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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Insight e Transtorno de Asperger
Carolina Borba Vilar Guimarães
Natal
2017
2
Carolina Borba Vilar Guimarães
Insight e Transtorno de Asperger
Dissertação elaborada sob orientação da Profª. Drª. Izabel
Hazin e apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre
em Psicologia.
Natal
2017
3
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de
Ciências Humanas, Letras e Artes – CCHLA
Guimarães, Carolina Borba Vilar. Insight e Transtorno de Asperger / Carolina Borba Vilar
Guimarães. - 2017. 278f.: il.
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós
Graduação em Psicologia, 2017. Orientador: Izabel Hazin.
1. Insight. 2. Asperger, Síndrome de. 3. Transtornos do espectro
do Autismo. 4. Psicologia Histórico-cultural. 5. Dialogismo. I.
Hazin, Izabel. II. Título.
RN/UF/BS-CCHLA CDU 616.89-008.1
4
Este trabalho é dedicado a W, V, M, R, C, H, L, R e a tantos outros Aspies que não
puderam ter suas opiniões e argumentos expostos nessas páginas, mas de cujas histórias sou
guardiã, carregando-as comigo todos os dias. Agradeço por confiarem-nas a mim, simples
neurotípica, todos os dias, e me comprometo a guarda-las, sendo empatia sempre e buscando
fazer com que vocês sejam ouvidos e compreendidos, da melhor maneira possível, enquanto
universos infinitos e únicos que são cada um de vocês.
5
Agradecimentos
No ano de 2015 uma professora e pesquisadora especialista na temática do autismo me
disse algo que me fez pensar por um bom tempo. Eu disse que atendia no consultório adolescentes
diagnosticados com Transtorno de Asperger. Ela disse que também atendia e que gostava bastante,
porque aprendia com eles que a vida podia ser mais simples, com menos entrelinhas, e assim talvez
fosse mais fácil não só para eles. Concordei. Acredito que de fato aprendo bastante com eles,
principalmente sobre o que significa empatia, se colocar no lugar de um outro que pensa
completamente diferente de mim para tentar ajuda-lo como puder. Na pesquisa em particular,
foram dois anos em imersão nesse mundo diferente, lendo e relendo as falas de cada sujeito,
tentando compreender um pouco de como é ser quem eles são. A eles, que me receberam com
curiosidade e interesse genuíno dedico meu primeiro agradecimento.
Em seguida dedido um agradecimento especial a Bel, professora e orientadora querida, que
me acompanha desde os anos de iniciação cientifica na graduação e que me disse, ao final desta,
que o importante era que eu pesquisasse algo que fizesse sentido, me fazendo a pergunta chave:
“o que você quer pesquisar?”. E foi aí que iniciou a importância do sentido, que marcou minha
pesquisa e minha trajetória no mestrado. Foram dois anos de grande aprendizado e discussões e te
agradeço, Bel, plo carinho, incentivo e, principalmente, pela oportunidade de aprender contigo e
construir um projeto pelo qual me apaixonei desde o dia um até o último dia.
Sobre esses dois anos, é imprescindível agradecer a Luana e Amanda. De tudo que ganhei,
vocês foram a parte mais sensacional. Ganhei colegas dedicadas, amigas fiéis, parceiras de crimes
por aí. Vocês foram ao mesmo tempo ombro amigo, leitoras e críticas quando necessário, mas
acima de tudo, foram o suporte amigo que qualquer pessoa devia ter nessa vida acadêmica. Muitas
e mil vezes obrigada!
6
A Amanda, em particular, além de tudo que foi nosso mestrado, nossa vida dupla também
proporcionou um milhão de aprendizados como parceiras de clínica. Nossa parceria tem sido tão
incrível, que sinto que nesses três anos ganhei uma irmã (gêmea) de outras vidas. Agradeço toda
a força, risadas, desabafos, docinhos e amizade. Você foi muito importante até aqui e espero que
nossos percursos ainda se cruzem muitas vezes nessa vida.
Às amigas Samantha e Artemis, agradeço pelos ensinamentos, pelas possibilidades de
aprendizado que vocês me proporcionaram desde sempre, por compartilhar suas experiências boas
e ruins e serem apoio sempre que necessário, nos momentos bons e nos difíceis.
Agradeço também a todos os colegas do LAPEN que de perto ou de longe contribuíram
para essa trajetória. Ser membro do LAPEN sempre foi uma honra e um prazer.
Aos amores Lorena, Maynnara e Paula e as Hobbits Aline, Lígia, Lilian e Pâmela. Tenho
grande sorte por ter amizades tão sensacionais e por tanto tempo. Agradeço pela amizade, apoio e
palavras de afeto. Vocês foram essenciais para me lembrar o sentido de outras coisas da vida nesses
dois anos.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela
concessão da bolsa de estudos e pelo apoio e incentivo à pesquisa.
Perto do fim, mas mais importante, à minha família agradeço sempre e ainda mais uma vez
por me proporcionar apoio, incentivo, afetos, risadas e carinho incondicional, até nos dias em que
a vida esteve mais difícil. Mãe, Pai, Vó, Caio e Lia: vocês são porto seguro, sempre.
Por fim, meu maior agradecimento é para Rafael, companheiro da vida, de todas as horas.
Peço desculpa pelas ausências e agradeço por, além de todo o apoio e amor de sempre, ainda ter
estado sempre disponível para discutir pesquisa, estratégias metodológicas e problemas
7
acadêmicos, mesmo que no domingo de manhã. A você sou só gratidão. Sem você esse percurso
seria muito mais difícil e não teria metade da graça. Seriously.
8
SUMÁRIO
RESUMO .................................................................................................................................... 10
ABSTRACT ................................................................................................................................ 12
1. Considerações iniciais ........................................................................................................ 15
2. Dialogismo e desenvolvimento humano ........................................................................... 19
2.1 Contribuições do Círculo de Bakhtin e da psicologia histórico-cultural para o estudo
do desenvolvimento humano ................................................................................................... 22
2.2 Psicologia Histórico-Cultural ........................................................................................... 26
2.3 A Defectologia Vygotskiana .............................................................................................. 30
2.4 Contribuição da Neuropsicologia histórico-cultural para o estudo do
desenvolvimento humano ........................................................................................................ 35
3. Transtorno de Asperger através do tempo ...................................................................... 40
3.1 Caracterização e diagnóstico do Transtorno de Asperger ............................................. 44
3.2 Características de funcionamento diferenciadas ............................................................ 45
Cognição social ..................................................................................................................... 45
Linguagem e comunicação social ........................................................................................ 48
Coerência central .................................................................................................................. 52
3.3. O diagnóstico de TA: da ciência ao sujeito ..................................................................... 53
4. Processos de Insight e Asperger .......................................................................................... 60
4.1. Surgimento e desenvolvimento do conceito .................................................................... 60
4.2 Insight, Awareness e Transtorno de Asperger ................................................................ 67
5. Perguntas norteadoras e objetivos ................................................................................... 72
6. Aspectos Metodológicos ........................................................................................................ 74
6.1 Teoria e construção dos procedimentos ........................................................................... 74
6.2 Procedimentos e operacionalização .................................................................................. 78
Participantes .......................................................................................................................... 78
Aspectos éticos ....................................................................................................................... 78
Etapas: Tarefas e Procedimentos ............................................................................................. 79
Análise dos Dados ................................................................................................................. 92
7. Resultados ........................................................................................................................... 94
9
7.1. Os estudos de caso ............................................................................................................. 94
a. John ............................................................................................................................... 94
b. Chaves ......................................................................................................................... 120
c. Satoshi ......................................................................................................................... 155
8. Análise e Discussão .......................................................................................................... 173
8.1 Percepções das atividades ......................................................................................... 174
8.2 O que é o asperger: percepções e vivências ............................................................. 176
8.3 O TA para os pais e filhos: ecos de vozes e percepções .......................................... 181
9. Conclusões ........................................................................................................................ 190
10. Considerações finais ........................................................................................................ 194
11. Referência Bibliográficas ................................................................................................ 195
12. Anexos ............................................................................................................................... 203
Anexo 1: Roteiro da atividade e entrevista .......................................................................... 203
Anexo 2: Transcrições dos áudios dos sujeitos .................................................................... 204
John ..................................................................................................................................... 204
Chaves ................................................................................................................................. 220
Satoshi ................................................................................................................................. 236
Anexo 3: Transcrições dos áudios dos pais dos sujeitos ..................................................... 247
Pai de John ......................................................................................................................... 247
Mãe de Chaves ................................................................................................................... 260
Pais de Satoshi .................................................................................................................... 272
10
RESUMO
O presente estudo objetivou ampliar a compreensão acerca dos processos de insight
no Transtorno de Asperger (TA). Entende-se por insight o conhecimento do próprio diagnóstico
e os sentidos construídos a partir deste. O desenvolvimento do insight é aqui compreendido não
como função da vida mental pessoal, mas como fenômeno intersubjetivo, forjado nas relações
sociais. O arcabouço teórico que subsidia a presente pesquisa é a perspectiva genética de
desenvolvimento avançada pela psicologia histórico-cultural. Nesta perspectiva, ressaltam-se
os processos de construção de sentido, considerando para tanto a inserção histórico-cultural do
sujeito e suas vivências. Assim, para o estudo defende-se que o entendimento sobre “como é
ser Asperger” precisa ir além da consideração dos aspectos cognitivos compartilhados
socialmente sobre esta condição clínica. Torna-se indispensável o esforço de compreensão dos
sentidos e vivências destes sujeitos sobre sua condição e do mundo que os cerca. Diante disso,
têm-se o construto de insight como fenômeno complexo que demanda investigação ampla e
aprofundada. Buscando atingir os objetivos avançados pelo estudo, foram propostas atividades
em três etapas que investigaram aspectos relacionados às experiências asperger. Primeiramente,
foi realizada a produção de uma narrativa acerca da questão que norteia o estudo: “Como é ter
TA?”. Como estratégia facilitadora da produção narrativa, recorreu-se à mediação de um
personagem alienígena para o qual eles deveriam produzir uma narrativa que possibilitasse o
entendimento da experiência asperger, pois este seria de outro planeta e não saberia nada sobre
o TA. Após essa etapa, foi realizada entrevista semi-estruturada objetivando investigar aspectos
relacionados ao conhecimento formal que os sujeitos têm do TA. Em sequência, foi proposta
nova atividade com dois objetivos complementares, a saber, a capacidade de identificação de
características do TA em terceiros, que por sua vez, serviu de facilitador para o segundo objetivo
que foi a produção de sentidos para as próprias vivências dos sujeitos em relação ao TA.
11
Participaram do estudo três sujeitos entre 15 e 20, selecionados por conveniência, com
diagnóstico prévio de TA e com conhecimento deste há pelo menos cinco anos, tempo este
considerado suficiente para a construção de significados e sentidos sob a condição do
diagnóstico clínico. Também participaram seus respectivos pais, que realizaram também as
mesmas etapas da pesquisa que seus filhos, mas foram convocados a respondê-las como se
fossem estes. Como resultados observou-se que eles produziram narrativas sobre o diagnóstico
de TA e que em suas conceptualizações estiveram presentes diversos elementos
reconhecidamente presentes em discursos científicos e da mídia sobre o diagnóstico. Quanto ao
sentido do TA para eles, observou-se novamente a presença de discursos da mídia, mas
principalmente foram vistas diversas aproximações entre o discurso destes e de seus pais.
Assim, foi observado que a constituição do discurso sobre o próprio diagnóstico para os
indivíduos com TA teve grande influência dos discursos sociais, principalmente de pessoas
mais próximas. Os resultados sugerem que uma característica dos processos de insight no TA
pode ser descrita como disrupção na transição de um modo monológico para um dialógico de
pensamento. Acredita-se que os resultados aqui encontrados contribuem para a compreensão
da singularidade da existência e da experiência subjetiva.
Palavras-chave: Transtorno de Asperger; Insight, Dialogismo; Psicologia Histórico
Cultural; Autismo
12
ABSTRACT
The present study aimed expand the comprehension about the processes of insight in
the Asperger’s Disorder (AD). Insight can be understood as the knowledge one has about his
diagnosis and the meaning constructed from it. The development of insight is taken not as a
personal mental function, but as a intersubjective phenomenon, forged in social relations. The
study has its basis on the theoretical framework of Historical–cultural psychology with focus
in the genetical development perspective. As a central feature of this perspective are the
processes of meaning construction, considering the social-cultural insertion of the individual
and his experiences. Thereby, the study advocates that the understanding of “what it is like to
be an Asperger” has to go beyond the socially shared idea of cognitive disruption as only
features of this condition. The effort of comprehending meanings and experiences of these
individuals becomes imperative. Therefore, the insight phenomena emerges as a complex
construct, demanding a deep and broad research. In order to achieve the study goals, activities
to investigate the Asperger experience were proposed in three steps. First, it was produced a
narrative surrounding the central question that guides the study: “what is it like to have
asperger’s?”. A mediation strategy was used as facilitating tool to the narrative production. It
involved an alien character to whom the participants should talk to, explaining the asperger
experience, since they came from a planet where there was no such thing. After the initial
production, an semi-structured interview was used aiming to investigate aspects regarding the
formal knowledge they had of the diagnosis. In sequence, another activity was proposed
intending to investigate their ability to identify AD characteristics in others and, at the same
time, facilitating the access and production os meaning to their own experiences towards the
diagnosis. Three individuals with ages between 15 and 20 years old participated of the study,
13
selected by convenience. They all had a previous diagnosis of AD and had knowledge of it
since at least 5 years. That was considered enough time to the construction of meanings about
the diagnosis. Also participated in the study their respective parents, who took part in the same
investigation steps as their subjects and responded as if they were those. Results showed that
they produced narratives about their AD diagnosis and that in their discourse there were many
elements notedly present in the media and scientific material. As of the meanings surrounding
the diagnosis, is was noted that media elements were also present, but specially approximations
were seen between their and their parents perceptions. Therefore, it was noted that the discourse
constitution about their own diagnosis for the AD individuals had many influences of the social
discourses, notedly of closest people. The results sugest that a characteristic os the processes of
insight in AD can be described as a disruption in the transition from a monologic to a dialogic
way of thinking. It I believed that the results here exposed can contribute to the comprehension
of the singularity of the existence and subjective experience of these individuals.
Key-words: Asperger’s Disorder; Insight; Dialogism; Cultural-Historical Psychology; Autism.
14
Não importam as dificuldades, eu não desejo uma cura para a minha Síndrome de
Asperger. O que eu desejo é uma cura para a doença comum que permeia tantas vidas; a
doença que faz as pessoas se compararem a um normal que é medido em termos de perfeição
e padrões absolutos, a maioria dos quais são impossíveis para qualquer pessoa alcançar. Eu
acho que seria muito mais produtivo e muito mais satisfatório viver de acordo com um novo
conjunto de ideais que são ancorados em critérios muito mais subjetivos, nos domínios fluidos
e afetivos da vida, o que nos causa admiração e nos deixa maravilhados... curiosidade...
criatividade... invenção... originalidade. Talvez assim todos nós possamos encontrar paz e
alegria uns nos outros.
Liane Holliday Willey, Pretending to be Normal (1999)
15
1. Considerações iniciais
“Ser asperger é difícil.
É como estar preso dentro de uma caixa...
daqueles cubos, sabe?
Eu tento sair e não consigo
e o cubo vai ficando menor...”
W.
A frase que inicia esta introdução foi produzida por um adolescente que atendi na
clínica durante meu período de estágio no curso de formação em psicologia. Este garoto, com
então 13 anos, falava sobre si e sobre o mundo de uma forma qualitativamente diferente. Ao
longo dos seus atendimentos comecei a me deparar, de fato, com uma pessoa que parecia
enxergar a vida e as pessoas de modo peculiar, que tinha percepções sensoriais distintas, era
excepcionalmente bom em diversas disciplinas e possuía amplo conhecimento sobre vários
assuntos. Porém, simultaneamente, afirmava não ter ideia de como fazer para arranjar um
amigo. A frase em tela foi dita em um dos últimos atendimentos que tive com ele, despertando
em mim profunda inquietação, questionamentos que me seguiram até o fim do curso e levaram
à proposição de projeto de mestrado, e que podem ser traduzidos numa pergunta: “ Como é ser
asperger?”.
Como passo inicial adentrei na literatura científica, constatando a amplitude de teorias
que caracterizam o sujeito asperger. Dentre estas, ressalta-se aqui aquela avançada pelo Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), que na sua última edição
incorporou o Transtorno de Asperger (TA) ao Transtorno do Espectro Autista (TEA). Este se
caracteriza por alterações nos domínios da comunicação e interação social, presença de padrões
restritos e repetitivos de comportamento, interesses e atividades (Associação Americana de
Psiquiatria, 2014). A importância de tal definição pode ser justificada pelo largo uso da mesma
16
em contextos de serviços de saúde, educacionais e clínicos. Entretanto, esta definição é restrita
a um conjunto de dados nosológicos e nosográficos que pouco traduzem a experiência asperger,
a produção de sentidos e a vivência destes sujeitos.
Nesse sentido, Molloy & Vasil, (2002, 2004) exploram em seus estudos a concepção
do asperger adotada cientificamente: seria ele um transtorno ou déficit ou uma diferença
neuropsicológica que foi construída socialmente como transtorno? Essa discussão traz em seu
bojo a forma através da qual o diagnóstico é percebido socialmente. Visto da primeira maneira,
como déficit, se associa a um modelo biomédico de classificação de doenças que tem a ele
associado um conjunto de sintomas. Por outro lado, quando o asperger é concebido como
diferença qualitativa, passa a ser interpretado como forma diferente de ser e estar no mundo a
qual se associam características distintas. No entanto, historicamente, a visão biomédica do
asperger tornou-se elemento constituinte de sua concepção social e cultural e, portanto,
contribuiu sobremaneira para forjar as identidades subjetivas dos indivíduos diagnosticados,
que incorporaram a essa subjetividade os conceitos médicos acerca de si mesmos, construindo
sentidos acerca desta, atravessados por tal discurso. Logo, a definição biomédica do asperger
não pode ser abandonada quando se fala das percepções individuais, escolares, familiares e
sociais sobre o diagnóstico.
Porém, é interessante notar que de forma geral, para além da ausência de consenso
acerca da pertinência da incorporação do TA ao espectro autista, também não foram
identificadas, nos contextos acadêmico-científicos, respostas para a questão lançada
inicialmente. Alternativas foram parcialmente encontradas na literatura não-científica e, mais
especificamente, autobiográfica. Em histórias como a de John Robinson, de Olhe nos meus
olhos (Robinson, 2008) ou de Temple Grandin, em Thinking in pictures: my life with autism
(Temple Grandin, 2008), podemos ter um vislumbre da vivência do Transtorno de Asperger,
17
através da experiência singular de indivíduos, como o adolescente mencionado no início desse
texto.
Essa diferença se traduz em forma peculiar de sentir, de pensar, de raciocinar e
solucionar problemas. Essas características não podem ser consideradas como menos
desenvolvidas do que aquelas das pessoas com o desenvolvimento típico, elas configuram um
entendimento diferenciado do mundo. Um mundo que cotidianamente expressa as suas
dificuldades para conviver com o diverso, com o que escapa às normas sociais.
Enquanto um transtorno do neurodesenvolvimento, que tem início na infância, o TA
pode trazer diversas dificuldades, que são potencialmente fonte de sofrimento, principalmente
no âmbito social. A busca pela minimização de tais impactos levou à proposição de diferentes
modelos de intervenção, coadunados com distintas perspectivas teóricas. Diversas destas
partem da premissa que a melhor alternativa para o incremento da adaptação social do TA é a
promoção de desenvolvimento de comportamentos normativos, sem que se faça necessário, a
apropriação de significados e construção de sentido para as experiências sociais.
Por outro lado, outro conjunto de correntes teóricas e de intervenção têm por base,
exatamente os processos de construção de sentido, considerando para tanto a inserção histórico-
cultural do sujeito e suas vivências. O presente estudo situa-se nessa perspectiva, defendendo
que o entendimento sobre “o que é ser autista” precisa ir além da consideração dos aspectos
cognitivos, compartilhados socialmente sobre esta condição clínica. Torna-se indispensável o
esforço de compreensão dos sentidos e vivências destes sujeitos acerca de sua condição e do
mundo que os cerca.
Porém, não podemos esquecer que estes sentidos e vivências são igualmente
construídos por um indivíduo imerso em um mundo histórico-cultural, logo tais discursos são
co-constituintes de suas vivências, o que justifica a utilização neste estudo do termo TA, uma
18
vez que eles se identificam e se denominam recorrendo a este vocábulo. Para Bakhtin,
(Voloshinov) (1929/1992.), há uma estreita interdependência entre as condições, formas e
conteúdos da comunicação discursiva com a realidade sócioeconômica e cultural de uma época
e dos contextos específicos em que a comunicação tem lugar. Para o autor, não só a palavra
impregna e dá sentido à atividade humana ou à experiência social das pessoas, mas igualmente
a consciência, que se estrutura a partir da dimensão material do signo, forjado nas trocas
comunicativas e sociais de coletivos humanos. Para Traverso-Yépez (1999), a consciência
individual se alimenta de signos, cresce com base neles, e reflete em si, sua lógica e suas leis.
No sentido de compreensão dessas vivências mencionadas, destaca-se aqui os estudos
acerca dos processos de insight, investigados nos contextos de condições consideradas
patológicas. Vale salientar que o estudo do processo de insight esteve primeiramente associado
aos casos de lesões cerebrais, nos quais se identificou a incapacidade dos pacientes de
reconhecimento de seus sintomas (anosognosia). Mais recentemente, o conceito passou a ser
abordado na psiquiatria, associado a transtornos mentais e quadros neuropsiquiátricos, tais
como esquizofrenia e transtorno bipolar. Porém, não mais a partir de referência à presença ou
ausência de insight, mas sim à qualidade e especificidade da experiência da consciência de si e
de seus sintomas. A investigação acerca da qualidade e especificidade do insight em diferentes
grupos clínicos é de suma importância para a proposição e implementação de intervenções, uma
vez que o desenvolvimento deste tem sido associado a prognósticos mais favoráveis e melhores
resultados nas medidas terapêuticas (Markova & Berrios, 2011).
Estudos neuropsicológicos sugerem que o TA apresenta fragilidades nos âmbitos da
cognição social, notadamente na cognição social, nas funções executivas e na linguagem
pragmática (Psicologia, 2014). Destaca-se que tais habilidades subjazem o desenvolvimento do
insight, compreendido simultaneamente enquanto o nível e a qualidade do conhecimento que
um indivíduo possui de um sintoma ou forma de prejuízo, e o entendimento das causas e
19
impacto destes em sua vida (Drummond, 2013). Sendo assim, no caso do TA, ressalta-se que
as alterações supracitadas não implicam necessariamente em rebaixamento ou déficits do
insight, mas sim em alterações qualitativas da experiência subjetiva.
Estudos diversos têm examinado a percepção e o entendimento que os indivíduos com
Transtorno de Asperger têm acerca do mundo e de outras pessoas, mas menos interesse tem
sido direcionado para o entendimento destes sobre o seu próprio diagnóstico. Ao mesmo tempo,
o conhecimento científico acerca dos comportamentos associados ao TA, das relações sociais,
educacionais e laborais deste grupo, foi construído a partir do relato de terceiros: relatos de
clínicos, pesquisadores e pessoas próximas, sendo negligenciados os significados referentes à
primeira pessoa, ou seja, aqueles produzidos pelos próprios indivíduos com TA (Drummond,
2013).
Isto posto, ressalta-se que o presente estudo tem como pretensão avançar em termos
da caracterização dos processos de insight no grupo clínico do TA, considerando para tanto que
tais concepções, e as vivências que as acompanham, são construídas a partir de relações
dialéticas, estabelecidas entre dimensões biológicas e histórico-culturais.
Espera-se que os resultados provenientes dessa investigação constituam material que
auxilie na construção de estratégias de intervenção, contribuindo dessa forma, com
profissionais, instituições e pesquisadores que atendem e estão em contato com o universo
Asperger.
2. Dialogismo e desenvolvimento humano
20
O presente estudo tem como objetivo maior ampliar a compreensão acerca dos sentidos
e vivências constituídos e experienciados por sujeitos com Transtorno de Asperger (TA). Para
tanto, faz-se necessário tecer considerações acerca do desenvolvimento ontogenético, aqui
compreendido enquanto movimento dialógico, no qual as funções psicológicas têm substrato
na corporeidade, mas são igualmente interdependentes dos contextos emocionais e
socioculturais nos quais o sujeito está imerso. Dessa forma, o processo de desenvolvimento
pode ser compreendido enquanto movimento de separação inclusiva (Valsiner, 1997) no qual
o indivíduo singular se constrói numa relação dialética com o mundo histórico-cultural.
Isso posto, assume-se aqui a centralidade do sujeito enquanto agente autônomo, imerso
num mundo organizado culturalmente. Porém, é preciso ressaltar que a autonomia pessoal e a
individuação são, elas próprias, culturalmente constituídas, através do processo de
internalização/externalização (Budwig, N., Valsiner, J. & Bamberg, 1998). Sendo assim, é
preciso considerar a interdependência entre o nível pessoal, singular e o social. O primeiro se
constitui na fronteira com o social, ao mesmo tempo em que contribui para o desenvolvimento
do segundo, colaborando para o avanço cultural humano e vice-versa.
Por conseguinte, têm-se a visão do desenvolvimento subjetivo resultante das relações
sociais internalizadas. Em segundo lugar, a alteridade surge enquanto característica importante,
uma vez que a experiência singular humana é forjada na relação interdependente eu-outro. A
definição de “outro” pode se referir a uma pessoa real (por exemplo, alguém com quem se
conversa); a processos intrapsicológicos (como a lembrança dos argumentos ou opiniões de um
interlocutor que não está mais presente, mas que toma parte na construção de sentido); a outro
imaginário ou idealizado (um ser mítico); a um grupo social (Oliveira & Guimarães, 2016).
No tocante ao âmbito metodológico, a abordagem dialógica é coerente com
perspectivas integrativas quanto aos fenômenos investigados, considerando os aspectos social,
cultural, afetivo e cognitivo. Por conseguinte, parte-se de metodologias investigativas e
21
interpretativas, bem como de estudos de cunho idiográficos, visando alcançar sistemas
explicativos contextualizados que se desdobrem em um conhecimento generalizável aberto a
novos estudos de caso. Salienta-se que a generalidade de processo que se espera dessa
metodologia se distingue da generalidade de resultado, dado que os resultados dos processos
dialógicos são situados e alcançados por meio de trajetórias que acontecem em tempo
irreversível (Oliveira & Guimarães, 2016).
Com base nessas premissas propõe-se a aproximação de dois lugares teóricos distintos,
mas potencialmente complementares, ambos ancorados na perspectiva dialógica, que
possibilitam analisar o desenvolvimento humano: primeiramente, a psicologia histórico-
cultural de Lev Semenovich Vygotski, e a filosofia da linguagem de Mikhail Bakhtin. Ressalta-
se que, apesar da centralidade do trabalho deste último para os estudos da linguística, sua obra
possui conceitos axiais de crescente importância, não só para este campo do conhecimento, mas
para diversos outros, tendo sido estes apropriados por áreas como a Psicologia, as Ciências
Sociais, a Comunicação, a Educação e as Artes (José & Bacha, 2011).
Enquanto pontos de aproximação entre as duas perspectivas, ressalta-se o caráter
inovador, uma vez que ambas surgem enquanto terceira via para os embates vigentes à época,
em especial no tocante às bases teórico-metodológicas subjacentes à compreensão do
desenvolvimento humano. O Círculo Bakhtin promove questionamentos acerca das premissas
e métodos do subjetivismo idealista e do objetivismo abstrato que argumentam sobre a
linguagem. Por sua vez, Vygotski criticou os métodos da psicologia idealista e behaviorista
enquanto formas de conhecimento e apreensão do fenômeno humano (Magalhães & Oliveira,
2011).
Adicionalmente, ambos defendem a premissa que a consciência humana é um produto
do social, embora se apoiem em diferentes argumentos (Cornejo, 2012). Para Cornejo, apesar
da identificação de diferenças, é possível considerá-los enquanto partes distintas de um mesmo
22
programa de pesquisa. Ambos compartilham a perspectiva de construção social da mente e a
natureza objetiva da linguagem, interessados na dimensão da construção de sentido da vida
humana, em especial, aquelas expressões da vida psíquica que podem ser expressas através de
narrativas (Cornejo, 2012). A dialogia e a presença do “outro” são essenciais na constituição da
subjetividade, possibilitando contradições que, ao criarem tensões e conflitos, promovem a
produção de novos significados (Magalhães & Oliveira, 2011).
2.1 Contribuições do Círculo de Bakhtin e da psicologia histórico-cultural para o
estudo do desenvolvimento humano
O Círculo de Bakhtin refere-se a um grupo de intelectuais que se reunia
periodicamente entre 1919 e 1929 na antiga União Soviética. O Círculo foi composto por
indivíduos de diversas especialidades, mas tem como expoentes Mikhail M. Bakhtin, Valentin
N. Voloshinov e Pavel N. Medvedev. No presente trabalho centraremos nas ideias de Mikhail
Bakhtin, porém cabe ressaltar o Círculo dada a polêmica existente em relação a diversas obras
do autor cuja autoria é questionada, sendo algumas atribuídas a outros membros do Círculo,
principalmente Voloshinov (Brait, 2005).
A teoria de Bakhtin tem enquanto premissa filosófica a ideia da existência de um
dualismo entre o mundo da teoria e o mundo da vida. O primeiro diz respeito ao mundo em que
os atos concretos de nossa atividade são tornados objetos de estudo teórico, filosófico,
científico, ético e estético. O segundo diz respeito ao mundo da existência de fato, onde ocorrem
os atos concretos de atividade. Nesse se deslancha o real da existência de seres históricos únicos
que realizam atos únicos e que não são repetidos. Esse é para Bakhtin um aspecto essencial da
existência humana: a questão da unicidade e eventicidade do Ser (Faraco, 2009).
23
Esse aspecto desvela o caráter de singularidade da existência para Bakhtin. Nesse
sentido, não existe comunicação entre os dois mundos, porque o mundo da vida em sua
unicidade e eventicidade é inapreensível em um contexto no qual não há espaço para o ser e
eventos singulares. Desse contexto parte o pensamento teórico, que se constitui no afastamento
do singular e abstração da vida. Para superar esse problema de caráter dualista, Bakhtin
estabelece como solução a mudança do enfoque da razão teórica para a prática, que tem em seu
bojo a orientação pelo dito evento único do ser, ou, em outras palavras, que se orienta a partir
do vivido, da experiência singular (Faraco, 2009). Salienta-se que a crítica à razão teórica
Bakhtiana não nega a cognição teórica, pelo contrário, reconhece sua validade, no entanto faz
resistência à sua total desvinculação do mundo da vida.
Faraco (2009) aborda o projeto Bakhtiano a partir do seguinte recorte:
“Uma representação, uma descrição da arquitetônica real, concreta da experienciação
do mundo regida por valores – não com uma fundamentação analítica na cabeça, mas com
aquele centro real, concreto (tanto espacial quanto temporal) donde emergem ou brotam
avaliações, asserções e atos e onde os membros constituintes são objetos reais, interconectados
por relações-eventos concretas no evento singular do Ser” (Bakhtin, Para uma filosofia do ato,
1993)
Nesse sentido, tendo o pressuposto da eventicidade do Ser como base, o autor traz luz
à discussão filosófica e problematização acerca do método científico de investigação. A
questão do Ser, por sua amplitude, exige uma racionalidade distinta da tradicional metodologia
científica, partindo não do pensamento de operação do cálculo, mas do sentido do Ser, que “se
entrega ao inesgotável do que é digno de ser questionado”). Sua reflexão é antes ampla em
torno do inesgotável da existência, ao invés de voltada à instrumentalização de análise
científica. Faraco (2009) sugere a aproximação do pensar Bakhtiano da concepção
24
hermenêutica das ciências humanas, pressupondo uma aproximação do fazer filosófico de
cunho mais conceitual e interpretativo, de atribuição de sentidos.
Diante disso, Bakhtin vincula-se à concepção filosófica de Dilthey, distinguindo
entre ciências da natureza (Naturwissenschaften) e ciências do espírito (Geisteswissenschaften)
negando que a ciência seja reduzida à primeira forma. Tais formas de ciência possuem
diferentes objetos, logo, diferentes metodologias: as ciências da natureza visam à explicação,
enquanto as ciências do espírito ou humanas tem a compreensão como objetivo. Uma busca
encontrar o exterior das relações necessárias entre os fenômenos, enquanto a outra tem
orientação de busca interna dos sentidos das ações humanas. Dessa forma, retomando-se a
questão da explicação versus compreensão, temos no primeiro caso o entendimento do
necessário (o objeto é mudo e sobre ele se enunciam fatos; relação monológica) enquanto no
segundo, a compreensão vai em direção ao possível, pois existe uma relação dialógica entre o
objeto e os significados produzidos em interação (Faraco, 2009).
Vale salientar que essa orientação interna não pode ser desvinculada do ambiente
sociocultural, considerando que para Bakhtin a consciência individual constrói-se na interação
sujeito-mundo social. A consciência é entendida como tendo uma realidade semiótica, sendo
construída dialogicamente e se manifestando semioticamente (Faraco, 2009). O sujeito de
Bakhtin tem papel ativo na sua construção, não sendo assujeitado, mas relacional, trazendo a
importância da relação eu-outro para essa constituição e para a “negociação” de sentidos. O
sujeito Bakhtiano se torna eu entre outros eus: ao mesmo tempo é definido por um outro e define
este, de tal forma, que se tem uma concepção inacabada de sujeito, sempre em ressonância no
outro, no discurso do outro e nos interdiscursos, compreendidos pelas vozes sociais que ecoam,
trazendo-lhes um caráter histórico e cultural (Brait, 2005).
25
Isto posto, faz-se importante discorrer acerca de conceitos Bakhtinianos de grande
valia para a compreensão da construção do eu: o excedente de visão e a exotopia. Para a
compreensão do conceito de excedente de visão é preciso partir do texto literário, da relação
entre autor e herói, uma vez que este diz respeito a um lugar de privilégio, no qual nos
encontramos em determinado momento em relação a um outro, no evento único da existência.
Essa noção pode significar tanto um excedente de visão que o autor sempre terá em relação ao
herói, na medida em que sabe mais que este quanto pode também significar aquilo que, da
posição em que estou, só eu posso saber do outro e aquilo que o outro, da posição em que está,
consegue ver a respeito de mim. O sujeito sabe do outro o que este não pode saber sobre si
mesmo, ao mesmo tempo em que depende do outro para saber o que ele mesmo não pode saber
de si.
Assim, de acordo com Bakhtin, o autor sempre sabe mais, não só comparado ao herói
em particular, mas sim a todos os heróis em conjunto, sendo esse excedente de visão que dará
acabamento ou completude do todo do herói e da obra. Essa completude se dá em relação a
elementos que o próprio sujeito não tem acesso, que fazem parte do todo de sua existência,
como o horizonte externo atrás deste e sua própria imagem externa. Além disso, a
autocontemplação se realiza com base nas sensações internas, sendo demasiadamente subjetiva.
Deste modo, o acabamento que o outro possibilita, e que só é possível a ele pela posição externa
que ocupa, é uma conferência de valores aos elementos que são inacessíveis a um indivíduo e
este é provisório até o encontro com outra alteridade (Faraco, 2009).
A noção de excedente de visão inaugura uma nova concepção do sujeito acerca de si
mesmo, partindo de uma diferença de olhares que só o outro pode dar, por ver algo que só o
lugar de alteridade permite. A partir daí pode-se surgir exotopia, que diz respeito à quando, a
partir do que percebo no que você vê em mim consigo ver-me de maneira diferenciada e não
26
coincidente com a visão que eu tinha a meu próprio respeito antes, o que significará um
acréscimo de visão e tomada de consciência (Magalh, 2010).
No entanto, esse processo não acontece obrigatoriamente. Para que ele ocorra é
necessário esforço de posicionar-se a partir do ponto de vista do outro, buscando ver o que o
outro vê. Quando o indivíduo se perde nesse movimento, apenas refletindo um ponto de vista,
existe uma captura desse olhar que não leva necessariamente à mudança e expansão de
consciência. A exotopia se cria justamente quando, provido desse olhar do outro, retorno a mim
mesmo e efetivamente coloco em ação o excedente de visão que o outro me proporcionou,
promovendo mudanças internas (Faraco, 2009) e, consequentemente, promovendo a
emergência da novidade, o que por sua vez, caracteriza o processo de desenvolvimento.
2.2 Psicologia Histórico-Cultural
A Psicologia histórico-cultural nasce na Rússia (posterior URSS), no início do século
XX, fundada pela chamada tríade soviética, tendo Lev Seminovich Vygotsky à frente, e
constituída também por Alexei Nikolaivich Leontiev e Alexsandr Romanovich Luria. A
abordagem é apresentada como uma terceira via ou alternativa para além da dicotomia
objetividade versus subjetividade que se estabelecia na época. Nesse sentido, Vygotsky se
refere a uma crise extrema da psicologia, cujas teorias não bastavam à compreensão dos
processos psicológicos superiores. Estas estariam divididas entre teorias de influências
positivistas, que atribuíam caráter natural aos fenômenos psicológicos, cuja via de estudo seria
o comportamento observável e mensurável, e, por outro lado, teorias fenomenológicas, que
privilegiavam fenômenos subjetivos, inviabilizando o desenvolvimento de um método objetivo
para a pesquisa psicológica. No entanto, apesar de partirem de diferentes princípios e preceitos
teóricos, Vygotsky aponta que tinham em comum a redução de processos superiores e
27
complexos a elementares e a desconsideração de fatores históricos e culturais do
desenvolvimento (Duarte, Freire, & Hazin, 2012; Eilam, 2003; Vygotsky, 2012).
Nesse contexto se desenvolve o projeto científico da tríade soviética, este propõe uma
nova psicologia geral dos processos psicológicos, uma teoria do desenvolvimento do
funcionamento mental superior humano, na qual premissas teóricas e metodologia de estudo
são fortemente embasadas e tidas como interdependentes (Veresov, 1999). Dessa forma, não se
poderia pensar numa teoria acerca de um problema de investigação sem, ao mesmo tempo,
considerar o método adequado para tanto, o que Vygotsky aponta como principal dificuldade
das teorias psicológicas vigentes na época.
Diante disso, têm-se a primeira premissa e fundamentação sobre a qual se estabelece
a psicologia histórico-cultural: a indispensabilidade de uma metodologia genética de
investigação. A alternativa metodológica proposta por Vygotsky para o estudo da consciência
traz a possibilidade de investigação objetiva das funções mentais, desde que estas não sejam
consideradas fenômenos prontos, mas estudadas no processo de sua emergência e
desenvolvimento (Veresov, 2014). A acepção da perspectiva genético-desenvolvimental
ressalta a importância dos aspectos socioculturais na constituição do funcionamento cognitivo
superior, estes se constituem na relação dialética estabelecida entre o sujeito e o mundo social,
incluindo pessoas, produtos, ferramentas e sentidos que são desenvolvidos e acumulados
historicamente.
Conquanto seja a fundamentação da emergência das funções superiores, dada nas
relações sociais, outra premissa de base da psicologia histórico cultural é a materialidade
biológica dessas funções, tendo por base o sistema cerebral enquanto sistema aberto e plástico,
cuja estrutura é passível de alterações e é moldada no curso da história da espécie e do
desenvolvimento individual. Desta forma, numa estrutura de base estabelecida pela história da
espécie são organizados os sistemas funcionais constituídos ao longo da história da vida social,
28
como consequência da atividade humana sobre o mundo, em resposta às demandas crescentes
do ambiente.
Por fim, a quarta ideia de base, relacionada ao aspecto instrumental da psicologia
histórico-cultural, argumenta que as relações estabelecidas entre indivíduo e mundo não são
diretas, mas requerem que a ação do primeiro sobre/com o segundo, seja mediada por
instrumentos ou signos, particularmente a linguagem, enquanto sistema simbólico. Dessa
forma, a emergência das funções psicológicas superiores se funda na apropriação dos sentidos
e significados culturais. Estes significados já estão presentes no âmbito social, externo ao
indivíduo em desenvolvimento, como parte do sistema simbólico compartilhado que é a
linguagem e será apropriado por este em interação social (Eilam, 2003; Vygotsky, 2013)
Adicionalmente, destaca-se que a compreensão do desenvolvimento humano para a
perspectiva histórico-cultural exige a consideração conjunta de níveis distintos de análise. O
nível histórico, ou da sociogênese, faz referência às aquisições sociais, históricas, culturais da
humanidade, da comunidade e do momento histórico no qual se desvela a ação humana. O nível
evolutivo, ou da filogênese, diz respeito ao desenvolvimento das espécies e as especificidades
de cada uma destas. O nível individual, ou da ontogênese, refere-se ao desenvolvimento
cognitivo e sócio afetivo dos sujeitos, ou seja, a passagem da infância para a idade adulta e as
mudanças na estrutura e nas funções mentais que ocorrem ao longo deste processo e durante
toda a vida. Por fim, no nivel da microgênese considera-se cada fenômeno psicológico como
detentor de trajetória própria. Tal nível remete a uma análise que se orienta para a apreensão de
minúcias na transfomação de processos e ações do sujeito (Hazin, Leitão, Garcia, Lemos, &
Gomes, 2010).
Em particular, é no desenvolvimento ontogenético que se dá a transição do
comportamento natural para o cultural, no qual as funções psicológicas primárias são
atravessadas pela dimensão simbólica, instaurando uma forma qualitativamente diferente de ser
29
e estar no mundo. A linha natural de desenvolvimento refere-se à maturação biológica,
iniciando-se no momento em que o indivíduo nasce e terminando com sua morte. A linha
cultural, por sua vez, se estabelece quando a criança começa a reconhecer no outro um agente
intencional como ela própria, passando a imitar o uso dos meios e instrumentos culturais
disponíveis em seu ambiente (Vygotsky, 2013).
Vale salientar que a linha cultural não substitui a natural, ambas continuam seus
caminhos até o final da vida do indivíduo. No entanto, após o surgimento da dimensão cultural,
as linhas seguem tocando-se mutuamente no processo de desenvolvimento do indivíduo, o que
não caracteriza uma simples mudança, mas a reorganização qualitativa de um sistema (Veresov,
2010). Assim, o funcionamento cognitivo natural (funções primárias ou básicas) não é
substituído, mas transformado pelos sistemas simbólicos de uma dada cultura (Glozman, 2014).
Nesse processo, a linguagem ganha papel de destaque, pois fornecerá os elementos
decisivos para que os processos psicológicos inferiores, inicialmente independentes
(funcionamento unimodal), sejam integrados, constituindo redes complexas capazes de
produzir significados (funcionamento polimodal) e, consequentemente, possibilitará a
emergência da consciência. Essa integração ocorre à medida que os significados culturais são
apropriados, primeiro interpsicologicamente, na relação com o outro, para tornarem-se
intrapsicológicos, internalizados. Destarte, apesar das funções mentais serem individuais, não
são puramente subjetivas, pois dependem do ambiente físico e social, refletindo até certo ponto
propriedades dessa realidade, que inclui produtos e significados da ação atividade humana
prévia (Eilam, 2003).
