sujeito descentrado, que sente que a unicidade não
é mais possível e o descentramento é a regra.
Leopold Bloom faz do seu itinerário pela metrópole uma constante interpretação
da vida, buscando, assim, explicações para seu estar-no-mundo. Partir, sim, retornar
sempre, pois “em meio à morte estamos com vida. Os extremos se tocam” (JOYCE, 1983,
p. 109), sentencia o narrador. Leopold Bloom expressa sua melancolia em linguagem,
denotando um estado de contemplação, de perplexidade (indagações, questionamentos,
reflexões) diante da realidade contingente. Esta questão joga luz sobre aquilo que
Bakhtin expressou ao se reportar ao romance, em que um dos “principais temas
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interiores do romance é justamente o tema da inadequação de um personagem ao seu
destino e à sua situação” (BAKHTIN, 1998, p. 425).
A representação dos traços da melancolia de Leopold Bloom é própria da
personagem romanesca, que não é unívoco e imutável como o herói epopeico, que
partindo do pensar seu conflito com o universo que o cerca, redimensiona sobremaneira
sua subjetividade através de pensamentos e palavras diante do seu estar-no-mundo. A
melancolia da personagem reveste-se de um sentido metafísico, cujas reflexões sobre a
existência deságuam na ideia da morte.
Em Ulisses vislumbra-se que vida e texto literário são o locus onde o homem se
encena consciente ou não da sua cisão com o mundo, deixando-se sempre habitar pela
linguagem da narrativa. O texto joyceano é o lugar onde o sujeito moderno se inscreve e
se escreve. A personagem Leopold Bloom causa a impressão enigmática, pois seu
trânsito por Dublin não permite esclarecer claramente o que o absorve tão
intensamente, se é a melancolia resultante do seu desencantamento com a órbita
ambígua da modernidade ou se é tão somente aquilo próximo da limitação da
possibilidade de ação dentro de um cosmos (des)ordenado, o qual Bauman descreve
como sendo a “vida líquida”.
Assim, o cotidiano da moderna líquida oferece elementos que fazem surgir a
ansiedade e o tédio existencial, fazendo com que o sujeito experimente sensações que o
colocam frente a frente com os dilemas da existência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Com a leitura de Ulisses percebe-se que é através da linguagem que as
personagens saem de si para encontrar no outro a experiência melancólica que é o estar-
no-mundo. – O que sentiu Bloom? – ressoa a voz ao final da narrativa. E a indagação se
dirige ao próprio leitor do romance, o qual viveu com Leopold Bloom a odisseia e que no
final do livro (final da página da vida?) sai da linguagem pictórica impressa na branca
página para retornar a si mesmo.
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Fechar o livro é abrir a possibilidade de outra odisseia. E se o leitor entrou na
porta da frente do romance pensando que sairia igual após a viagem da leitura, está
enganado. Ao ler-se o texto joyceano, ninguém sai sem uma marca particular: a cicatriz
deixada pela linguagem e subjetividade do romance.
O homem que transita nas páginas de Ulisses desconhece a totalidade do mundo
grego. Não há a certeza do absoluto, do amanhã, há apenas a melancólica constatação
que o homem de ciência, como constata o narrador: “como o homem da rua tem de
enfrentar factos obstinazes que não podem ser escamoteados e de explicá-los como
melhor possa. Pode aí haver, é verdade, algumas questões a que a ciência não saiba
responder - no presente” (JOYCE, 1983, p. 415).
Grosso modo, a racionalidade técnica e a evolução dos aparatos tecnológico-
científicos não oferecem explicações convincentes e confortantes acerca da constituição
do sujeito moderno. Contudo, acompanhar a trajetória do Odisseu de James Joyce na
modernidade, marcada pela sucessão de reinícios diários, é compreender que a “vida
líquida” é uma incógnita, onde “o fim chega de súbito” (JOYCE, 1983, p. 419).
Acredita-se que ao lançar mão da melancolia em Ulisses, o tema em tela não esteja
explorado totalmente. Mas, o caminho optado pode ser produtivo para a compreensão
de um dos muitos ângulos que a leitura do romance possibilita.
REFERÊNCIAS
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Artigo aceito em julho/2012.
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