Tal aspecto implica no movimento dialético de inserção cultural, dada a mediação
dos significados que foram historicamente acumulados e transmitidos às novas gerações, e a
construção de singularidade, constituindo o conceito de separação inclusiva. Nesse sentido, ao
30
mesmo tempo que cada pessoa é uma unidade relativamente autônoma em relação ao outro,
cada um se constitui nas dinâmicas intersubjetivas estabelecidas em contextos sociais (Valsiner,
1997).
Nessa perspectiva, na qual toda função psíquica superior foi externa por haver sido
social antes de ser interna, a função psíquica propriamente dita era antes uma relação social de
duas pessoas. De forma que a personalidade seria também formada nestas relações. Vygotsky
aponta que “passamos a ser nós mesmos através dos outros(...). A personalidade torna-se o que
é para você através do que significa para os demais”. (Vygotsky, 2013)
Essa concepção está em consonância com a proposta de Bakhtin acerca da constituição
do sujeito. Para ambos, é na relação com a alteridade que os indivíduos se constituem, em um
processo que não surge de suas próprias consciências, mas de relações sócio historicamente
situadas, com destaque para a centralidade da linguagem neste processo. Para Vygotsky a
relação de alteridade se estabelece fundamentalmente no contexto de compartilhamento em
diversas e contínuas relações, pois este possibilita a produção de novas reorganizações dos
sentidos e significados compartilhados cultural e historicamente (Magalhães & Oliveira, 2011).
Para Bakhtin, tem lugar de destaque na interação o papel do outro como possibilidade de
ampliação da consciência de um indivíduo, no desdobramento do discurso que é atravessado
pelas múltiplas vozes que falam de lugares históricos, culturais e políticos diferentes. A partir
do exposto, convém destacar que Vygotsky deu contribuição significativa para o estudo de
trajetórias desenvolvimentais atravessadas pela patologia, conforme discutido a seguir.
2.3 A Defectologia Vygotskiana
Os estudos iniciais de Vygotsky acerca do desenvolvimento ontogenético foram
realizados com crianças, ditas por ele normais, ou sem nenhum atravessamento ou desvio do
desenvolvimento. Porém, é a partir do estudo realizado com as crianças que tinham o
31
desenvolvimento atravessado por alguma patologia que ele estrutura diversos dos conceitos da
psicologia histórico-cultural. Esses estudos originaram um dos grandes desdobramentos de seu
trabalho, a saber, a proposição acerca da defectologia, um ramo da ciência que estudava crianças
com diversas condições físicas ou mentais.
Para tanto, Vygotsky se apoia nos conceitos de disontogênese (do grego dys –
anômalo, ontos – sendo; genesis – desenvolvimento) e de desenvolvimento heterocrônico,
avançado por P. Anokhin (Anokhin, 1975; Gindis, 1998; Rodina, 2006)). Tais proposições
contrapunham-se à visão tradicional da criança com alterações desenvolvimentais, considerada
quantitativamente inferior àquelas com desenvolvimento típico. Para esta última, o
desenvolvimento é um processo "natural" de crescimento quantitativo e embasado no aumento
das funções psicológicas e orgânicas que já estão pré-determinadas pelo biológico.
Tal concepção foi apelidada por Vygotsky de “conceito matemático da deficiência”,
traduz-se numa visão da criança com dificuldades como um ser menos desenvolvido, em que
algo falta. Esta abordagem, então, limitava-se a determinar parâmetros, tais como a capacidade
intelectual, sem caracterizar a deficiência e suas repercussões sobre o desenvolvimento.
Abordar a deficiência sob a ótica da limitação imposta pela condição significa considerar a
pessoa com deficiência um simples conjunto de funções negativas, resultando em uma
abordagem limitada, que pouco contribuía para a prática de intervenções (Gindis, 1999;
Vigotski, 2011).
Em contraposição a esta perspectiva, a defectologia vygotskiana baseia-se em uma
concepção de desenvolvimento como processo essencialmente qualitativo, de forma que a
criança deficiente não é considerada menos desenvolvida do que outras, mas detentora de um
processo desenvolvimental que ocorre de maneira qualitativamente distinta daquela dita
normal.
32
Conforme (Vygotsky, 2012):
“Uma criança, cujo crescimento foi atravessado por uma deficiência, representa um
tipo de desenvolvimento qualitativamente diferente e único. [...] se uma criança cega ou surda
atinge o mesmo nível de desenvolvimento de uma criança sem alterações neurológicas, ela o
faz de outra maneira, por outro percurso, por outros meios [...]”.
Tal concepção ressalta a singularidade do indivíduo, desenvolvida, em especial,
através de processos de compensação, uma vez que todo defeito cria os estímulos para a
elaboração de uma forma compensatória de desenvolvimento e ação. Na defectologia
vygotskiana o papel do “defeito” é sempre duplo, pois configura contexto de disontogênese, ou
desvio da função típica do desenvolvimento, produzindo falhas, obstáculos e dificuldades na
adaptação da criança; mas por outro lado, exatamente porque o defeito produz obstáculos e
rompe o equilíbrio normal, ele serve de estímulo ao desenvolvimento de caminhos alternativos
de adaptação, indiretos, os quais substituem ou superpõem funções que buscam compensar a
deficiência e conduzir todo o sistema a uma nova ordem. (Vigotsky,2012).
A disontogênese é igualmente fundada no meio sociocultural do indivíduo,
considerando-se para tanto os mesmos processos que subjazem o desenvolvimento típico, a
saber, mediação, internalização e as linhas de desenvolvimento. Porém, a particularidade reside
nos processos de internalização da cultura, uma vez a linha natural é marcada por diferenças
em sua constituição biológica.
Nesse sentido, são centrais os conceitos de “incapacidade primária” (primary
disability) e incapacidade secundária” (secondary disability) e como estas se relacionam. A
incapacidade primaria é o prejuízo orgânico devido a fatores biológicos que depois se
desenvolvem na direção de incapacidades secundarias. Esta última é a distorção das funções
mentais superiores devido a fatores sociais, sendo a consequência destes responsáveis por
reforçar a dificuldade ou defeito (Vygotsky, 2012).
33
Uma incapacidade orgânica pode impedir a criança de dominar alguma habilidade
social e adquirir conhecimento da forma e no tempo esperado. Entretanto, é o meio social da
criança que modifica seu curso de desenvolvimento e resulta em possíveis distorções e atrasos.
Logo, incapacidades secundárias, tais como comportamento infantilizado ou primitivismo de
reações emocionais em indivíduos com incapacidades, seriam adquiridas no processo de
interação social. Em síntese, Vygotsky considera o principal problema da incapacidade não a
diferença orgânica em si, mas as implicações sociais que dela decorrem. (Gindis, 1999).
Nessa perspectiva, a partir da revisão compreensiva de estudos históricos e
antropológicos, incluindo relatos de indivíduos com algum prejuízo, Vygotsky argumenta que
a deficiência ou incapacidade só é percebida como anormalidade quando trazida ao contexto
social. O cérebro, olhos e ouvidos são apenas órgãos, dos quais um prejuízo leva à
reestruturação das relações sociais e ao deslocamento dos sistemas de comportamento
(Vygotsky, 2012). Ressalta ainda a variação cultural e histórica do “defeito” com um exemplo:
“a cegueira da filha de um fazendeiro americano, do filho de um dono de terras ucraniano, de
um duque alemão, um camponês russo, um proletário sueco – são todos fatos psicologicamente
completamente diferentes”.
Assim, a fundamentação da defectologia de Vygotsky baseia-se essencialmente em
dois princípios: na formação de mecanismos e estratégias compensatórias e na emergência de
complicações sociais. No tocante ao primeiro, a linha cultural traz as possibilidades que
permitem essa compensação e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores por
caminhos indiretos.
Nesse sentido Vygotsky (2011) estabelece a seguinte tese:
“O desenvolvimento cultural é a principal esfera na qual é possível compensar a
deficiência. Onde não é possível avançar no desenvolvimento orgânico, abre-se um caminho,
sem limites, para o desenvolvimento cultural. Ao falar sobre talento, detemo-nos especialmente
34
no modo como a cultura nivela as diferenças de talento e como o desenvolvimento cultural
apaga ou, mais precisamente, converte em histórica a superação natural do desenvolvimento
orgânico incompleto” (Vigotski, 2011)
Considerando o papel da cultura, faz-se necessário pensar em como é possível intervir
para que se possa facilitar ou conduzir à compensação. Tal intervenção é possível à medida que
se altera o lugar social do indivíduo com uma deficiência, pois as consequências deste lugar são
certas expectativas e atitudes, bem como condições diferenciadas de acesso e experiências
socioculturais criadas pela sociedade. Essa alteração tem por base a alteração da visão social
negativa, passando-se a enxergar os fatores positivos desse desenvolvimento, que é
qualitativamente diferente e peculiar a cada criança. Este é, para Vygotsky, um grande objetivo
dos profissionais que trabalham com esses indivíduos, mas não o único: considerando um
desenvolvimento que é único, faz-se necessário conhecer essas peculiaridades, para atuar no
sentido de potencializar a aprendizagem e o desenvolvimento.
Esta visão positiva do desenvolvimento é central para Vygotsky e marca a maior
contribuição da psicologia histórico-cultural para a defectologia. A perspectiva passa aquela
que o autor chamou de “diferenciação positiva”, na qual se transfere o foco dos estudos, da
dificuldade para a potencialidade individual (Vygotsky, 2012; Gindis, 1999).
Por fim, Vygotsky aborda enquanto visão de futuro para a defectologia a necessidade
de investigação dos perfis de funcionamento, em termos de discrepâncias, ou seja, fragilidades
e potencialidades em cada incapacidade ou deficiência específica. Esse esforço seria essencial
para a proposição de estratégias compensatórias específicas e orientadas para esse perfil, sem
perder de vista as diferenças individuais. Este é para ele o futuro da reabilitação (Gindis, 1999).
Em síntese, vale ressaltar a premissa de que o sujeito considerado deficiente atinge o
desenvolvimento das funções complexas, por caminhos diferentes do desenvolvimento
considerado típico. Trata-se, então, de um trabalho complexo voltado para o reconhecimento
35
da diferença e criação de condições propícias ao desenvolvimento de funções psicológicas
complexas. O entendimento das rotas alternativas de desenvolvimento das funções psicológicas
superiores, bem como as proposições de intervenções que favorecem tal processo foram
potencializadas pela neuropsicologia de Luria, brevemente descrita a seguir.
2.4 Contribuição da Neuropsicologia histórico-cultural para o estudo do
desenvolvimento humano
No interior do projeto científico da psicologia histórico-cultural identifica-se lugar de
destaque para a neuropsicologia, considerada ramo da psicologia que nasce da articulação entre
as ciências naturais e humanas, definida da seguinte maneira por Vygotsky em 1924: “essa nova
psicologia será um ramo da biologia geral e, ao mesmo tempo, a base de todas as ciências
sociológicas. Será o nó que liga a ciência da natureza e a ciência do homem” (Akhutina, 2012).
Coube a Alexsander Romanovich Luria fazer avançar esta vertente da psicologia. A
partir dos estudos desenvolvidos, em especial após a segunda guerra mundial, com soldados
que possuíam lesões de guerra, ele constrói os pilares da neuropsicologia, em articulação com
o modelo de desenvolvimento da psicologia histórico-cultural. Seu principal objetivo era a
compreensão do curso da dissolução das funções psicológicas superiores nos quadros de lesão
e/ou disfunção cerebral (congênita ou adquirida), partindo dos seguintes princípios: a gênese
das funções mentais superiores é social; sua organização é sistêmica; sua localização e
organização dinâmicas. Esses princípios derivam daqueles propostos pela psicologia histórico-
cultural acerca da ontogênese e da disontogênese, ou seja, orientados não para a patologia ou
deficiência, mas para o processo de desenvolvimento, considerando os fatores históricos e
culturais que atravessam o fenômeno mental e os meios de sua remediação (Glozman, 2013;
Luria, 1981).
36
As contribuições de Luria para a ciência neuropsicológica se deram em um momento
de intenso debate entre teóricos localizacionistas e antilocalizacionistas. Os primeiros
defendendo que funções psicológicas específicas possuem localização cortical exata, enquanto
os segundos argumentavam que estas estavam em estreita dependência do funcionamento
global do córtex.
Luria (1981) apresenta um desfecho alternativo para o embate, revisando para tanto os
conceitos de função psíquica, localização cerebral e sintoma (Hazin et al., 2010). Nesta
proposição, as funções não podem ser circunscritas a áreas determinadas do córtex e sim
organizadas a partir da ação de múltiplos elementos que atuam de forma articulada e podem se
localizar em áreas distintas do cérebro. Dessa forma, o funcionamento superior é concebido
como fruto da ação de sistemas funcionais complexos. Por conseguinte, a ideia de sistemas
permite pensar que as funções complexas do comportamento têm um funcionamento que
consiste de uma tarefa constante, que leva a um resultado igualmente constante, mas que pode,
entretanto, ser desempenhada por mecanismos diversos, logo, variáveis (Hazin et al., 2010;
Oliveira & Rego, 2010).
Partindo da premissa que o desenvolvimento e estruturação dos sistemas funcionais se
dão na interação com o meio externo e consequente internalização dos mediadores simbólicos,
têm-se a concepção de sistema plástico, aberto à incorporação de elementos externos que
permite a variabilidade desse funcionamento. Dessa forma, pode-se inferir que o curso
maturacional com estrutura preestabelecida filogeneticamente pode sofrer mudanças e
interferências culturais (Hazin et al, 2010).
Essa assunção reflete uma proposta de desenvolvimento na qual o processo é
privilegiado em detrimento do produto, isto é, o indivíduo pode alcançar níveis de
desenvolvimento por caminhos distintos dos habituais, sendo esta uma das bases para a
37
reabilitação neuropsicológica. Tal proposta corrobora com as premissas estabelecidas pela
defectologia de Vygotsky acerca da possibilidade de compensação na disontogênese.
A partir do princípio da localização dinâmica das funções mentais, fez-se necessário
rever o conceito de localização das funções e processos psicológicos. De acordo com Luria, a
localização dos sistemas funcionais e da organização das funções é dinâmica, sofre variações
ao longo da ontogênese. Durante esse processo, ocorrem mudanças no grau e na natureza de
envolvimento das estruturas cerebrais e das particularidades de suas associações funcionais para
a realização de um mesmo tipo de atividade cognitiva. (Luria, 1981; Glozman, 2014).
Assim, o conceito de localização é substituído pelo de zonas funcionais. Ao longo da
ontogênese, diferentes atividades mentais mudam sua estrutura psicológica, demandando a
reorganização em processos superiores, realizados por zonas funcionais distintas. Essa
reorganização se dá por meio de estágios subsequentes, ascendentes e sobrepostos (Glozman,
2014; Luria, 1981). Embora o sistema funcional não possua localização cortical específica,
sabe-se que existem áreas corticais importantes para o funcionamento adequado dos sistemas
funcionais específicos. Luria propõe uma organização das funções cognitivas superiores em
três unidades funcionais.
A primeira unidade, responsável pela regulação de dois tipos de processos de ativação:
ativação geral do cérebro, associada ao nível de vigília, e mudanças na atenção seletiva local,
necessárias para a formação focada e seletiva das funções mentais. O significado funcional da
primeira unidade é o provimento de uma base de ativação geral para todas as funções mentais
bem como de manutenção do tono geral do sistema nervoso central e do equilíbrio entre
ativação e inibição necessário a toda unidade.
38
A segunda unidade, receptora, tem o papel receber, processar e armazenar informações
externas. Essa unidade provê processos modalidade-específicos, bem como as formas
integrativas complexas de processar informação.
Por fim, a terceira unidade é efetora e estaria responsável pela programação, regulação
e verificação da atividade mental (Luria, 1981; Glozman, 2014). Diante de um novo
funcionamento superior sistêmico e dinâmico, que requer o funcionamento em concerto dos
sistemas e grupos funcionais, o estabelecimento de uma relação direta entre sintomas funcionais
mentais e área lesionada precisa ser revisto.
Tal relação não seria precisa, pois uma alteração em alguma parte do sistema
compromete o sistema funcional como um todo, de forma que a perda de certa função não indica
uma localização exata ou fixa de uma estrutura alterada. Logo, torna-se essencial que seja feita
uma investigação detalhada do sintoma observado (Eilam, 2003).
O distúrbio de um fator pode surgir como déficit que acompanha determinada
síndrome. A investigação de determinada síndrome, por sua vez, enquanto conjunto de sintomas
permite a identificação de base comum, de fatores subjacentes a sua expressão. Tal constatação
exige o desenvolvimento de procedimentos, dentro os quais estão incluídas a comparação dos
sintomas observados, a investigação qualitativa dos mesmos e a estruturação de base comum.
Detectado o déficit primário no interior de determinado sistema, a avaliação neuropsicológica
deve identificar a consequência sistêmica deste e a reorganização compensatória (Eilam, 2003).
Diante do exposto, compreender que os sistemas de zonas funcionais operam de
maneira complexa e hierarquizada implica compreender que as repercussões neuropsicológicas
decorrentes de alterações no funcionamento cerebral, especialmente na infância, dependem de
diversos fatores em complexa interação, quais sejam a natureza, localização e extensão da
39
alteração cerebral, a idade, o contexto maturacional do Sistema Nervoso Central (SNC), a
inserção sociocultural da criança, dentre outros fatores
Dessa forma, faz-se necessária a introdução de uma nova abordagem para análise dos
processos psicológicos. A avaliação neuropsicológica não pode estar limitada à avaliação de
uma única função afetada. Torna-se necessária a análise qualitativa do sintoma investigado,
considerando-se especificamente o déficit em questão, bem como os fatores que o provocam
(Glozman, 2014).
Isso posto, Luria inaugura perspectiva de avaliação neuropsicológica pautada pelo
delineamento de pontos fortes e fracos do funcionamento cognitivo, estabelecendo as funções
comprometidas e preservadas após lesão cerebral, inaugurando o princípio da reabilitação
neuropsicológica que considera os componentes preservados do sistema e a este agrega
ferramentas da cultura, promovendo a construção de novo sistema, qualitativamente diferente
do original (Eilam, 2003).
Essa perspectiva se estabelece em consonância com as proposições da defectologia de
Vygotsky que ressalta, como mencionado em seções anteriores, a importância de delineamento
de perfis de funcionamento que, ao mesmo tempo em que são únicos para cada sujeito, têm
bases comuns que permitem a consideração de perfis funcionais, não só em casos de lesão, mas
em condições de desenvolvimento atípico.
Outra contribuição significativa da neuropsicologia luriana foi o modelo de
reabilitação. Luria propôs programas de reabilitação neuropsicológica que ultrapassaram os
limites impostos pela organização espontânea do sistema nervoso, abrindo espaço para a
incorporação de recursos auxiliares da cultura – denominadas por I. Hazin (Hazin, Lemos, &
Garcia, 2006) de “próteses culturais”, pois permitem ao sujeito o uso de caminhos alternativos
que o ajudem a transformar o negativo da deficiência no positivo da compensação.
40
Finalmente, as contribuições da psicologia histórico-cultural para a neuropsicologia
direcionam o olhar, anteriormente estático em termos da relação cérebro-comportamento (estes
eram associados a áreas definidas do cérebro), para uma visão dinâmica, que considera a
interação entre cérebro e funcionamento mental enquanto aberta e a partir do contexto
interacional do sujeito, contemplando as desordens dentro de um contexto de desenvolvimento.
Nesse sentido, a neuropsicologia luriana permitiu a expansão de sua área de atuação, agora não
mais restrita a situações de lesões cerebrais orgânicas, mas também a distúrbios endógenos,
genéticos e funcionais (Glozman, 2014).
Tal expansão se deu, primariamente, pela percepção de profissionais acerca da
importância do diagnóstico funcional e diferencial de condições atípicas de desenvolvimento.
Além disso, estudos de neuroimagem funcional revelam a presença de alterações funcionais
cerebrais orgânicas em pacientes com desordens endógenas e funcionais, tais como transtornos
mentais, hoje entendidos enquanto desordens neurocognitivas (Glozman, 2014).
Nessa perspectiva, a neuropsicologia torna-se fundamental na avaliação e intervenção
dos transtornos do neurodesenvolvimento. Estes são compreendidos como condições de
desenvolvimento atípicas, com início prematuro e que acompanham o sujeito por toda a sua
vida, caracterizando um modo qualitativamente diferente de existência, de percepção do
mundo, das relações e de apreensão da cultura, como no caso do Transtorno de Asperger, foco
do presente estudo, caracterizado a seguir.
3. Transtorno de Asperger através do tempo
O conjunto de características que circunscrevem o diagnóstico de Transtorno de
Asperger foram relatadas pela primeira vez por Hans Asperger, em 1944. De modo
independente e quase concomitante, Leo Kanner (Kanner, 1943)descreveu características de
41
aspectos similares em crianças. Na época, os dois pesquisadores apresentaram denominações
homônimas para suas descrições peculiares de crianças em faixa etárias aproximadas. Enquanto
Asperger, pediatra austríaco com interesse em educação especial, denominou tais
características de “psicopatia autística”; Kanner (1943) as denominou de “distúrbio autístico
inato do contato afetivo”. Ambos descreveram pacientes com alterações do comportamento, da
linguagem e das habilidades necessárias para aprendizagem e interação social, porém, as
tentativas iniciais de comparar as duas condições foram difíceis devido às grandes diferenças
nos pacientes descritos.
Lorna Wing (1981)hipotetizou que os pacientes descritos por Asperger, juntamente
com os de Kanner, caracterizados por incapacidade ou dificuldade no desenvolvimento de
interações sociais, comunicação social e imaginação, seriam parte de um espectro autista. A
diferenciação dentro de um espectro foi proposta por Wing, sugerindo a existência de graus de
intensidade e variabilidade de expressão da tríade comportamental que caracteriza o espectro,
destacando que estas são independentes do nível da capacidade intelectual.
O termo Transtorno de Asperger é uma referência ao pediatra austríaco, que somente
obteve reconhecimento a partir de 1981, após as traduções de seus trabalhos por Lorna Wing,
a quem é atribuída a criação do termo em homenagem ao pesquisador (Artigas-Pallarès &
Paula, 2012). Asperger, relatou em seus estudos suas observações sobre 4 crianças com
características peculiares. Apelidadas pelo pesquisador de “pequenos professores”, chamava
atenção sua habilidade de falar precisa e detalhadamente de temas de sua preferência. Esse
comportamento era acompanhado por outros, descritos por ele como falta de empatia,
ingenuidade, pouca habilidade para fazer amigos, linguagem pedante e repetitiva, comunicação
não-verbal pobre, interesse aumentado por certos temas, torpeza motora e coordenação motora
prejudicada (Artigas-Pallarès & Paula, 2012).
42
No que se refere ao esforço de classificação dos sintomas que acompanham o TA, o
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) é, juntamente com a
Classificação Internacional de Doenças (CID), os parâmetros nosológico e nosográfico
mundiais. Nas primeiras versões do DSM, publicadas em 1952 e 1968, não há referência
específica ao TA. De forma global, o autismo estava associado a um comportamento da
esquizofrenia infantil. Na terceira versão do DSM (1980), foi introduzida a categoria “Autismo
infantil”, considerada enquanto entidade única. Apenas na quarta edição do DSM, a SA é
descrita enquanto categoria nosológica específica, compondo junto com o Transtorno Autista,
Transtorno de Rett, Transtorno Desintegrativo da Infância e Transtorno Global do
Desenvolvimento sem outra especificação, os denominados Transtornos Globais do
Desenvolvimento (TGD) (Artigas-Pallarès & Paula, 2012; Maranhão, 2014).
Em 2013, foi publicada a quinta versão do DSM, na qual foi sugerida uma nova
classificação para esses transtornos, passando de uma análise diagnóstica categorial para uma
abordagem dimensional. Assim, os Transtornos Autista, de Asperger e Transtorno Autista sem
outra especificação, passaram a compor o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), o qual
considera as características clínicas destes como parte de um continuum de sintomas e prejuízos,
que vão de leves a moderados e severos, nos âmbitos da comunicação social e comportamentos
restritos e repetitivos.
No que se refere à prevalência do TEA, é relevante destacar que os estudos realizados
nas últimas três décadas, em diversos países, vêm sugerindo um aumento significativo do
número de diagnósticos de autismo e diagnósticos correlatos (Transtorno de Asperger, autismo
atípico, entre outros) (Deisher & Doan, 2015). Esse aumento da incidência do diagnóstico vem
chamando a atenção mundial e, nesse sentido, a Organização das Nações Unidas estabeleceu
em 2007 o dia 2 de abril como dia Mundial de Conscientização do Autismo. A data vem
recebendo a cada ano maior apoio em todo o mundo, identificado através de ações pessoais,
43
institucionais e governamentais que utilizam, de diferentes maneiras, a cor azul, símbolo do
TEA.
Também em decorrência desse aumento, a Organização Mundial de Saúde (OMS)
incluiu pela primeira vez em 2010 as desordens do espectro autista no relatório de Global
Burden of Disease Study (GBD), documento que traz estimativa do impacto de doenças e
condições clínicas, bem como dos fatores de risco que as causam. A inclusão do autismo no
GBD põe em pauta a importância do diagnóstico, seus custos para a saúde e a necessidade de
implementação, em países de todo o mundo, de políticas de saúde (Baxter et al., 2015).
No Brasil, estima-se que existam 2 milhões de crianças diagnosticadas dentro do
espectro do autismo (Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2012). Em
dezembro de 2012, foi instituída a Lei Nº12.764 de Proteção dos direitos da pessoa com
Transtorno do Espectro Autista (Lei Berenice Piana) que estabelece os direitos do indivíduo
diagnosticado com autismo. A lei assegura o acesso a ações e serviços de saúde, incluindo: o
diagnóstico precoce, o atendimento multiprofissional, a nutrição adequada e a terapia
nutricional, os medicamentos e as informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento.
Da mesma forma, a pessoa com autismo tem assegurado o acesso à educação e ao ensino
profissionalizante, à moradia, ao mercado de trabalho e a previdência e assistência social.
Para assegurar direitos, educação e acesso ao mercado de trabalho, torna-se
imprescindível conhecer o perfil de potencialidades e fragilidades que circunscrevem o TA.
Nesse sentido, faz-se necessária a constante revisão de critérios e pesquisas com base nos
modelos biomédicos de saúde a partir das classificações internacionais de doenças, pois estas
orientam os serviços e leis.
No entanto, para além da perspectiva médica do TEA, diversos movimentos vêm
surgindo na direção de lançar luz sobre uma nova concepção do diagnóstico, abordando-o
44
menos como doença ou déficit e mais como forma qualitativamente diferente de ser e estar no
mundo. Muitos destes são inclusive pensados por indivíduos que têm esse diagnóstico, além de
profissionais e pessoas que convivem com eles. Como exemplo, tem-se o movimento da
Neurodiversidade, para o qual os transtornos do neurodesenvolvimento, com destaque para o
TEA, são caracterizados por funcionamentos neuropsicológicos diferenciados, logo, variações
esperadas da espécie. Assim, se reconhece as suas fragilidades e potencialidades, sendo cobrado
da sociedade que se adapte a estas, abrindo espaços para que as potencialidades desses
indivíduos possam ser aproveitadas (Armstrong, 2010).
Nesse sentido, destaca-se a necessidade de realização de estudos que possibilitem
maior entendimento do TA, não só enquanto características e comportamentos visíveis, mas
compreendendo os sentidos e significados atribuídos por eles à sua própria condição de ser e
estar no mundo.
3.1 Caracterização e diagnóstico do Transtorno de Asperger
De forma global, os indivíduos com TA se caracterizam pela presença de linguagem
pedante e rebuscada; ecolalia ou repetição de palavras ou frases ouvidas de outros; voz pouco
emotiva e sem entonação; interesses restritos; presença de habilidades incomuns; interpretação
literal; incapacidade para interpretar mentiras, metáforas, ironias, frases com duplo sentido;
dificuldades no uso do olhar, das expressões faciais, dos gestos e dos movimentos corporais
enquanto formas de expressão da comunicação não verbal; pensamento concreto; dificuldade
para entender e expressar emoções; apego a rotinas e rituais, dificuldade de adaptação a
mudanças e fixação em assuntos específicos (Maranhão, 2014; Mello, 2005)
A gama de comportamentos peculiares e frequentemente presentes nesse grupo clínico
se justificam pelo atravessamento de alterações ou desvios nos padrões ontogenéticos típicos
que reconfigura esse processo de desenvolvimento. No caso do TA, essas se dão,
45
principalmente, em funções ligadas à interação e comunicação social, flexibilidade de
pensamento e integração sensorial. Tais alterações, ao mesmo tempo que configuram prejuízos
na organização e funcionalidade cognitiva, podem trazer compensações em funções distintas,
caracterizando um perfil desenvolvimental de fragilidades e potencialidades. Esse perfil tem
consequências para o funcionamento adaptativo desses indivíduos, que podem encontrar
maiores dificuldades em aspectos específicos da vida (como o âmbito social), enquanto
possuem desempenho superior à média em relação a outros aspectos (como atividades que
requerem agilidade no processamento visual). Esse funcionamento dual está em consonância
com as proposições de Vygotsky acerca da disontogênese e seus efeitos sobre o indivíduo,
ocasionando um desenvolvimento qualitativamente distinto da norma (Vygotsky, 2012).
As principais características neuropsicológicas encontradas no grupo clínico de
indivíduos do Espectro do Autismo, apesar de diferir no tocante ao seu nível dentro do espectro,
compreendem dificuldades em relação ao desenvolvimento da cognição social. Maranhão
(2014) sugere a presença de alteração generalizada no funcionamento das operações mentais
que envolvidas na cognição social, sendo mais prejudicadas em indivíduos com autismo e em
menor severidade no TA. O destaque se dá nas habilidades de teoria da mente, linguagem
pragmática, memória episódica, autoconsciência e na coerência central.
Estas características diferenciadas de funcionamento subjazem os comportamentos
descritos anteriormente como peculiares aos indivíduos com TA e serão descritas em maior
detalhes a seguir.
3.2 Características de funcionamento diferenciadas
Cognição social
46
O conceito de cognição social faz referência à habilidade humana de construir sentido
do mundo através da interação com outros membros da espécie humana. Tal habilidade abarca
diversos processos cognitivos que permitem que os indivíduos entendam uns aos outros
enquanto seres intencionais e possam interagir em cooperação. Em uma perspectiva dialógica,
essas habilidades permitem o aprendizado e engajamento culturais, porque ao compreender o
outro enquanto agente intencional abre-se espaço para o uso de mediação simbólica (Tomasello,
Carpenter, Call, Behne, & Moll, 2005).
A literatura é diversa no que tange a esses processos cognitivos, mas consensualmente,
têm-se processos que vão desde esquemas perceptuais básicos, até outros processos sociais mais
complexos. Os primeiros incluem processamento facial, reconhecimento de emoções e atenção
conjunta, enquanto os segundos dizem respeito a processos de inferência e raciocínio, como a
atribuição de estados mentais, e estados afetivos, como a empatia. Todos estes nos permitem
compreender contextos sociais e predizer estados mentais, intenções e ações de outros, para que
possamos agir adequadamente. (Frith & Frith, 2007; Kilford, Garret, & Blakemore, 2016).
Diversos estudos sugerem que a Teoria da Mente (ToM) está relacionada à habilidade
humana de interpretação de desejos e intenções alheias, e previsão do comportamento de outros
indivíduos, bem como regulação de seu próprio. Esse conceito diz respeito ao reconhecimento
da existência de estados mentais subjetivos (como crenças, desejos e intenções) e o papel
exercido por estes estados na explicação de comportamentos. O uso da ToM nos permite
entender ações alheias, não só pela leitura de movimentos corporais, mas também pela
atribuição de intenções às ações ((Holroyd & Baron-Cohen, 1993; Jou & Sperb, 1999).
Baron-Cohen, Leslie e Frith sugeriram em 1985, que o componente relacionado à
dificuldade na interação social do autismo estaria associado à diminuição ou falta da habilidade
metarrepresentacional da Teoria da Mente. Os pesquisadores testaram sua hipótese num estudo
realizado com crianças autistas, crianças com desenvolvimento típico e com crianças com
47
Síndrome de Down (SD). Seus resultados indicaram que indivíduos com desenvolvimento
típico possuíam a habilidade de atribuição de estados mentais a outras pessoas. O mesmo
ocorreu com as crianças com Síndrome de Down, logo, a atribuição de falhas nessa habilidade
não poderia ser remetida à capacidade intelectual diminuída, uma vez que esta é uma das
características da SD. Somente as crianças autistas obtiveram dificuldades nas tarefas de ToM,
o que levou os autores a propor que essa alteração seria específica do autismo (Baron‐Cohen,
Leslie, & Frith, 1985).
A partir da proposição de um déficit na ToM como um dos mecanismos de explicação
para características do autismo, várias proposições foram feitas sobre como se configura essa
dificuldade, com conclusões variadas. Alguns estudos sugerem que autistas não teorizam sobre
a mente por uma dificuldade de compreensão e abstração, portanto não podem “ler a mente do
outro”, o que Baron-Cohen chamou de “cegueira mental”. No entanto, para indivíduos com
Transtorno de Asperger tal dificuldade reveste-se de características próprias, pois apenas a
compreensão de sentimentos e emoções que demandam grande abstração parece estar
comprometida (Miranda, Muszkat, & Mello, 2006).
Baron‐Cohen e Ring (1994) propuseram um modelo de ontogênese da teoria da mente
(revisado depois para modelo da empatia). Para o TA em particular, Baron-Cohen (Baron-
cohen, 2005) sugere um desenvolvimento peculiar do sistema com falhas específicas no ToMM,
mas que se contram em falhas na TESS ou módulo relacionado a empatia. Dessa forma, eles
compreenderiam cognitivamente os sentimentos e intenções, mas teriam dificuldades em
colocar-se no lugar do outro.
Tomasello et al. (2005) argumenta que a habilidade humana de ler intenções se
relaciona intimamente a interação cultural com outros indivíduos. Especificamente, a forma
como humanos entendem ações intencionais e percepções de outros cria uma forma única a
nossa espécie de aprendizagem e engajamento cultural, que leva ao processo de
48
desenvolvimento e evolução da cultura. Por exemplo, apenas se uma criança compreende o
outro como agente intencional ela pode adquirir e usar símbolos linguísticos, porque a
aprendizagem e uso desses símbolos requer o entendimento de que o parceiro pode
voluntariamente dirigir ações e atenção a entidades externas.
Linguagem e comunicação social
A centralidade da linguagem para o desenvolvimento das funções psicológicas
superiores exige a reflexão acerca de comprometimentos neste domínio para a constituição do
sujeito. No caso do TA é imprescindível problematizar sobre o perfil das alterações e as
implicações deste para o desenvolvimento.
Para tanto, cabe, primeiramente, adentrar a temática dos processos envolvidos na
aquisição da linguagem na perspectiva dialógica, notadamente histórico-cultural. Nessa
perspectiva essa aquisição é central, dada a associação entre linguagem e pensamento, bem
como o caráter de mediador assumido por ela.
Nesse sentido é central para o desenvolvimento da linguagem o momento de
convergência entre fala e atividade prática. Antes linhas independentes de desenvolvimento,
elas agora convergem à medida que a primeira irá mediar a segunda, regulando-a. Esse processo
ocorre em um contexto comunicativo que estabelece determinadas pautas de interação entre
adultos e crianças (Silvestri & Blank, 1993).
Em uma primeira etapa, a regulação da conduta é externa. O bebe atua orientado
diretamente pelos estímulos do meio. Na segunda etapa, a regulação é interpessoal: depende da
linguagem dos outros: as palavras dos adultos são sinais para emitir comportamentos. O adulto
organiza, orienta e dirige o entorno físico e social da criança por meio de palavras. Finalmente,
a fala se internaliza e a regulação torna-se intrapessoal. A linguagem adquirida se converte em
organizadora do pensamento e do comportamento da criança. Sua atividade se orienta através
49
dos signos e significados que constituem o tecido da consciência própria, através da linguagem
interior ou do “falar consigo mesmo” (Silvestri & Blank, 1993).
A partir deste momento, além da função de atuação externa, ou seja, buscando uma
resposta ou comportamento do outro, a fala ganha a função interna de autorregulação. Por meio
dela regulamos nossa própria conduta, por exemplo, planejando antecipadamente em nossa
consciência e prevendo e resolvendo mentalmente os problemas que uma atividade pode
apresentar. Dessa forma, ao serem internalizados, os signos se convertem em instrumentos
subjetivos da relação do indivíduo consigo mesmo: autodirigem e regulam sua própria conduta
e pensamento (Silvestri & Blanck, 1993).
Processualmente, o sujeito adquire a linguagem e pode resolver um problema, primeiro
“em sua cabeça”, em tempo e espaço distintos do que de fato o problema se apresenta. Assim,
saímos do concreto para operar com signos que substituem os objetos e suas relações. O caráter
da linguagem internalizada é também mediacional: são meios de que me sirvo para resolver
uma situação e implicam numa atividade mediadora entre o sujeito e a práxis.
Ressalta-se o caráter social da linguagem, que permeia o trânsito do interpessoal para
o intrapessoal na constituição da linguagem interior. Essa função está presente mesmo no
estágio intermediário desse processo, relativo ao monólogo da criança, denominado por Piaget
de fala egocêntrica (Piaget, 1993). Este seria o link necessário entre a gênese da linguagem
interior e a fala.
Para Vygotsky, esse monólogo ainda é essencialmente social, dada a função primordial
de comunicação da linguagem. Quando a criança fala consigo mesma, num monologo
egocêntrico, reproduz pautas de interação social, reproduzindo a mesma maneira que dialoga
com os outros. Em seu esquema de desenvolvimento, a linguagem é primeiramente social,
50
depois egocêntrica e mais adiante interiorizada. A dialogicidade da fala social não se perde no
monólogo, nem irá se perder na linguagem interior.
Regulando a sua atividade através das palavras, a criança está aprendendo a resolver
problemas utilizando a dimensão da linguagem. Neste momento emerge a função cognitiva
desta função psicológica. Porém a criança não a diferencia da função comunicativa de interação
social.
A ausência de comprometimento no desenvolvimento da fala era o principal elemento
que diferenciava o TA do autismo, antes da versão do DSM-IV, uma vez que crianças com
asperger apresentavam desenvolvimento típico da fala. No entanto, estudos com esse grupo
clínico sugerem prejuízo marcante no que foi denominado domínio pragmático da linguagem,
ou seja, no uso social da linguagem (Maranhão, 2014).
Na literatura científica, a dimensão da linguagem que é mutável se insere no âmbito
da pragmática. O desenvolvimento sociopragmatico se refere ao processo de desenvolvimento
e compreensão das formas com que sentidos linguísticos indexam informação sociocultural,
incluindo aspectos do contexto social de comunicação (ex: tipo de atividade, formalidade),
qualidades da relação social (ex: relações de intimidade ou poder) e identidades sociais (Alanen
& Poyhonen, 2007).
A literatura aponta a dimensão sociopragmática como de fundamental importância
para que a comunicação efetiva aconteça. É a partir dos conhecimentos dos usos diversos da
linguagem, envolvendo não só palavras, mas gestos, expressões faciais e entonação que se torna
possível compreender os aspectos sutis das interações sociais. Nesse sentido, ironias, metáforas
e pedidos indiretos, por exemplo, compõem aspectos pragmáticos da linguagem. A
compreensão da intenção do falante em um determinado contexto, quando são utilizados esses
recursos, demanda ir além do significado literal da linguagem. Na prática, o tipo de dificuldades
51
enfrentadas por indivíduos que tem TA envolve a não compreensão dos usos indiretos da fala
citados anteriormente (Maranhão, 2014).
No espectro autista, a relação entre linguagem pragmática, teoria da mente e funções
executivas é discutida por Champagne-Lavau e Joanette (2009), que sugerem que o
desenvolvimento da primeira demanda o desenvolvimento adequado da Teoria da Mente. A
interpretação pragmática, processamento da linguagem não-literal, por exemplo, solicita um
exercício de teoria da mente à medida que se precisa inferir sobre o estado mental de quem fala.
Assim, um déficit na realização de inferências pode resultar em um prejuízo no
processamento da linguagem não-literal, comprometendo a comunicação. Ao mesmo tempo,
outras características como falhas na flexibilidade cognitiva, ou presença de pensamento
perseverante, podem se associar à fixação rígida no sentido literal da fala, acarretando
dificuldade de conceber significados alternativos mais adequados ao contexto (Champagne-
Lavau & Joanette, 2009).
A dificuldade nesses âmbitos traz prejuízos ao estabelecimento de interações e
relações, pois sendo essas dialógicas, se estabelecem nos discursos que se constituem no
compartilhamento de signos e significados. Estes, por sua vez, não dizem respeito somente à
palavra, mas a linguagem não-verbal e mesmo ao que não é dito, o que se constitui como grande
dificuldade no TA.
As relações discursivas dialógicas se estabelecem com base no que já foi dito, estando
dentro do contexto que é pré-existente, ao mesmo tempo que se orienta para uma resposta, ou
seja, esperando uma resposta, de forma que já é de antemão influenciado pelas possibilidades
de réplica (Faraco, 2009). Tais relações antecipam a necessidade de compreensão de estados
mentais de outrem pela representação e atribuição destes, sugerindo a relação entre discurso e
teoria da mente. Nesse sentido, Lyons e Fitzgerald (2004) trazem a importância da tomada de
52
consciência do falante acerca da mente do ouvinte, avaliando seu interesse, para a comunicação
bem sucedida.
Coerência central
Indivíduos com Transtorno de Asperger apresentam a tendência de focar detalhes em
detrimento das informações que perpassam o contexto da troca social. Em diferentes níveis,
problemas específicos com integração de informações diversas prejudica a capacidade de
compreensão global de um contexto (Maranhão, 2014)
Tal característica tem sido associada a falhas na coerência central desses indivíduos
ou na habilidade de processamento da informação dentro de seu contexto, integrar informações
em um todo coerente em nível perceptual e conceitual. Estudos que seguem a linha da Teoria
da Coerência Central, sugerem que indivíduos que apresentam essa tendência de processamento
fragmentado possuem conectividade cerebral pobre em áreas de processamento sensoriais.
Essa característica configura um estilo de processamento cognitivo diferenciado que
se baseia na discriminação aumentada de elementos individuais. Esta se evidencia em diversos
âmbitos, desde a desintegração do processamento de aspectos sensoriais do ambiente, em que
não ocorre a distinção, por exemplo, de ruídos em primeiro plano e de fundo, até dificuldades
para identificar o rosto humano a partir do arranjo espacial de olhos, nariz e boca. Falhas nesse
âmbito perpassariam a insuficiente compreensão do significado global de uma história/piada,
ou a dificuldade para responder ao chamado de seu nome próprio, especialmente quando há
envolvimento atencional excessivo numa atividade (Bogdashina, 2006; Hill & Frith, 2003;
Maranhão, 2014)
As alterações na coerência central no TA constituem-se enquanto dificuldades, mas
também embasam as maiores potencialidades cognitivas desse grupo, tais como a memória para
fatos ou a localização ágil de elementos visuais. A obsessão por detalhes também subjaz estilos
de aprendizagem diferenciados e está por trás do grande desenvolvimento de algumas áreas em
53
detrimento de outras, tornando-os grandes experts em assuntos de seu interesse (Hill & Frith,
2003).
Diferenças qualitativas no funcionamento das habilidades perceptuais podem gerar o
desenvolvimento de um estilo diferenciado também de pensamento, sendo este mais perceptual
em contraste ao pensamento verbal de pessoas de desenvolvimento típico. Bogdashina (2006)
aponta que a forma visual de pensamento perceptual é a mais comum para pessoas que estão
no espectro do autismo de maneira geral. Neste estilo, as ideias são expressas na forma de
imagens que provém uma base concreta para a compreensão do mundo. Cada pensamento é
representado por uma imagem, de forma que palavras estão em segundo plano e sua
compreensão, oral ou escrita, ocorre quando esta se traduz em imagem. Temple Grandin
descreve esse funcionamento que ela mesma apresenta em sua autobiografia “Thinking in
pictures” (2008).
“Eu penso em imagens. Palavras são como uma segunda língua para mim. Eu traduzo
palavras faladas e escritas em filmes completos em cores e som, os quais eu passo em minha
mente como uma fita de VHS. Quando alguém fala comigo, suas palavras são instantaneamente
traduzidas em imagens. Pensadores que se baseiam na linguagem frequentemente acham difícil
entender esse fenômeno, mas em meu trabalho como designer de equipamento para a indústria
do gado, pensamento visual é uma tremenda vantagem”. (Temple Grandin, 2008)
3.3. O diagnóstico de TA: da ciência ao sujeito
Como dito anteriormente, no DSM-V, o Transtorno de Asperger deixou de ser uma
entidade nosológica independente e passou a integrar o Transtorno do Espectro do Autismo
(TEA). A justificativa apresentada para essa mudança remete à necessidade de uma maior
sensibilidade e especificidade dos critérios diagnósticos, bem como de identificação de
tratamentos mais adequados aos prejuízos específicos observados no TEA (APA, 2014).
54
Dessa forma, nesta edição do DSM os critérios diagnósticos para o TEA são: 1)
presença de déficits persistentes na comunicação social em múltiplos contextos, conforme
manifestado ou por história prévia; 2) Padrões restritos e repetitivos de comportamento,
interesses ou atividades atualmente ou por história prévia; 3) Interesses fixos e altamente
restritos que são anormais em intensidade ou foco (ex: forte apego a ou preocupação com
objetos incomuns, interesses excessivamente circunscritos ou perseverativos); 4) Hiper ou
hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse comum por aspectos sensoriais do ambiente
(ex: indiferença aparente perante a dor/temperatura, reação contrária a sons ou texturas
específicas, cheirar ou tocar objetos de forma excessiva, fascinação visual por luzes ou
movimento) (APA, 2014).
Ressalta-se que os sintomas devem estar presentes precocemente no período do
desenvolvimento. No entanto, o DSM-V traz como ressalva a possibilidade de que os sintomas
não se tornem plenamente manifestos até que as demandas sociais excedam as capacidades dos
indivíduos, ou podem ser mascarados por estratégias aprendidas ao longo na vida. O
diagnóstico pode ser dado nas seguintes condições: com ou sem comprometimento intelectual
concomitante, com ou sem comprometimento da linguagem concomitante ou associado a
alguma condição médica ou genética conhecida ou a fator ambiental (APA, 2014).
Kurita (2011) considera de grande importância a busca por harmonizar os diagnósticos
dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TID) e os Transtornos do Espectro Autista
(TEA), sugerindo que, até serem validadas escalas diagnósticas e entrevistas semi-estruturadas
para o segundo, a solução seria continuar usando os critérios do DSM-IV, considerando como
TEA os TID’s. O autor também aponta que a nova forma diagnóstica será amplamente aceita
como um conceito que representa as características autistas, mas que os subtipos anteriormente
considerados irão continuar a ter importância enquanto conceito que representa um conjunto de
características do autismo.
55
A opção deste estudo por manter o TA enquanto entidade nosológica específica, não
vem pautada na diferenciação do transtorno em relação aos quadros de autismo clássico no que
tange ao desenvolvimento de habilidades cognitivas específicas, tais como a linguagem, mas
sim, pela constatação que foi criada uma cultura Asperger, ou seja, os sujeitos anteriormente
assim diagnosticados, criaram comunidades virtuais, apelidos (se reconhecem como “ Aspies”)
que configuram uma identidade. Provavelmente, aos poucos, esta identidade deixará de existir
tal como se apresenta hoje, mas neste momento histórico é preciso considerar que estes sujeitos
forjaram suas identidades imersos num discurso que os identificava como Asperger.
A decisão pela mudança dos critérios diagnósticos e da inclusão em especial do
Transtorno de Asperger (TA) no espectro autista desencadeou discussões não só no âmbito
científico, mas também no sociocultural. Isso porque muitas dessas pessoas não se denominam
autistas e sim “Aspies”. O termo designa características singulares de um grupo sociocultural,
implicado com um modo de ser e estar no mundo qualitativamente diferente, cuja concepção
vai além da condição psiquiátrica (Maranhão, 2014; Giles, 2014).
Nesse sentido, em seu livro de 2009, Claire Sainsbury, diagnosticada com TA,
descreve sobre a necessidade de visão diferenciada acerca do transtorno:
“É importante não considerar a Síndrome de Asperger somente em termos de
prejuízos ou nada mais que um grupo de deficiências. Em oposição à figura comum de uma
“concha autística”, pessoas com Transtorno de Asperger frequentemente definem o autismo
como uma forma de ser, algo que é uma parte profunda e fundamental de quem elas são”.
(Sainsbury, 2009, p.39)
No relato de experiências de indivíduos com TA, identifica-se esforço no sentido de
configurar tal experiência enquanto variação qualitativa da apreensão do mundo. Nesse sentido,
os relatos destacam o sentimento de estranheza em relação a comportamentos sociais naturais
de pessoas com desenvolvimento típico. Corroborando com estes, Sacks (2006) afirma que o
56
autismo, embora possa ser reconhecido como uma condição médica, necessita ser igualmente
compreendido como um modo de ser completo, uma forma de identidade, intimamente
diferente. Tal concepção avança na direção das proposições da defectologia de Vygotsky, em
especial aquelas que compreendem o desenvolvimento desviante enquanto qualitativamente
diferente do típico, ressaltando a importância da alteração do lugar social do termo “defeito”
(Vygotsky, 2012).
Nesse sentido, Bogdashina (2006) apresenta o relato de Jim Sinclair (1992),
diagnosticado com TA e fundador do movimento sobre os direitos da pessoa autista (The autism
Right Movement):
“Toda criança precisa ser ensinada a como funcionar no mundo. Todo adulto
encontra problemas e desafios de tempos em tempos e precisa aprender novas habilidades ou
buscar ajuda de outros. O que quero dizer é que pessoas autistas deveriam ser ajudadas a
funcionar no mundo como pessoas autistas, e não passar sua vida tentando não ser autista. Se
uma pessoa autista está se comportando perigosamente ou de forma destrutiva, ou aquilo
interfira com os direitos de outras pessoas, isso certamente é um problema que precisa ser
resolvido. Se falta a uma pessoa autista uma habilidade que aumentaria sua capacidade de
perseguir seus objetivos, então todo esforço deveria ser feito para ensiná-la. O problema que
vejo é quando pessoas autistas são sujeitas a tratamentos intensivos, estressantes e,
frequentemente, muito caros, simplesmente pelo propósito de fazê-las parecer ‘normais’:
eliminando comportamentos inofensivos só porque pessoas não-autistas pensam que eles são
estranhos, ou ensinar habilidades e atividades que não são do interesse da pessoa autista só
porque não autistas apreciam essas atividades” (“Bridging the Gaps: An Inside-Out View of
Autism (Or, Do You Know What I Don't Know?), Sinclair, 1992; livro não disponível) (tradução
livre do inglês pela pesquisadora)
57
Muitos autistas recorrem a metáforas associadas a personagens desviantes como forma
de autodefinição, tais como extraterrestres. Temple Grandin, escritora com SA, relatou ao
neurocientista Oliver Sacks sentir-se como “um antropólogo em Marte”, devido à incapacidade
de compreender o jogo de emoções presente nas interações sociais (Sacks, 2006). De forma
semelhante, Sainsbury (2009) descreveu sua infância como sendo a de um “marciano no
playground”, em referência às dificuldades para compreender a dinâmica do funcionamento
social no qual estava inserida, em particular, a escola.
Nestas narrativas, o estranhamento inicial, pouco a pouco cede espaço para a
constatação que o “diferente” eram eles mesmos, uma vez que reconheceram nos outros uma
uniformidade de comportamento. Dewrang (2011) aponta que o indivíduo cujo crescimento é
perpassado por um transtorno global do desenvolvimento, pode vir a ter no outro o parâmetro
que o coloca como diferente dos demais. Sugere ainda que, nesse contexto, a noção de que
existe diferença entre si mesmo e outras pessoas ocorre pela primeira vez quando se percebe
como as pessoas o tratam ou reagem a ele.
Nesse sentido, destaca-se a acepção de Vygotsky quanto ao papel do contexto social
em relação ao que caracteriza uma incapacidade, pois considera que o principal problema não
reside na diferença orgânica em si, mas nas implicações sociais que dela decorrem, com
destaque para as expectativas e percepção social do diagnóstico, que trazem subjacente o
determinismo acerca das possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem para o indivíduo.
No entanto, vale ressaltar que tal reconhecimento não se faz presente na trajetória de
todos os indivíduos. A percepção da diferença pode ou não estar presente. Além do mais, ela
não leva necessariamente ao entendimento das causas dessa diferença, que podem ser atribuídas
a comportamentos e traços específicos associados à condição clínica da SA.
58
Adicionalmente, os relatos abordam acerca do papel decisivo do diagnóstico em suas
trajetórias de vida. Para alguns, mesmo sendo o diagnóstico tardio, este foi concebido como
alívio e entendimento. Robinson (2008), adulto diagnosticado com SA somente aos 40 anos,
relata em sua autobiografia:
“Eu tinha passado grande parte da minha vida ouvindo as pessoas me dizerem como
eu era arrogante, indiferente, pouco amigável. Agora leio que as pessoas com Asperger
‘demonstram expressões inapropriadas’. Bem, isso eu conheço profundamente (...). Ler essas
páginas foi um enorme alívio. Toda a minha vida, eu me senti como se fosse uma fraude ou,
pior ainda, um sociopata à espera de ser descoberto. Mas o livro me contou uma história muito
diferente. Eu não era um assassino atrás de minha primeira vítima. Eu era normal, na medida
em que sou o que sou.”. (Robinson, 2008, p.212)
A sensação de alívio surge, em grande parte, da compreensão de que existe um nome
para a diferença, e com ele um conjunto de características que configuram uma condição
peculiar. Tal constatação possibilita a substituição dos sentimentos de baixa autoestima e
depressão pela tomada de consciência.
Peterson, Ekensteen e Rydén (2006), citados por Dewrang (2011), sugerem que os
sentimentos negativos vivenciados pelos indivíduos asperger podem ser consequência de
feedback negativo da sociedade, mais do que característica intrínseca à condição. Bogdashina
(2006) sugere que as descrições de indivíduos sobre seu próprio diagnóstico tendem a ser
neutras, com ênfase nos aspectos positivos ou com ênfase nos aspectos negativos, com base na
atitude da pessoa acerca de sua condição, estratégias compensatórias adquiridas e ajustamento
ao ambiente. Descrições positivas, longe de idealizar a própria condição, partem de tentativas
de entendê-la e lidar com ela da melhor maneira possível, aproveitando suas potencialidades,
ao passo que aspectos negativos são atribuídos a fatores ambientais. A autora enfatiza que a
experiência de ser asperger, bem como a visão do diagnóstico para o próprio sujeito, depende
59
do suporte que ele recebe, das estratégias e adaptações desenvolvidas. Essa visão é construída
na interação entre identidade, personalidade, ambiente, experiências e os sentidos e significados
erigidos a partir destas.
Nesse sentido, o conhecimento acerca do asperger, de suas características, possibilita
a tomada de consciência do que caracteriza os seus comportamentos considerados
problemáticos, possibilitando a construção de alternativas mais funcionais, culminando com
contextos de interação social mais significativos. Robinson (2008) aborda esse assunto em seu
livro no qual afirma:
“Aprendi a pausar antes de responder, quando as pessoas me abordam e começam a
falar. Eu me treinei a dar respostas talvez um pouco excêntricas (...) quando alguém me
pergunta ‘e aí, John, como vai? ’, já sei responder: ‘estou bem Bob e você? ’. Ao invés de
‘acabo de ler sobre os novos motores diesel MTU que vão instalar nos navios’(...) Mudanças
como essas fizeram uma enorme diferença na forma como as pessoas me vêm. Tenho deixado
de ser encarado como um maluco e agora sou apenas excêntrico. E posso assegurar, é muito
melhor ser excêntrico” (Robinson, 2008).
De forma global, os relatos descritos anteriormente convergem ao destacarem a
importância da tomada de consciência acerca do asperger, de suas características, seus alcances
e limitações. Sugerem que tal processo traz em gérmen as alternativas de enfrentamento e
superação das adversidades inerentes à condição. De acordo com Sacks (2006), o autista que
consegue ter consciência de si mesmo pode cultivar habilidades sociais, intelectuais,
desenvolver a comunicação e a linguagem, tornando-se autônomo. Ao mesmo tempo, conhecer
como se constrói e se processa a consciência de si e do próprio diagnóstico pode proporcionar
conhecimento e ferramentas para os familiares e profissionais que convivem com esses
indivíduos.
Partindo da perspectiva Bakhtiniana, compreender a singularidade e eventicidade da
60
existência e da experiência subjetiva é essencial para a real compreensão do que significa se
desenvolver de maneira fundamentalmente diferente, sem reduzir o indivíduo a estereótipos
sociais, ou achados científicos teóricos, como alterações cognitivas e comportamentos
desviantes; ou de “sobrepujar a alteridade daquilo que é do outro sem o transformar em qualquer
coisa que é para si”, nas palavras de Bakhtin citado em Faraco (2009). Nesse sentido, coloca-
se a importancia do construto teórico dos processos de insight (Markova & Berrios, 2011) para
essa tomada de consciência do diagnóstico pelo indivíduo asperger.
4. Processos de Insight e Asperger
4.1. Surgimento e desenvolvimento do conceito
A extensão do entendimento e da avaliação que pacientes são capazes de ter acerca de
uma condição que os afeta, tem consequências significativas para as relações estabelecidas
entre ele e o mundo social. Pouca consciência de sua condição pode associar-se ao não
reconhecimento de problemas e da necessidade de ajuda. Em consequência, podem existir
dificuldades no manejo das atividades cotidianas, ruptura em suas vidas e de outras pessoas,
causando estresse prolongado e isolamento, enquanto o acesso à ajuda é atrasado ou existe
resistência a ela (Marková, 2005).
Contraditoriamente, o nível de consciência elevado de uma dada condição clínica,
também pode estar associado ao aumento de estresse, oriundo da conscientização dos efeitos
desta sobre a sua vida. Logo, pesquisas acerca dos mecanismos inerentes a tal entendimento,
em grupos clínicos diversos, são de grande importância para a delimitação de estratégias
terapêuticas e da avaliação acerca da eficiência e eficácia das mesmas.
O interesse acerca do processo de conscientização de condições clínicas específicas
surgiu no campo das neurociências no século XIX. Seu estudo se inicia a partir da identificação
da incapacidade de alguns pacientes de reconhecer seus sintomas após lesão cerebral.
61
Inicialmente associada ao não reconhecimento do quadro de hemiplegia (anosognosia), passou
a ser utilizado em diversas desordens neurológicas e neuropsicológicas, tais como afasia,
síndromes amnésicas, demência, déficits posteriores a lesões dentre outras (Markova & Berrios,
2011).
Na psiquiatria, por outro lado, o conceito passou a ser utilizado por motivo oposto: o
reconhecimento de alguns pacientes da própria doença mental. Esse fato contrariava a ideia
vigente de loucura, na qual se acreditava não existir consciência alguma da realidade
compartilhada (Marková & Berrios, 2011).
Apesar da capacidade de reconhecimento de sua condição clínica e dos impactos
associados a mesma serem investigadas desde o século XIX, identificam-se dificuldades na
circunscrição dos fenômenos e conceitos, bem como no uso de nomenclatura homogênea para
a abordagem desta. Sendo assim, localiza-se em trabalhos de língua inglesa o uso
intercambiável de termos para abordar o mesmo fenômeno, assim como, fenômenos diferentes
tratados sob o mesmo termo (Markova & Berrios, 2011; Marková & Berrios, 2006).
Ainda enquanto problema relacionado à terminologia, identifica-se a ausência de
equivalência entre os idiomas. Para além de correlatos em termos de palavras correspondentes,
percebe-se que, em alguns casos, inexiste termos na dimensão semântica, ou seja, não são
encontrados sinônimos que expressem em diferentes línguas o mesmo fenômeno. Como
exemplo, verifica-se que os termos insight e awareness não possuem equivalentes nas línguas
latinas (Marková & Berrios, 2006).
Nesse contexto, os termos insight (Arango & Amador, 2011), insight into illness
(Gerretsen et al., 2015), awareness (Clare, Marková, Verhey, & Kenny, 2005), self-awareness
(Medalia & Lim, 2004) e anosognosia (Lehrer & Lorenz, 2014) são todos encontrados em
estudos referindo-se à consciência dos indivíduos sobre a sua doença, inclusive, em alguns
casos, sendo tratados como sinônimos (Amador et al., 1994; Bourgeois, 2002).
62
É interessante notar que, para além da inexistência de consenso terminológico, não há,
igualmente, homogeneidade no que se refere ao papel da consciência de sua condição clínica e
seus impactos. Para alguns, os ganhos da reabilitação podem ocorrer sem a tomada de
consciência dos déficits por parte do indivíduo, mas sim por meio de atividades voltadas para
a aprendizagem e formação de hábitos. Em outra direção, estudos defendem que esta é decisiva
para o sucesso da reabilitação, já que a falta de percepção dos problemas pode comprometer a
busca de medidas para superá-los, bem como observam associação positiva entre a melhora na
conscientização dos déficits e bem estar emocional (Abrisqueta-Gomez, 2012; Hoerold et al.,
2008). Por fim, estudos argumentam que alterações nesta capacidade são comumente
associadas a impactos negativos nos tratamentos, no estabelecimento de objetivos, no
desenvolvimento de estratégias compensatórias, bem como diminuem a adesão ao tratamento
(Abrisqueta-Gomez, 2012).
No Brasil, os termos awareness, self awareness, e insight têm sido traduzidos de forma
indistinta por “autoconsciência” (Abrisqueta-Gomez, 2012). A análise pormenorizada destes
conceitos aponta a existência de uma pluralidade de modelos, o que por sua vez, implica em
distintos modos de avaliação dos mesmos.
Ownsworth e Clare (2006) consideram que self-awareness é a capacidade de
autorreflexão e de percepção de mudanças, sejam físicas, cognitivas, de comportamento ou de
personalidade. Hoerold et al., (2008) relacionam dificuldades de self-awareness ao déficit no
funcionamento executivo em diversos aspectos, associado ao funcionamento dos lobos frontal
e parietal, como demonstram estudos de neuroimagem.
Crosson et al., (1989) utilizam o termo self-awareness para se referir ao seu modelo
de pirâmide. Os autores apresentam três níveis para o seu desenvolvimento: o primeiro é o de
self-awareness intelectual, que diz respeito ao conhecimento básico dos déficits associados à
lesão cerebral e suas implicações, representando a habilidade do indivíduo para reconhecer suas
63
próprias limitações. Esse nível é a base para os outros dois, quais sejam, o de self-awareness
emergente, que diz respeito à habilidade para reconhecer os déficits, à medida que aparecem e
enquanto estão se manifestando; e o da self-awareness antecipatória, que é a capacidade de
prever dificuldades futuras e quando elas surgirão, em decorrência dos déficits (Abrisqueta-
Gomez, 2012).
Outro modelo, proposto por Toglia e Kirk (2000), utiliza também o termo self-
awareness, e relaciona psicologia cognitiva, psicologia social e neuropsicologia a aspectos
dinâmicos da autoconsciência. Os autores descrevem o que denominam metacognição
(metacognitive awareness), ou seja, o conhecimento sobre suas habilidades; e monitoramento
online (online awareness), que se associa a mudanças momento-a-momento na consciência de
si. O primeiro conceito pode ser relacionado à self-awareness intelectual, enquanto o segundo
se relaciona self-awareness emergente e antecipatória (Hoerold et al., 2008; Abrisqueta-Gomez,
2012).
Sohlberg e Mateer (2001) apresentam os estudos realizados por Stuss (1991), que
descrevem awareness como sendo a função cognitiva considerada mais superior, ligada à região
pré-frontal do córtex cerebral. Esse autor define o construto como a capacidade de
autorreflexão, sendo uma habilidade que interage com outros processos, permitindo ao
indivíduo funcionar adaptativamente em seu ambiente.
Langer e Padrone (1992) desenvolveram um modelo clinico para o estudo de
awareness em pacientes neurológicos, este integra fatores psicológicos/motivacionais com
fatores neuropsicológicos/cognitivos subjacentes ao construto. O modelo conceitua fontes da
falta de consciência dos déficits , que podem se dar: a) em decorrência da falta de acesso à
informação ou de limitada compreensão do problema – essa limitação pode ser trabalhada por
meio do processo de reabilitação, fornecendo informações e comentários sobre seus déficits; b)
relativa a um problema neuropsicológico relacionado ao entendimento de informações – nesse
64
caso pode-se trabalhar com o processamento de informações e a repetição como forma de
melhorar a aprendizagem; c) ser de origem emocional, se expressando através da negação ou
minimização dos déficits.
O termo insight é mais frequentemente utilizado em estudos referentes à consciência
em quadros de transtornos psiquiátricos ou neuropsiquiátricos. Amador et al. (1993) propõem
que insight é um construto multidimensional e complexo, que envolve uma variedade de
fenômenos.
Corroborando com a ideia de construto multidimensional, David (1990) propõe o
insight enquanto fenômeno composto por três dimensões distintas, mas sobrepostas. A primeira
diz respeito ao reconhecimento de que se tem uma doença mental; a segunda trata do
comprometimento com o tratamento; a última diz respeito à habilidade de reconhecer eventos
mentais (delírios e alucinações) como patológicos.
Marková & Berrios (2006), problematizam acerca dos diversos modelos de estudo do
insight, bem como a variabilidade nas formas de acesso a ele, apontando-os como um dos
fatores responsáveis pela inconsistência dos resultados de estudos sobre esse tema em diferentes
populações clínicas. Nesse sentido, os autores sugerem que por trás da problemática da ampla
variabilidade de terminologias, conceitos e de métodos de acesso, pode estar a abordagem de
fenômenos diferentes ao invés de um único construto.
Nesse sentido, fazem distinção entre os termos awareness e insight, ambos se
referindo ao conhecimento que o indivíduo possui acerca de sua condição e das características
desta, porém, defendem que tais termos não podem ter uso intercambiável. O primeiro termo
se relaciona a aspectos do nível de consciência da doença, de seus sintomas/características. O
segundo termo agrega ao primeiro dimensões distintas, de caráter subjetivo. Neste, estão
envolvidos construção de sentidos e significados para a sua condição clínica, para os valores
sociais desta condição no seu contexto de vida, bem como para as experiências de vida
65
associadas a ela. Tal construção tem base no conhecimento geral (informações midiáticas, de
livros e dos pares), experiências passadas (experiências subjetivas em relação a si mesmo e
outras pessoas; o grau a que a experiência subjetiva se relaciona ao conhecimento teórico), além
de ser atravessado por visões de mundo e perspectivas culturais. Nesse sentido, são requisitadas
elaborações na forma de julgamentos, atitudes, atribuição das características, entre outras
(Marková, 2005).
Os processos de insight têm inerente um caráter qualitativo que surge na elicitação do
fenômeno. Pede-se aos pacientes que julguem o que estão experienciando em termos dos
significados da sua condição e como isso pode afetar sua funcionalidade ou relacionamentos,
bem como possíveis implicações. Tais julgamentos não dizem respeito a características
objetivas do problema/condição ou experiência, mas do sentido pessoal construídos pelos
indivíduos para esta e, mais diretamente, como eles se relacionam com ela (Markova, 2005).
Dessa forma, têm-se o conceito de awareness enquanto fenômeno restrito e insight
enquanto fenômeno amplo, pois este último demanda julgamentos mais complexos, que vão
além do simples reconhecimento da presença de doença mental ou sintomas, englobando
também considerações complexas acerca da experiência subjetiva e de elaborações secundárias
a estas. Ressalta-se que o estudo do fenômeno de Insight na clínica pressupõe a existência de
Awareness, pois a elaboração complexa acerca da condição clínica individual, incluindo
atribuições causais, sentidos construídos a partir das experiências, dentre outras, só pode existir
quando se existe a percepção inicial da condição clínica (Marková, 2005).
Defende-se aqui que o processo denominado por Marková (2005) de insight não pode
ser considerado como produto individual, mas sim como construção dialógica de sentidos
Partindo-se de uma perspectiva histórico-cultural, o processo de insight pode ser considerado
uma função mental superior, uma faceta da consciência de si mesmo construída na interação
66
com os outros e mediada pela linguagem, pelos discursos. Nesse sentido, ressaltar a dimensão
social do insight implica na consideração das vozes sociais presentes neste.
A defesa que os fenômenos de awareness e insight são diferenciados implica na
proposição de distintos paradigmas de investigação, sendo o primeiro de cunho quantitativo
(presença ou ausência do conhecimento e níveis de conhecimento) e o segundo qualitativo
(sentidos e atribuições), exigindo, portanto, modelos condizentes com estas (Marková &
Berrios, 2011). Os paradigmas metodológicos mais utilizados para o estudo do insight se dão
por meio de medidas de autoavaliação e da avaliação realizada por um clínico ou pesquisador.
As primeiras tratam de expressões mais diretas da visão do sujeito e têm como
desvantagem não permitir elaborações mais abrangentes. Um exemplo desta forma é o uso de
filmes ou imagens nos quais o paciente deve reconhecer sintomas de terceiros em si mesmo.
(Mcevoy, Schooler, Friedman, & Umstead, 1993; Startup, 1997). A segunda forma tem a ela
subjacente a inferência de uma terceira pessoa, comumente o clínico ou pesquisador. Nesta, a
forma mais utilizada de avaliação são as medidas de discrepância, ou seja, através da
comparação entre as respostas do paciente, acerca de seus sintomas e impactos destes sobre as
atividades sociais, educacionais e laborais, e de outras pessoas próximas (Markova & Berrios,
1992; Sohlberg & Mateer, 2001).
Com fins de delimitação do fenômeno a ser abordado, o presente estudo
considerará as definições de Marková e Berrios (2011) para os conceitos de awareness e insight,
mantidos no original, aqui compreendidos simultaneamente enquanto o nível e a qualidade do
conhecimento que um indivíduo possui de uma condição ou forma de prejuízo, e o
entendimento das causas e impacto destes em sua vida (Drummond, 2013).
67
4.2 Insight, Awareness e Transtorno de Asperger
“Quando eu era criança e adolescente, eu pensava que todas as pessoas pensavam em
imagens. Eu não fazia ideia que meus processos de pensamento eram diferentes. Na verdade,
eu não me dei conta da dimensão das diferenças até bem recentemente”
Grandin (2008)
Apesar das diferenças e controvérsias acerca do estudo dos processos de insight na
psiquiatria, conceitualmente, se tem em comum que este refere-se à percepção do próprio
indivíduo acerca de mudanças decorrentes da sua nova condição. Isto é, percepção de alterações
na sua forma de funcionamento, seja pela perda de uma função (ex: falhas na memória, na
demência) ou ganho de experiências qualitativamente novas (ex: alucinações e delírios, na
esquizofrenia) (Marková, 2005).
No entanto, quando são abordados transtornos do neurodesenvolvimento,
diferentemente dos transtornos mentais citados anteriormente, a condição clínica atravessa o
desenvolvimento do indivíduo desde muito cedo, implicando numa forma de perceber e estar
no mundo que é qualitativamente diferente do desenvolvimento típico. Portanto, quando se fala
em percepção da condição clínica nestes contextos, como no caso do asperger, não se trata de
perceber uma alteração de funcionamento de uma condição anterior à atual patológica, mas de
uma percepção desse modo de funcionar, que o constituiu e que é diferente daquele considerado
típico.
Na perspectiva de Lombardo e Baron-Cohen (2010), no asperger os processos de
insight e awareness integram diversos aspectos conceituais do self. Nessa direção, pesquisas
realizadas com indivíduos do espectro autista, apresentam como resultados a identificação de
déficits em vários desses aspectos, tais como no autorreferenciamento e na compreensão sobre
eles próprios enquanto integrantes de contextos sociais.
68
Estudos de follow-up, realizados desde Leo Kanner (1973) e Lorna Wing (1981),
sugerem que a habilidade de indivíduos com TA para perceber que existem diferenças entre
eles e aqueles com desenvolvimento típico, bem como desenvolver estratégias para lidar com
elas, pode ser um importante preditor de bons resultados na sua adaptação social. Kanner (1971)
argumentou que o aumento de consciência de suas características e déficits leva o indivíduo
asperger à busca por mudança, construindo, para tanto, novas estratégias de ação.
De forma similar, o estudo exploratório de Drummond (2013) buscou compreender
como adolescentes com asperger caracterizavam a si mesmos, utilizando para tanto
instrumentos quantitativos e análises qualitativas. Seus resultados sugeriram que adolescentes
do espectro autista possuem consciência dos desafios associados ao seu diagnóstico, em
especial no que diz respeito a dificuldades sociais e adaptativas, e esses aspectos devem ser
considerados em propostas de intervenção.
Ainda sobre o referido estudo, é interessante notar que os indivíduos com TA não
apontaram a presença de diferenças entre eles e indivíduos com desenvolvimento típico no que
se refere à aparência física ou competência escolar. Entretanto, produziram relatos nos quais
destacam experiências negativas de estresse e autopercepção negativa, associadas às
dificuldades sociais e à presença de diferenças comportamentais em relação a seus pares. Para
a autora, possuir a consciência de seus déficits pode assumir configuração diversa. Por um lado,
pode ter efeitos positivos, corroborando com estudos que relacionam esse fator ao melhor
resultado em tratamentos, mas por outro, pode ser negativo, tendo sido associada ao
desenvolvimento de sentimentos de inaceitação social (Drummond, 2013).
Verhoeven et al (2012), hipotetizaram que indivíduos com TA possuiriam
dificuldades em diversas dimensões subjacentes ao conceito de insight, dentre elas destacaram
a autorreferência, principalmente quando associada aos déficits de memória autobiográfica.
Tais déficits gerariam dificuldades na codificação de memórias autorreferenciadas e maior
69
facilidade em acessar memórias de eventos das quais não estivessem diretamente implicados.
Como consequência da dificuldade de acesso às memórias referentes a si mesmos, esses
indivíduos apresentariam visões distorcidas de seu funcionamento no mundo.
Nessa direção, os autores ainda relataram resultados oriundos de observações clínicas
realizadas em outros estudos, a partir dos quais argumentaram que, embora indivíduos com
asperger possam ter conhecimento teórico sobre o transtorno, podem não perceber como ele se
manifesta em seu dia-a-dia. Essa falta de consciência, do que chamaram “comportamento de
mundo real” (self-awareness of real world behaviour), poderia prejudicar a eficácia das
intervenções a eles destinadas, pois enquanto os comportamentos atípicos não fossem
reconhecidos, existiria menor motivação para buscar ajuda.
Com base nas hipóteses anteriores, os autores realizaram estudo de caráter
longitudinal, com adolescentes asperger. O objetivo do estudo foi identificar a influência da
consciência do “comportamento de mundo real” sobre a eficácia das intervenções. Participaram
da pesquisa 28 adolescentes, com idade média de 17,7 anos, que estavam iniciando tratamento
num hospital especializado para a condição asperger, o qual contemplava atividades
direcionadas a seus pais e seus tutores do hospital. Por meio do uso de escalas e questionários,
aplicados no início e após um ano de tratamento, foram avaliadas a identificação dos sintomas
do asperger pelos adolescentes, seu nível de funcionamento social, problemas relativos a
alterações do “comportamento de mundo real”, problemas psicológicos autorrelatados e, por
fim, o nível de insight (self-awareness) no início e no final do tratamento, por meio da
comparação entre a percepção dos adolescentes e a dos seus pais (Verhoeven, Marijnissen,
Berger, Oudshoorn, Van Der Sijde, et al., 2012).
Os resultados gerais do estudo indicaram que a presença de nível mais elevado de
insight (self-awareness) no início do tratamento estava associado a melhor funcionamento
social, durante o período de um ano. Além disso, de acordo com os relatos dos pais, houve
70
associação positiva entre aumento de insight e diminuição de problemas no funcionamento
diário. No entanto, houve divergência entre o relato dos pais e o relato dos adolescentes, que
ressaltaram piora em seu funcionamento diário. Diante destes achados, os autores
problematizam se de fato haveria ocorrido uma piora no funcionamento social dos indivíduos
com asperger, ou se, anteriormente ao início do tratamento, eles não superestimavam seu
funcionamento, possivelmente associada à ausência de insight. Por sua vez, a melhora da
qualidade deste processo proporcionou uma autopercepção mais próxima da realidade
(Verhoeven et al., 2012).
Tais proposições podem ser relacionadas às questões levantadas por Didehbani et al.,
(2012). Estes realizaram estudo com o objetivo de investigar o insight em indivíduos com
asperger, com base no conceito de insight proposto por Marková e Berrios (2011), considerando
ainda as variáveis de estilo de atribuição social e externalizing bias (EB).
Entende-se por atribuição social a percepção pelo indivíduo de seu papel e das outras
pessoas em situações sociais. Sendo assim, a atribuição social inadequada poderia cursar com
dificuldades de insight no asperger, à medida que problemas ocorridos numa interação social
poderiam ser interpretados pelo indivíduo como culpa de outras pessoas envolvidas nesta
situação, sem reconhecimento de sua implicação para a mesma. Essa atribuição pode estar
associada também a EB, que diz respeito à atribuição de comportamentos ou dificuldades a
fatores externos, com tendência a não reconhecer a própria implicação (Langdon, Corner,
McLaren, Ward, & Coltheart, 2006).
A pesquisa foi realizada com 21 indivíduos com asperger e 24 indivíduos sem o
transtorno, compondo o grupo controle. Ambos os grupos foram formados com pessoas de
idades variando entre 18 e 34 anos. Foram utilizados como instrumentos, um questionário de
atribuição social e duas escalas destinadas à investigação do insight. De forma geral, os
resultados indicaram que o nível de insight (aqui compreendido como awareness) foi associado
71
ao estilo de atribuição social e à forma como indivíduos atribuem eventos negativos a eles
mesmos ou a outros. Entre os grupos não houve diferença entre EB, indicando que a atribuição
social ilusória não está presente somente na psicopatologia, mas também nos indivíduos com
desenvolvimento típico. Outra conclusão do estudo foi a associação entre maior insight no
asperger e características associadas, com maior tendência a atribuir erros a si mesmo em
situações sociais negativas e não aos outros. Em consequência disso, foi percebida diminuição
da autoestima (Didehbani et al 2012).
A investigação de insight também foi abordada sob a ótica da formação da
personalidade do indivíduo com asperger. Schriber, Robins, e Solomon (2014) realizaram um
estudo com o objetivo de investigar como a personalidade destes difere da de indivíduos com
desenvolvimento típico, e se existe a variação em termos do insight acerca de sua própria
personalidade. Na pesquisa, foi levantada a hipótese de que o desenvolvimento da
personalidade no asperger seria atípico. Também foi levantada a hipótese que esses indivíduos
não têm consciência dessas características peculiares e de como os indivíduos vêm a si mesmos.
O estudo supracitado foi realizado em duas etapas, considerando para tanto o Modelo
dos Cinco Fatores de Personalidade. A primeira etapa comparou autorrelatos acerca dos traços
de personalidade entre 37 adultos com asperger e 42 indivíduos com desenvolvimento típico.
Na segunda etapa foi investigado se as diferenças de personalidade observadas no estudo 1
podiam ser também identificadas em crianças e adolescentes, de acordo com autorrelatos e
relatos de pais sobre a personalidade de seus filhos. Ainda foram investigados os níveis de
insight dos sujeitos com TA asperger em relação aos de desenvolvimento típico, por meio do
exame da convergência dos autorrelatos com os relatos de pais (Schriber et al., 2014).
Os resultados da pesquisa sugeriram que indivíduos com asperger apresentam mais
traços neuróticos e menos de extroversão, amabilidade, escrupulosidade e abertura para
experiências. Tais resultados foram os mesmos para adultos, adolescentes e crianças. Em
72
relação ao insight acerca de suas características de funcionamento, foram observados níveis
equivalentes entre o grupo com asperger e o grupo controle (Schriber et al., 2014).
A heterogeneidade dos resultados dos estudos de insight para os indivíduos com
asperger, sugere a necessidade de maiores investigações sobre o tema, buscando uma melhor
compreensão acerca dos mecanismos que subjazem essa função, a forma como se apresenta,
bem como os significados construídos pelos indivíduos para a sua condição. Este em particular
demanda aprofundamento em termos de mecanismos e fatores que atravessam essa construção.
Dentre os estudos de insight encontrados, pôde-se concluir que a maioria se utiliza da
discrepância de informações enquanto dado para pensar, não só a presença ou não de
conhecimento acerca da condição clínica, mas também, para julgar a percepção e construções
de significados e a validade destas a partir da comparação com a percepção de alguém sem o
diagnóstico.
Para alguns estudiosos, as dificuldades supracitadas podem estar igualmente
associadas a alterações no funcionamento executivo. Nesse sentido, Drummond (2013) associa
as dificuldades na interação social e no entendimento de contextos sociais, bem como nas
dificuldades para a mudança de perspectiva, às características neuropsicológicas identificadas
no asperger. Para a autora, esses são dificultadores para os estudos acerca do entendimento dos
processos de awareness e insight.
5. Perguntas norteadoras e objetivos
73
O presente estudo teve como mote central a investigação de “Como é ser asperger?”,
considerando para tanto, como indivíduos diagnosticados significam esta condição. Para
responder à pergunta disparadora, o fenômeno de insight foi considerado como eixo norteador
(Markova e Berrios, 2011). Tal conceito é aqui compreendido como constituído por duas
dimensões complementares, a saber, o conhecimento que se tem do próprio diagnóstico
(awareness), bem como significados e sentidos construídos acerca deste.
Salienta-se que os significados dizem respeito ao conhecimento formal que os sujeitos
constroem sobre o Asperger, ou seja, a dimensão que é compartilhada com o meio cultural e
social no qual vivem, e que ofertam elementos para a identificação e entendimento conceitual
da síndrome. Por sua vez, compreende-se que, para além desta dimensão compartilhada, o
sentido traz a ele subjacente a interpretação do sujeito, a sua apropriação desses significados,
ainda que estes sejam construídos incorporando as vozes dos discursos social e biomédico.
Logo, trata-se de como estes interpretam as características apontadas como específicas do TA,
e consequentemente, como compreendem o diagnóstico, e o possível impacto deste nas suas
vidas.
Neste sentido, o objetivo principal da pesquisa foi investigar as especificidades do
processo de insight em adolescentes e adultos jovens com Transtorno de Asperger (TA).
Além disso, têm-se enquanto primeiro objetivo específico, a identificação de
características do TA em terceiros, no intuito de propiciar a reflexão sobre suas próprias
características por meio do reconhecimento de características semelhantes em terceira pessoa.
Por fim, como segundo e último objetivo específico, têm-se a identificação de
aproximações e distanciamentos entre as construções de sentido sobre o TA dos adolescentes e
jovens adultos e seus pais. Estes, enquanto relações mais próximas dos sujeitos da pesquisa,
oferecem ao mesmo tempo informações sobre características dos sujeitos que são percebidas
74
por terceiros, mas não por estes, e uma visão de como estas são significadas no contexto
familiar.
6. Aspectos Metodológicos
6.1 Teoria e construção dos procedimentos
A partir da diferenciação feita por Marková e Berrios (2011), entre o conhecimento
que o sujeito tem da sua condição (awareness), bem como os sentidos construídos para as
características associadas a ela e o impacto dessas no cotidiano, conclui-se que insight implica
necessariamente a dimensão do conhecimento formal acerca de determinada condição clínica,
mas igualmente as vivências e significados construídos pelo sujeito a partir desta.
Ressalta-se aqui que o conceito de transtorno incorpora fatores abrangentes em seu
significado. Logo, o insight de um transtorno do neurodesenvolvimento, como no caso da SA,
constitui-se com igual abrangência. A falta de marcadores biológicos faz com que julgamentos
acerca da presença ou ausência de um transtorno sejam constituídos por determinantes
históricos e culturais, a saber: visões prevalentes sobre o funcionamento psicológico e os
comportamentos aceitos como normais e o que a sociedade considera patológico; o lugar que
ocupa um diagnóstico em determinados grupos sociais, etc.
Tais aspectos variam ao longo do tempo, de maneira que condições consideradas
transtornos no passado perderam esse status, enquanto outras o adquiriram. Estes determinantes
não são necessariamente experienciados e refletidos pelo sujeito, no entanto, por serem
significados compartilhados socialmente, são co-constituintes do seu julgamento e percepções.
Dessa maneira, no julgamento sobre a própria condição, no caso, o TA, além da avaliação de
suas experiências, os indivíduos irão incorporar julgamentos acerca da legitimidade do
75
diagnóstico, influências de pares, da mídia, crenças, experiências passadas e o contexto cultural
no qual se insere. Ainda nesse sentido, o TA pode não ser experienciado necessariamente como
um transtorno, no sentido convencional do termo, caracterizado exclusivamente por aspectos
negativos, como já mencionado anteriormente (Markova & Berrios, 2011).
Dessa forma, compreender o desenvolvimento do fenômeno de insight demanda uma
investigação ampla e aprofundada, considerando diversos aspectos do entendimento do
indivíduo, seus conhecimentos formais, suas experiências e interpretações, que são
necessariamente contextualizadas cultural e historicamente, bem como atravessadas pelo seu
background educacional, pela mídia e por suas próprias experiências passadas, bem como pelas
vozes de familiares e amigos. A natureza de tal investigação faz necessária a abordagem
qualitativa do fenômeno de insight (Marková & Berrios, 2011).
Nesse sentido, a fim de realizar os objetivos propostos, optou-se pela abordagem de
estudo de caso multicasos, definido por Yin (2015)como uma abordagem de pesquisa que
investiga um fenômeno contemporâneo em profundidade e em seu contexto de mundo real,
especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não são claramente evidentes.
A abordagem de estudo de caso pode ser compreendida como estratégia de pesquisa
em que um fenômeno é investigado de maneira exaustiva e onde os resultados obtidos permitem
um conhecimento amplo e detalhado do mesmo. Ela permite abarcar características de eventos
do presente sobre os quais o pesquisador tem pouco controle.
Inicialmente, o delineamento metodológico da pesquisa contemplou a realização de
atividade inspirada na técnica de entrevista clínica de Instrução ao sósia (Clot, Vianna, &
Teixeira, 2010). O método clínico de investigação proposto por Clot tem como base teórica a
psicologia histórico-cultural de Vygotsky, destina-se à investigação da experiência humana,
com foco na atividade laboral.
76
Clot et al. (2010) aponta que a experiência anteriormente vivida, associada ao
desenvolvimento de funções psicológicas superiores, não pode ser atualmente acessada, pois a
ação que se exerce para alcança-la, necessariamente a afeta e transforma, originando uma
experiência distinta da original. Assim, a vivência e a consciência só podem ser observáveis em
seus desenvolvimentos, não enquanto produtos, estados ou estruturas estáticas, mas sim,
enquanto processos que fazem e refazem essas formas mutantes.
Isso posto, Clot et al. (2010) propõe que uma das formas de investigação dos processos
de tomada ou ampliação de consciência, e aqui podemos estender para o insight, é possibilitar
ao sujeito refletir sobre suas possibilidades e reorganizar sua atividade, interpretando e
modificando-a. O autor refere-se à necessidade do sujeito de refletir sobre sua própria
experiência para promover ressignificação e empoderamento.
Em um paralelo com o Transtorno de Asperger, acredita-se que a reflexão do sujeito
acerca de suas experiências, características, comportamentos e interpretações - enquanto
existindo em uma condição singular, qualitativamente diferente - é uma via que possibilita o
empoderamento destes. Para Vygotsky (2003), a consciência de si seria o desdobramento do
vivido, o revivido que inaugura a vivência de outra coisa.
Logo, circunscreve com rota alternativa de investigação o uso dos meios indiretos para
elicitar essas reflexões, julgamentos e a construção de sentidos. Nesse sentido, o sósia é um
meio deslocado de entrar em contato consigo mesmo, que possibilita a reflexão sobre a sua
condição, potencialmente promovendo o desenvolvimento do insight, à medida que se descreve
e representa para um outro os seus significados e sentidos particulares.
Assim, os procedimentos de investigação do insight no presente estudo iniciaram com
uma atividade inspirada na técnica de Clot et al. (2010) de Instrução ao Sósia, conforme
detalhado a seguir. A estrutura das atividades que compõem o método desta pesquisa teve como
objetivo criar um contexto facilitador para a construção de significado (dimensão clínica),
77
condizente com a concepção genética de desenvolvimento subjacente ao estudo. Para esta, as
funções psicológicas superiores precisam ser investigadas processualmente, e não enquanto
produto, sendo necessário, portanto, um método de estudo que favoreça o desenvolvimento das
funções psicológicas superiores (Veresov, 2014).
Para Valsiner (1997), seguindo a linha de pensamento inaugurada por Vygotsky, no
intuito de analisar o desenvolvimento enquanto processo é necessário investigar as
transformações ou processos de mudança que se desdobram em curto espaço de tempo
(microdesenvolvimento). A partir do estudo do microdesenvolvimento as mudanças podem ser
acessadas ao longo da trajetória que conduz à aquisição destas habilidades. Assim, o
microdesenvolvimento, investigado a partir de estudos de caso, permite identificar a
variabilidade de trajetórias traçadas por diferentes indivíduos para adquirir uma mesma
habilidade ou função, destacando tanto aspectos comuns como particularidades desses
indivíduos ao longo do processo de desenvolvimento (Silva, 2010).
Góes (2000) apresenta a proposição de Wertsch (1985) para a definição da análise
microgenética. Para o autor, esta envolve o acompanhamento minucioso da formação de um
processo, detalhando as ações dos sujeitos e as relações interpessoais dentro de um curto espaço
de tempo. Esse tempo, porém, não é pré-determinado por critérios específicos. Goés (2000)
aponta que o termo “micro” não se refere necessariamente à duração do evento, mas à
orientação pelas minúcias indiciais, daí sendo demandados recortes de tempo curtos, que
permitam a análise. A autora sugere ainda que a análise é considerada genética por ser histórica,
no sentido de enfocar o movimento durante processos, relacionando condições passadas e
presentes, bem como influências de projeções futuras. Esse tipo de análise valoriza o singular,
ao qual busca relacionar com outros planos da cultura, das práticas sociais, dos discursos
circulantes, das esferas institucionais. Assim, privilegia-se o singular, mas não se abandona a
78
totalidade, pois esse modelo epistemológico busca a interconexão de fenômenos na busca da
compreensão desta totalidade (Góes, 2000).
6.2 Procedimentos e operacionalização
A pesquisa caracterizou-se como estudo multicasos, de caráter qualitativo
exploratório. A operacionalização dos objetivos propostos se deu por meio do seguinte arranjo
operacional:
Participantes
Participaram do estudo três sujeitos com idades entre 15 e 20 anos, com diagnóstico
prévio de Transtorno de Asperger, sendo esse um pré-requisito estabelecido para a participação.
Além deste, foi requisito que todos os participantes tivessem conhecimento acerca do seu
diagnóstico há pelo menos cinco anos, tempo este considerado suficiente para a construção de
sentidos e experiências vivenciais sob a condição do diagnóstico clínico.
A escolha dos participantes foi feita por conveniência. Dois deles haviam sido
avaliados pelo Laboratório de Pesquisa e Extensão em Neuropsicologia da UFRN, do qual
fazem parte as pesquisadoras. O outro é integrante de um programa da UFRN, destinado a altas
habilidades no domínio da tecnologia da informação, coordenado pelo LAPEN.
As atividades que compuseram o estudo ocorreram em diferentes locais, de acordo
com a disponibilidade dos sujeitos. Estas foram áudio-gravadas, após autorização dos sujeitos
e seus responsáveis, quando necessário.
Aspectos éticos
Este estudo seguiu a recomendação do Conselho Nacional de Saúde, através da
Resolução N° 466/2012, que estabelece as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas
envolvendo seres humanos. A execução do projeto foi aprovada pelo Comitê de Ética em
79
Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CEP- UFRN) (CAAE
51838515.5.0000.5537). Aos participantes foi assegurado o anonimato de sua identidade e
esclarecidas as informações pertinentes aos objetivos e etapas da pesquisa. Após tais
esclarecimentos, todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido (TCLE) ou Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE), bem como termos
de autorização de gravação de áudio.
Salienta-se que para garantir o anonimato dos sujeitos serão utilizados pseudônimos
para referir-se a cada um deles. Os pseudônimos foram escolhidos a partir dos temas de
preferência e interesse relatados pelos participantes à pesquisadora.
Etapas: Tarefas e Procedimentos
Antes do início da realização das tarefas constituintes do estudo, a pesquisadora
realizou encontros individuais com os participantes, cujo objetivo foi o de conhecer cada um
deles e apresentar a proposta da pesquisa, detalhando os seus objetivos e atividades, culminando
com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido ou Termo de Assentimento
Livre e Esclarecido.
Aos sujeitos foi dada a seguinte explicação:
“Nós pesquisadores estudamos o transtorno de asperger. Lemos muitas coisas como
livros e artigos científicos, mas chegamos à conclusão que pessoas que têm TA são os
verdadeiros experts nisso, pois eles podem dizer o que é e como é ter TA. Por isso que
procuramos você, para entendermos melhor o asperger e ajudarmos pessoas que têm esse
diagnóstico”.
a. Etapa 1
80
A primeira tarefa proposta aos sujeitos teve como objetivo a investigação dos
processos de insight. Iniciou-se com a produção de uma narrativa acerca da questão que norteia
o estudo: “Como é ter transtorno de asperger?”. Como estratégia facilitadora da produção
narrativa, recorreu-se à mediação do personagem Oh, do filme “Cada um na sua casa” da
empresa Dreamworks. Foi exibido aos sujeitos a cena inicial do filme, na qual o personagem
vem de outro planeta habitar a Terra e precisa conviver com seres humanos. Para tanto, ele
recebe um panfleto que funciona como “manual de instruções” sobre os humanos, mas que
contém pouquíssimas informações.
Isso posto, apresentou-se aos participantes uma situação ficcional na qual o Oh, um
dos extraterrestres recém chegados ao planeta Terra, teria conhecido pessoas que tem TA e,
como alguém de outro planeta e sem conhecimentos terrestres, ele não conseguia compreender
o que seria isto. Nesse momento, foi afirmado que os sujeitos diagnosticados com TA seriam
os especialistas no assunto. Dessa forma, solicita-se ao sujeito da pesquisa que explique ao Oh
como é ter TA, o que é isso, como isso afeta seu dia-a-dia e como faz ele se sentir. O uso de um
boneco do referido personagem (Figura 1), substituindo o entrevistador e mediando a atividade
foi pensado no intuito de facilitar a produção da narrativa, considerando a característica de
dificuldade no âmbito da interação e comunicação social típica do perfil de funcionamento de
indivíduos com TA.
81
Figura 1: Oh recebe o panfleto explicativo
b. Etapa 2
Após a produção da narrativa inicial, foi realizada entrevista semi-estruturada
adaptada do modelo desenvolvido por Drummond (2013), constituindo-se de dois momentos
subsequentes. O primeiro objetivando investigar aspectos relacionados à dimensão de
awareness do insight, ou seja, o conhecimento que os sujeitos têm do TA.
Em sequência, foi proposta nova atividade com dois objetivos complementares, a
saber, a capacidade de identificação de características do TA em terceiros, que por sua vez,
serviu de facilitador para o segundo objetivo que foi a produção de sentidos para as próprias
vivências dos sujeitos em relação ao TA. Para esta atividade foi realizada inicialmente a
apresentação de trechos de episódios da série televisiva americana de comédia The Big Bang
Theory, criada pelos diretores e produtores Chuck Lorre e Bill Prady, exibida no Brasil pelo
canal Warner Channel.
A série retrata o dia-a-dia de quatro amigos (Leonard, Sheldon, Wolowitz e Rajesh)
que são considerados gênios acadêmicos, mas vivenciam grandes dificuldades em suas
relações sociais, envolvendo-se em situações que podem ser consideradas cômicas. Integram
ainda o conjunto de personagens, Penny, vizinha de apartamento de Sheldon e Leonard, que
moram juntos; Amy, neurocientista e namorada de Sheldon; e Bernadette, farmacêutica e
esposa de Wolowitz.
82
Figura 2. Personagens da série. Da esquerda para a direita temos Bernadete, Wolowitz,
Rajesh, Penny, Sheldon, Leonard e Amy.
Na série o personagem Sheldon, apresenta conjunto de características, para além das
dificuldades sociais. Estas aproximam-se de perfil sugestivo do diagnóstico de asperger, sendo
representadas de diversas formas ao longo da série, problematizadas pelo próprio personagem
e seus amigos, em diferentes situações.
As 14 cenas descritas a seguir foram selecionadas, a partir de diferentes episódios da
série, com base nos critérios diagnósticos estabelecidos no DSM-IV TR e na Escala
Diagnóstica de Autismo ADIR-R. Estas são exemplos representativos de comportamentos
tipicamente associados ao TA. Ao final de cada uma delas foi pedido que os sujeitos
comentassem sobre possíveis relações entre as cenas e o TA.
CENAS ESCOLHIDAS
CENA 1 – Sheldon conforta Leonard
83
Leonard está triste após um conflito com Penny e Sheldon faz chá para confortá-lo,
pois ele diz que é uma convenção cultural oferecer uma bebida quente às pessoas quando elas
estão chateadas. Depois ele pergunta se Leonard quer conversar, esse diz que não e ele suspira
aliviado e diz: “Que bom!”, verbalizando seu alívio por Leonard não querer conversar. Essa
cena retrata a rigidez cognitiva e limitação das respostas sociais, bem como as dificuldades de
interação.
CENA 2 – Penny está dormindo no sofá e Sheldon quer sentar
Penny passa a noite dormindo no sofá de Sheldon e Leonard e, pela manhã, Sheldon
tenta seguir sua rotina, que envolve comer cereal sentado no sofá, e não pode porque Penny
está lá. Ele fica sem saber o que fazer e estava próximo de sentar em cima de Penny, quando
Leonard aparece e o manda parar. Sheldon então diz: “ Todo sábado, desde que moramos
nesse apartamento, eu acordo às 6.15h, preparo uma tigela de cereais, adiciono um quarto de
xícara de leite 2%, me sento desse lado do sofá, ligo a TV na BBC América e assisto Dr.
Who”. Leonard tenta argumentar e Sheldon repete novamente a frase descrita acima. Essa
84
cena reflete a presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento, bem como a
dificuldade com mudanças na rotina.
CENA 3 – Os quatro amigos vão a um restaurante e não conseguem pedir a comida
Sheldon, Leonard e Rajesh vão ao restaurante chinês onde tradicionalmente jantam.
No entanto, sempre levam com eles seu outro amigo, Wolowitz, que neste dia não está
presente. Sheldon então anuncia um problema: “ Me desculpem, não podemos fazer isso sem
Wolowitz... Nosso pedido inteiro é baseado em quatro bolinhos e quatro entradas divididos
entre quatro pessoas”, e aponta para o lugar vazio ao seu lado. Essa cena, de forma semelhante
à Cena 2, caracteriza a presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento, bem
como a dificuldade com mudanças na rotina.
CENA 4 – Sorriso de Sheldon
Wolowitz, Leonard e Sheldon se dirigem à sala de Rajesh para lhe dar parabéns por
uma descoberta científica, apesar de não estarem completamente satisfeitos, pois acham que
85
também mereciam o crédito. Leonard destaca que eles devem mostrar que estão felizes pela
conquista, mas Sheldon verbaliza: “ mas eu não estou!”. Os amigos então pedem que ele finja
e ele pergunta então o que deve fazer. Wolowitz pede que ele sorria e imediatamente ele
esboça um sorriso artificial e inadequado para o contexto (Figura XX) Essa cena faz referência
a dificuldades na interação e comunicação social, considerando o uso e entendimento de
expressões faciais e de contextos sociais.
CENA 5 – Presente de natal para Penny
No natal, Penny presenteia Sheldon com um guardanapo autografado por um ator de
Star Trek, sua série de filmes favorita. Sheldon então compra uma grande quantidade de
presentes, mas ainda assim considera-os insuficiente e termina, apesar de toda a dificuldade,
dando um abraço desajeitado em Penny, o que leva o espectador a inferir que este
comportamento social é reconhecido por ele como expressão máxima de agradecimento e
afeto, mas não faz parte de seu repertório usual, levando Leonard a referi-lo como um milagre.
Essa cena faz referência a dificuldades na interação e comunicação social, notadamente em
termos da expressão adequada de afeto.
CENA 6 – Empréstimo de dinheiro a Penny
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Penny vem correndo pelas escadas do prédio e encontra Sheldon abrindo a porta de
seu apartamento. Ela entra correndo no apartamento pedindo que ele feche a porta, então ele
a deixa entrar e fecha a porta, ficando do lado de fora. Ela sai e explicita que ele deveria entrar
com ela e fechar a porta.
Penny então coloca o ouvido na porta, como se estivesse tentando ouvir o que se
passa do lado de fora. Sheldon repete o gesto e diz: “ Desculpe, não entendo que situação
social é essa. Pode me dar algum guia de como proceder?”. Penny então conta que está
devendo dinheiro do aluguel e Sheldon empresta.
Em outra cena, Penny entra no rol do prédio, onde estão Sheldon e Leonard, que
perguntam como ela vai. De forma irônica ela diz que está muito bem e deseja ser garçonete
pelo resto da vida. Sheldon então pergunta a ela se aquilo era sarcasmo, e ela sarcasticamente
afirma que não. Ele então se dirige a Leonard e pergunta se aquela nova resposta é sarcasmo
e a própria Penny afirma que sim. Ela então pega uma encomenda que havia chegado pelo
correio e se dirige a Sheldon de forma agressiva, antecipando um possível questionamento de
87
cobrança por parte dele, uma vez que ela lhe devia dinheiro. Ele se diz perdido, sem saber o
porquê daquele padrão de comportamento e pede ajuda a Leonard que diz que ele deve ter
feito alguma coisa para irritá-la. Em outro momento, Penny está de forma carinhosa e
agradecida devolvendo a Sheldon o dinheiro que pegou emprestado. Ele então pergunta se ela
está sendo sarcástica, pois ele interpreta o empréstimo de dinheiro como o motivo gerador da
raiva, logo o agradecimento seria uma ironia. Essa cena faz referência a dificuldades na
comunicação social, considerando o entendimento de situações sociais e do uso da linguagem
pragmática em diferentes contextos (ex: sarcasmo).
CENA 7 – Conversa desconfortável
Sheldon está conversando com Penny e lhe faz uma pergunta pessoal sobre sexo. Ela
afirma que não gostaria de falar sobre isso com ele. Ele então pergunta se isso a incomoda e
ela diz que: “ claro eu isso me deixa desconfortável, você não consegue perceber?”. Ele então
responde: “ Não faço a mínima ideia. Eu não sou particularmente bom em ler expressões
faciais, corporais...” Penny interrompe e gritando olha nos olhos de Sheldon e diz: “ Eu estou
desconfortável Sheldon!”. Ele finaliza agradecendo e dizendo que foi muito útil. Essa cena
faz novamente referência a dificuldades na comunicação social, considerando dificuldades no
entendimento de situações sociais, reconhecimento de expressões faciais e uso da linguagem
pragmática (ex: tom de voz).
CENA 8 – Decifrando expressão facial de Rajesh
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Rajesh chega na mesa do almoço claramente com uma cara de tristeza e Sheldon se
desculpa e diz que não sabe interpretar muito bem expressões faciais, mas pergunta a Raj se
a sua seria de tristeza ou náusea. Raj responde que está triste. E Sheldon verbaliza: “ Ia dizer
triste! Não sei porque hesitei!”. Essa cena referencia dificuldades na comunicação social,
considerando o entendimento de situações sociais, sentimentos e suas associação com
expressões faciais.
CENA 9 – Abraço na lavanderia
Penny deixa que Sheldon ganhe algo que queria bastante e este fica tão feliz que a
abraça, mas diz: “ Já que raramente eu dou abraço, confio na sua expertise para determinar a
duração do abraço”. Ela diz que eles já estão lá e ele então suspira aliviado e sai correndo. A
cena aborda dificuldades na adequação da execução de comportamentos socialmente
esperados na condição de expressão de afeto.
CENA 10 – Sheldon e Leonard se conhecem
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Esta cena remonta ao passado, quando Leonard e Sheldon se conhecem. Nela
podemos ver um Sheldon mais novo, que possuía dificuldades de olhar nos olhos, já tinha um
local definido para sentar na sala, era bastante literal e não compreendia piadas. Nessa cena,
mais longa, diversos aspectos podem ser observados, relacionados a dificuldades na interação
social (ex: olhar nos olhos, compreensão de linguagem pragmática) e existência de padrões
restritos e repetitivos de comportamento (ex: rigidez com regras da casa e preferências).
CENA 11 – Ofensa a Penny
Sheldon está conversando com Penny e a ofende. Penny então diz que vai deixar
passar esse insulto. Ele pergunta: “ Que insulto?” e ela diz que é justamente por isso que não
vai considerar. Essa cena faz referência a presença de dificuldades em âmbitos sociais
relacionadas à compreensão de sentimentos de terceiros.
CENA 12 – Funeral
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Amy e Sheldon vão a um funeral e Amy precisa treinar com Sheldon as emoções que
ele deveria estar expressando, para que ele não aja de modo inadequado. Ela faz perguntas
acerca de contextos sociais específicos e ele de forma automática, demonstrando que decorou
as respostas, diz qual a emoção correspondente. Essa cena aborda a presença de dificuldades
no entendimento de situações sociais e comportamento inadequado à situação social.
CENA 13 – Garoto especial
Sheldon está de férias, então Raj o leva para seu trabalho para distraí-lo por um tempo
com alguma tarefa difícil, no entanto, em poucos segundos ele resolve um problema que todos
os outros cientistas demoram horas para resolver e impressiona Raj. Este lhe pede que diga o
que fez para resolver o problema. Sheldon então faz referência à sinestesia: “Sabe quando
você vê números primos aparecerem em vermelho, mas quando são gêmeos primos ficam rosa
e cheiram a gasolina?”. Raj diz que não e Sheldon então diz que ele deve ser um garoto
especial. Essa cena faz referência a presença de alterações sensoriais e cognitivas
91
características do autismo, bem como a possibilidade de associação deste a uma inteligência
superior á média.
CENA 14 - Experimento com Penny
Sheldon e Penny estão realizando um experimento da psicologia no qual eles têm que
passar o dia juntos respondendo a perguntas sobre si, mas é uma exigência que sejam sinceros.
A primeira pergunta é qual a habilidade que eles escolheriam para ter se pudessesem escolher.
Penny brinca e diz que gostaria de transformar água em vinho. Sheldon reage e diz que ela
está usando o humor para evitar a vulnerabilidade emocional. Ela então diz que gostaria de
ser tão inteligente quanto ele. E Sheldon diz que gostaria de possuir o tipo de inteligência que
ela tem e que ele nomeia como a capacidade de ler mentes, pois assim ele saberia o que as
pessoas pensam ou sentem, já que para ele isso é muito difícil, levando-o a interpretar mal as
situações sociais. Nessa cena, Sheldon fala abertamente sobre suas dificuldades para
compreender e interpretar corretamente sentimentos e situações sociais.
Ao final da apresentação de todas as cenas, foi perguntado aos participantes se eles
se identificavam com alguma característica de Sheldon. Posteriormente, foram feitas
perguntas acerca dos seus sentimentos e vivências relacionadas ao TA, conforme descrito no
Anexo I. Em seguida, foi solicitado que os sujeitos apresentassem um conselho que dariam a
outro adolescente ou jovem adulto que acabou de receber o diagnóstico de TA, bem como
para os pais desses. Por fim, eles foram questionados sobre como foi participar da entrevista.
92
c. Etapa 3
A investigação de insight quando realizada também por outros informantes próximos
ao indivíduo proporciona o acesso a novas interpretações acerca de possíveis dificuldades
(Didehbani et al., 2012). Logo, a última etapa do presente estudo consistiu na realização, por
parte de um dos pais, da mesma atividade desenvolvida pelos sujeitos com TA. Para estes, foi
realizada a atividade em apenas uma sessão. Eles assistiram a mesma cena inicial com o
personagem Oh e lhes foi solicitado que fizessem o mesmo exercício de contar “como é ter TA”
ao personagem, mas falando a partir do que consideravam a perspectiva de seus filhos,
colocando-se no lugar destes.
Adicionalmente, foi realizada entrevista similar àquela realizada com seus filhos, na
qual solicitou-se que eles respondessem, como se fossem seus filhos, aos aspectos explorados
sobre o conhecimento, comportamentos e características do TA, bem como impactos deste no
dia-a-dia. Ressalta-se que a escolha do informante foi realizada pelos sujeitos da pesquisa, estes
escolheram alguém próximo a eles para participar desta etapa e a escolha destes pelo pai ou
mãe foi espontânea.
Ressalta-se que a estrutura das atividades supracitadas foi organizada em etapas que
permitiram aos sujeitos entrar gradativamente em contato com a condição clínica do TA. Para
tanto, partiu-se de conhecimentos mais formais até chegar à produção narrativa de vivências
individuais. Acredita-se que esta estrutura cumpre com o seu papel clínico, atuando como
facilitadora do desenvolvimento de insight.
Análise dos Dados
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Hartley (2004) sugere que a realização de estudo de caso único ou multicasos
possibilita ao pesquisador esclarecer questões de determinados fenômenos a partir da análise
dos contextos ou processos que o constituem. Quanto ao segundo tipo, de estudos multicasos,
é possível construir um conjunto de conclusões de “cross-case” ou de relações e aspectos
comuns aos casos. Sendo o estudo de caso uma estratégia de pesquisa, existe a possibilidade de
utilização de métodos variados, não sendo os métodos que o definem, mas sim a orientação
teórica e interesse em casos individuais (Hartley, 2004). O arcabouço teórico que subsidia a
presente pesquisa é o referencial teórico histórico-cultural, que tem a perspectiva genética como
alternativa de construção e análise de dados (Góes, 2000).
Neste método de análise o objetivo maior está na proposição de discussões e explicações
sobre o processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores dos sujeitos
estudados. Este não visa a formular uma lei geral, bem como não toma o produto como foco
da análise. Porém, é possível fazer generalizações na medida em que a pesquisa qualitativa
transita entre o específico e o geral do desenvolvimento humano, uma vez que o indivíduo
tem uma trajetória e história que lhe são peculiares, mas é ao mesmo tempo, um indivíduo
construído a partir do discurso social sobre determinada patologia, inserido em uma
sociedade e um contexto pertencente à espécie humana que compartilham planos de
desenvolvimento comuns, a saber, a sociogênese e a filogênese (Pino, 2005; Vygotsky,
2013).
A análise dos episódios que compuseram o método deste estudo se deu a partir das
produções narrativas de cada uma das sessões, abarcando os seguintes eixos temáticos: 1) o que
é o Transtorno de Asperger; 2) Identificação do Transtorno de Asperger em outras pessoas; 3)
Sentidos e Significados do Transtorno de Asperger para pais e filhos: ecos de vozes e
percepções. Nesses episódios foram considerados os elementos que possibilitaram a discussão
acerca do TA em função de três domínios: cognitivo, social e afetivo. O âmbito cognitivo diz
94
respeito às associações e menções que os sujeitos fazem ao funcionamento cognitivo no TA.
Os aspectos sociais têm relação com as experiências no âmbito da socialização. Por fim, os
aspectos afetivos se relacionam ao lugar que a experiência asperger tem em suas vidas, bem
como as vivências e sentimentos atrelados a ela.
7. Resultados
7.1. Os estudos de caso
Nesta seção serão apresentados os resultados, primeiramente, em relação a cada estudo
de caso, precedidos de uma contextualização das histórias individuais.
Ressalta-se que em diversos momentos no texto o diagnóstico de Asperger é referido
como Síndrome de Asperger (SA). Tal uso se justifica devido aos sujeitos adotarem essa
nomenclatura para o seu diagnóstico, de forma que se optou por preserva-la.
a. John
John é o primeiro nome de J.R.R. Tolkien, famoso escritor inglês, considerado um dos
maiores escritores de fantasia e ficção. Tolkien foi responsável por criar em seus livros um
mundo à parte da realidade, a Terra Média, cujos personagens e histórias inspiram o dia a dia
de leitores e outros artistas, dos anos 50 até os dias atuais. O autor fez ilustrações da Terra
Média, que são capa de algumas edições de seus livros,
Esse nome foi escolhido para este participante devido ao seu grande interesse na
literatura fantástica e em criaturas mitológicas, sobre as quais tem vasto conhecimento, além de
suas habilidades na escrita e desenho. Muito imaginativo, ele escreve e ilustra contos e histórias
acerca dessas temáticas. John diz já ter escrito um livro, mas não gosta de mostrar suas histórias.
95
John é um jovem adulto, do sexo masculino, estudante do ensino superior na área das
ciências exatas e tecnologia. No momento da realização da entrevista tinha 20 anos e 5 meses.
Ele relata possuir o diagnóstico de Transtorno de Asperger desde a infância e lembra de
conviver com esse diagnóstico desde muito cedo. John nunca realizou avaliação formal
diagnóstica, mas seu pai - a quem John sugeriu como respondente da entrevista com familiares
ou pessoas próximas – dia que, como médico, percebeu as características do filho desde o início
de seu desenvolvimento e buscou intervir desde cedo. Além do TA, John também apresenta
características de altas habilidades, sendo estas relatadas por ele, seus pais, professores.
Foram realizados dois encontros com John, estes aconteceram na sala da psicologia no
prédio onde ele cursa a graduação, sempre ao final das aulas. Logo no primeiro encontro ele
demonstrou bastante interesse em participar da pesquisa, querendo explicar rapidamente o que
era TA e o que já tinha pesquisado sobre o assunto. John estabeleceu bom vínculo com a
pesquisadora, compartilhando desde o início seus interesses e experiências. Apesar disso, foi
observado que nesse encontro John parecia bastante ansioso, falando com a voz entrecortada,
como se buscasse por oxigênio. Questionado sobre isso, John disse ser comum acontecer isso
quando ele conversa com pessoas novas, pois ele fica nervoso. No encontro seguinte esta
característica já não esteve presente.
O que é ser Asperger
Episódio 1
1. J: Bem...eu não cheguei a pesquisar exatamente o que que é uma SA, mas isso dá
pra perceber porque em algumas vezes eu não consigo me relacionar direito socialmente... o
mínimo que seja...e quando eu vou conversar com alguma pessoa as vezes eu não...eu tenho
que terminar o conteúdo que eu tô dizendo pra deixar ele falar.
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2. E: Hum
19. J: E também...eu tenho que ter um pouco de desvio de atenção e quando aí as
coisas desviam...também são coisas que logicamente não teriam importância, como mexer
numa caneta e girar um peão ou então ver um negócio oscilando...
20. E: Essas são coisas que desviam sua atenção?
21. J: ...sim...
22. E: Que mais que você percebe e acha que é (da SA) e conhece?
23. J: Não dá pra explicar isso muito direito do que eu sei agora, mas a primeira a
pessoa que me diagnosticou...o nome da pessoa que diagnosticou que eu tenho asperger foi um
cara chamado M que também tinha um pouco e gostava muito de ...eu gosto muito de fazer
algumas coisas padronizadas e tipo o...se eu des...se alguém desmontar o avião de lego que
tenho lá em casa eu vou lá e monto de novo...tipo...eu quero que aquilo seja de um jeito, crio
regras para algumas coisas
24. E: Certo
25. J: Também...eu não sou...uma pessoa asperger ou autista nunca vai se dar bem
com RPG de mesa, porque eu acho que é uma coisa que dá pra identificar porque eu tenho
tendo...eu sou daquele tipo que fica imaginando as coisas e aí as vezes a imagem...eu me
distraio com a imaginação e o jogo fica chato e...algumas coisas que eu vejo eu só lembro de
algumas imagens que elas me ajudam a decifrar algumas coisas.
26. E: Hum
27. J: Tipo você visualiza linhas e códigos dentro de um jogo, pode querer visualizar
linhas e códigos dentro de um jogo ou então você pode lembrar de algum de algum detalhe que
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você tenha perdido antes apenas batendo o olho ou pior...você representa tudo que vê e tudo
que entende através de imagem.
28. E: Você faz isso?
29. L: Faço também.
A partir das definições de John é possível discernir que ele reconhece ter características
diferentes de outros indivíduos e associa isso ao diagnóstico de TA. Além disso, estas
características são estranhas desviantes do perfil socialmente esperado. Isto se evidencia quando
ele afirma ter um “desvio de atenção” no turno 19, dizendo que sua atenção se volta para “coisas
que logicamente não teriam importância”. O uso da palavra logicamente remete a existência
de um comportamento “lógico”, coerente, e outro que foge da lógica, sendo assim, diferente.
Ainda na fala de John nesse episódio pode-se perceber que as características que ele
descreve se associam aos critérios e definições que a literatura aponta como comuns a esse
grupo clínico, referentes a características de funcionamento cognitivo e social diferentes. Logo,
isto sugere que ele tem conhecimento das definições formais médico-científicas acerca do TA.
Porém, para além desse conhecimento formal, nesse episódio evidencia-se a presença no
discurso de John de suas interpretações acerca das características associadas ao TA,
representadas pelas associações que ele faz destas ao seu próprio modo de funcionamento e
como isso impacta o seu dia-a-dia.
No âmbito social, John aponta no turno 17 o que é para ele a dificuldade social,
especificando o sentido desta para ele em “e quando eu vou conversar com alguma pessoa as
vezes eu não...eu tenho que terminar o conteúdo que eu tô dizendo pra deixar ele falar”. No
entanto, no âmbito cognitivo é que John identifica mais características. Isso pode ser observado
no turno 23, quando fala de padrões restritos de comportamento, que em sua experiência traduz
como: “se eu des...se alguém desmontar o avião de lego que tenho lá em casa eu vou lá e monto
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de novo...tipo...eu quero que aquilo seja de um jeito, crio regras para algumas coisas”. John
ainda se refere ao seu funcionamento atencional no turno 19, quando diz ter “um pouco de
desvio de atenção”.
Episódio 2
O segundo episódio selecionado ocorre após a atividade com o personagem
extraterrestre do filme Cada um na sua casa. Nesse momento da entrevista as perguntas são
voltadas para o conhecimento de John sobre o TA.
1. E: Então se você tivesse que explicar pra alguém que não faz qualquer ideia do
que é isso, pode ser o Oh ou qualquer pessoa. Eu já conheço um pouco, mas se você tivesse
que explicar pra alguém que não sabe como é (a SA) que você diria?
2. J: Que o asperger é um autismo de grau levíssimo e na maioria das vezes quase
imperceptível. É normal nas pessoas terem pelo menos um pouquinho dessa síndrome.
3. E: E como você sabe se alguém tem SA?
4. J: Eu...não sei como descrever, mas a pessoa pode estar vidrada em alguma
coisa que não seja tão importante ou então gosta de brincar muito com uma caneta,
normalmente desenha muito a mesma coisa, não procura variar...tem algum pa...a pessoa
normalmente tem algum padrão. No caso, eu só...a maioria das vezes que eu desenho são
dragões.
5. E: Que mais você acha que dá pra dizer sobre como saber se a pessoa tem SA?
6. J: No meu caso eu também sou um pouquinho atrapalhado na hora de falar com
as pessoas e não consigo formar se...eu iniciar as palavras direito...eu acho que é uma
consequência de uma...de que...é como uma falta...pode ser uma falta de estimulo até.
7. E: E você tem algum amigo que tem SA?
8. J: M, também tem SA.
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9. E: Você já falou dele da outra vez [referência à sessão anterior], não foi?
10. J: Aham
11. E: E vocês são amigos?
12. J: Éramos. Até a gente se desencontrar quando ele saiu do colégio ele era da
minha turma.
13. E: Huum ele era da mesma turma.
14. E: E você já viu algo na tv ou internet sobre...
15. J: Um livro! “Olhe nos meus olhos”.
16. E: Huum já li esse livro. O que é que você achou?
17. J: Interessante...apesar de eu não ler ele por completo, a primeira parte já deu
pra entender um pouco, porque ele também tinha alguns padrões que já identificavam que ele
tinha asperger...tipo ele organizava os carrinhos e caminhos de um jeito e teve algumas coisas
que ele não entendia direito também.
18. E: Huum. Você não leu ele todo ne? Eu acho que o nome dele é John.
19. . J: Acho que sim
20. E: O John se não me engano só recebeu o diagnostico quando já tinha mais de
40 anos...é
lá pro fim do livro.
21. J: Vishh...doido
22. E: E você se identifica com alguma coisa do John?
23. J: Sim...o mesmo padrão do caminhão que ele tinha eu identifiquei com o
lego...o avião que eu montava quando era criança e também com os dragões que eu
normalmente desenhava do mesmo jeito e...algumas coisas.
24. E: E você conhece alguém famoso que tem SA?
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25. J: Não...mas eu conheço uma pessoa que tem autismo que até teve o filme...acho
que já te disse esse filme
26. E: Da Temple Grandin (TG)?
27. J: Isso.
28. E: E o que você acha da TG?
29. J: Uma pessoa excelente apesar de ser um pouco problemática, principalmente
com a alimentação.
Nesse episódio, primeiramente, observa-se que John dissocia o diagnóstico de TA do
de autismo no turno 39. Quando perguntado sobre pessoas famosas com SA, John diz não
conhecer ninguém, mas conhece alguém com autismo, sugerindo que os termos para ele não
são equivalentes.
Além disso, John fornece uma definição exata do que para ele é o TA. Pode-se observar
que em sua definição estão presentes indícios relacionados ao sentido afetivo presentes em sua
percepção acerca do TA. Tais indícios podem ser observados no uso de adjetivos diminutivos
(levíssimo) e da generalização das características. Estes aspectos ao mesmo tempo minimizam
o diagnóstico, pois ele é levíssimo e banaliza as características, trazendo-as para o patamar de
normalidade.
Novamente nesse episódio John traz características relativas ao âmbito do
funcionamento cognitivo no TA referente aos padrões restritos de comportamento, com os quais
ele frequentemente se identifica. Essa identificação ocorre em particular com o personagem do
livro por ele citado na fala “o mesmo padrão do caminhão que ele tinha eu identifiquei com o
lego...o avião que eu montava quando era criança e também com os dragões que eu
normalmente desenhava do mesmo jeito e...algumas coisas”. Além disso, no turno 17, John
usa o termo “também” em referência a uma característica do personagem do livro (“e teve
101
algumas coisas que ele não entendia direito também”) sugerindo que talvez essa seja uma
característica que eles também compartilham, apesar de John não a mencionar especificamente
em relação à ele mesmo.
Asperger em outras pessoas: vinhetas como recurso para identificação em terceiros e
reconhecimento em si mesmo
Episódio 3
1. E: Olha só...agora queria te mostrar cenas de uma série de tv. Essa serie mostra
o dia a dia de amigos que são cientistas. É a The Big Bang Theory (TBBT).
2. J: Huuum.
3. E: Você já viu?
4. J: Já
5. E: E você assiste?
6. J: Não...só vi
7. E: Um deles tem...
8. J: O que faz o Sheldon.
9. E: Isso. Inclusive algumas coisas que você mencionou. São cenas aleatórias e
não do mesmo episódio, então se você não entender algo você me pergunta. Certo?
10. J: Certo.
Cena 3 – Os quatro amigos vão a um restaurante e não conseguem pedir
11. J: (risos) pelo...ele...tá todo como se uma pessoa que tem um asperger um pouco
pior que o meu porque ele faz atitude...algumas atitudes meio que um pouco neuróticas ou sem
pensar...ele tá falando muito... (risos) ...tá fazendo meio que um papel de bobo ...ele tá falando
coisa com coisa e os outros nem tão entendendo direito. (Risos). Eu não entendi direito...
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Cena 4 – Sorriso de Sheldon
12. J: (risos) ele não sabia se p...ele não sabe se...(risos) ele não entende as coisas
direito (risos) ele não sabe sorrir direito ele não entende...como é que é sorrir direito...só fez
uma cara que ele viu em algum lugar.
13. E: Nessas cenas que passarem tem alguma característica que você acha que é da
SA? Do Sheldon?
14. J: Nos padrões e o padrão no segundo vídeo dele pedir a mesma coisa
15. E: Ah dele pedir sempre a mesma coisa?
16. J: É, eu acho que é mas o que eu identifiquei meio foi os maneirismos dele.
17. E: Hum
18. J: Parece que ele tá um pouco...que ele tá...eu até tenho um pouco disso de vez
em quando...quando eu fico com a cabeça na lua.
19. E: Hum...de maneirismo tipo o que?
20. J: Tipo ele ficar mexendo um pouco estranho.
21. E: Hum...vou botar outro...
22. J: E também aquele sorrisinho estranho dele eu compararia com.…com o ...eu
comparei com o ...com a com a.…com o fazer carinho do cara do livro...o.…que ele não sabia
como tratar alguém direito e o cara ele entendia mais um meio com uma agressão.
23. J: Ele tá meio atacado (risos)
Cena 6 - empréstimo de dinheiro à Penny
24. J: (risos) ...também de vez em quando eu entendo as coisas ao pé da letra e não
consigo enxergar as entrelinhas.
25. E: Foi o que aconteceu agora?
103
26. J: Aham
27. J: nunca cheguei a fazer isso...completamente ilógico (risos)
28. J: intitulando as coisas...ele deu um palpite meio que fora de contexto.
29. E: nessas teve alguma coisa que você acha que foi alguma coisa de...
30. J: eu não consegui identificar...explica? (pede ajuda a entrevistadora)
31. E: nessas ele sempre pergunta do sarcasmo...nem sempre ele consegue entender
e ele pergunta ao Leonard.
32. J: hum
Cena 7 – Conversa desconfortável
33. J: com certeza eu não faria isso...ele não entendeu direito (risos)
34. E: o que?
35. J: Na verdade ele até pode ter entendido, mas ele falou justamente o que ela não
queria ouvir.
36. E: então ele não entendeu mas falou o que ela não queria ouvir?
37. J: Uhum...eu não acho que seja algo de asperger.
Cena 8 – Decifrando expressão de Rajesh
38. J: hum...eu peço desculpas com um pouquinho de frequência.
39. E: você pede desculpa com frequência?
40. E: Não muito, mas normalmente eu peço ao meu pai e minha mãe...eu acho um
pouquinho excessivo de vez em quando.
Cena 9 – Abraço na lavanderia
41. J: Eu não faço isso.
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42. J: De vez em quando eu explico um pouco de...eu só...as vezes
eu...frequentemente quando eu tô falando alguma coisa que eu acho que posso esquecer eu não
deixo a pessoa me interromper
43. E: Você fala até terminar?
44. J: Frequentemente
45. E: Nessa cena, teve algo da SA?
46. J: Ele explicando motivo do abraço alguma coisa assim...tudo tem que ter uma
explicação.
47. J: (risos) e eu não vi nada que consiga identificar
Cena 10 – Sheldon e Leonard se conhecem
48. E: Eu não vi nada que tenha a ver com a SA...
49. Nessa? A cena ainda continua.
50. J: Aí eu identifiquei alguma coisa...os maneirismos dele novamente...são
parecidos com os de alguém que tem um pouco de...um pouco de asperger, só que um
pouquinho acentuado.
51. E: Tipo que maneirismo?
52. J: Aquele outro menino do talento...cabeludo mais alto? Ele pergunta as coisas
e parece que bugou.
53. E: Pergunta muito?
54. J: Só o maneirismo dele...lembra um pouco o jeito de Temple Grandin
se.…portar quando tá um pouco neurótica.
Cena 11 – Ofensa a Penny
55. J: Ela...ele fez a comparação que ela não entendeu.
Cena 12 - Funeral
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56. E: E nessa?
57. J: Morreu uma pessoa...ele não consegue demonstrar visualmente uma
característica que seja de alguém que se importa muito mesmo que se importasse...ele não...tipo
a pessoa quer que ele chore porque o outro morreu, mas a pessoa não é de chorar muito
58. E: Entendi.
Cena 13 – Garoto especial
59. J: Outra comparação que o outro não entende
60. E: Que ele fez?
61. J: Aham...uma comparação que só ele entende.
Cena 14 - Experimento com Penny
62. J: (risos) ele tá... (risos) ele tá caçoando dela de uma maneira mais educada
(risos).
63. J: eu até entendo o que é que as outras pessoas conseguem...e sempre eu estou
imaginando...o problema é mais em iniciativa meu...uhum...se for pra fazer alguma comparação
com isso daí.
64. J: Num gosta muito de alguns...ele não gosta de alguns padrões...ele é uma
pessoa...ele não gosta de alguns padrões...
65. E: certo.
66. J: Ele tem um problema com festas de aniversários a Temple um pouco tinha um
problema com elevadores e com alimentação...o meu é com desenhos infantis.
67. E: Por que?
68. J: Quando eu escuto fico querendo assistir, mas eu sei que não vale muito a pena
e com comédias também.
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No terceiro episódio da entrevista com John foi requisitada a identificação de
características ou situações nas cenas que remetam ao TA. Primeiramente, foi observado que
nem todas as cenas chamaram a sua atenção e para muitas ele disse não saber identificar nada
que fosse significativo. Nesse sentido, algumas das cenas trazem situações nas quais são
representadas características do TA que ele mesmo mencionou em episódios anteriores, porém
não os reconheceu em Sheldon. De maneira geral ele não demonstrou muita identificação com
as cenas vistas e acredita que diversas situações não têm relação com o TA ou, por outro lado,
dizem respeito a casos graves, como ele aponta no turno 11 quando traz que “pelo...ele...tá todo
como se uma pessoa que tem um asperger um pouco pior que o meu porque ele faz
atitude...algumas atitudes meio que um pouco neuróticas ou sem pensar...”.
Porém diversas cenas chamam a sua atenção, notadamente a que representam aspectos
cognitivos e sociais do funcionamento no TA, principalmente relacionados a padrões restritos
e repetitivos de comportamento e dificuldades na compreensão de contextos sociais. Quanto
aos padrões, ele identifica a necessidade de Sheldon de fazer sempre o mesmo pedido no turno
14. Além disso, faz referência a padrões de maneirismos motores, que frequentemente são
também identificados em indivíduos que tem TA. Ressalta-se que essa característica em
particular não é representada nas cenas, no entanto, mais de uma vez John interpreta partes das
cenas dessa forma e inclusive identifica-se com esses maneirismos motores. Ainda quanto as
características de funcionamento cognitivo ele traz a compreensão literal da fala e dificuldades
no reconhecimento e expressão de emoções faciais, que dizem respeito a dificuldades na
linguagem pragmática. A compreensão literal é identificada por ele como presente em seu
próprio funcionamento, enquanto a expressão de emoções é relacionada ao personagem John,
do livro Olhe nos meus olhos.
Além dessas características teóricas que John reconhece, ele relaciona ao TA também
comportamentos que na teoria não são associadas ao quadro, quais sejam: pedir desculpas com
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frequência, no turno 38, falar sem permitir interrupções, no turno 42, dar muitas explicações
sobre diversos temas, no turno 46, e ter algo ou alguma temática que é perturbadora, nos turnos
64 e 66. As menções a tais características sempre acompanham uma identificação do
personagem Sheldon com o próprio John ou com outro personagem que ele sabe que tem o
diagnóstico, como Temple Grandin, sugerindo que ele atribui esses aspectos ao TA.
Episódio 4
Por fim, no quarto e último episódio, John é solicitado a trazer de forma mais objetiva
seus sentimentos e o “lugar” do diagnóstico em sua vida.
1. E: De todas essas cenas, o que é que você acha que chama atenção no Sheldon
que são características da SA?
2. J: O maneirismo dele e as explicações exageradas dele. Foi o que eu mais
identifiquei.
3. E: Quem foi que te falou, J, sobre a SA?
4. J: Não, a primeira pessoa que me falou foi M....ele também falou com meus pais
depois foi a....depois...agora na universidade foi E., que contou mais...E. da CAENE?
5. E: Não conheço E.
6. J: É uma psicopedagoga que me atendeu...ela explicou como é que é...como é
que funciona o asperger.
7. E: Então até conversar com ela você não sabia?
8. J: Não sabia direito como é...sabia de algumas coisas.
9. E: Só quando você conversou com ela...
10. J: Aham...e fiquei sabendo mais e eu ainda sei só que eu não sei descrever isso
com palavras...só com algumas imagens que eu também não sei descrever bem
11. E: Então você tem imagens de como é?
108
12. J: Uhum
13. E: De onde você acha que vem a SA? Já pensou sobre isso?
14. J: Não...
15. E: Tem características do Sheldon que você observa em você?
16. J: Tem
17. E: Como o que?
18. J: As únicas coisas que notei precisamente foi os padrões...as explicações
exageradas e os maneirismos dele...parece que ele está viajando no mundo de Star Trek.
19. E: Você acha que essas coisas parecem com você também?
20. J: É porque de vez em quando eu fi...quando eu tô pensando em alguma coisa
eu acabo passando isso pro corpo e eu ch...eu posso fi...quando isso acontece...tem vezes que
eu chego a ficar estranho, mas isso não acontece com frequência.
21. E: E como é que você se sente sobre ter SA?
22. J: Isso...não...isso não é uma dificuldade acadêmica nem...eu tenho capacidade
de...aprender a controlar essas...as minhas ansiedades e a SA é mais uma um tipo de su...pra
mim a SA não é uma mera deficiência em si é mais uma superdotação e uma pequena ligeira
dificuldade de se relacionar com as pessoas...se a pessoa for um pouco tímida.
23. E: Se a outra for tímida?
24. J: Se a pessoa com SA for tímida
25. E: Você é tímido?
26. J: Um pouco.
27. E: E tem coisas boas ou não tão boas que você acha que resultam da SA? Por
exemplos pontos positivos?
28. J: Sim
29. E: Tipo o que?
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30. J: Tipo...gosto muito de ficar escutando coisas que tenha...gosto muito de
ficar....acho legal tarefas de lógica e...os meus pontos positivos melhores são em programação
que eu tenho um pouco de facilidade pra apender.
31. J: E eu posso fazer...e...se eu quiser eu posso fazer tudo que eu...eu tenho várias
possibilidades pra fazer...posso até fazer todas elas se possível e também....as...é...além disso
é apenas uma...uma incoerência na parte social que eu ainda não em...algumas coerências na
parte de sociologia que eu não entendo.
32. E: Como assim?
33. J: Como...como como falar com as pessoas sem falar nenhuma frase que eu não
entenda direito ou então...que...eu não sei explicar direito como eu não pesquisei sobre o
assunto.
34. E: Mas não precisa ser algo que você pesquisou, pode ser algo que você pensa
ou sente...como você entende que funciona.
35. J: Hum...o asperger em mim, o autismo não é um bicho de 7 cabeças...é só uma
coisa que ...é só uma coisa que a pessoa é muito inteligente mas tem um pouco de dificuldade
de se relacionar em algumas situações e se portar em algumas situações, mas essa dificuldade
pode ser superada.
36. E: Você falou que uma coisa boa é...
37. J: É facilidade de aprendizado em geral
38. E: E uma coisa que você acha que é ruim? Tem?
39. J: Só comunicação.
40. E: Tem algum na sua vida com quem você se sente confortável falando sobre a
SA?
41. J: Ah...teve E., teve meus pais, teve a J. daqui e poucos dos meus
amigos...tipo...os amigos que consegui me relacionar melhor.
110
42. E: Com esses você fala?
43. J: De vez em quando chego a falar um pouco, não tenho medo de falar.
44. E: Sua família então fala com você sobre o asperger?
45. J: Fala sim também, porque já pesquisaram sobre isso e as vezes eles me ajudam
a me orientar pra não parecer que eu tô com essa...pra não ficar parecendo que eu estou com
essa síndrome.
46. E: E que conselho você daria pra outra pessoa da sua idade que acabou de
descobrir que tem SA?
47. J: Na verdade eu daria algumas dicas de como se portar na sociedade, algumas
coisas que eles tem tiraria algumas dúvidas que eles tem sobre se comportar na sociedade e
diria pra eles pra que não precisasse de...ficar contando isso pra...não precisa contar sobre
essa doença pra todo mundo e pra se...pra tentar fazer com que as pessoas não percebam que
você tem essa dificuldade.
48. E: E que dicas você daria? Tem algum exemplo?
49. J: Tem um...seja uma pessoa que tente se parecer com as outras pessoas, mesmo
que você não seja igual a eles.
50. E: E que conselho você daria para pais?
51. J: Que...ajudem essas pessoas...que ajudem seus filhos a se portarem...que
encontre meio delas contornarem seus problemas sem causar muito transt..muito ...sem que
elas tenham que passar por transtornos como...o que aconteceu com a Grandin na primeira
vez que ela foi na faculdade...que ela ficou tão estranha que todo mundo notou.
52. J: Eu não consigo descrever direito como é isso
53. E: A cena?
111
54. J: Aham...mas pessoa tem...se...a pessoa se comportando mais naturalmente e
quase ninguém percebe que a pessoa é...tem alguma coisa estranha...alguma coisa
diferente...anormal
55. E: Certo, John. Estamos chegando ao fim de nossa entrevista. O que você
achou?
56. J: Foi mais um paradigma do que eu a gente entende como SA, ainda vou
procurar um pouco mais sobre isso pra se entender um pouco melhor e poder tentar ser igual
as outras pessoas
57. E: Você acha que tem que ser igual?
58. J: Sim, menos na presença dos meus pais que eu fico um pouco ansioso
59. E: Na presença deles que você acha que tem que ficar?
60. J: Isso na presença deles que tenho que melhorar e não é só isso...tem alguns
detalhezinhos que mesmo sem ser na presença deles preciso melhorar como se
comportar...algumas situações como a dos encontros
61. E: E você acha que foi bom falar disso?
62. J: Eu acho que foi bom falar disso...eu acho que alguém tiver conhecimento
sobre isso e quiser falar que fale porque pode ajudar a esclarecer e tentar quebrar esse
paradigma que asperger não é nada mais que um caso de autismo. Porque algumas pessoas
pensam assim.
63. E: É bom pra tentar esclarecer...
64. J: Isso! O que na verdade é isso...
John, no episódio, retoma características de Sheldon relacionadas a maneirismos e
explicações exageradas nos turnos 2 e 18. Ambas apareceram em sua fala pela primeira vez no
terceiro episódio, sugerindo que as cenas eliciaram em John a identificação de aspectos que ele
não havia trazido anteriormente. Ele traduz os maneirismos como movimentos no corpo com
112
os quais se identifica no trecho: “É porque de vez em quando eu fi...quando eu tô pensando em
alguma coisa eu acabo passando isso pro corpo e eu ch...eu posso fi...quando isso
acontece...tem vezes que eu chego a ficar estranho, mas isso não acontece com frequência”.
Nesse episódio John é questionado mais diretamente acerca de sentidos afetivos que
atribui ao TA, relacionados a como ele se sente quanto a isso e o lugar que o diagnóstico tem
em sua vida. No turno 22 John fala sobre o diagnóstico: “Isso...não...isso não é uma dificuldade
acadêmica nem...eu tenho capacidade de...aprender a controlar essas...as minhas ansiedades
e a SA é mais uma um tipo de su...pra mim a SA não é uma mera deficiência em si é mais uma
superdotação e uma pequena ligeira dificuldade de se relacionar com as pessoas...se a pessoa
for um pouco tímida”. Sua fala traz elementos que permitem sugerir que ele associa o TA à
características de funcionamento cognitivo e social diferentes, sendo o primeiro um aspecto
positivo e o segundo negativo. Isto pode ser percebido quando traz como pontos positivos sua
inteligência, afinidade por lógica e facilidade para aprender, como mencionado anteriormente
no turno 22 e no turno 30 (“...acho legal tarefas de lógica e...os meus pontos positivos melhores
são em programação que eu tenho um pouco de facilidade pra apender”) e ao apontar como
aspectos negativos a comunicação, no turno 39. Para John, parece existir uma divergência entre
esses aspectos, que são incongruentes, como pode ser observado no turno 31: “se eu quiser eu
posso fazer tudo que eu...eu tenho várias possibilidades pra fazer...posso até fazer todas elas
se possível e também...as...é...além disso é apenas uma...uma incoerência na parte social que
eu ainda não em...algumas coerências na parte de sociologia que eu não entendo”. Ainda pode-
se inferir por sua fala que para John as dificuldades sociais podem ser superadas a partir dos
aspectos cognitivos, como exposto no turno 35: “é só uma coisa que a pessoa é muito inteligente
mas tem um pouco de dificuldade de se relacionar em algumas situações e se portar em
algumas situações, mas essa dificuldade pode ser superada”.
113
Todavia, para além da necessidade de superar suas dificuldades, as falas de John
sugerem que enquanto sentido afetivo têm-se a necessidade de esconder o diagnóstico e suas
características, principalmente as que considera negativas, como exposto nos turnos 47 e 49 ao
aconselhar adolescentes com TA: “Na verdade eu daria algumas dicas de como se portar na
sociedade, algumas coisas que eles tem tiraria algumas dúvidas que eles tem sobre se
comportar na sociedade e diria pra eles pra que não precisasse de...ficar contando isso
pra...não precisa contar sobre essa doença pra todo mundo e pra se...pra tentar fazer com que
as pessoas não percebam que você tem essa dificuldade” e “seja uma pessoa que tente se
parecer com as outras pessoas, mesmo que você não seja igual a eles”. No turno 47, John
inclusive trata o TA pela primeira vez com o termo “doença”, cuja conotação é negativa e destoa
de seu discurso até esse momento de que o diagnóstico apenas se referia a um funcionamento
diferenciado e positivo. Nesse sentido traz ainda o papel dos pais em orientá-lo sobre como não
aparentar ter TA, nos turnos 45 (Fala sim também, porque já pesquisaram sobre isso e as vezes
eles me ajudam a me orientar pra não parecer que eu tô com essa...pra não ficar parecendo
que eu estou com essa síndrome) e 51 (Que...ajudem essas pessoas...que ajudem seus filhos a
se portarem...que encontre meio delas contornarem seus problemas sem causar muito
transt...muito ...sem que elas tenham que passar por transtornos).
O TA para os pais e filhos: ecos de vozes e percepções
A entrevista realizada com o pai de John seguiu o mesmo roteiro da de seu filho.
Inicialmente, em sua entrevista podem ser identificados elementos relacionados a aspectos
cognitivos, sociais e afetivos do TA. Além disso, foram observadas aproximações e
distanciamentos entre suas percepções e as de John.
114
Para o pai, a resposta à pergunta “Como é ser asperger?” envolve a compreensão, por
parte do indivíduo diagnosticado, de que existe uma diferença entre ele e as outras pessoas. Sua
definição enfatiza, principalmente, as dificuldades vivenciadas no âmbito social, como
exemplificado no trecho: “deixa eu pensar um pouquinho...eu acho que o asperger assim,
primeiro ele inicialmente pensa assim...ah sei lá: ‘acho que eu tenho um problema’. Mas dentro
da cabeça dele como a gente já diferenciou as palavras doença, interação e tudo ah...’eu tenho
uma diferença, eu sou diferente dos outros. A minha dificuldade é não perceber o que os outros
estão sentindo ou pensando com a mesma facilidade que outras pessoas percebem. Então eu
tenho que olhar um pouquinho mais e assim juntar algumas características físicas ou de tom
de voz pra poder chegar à conclusão do que tá acontecendo né...’ ”. Nesse trecho ele ainda
ressalta as dificuldades na compreensão de sentimentos, expressões faciais e situações sociais
de maneira geral. Para o pai de John, essas são características marcantes de indivíduos que tem
TA e, principalmente, de seu filho.
Ainda no âmbito das habilidades sociais, o pai de John descreve várias dificuldades
vivenciadas filho, porém ressalta que essas características eram mais comuns em sua infância e
que, à medida que John cresceu, elas se fizeram menos presentes, principalmente após as
intervenções dos pais. Esse aspecto pode ser observado no seguinte trecho, que trata de falas
inadequadas em determinadas situações sociais: “Claro, hoje ele não falaria alto...sei lá...uma
coisa de caráter muito íntimo. Mas antes ele até poderia...começar a falar e [o pai falaria] ‘ei
cara, você tá em público! ’ ‘ah pai, desculpa’. Aí hoje ele já mantém isso”. O pai afirma ainda
que houve mudanças também em relação ao contato visual de John, na fala: “Ah o John encara,
encara, olha no olho já... Ele pequenininho você ficava chamando atenção [faz gesto de estalar
os dedos] pra que ele olhasse...’ei, olha aqui, ooh, olha aqui’ esse tipo de coisa”. Ainda surge
em sua fala a descrição de comportamentos ligados a dificuldades com a compreensão da
linguagem pragmática, como expressões faciais e compreensão de piadas.
115
Para o pai de John, os aspectos sociais são a maior dificuldade do filho e o que mais
impacta o seu dia-a-dia, como ilustrado no seguinte trecho: “Ah o que atrapalha mais o dia a
dia é o relacionamento social...é formar e integrar grupos sociais. Você percebe que se você
ta parado e você se intromete em assuntos que estão sendo conversados em determinado grupo,
normalmente ele não aceita bem essas intromissões”. O pai também associa essas dificuldades
a aspectos afetivos, pois essas entristecem John. Essa percepção surge na seguinte fala: “Ainda
o entristece a parte social. Isso aí é notório, mas como ele ainda não consegue se inserir, mas
não fica angustiado com isso. Mas você percebe que ele sente falta...se você perguntar a ele se
queria ter um amigo... tá ligando agora pra casa e - Vamo pro cinema? ‘Ah vamo, vamo sair
ali, vamo conversar’...até porque assim, seria um estímulo a mais, mas aí é muito complicado
pra gente oferecer esse estímulo por uma questão também nossa. Eu sou filho único, não tenho
irmãos, então ele não tem primos, não tem tios, e a mãe a família toda mora em outro estado”.
No discurso do pai, algumas vezes, são mencionadas situações nas quais as
necessidades de intervenção e orientação a John se fizeram necessárias. Ele explica que essa
foi a maior preocupação de ambos desde a descoberta do diagnóstico e, a partir daí, buscaram
direcionar o comportamento do filho no sentido de compensar ou disfarçar suas dificuldades.
Isto se evidencia no seguinte trecho da entrevista: “hoje não mais, talvez quando fosse criança
a gente já...”’oh John, não faz essa cara de assustado quando você vê uma coisa...’ Acho que
quando...no início a gente dizia “oh, tente imitar mais as expressões, cuidado quando as
pessoas ficarem tal...” Por um período curto acho que de alguns meses ele...não, menos que
isso, ele tentou ver se dava certo assim imitar o mesmo que outra pessoa fazia. Aí eu disse “oh,
não adianta, você vai ter que criar sua própria expressão... então...”.
Por vezes a intervenção dos pais parece ser bastante direta e direcionada a moldar os
comportamentos de John, objetivando que estes adequem-se ao que é esperado socialmente,
como explicitado na fala: “não, a gente falou: ‘ah, pra você se misturar às pessoas tente agir
116
como elas’. Então assim, por exemplo, alguém sentava, cruzava a a perna tal, então ele ia,
olhava e ficava do mesmo jeito. Aí: ‘oh John, não cola, melhor você criar sua própria maneira
de ser e a gente vai verificar se essa maneira é ‘condizível’ com o que existe hoje em sociedade,
se for, a gente fala que é’”.
O papel e o julgamento acerca da importância das intervenções, relatadas pelo pai,
estão presentes na fala do próprio John, em especial no episódio 4 de sua entrevista. John
aponta, em seu conselho para pais de jovens com TA, a necessidade de que estes “ajudem essas
pessoas... que ajudem seus filhos a se portarem... que encontre meio delas contornarem seus
problemas sem causar muito transt.. muito ...sem que elas tenham que passar por transtornos
como...o que aconteceu com a Grandin na primeira vez que ela foi na faculdade...que ela ficou
tão estranha que todo mundo notou”.
Assim, observa-se que a mesma ideia que os pais têm da necessidade de John adequar
os seus comportamentos, de modo que estes não sejam tão diferentes daqueles ditos naturais,
está presente também na ideia que John faz de seu diagnóstico. Isso se observa em sua fala, no
episódio 4, acerca do que conversa com seus pais sobre TA: “Falo sim também, porque já
pesquisaram sobre isso e as vezes eles me ajudam a me orientar pra não parecer que eu tô com
essa...pra não ficar parecendo que eu estou com essa síndrome”; e quando aconselha outros
aspergers que “seja uma pessoa que tente se parecer com as outras pessoas, mesmo que você
não seja igual a eles”. Nesse sentido, se evidencia também a concepção de John da necessidade
de esconder o diagnóstico.
Em termos de consonâncias entre os discursos do pai e de John, observou-se que na
fala de John ele atribui suas dificuldades de inserção e interação social à timidez e falta de
iniciativa. Tal aspecto surge no terceiro episódio, no turno 63, na seguinte fala: “eu até entendo
o que é que as outras pessoas conseguem... e sempre eu estou imaginando... o problema é mais
117
em iniciativa meu... uhum... se for pra fazer alguma comparação com isso daí”. Nessa fala,
John se referia à cena “Experimento com Penny” de The Big Bang Theory, na qual Sheldon
relata ter dificuldades na compreensão de situações sociais e sentimentos alheios. Sua fala
sugere que sua dificuldade não está na capacidade de compreensão, mas na ausência de
iniciativa para a interação.
Nessa direção, o pai de John, na entrevista, também aborda o aspecto da falta de
iniciativa, como ilustra a seguinte fala: “uma coisa é...o John não tem problema em ter mais
pessoas...ele tem vontade, o que ele não tem é iniciativa. Ele adoraria estar cercado por
amigos, você percebe que ele tem uma certa inveja daqueles grupos de amigos, mas ele não
encontra uma maneira de se inserir no grupo”.
Adicionalmente, outros elementos da fala do pai estão presentes na entrevista de John,
principalmente aqueles relativos à valoração do diagnóstico de TA. Como seu pai, John
considera o TA como uma forma diferente de ser, destacando potenciais e fragilidades. Porém,
ressalta sempre os pontos positivos de seu diagnóstico, notadamente em termos do
funcionamento cognitivo. Tal concepção pode ser igualmente identificada na fala do pai,
quando expressa a seguinte preocupação: “inicialmente, eu fiquei preocupado que ele ficasse
pensando, preocupado, “Pô, mas como é que vai ser o meu futuro então, se eu tenho algum
tipo de problema? ” Mas hoje ele já começa a se enquadrar assim, olha “ se eu sou muito bom
no que eu posso fazer, então eu posso trabalhar com aquilo e desenvolver em cima daquilo”.
É interessante notar que John reconhece a ambivalência de sua condição, ou seja, a
convivência das fragilidades com o talento, conforme ilustrado no turno de fala 31 do episódio
4, no qual ressalta a diferença entre o seu funcionamento cognitivo e o social: “(...) além disso
é apenas uma...uma incoerência na parte social que eu ainda não em...algumas coerências na
parte de sociologia que eu não entendo”. Neste trecho, John, parece considerar que estes são
118
discrepantes, pois ele tem algumas habilidades cognitivas de destaque, mas dificuldades na
interação social. Essa ideia está presente no discurso do pai no trecho em que este relata uma
conversa com John na qual explica o diagnóstico do filho: “[Pai] - O asperger é um espectro
do autismo. – [John]‘Mas porque que ele parece um deficiente? ’. [Pai] –‘ Porque é um espectro
no qual você vai ter dificuldade só no lado social, mas você não tem dificuldade cognitiva’.
[John] – ‘Se eu não tenho dificuldade cognitiva, porque que minha cognição não é igual a de
outra pessoa, é maior? ’ [Pai] – ‘É porque, por sorte sua, puramente por sorte, a sua área
social, se ficou algo inibida, houve uma compensação a mais na área cognitiva (...)’”.
A consonâncias nos discursos em termos do potencial cognitivo de John, é mais uma
vez identificada em outros trechos de fala de ambos. O pai destaca a capacidade intelectual
acima da média, bem como o que chama de pensamento matemático, referindo-se à forma com
que John resolve problemas em seu dia-a-dia (“se ele parar para pensar sobre o que aconteceu
ele consegue, porque ele consegue descrever o caso, desenhar na cabeça e ver o resultado,
porque ele consegue resolver o que aconteceu de uma forma matemática”). Ainda menciona a
habilidade elevada de John em relação à memória visual, dando o seguinte exemplo: “se você
perguntar...as vezes você tá perdido aqui...uma curiosidade, isso é muito comum...’Cara, que
rua é essa?” Tudo bem. Se ele não...aí ele fala é a rua tal. ‘Pô, bicho, mas a gente não tem
placa. Você lembrava o nome da rua? ’ ‘Não, eu lembrei que o sistema de fiação elétrica de
condução aqui de alta tensão dessa rua é esse’. Então assim...ele grava detalhes que passam
despercebidos mesmo né.…”. A fala continua com: “Não, visual o dele...ele sabe que ah...essa
rede elétrica aqui é de tal tipo e essa rua tem essa rede. A Prudente de Morais usa essa rede,
a Salgado Filho essa rede, a Mor Gouveia essa rede, a Norton Chaves essa rede e tal, que é
muito parecida com a rede de tal lugar...ele termina fazendo relação, relaciona com o nome
da rua e acerta a rua olhando pra cima e reconhecendo a rede elétrica”.
119
Em direção similar, John sustenta como uma habilidade sua o “pensamento por
imagens”, descrito por ele no episódio 1 na fala: “Tipo... você visualiza linhas e códigos dentro
de um jogo, pode querer visualizar linhas e códigos dentro de um jogo ou então você pode
lembrar de algum, de algum detalhe que você tenha perdido antes apenas batendo o olho ou
pior...você representa tudo que vê e tudo que entende através de imagem”. A descrição de tal
habilidade coincide com aquela apresentada por seu pai quando caracteriza a sua forma de
pensar.
Por sua vez, existem também discordâncias nos discursos de pai e filho acerca de
alguns aspectos. O primeiro deles diz respeito ao contato com o diagnóstico e ao conhecimento
de outras pessoas com TA. Nesse aspecto John afirma que seu primeiro contato foi através de
um amigo, M., que além de ter o diagnóstico de TA sugeriu que John também teria e conversou
com seus pais sobre isso. Isso é afirmado no turno 4 do episódio 4. Seu pai, por outro lado,
quando questionado sobre esses aspectos responde: “eu acho que a gente foi apresentando... a
gente primeiro iniciou mostrando, estimulando, como a gente tava pretendendo fazer e com o
tempo foi mostrando publicações, livros e...’Oh, olha aqui ta vendo esse livro?’ Acho que a
mãe com certeza mais do que eu”. Sua fala sugere que em sua perspectiva essa apresentação do
diagnóstico foi feita de forma progressiva e pelos pais. Ele também não acredita que John tenha
amigos ou conhecidos que tenham o mesmo diagnóstico, como aponta na seguinte fala: “não...
acho que amigos ele não tem... conhecido ele já passou por alguns conhecidos que têm autismo
e ele percebeu a diferença”. Em termos de como John se sente em relação ao TA, o pai sugere
que ele se entristece, devido às dificuldades sociais, como mencionado anteriormente. No
entanto, John não menciona tristeza em sua entrevista.
Porém, a maior discrepância nas entrevistas diz respeito a uma característica do
funcionamento de John associada ao TA, que é a presença de padrões restritos e repetitivos de
comportamento. Tal característica é a mais mencionada pelo próprio John em suas falas e com
120
a qual ele se identifica com maior frequência, principalmente em relação á presença de
maneirismos e padrões. Seu pai, entretanto, afirma de forma veemente que essa característica é
a única que John não apresenta das esperadas no TA. Tal afirmação pode ser observada nas
seguintes falas: “é, ele não tem...ele não segue padrões. Padronização não é a cara do
John...ele...nem hora, nem alimento...”; “ele não segue padrões...ele levanta as 6, pode levantar
as 6:30, pode levantar 5:30...se o que tiver...ele come uma coisa, ele come outra...não faz
questão se é um tipo de coisa ou a outra. Agora essa salvação que o Leo...ah, mas você
pode...você problema...assim...matemático ne? Eu tenho 4 coisas, mas eu preciso dividir por 3,
ele daria a solução. Ele tem a iniciativa para esse tipo de coisa” (Nesta última ele faz referência
à cena “Os quatro amigos vão a um restaurante e não conseguem pedir” de The Big Bang
Theory). As afirmações do pai são justificadas na seguinte fala: “A gente não permitiu. Então,
se não deu pra perceber é porque desde a primeira infância a gente fez com que ele sempre
fizesse coisas diferentes. Ele não teve a opção de repetir uma coisa duas vezes. Isso fez com
que ele se adaptasse a qualquer ambiente. Se você chama ele pra cá, se disser John, no lugar
de fazer a entrevista aqui vamos fazer na lanchonete, ele não vai dizer...não vai achar estranho.
Ele vai dizer que ta bom na hora vai sentar com você e fazer como se tivesse aqui e vai fazer e
vai falar do mesmo jeito (...)”. Essa discrepância sugere as possibilidades de o pai não perceber
essa característica de John ou de essa ser negada.
b. Chaves
Chaves é o nome brasileiro para a série El Chavo del ocho, seriado de comédia
mexicano bastante conhecido no Brasil e na América Latina, de maneira geral. Chaves é o nome
do personagem principal da série, esta tem como personagem central uma criança e seu dia-a-
dia na vila em que mora. O humor de Chaves e da série se baseiam na simplicidade e
121
ingenuidade do personagem, sendo estas características evidenciadas em situações do dia-a-dia.
Retratam suas travessuras e interações com outros moradores.
Esse nome foi escolhido para este participante com base no relato de sua mãe. Esta
retrata o filho como um jovem bastante sério, que raramente sorri, o que foi percebido nos
encontros com ele. Porém, ela relata que nos momentos em que assiste Chaves, com sua irmã
mais nova, ele parece estar mais feliz, rindo por horas a fio, mesmo que seja em episódios que
já assistiu anteriormente.
Chaves, como John, é um jovem adulto, do sexo masculino, estudante do ensino
superior na área das ciências exatas e tecnologia. Para ele o diagnóstico de TA somente surgiu
na adolescência, porém sua mãe – escolhida por ele como pessoa ideal para participar da
pesquisa - relata que na infância Chaves já teve levantada a possibilidade diagnóstica de
Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), devido a seu comportamento
discrepante de seus pares. Nesse sentido, fez por muitos anos acompanhamento com
profissional da psicologia clínica. No entanto, somente na adolescência, quando cursava o
ensino médio, a psicóloga de sua escola sugeriu a possibilidade do TA e ele foi encaminhado
para avaliação, que foi realizada no serviço de psicologia na UFRN e cujos resultados
corroboraram com o diagnóstico do TA. Chaves faz até o momento acompanhamento com
profissional da fonoaudiologia, devido a dificuldades na entonação da voz e no discurso.
Os dois encontros realizados com Chaves ocorreram nas dependências do Serviço de
Psicologia Aplicada da UFRN (SEPA), em horários combinados previamente com Chaves,
sempre antes ou após suas aulas.
O que é ser Asperger
Episódio 1
122
1. E: [passa o vídeo] você entendeu a história?
2. R: sim
3. E: Oh é um ser de outro planeta que veio habitar a terra. Como vimos no vídeo,
ele é um Boov, e todos os boovs receberam um panfleto sobre como a terra funciona. No filme,
nós vemos que o Oh está começando a aprender sobre muitas coisas e, agora, está
particularmente interessado em aprender sobre as pessoas desse planeta, mas, como vimos,
ele percebeu que nem tudo está no panfleto e as pessoas parecem mais complicadas do que diz
lá. Uma coisa que ele descobriu é que existem pessoas que têm transtorno de Asperger, mas
não achou nada sobre isso no panfleto. Ele acredita que que adolescentes ou jovens adultos
como você, com SA, são os verdadeiros experts que podem ensinar as outras pessoas sobre
como é ter SA. Ele gostaria de entender sobre como é ter TA, como isso te afeta e como faz
você se sentir, bem como que impactos da SA você percebe no seu dia-a-dia.
4. R: o que eu não entendo é porque que...? Peraí, como é o nome dele?
5. E: OH. O – H.
6. R: o que eu não entendo é porque toda vez que ele chegava a alguém dava bom
dia, boa tarde alguém dizia “ooh”.
7. E: aí ele acha que esse é o nome dele. O OH era sempre muito animado e os
boovs não eram muito animados aí toda vez que ele chegava a eles diziam “ooh”...aí ele acha
que esse é o nome dele.
8. R: aah sim
9. E: aí uma coisa que o Oh descobriu depois que chegou a Terra foi que existe
uma coisa chamada “SA”...
10. R: huum
11. E: só que não tem nada sobre isso no panfleto...
12. R: ele descobre isso no filme??
123
13. E: É...não! Não tem no filme. Essa é uma atividade lúdica, de faz de conta. A
gente vai fazer de conta
14. R: huum
15. E:...e como o Oh descobre a SA e não acha nada sobre isso no panfleto, ele vai
te entrevistar. Ele acredita que pessoas que tem SA é que sabem mais sobre isso e por isso ele
quer saber de você.
16. R: eu até já tinha pensado nisso também porque por mais que a pessoa tenha
entendimento do que é miopia, dislexia, ou qualquer outra coisa, só a pessoa que realmente
tem é que pode explicar. Por exemplo, eh...tem na internet como uma pessoa míope vê...a visão
normal e a visão míope...só quem tem a visão míope realmente sabe como é, que é o meu caso.
Eu tenho um amigo que tem dislexia, a gente pagou mecânica clássica juntos. Eu não sabia
que ele tinha dislexia. Ele me disse que ele tinha muita dificuldade na escola, quando ele foi
fazer o ENEM ele teve que fazer outra prova, uma prova diferente, e com alguém ajudando ele.
Ajudando que eu digo, lendo...
17. E: Sim. Tem mesmo. Chama o ledor. Alguém pra ler pra ele. Pois então é isso...o
OH acredita que quem tem SA ou quem tem miopia ou quem tem dislexia é que é o verdadeiro
expert que pode ensinar isso as pessoas. Então ele gostaria de entender como é isso...
18. R: claro!
19. E:...como é ter SA, como isso te afeta, como você se sente e como você percebe
isso no seu dia a dia.
20. R: uhum...
21. E: e aí? O que é ter SA pra você?
22. R: bem...no início eu não dei tanto valor a esse assunto. Quando eu soube que
era só um espectro autista, minha mãe ficou mais aliviada por saber que era apenas o grau
mais leve de autismo.
124
23. E: sim
24. R: no início eu não dei tanta bola, mas depois que eu soube que a SA é conhecida
como síndrome dos gênios aí eu comecei a dar um certo valor a isso que eu tenho.
25. E: huum...por que?
26. R: meio difícil de explicar essa parte mas eu...mas assim sinceramente eu não
me envergonho de ter SA até porque um dos maiores gênios da humanidade, que já ganhou o
prêmio Nobel de física e desenvolveu as leis de Newton, esses dois cientistas tinhas a SA.
Inclusive um jogador de futebol muito famoso, o Messi, que é considerado um dos melhores do
mundo e foi considerado o melhor jogador de fute...o melhor jogador da copa do mundo de
2014, ele foi considerado o melhor jogador daquela copa do mundo.
No primeiro episódio referente a Chaves, chama a atenção, primeiramente, o
distanciamento dele em relação as características e ao transtorno de Asperger. Quando
perguntado inicialmente sobre como ter TA o afeta e como ele se sente, sua resposta sugere
indiferença perante ao assunto. Tal característica pode ser vista no turno 22 quando ele fala “no
início eu não dei tanto valor a esse assunto. Quando eu soube que era só um espectro autista,
minha mãe ficou mais aliviada por saber que era apenas o grau mais leve de autismo”.
Ao mesmo tempo, juntamente a esse distanciamento, sua fala esteve atrelada a opinião
do outro e ao que outras pessoas pensam sobre o assunto. No turno 22 isso também está presente
quando ele traz os sentimentos da mãe em relação ao diagnóstico e não os dele próprio.
Diferentemente de John, as falas de Chaves nesse episódio remetem em sua maioria a
orientação externa, sugerindo que ele traz significados, mas possui dificuldades na
representação do sentido do TA e das características desse para ele. Os momentos em que isso
ocorre são no turno 24, no trecho “no início eu não dei tanta bola, mas depois que eu soube que
a SA é conhecida como síndrome dos gênios aí eu comecei a dar um certo valor a isso que eu
125
tenho” e “meio difícil de explicar essa parte mas eu...mas assim sinceramente eu não me
envergonho de ter SA até porque um dos maiores gênios da humanidade...”. Na primeira fala
Chaves se refere a característica cognitiva de “gênio” ou de inteligência acima da média, que
comumente está associada ao TA. Na segunda, ele traz elementos que sugerem o sentido afetivo
do TA para ele quando diz “eu não me envergonho”. Porém, ele diz não se envergonha, mas
sua explicação do porquê envolve outras pessoas que supostamente tem TA e não características
próprias.
Por fim, no início da atividade, no turno 16 ele fala “eu até já tinha pensado nisso
também porque por mais que a pessoa tenha entendimento do que é miopia, dislexia, ou
qualquer outra coisa, só a pessoa que realmente tem é que pode explicar. Por exemplo, eh...tem
na internet como uma pessoa míope vê...a visão normal e a visão míope...só quem tem a visão
míope realmente sabe como é, que é o meu caso”. Em sua fala, Chaves faz uma analogia sobre
ter TA e ter miopia a partir da fala da entrevistadora e reafirma que só ele, ou outras pessoas
que tem miopia, poderiam falar sobre isso, ficando novamente na teoria sem trazer exatamente
como isso se dá. Imediatamente Chaves passa para outro exemplo de outra pessoa que teria
dislexia.
Episódio 2
1. E: Sim...verdade eu já ouvi falar. E o que é isso? O que é a SA?
2. C: bem, é um espectro autista em que o indivíduo ele tem as características de
um autista só que é num grau mais leve porque, diferente de um autista, ele consegue
desempenhar certas atividades sozinho e tem fala compreensível, mas a voz também varia de
pessoa pra pessoa. De portador pra portador.
3. E: E como é que você sabe se alguém tem SA?
126
4. C: bem, eu gostaria de usar como exemplo uma coisa que aconteceu comigo
esse ano que foi nas disciplinas de expressão gráfica e mecânica clássica. Eeh...eu tava com
uma certa dificuldade em expressão gráfica em relação aos meus outros colegas, enquanto eles
já tavam desenvolvendo a terceira e ainda tava terminando a primeira, aí minha professora
ela viu que tinha algo de diferente em mim em relação aos outros e ela passou a dar uma
atenção maior a mim. Então, quando eu contei a ela que eu tenho SA de fato melhorou muito.
Uma colega minha eu contei pra ela que se eu não tivesse contado que eu tenho SA pra minha
professora eu teria me dado mal, mas ela disse...a primeira coisa que ela disse...ela não disse
“muito bem, C, você fez o certo” ela disse “olhe C, não use isso como desculpa pra não estudar,
porque capacidade você tem”. Eu de fato fiquei um pouco chateado com isso. Eu contei pra
um colega meu o que tinha acontecido e ele disse que me entende e que...ele não disse isso a
ela, mas disse pra mim que ela não devia ter dito isso porque...é meio difícil de explicar,
mas...eh...como posso dizer? Ele disse eh pra que...ele disse..eeh...que ela não devia ter dito
isso porque ela não sabe o lado de quem tem eh...de uma certa forma...e a minha outra
experiência em mecânica clássica eu já tinha tirado nota baixa nas duas primeiras
unidades...o...e o meu professor de mecânica ele vinha notando algo de diferente em mim em
relação aos outros. Eu perguntei: “como assim algo diferente?” Ele disse: “você é agitado.
Não muito, mas é um pouco agitado”. Eu perguntei? “como assim?” Aí ele disse: “olhe, eu to
copiando aqui no quadro. Tudo bem, você também ta copiando no seu caderno, mas quando
eu viro pra dar aula eu não percebi muito isso em você no...na primeira unidade, mas na
segunda eu passei a perceber mais e vi que você...ehh...enquanto tava todo mundo olhando pra
mim você tava olhando pra outra...pro outro lado”. Bem, foram alguns desses comportamentos
que os ajudaram, que...ja foram assim...despertaram o pensamento deles: “não esse aluno deve
ter alguma coisa de diferente em relação aos outros”.
127
5. E: E pra você? Como foi isso? Como é que você percebe em você? Você percebe
alguma coisa que é diferente?
6. C: Bem, todos nós temos diferenças...
7. E: claro.
8. C: é...mas assim...eu...eu quando era pequeno, quando eu tava no fundamental,
foi no 8 ou 9 ano, antes eu até me enturmava. Eu fui deixando de me enturmar aos poucos,
tinha momentos que eu ficava só. Alguém chegava pra mim: “C, por que você tá aí só?” e
assim...e eu...eu não...em nenhum momento eu contei pra minha mãe o que tava acontecendo,
eu simplesmente deixei...eh...deixei ir pela correnteza, deixei a correnteza me levar.
9. E: sim...isso foi uma coisa que você percebeu?
10. C: bem, eu não dei muita bola pra isso também...
11. E: Hum..e como você acha que isso te afeta no dia a dia? Ou não?
12. C: Bem, hoje em dia não me afeta mais, porque depois que eu soube que eu
tenho Asperger minha vida melhorou e muito. Por que? Porque deu pra fazer certas coisas.
Deu pra melhorar coisas que eu já sabia que eu tinha, aí deu pra melhorar...
13. E: o que?
14. C: é...alguns dos meus colegas...eles sabem que eu tenho SA e eles me entendem
e assim, hoje em dia eu ainda me isolo, mas não é com tanta frequência e tipo de tanto eu me
isolar nesse tempo hoje em dia se eu me isolar eu não sinto mais nada...
15. E: hum...como assim não sente mais nada? O que você sentia antes?
16. C: não, não sentia tanta diferença não...
17. E: hum...e o que são coisas que você acha que melhorou depois que você soube?
18. C: bem, eu...como um dos sintomas da SA é ...uma...eu não sei a palavra certa
agora, mas...é uma voz diferente. Eu falava muito, mas muito devagar, aí depois que eu soube
a psicóloga responsável por mim no ano de 2012 ela pediu pra que eu continuasse na
128
fonoaudióloga, porque eu já usei aparelho. Ela pediu pra que eu continuasse na fonoaudióloga
porque pra tentar melhorar minha voz...e deu certo. Eeh...tanto é que esse meu professor de
mecânica, quando eu disse a ele, ele disse “olhe C, eu também já percebi que você fala muito
bem explicado, mas você não consegue expressar isso no papel”
19. E: huum...você concorda com ele?
20. C: concordo.
21. E: E você tem algum amigo ou conhece mais alguém que tem SA?
22. C: Bem, é...sim...eu diria pra essa pergunta duas respostas e não é com “e”:
sim e não...não, eu quero dizer...não é com “ou” é com “e”. Sim e não, porque tem um amigo
meu que, diz ele que ele foi diagnosticado com SA, mas a mãe dele fala que ele tem TDAH.
23. E: aah é, você me falou desse amigo...e o que é que você acha que ele tem?
24. C: bem, é...pra ele ter repetido tanto tempo eu acho que...o que ele tem é
TDAH...
25. E: por que?
26. C: é que ele...segundo o que ele já tinha me dito uma vez, ele tinha dificuldade
em...eeh...eu não lembro direito eu só sei que ele tinha dito que...eh...já tinha reprovado muitas
vezes na escola, mas assim pra ele ter reprovado tanto eu acho que o que se encaixa melhor aí
é TDAH, porque embora a gente tenha certa dificuldade, muitas vezes a gente vai atrás, a gente
estuda, a gente conversa com um professor, com um colega...e eu acho qeu ele...ehh...não tava
estudando.
27. E: hum...então você acha que talvez as características dele não tenham a ver
com o asperger?
28. C: é.
29. E: e você já viu algo na TV, na internet...
30. C: já.
129
31. E: ...em filmes sobre isso?
32. C: Já. Aquela reportagem do Fantástico sobre...ehh...sobre o autismo. Aí o
subtítulo da reportagem: ehh...não não, o tema foi autismo e...e o segundo tema, como
po...ehh...vamos dizer...o segundo tema foi “universo particular”.
33. E: huum...eu não assisti essa reportagem, mas muita gente fala...como foi? O
que você achou?
34. C: bem, depois...eu resolvi assistir essa reportagem, porque...porque nesse
tempo eu já tava sabendo que tenho SA aí resolvi estudar melhor e vi alguns jovens...eh...teve
um adulto que tem SA e tem dois filhos autistas. Eu...não dei muita atenção a isso, mas eu
prestei atenção em dois jovens que um é dos Estados Unidos e ele tem...eh...no início do
primeiro capitulo não falava de síndrome de asperger, dizia apenas que ele era autista, só no
final que disseram eu ele tem asperger. Bem, na primeira reportagem eh...ele...alguns cálculos
que pra algumas pessoas parecem impossíveis...ele...pra ele em questão de segundos ele fazia.
Pra ele física quântica, mecânica clássica...pra muita gente isso pode...isso pode ser dor de
cabeça, mas pra ele era diversão e outro...e outro dessa vez aqui do Brasil, que também tem
SA, ele tava terminando o ensino médio...aliás...tava...eu acho que ele devia tá no primeiro ou
no segundo ano, mas ele já tinha feito cursos univer...alguns cursos universitários, não lembro
direito, mas que ele disse que ele prefere tá fazendo alguma atividade que envolve cálculo e
informática do que esporte porque pra ele esporte é apenas uma diversão. E...e uma coisa
também que esse jovem de dos estados unidos falou e que eu concordo com ele foi que...ele
disse que os autistas...os autistas que eu digo nós que temos SA, conseguem pensar de uma
forma mais lógica e mais clara. A mãe dele ficou preocupada porque achava que ele não ia
conseguir amarrar um cadarço, mas...mas não foi isso que aconteceu e ela descobriu que ele
tinha uma certa habilidade que muitas pessoas não tem e alguns especialistas dizem que um
dia ele poderá até ganhar um prêmio Nobel de tão inteligente na física que ele é.
130
35. E: e você se identifica com algum deles?
36. C: bem eu diria que não porque eu tenho minhas dificuldades. Embora eu goste
de matemática como eles eu ainda tenho minhas dificuldades em números. Pra
mim...eh...números é melhor do que letras...então...mas assim...eu só me sinto confortável
mesmo com os números se tiver um professor bom. Se tiver um professor que não consegue
passar o conteúdo ou que não ensina direito, eu fico agoniado
No segundo episódio da entrevista com Chaves ele traz, inicialmente, uma definição
teórica sobre o TA, associando à ideia de que se trata de um grau leve do autismo. Em sua
definição, no turno 2, ele ainda circunscreve características que são cognitivas, relacionadas à
fala, e ao funcionamento independente.
Nessa etapa da entrevista foi questionado a Chaves, e a todos os sujeitos, como se
identificar alguém com TA. Para responder a essa pergunta, Chaves descreveu características
específicas do funcionamento cognitivo, em especial aquelas relacionadas à agitação,
desatenção e lentificação. Essas são características que ele identifica nele mesmo, porém, não
são tradicionalmente associadas ao TA. Ainda acerca de características cognitivas, pôde-se
observar no turno 26 que para Chaves não existe associação entre o TA e dificuldades de
aprendizagem ou escolares, como exemplificado neste trecho “eu não lembro direito, eu só sei
que ele tinha dito que...eh...já tinha reprovado muitas vezes na escola, mas assim pra ele ter
reprovado tanto eu acho que o que se encaixa melhor aí é TDAH, porque embora a gente tenha
certa dificuldade, muitas vezes a gente vai atrás, a gente estuda”. Chaves acredita que pelas
dificuldades escolares apresentadas por seu amigo, ele não teria TA e sim Transtorno de Déficit
de Atenção e hiperatividade (TDAH).
Ainda nesse episódio Chaves apresenta, pela primeira vez, aspectos teóricos do
funcionamento cognitivo no TA e que ele identifica em si mesmo. Uma dessas características
131
é apresentada como uma forma distinta de pensamento, referido por ele como mais lógico e
claro, como mencionado no turno 34: “e uma coisa também que esse jovem de dos Estados
Unidos falou e que eu concordo com ele foi que...ele disse que os autistas...os autistas que eu
digo nós que temos SA, conseguem pensar de uma forma mais lógica e mais clara”. A
identificação nessa fala pode ser observada no trecho “os autistas que eu digo nós que temos
SA” e pela concordância com a existência dessa característica de pensamento.
O outro aspecto ressaltado por Chaves refere-se à presença de uma modalidade de fala
peculiar e característica do TA, principalmente quanto à entonação da voz. È interessante notar
que, no turno 18, ele se refere a sua própria forma de falar, descrita por como lentificada. Ele
historia que a identificação dessa característica em sua voz foi inicialmente feita por uma
psicóloga que o atendia e, em outro momento, por seu professor, ilustrando que ele, de certa
forma, se apropriou dessas falas para se descrever, ou melhor, ele “ toma emprestado” a fala do
outro para falar de si mesmo, construindo um discurso que tem poucos elementos autorais.
No turno 4, ele anuncia que dará um exemplo dele, sugerindo que trará sua percepção
acerca do TA. No entanto, o exemplo ao qual recorre diz respeito a percepções que terceiros
tiveram de seu comportamento, que os levaram a acreditar que ele fosse diferente, sugerindo
que o próprio Chaves tem dificuldades na identificação ou na construção de uma narrativa que
descreva a sua percepção.
o aspecto supracitado pode ser observado no trecho “Eu perguntei: ‘como assim algo
diferente? ’. Ele disse: ‘você é agitado. Não muito, mas é um pouco agitado’. Eu perguntei?
‘Como assim?’”. Após esse trecho foi questionado se ele mesmo percebia essas diferenças, ao
que ele responde, no turno 6: “bem, todos nós temos nossas diferenças”. Chaves responde
inicialmente à pergunta de forma generalista, como se afastasse o questionamento dele mesmo,
em seguida faz referência à percepção de aspectos de características de dificuldades sociais suas
132
e que se relacionam ao TA, porém diz que não “dava bola pra isso”, sugerindo que tais
características lhe eram indiferentes ou não impactavam do ponto de vista afetivo.
Ele repete a posição acima destacada, retomando o discurso de indiferença no turno
14, ao enunciar que: “hoje em dia eu ainda me isolo, mas não é com tanta frequência e tipo de
tanto eu me isolar nesse tempo, hoje em dia se eu me isolar eu não sinto mais nada...”.
Entretanto, com referências ao passado e presente (nesse tempo e hoje em dia) a fala “eu não
sinto mais nada” sugere que possivelmente no passado isso o afetava. Porém, quando
perguntado nesse sentido, Chaves nega e assume novamente a postura de indiferença.
Ainda quanto a esse aspecto afetivo, Chaves aborda no turno 12 como as características
do TA lhe afetam: “Bem, hoje em dia não me afeta mais, porque depois que eu soube que eu
tenho Asperger minha vida melhorou e muito. Por que? Porque deu pra fazer certas coisas.
Deu pra melhorar coisas que eu já sabia que eu tinha aí deu pra melhorar...”. Sua fala sugere
uma percepção positiva da descoberta do diagnóstico, que ele parece associar ao esclarecimento
de suas dificuldades, dizendo que essas (mencionadas na pergunta anterior) não mais o afetam,
desde que ele teve conhecimento do TA. Sua fala sugere a associação desse conhecimento com
a melhora na qualidade de vida pela busca de mudanças em seus comportamentos: “Porque
deu pra fazer certas coisas. Deu pra melhorar coisas que eu já sabia que eu tinha, aí deu pra
melhorar...”.
Asperger em outras pessoas: vinhetas como recurso para identificação em terceiros e
reconhecimento em si mesmo
Episódio 3
Ao contrário de John, Chaves não conhecia a série e seus personagens, logo, foi
necessário fazer dada a ele uma contextualização sobre a temática antes de iniciar a exibição
133
das cenas e ainda lhe foi solicitado que tentasse identificar quem seria o personagem que tem
TA.
1. E: olha só, agora eu queria te mostrar umas cenas de uma série...eu não sei se
você já viu...é essa aí.
2. C: é Friends?
3. E: Não, é The big bang theory.
4. C: Eu já ouvi falar nessa série, mas...mas nunca assisti.
5. E: pronto. Ela mostra o dia a dia de um grupo de amigos cientistas. E aí um
deles tem algumas características da SA, até umas coisas que você já mencionou, certo? Eu
vou passar as cenas e você vai me dizer quem você acha que é e o que você acha dessas cenas
que são características do TA. Tá certo?
6. C: está bem.
7. E: são só cenas de episódios diferentes, então vou contextualizar a série pra
você e qualquer dúvida você pergunta.
Cena1 – Sheldon conforta Leonard
8. C: (risos)
9. E: que é que você achou dessa?
10. C: é...eu acho que é esse aí o Sheldon...eu acho que o outro que tem SA.
11. E: não é o Sheldon?
12. C: não é o Sheldon.
13. E: vou passar essa.
14. C: essa...?
15. E: essa é outra.
Cena 2 - Penny está dormindo no sofá e Sheldon quer sentar
134
16. C: (risos)
17. E: e daquela? O que você achou?
18. C: bem...eu retiro o que eu disse...eu achei que era o outro que tinha SA, porque
ele...ele tava muito fechado ele não queria conversar, mas agora eu digo que é o Sheldon que
tem, porque...o.…porque eu pude ver que o Sheldon ele tem uma rotina e eu observei uma coisa
que eu também faço uma vez: repetir uma certa frase.
19. E: que nem o Sheldon?
20. C: é.
21. E: porque você repete a frase?
22. C: não é bem a frase, é mais assim...uma pergunta.
23. E: certo...repetir a pergunta?
24. C: isso.
25. E: vou passar a próxima.
26. C: a última.
27. E: ainda não.
Cena 3 - Os quatro amigos vão a um restaurante e não conseguem pedir
28. C: (risos)
29. E: O que você achou dessa?
30. C: engraçada (risos)
31. E: (risos) E você viu algo nessa cena que você acha que pode ser porque ele tem
asperger?
32. C: Sim. É.… eu observei que ele é bem lógico e que ele só quer começar a.…ele
só quer fazer o pedido quando o outro amigo chegar e que ele fica insistindo o tempo
todo...eh..."não vamos pedir enquanto o ‘tananam’ não chegar”.
33. E: e como você acha que isso se relaciona? Porque?
135
34. C: ele também foi repetitivo e chato e foi bem lógico quando disse: não, vamos
dividir o bolinho. Aí ele disse: não, se dividirmos o bolinho não vai ser mais um bolinho, vai
ser no máximo um sanduichezinho. (risos)
35. E: (risos) vou botar a próxima.
Cena 4 – Sorriso de Sheldon
36. C: (risos)
37. E: nessa o que é que você achou
38. C: eh...eu acho que por certo ele tava nervoso. “Como que eu vou me
com...ehh...me portar lá dentro?” E quando o cara disse sorria ele levou ao pé da letra e ele
sorriu mesmo aí quando ele disse “sorria com menos dentes” ele levou ao pé da letra também.
39. E: vou botar outra. Essa é com a Penny. Penny deu um presente de natal a
Sheldon que ele gostou muito.
Cena 5 – Presente de natal para Penny
40. C: (risos)
41. C: ele não toca não nos outros é?
42. E: ele não gosta muito.
43. C: é igual a mim de vez em quando.
44. E: você não gosta muito também?
45. C: de vez em quando não...aí quando é forçado é que não gosto mesmo
46. E: certo. Mais quando é espontâneo e quando você quer?
47. C: aí sim eu aceito
Cena 6 – Empréstimo de dinheiro a Penny
48. C: (risos) Ele não sabe nem o que ela tá escutando (risos).
136
49. E: o que você acha que pode ter a ver essa cena?
50. C: eeh...ele só entende alg...tem algum que só entendem algo se for específico.
Acho que foi o caso do Sheldon quando a menina veio correndo e disse feche a porta. Ele não
entrou, ele apenas...ele ficou lá fora sem entender o que tinha acontecido, aí ela abriu a porta
de novo e disse “entre e feche a porta”
51. C: (risos)
52. E: aquela era outra? O que você achou dessa?
53. C: ele não entendeu bem quando ele perguntou se.…ele perguntou a ela se ela
estava sendo sarcástica, ela disse não, aí ele perguntou pro outro amigo ele disse sim aí “afinal
ela foi ou não? ”
54. E: essa pode ser uma característica?
55. C: sim.
Cena 7 – Conversa desconfortável
56. E: naquela?
57. C: eeh...
58. E: viu algo?
59. C: sim. O fato dele ter demorado a perceber que ela tava chateada. Que ela não
queria...ele perguntou se ela se importaria de ter relações sexuais com homens fora do
casamento. Ela não gostou. E Sheldon ficou procurando expressões nela que ajudasse a
entender que ela...que ela não queria conversar sobre isso.
60. E: essa é uma característica também?
61. C: uhum.
Cena 8 - Decifrando expressão de Rajesh
62. E: e nessa você identifica algo?
137
63. C: o fato dele não conseguir interpretar expressões faciais. Isso eu não diria
que é muito uma característica de um asperger, mais de um autista. Não num grau muito
exagerado, mas num grau acima da SA eu diria que é um...bem...que é isso, que...
64. E: essa não é uma coisa que você percebe? Que você tem dificuldade?
65. C: eu...não, não tenho muita dificuldade não em identificar isso.
Cena 10 - Sheldon e Leonard se conhecem
66. E: essa é a cena que mostra como eles se conheceram.
67. C: (risos)
68. E: e nessa aí? Você viu algo?
69. C: é.…eu percebi que ele se interessa muito por química e ele ficou empolgado
quando descobriu que um cientista também iria morar com ele aí começou a fazer umas
perguntas. É.…a primeira pergunta foi sobre um gás nobre, aí quando viu que ele...que o cara
sabia ele passou pra outra pergunta. Esse cara sabia e eu percebi também que o Sheldon é
muito...ele só aceita as coisas do jeito dele...igual a certos professores daqui...
70. E: huum...verdade (risos) E você acha que alguma dessas características é uma
característica da SA? Dessa cena?
71. C: bem, eu...eu diria que o fato dele ser bem particular, dele só aceitar as coisas
do jeito dele “não, eu que sento aqui e...eu que...eh...eu...eu gosto de sentar aqui, porque aqui
é melhor e o seu lugar é ali...pessoas não entram no meu quarto”. De fato, ele é bem fechado,
bem particular. O fato dele só aceitar as coisas do jeito dele.
72. E: uhum...próxima.
Cena 11 – Ofensa a Penny
73. E: (explicação sobre quem é Amy)
74. C: (risos)
138
75. E: Nessa aí? Viu alguma?
76. C: não. Só o fato dele não ter percebido que tinha sido um insulto.
Cena 12 - Funeral
77. E: olha, essa é Amy.
78. C: UAU ela é tão velha!
79. E: nessa aí?
80. C: éé...ele...dá pra ver que ele tem certas dificuldades em entender sentimentos,
mas assim, todo...nem todos os aspergers são iguais...alguns tem dificuldades em entender
certos assuntos enquanto outros têm capacidade de entender uma expressão facial, por
exemplo.
81. E: certo. Você acha então que essa é uma dificuldade do Sheldon?
82. C: sim.
Cena 13 – Garoto especial
83. C: rsrs
84. E: e nessa?
85. C: eh...eu diria que não porque ele tava vendo...eu acho que assim era uma
coisa que ele tav...não não, pera aí eu retiro meu “não” porque ele tava identificando uma
coisa que o outro não tinha conseguido identificar quando ele disse...quando ele falou em
números primos.
86. E: Então é uma coisa que ele faz melhor que o Raj?
87. C: Isso.
Cena 14 – Experimento com Penny
88. C: (risos)
139
89. E: nessa o que você achou?
90. C: ehh...quando ele tava brincando com ela sobre os superpoderes logo de
primeira ele entendeu que ele tava caçoando ela. Mas aí depois ele disse que ele gostaria de
ter um superpoder que ela tem que é o de ler men...a mente dos homens porque todos os homens
são iguais...ela disse que...aí ele disse que “mas eu te invejo, porque eu queria poder ler a
mente de todos pra saber o que estão pensando sobre mim. Se estão tristes, se estão felizes, se
tão falando algo de mim”.
91. E: você acha que essa é uma característica?
92. C: pode ser...
93. C: eh...eu percebi que ele levou ao pé da letra, quando ela disse: se você fosse
morrer hoje, você contaria algo a alguém que você deixou de contar? “ Ele: “eu vou morrer
hoje??”. Já aconteceu de eu levar ao pé da letra e não perceber que era só uma brincadeira
ou que tinha um significado por trás daquilo.
94. E: certo.
95. C: (risos)
96. E: Sheldon está falando que tem memória eidética, que lembra de tudo em
muitos detalhes.
97. C: ah tá.
98. E: e nessa cena?
99. C: é.…eu acho que a parte do contato visual que e uma coisa que eu acho que
eu não identifico isso nele porque geralmente os aspergers...alguns, nem todos, não mantem
contato visual
100. E: Certo. Você acha que o Sheldon mantém?
101. C: Bem, ele tava mantendo até aquele momento.
140
102. E: Certo. E de forma geral, das cenas que você viu do Sheldon, o que é que você
acha que são características que ele tem que tem a ver com o asperger?
103. C: Primeiramente a superinteligência dele, o fato dele não conseguir perceber
certos sentimentos, como foi o caso que algumas vezes alguns personagens estavam tristes ou
chateados e ele não percebia. O fato dele seguir sempre uma mesma rotina e de repetir as
coisas. Tipo ele, eu coloco dois por cento de leite no meu cereal, com essa mesma quantidade
de gramas e assim que coloco ou assistir a BBC. O fato dele ser bem repetitivo.
O terceiro episódio da entrevista de Chaves evidencia que ele conhece mais
características do TA do que mencionou nos episódios anteriores, pois ele reconhece e
interpreta corretamente grande parte das situações apresentadas nas cenas. Tal aspecto pôde ser
identificado desde o início dessa etapa, em especial pelos critérios ele utilizou para identificar
qual o personagem teria o diagnóstico: primeiro ele associa Leonard ao TA, mas já na segunda
cena muda de ideia: “ele (Leonard) tava muito fechado ele não queria conversar, mas agora eu
digo que é o Sheldon que tem, porque...o.…porque eu pude ver que o Sheldon ele tem uma
rotina e eu observei uma coisa que eu também faço uma vez: repetir uma certa frase”. Nessa
fala, ele circunscreve como característica principal para identificar Leonard como sendo
asperger o ser “fechado”, comportamentos que podem se relacionar a dificuldades no âmbito
social e à presença da rotina e repetição, estas podem estar associadas ao aspecto cognitivo de
padrões restritos e repetitivos de comportamento.
Ainda quanto às características cognitivas identificadas por Chaves, observa-se que
estas fazem referência a uma forma de pensar específica, mais lógica, a qual ele reportou-se no
segundo episódio. Tal aspecto pode ser identificado no turno 32, quando ele descreve Sheldon:
“... bem lógico e que ele só quer começar a.…ele só quer fazer o pedido quando o outro amigo
chegar e que ele fica insistindo”. Parece haver uma associação entre o pensamento lógico,
descrito por Chaves, e os comportamentos repetitivos, conforme ilustrado no seguinte trecho:
141
“ele também foi repetitivo e chato e foi bem lógico quando disse: não, não vamos dividir o
bolinho”.
Além dos aspectos cognitivos supracitados, Chaves ressalta diversas características
que aludem a aspectos sociais, notadamente dificuldades na interação e comunicação social, em
especial a linguagem pragmática e a compreensão de situações sociais.
Nos trechos a seguir são identificadas passagens nas quais são feitas interpretações
literais de situações sociais: “E quando o cara disse sorria ele levou ao pé da letra e ele sorriu
mesmo aí quando ele disse ‘sorria com menos dentes’ ele levou ao pé da letra também”; “ele
só entende alg...tem algum que só entendem algo se for específico. Acho que foi o caso do
Sheldon quando a menina veio correndo e disse feche a porta. Ele não entrou, ele apenas...ele
ficou lá fora sem entender o que tinha acontecido, aí ela abriu a porta de novo e disse ‘entre e
feche a porta’”.
Em outro trecho verifica-se que ele identifica quando o personagem não percebeu uma
situação de sarcasmo: “ele não entendeu bem quando ele perguntou se.…ele perguntou a ela
se ela estava sendo sarcástica, ela disse não, aí ele perguntou pro outro amigo ele disse sim aí
‘afinal ela foi ou não?’”).
Outro contexto destacado por Chaves refere-se ao reconhecimento e uso de expressões
faciais, conforme ilustram os seguintes trechos: “O fato dele ter demorado a perceber que ela
tava chateada. Que ela não queria...ele perguntou se ela se importaria de ter relações sexuais
com homens fora do casamento. Ela não gostou. E Sheldon ficou procurando expressões nela
que ajudasse a entender que ela...que ela não queria conversar sobre isso”; “o fato dele não
conseguir interpretar expressões faciais”. No trecho abaixo, Chaves ainda assume posição
de discordância em relação à dificuldade do asperger para manter contato visual assumida por
Sheldon: “eu acho que a parte do contato visual, que é uma coisa que eu acho que eu não
142
identifico isso nele porque geralmente os aspergers...alguns, nem todos, não mantém contato
visual”.
De maneira geral, nesse episódio, Chaves faz um movimento de associar e atribuir
características do TA a ele mesmo, ainda que não lhe tenha sido solicitado diretamente. Isso
ocorre, por exemplo, no seguinte trecho: “é.…eu percebi que ele levou ao pé da letra, quando
ela disse: se você fosse morrer hoje, você contaria algo a alguém que você deixou de contar?
“ Ele: “eu vou morrer hoje??”. Já aconteceu de eu levar ao pé da letra e não perceber que era
só uma brincadeira ou que tinha um significado por trás daquilo”. Nesse turno ele aborda
novamente a característica de interpretação literal de situações do TA, identificando-se com ela
e dando um exemplo de como isso se traduz para ele. Chaves aponta ainda dificuldades com o
contato físico que ele percebeu em Sheldon e com as quais se identifica.
Ao final do episódio, ele consegue resumir todas as características de Sheldon que
associa ao TA, abrangendo comportamentos relacionados a aspectos cognitivos e sociais,
conforme ilustrado neste trecho: “a superinteligência dele, o fato dele não conseguir perceber
certos sentimentos, como foi o caso que algumas vezes alguns personagens estavam tristes ou
chateados e ele não percebia. O fato dele seguir sempre uma mesma rotina e de repetir as
coisas”.
Episódio 4
1. E: Hum. E algumas das coisas que você viu...você acha que você se identifica?
Você também tem ou não?
2. C: Não.
3. E: Nenhuma das coisas?
4. C: Não.
143
5. C: Só o fato de eu as vezes ser...bem...eu diria que...eu vou dar um exemplo.
É...nas férias do início do ano eu paguei uma disciplina de química da ect...
6. E: certo
7. R: eh...eu já tinha dito aqui que eu demonstrei um conhecimento...eu...um
conhecimento não, perdão. Que eu resolvi um problema no quadro
8. E: Foi, você falou
9. R: Só que quando eu cheguei lá, antes de eu entrar na turma de férias uma coisa
que eu disse pra mim mesmo, eu botei na minha cabeça: eu vou, vou pagar a turma de férias,
mas eu não vou pra fazer amigos, eu vou pra estudar, mas eu diria que meu plano terminou
fracassando.
10. E: Foi?
11. R: Foi.
12. E: Você acabou fazendo amigos?
13. R: Isso. Eu não tava querendo me enturmar muito, mas assim teve uma menina
que ficou no meu pé. Eu diria que se eu não soubesse que eu tinha SA eu acho que eu teria
expulsado ela, mas como eu já sabia eu procurei manter a calma e comecei a dar atenção a
ela.
14. E: Hum. Porque, como você acha que te ajudou nesse caso saber?
15. R: Bem, porque se eu não soubesse eu acho que eu não teria paciência. Minha
paciência teria se esgotado de vez e eu diria: “eu não quero conversa! Vá procurar o que fazer!
Vá procurar outro pra conversar! ”. Eu teria dito isso se eu não soubesse que eu tenho SA.
16. E: hum, isso faz você ter mais paciência?
17. R: Já fez.
18. E: E antes de você saber você acha que você faria isso?
19. R: O que?
144
20. E: De dizer a ela que não queria conversa
21. R: Bem, eu acho que se eu não soubesse eu teria dito sim.
22. E: E como é que você soube? Quem te falou?
23. R: Bem, eu só fui saber mesmo em 2013. Mas assim, no final da pesquisa que S.
tinha feito eu acho até que ela disse, mas eu não tinha prestado muita atenção nisso, até porque
eu há um tempo atrás, até 2012 por aí eu não prestava muita atenção nas coisas.
24. E: Como assim?
25. R: Eu simplesmente era como uma missa de corpo presente. Eu tava ali, mas
meu pensamento tava em outro lugar e ...mas assim uns professores da escola souberam antes
de mim, porque a psicóloga tinha dito, aí teve um professor que depois que soube – eu não
percebi – mas as provas dele que eram complicadas passaram a ficar mais fáceis, não só pra
mim, mas pra turma também.
26. E: Hum. Você acha que ele mudou as provas?
27. R: Ele disse.
28. E: E quem te falou a primeira vez foi a S.?
29. R: Foi
30. E: E antes disso você percebia alguma coisa?
31. R: Não, não prestava muita atenção em mim não.
32. E: Huum. Mas como foi assim que você soube? Como você chegou até S.?
33. R: Eh...porque eu tava com dificuldade em memorizar o assunto da prova, de
uma prova...eu disse pra minha mãe, minha mãe contou pra E. o que tava acontecendo e E. eu
acho que ela deve ter contado pra S. Nessa época ela tava fazendo um projeto e precisava de
alguém, aí E. me encaminhou pra S..
34. E: E você lembra de ter sido testado? De ter feito alguma coisa?
35. R: Bem, eu lembro que eu fiz os testes que eu fiz aqui nesses dias.
145
36. E: E como te disseram? Como ela te disse da SA?
37. R: Num lembro direito. Só sei que a gente tava sentando nesses bancos aí
(aponta para as poltronas do SEPA).
38. E: Foi aqui?
39. R: Não, foi na outra sala.
40. E: E o que é que você acha que fez você ser assim? Porque que você acha que
tem SA?
41. R: É bem, como eu já tinha dito pelo modo como eu ajo em relação aos outros.
42. E: Como é esse modo?
43. R: Bem, não foi a primeira vez que isso aconteceu esse ano. A primeira vez foi
em 2004. Não, fiz antes, porque enquanto meus colegas já aprendiam a fazer as coisas sem
muita dificuldade eu tive muita dificuldade em aprender a escrever letra minúscula. E em 2003
uma coisa que minha professora da alfabetização fazia muito era me ensinar a usar a tesoura
e por mais que eu tentasse eu não conseguia. Em 2004 não foi diferente. Teve uma vez que a
professora passou...foi só livro, nada de caderno enquanto eu tava na...tava todo mundo na
última eu ainda tava terminando a primeira.
44. E: E você acha que isso era uma característica?
45. R: Da tesoura e...? Sim.
46. E: Mas eu te perguntei também num sentido do que você acha que causou isso?
Se algo causou?
47. R: Se algum problema da descendência? Não sei...
48. E: Como você se sente sobre ter SA?
49. R: Num fico triste com isso não. Também eu não fico feliz. Mas eu me sinto bem,
eu tô tentando vencer minhas limitações.
146
50. E: Mas você mesmo falou coisas positivas né? que tem relação. E de fato todo
mundo é diferente e quem tem SA também é diferente, mas quem tem dislexia também...e é só
uma forma de ser, não é um problema. E como todo mundo tem coisas boas, pontos de força
que a gente chama, e coisas em que a pessoa não é tão boa. Pra você o que você acha que são
coisas boas que têm relação com a SA?
51. R: Bom o fato da...da inteligência, a minha inteligência não é como a daqueles
meninos que passaram naquela reportagem, mas eu não fico triste com isso.
52. E: E o que é que você acha que são dificuldades que você tenha que são
associadas à SA?
53. R: Bem, é... já tinha dito, vou repetir. Que algumas dificuldades que eu tinha no
passado hoje eu não tenho mais, como é o caso de me enturmar, que hoje em dia eu me enturmo.
Quando eu não me enturmo é porque eu não tô no horário de aula dos meus amigos. Bem é...é
só isso.
54. E: Hum. Você acha que é uma dificuldade, mais nisso em relação a fazer
amigos?
55. R: Não, não tenho dificuldade com isso não.
56. E: Não, mas que era?
57. R: Bem é...eu tive um melhor amigo até o 9 ano. A gente não se fala há algum
tempo no Facebook, mas assim...embora eu visse ele como melhor amigo, eu não falava muito
com ele. Eu assim, uma característica que eu observei no Sheldon e que eu agora lembrei sobre
mim é que em 2011, que foi o último ano que nós estudamos juntos que eu disse duas coisas
pra...eu disse uma coisa pra ele duas vezes, em dois tempos diferentes, que assim... deixaram
ele chateado e eu não percebi.
58. E: Hum...hoje você lembrando percebe que talvez ele tenha ficado chateado?
59. R: Não, eu percebi depois
147
60. E: E como é que saber mudou sua vida?
61. R: Porque coisas que eu tinha dificuldade, como me enturmar, assim... eu diria
que de um modo geral melhorou e muito, porque eu me senti mais tranquilo. Eu acho até que
depois de eu ter dito pros meus professores o que eu tenho eu me senti mais tranquilo, até
porque foi como se eu tivesse tirando um peso das minhas costas.
62. E: E tem alguém na sua vida com quem você se sente confortável falando sobre
isso?
63. R: Bem é...uns amigos meus que eu tenho que a gente mantém...eles moram...
que a gente mantém contato no Facebook, as vezes a gente sai...um eu conheci no SENAC. No
SENAC não, perdão, no FISK, e o outro eu conheci através desse meu amigo.
64. E: Sim. Com eles você conversa. E com sua família? Você conversa sobre isso?
65. R: Não, sobre SA... eu num toco nesse assunto não com a minha família.
66. E: Mas como é pra eles?
67. R: Num sei...assim, minha mãe ficou aliviada porque soube que não era um caso
de autismo grave.
68. E: E que conselho você daria a outra pessoa? Um adolescente, uma criança ou
mesmo um jovem adulto assim da sua idade que acabou de descobrir que tem SA o que você
diria a ele?
69. R: Bem, o que eu diria é: não tenha vergonha de você. Não tenha vergonha da
sua história e do seu passado, pelo contrário. Procure corrigir os erros que você não percebia
que tinha no passado pra tentar melhorá-los no futuro.
70. E: Uhum. E que conselho você daria pros pais desses adolescentes?
71. R: Não fiquem tristes. Tenham paciência.
72. E: Essa era minha última pergunta da entrevista, mas antes de terminar tem
alguma coisa que você gostaria de acrescentar? De falar? Que você não falou...
148
73. R: Não
74. E: E como foi pra você fazer essa entrevista?
75. R: É, até que foi bom porque eu já tinha pensado nisso que a melhor pessoa pra
responder uma pergunta sobre a SA é o próprio asperger.
76. E: Então você acha que foi bom?
77. R: Foi
78. E: Mas você acha que foi desconfortável falar sobre isso?
79. R: Não.
A análise deste último trecho da entrevista revela uma inconsistência, pois enquanto
no episódio anterior Chaves se identificou espontaneamente com diversas características do
personagem da série, quando requisitado formalmente a falar sobre essa identificação, ele
primeiramente nega e, em seguida, diz existir uma, sendo esta referente a dificuldades de
socialização.
Neste último episódio, identifica-se no discurso de Chaves a presença de elementos
referentes a aspectos cognitivos e sociais do TA, em especial quando ele responde acerca dos
pontos positivos e negativos do diagnóstico. Destarte, traz a inteligência como característica
positiva do TA, no entanto, ele não reconhece nele esse atributo, como ilustrado a seguir: “Bom
o fato da...da inteligência. A minha inteligência não é como a daqueles meninos que passaram
naquela reportagem, mas eu não fico triste com isso”.
No que se refere aos pontos negativos, Chaves associa ao TA um conjunto de
características ligadas a dificuldades no desenvolvimento, principalmente motoras e de
aprendizagem. Adicionalmente, traz elementos relacionados a dificuldades sociais como
identificado no turno 53 “Bem, é.... já tinha dito, vou repetir. Que algumas dificuldades que eu
149
tinha no passado hoje eu não tenho mais como é o caso de em enturmar que hoje em dia eu me
enturmo”. Porém, diz que são dificuldades do passado que já não existem.
De modo geral, apesar das falas de Chaves que sugerem que ele teve dificuldades de
identificar tanto características positivas, quanto negativas associadas ao diagnóstico, ele
reafirma que receber o diagnóstico foi positivo, por permitir a superação de dificuldades,
principalmente em seus relacionamentos. Isto pode ser observado no turno 61: “Porque coisas
que eu tinha dificuldade, como em enturmar, assim eu diria que de um modo geral melhorou e
muito, porque eu me senti mais tranquilo. Eu acho até que depois de eu ter dito pros meus
professores que eu tenho eu me senti mais tranquilo até porque foi como se eu tivesse tirando
um peso das minhas costas”.
Nesse episódio, quando questionado diretamente acerca de seus sentimentos quanto à
experiência de ter TA, Chaves traz elementos que sugerem aparente indiferença, como
observado no turno 23 de sua fala: “Bem, eu só fui saber mesmo em 2013. Mas assim, no final
da pesquisa que S. tinha feito eu acho até que ela disse, mas eu não tinha prestado muita
atenção nisso, até porque eu há um tempo atrás, até 2012 por aí eu não prestava muita atenção
nas coisas”. Nesse turno, Chaves refere-se ao momento em que foi testado e recebe o
diagnóstico de TA, ao qual ele diz não ter prestado atenção, logo, o diagnóstico não o afetou
emocionalmente e Chaves era indiferente ao assunto.
No entanto, suas falas sugerem que em algum momento ele passou a prestar atenção a
seu diagnóstico e tentar compreendê-lo. Porém, seus sentimentos sobre ter TA não parecem ter
se modificado, mantendo-se uma aparente neutralidade emocional, como sugere o turno 49:
“Num fico triste com isso não. Também eu não fico feliz. Mas eu me sinto bem eu tô tentando
vencer minhas limitações”. Chaves mantem-se neutro e parece aceitá-lo naturalmente,
150
integrando-o à percepção de si mesmo e ao seu dia-a-dia. Isto é corroborado nos turnos 69 e 71,
nos quais aconselha jovens com TA e pais desses jovens.
O TA para os pais e filhos: ecos de vozes e percepções
A entrevista realizada com a mãe de Chaves seguiu o mesmo roteiro da de seu filho.
Inicialmente, ressalta-se que ela teve maior facilidade em responder se colocando no lugar de
Chaves e em muitos momentos ela responde como se fosse ele. Em sua entrevista podem ser
identificados elementos relacionados a aspectos cognitivos, sociais e afetivos do TA. Bem como
aproximações e distanciamentos entre suas percepções e as de Chaves.
Primeiramente, ressalta-se que sua a resposta à pergunta “como é ser asperger?” foi na
verdade uma resposta a como ela percebe o seu próprio filho e como imagina que ele pensa,
uma vez que esta foi a solicitação e orientação dadas previamente. Sendo assim, ela responde à
questão proposta da seguinte maneira: “deixe-me ver... É uma síndrome assim, eu explicaria
mais ou menos o que eu sinto, em que eu tenho um problema comportamental, assim, não
comportamental, um problema, social, de entender e me comunicar melhor com as pessoas, de
entender se certos significados, certos gestos”.
As principais características de Chaves ressaltadas pela mãe são aquelas relacionadas
às dificuldades sociais e à necessidade de uma rotina programada previamente, ou seja à
presença de padrões restritos e repetitivos de comportamentos, descritos na seguinte fala:
“Vamos lá. Tem que ter sempre uma rotina. Não se pode sair daquela rotina, certo? De manhã
tem que tomar café no mesmo horário, porque se eu não tomar naquele horário, tal hora eu só
vou comer metade do café, porque se eu comer todo eu não vou almoçar direito, meio dia o
almoço tem que estar pronto, sempre come a mesma coisa, sempre a mesma coisa, feijão tem
que ser feijão carioca, não pode ser outro tipo de feijão porque senão não como. Arroz,
frango...se tiver, peixe, come peixe e salada e suco. O lanche da tarde esse não tem horário, é
151
qualquer hora a hora que der vontade come biscoito. A janta tem que ser de seis horas em
ponto. Não, seis horas eu tomo banho, depois eu vou jantar e depois assiste tv. E essa é a minha
rotina. Se tiver uma festa, eu tenho que saber primeiro de painho e mainha de que horas vai e
de que horas volta, porque se não for, vamos dizer... se não tiver hora pra voltar, eu não vou
pra festa. Não vou por quê? Porque vou me chatear, porque vou ficar atrasado pra no outro
dia acordar, todo esse detalhe. Então não, não saio, mas se não tiver nada vou pro computador,
assistir televisão”. A mãe ainda sugere em sua fala que a quebra dos padrões perturba bastante
Chaves, como surge no trecho: “e a vida é assim... toda programada, porque no dia que um
negócio da errado, aí eu fico muito contrariado, chateado, tudo isso (...)”.
Ressalta-se também a caracterização do perfil cognitivo, sugerindo a existência de
habilidades específicas elevadas, notadamente no que tange à memória. Isso pode ser observado
no trecho: “assim eu entendo muito de tudo, tenho informações e sempre converso sobre os
assuntos atuais, tip... o se você quiser saber quando foi o aniversário de vovó, qual foi o dia
que caiu, eu digo, de que horas a gente foi, de que horas a gente voltou, quem tava lá...eu falo
tudo isso”.
No que tange aos aspectos sociais, os relatos de sua mãe apontam elementos e
características específicas que sugerem a existência de dificuldades em relação à comunicação
social. Estas se referem à compreensão de contextos e situações sociais, como observado nas
falas: “quando ele vai entender alguma coisa, todo mundo já tem parado de rir aí ele dá uma
risada, pronto. Parou”; “(...) [mãe conversando com Chaves]‘porque se a gente vai resolver
problema nas frentes das pessoas, as pessoas vão dizer ‘que tipo de família é essa que deixa
pra resolver os problemas, lavar roupa suja...[mãe se refere à reação de Chaves] não entendi
muito o que era lavar roupa suja, depois fui questionar pra mainha: ‘mas mainha lavar roupa
suja é o quê mesmo’?”; “tem um bocado de coisa, essa de não entender as expressões das
152
pessoas, não entender os momentos apropriados pra entender certas coisas, me lembra
bastante” (referindo-se a semelhanças com o personagem Sheldon).
Nesse sentido, assim como o pai de John, a mãe de Chaves aponta a necessidade de
orientar seu filho nas diversas situações sociais, guiando-o quando este não compreende algo.
Tais orientações são exemplificadas nas falas: “[reproduzindo um diálogo que teve com
Chaves] a minha mãe disse assim: ‘Chaves, quando você tiver falando numa coisa que não é
pra falar você olha pra mim, se eu tiver com uma certa expressão, tipo... aí você já sabe, que
não é pra falar aquilo. (...)’; “as vezes não funciona, as vezes eu tenho que sair e prestar mais
atenção à mainha que é pra eu não tá falando o que não devo”; “e o que eu não entendo, já foi
acordado com a minha mãe que eu conversaria com ela e ela me diria. De vez em quando eu
não consigo controlar isso e estouro e digo o que não devia dizer, mas nem tudo...é esse
processo o tempo todo”.
Quanto às interações sociais de fato, a mãe de Chaves destaca a existência de
dificuldades no estabelecimento e manutenção de relacionamentos, o que para ela é minimizado
quando são pessoas mais jovens que ele, a exemplo de sua irmã, que é criança (E me sinto
assim...que tenho certas dificuldades de relacionar com as pessoas. Consigo se relacionar bem
com mais novos que eu, sempre consigo, brincar até, sento com minha irmã pra assistir os
filmes e me divirto bastante... Chaves [Referência ao programa de televisão] então, eu e ela a
gente dá bastante gargalhada).
Ela ainda relata maior facilidade de interação com a família e amigos da igreja, como
se identifica na seguinte fala: E assim...família todo mundo gosta muito de mim, porque eu sou
bem...assim ... eu entendo muito de tudo, tenho informações e sempre converso sobre os
assuntos atuais, tipo... se você quiser saber quando foi o aniversário de vovó, qual foi o dia que
caiu, eu digo, de que horas a gente foi, de que horas a gente voltou, quem tava lá...(...) e tem
153
sempre tem, muita ajuda da família, dos mais próximos. A avó por parte de pai me ajuda muito,
até porque eu fui pra igreja através dela né, ser evangélico por ela, fiquei muito tempo na
igreja dela. Lá todo mundo até hoje ainda sente saudade de mim, quando vou pra igreja da
minha vó ela me chama porque o pessoal tá perguntando por mim (...)”.
Além disso, a mãe de Chaves relata o interesse do filho em estabelecer interações
sociais, acompanhado por pedidos de ajuda quando não sabe como se portar, como exposto na
fala: “(...) e eu acho que agora ele tá apaixonado pela filha do pastor da igreja dele [risos] Aí
ele fica: ‘mãe, e ai, o que é que eu faço? ‘. Eu digo: ‘e aí você vai conversando com ela, sabendo
se ela tem também interesse em você, se tiver, vocês conversem, e pronto’. A gente conversa
sobre isso”.
Dessa forma, observa-se uma consonância parcial nas falas de Chaves e sua mãe acerca
da temática das interações sociais. Chaves verbaliza não ter dificuldades para fazer amigos e
interagir socialmente, sua mãe concorda que ele interage bem na família, igreja, faculdade e
que inclusive tem alguns amigos de longa data com os quais sai socialmente. Porém, a mãe
também ressalta a existência de dificuldades de comunicação, identificadas por ela, em alguns
momentos, como empecilho para o sucesso nas interações sociais.
As dificuldades supracitadas são melhor administradas pelas pessoas que já conhecem
Chaves. Em ambas as entrevistas as falas sugerem que Chaves e a mãe costumam conversar
com as outras pessoas sobre o diagnóstico de TA, buscando estabelecer relações entre este e as
dificuldades observadas. Ambos consideram que essas explicações facilitam seus
relacionamentos. Isso se observa na seguinte frase da entrevista da mãe: “eu falo tudo isso, e às
vezes as pessoas não me entendem...o porquê de eu agir assim... e mainha fica explicando
porque eu tenho essa síndrome que tem que todo mundo entender, ter paciência comigo. E às
vezes eu fico chateado com o almoço familiar. Fico bem chateado mesmo, medo de falar. Me
154
altero e mainha: ‘tenha paciência meu filho, tenha paciência’, até eu me acalmar, mas outro
dia que eu encontrar aquele fulano, aí eu vou de novo questionar aquilo, daquela pergunta que
ele me fez naquele dia, aí vou perguntar pra ele se ele: ‘você não entende não assim, que eu
sou assim’, até que o fulano fique mais assim: ‘não tudo bem, não tem problema não’”.
Ainda em relação a aproximações nos discursos, as falas da mãe possibilitam inferir
que ela constrói sentido semelhante ao de Chaves para o diagnóstico, enfatizando as diferenças
no comportamento, mas estas são encaradas naturalmente, sem o relato de sentimentos
particularmente tristes ou alegres. Algumas falas da mãe sugerem isso: “Ela [irmã mais velha]
agora já tá no segundo namorado e eu nada de namorar, todo mundo fica cobrando, ai mainha
diz ‘que tudo tem seu tempo e eu vou esperar o meu tempo’, e vou levando”; ‘[fala como se
fosse o filho] em algumas coisas eu acho que se sente diferente...me sinto diferente, mas não
que isso possa assim, interferir muito na minha vida. Eu tô buscando o que eu tô querendo,
inclusive agora, esse começo de ano eu quis desistir do curso (...)”.
Nesse sentido, as falas de mãe e filho sobre os sentimentos em relação ao diagnóstico
são bastante similares. Chaves diz no episódio 4: “Num fico triste com isso não. Também eu
não fico feliz. Mas eu me sinto bem, eu tô tentando vencer minhas limitações”. Por sua vez,
sobre descobrir o diagnóstico, sua mãe fala: “não, não mudou, eu vendo assim desde pequeno
até hoje, é como se ele: “descobriu? Pronto, meu problema é esse”. Mas era algo que ele
sempre fez, ele só sabe que tem certos limites e pronto”. As falas sugerem naturalidade e
aceitação.
Ao mesmo tempo, observa-se o distanciamento da afetação emocional. O conselho
dado por Chaves a pais de jovens com TA no episódio 4 de sua entrevista foi “Não fiquem
tristes. Tenham paciência”. Tais características, a partir do observado na entrevista, parecem
155
comportamentos de sua mãe, que não relata tristeza dela mesma sobre o diagnóstico do filho,
apesar de Chaves ter mencionado isso em sua entrevista.
Por fim, no tocante às dissonâncias entre as entrevistas, chama a atenção o fato da mãe
ter descrito diversos comportamentos de Chaves associados ao TA com os quais ele diz não se
identificar. Nesse sentido, inclusive, alguns comportamentos de Chaves são bastante similares
aos descritos nas cenas de The Big Bang Theory. Um exemplo é a necessidade de Sheldon de
ter rotinas alimentares e de ações, muito similar ao que a mãe de Chaves descreve em relação a
ele. Ainda quanto à presença de padrões de comportamento e preferências ela traz a seguinte
fala: “o sofá, pra sentar, sempre senta no mesmo lugar, e se alguém tiver ele manda sair. (...)se
ele chega e você tiver ele faz: ‘vamo saindo que esse lugar é meu’. Não tem problema de ele
sentar em outro lugar entendeu? Mas ele quer sentar naquele lugar. (...) se você der uma
brecha aí ele ainda diz assim: ‘pronto, agora eu tô no meu lugar, arranje outro’”. Essas
discrepâncias nas falas de ambos sugere a possibilidade de Chaves não associar esses
comportamentos ao TA ou não identificá-los dentro de seu próprio repertório.
c. Satoshi
Satoshi Tajiri é um designer de jogos eletrônicos mais conhecido como criador do
jogo Pokémon, que deu origem ao anime ou desenho japonês de mesmo nome, que ficou
mundialmente famoso a partir de seu lançamento em 1997.
O nome Satoshi foi escolhido para o terceiro sujeito devido a seu grande interesse por
animes, com destaque para o Pokémon. Além disso, existem boatos não confirmados de o autor
dos jogos ter o diagnóstico de Transtorno de Asperger. Essa informação, mesmo não sendo
verídica, despertou a curiosidade do sujeito ainda na infância, que relatou ter se identificado
bastante com as características lidas sobre o TA de Satoshi Tajiri, levando-o a considerar ter
também aquele diagnóstico.
156
Satoshi é um adolescente de 15 anos e, no momento da pesquisa, encontrava-se no
primeiro ano do ensino médio em uma escola particular da cidade em que vive. Satoshi tem o
diagnóstico de TA desde a infância, bem como o de altas habilidades. Além disso, foi
diagnosticado com Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) desde o início da adolescência.
O TOC severo faz com que Satoshi tenha menos autonomia em relação aos outros sujeitos,
demandando maior cuidado de seus pais, além dos profissionais contratados para acompanhá-
lo. Satoshi é o único dos sujeitos que é acompanhado por psiquiatra, fazendo uso de intervenção
medicamentosa devido ao TOC. Além disso, tem acompanhamento de psicologia clínica mais
de uma vez durante a semana.
O que é ser Asperger
Episódio 1
1. E: o Oh, você entendeu? Oh é um ser de outro planeta que veio habitar a terra.
Como vimos no vídeo, ele é um Boov, e todos os boovs receberam um panfleto sobre como a
terra funciona. No filme, nós vemos que o Oh está começando a aprender sobre muitas coisas
e, agora, está particularmente interessado em aprender sobre as pessoas desse planeta, mas,
como vimos, ele percebeu que nem tudo está no panfleto e as pessoas parecem mais
complicadas do que diz lá. Uma coisa que ele descobriu é que existem pessoas que têm
Transtorno de Asperger, mas não achou nada sobre isso no panfleto. Ele acredita que
adolescentes ou jovens adultos como você, com SA, são os verdadeiros experts que podem
ensinar às outras pessoas sobre como é ter SA. Ele gostaria de entender sobre como é ter TA,
como isso te afeta e como faz você se sentir, bem como que impactos da SA você percebe no
seu dia-a-dia.
2. S: eu explicar pra ele?
157
3. E: uhum, já que ele acha que pessoas que têm esse diagnostico podem explicar
pra ele.
4. S: vai.
5. E: você quer que eu passe novamente?
6. S: passe novamente.
[Cena é passada novamente]
7. S: eu não tô ouvindo direito.
8. S: bem...
9. E: você vai tentar explicar como se...por que que é o Oh? Por que faz de conta
que é um extraterrestre que nunca viu isso.
10. S: bem...ter SA é como se...nem eu sei explicar...essa é uma das características
da síndrome de asperger...é não ter essa objetividade que as pessoas mais normais...como se
eu não fosse normal...teriam.
11. E: Mas o objetivo é você explicar da maneira que você acredita que seja.
12. S: Tá bom, mas é porque o asperger ele é meio que um empecilho na minha
vida...ele é meio que um transtorno que afeta as minhas relações sociais e... até mesmo minhas
dificuldades na vida vêm desse transtorno que pode gerar outros transtornos como o TOC.
O primeiro episódio da entrevista de Satoshi, assim como de John e Chaves, diz
respeito à primeira parte da atividade em que eles dialogam com o personagem Oh. Satoshi tem
o episódio mais curto. Tal fato pode ser associado a característica objetiva e direta do discurso
do adolescente, que permeou toda sua entrevista.
Nesse episódio Satoshi traz em sua fala elementos referentes a caraterísticas cognitivas
e afetivas do TA. No turno 10 ele se refere a uma forma diferenciada do funcionamento
cognitivo de pessoas com TA com a qual ele se identifica, quando fala que “ter SA é como
158
se...nem eu sei explicar... “ justificando logo em seguida sua afirmação como decorrente de um
traço do funcionamento cognitivo específico de pessoa que tem TA, em “essa é uma das
características da síndrome de asperger...é não ter essa objetividade que as pessoas mais
normais...como se eu não fosse normal...teriam”.
Durante o episódio, Satoshi circunscreve ainda, no turno 12, características associadas
ao sentido afetivo do TA para ele, trazendo o lugar negativo de “empecilho” que este ocupa em
sua vida devido aos impactos que traz para sua vida e seu dia-a-dia. Isso pode ser observado na
fala “porque o asperger ele é meio que um empecilho na minha vida...ele é meio que um
transtorno que afeta as minhas relações sociais e até mesmo minhas dificuldades na vida vem
desse transtorno que pode gerar outros transtornos como o TOC”.
Episódio 2
1. E: O que é isso? SA?
2. S: É uma forma mais leve do autismo.
3. E: Hum
4. S: as pessoas acometidas pela SA têm dificuldades na socialização e
inconformidade com o mundo em que vivem.
5. E: Como assim essa inconformidade?
6. S: Porque o mundo é mais complicado...o mundo é muito complicado pra eles
entenderem e eles não se sentem encaixados na sociedade. A sociedade é muito complicada
pra eles entenderem. Até mesmo eu não entendo. Às vezes eu tenho pensamentos intrusivos
demais, mas já não é parte do asperger, já é parte do TOC. E também eu...quem tem asperger
costuma ter muito foco com certas coisas e pouc...muito interesse por certas coisas e baixo
interesse por outras. No meu caso, eu...eu...gosto muito de desenhos e jogos. E também de
filmes. Eu sou meio aficionado por tecnologia, meio que viciado e não sei viver sem luz elétrica
159
nem água encanada. E não durmo sem ar condicionado. Outro lado do asperger...não precisa
me filmar.
7. E: Não estou te filmando. Peguei meu celular porque é onde estão as perguntas
da entrevista.
8. S: Outro lado do asperger é esse lado mais infantil, infantilizado das coisas...da
visão da pessoa. Às vezes a pessoa...às vezes essa pessoa com asperger pode se ver ...se portar
uma hora como criança outra hora como adulto.
9. [Pausa]
10. E: E como é que a pessoa sabe que alguém tem SA?
(a pergunta é repetida várias vezes sem resposta)
11. E: existe alguma característica marcante?
12. S: Dificuldade de socialização, fixação por certas coisas, comportamentos
estranhos ás vezes.
13. E: Tipo o quê?
14. S: Bem autistas, tipo...alguns tiques...alguns tiques e outras coisas...
15. E: E você tem algum amigo que tem SA?
16. S: Num sei.
17. E: Ou conhece alguém que você acha?
18. S: Eu conheci alguém que poderia ter, mas aí ele já morreu, não dá pra mais
fazer...num teve tempo de ter o diagnóstico.
19. E: E você já viu algo na tv ou alguém famoso que você diria que tem SA?
20. S: Diria.
21. E: Quem você já viu?
160
22. S: Bem...eu num...eu num diria que ninguém tem SA porque eu tenho dificuldade
em...em identificar, mas eu posso dizer que eu sei quem tem, porque eu já ouvi falar que aquelas
pessoas tinham. Einstein, por exemplo, tinha,
23. E: É verdade, dizem isso.
24. S: Messi, também tem. Messi, jogador de futebol. Tem asperger.
25. E: Sim...é, já ouvi falar de Messi e de Einstein. Tem mais alguém?
26. S: Isaac Newton tinha.
27. E: Hum
28. S: Mas eu não sei...eu não sei exatamente se isso é um caso confirmado porque
na época que...num sei se o cientista que denominou...que denominou a SA que descobriu esse
transtorno nasceu antes ou depois de Newton.
O episódio 2 de Satoshi se inicia também com sua definição teórica do que é o TA,
que é marcada por aspectos sociais e cognitivos. Como John e Chaves, ele inicia sua definição
descrevendo o quadro como “uma forma leve de autismo” no primeiro turno de fala. Em
seguida esta continua com a descrição das dificuldades na socialização. Entretanto, em seguida
Satoshi aponta a “inconformidade com o mundo em que vivem” como uma característica de
pessoas que têm TA. Esta não se enquadra em definições teóricas, mas parece advir de uma
reflexão e construção interna de Satoshi, construídas a partir de suas percepções acerca dos
aspectos sociais característicos do TA. O adolescente refere-se nesse turno às pessoas que têm
TA de maneira geral, mas traz uma identificação com o grupo ao dizer que “até mesmo eu não
entendo”. Além dessa fala, no turno 8, outra característica é apontada, a saber, como ele
corrobora com a presença de reflexões do adolescente, qual seja: “Outro lado do asperger é
esse lado mais infantil, infantilizado das coisas...da visão da pessoa. Às vezes a pessoa...às
vezes essa pessoa com asperger pode se ver ...se portar uma hora como criança outra hora
como adulto”.
161
No tocante aos aspectos do funcionamento cognitivo no TA, Satoshi aborda a presença
de interesses restritos e fixação por certas coisas, o que tem conexão com a característica de
padrões restritos e repetitivos de comportamentos, e aponta ainda a existência de tiques, que
caracteriza como “comportamentos estranhos que surgem às vezes”. Para cada característica
relacionada ao TA e descrita por ele, é apresentada, adicionalmente, a versão da sua própria
experiência acerca desta. Nesse sentido, no fundo, o que ele nomeia são seus próprios interesses
restritos (“No meu caso, eu...eu...gosto muito de desenhos e jogos. E também de filmes. Eu sou
meio aficionado por tecnologia, meio que viciado...”). Ele ainda coloca a presença de
pensamentos intrusivos como característica de seu funcionamento, porém atribui tal fato ao
TOC.
Quando questionado acerca da identificação de pessoas com TA, Satoshi traz
características que em teoria identificam o TA. No entanto, diz que ele mesmo não poderia fazer
essa identificação, por essa ser exatamente uma dificuldade percebida por ele.
Asperger em outras pessoas: vinhetas como recurso para identificação em terceiros e
reconhecimento em si mesmo
Episódio 3
O terceiro episódio de Satoshi é marcado pela objetividade do adolescente, cujas
respostas e afirmações foram sempre lacônicas. Satoshi também já conhecia a série e já sabia
que Sheldon tem características do TA, fazendo essa relação mesmo antes de ser mencionado
o propósito da exibição das cenas.
1. E: Agora, vou te mostrar cenas de uma série. Nessa série, The Big Bang
Theory...
2. S: Tem o Sheldon que tem SA.
162
3. E: Aah então você já sabe. Isso. Eu tenho umas cenas da série que eu vou passar
pra você e queria que você me dissesse se tem características do Sheldon que você acha que
são da SA.
Cena 1 – Sheldon conforta Leonard
4. S: Interess...interesses...comportamentos meio autistas e socialização.
Perguntas...perguntas...meio estranhas que só uma criança com.…que...interesse por
informações peculiares sobre as coisas.
Cena 2 – Penny está dormindo no sofá e Sheldon quer sentar
5. S: repetições de...repetições de frases.
Cena 3 – Os quatro amigos vão a um restaurante e não conseguem pedir
6. S: TOC de simetria.
Cena 4 - Sorriso de Sheldon
7. S: dificuldade de expressar emoções.
8. S: (muitos risos) Mister Bean, Coringa
Cena 6 - Empréstimo de dinheiro a Penny
9. S: falta de entendimento dos procedimentos sociais
10. S: não saber como levar uma conversa adiante
11. S: não entender sarcasmo...não entender as...não entender ironia
Cena 7 – Conversa desconfortável/ Cena 8 – Decifrando expressão de Rajesh
12. E: Nessas? Identificou alguma?
13. S: Não saber identificar emoções
163
Cena 10 – Sheldon e Leonard se conhecem
14. S: Memória...memória...
15. S: perguntas desnecessárias
16. E: Naquelas só “perguntas desnecessárias”?
17. S: sim.
Cena 14 - Experimento com Penny
18. S: dificuldade no contato visual.
19. E: o que é que você achou de maneira geral? O que você vê no Sheldon que
parece ser da SA?
20. S: um monte de sintomas. Dificuldade de manter contato visual, dificuldade de
interpretar emoções, interpretar ações, dificuldade de identificar emoções.
Nesse episódio, Satoshi reconhece características na maioria das cenas exibidas, sendo
a maioria delas diretamente associadas a critérios diagnósticos indicados pela literatura
científica. Suas falas são afirmações diretas e taxativas do que chama de “sintomas” de Sheldon.
Salienta-se que ele não dá maiores explicações do porquê estar associando as cenas às
características, porém a maior parte do que identifica é, de fato, a característica que a cena
representa.
Primeiramente, ele identifica aspectos do funcionamento cognitivo no TA nas cenas 2
e 10. No turno 2 ele aborda repetições, sugerindo relação com padrões repetitivos de
comportamento. Por sua vez, no turno 10 ele traz apenas a palavra “memória”, que sugere
relação com a característica de habilidades de memória acima do esperado, o que é
frequentemente associada ao TA.
164
Ainda estão presentes nesse turno associações relativas a aspectos sociais do TA.
Quanto a isso, ele apontou a presença de dificuldades no entendimento e expressão de emoções
nas cenas 4 e 8; de dificuldade de interação e comunicação social, notadamente interpretação
de ironias, nas cenas 6 e 7; e de manter o contato visual na cena 14. Apenas em relação à
primeira cena ele dá uma explicação maior e menos taxativa. Sobre isso ele comenta:
“Interess...interesses...comportamentos meio autistas e socialização.
Perguntas...perguntas...meio estranhas que só uma criança com.…que...interesse por
informações peculiares sobre as coisas”. Essa afirmação sugere novamente que a interpretação
de Satoshi para características do TA parece estar relacionada a comportamento infantilizado.
Esta foi mencionada também no segundo turno.
Por fim, Satoshi usa o termo “TOC de simetria” em referência à cena 3. Nessa cena,
Sheldon desaprova o fato de apenas três dos quatro amigos terem ido jantar em um restaurante
em que sempre vão todos, pois eles não poderiam fazer o pedido tradicional, compartilhado,
que nunca varia e não pode ser reorganizado. O termo utilizado por Satoshi sugere que ele
associa a situação a uma necessidade de Sheldon de que a divisão das comidas seja simétrica,
mas não menciona a dificuldade com a flexibilização de padrões e rotinas.
Episódio 4
1. E: algumas dessas coisas você acha que também tem?
2. S: Dificuldade de julgar ações e de identificar o sarcasmo, a intenção da pessoa.
3. E: Essas são características do Sheldon ou que você acha que você também
tem?
4. S: Eu também tenho...e também dificuldade de contato visual.
5. E: E quem te falou sobre a SA a primeira vez? Você lembra?
6. S: Ah eu li na internet.
165
7. E: Você leu na internet? Mas antes de alguém te falar?
8. S: Não...nao...
9. E: Alguém te falou?
10. S: Não, ninguém nunca falou.
11. E: Mas você lembra de ter sido testado?
12. S: Lembro, lembro. Me apresentaram vários sintomas da SA e eu me identifiquei
com vários deles.
13. E: Como você se sente sobre isso? Sobre ter SA?
14. S: Huum...[pausa] bem, já que a SA me fez ter TOC, então não me sinto muito
bem com isso não. Me fez desenvolver TOC, porque...eu sou mais propício a desenvolver TOC
porque eu sou hipersensível às coisas que me apresentam...
15. E: Aos estímulos?
16. S: Aos estímulos que me apresentam
17. E: Ao que é que você é mais sensível?
18. S: Coisas religiosas.
19. E: E você acha que é sensível a coisas como cheiro e barulho?
20. S: Aah já fui. Principalmente barulho.
21. E: Hoje não te incomoda muito?
22. S: Não, ainda me incomoda.
23. E: Que coisas boas, pontos de força seus...
24. S: Eu tenho medo de altura desde que eu nasci, medo de olhar pra cima. Mas
desenvolvi medo de olhar pra baixo mais recentemente. Medo de altura assim...lá embaixo...lá
em cima eu olho pra baixo assim...
25. E: Tem pontos de força seus? Coisas que você acha que é muito bom que você
atribui a SA?
166
26. S: Tem.
27. E: Tipo o que?
28. S: Habilidade de decorar datas...horários nem tanto, mas datas eu sei...
29. E: Realmente eu já vi que você é bom nisso...mais algumas coisas que você acha
que são um ponto de força?
30. S: Ponto de força?
31. E: É. É uma coisa que você acha que é muito bom.
32. S: memória. Memória eu já disse né? Que sou bom em decorar datas? Memória
de longo prazo, no caso, porque memória de curto prazo eu sou horrível.
33. E: você acha que você é horrível na de curto prazo? Por que?
34. S: Sou. Se eu fosse bom eu nunca teria tirado um 0 nas provas. Nunca teria
tirado nota baixa nas provas.
35. E: Mas o que te atrapalha na hora da prova você acha que é a memória ou outra
coisa?
36. S: Às vezes a memória, às vezes o próprio TOC em si.
37. E: Você fica preso em outro pensamento?
38. S: Éé [boceja] eu fico preso em outras coisas...é...
39. E: E você acha que tem coisas que você não é tão bom, como uma fragilidade?
Que você atribua a SA?
40. S: Socialização. E alguns empecilhos que o TOC causa. Muito medo das coisas,
de enfrentar a vida. Medo de enfrentar os medos, porque penso que pode ter consequências
graves. Enfrentar medos.
41. E: Quando foi que você pesquisou pela primeira vez e você pensou ou descobriu
que tinha SA?
167
42. S: Ah eu era pequeno ainda...eu descobri que Satoshi Tajiri, que foi um japonês
que criou Pokémon, ele tinha SA.
43. E: É mesmo?
44. S: Ele foi diagnosticado.
45. E: Foi aí que você pensou sobre isso?
46. S: Foi
47. E: Quantos anos você tinha?
48. S: Eu tinha 11 eu acho, 12, 10...11 anos...não tinha mais, tinha 12.
49. E: Você acha que ter sabido mudou sua vida de alguma forma ou...?
50. S: Mudou.
[Pausa]
51. E: Como mudou?
52. S: Primeiro eu achei interessante ter esse negócio de ter asperger, mas depois
eu achei um empecilho grande assim. Um obstáculo na vida.
53. E: Mas hoje, você apesar dos empecilhos, você acha que é interessante?
54. S: Não, não acho muito interessante.
55. E: Porque de fato tem coisas boas não é?
56. S: De fato tem coisas boas, mas....era melhor se eu tivesse asperger, mas não
tivesse esse TOC todo.
57. E: Você faz tratamento pro TOC?
58. S: Faço
59. E: Tem medicação também?
60. S: Tenho.
61. E: Tem alguém na sua vida com quem você se sente confortável falando sobre
isso? Sobre a SA?
168
62. S: Minha mãe.
63. E: Vocês conversam sobre isso?
64. S: Conversamos.
65. E: E sua família em geral conversa com você sobre a SA ou só sua mãe?
66. S: Não...eu converso sobre os pensamentos que eu tenho com a minha mãe. Não
é bem sobre a SA não...mas eu converso com M que é minha psicóloga sobre esses empecilhos
que a SA causa. Porque eu tava tendo muita dificuldade de socialização ultimamente na
escola...o povo fica me batendo, me empurrando me zoando...e eu sou bastante sensível a coisas
como essa
67. E: Sim. Se você pudesse dar um conselho a outro adolescente que acabou de
descobrir que tem SA o que você diria?
[pausa e bocejos]
68. E: Você teria algum conselho pra dar? De alguém que já sabe há muito tempo?
69. S: Há muito tempo?
70. E: Isso. Já que você já sabe há muito tempo e tem bastante experiência com ter
SA.
71. S: Eu daria. Realmente, meu amigo, nossos verdadeiros amigos que nos
entendem, que estão abertos a nos ouvir são poucos. Mesmo pra quem não tem SA, mas são
poucos. Pra toda pessoa é assim. Eu digo isso porque ...eu digo isso porque...já vi várias
pessoas dizerem que pra um homem os amigos que importam são aqueles amigos de
infância...amigos...pra uma mulher já é diferente. Mulheres conseguem socializar muito mais
rápido que um ser hu...que um homem. Que um homem, mulheres. Mulheres conseguem
socializar muito mais rápido que um ser hum...que um homem...desculpa eu fico...
72. Eu: Você acrescentaria mais alguma coisa ao conselho?
73. S: É isso. E geralmente...
169
[Pausa e para de falar]
74. E: E se fossem pais de um adolescente com SA que conselho você daria pra
eles?
75. S: Tentem conversar com ele com frequência, tentem dar atenção a ele, porque
ele é como um ser humano normal...que eu sei que vocês sempre deram...tentem tratar
ele como vocês sempre trataram ele...apesar das dificuldades. Façam o seu filho feliz
porque ele pode estar meio infeliz...com..com o ambiente...exterior...
76. E: Antes da gente terminar tem mais alguma coisa que você gostaria de
acrescentar?
77. S: Não.
78. E: E o que é que você achou dessa entrevista?
79. S: Boa.
80. E: Você gostou de fazer?
81. S: sim.
Primeiramente, no episódio 4 da entrevista com Satoshi observa-se a identificação dele
com características de Sheldon no que diz respeito a aspectos sociais, a partir de elementos de
sua fala referentes à comunicação e interação sociais, a saber: ”dificuldade de julgar ações e de
identificar o sarcasmo, a intenção da pessoa”, relatados por ele no turno 2, bem como
dificuldades para estabelecer contato visual, no turno 4. Ressalta-se, porém, que Satoshi
identifica esses aspectos, mas não exemplifica durante a entrevista momentos nos quais os
vivenciou ou de que forma isso se dá em seu dia-a-dia.
Em seguida, no tocante a aspectos positivos e negativos que relaciona ao diagnóstico
de TA, estão presentes, como nas entrevistas de John e Chaves, elementos referentes a aspectos
de funcionamento cognitivo e social. Os aspectos positivos se associam a sua memória de longo
prazo, que ele considera acima do esperado, como traz no turno 32: “memoria. Memoria eu já
170
disse né? Que sou bom em decorar datas? Memória de longo prazo, no caso, porque memória
de curto prazo eu sou horrível”. Já os negativos são associados a dificuldades na socialização,
mas também a outras características suas que ele relaciona diretamente ao TA. Uma delas é o
medo que diz sentir acerca de diversos âmbitos da vida, no turno 40, e a outra diz respeito às
suas características relacionadas ao diagnóstico de TOC. No turno 24 ele explica o porquê de
conectar diretamente o TOC ao TA, que tem a ver com especificidades de seu funcionamento
cognitivo: “bem, já que a SA me fez ter TOC, então não me sinto muito bem com isso não. Me
fez desenvolver TOC, porque...eu sou mais propício a desenvolver TOC porque eu sou
hipersensível as coisas que me apresentam...”. Nesse mesmo turno, relata ainda não se sentir
bem acerca de ter o diagnóstico de TA.
Diante disso, pode-se observar que os aspectos de sentido afetivo de Satoshi em
relação ao diagnóstico são predominantemente negativos. Sua fala no turno 52 sugere que
inicialmente ele achou o diagnóstico de TA interessante, talvez pela relação com personalidades
famosas que admira, como Satoshi Tajiri. Porém, ao longo de sua vida, desenvolveu sintomas
de TOC que ele associa ao TA, passando a ter uma relação ruim com esse diagnóstico. Isso
pode ser observado no turno 52, quando ele relata: “Primeiro eu achei interessante ter esse
negócio de ter asperger, mas depois eu achei um empecilho grande assim. Um obstáculo na
vida”. De forma similar, no turno 56 ele afirma: “de fato tem coisas boas, mas....era melhor se
eu tivesse asperger, mas não tivesse esse TOC todo”.
Ainda quanto aos sentidos afetivos, o discurso de Satoshi sugere a presença de tristeza,
não só em relação ao TOC, mas às dificuldades de socialização e ao desejo que sente de ter
amigos, principalmente na escola, como aponta no turno 66: “Porque eu tava tendo muita
dificuldade de socialização ultimamente na escola...o povo fica me batendo, me empurrando
me zoando...e eu sou bastante sensível a coisas como essa”. Por fim, a necessidade de
socialização e compreensão social também são explicitadas em seu conselho para os pais,
171
quando diz a estes que “Tentem conversar com ele com frequência [seus filhos], tentem dar
atenção a ele, porque ele é como um ser humano normal...que eu sei que vocês sempre
deram...tentem tratar ele como vocês sempre trataram ele...apesar das dificuldades. Façam o
seu filho feliz porque ele pode estar meio infeliz...com..com o ambiente...exterior...”. Sua fala
sugere novamente a presença de sofrimento e tristeza em relação aos aspectos negativos do
diagnóstico, mencionados por ele anteriormente.
O TA para os pais e filhos: ecos de vozes e percepções
A entrevista realizada com a mãe de Satoshi, inicialmente seguiria a mesma estrutura
da realizada com ele, como ocorreu com os pais dos outros sujeitos. No entanto, essa entrevista
teve que ser realizada na casa de Satoshi e foi por diversas vezes interrompida por contratempos
da casa. Dessa forma, sua estrutura varia em alguns aspectos. Primeiramente, ressalta-se que
ela seria feita apenas com a mãe de Satoshi, porém, no meio da entrevista o pai dele chegou em
casa e a mãe fez questão de sua participação. A entrevista também foi interrompida pela
chegada de Satoshi em casa, demandando a atenção do pai. Dessa forma, o final da entrevista
voltou a ser respondido apenas pela mãe. Foi observado que os pais estão em consonância
quanto às suas opiniões e respostas às perguntas. Em sua entrevista podem ser identificados
elementos relacionados a aspectos cognitivos, sociais e afetivos do TA. Bem como
aproximações e distanciamentos entre suas percepções e as de Satoshi acerca do diagnóstico.
Primeiramente, no que tange à definição do que seria o Transtorno de Asperger, a mãe
de Satoshi, como a mãe de Chaves, define a partir da percepção que tem de seu filho na seguinte
fala: “Satoshi, eu noto que ele é um menino muito inteligente, mas que ele tem dificuldades de
se inserir num contexto social...ele tem dificuldade...é aquela história né...bem...ele é o super
sincero, ele é o menino que às vezes não entende o olhar que a gente chama o ‘olhar 43’ , que
aquele olhar de reprovação...tipo ele faz uma coisa e acha que aquilo é normal, né?...é como
172
se ele tivesse dificuldades nos limites...fosse assim, sem limite. Pra ele, ele acha que tudo aquilo
é normal, quando não é. Que tem certas regras...ele tem dificuldade de entender as regras. Na
minha concepção é isso”. Nessa definição observa-se a presença de elementos que sugerem
relação com aspectos cognitivos, como a inteligência e memória elevadas, acompanhados de
dificuldades sociais, principalmente relacionadas à inadequação social, compreensão de
contextos e situações sociais, bem como de expressões faciais.
Nesse sentido, a fala de seus pais sugere que suas maiores dificuldades relacionadas
ao asperger se dão nesse aspecto de compreensão de contextos sociais. A mãe traz essa
dificuldade em diversos momentos. Um exemplo é quando fala que: “dificuldades como...ele
pega tudo ao pé da letra, que isso é uma característica. Ele entende tudo ao pezinho da letra.
Não entende as nuancezinhas...ele chega normal, por exemplo. Se ele lhe acha feia, ele vai e
diz que lhe acha feia. Você diz ‘olha Satoshi, como ela é linda’ ele diz: ‘não, eu gosto dela, mas
ela é feia’. Ele diz na cara da pessoa!”. O pai também traz essa dificuldade a partir da cena de
The Big Bang Theory em que Sheldon tenta decifrar a expressão de Rajesh e não consegue. O
pai de Satoshi diz que o filho tem a mesma dificuldade. Satoshi relata em sua entrevista, no
episódio 4, ter de fato essas características, que ele define como: “dificuldade de julgar ações
e de identificar o sarcasmo, a intenção da pessoa” e acrescenta que também tem dificuldade de
contato visual.
No entanto, a mãe sugere em sua fala que, apesar das dificuldades presentes em
decorrência do TA, a maior dificuldade que Satoshi enfrenta no dia-a-dia não tem relação com
o TA e sim com o TOC, como observado em sua fala: “Eu acredito, na minha concepção, que
todo o problema gira em torno do TOC, entendeu? Porque se ele fosse um asperger puro ele
era muito tranquilo...tranquilo demais”. Essa afirmação está também presente na fala de seu
filho, no episódio 4, quando afirma que: “bem, já que a SA me fez ter TOC, então não me sinto
173
muito bem com isso não. Me fez desenvolver TOC, porque...eu sou mais propício a desenvolver
TOC, porque eu sou hipersensível às coisas que me apresentam.... “.
Na fala de ambos existem consonâncias também em relação ao sentido afetivo desse
diagnóstico para Satoshi. Ambos trazem a dificuldade em fazer amigos como algo que
entristece Satoshi. Este traz em sua fala a dificuldade de socialização na fala: “Porque eu tava
tendo muita dificuldade de socialização ultimamente na escola...o povo fica me batendo, me
empurrando me zoando...e eu sou bastante sensível a coisas como essas...”. No trecho, Satoshi
aborda a afetação que sente em relação a isso. Sua fala sobre “ser bastante sensível” sugere que
ele sofre por essa dificuldade e pelas ações de seus pares na escola.
Nesse sentido, Satoshi traz também a necessidade de atenção e afeto pelos pais,
principalmente diante das dificuldades que ele encontra fora de casa. Isso se observa no seguinte
trecho: “Tentem conversar com ele com frequência, tentem dar atenção a ele, porque ele é
como um ser humano normal...que eu sei que vocês sempre deram...tentem tratar ele como
vocês sempre trataram ele...apesar das dificuldades. Façam o seu filho feliz porque ele pode
estar meio infeliz...com..com o ambiente...exterior...”.
Sua mãe concorda com as afirmações supracitadas, trazendo o amor e a atenção como
fundamentais na relação com o filho com TA. Ela aponta como conselho: “que desse muito
amor a ele. Muito amor, atenção, que lutasse por ele e que conseguisse dar um bom apoio
psicológico que eu acho que a coisa melhora. Muito amor, eu acho que eles precisam muito
disso. Amor, atenção e um acompanhamento psicológico adequado. Que é o que a gente busca
fazer, sempre”. Ressalta-se que mãe e filho se emocionam nessa etapa da entrevista.
8. Análise e Discussão
174
8.1 Percepções das atividades
Guiado pelo questionamento “como é ter transtorno de Asperger?”, o objetivo desse
estudo foi proporcionar maior compreensão acerca dos sentidos e vivências que adolescentes e
jovens adultos constroem para as suas experiências como asperger. Ressalta-se que para tanto
operacionalizaram-se os construtos de awareness e insight de Marková (2005), compreendidos
respectivamente enquanto conhecimento acerca do diagnóstico e sentidos construídos a partir
deste, bem como vivências experienciadas pelos sujeitos.
Nesse sentido, primeiramente cabe ressaltar aspectos referentes às atividades utilizadas
no presente estudo como metodologia de pesquisa. Inicialmente, com o objetivo de possibilitar
a construção de uma narrativa da percepção dos sujeitos da pesquisa acerca de como é ter TA,
foi idealizada a atividade com o personagem extraterrestre Oh. Inspirada na técnica de
entrevista clínica da Instrução ao sósia (Clot, 2010), tal atividade foi desenvolvida considerando
a dimensão clínica da técnica, esta pode ser considerada facilitadora e propulsora de reflexão
dos sujeitos acerca de suas experiências e, consequentemente, promotora do desenvolvimento
do insight, à medida que se descrevem e representam para um outro os seus significados e
sentidos particulares.
Considerando as características do funcionamento cognitivo dos sujeitos que têm
asperger enquanto grupo, a saber, dificuldades na interação e comunicação social, a princípio a
interação com o personagem também foi avaliada como facilitadora inicial para a abordagem
de uma temática possivelmente difícil, promovendo um caráter lúdico e deslocando a
necessidade de interação direta com a entrevistadora em um primeiro momento. No entanto,
nesse sentido, foi observado que tal artifício não surtiu o efeito desejado. Sobre o personagem,
John produziu a seguinte observação:
E: [Instruções da atividade] Ele [O Oh] quer saber tudo isso.
J: Na verdade você quer saber...pelas entrelinhas para a pesquisa.
175
E: É, so que a gente vai fazer como se fosse com o OH. O que é que você acha?
J: Um pouco ridículo
E: Então você prefere me dizer?
J: Prefiro.
E: Então tá. Então pode ser.
Satoshi, como John, questionou se deveria falar para o personagem, mas ignorou essa
instrução, falando diretamente para a entrevistadora, não tecendo comentários sobre o
personagem. Por outro lado, Chaves teve dificuldades em compreender a natureza da tarefa no
primeiro momento, como ilustrado no seguinte trecho:
E: aí uma coisa que o Oh descobriu depois que chegou a Terra foi que existe uma coisa
chamada “SA”...
R: huum
E: só que não tem nada sobre isso no panfleto...
R: ele descobre isso no filme??
E: É...não! Não tem no filme. Essa é uma atividade lúdica, de faz de conta. A gente vai fazer
de conta
R: huum
A fala de Chaves sugere que ele compreendeu a explicação da atividade como algo que
teria ocorrido no filme, tendo demandado mais explicações para que ele entendesse a abstração
da atividade. Em seguida, ele iniciou sua fala voltada também diretamente para a
entrevistadora.Dessa forma, sugere-se que a mediação lúdica do personagem foi desnecessária,
pois eles não tiveram dificuldades em conversar diretamente com a entrevistadora.
Após a etapa com o personagem previu-se a necessidade de perguntas em entrevista
adicional de caráter semi-estruturado para que temáticas específicas pudessem ser abordadas,
em especial se não acontecesse de maneira espontânea nas narrativas livres iniciais. De fato, foi
observado que tal recurso foi necessário, dado o caráter diretivo e sucinto do discurso dos
sujeitos. Observou-se que perguntas mais diretivas, ao invés de trazer desconforto pela temática
176
difícil, possibilitaram maior entendimento pelos sujeitos acerca do esperado e,
consequentemente, respostas circunscritas aos temas abordados.
Quanto à etapa relacionada às cenas da série The Big Bang Theory, esta objetivou a
identificação das características do TA em terceiros, bem como a facilitação de identificação
em si mesmo. Nesse sentido, Drummond (2013) aponta o componente projetivo de uma
entrevista com base em situações mostradas visualmente para indivíduos com TA. A autora
sugere que uma apresentação dessa forma minimiza as dificuldades, abordando-as de maneira
mais leve, pois ao invés de falar diretamente dessas enquanto problemas, eles são questionados
se são “como Sheldon” ou se compartilham características com ele.
Além disso, a literatura sugere como característica cognitiva desse grupo de indivíduos
um estilo de pensamento predominantemente visual e menos verbal (Bókkon, Salari,
Scholkmann, Dai, & Grass, 2013; Grandin, 2009). No presente estudo, tais características foram
relatadas pelo sujeito John, quando comenta que “você representa tudo que vê e tudo que
entende através de imagem“. Assim, sugere-se que entrevistas baseadas em recursos visuais
são mais adequadas para autorrelatos de sintomatologia (Drummond, 2013).
De maneira geral, observou-se que os resultados sugerem que a construção da atividade
propiciou a elaboração de insight pelos sujeitos participantes. Tal afirmação se dá pela
construção gradual de respostas pelos sujeitos ao longo da entrevista que foram sendo
acrescidas de informações dado o contato destes com novos questionamentos e ideias. Dessa
forma, acredita-se que a construção da atividade partindo do questionamento sobre significados
compartilhados ou conhecimento de maneira geral, conectado aos poucos com temáticas e
sentimentos mais particulares propiciou o resgate e a construção de novas percepções e
sentidos.
8.2 O que é o asperger: percepções e vivências
177
A literatura aponta que concepção do transtorno de Asperger advém
predominantemente de dois modelos explicativos. O primeiro modelo é biomédico e
considera o TA como uma desordem neurodesenvolvimental de etiologia
predominantemente neurológica e genética. Nesse modelo se baseiam os sistemas
classificatórios de médicos mundiais (CID e DSM). O segundo modelo parte de uma
discussão acerca do modelo social da deficiência (Oliver, 2013). Nessa perspectiva, teóricos
argumentam que o diagnóstico de asperger é socialmente construído, devido a visão social
dos comportamentos deste grupo como anormais (Molloy & Vasil, 2002). Para além dessa
discussão, novas perspectivas sobre esse diagnóstico sugerem que pessoas que tem TA têm
um estilo cognitivo alternativo. Nesse sentido surgiu o conceito de neurodiversidade,
movimento que advoga a mudança de olhar sobre as condições do neurodesenvolvimento de
uma doença ou deficiência, para um desenvolvimento que é diferente. Nessa perspectiva, o
autismo é tido como causado por fatores biológicos e caracteriza-se como variação normal
do funcionamento humano (Armstrong, 2010; Kapp, Gillespie-Lynch, Sherman, & Hutman,
2013). Gray e Atwood (1999) apontam a importância da forma como o diagnóstico é
abordado com os indivíduos e a influência em sua percepção. Nesse sentido, desenvolveram
um modelo de prática clínica em que o enfoque do diagnóstico é a percepção de pontos de
força e de dificuldade, de forma que o TA é apresentado como forma qualitativamente
diferente de ser com foco também nas características positivas e não somente nas negativas,
apontadas nos manuais diagnósticos.
Na literatura científica grande parte dos estudos dizem respeito a percepção de pais,
professores e profissionais de saúde acerca de indivíduos que tem TA (DePape & Lindsay,
2016). No entanto, alguns estudos abordam as experiências de vida desses indivíduos, bem
como suas percepções de seu diagnóstico. Dentre esses a maioria diz respeito a adultos
(Griffith, Totsika, Nash, Jones, & Hastings, 2012; Haertl, Callahan, Markovics, & Sheppard,
178
2013; Hurlbutt & Chalmers, 2002), porém estudos mais recentes têm abordado as
experiências de crianças e adolescentes. Desses, tem-se estudos que consideram vivências e
experiências do dia-a-dia considerando temáticas como escola e percepção de apoio
(Carrington & Graham, 2001; Connor, 2000), porém uma quantidade menor de estudos
aborda as percepções especificamente acerca do diagnóstico (Calzada, Pistrang, & Mandy,
2012; Drummond, 2013; Hughes, 2012; Huws & Jones, 2008; Macleod et al., 2013). Como
estes últimos, Molloy and Vasil (2004) conduziram um estudo com 6 adolescentes acerca do
impacto do diagnóstico de TA em suas vidas por meio de entrevistas semi-estruturadas. Os
resultados indicaram que o diagnóstico foi visto por eles positivamente, pois forneceu
explicação para seus comportamentos pouco usuais, trazendo sentimento de alívio, bem
como diminuição de sentimentos de confusão e fracasso. Todos concordaram que os critérios
diagnósticos lhes descreviam, porém existiram diferenças no grau com que cada um dos
adolescentes se identificou com o diagnóstico, bem como se definiu como alguém com TA.
Os autores concluíram que todos os sujeitos se viam como sendo “diferentes” e tal diferença
foi incorporada a suas identidades e autopercepção. Corroborando com esses resultados,
DePape e Lindsay (2016) fizeram uma metasíntese qualitativa envolvendo estudos de
experiências em primeira pessoa de indivíduos com TA de diversas idades. Sua análise
delimitou a existência de 4 grandes temáticas entre os estudos observados, quais sejam:
autopercepção; interação com outros; experiências escolares; e fatores relativos ao mercado
de trabalho. Quanto ao primeiro tema especificamente, foram encontrados diversas
associações entre o diagnóstico de autismo e sua identidade. Enquanto para alguns
predomina a indiferença frente a este, outros abordam o sofrimento de lidar com as
características do TA e dificuldades associadas. Por outro lado, no tocante a adultos foi
frequente a posição de aceitação do TA que é incorporada a identidade e autopercepção
destes.
179
No presente estudo foram abordadas as concepções e conhecimento que os
adolescentes participantes têm acerca de seu diagnóstico, bem como os sentidos construídos
sobre esse a partir de suas vivências e experiências. Quanto ao conhecimento do diagnóstico,
foi observado que a caracterização dada por eles teve por base, principalmente,
características de funcionamento cognitivo distintas das de indivíduos com desenvolvimento
típico e dificuldades no âmbito social, em relação a interação social e fazer amizades e a
compreensão de contextos e situações sociais. Na caracterização dos sujeitos pôde ser
observada a presença de elementos de ambos os modelos: biomédico (e mais voltadas para
o modelo social da deficiência. Em suas falas surgiram as características que são critérios
diagnósticos médicos (falas de Satoshi: dificuldades de socialização, fixação por certas
coisas, dificuldade no contato visual), mas ao mesmo tempo esteve presente a ideia de ser
diferente e não de ter uma doença (fala de John: “o asperger em mim, o autismo não é um
bicho de 7 cabeças...é só uma coisa que ...é só uma coisa que a pessoa é muito inteligente
mas tem um pouco de dificuldade de se relacionar em algumas situações e se portar em
algumas situações mas essa dificuldade pode ser superada”). Assim surgiram aspectos
positivos relacionados ao TA, mas essa concepção dos sujeitos não impediu sua percepção
também de aspectos negativos do diagnóstico.
Kapp et al. (2013) realizaram um estudo objetivando avaliar a influência da
concepção do autismo (a partir do modelo biomédico ou da neurodiversidade) na resposta
dos indivíduos e na forma como lidam com o diagnóstico. Corroborando com o presente
estudo, os pesquisadores concluem que a percepção do autismo, pelos indivíduos que tem
esse diagnóstico, como parte da identidade se associa a uma concepção do autismo que
chamou de “déficit como diferença”. No entanto, contrário à sua hipótese, tal percepção não
foi acompanhada pela diminuição do reconhecimento de dificuldades nem da busca por
intervenção e apoio por esse grupo de indivíduos, apenas pela visão positiva do autismo
180
enquanto identidade, sem necessidade de cura, pois tal concepção considera a existência de
diferenças, mas não foca no déficit como falha ou menor valia. Diante disso, sugere a
necessidade de superação da falsa dicotomia entre celebrar as diferenças e melhorar
dificuldades, por meio do aproveitamento positivo de traços autísticos no desenvolvimento.
Tal concepção corrobora com Atwood (2006) quando este aponta a importância da
abordagem positiva do diagnóstico enquanto forma qualitativamente diferente de ser, com
foco nas habilidades.
No presente estudo observou-se que o foco nas características positivas se deu
principalmente em relação à aspectos cognitivos, como capacidade cognitiva e memória
elevadas, bem como percepção visual aumentada. Nesse sentido, nas respostas estiveram
presentes com frequência a associação do diagnóstico a pessoas famosas por terem essas
características citadas ou por se sobressaírem de alguma forma, como o cientista Albert
Einstein ou o jogador de futebol Lionel Messi. Essa associação surgiu no discurso de todos
os sujeitos como aspecto valorizado do TA.
Quanto ao valor do diagnóstico, para um dos sujeitos a diferenciação do TA do
autismo foi um fator importante, enquanto para os outros dois tal questão não surgiu. Giles
(2014) em seu estudo sobre a incorporação do TA ao diagnóstico de Transtornos do Espectro
do autismo, aborda a preocupação de que essa mudança possa aumentar o estigma em relação
aos indivíduos antes diagnosticados como aspergers. Essa preocupação se dá devido a
percepção social das características do TA como predominantemente positiva em relação a
do autismo, dada sua associação com “gênios” (Kite, Gullifer, & Tyson, 2013).
Ainda no tocante à caracterização do TA, os sujeitos trouxeram predominantemente
características com as quais se identificam, mesmo que estas não sejam oficialmente
relacionadas ao diagnóstico. Dessa forma, suas definições do que é o TA, apesar de conterem
181
muitos elementos dos critérios diagnósticos oficiais, não se basearam completamente nestes,
mas muito nas percepções deles mesmos. Logo, na etapa identificação das características em
terceiros, observou-se que eles falharam em identificar diversas características associadas ao
TA do personagem Sheldon. As características mais apontadas por eles como relacionadas
ao asperger foram as que estiveram em suas definições anteriores e as que associam a eles
mesmos. Por vezes algumas delas nem eram oficialmente uma característica. Por outro lado,
nessa etapa da entrevista, após a exibição das cenas, eles trouxeram características do TA
que não haviam citado anteriormente e com as quais se identificaram. Tal fato sugere que
anteriormente a exibição das cenas eles não associavam certo aspecto ao TA, mas a
identificação que tiveram com o personagem que sabiam ter o diagnóstico trouxe luz a
percepção de que esses aspectos poderiam ter relação com o asperger, produzindo insight.
8.3 O TA para os pais e filhos: ecos de vozes e percepções
Medidas de autoavaliação são largamente utilizadas na pesquisa e pratica clínica,
especialmente na avaliação de crianças mais velhas, adolescentes e adultos. Nos estudos do
Awareness e Insight, autorrelatos e outras medidas de autoavaliação são apontadas como
possibilidade de acesso ao fenômeno. Porém, tal ferramenta não costuma ser utilizada
individualmente, a ela os pesquisadores acrescentam informações de uma terceira pessoa,
construindo o que denominam medidas de discrepância, ou seja, resultados que lhes permitem a
comparação entre as respostas do paciente e de outras pessoas próximas acerca de seus sintomas
e impactos destes sobre as atividades sociais, educacionais e laborais (Markova & Berrios, 1992;
Sohlberg & Mateer, 2001).
Para este conjunto de pesquisadores, tal necessidade de medidas de discrepância se
justifica pela possibilidade de identificação do que denominam respostas enviesadas, ou seja, para
identificar objetivamente se alguns sintomas característicos do autismo escapam à percepção dos
182
sujeitos. Na perspectiva quantitativista de insight, quando as informações de caracterização são
obtidas diretamente de indivíduos com desordens que afetam seu funcionamento psicológico ou
cognitivo, existem preocupações acerca do grau de ciência dos sintomas ou características
(Johnson, Filliter, & Murphy, 2009b). Particularmente no que tange a indivíduos que tem asperger,
se observa que por estes apresentarem as características relacionadas às dificuldades na interação
e comunicação social, frequentemente não estão cientes de quando exibem comportamentos e falas
consideradas inadequadas e realizam interpretações de contextos e situações, igualmente
consideradas incorreta (McMahon & Solomon, 2015).
A partir do exposto, conclui-se que grande parte dos estudos de awareness, insight e
autopercepção em indivíduos com asperger tendem a adotar também medidas de discrepância entre
percepções dos indivíduos e de respondentes próximos a estes. Destes, grande parte dos estudos
utilizam questionários respondidos por pais e (Dewrang, 2011; Drummond, 2013; Johnson,
Filliter, & Murphy, 2009a; Sheldrick, Neger, Shipman, & Perrin, 2012).
No entanto, nessa perspectiva de comparação, intui-se a avaliação quantitativa de insight,
ou seja, o quanto um indivíduo percebe ou não suas características a partir da comparação com a
percepção dos pais. Para este estudo, optou-se por recorrer a entrevistas com pais e filhos,
assumindo como aspecto central da investigação os sentidos e vivências por estes produzidos.
Nesse sentido, a confrontação de entrevistas e percepções de pais e filhos que têm o diagnóstico
de asperger, para além da busca por falhas e faltas identificadas na fala dos sujeitos, objetivou
identificar de que modo tais narrativas se interpenetram, os afastamentos e aproximações nas falas.
Considera-se aqui que as narrativas produzidas por autistas não são menos exatas ou necessitam
de outras narrativas que as corrijam, o foco assim se desloca de uma perspectiva quantitativa de
insight para uma qualitativa, onde o que importa não é o quanto o sujeito identifica de
características autistas em si mesmo, mas quais e como eles as significa.
183
Para a realização desta etapa, cada sujeito indicou uma pessoa, considerada por ele mais
próxima, para que participasse da pesquisa. Todos escolheram um dos pais como respondente.
Estes realizaram a mesma atividade que seus filhos, porém com o esforço de responderem à
atividade como se fossem o seu filho: primeiramente a narrativa livre de como é ser asperger para
o personagem Oh, seguida das questões da entrevista e cenas da sérir The Big Bang Theory.
Destaca-se que apenas a mãe de Chaves conseguiu fazer o exercício de responder como o filho.
Apesar disso, foi observado que todos trouxeram seus sentidos, bem como em alguns momentos
tentaram pensar em como seu filho se sente em relação às temáticas abordadas.
Na literatura científica diversos estudos abordam a percepção de pais de filhos diagnosticados
com autismo acerca desse diagnóstico. Russel e Norwich (2012) apontam que pais frequentemente
reagem diferentemente antes e após a confirmação do diagnóstico dos filhos, pois o medo e
preconceito iniciais alcançam um estágio final de aceitação e adaptação. Pais também tendem a
reconstruir suas concepções acerca do TA, produzindo comumente narrativas mais positivas após
essa etapa, muitos assumindo papeis proativos de desestigmatização e mudança da percepção
social acerca do diagnóstico. Nessa direção, estudos identificaram a utilização de elementos que
partiam tanto de um discurso biomédico acerca do TA quanto do modelo social da deficiência. Os
pesquisadores concluíram que os pais tenderiam a utilizar qualquer discurso que, em sua opinião,
garanta o melhor prognóstico para seus filhos (Drummond, 2013; Russell & Norwich, 2012).
Quanto à percepção dos pais sobre a relação de seus filhos com o diagnóstico de autismo, bem
como suas potencialidade e fragilidades relacionados a este, estudos de insight apontam que os
pais tendem a sugerir mais dificuldades do que seus filhos. Nesse sentido, a partir das discrepâncias
entre as percepções dos pais e dos filhos, sugerem dificuldades da parte destes últimos de perceber
suas próprias dificuldades e características, caracterizando a presença de falhas no processo de
insight. No entanto, outros estudos apontam que tais discrepâncias e respostas podem advir de
outros fatores, tais como o enviesamento de respostas não somente da parte dos filhos, como dos
184
pais, devido ao esgotamento da convivência diária que leva a uma percepção negativa (Drummond,
2013).
No presente estudo, observou-se que pais e filhos, de maneira geral, produziram narrativas
semelhantes, tanto para as dificuldades encontradas, quanto para as potencialidades, seja no âmbito
social, relacionado ás dificuldades de interação e comunicação social, bem como nos aspectos
cognitivos, ressaltando aspectos como inteligência e habilidades mnemônicas. No entanto, para
além disso, na confrontação das entrevistas puderam ser observadas aproximações no discurso
quanto aos sentidos e significados veiculados nos discursos acerca do diagnóstico e valores
associados a este.
Nessa direção, John e seu pai abordam em seus discursos a necessidade de enfoque nas
características positivas do filho e disfarce das negativas, apesar de John dar mostras de não se
sentir confortável com essa estratégia. Chaves e sua mãe têm em seus discursos aproximações no
tocante á produção de discursos que sugerem relativa neutralidade diante do diagnóstico e, por
vezes, indiferença. Por fim, Satoshi e seus pais, principalmente sua mãe, demonstram a mesma
angústia em relação ao Transtorno Obsessivo Compulsivo do filho, este surge como co-morbidade
ao TA e fonte maior de sofrimento.
Cabe ainda ressaltar os conselhos que pais e filhos, ao final da entrevista, deram a eventuais
pais de adolescentes e jovens que acabaram de ser diagnosticados. Nestes, a similaridade das ideias
entre os pares, presentes durante a entrevista, se evidencia quando é pedido a cada um deles que
faça o mesmo exercício de aconselhamento, que possivelmente reflete o que para cada um deles é
essencial no papel de pais de um indivíduo com TA. Essas falas são dispostas a seguir:
Pai de John: “aah estar o tempo todo próximo a eles nunca deixando de ofertar opiniões e
conselhos. Sempre estar estimulando”.
John: “Que...ajudem essas pessoas...que ajudem seus filhos a se portarem...que encontre
meio delas contornarem seus problemas sem causar muito transt (transtorno)...[corta a fala]”
185
Mãe de Chaves: “pra ajudar...que se eu não tivesse visto que R era diferente no começo, ele
não estaria como está, e como eu percebi e comecei a conversar (...). Tanto é que R chegou aonde
chegou. ”
Chaves: “Não fiquem tristes. Tenham paciência. ”
Mãe de Satoshi: “Que desse muito amor a ele. Muito amor, atenção, que lutasse por ele e
que conseguisse dar um bom apoio psicológico que eu acho que a coisa melhora. Muito amor,
eu acho que eles precisam muito disso. Amor, atenção e um acompanhamento psicológico
adequado. Que é o que a gente busca fazer, sempre. ”
Satoshi: “Tentem conversar com ele com frequência, tentem dar atenção a ele, porque ele é
como um ser humano normal que eu sei que vocês sempre deram...tentem tratar ele como vocês
sempre trataram ele...apesar das dificuldades. Façam o seu filho feliz porque ele pode estar meio
infeliz...com..com o ambiente...exterior...”
A análise dos discursos dos pais exige a retomada aqui de reflexão acerca do lugar destes no
desenvolvimento dos processos de insight de seus filhos. Torna-se necessário refletir sobre um
perfil de funcionamento psicológico superior perpassado por uma condição clínica, presente desde
muito cedo. Nesse sentido, diante da presença de uma condição como o TA, que se configura como
um transtorno do neurodesenvolvimento, é relevante refletir como um conjunto de características
que constituem o indivíduo e fazem parte de sua identidade, implicam numa forma de perceber e
estar no mundo que é qualitativamente diferente do desenvolvimento típico.
Nesse sentido, buscando ampliar a compreensão acerca das experiências e vivências
desses sujeitos propõe-se uma análise dos processos de desenvolvimento numa perspectiva
dialógica, argumentando que as funções psicológicas têm substrato na corporeidade, mas são
igualmente interdependentes dos contextos emocionais e socioculturais nos quais o sujeito está
imerso. O desenvolvimento subjetivo é considerado resultante das relações sociais internalizadas.
186
Assim, a alteridade se constitui enquanto característica importante, uma vez que a experiência
singular humana é forjada na relação interdependente eu-outro.
Na perspectiva dialógica, esse processo se dá na interação e por meio do uso da
linguagem. Essa tem papel fundamental no desenvolvimento, primeiro externamente, advinda
desse outro cuja fala direciona inicialmente as ações, para em seguida, ser apropriada e, finalmente,
internalizada. A linguagem adquirida se converte em organizadora do pensamento e do
comportamento da criança. Sua atividade se orienta através dos signos e significados que
constituem o tecido da consciência própria, através da linguagem interior. A partir deste momento,
além da função de atuação externa, ou seja, da busca por uma resposta ou comportamento do outro,
a fala ganha a função interna de autorregulação. Por meio dela regulamos nossa própria conduta,
por exemplo, planejando antecipadamente em nossa consciência e prevendo e resolvendo
mentalmente os problemas que uma atividade pode apresentar. No processo de internalização os
signos se convertem em instrumentos subjetivos da relação do indivíduo consigo mesmo:
autodirigem e regulam sua própria conduta e pensamento.
Pratt, Mackey, & Arnold (2001) abordam a constituição das vozes de cada indivíduo como
derivada da apropriação de vozes e influências externas (ex: pais e pares) a partir de experiências
e interações com estas. Tais influências irão aparecer no plano intrapsíquico (ou discurso interno)
à medida que o indivíduo se depara com problemas ou conflitos. Os autores sugerem que, em
última instância, a partir dessas influências se constrói um sistema de crenças pessoal.
A consideração dos processos de desenvolvimento de adolescentes ou adultos jovens, a
partir da perspectiva dialógica, na qual os sentidos são construídos nas interações sociais, ressalta
o papel das relações entre pais e filhos no processo de desenvolvimento destes, bem como na
formação de identidade e construção de sentido. Ressalta-se a importância do diálogo na
construção do sentido e compreensão do self (Bakhtin, 1986; Holquist, 1990). Este não é definido
como uma atividade diádica, mas como sendo composta de três elementos: um enunciado, uma
187
resposta e a relação entre eles. Nesse processo, a linguagem não é usada para representar uma ideia
completamente formada na mente de alguém. Essas são, na verdade, construídas por meio dos
enunciados e como parte de um diálogo.
Nessa interação, diversas vozes estão presentes, para além de apenas o falante e o ouvinte,
pois à medida que um fala, o outro interpreta, e essa interpretação está atrelada a vivências e vozes
anteriores presentes em seu discurso interior. Dessa forma, existem diferenças entre o que é falado
e o que é ouvido que leva a entendimentos diferentes para cada participante do diálogo, existindo
uma lacuna entre os indivíduos. Bakhtin sugere que é nessa lacuna que emergem novas ideias
sobre o mundo e sobre si mesmo e é onde se constroem as vozes individuais (Ashbourne, 2009).
Na relação entre pais e filhos, esse intervalo permite o desenvolvimento destes e formação de
identidade a partir da co-construção dialógica de sentidos sobre si mesmos no processo de
desenvolvimento.
Nesse sentido, diversos estudos sugerem o papel das crenças e discursos dos pais acerca
das habilidades dos filhos, principalmente em relação a aspectos acadêmicos, nas crenças destes
acerca deles mesmos (Eccles et al., 2012; Frome & Eccles, 1998). No presente estudo
problematiza-se a relação entre os discursos de pais e filhos e a influência do discurso dos
primeiros na construção dos processos de insight acerca do diagnóstico dos segundos.
Convoca-se aqui a perspectiva de Bakhtin (1929/1992) do desenvolvimento da identidade
no contexto social compartilhado, permeado de vozes e discursos. Nessa constituição, o autor
distingue dois tipos de discursos dialógicos que atuam nas vozes individuais. O primeiro é uma
forma de discurso externalizada, na qual o discurso em desenvolvimento da criança reflete uma
aliança incondicional com a voz da autoridade. Isso é caracterizado por repetição mecânica de
crenças que não foram totalmente internalizadas e apropriadas como deles mesmos. No segundo,
mais avançado, a criança se engaja no diálogo interno persuasivo. Neste, a voz dos outros não só
é audível no discurso da pessoa, mas foi assimilada e reconstruída (Tappan, 2005). Do ponto de
188
vista de pais e filhos, a voz dos pais é o discurso inicial de autoridade, cujos elementos são
assimilados por estes que irão, posteriormente, clamar autoridade e responsabilidade pela fala,
apesar de esta ser uma resposta à visão dos pais da forma como o filho as compreende e reconstrói.
Ainda sobre a formação de identidade e percepção de si, é no conceito de excedente de
visão de Bakhtin busca clarear o papel do outro nesse processo. Nessa concepção, o outro pode
nos fornecer o olhar diferenciado, de aspectos individuais, que nós mesmos não temos, pois se faz
necessário um distanciamento para perceber. Esse olhar de alteridade nos é colocado e pode
integrar nossa própria concepção de si. Porém, tal processo pode ocorrer de duas formas: a primeira
reflexiva, quando a percepção alheia “cola” na nossa e é literalmente reproduzida, ou refratária,
quando esta mesma percepção passa pela reflexão e é incorporada à autopercepção com ajustes
individuais (Faraco, 2009).
Nesse sentido, diversos estudos sugerem a existência de dificuldades de indivíduos dentro
do espectro do autismo no processo de apropriação da linguagem. Tais pesquisas partem da
hipótese de que, por esses indivíduos apresentarem dificuldades no tocante à linguagem,
principalmente na comunicação social, ou seja, os aspectos sociais e relacionais desta (como a
dimensão pragmática), aspectos importantes da linguagem seriam perdidos por estes, levando a
uma apropriação/internalização qualitativamente diferente da linguagem (Wallace, Silvers,
Martin, & Kenworthy, 2009). Ao mesmo tempo, outros estudos sugeriram que dificuldades no
discurso interno em crianças do espectro se relacionam a discrepâncias no perfil cognitivo destas,
com variações do âmbito verbal para o não-verbal, sendo este mais desenvolvido. Dessa forma,
indivíduos com maiores habilidades não-verbais e pensamento predominantemente visual teriam
maiores dificuldades em utilizar o discurso interno. Saalasti et al. (2008) concluíram em seu estudo
sobre a aquisição da linguagem em crianças com diagnóstico de síndrome de asperger, que estas
obtêm resultado significativamente menor em tarefas de compreensão de linguagem. Tais
189
dificuldades podem estar associadas a déficits na autorregulação, que se associa ao uso da
linguagem como discurso interno para planejar e direcionar o comportamento.
O discurso interno, no sentido proposto por Vygotsky, é associado por Morin (2005) à
autoconsciência e autopercepção. Tal associação se justifica dada a associação desse discurso a
autorreflexão. Este ainda reproduz mecanismos sociais responsáveis pela autoconsciência, como
vozes e discursos de outros indivíduos. Morin sugere que é a partir desse mecanismo que
informações sobre si mesmo, partindo de outras pessoas, podem tornar-se intrapessoais,
agregando-se a autopercepção e ao autoconceito de cada indivíduo. No entanto, se a informação
não for correta ou acurada, o indivíduo pode resistir a incorporá-la ao seu autoconceito. Assim,
antes dessa etapa, a informação passa pelo que Eisenstadt, Leippe, & Rivers (2002) chamam de
escrutínio reflexivo, no qual a informação é confrontada com informações relativas ao
autoconceito. Morin sugere que esse escrutínio diz respeito o discurso interno ou o “falar consigo
mesmo”. Ele exemplifica da seguinte maneira: uma pessoa pode ser acusada de ser preguiçosa por
faltar o trabalho, o que poderia ser verdadeiro, mas caso não seja, a passar pelo escrutínio a
informação correta será obtida: ‘eu não sou preguiçoso, eu estava doente e de cama” (Morin, 2005.
Diante disso, no presente estudo, as percepções dos adolescentes e jovens com asperger
sugerem que algumas informações e concepções de seus pais, pessoas mais próximas em seu
convívio atual e referência durante todo o processo de desenvolvimento, podem ser atreladas as
suas sem a reflexão necessária para a refração, com sugerida por Bakhtin, das informações, de
forma que significados relativos ao asperger, bem como sentidos construídos e outras concepções
incorporadas as percepções que eles tem de si, são dadas por terceiros. No estudo, tal possibilidade
é ressaltada no caso de Chaves, que recorre frequentemente as percepções de terceiros quando
perguntado sobre ele mesmo, as vezes em citações literais, e cujas preocupações sempre refletem
as de sua mãe. Em contrapartida, no discurso de John, apesar de surgirem fortemente as
concepções de seu pai em relação ao diagnóstico, em alguns momentos de sua fala se distingue a
190
dissonância interna, como se ele avaliasse o quanto de fato aquela informação o define, a exemplo
do seguinte trecho, em que ele aconselha outros jovens que acabaram de descobrir que tem TA:
“tem um [conselho]...seja uma pessoa que tente se parecer com as outras pessoas, mesmo
que você não seja igual a eles”.
Nas produções narrativas dos sujeitos do presente estudo identifica-se a presença de “ecos”
das vozes e concepções de seus pais acerca do diagnóstico de asperger, quando confrontadas as
entrevistas. Tal fato em si não destoa do que é esperado para o desenvolvimento de qualquer
sujeito. No entanto, para os sujeitos do presente estudo, as vozes dos pais parecem refletir mais do
que refratar tais vozes em seu próprio discurso.
9. Conclusões
"Eu não posso me arranjar sem um outro, eu não posso me tornar eu mesmo sem um
outro; eu tenho que me encontrar num outro para encontrar um outro em mim"
Bakhtin (em Faraco, 2009)
Estudos diversos têm examinado a percepção e o entendimento que os indivíduos com
Transtorno de Asperger têm acerca do mundo e de outras pessoas, mas menos interesse tem sido
direcionado para o entendimento destes sobre o seu próprio diagnóstico. Ao mesmo tempo, o
conhecimento científico acerca dos comportamentos associados ao TA, suas relações sociais,
educacionais e laborais, foi construído a partir do relato de terceiros: relatos de clínicos,
pesquisadores e pessoas próximas.
Tais relatos constituíram importante fonte de conhecimento sobre o TA no sentido de
compreensão de aspectos nosológicos e nosográficos do diagnóstico, bem como de
191
comportamentos observáveis. Para além disso, construíram igualmente uma visão social do
diagnóstico pautada nessa percepção externa.
O presente estudo buscou compreender aspectos relativos aos processos de insight de
indivíduos com Transtorno de Asperger acerca de seu diagnóstico. Para tanto foram investigados
diversos aspectos relativos a suas percepções sobre o TA, bem como as percepções de seus pais
sobre o mesmo tema.
Salienta-se que no presente estudo, a compreensão do funcionamento de indivíduos
aspergers parte do princípio de que quantitativamente estes não têm uma menor ou maior
percepção de si mesmos, ou seja, reconhecendo a existência ou não de “sintomas” ou
características. Por outro lado, qualitativamente, as percepções deles acerca de si mesmo, como
apontado anteriormente, não são menos precisas ou exatas, importando menos quanto o sujeito
identifica e mais que característica eles percebem e como as significam. Assim, compreender
“como é ser asperger”, implica investigar os processos de desenvolvimento desses indivíduos,
que são atrelados ao meio em que vivem, bem como a vozes e discursos que permeiam seu
contexto, para além de apenas as distintas características de seu funcionamento cognitivo.
Tal processo de desenvolvimento pode ser analisado a partir da contribuição de Bakhtin e
Volochinov (1929/1992) em termos da necessidade da emergência da novidade na produção
narrativa e, consequentemente, nos processos de insight. Para os autores, a consciência não se
utiliza da língua como quem mobiliza um conjunto de regras normativas, este sistema formal é na
verdade uma abstração. Sendo assim, não se pode negligenciar que o sujeito mobiliza e usa a língua
em situações concretas. Isso posto, a relevante dimensão desse processo não está no formal, mas
no novo significado produzido nesse contexto. Ou seja, a forma linguística ganha importância no
momento em que se apresenta como signo flexível e variável, não como sinal estável.
192
Decorre que, se a língua só ganha relevância na sua dimensão de variabilidade e
flexibilidade, o foco de investigação deve deslocar-se do que está em conformidade com a dita
norma para a novidade que emerge. A palavra é, na verdade, uma orientação que é a esta conferida
por um contexto e uma situação específicos (Dome, 2009).
É interessante notar que no universo autista o signo linguístico perde exatamente esta
dimensão de flexibilidade e novidade. O processo fica estanque na dimensão do significado da
palavra, não do sentido que a palavra ganha naquele contexto singular. Salienta-se que participam
da construção deste sentido dimensões da linguagem não veiculadas através da fala, tais como
expressões faciais, comportamentos, condições sociais, este conjunto de enunciados confere
àquele contexto uma dimensão única, mas para o asperger ela costuma estar presa a um mesmo
significado, imutável e rígido.
Nesta perspectiva, como uma característica do funcionamento asperger pode pensar numa
disrupção na transição de um modo monológico para um dialógico de pensamento, que pode
comprometer o engajamento na relação com os pares. O asperger pode apresentar dificuldades
para desenvolver uma narrativa acrescida de novidade ao entrelaçamento com os seus pares. Por
vezes, seu discurso parece apenas refletir e repetir, ecoar as vozes sociais. Nesse sentido, a
produção de significados e sentidos tende a reproduzir as concepções da sociedade.
Sendo as vozes da cultura aquelas entoadas pelos sujeitos asperger, as suas identidades e
consciências, qualitativamente diversas, vão denunciar os preconceitos e dificuldades nas relações
da sociedade com as condições destoantes. O modelo biomédico converte-se na fala dos sujeitos
deste estudo, mesclado com os discursos da mídia e dos pais.
Possivelmente a principal característica dos processos de insight para o TA é a manutenção
de um discurso monológico, sem a presença constante da novidade, na ausência da autenticidade.
Convém então questionar se trata de ausência de insight ou de um modo idiossincrático de produzi-
lo.
193
Buscando responder à questão acima lançada convoca-se o conceito de disontogênese
(Anokhin, 1975; Vygotski, 2012), central na defectologia vygotskiana, que é contraponto à visão
tradicional do sujeito com alterações desenvolvimentais. Tal concepção traduz-se numa visão do
sujeito com dificuldades como um ser cujo desenvolvimento é caracterizado pela falta. Abordar a
deficiência sob a ótica da limitação imposta pela condição significa considerar a pessoa com
deficiência um simples conjunto de funções negativas, resultando em uma abordagem limitada
(Gindis, 1999; Vygotsky, 2012). Em contraposição a esta perspectiva, a defectologia baseia-se em
uma concepção de desenvolvimento como processo essencialmente qualitativo, de forma que
podemos pensar a produção de insight no asperger não como menos desenvolvida do que outras,
mas detentora de um processo desenvolvimental que ocorre de maneira qualitativamente distinta
daquela dita normal.
Na defectologia o papel do “defeito” é sempre duplo, pois configura contexto de
disontogênese, ou desvio da função típica do desenvolvimento, produzindo falhas, obstáculos e
dificuldades na adaptação do sujeito; mas por outro lado, exatamente porque o defeito produz
obstáculos e rompe o equilíbrio normal, ele serve de estímulo ao desenvolvimento de caminhos
alternativos de adaptação, indiretos, os quais substituem ou superpõem funções que buscam
compensar a deficiência e conduzir todo o sistema a uma nova ordem (Vygotsky, 2012).
Nessa perspectiva, a dimensão sociocultural é dialeticamente o gérmen da deficiência e
o caminho compensatório, pois onde identifica-se a limitação biológica, abre-se um caminho,
sem limites, para o desenvolvimento cultural. Sendo assim, pode-se concluir que os processos de
insight, o desenvolvimento da consciência do asperger seguem caminhos distintos de
desenvolvimento. O entendimento destas rotas alternativas de desenvolvimento das funções
psicológicas superiores, bem como as proposições de intervenções que favorecem tal processo
transformam o negativo da deficiência no positivo da compensação (Vygotski, 2012).
194
10. Considerações finais
“Nada sobre nós, sem nós”
(Tradicional slogan que representa a ideia de que decisões sobre grupos de pessoas
não devem ser tomadas sem sua participação. É tamnbem lema do movimento Autistis Self-
Advocacy Network)
O presente estudo buscou contribuir para o entendimento de indivíduos diagnosticados
com transtorno ou síndrome de asperger a partir da perspectiva destes. Tal compreensão é
essencial para familiares, profissionais e amigos de sujeitos com esse diagnóstico. Esse fato se
justifica dada o crescente aumento do conhecimento público sobre a condição asperger e a
ampliação da inclusão desses indivíduos em sociedade. Ressalta-se que este estudo considerou
apenas aspectos relativos à percepção do diagnóstico, sendo necessários estudos que ampliem a
compreensão da constituição desse discurso considerando outros aspectos da consciência de si.
Ademais, cabe investigar o papel de outras fontes de influência nesse discurso, como professores
desses indivíduos. Sugere-se ainda a ampliação de estudos de insight com indivíduos
diagnosticados com outros transtornos do neurodesenvolvimento, no intuito de investigar como
se constitui a percepção desses diagnósticos, considerando semelhanças e distanciamentos do
TA.
Por fim, destaca-se o papel de estudos com narrativas, autobiografias e autorrelatos de
indivíduos do espectro do autismo na contribuição para a evolução social e cultural em
andamento desse diagnóstico, não só para a sociedade, mas com efeitos transformativos
significativos nas experiências do dia a dia dos próprios indivíduos autistas. Tais efeitos
decorrem da possibilidade de que, a partir dos exemplos similares, outros indivíduos autistas
possam se engajar e explorar suas próprias experiências, modificando igualmente a forma como
195
pensam e falam de si mesmos. Para tanto, ressalta-se a importância da visão social desse
diagnóstico, voltando-se para a possibilidade de pensar o TA como forma de ser diferente.
Salienta-se que compreender esses aspectos da consciência de si significa compreender a
singularidade e eventicidade da existência e da experiência subjetiva. Tais aspectos são essenciais
para a real compreensão do que significa se desenvolver de maneira fundamentalmente diferente,
sem reduzir o indivíduo a estereótipos sociais, ou achados científicos teóricos, como alterações
cognitivas e comportamentos desviantes.
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12. Anexos
Anexo 1: Roteiro da atividade e entrevista
1. O que é SA?
2. Como você sabe se alguém tem SA?
3. Você tem algum amigo que tem SA?
4. Você já ouviu algo na TV, filmes ou na internet sobre a SA? Você já viu alguém
na TV ou em filmes com SA? Você conhece alguém famoso com SA? O que você
acha disso?
Agora eu gostaria de te mostrar umas cenas de uma série de TV. Essa série mostra o dia-a-
dia de um grupo amigos cientistas. Um deles tem algumas características da SA, inclusive
algumas que você mencionou.
Passar as cenas.
5. E aí você conseguiu identificar quem poderia ter SA? O que você identificou/quais
características dele você acha que se devem a SA?
6. Quem te falou sobre a SA? Você lembra de ter sido testado? Como te disseram
sobre a SA?
204
7. O que você acha que fez você ser assim?
8. Tem características do Sheldon que você observa em si mesmo?
9. Como você se sente sobre ter SA?
10. Tem outras coisas boas (pontos de força) ou coisas não tão boas (fragilidades) que
resultam de seus comportamentos da SA?
11. Como, se isso aconteceu, ter SA mudou sua vida?
12. Tem alguém na sua vida com quem você se sente confortável falando sobre SA?
Quem?
13. Sua família fala com você sobre a SA?
14. Que conselho você daria a outro adolescente ou jovem adulto que descobriu que
tem SA? O que você diria para ele?
15. Que conselho você daria para pais de um adolescente ou JA com SA?
16. Antes de terminarmos, tem algo mais que você gostaria de acrescentar? Você
consegue pensar em algo mais que você gostaria de me dizer?
17. Como foi para você fazer essa entrevista?
Eu gostaria de te agradecer por ter participado dessa entrevista e por ajudar com essa
pesquisa. Você fez uma contribuição importante, não só para a pesquisa, mas também para
ajudar outras crianças/adolescentes com SA.
Anexo 2: Transcrições dos áudios dos sujeitos
John
1. E: Oh é um ser de outro planeta que veio habitar a terra. Como vimos no vídeo, ele é um Boov,
e todos os boovs receberam um panfleto sobre como a terra funciona. No filme, nós vemos que
o Oh está começando a aprender sobre muitas coisas e, agora, está particularmente interessado
em aprender sobre as pessoas desse planeta, mas, como vimos, ele percebeu que nem tudo está
no panfleto e as pessoas parecem mais complicadas do que diz lá. Uma coisa que ele descobriu
é que existem pessoas que têm transtorno de Asperger, mas não achou nada sobre isso no
panfleto. Ele acredita que que adolescentes ou jovens adultos como você, com SA, são os
verdadeiros experts que podem ensinar as outras pessoas sobre como é ter SA. Ele gostaria de
205
entender sobre como é ter SA, como isso te afeta e como faz você se sentir, bem como que
impactos da SA você percebe no seu dia-a-dia. Ele quer saber tudo isso.
2. J: Na verdade você quer saber...pelas entrelinhas para a pesquisa.
3. E: É, so que aí a gente vai fazer como se fosse com o OH. O que é que você acha?
4. J: Um pouco ridículo
5. E: Então você prefere me dizer?
6. J: Prefiro.
7. E: Então tá. Então pode ser.
8. J: Porque bem eu não sou muito bom de apresentações...
9. E: Hum.
10. J: e...não...eu sou um pouco nervoso na hora de apresentar alguma coisa...
11. E: é por isso que se você preferir você eu posso ir ali (fora de seu campo de visão) ou até lá
pra fora e você fala pro Oh.
12. J: Não precisa, vou do meu jeito.
13. E: Tem certeza?
14. J: Uhum.
15. E: Então tá
16. J: Bem...eu não cheguei a pesquisar exatamente o que que é uma SA, mas isso dá pra
perceber porque em algumas eu não consigo me relacionar direito socialmente... o mínimo
que seja...e quando eu vou conversar com alguma pessoa as vezes eu não...eu tenho que
terminar o conteúdo que eu to dizendo pra deixar ele falar.
17. E: Hum
18. J: E também...eu tenho que ter um pouco de desvio de atenção e quando aí as coisas
desviam...também são coisas que logicamente não teriam importância, como mexer numa
caneta e girar um peão ou então ver um negócio oscilando...
19. E: Essas são coisas que desviam sua atenção?
206
20. J: ...sim...
21. E: Que mais que você percebe e acha que é (da SA) e conhece?
22. J: Não dá pra explicar isso muito direito do que eu sei agora, mas a primeira a pessoa que
me diagnosticou...o nome da pessoa que diagnosticou que eu tenho asperger foi um cara
chamado M. que também tinha um pouco e gostava muito de...eu gosto muito de fazer
algumas coisas padronizadas e tipo o...se eu des...se alguém desmontar o avião de lego que
tenho lá em casa eu vou lá e monto de novo...tipo...eu quero que aquilo seja de um jeito, crio
regras para algumas coisas...
23. E: Certo
24. J: Também...eu não sou...uma pessoa asperger ou autista nunca vai se dar bem com RPG de
mesa, porque eu acho que é uma coisa que dá pra identificar porque eu tenho tendo...eu sou
daquele tipo que fica imaginando as coisas e aí as vezes a imagem...eu me distraio com a
imaginação e o jogo fica chato e...algumas coisas que eu vejo eu só lembro de algumas
imagens que elas me ajudam a decifrar algumas coisas.
25. E: Hum
26. J: Tipo você visualiza linhas e códigos dentro de um jogo, pode querer visualizar linhas e
códigos dentro de um jogo ou então você pode lembrar de algum de algum detalhe que você
tenha perdido antes apenas batendo o olho ou pior..você representa tudo que vê e tudo que
entende através de imagem.
27. E: Você faz isso?
28. J: Faço também
29. E: Então se você tivesse que explicar pra alguém que não faz qualquer ideia do que é isso,
pode ser o Oh ou qualquer pessoa. Eu já conheço um pouco, mas se você tivesse que explicar
pra alguém que não sabe como é (a SA) que você diria?
30. J: Que o asperger é um autismo de grau levíssimo e na maioria das vezes quase
imperceptível. É normal nas pessoas terem pelo menos um pouquinho dessa síndrome.
31. E: E como você sabe se alguém tem SA?
32. J: Eu...não sei como descrever, mas a pessoa pode estar vidrada em alguma coisa que não
seja tão importante ou então gosta de brincar muito com uma caneta, normalmente desenha
207
muito a mesma coisa, não procura variar...tem algum pa...a pessoa normalmente tem algum
padrão. No caso, eu só...a maioria das vezes que eu desenho são dragões.
33. E: É o que você gosta, não é?
34. E: Você prefere que eu desligue [a câmera]?
35. J: Não...tanto faz...será que você pode editar depois...um...a filmagem, porque não saí direito.
36. E: Mas esse filme só eu vou assistir.
37. J: entendi
38. E: Que mais você acha que dá pra dizer sobre como saber se a pessoa tem SA?
39. J: No meu caso eu também sou um pouquinho atrapalhado na hora de falar com as pessoas
e não consigo formar se...eu iniciar as palavras direito...eu acho que é uma consequência de
uma...de que...é como uma falta...pode ser uma falta de estimulo até.
40. E: E você tem algum amigo que tem SA?
41. J: M. L., também tem SA.
42. E: Você já falou dele da outra vez, não foi?
43. J: Aham
44. E: E vocês são amigos?
45. J: Éramos. Até a gente se desencontrar quando ele saiu do C., ele era da minha turma.
46. E: Huum ele era da mesma turma.
47. E: E você já viu algo na tv ou internet sobre...
48. J: Um livro! “Olhe nos meus olhos”
49. E: Huum já li esse livro. O que é que você achou?
50. J: Interessante...apesar de eu não ler ele por completo a primeira parte já deu pra entender
um pouco, porque ele também tinha alguns padrões que já identificavam que ele tinha
asperger...tipo ele organizava os carrinhos e caminhos de um jeito e teve algumas coisas que
ele não entendia direito também.
51. E: Huum. Você não leu ele todo ne? Eu acho que o nome dele é John.
208
52. J: Acho que sim
53. E: O John se não me engano só recebeu o diagnostico quando já tinha mais de 40 anos...é lá
pro fim do livro.
54. J: Vishh...doido
55. E: E você se identifica com alguma coisa do John?
56. J: Sim...o mesmo padrões do caminhão que ele tinha eu identifiquei com o lego...o avião que
eu montava quando era criança e também com os dragões que eu normalmente desenhava
do mesmo jeito e...algumas coisas.
57. E: E você conhece alguém famoso que tem SA?
58. J: Não...mas eu conheço uma pessoa que tem autismo que até teve o filme...acho que já te
disse esse filme
59. E: Da Temple Grandin (TG)?
60. J: Isso
61. E: E o que você acha da TG?
62. J: Uma pessoa excelente apesar de ser um pouco problemática, principalmente com a
alimentação
63. E: Você leu o livro dela?
64. J: Não...so vi o filme
65. E: Ela tem alguns livros que...
66. J: Tem?
67. E: Sim, tem alguns.
68. J: E tem um primo meu lá em minas gerais que tem autismo também.
69. E: Huum acho que você falou uma vez..
70. E: Olha só...agora queria te mostrar cenas de uma série de TV. Essa serie mostra o dia a dia
de amigos que são cientistas. É a The Big Bang Theory (TBBT).
71. J: Huuum
209
72. E: Você já viu?
73. J: Já
74. E: E você assiste regularmente?
75. J: Não...só vi
76. E: Um deles tem...
77. J: O que faz o Sheldon.
78. E: Isso. Inclusive algumas coisas que você mencionou. São cenas aleatórias e não do mesmo
episódio. Certo?
79. J: Certo.
Cena 3 – Os quatro amigos vão a um restaurante e não conseguem pedir
80. J: (risos) pelo...ele...tá todo como se uma pessoa que tem um asperger um pouco pior que o
meu porque ele faz atitude...algumas atitudes meio que um pouco neuróticas ou sem
pensar...ele tá falando muito... (risos) ...tá fazendo meio que um papel de bobo ...ele tá
falando coisa com coisa e os outros nem tão entendendo direito. (Risos). Eu não entendi
direito...
Cena 4 – Sorriso de Sheldon
81. J: (risos) ele não sabia se p...ele não sabe se...(risos) ele não entende as coisas direito (risos)
ele não sabe sorrir direito ele não entende...como é que é sorrir direito...só fez uma cara que
ele viu em algum lugar.
82. E: Nessas cenas que passarem tem alguma característica que você acha que é da SA? Do
Sheldon?
83. J: Nos padrões e o padrão no segundo vídeo dele pedir a mesma coisa
84. E: Ah dele pedir sempre a mesma coisa?
85. J: É, eu acho que é mas o que eu identifiquei meio foi os maneirismos dele.
86. E: Hum
87. J: Parece que ele tá um pouco...que ele tá...eu até tenho um pouco disso de vez em
quando...quando eu fico com a cabeça na lua.
210
88. E: Hum...de maneirismo tipo o que?
89. J: Tipo ele ficar mexendo um pouco estranho.
90. E: Hum...vou botar outro...
91. J: E também aquele sorrisinho estranho dele eu compararia com.…com o ...eu comparei com
o ...com a com a.…com o fazer carinho do cara do livro...o.…que ele não sabia como tratar
alguém direito e o cara ele entendia mais um meio com uma agressão.
92. J: Ele tá meio atacado (risos)
93. Cena 6 - empréstimo de dinheiro à Penny
94. J: (risos) ...também de vez em quando eu entendo as coisas ao pé da letra e não consigo
enxergar as entrelinhas.
95. E: Foi o que aconteceu agora?
96. J: Aham
97. J: Nunca cheguei a fazer isso...completamente ilógico (risos)
98. J: Intitulando as coisas...ele deu um palpite meio que fora de contexto.
99. E: nessas teve alguma coisa que você acha que foi alguma coisa de...
100. J: eu não consegui identificar...explica? (pede ajuda a entrevistadora)
101. E: nessas ele sempre pergunta do sarcasmo...nem sempre ele consegue entender e ele
pergunta ao Leonard.
102. J: hum
Cena 7 – Conversa desconfortável
103. J: com certeza eu não faria isso...ele não entendeu direito (risos)
104. E: o que?
105. J: Na verdade ele até pode ter entendido, mas ele falou justamente o que ela não queria
ouvir.
106. E: então ele não entendeu mas falou o que ela não queria ouvir?
107. J: Uhum...eu não acho que seja algo de asperger.
Cena 8 – Decifrando expressão de Rajesh
211
108. J: Hum...eu peço desculpas com um pouquinho de frequência.
109. E: você pede desculpa com frequência?
110. J: Não muito, mas normalmente eu peço ao meu pai e minha mãe...eu acho um pouquinho
excessivo de vez em quando.
Cena 9 – Abraço na lavanderia
111. J: Eu não faço isso.
112. J: De vez em quando eu explico um pouco de...eu só...as vezes eu...frequentemente quando
eu tô falando alguma coisa que eu acho que posso esquecer eu não deixo a pessoa me
interromper
113. E: Você fala até terminar?
114. J: Frequentemente
115. E: Nessa cena, teve algo da SA?
116. J: Ele explicando motivo do abraço alguma coisa assim...tudo tem que ter uma explicação.
117. J: (risos) e eu não vi nada que consiga identificar
Cena 10 – Sheldon e Leonard se conhecem
118. E: Eu não vi nada que tenha a ver com a SA...
119. Nessa? A cena ainda continua.
120. J: Aí eu identifiquei alguma coisa...os maneirismos dele novamente...são parecidos com os
de alguém que tem um pouco de...um pouco de asperger, só que um pouquinho acentuado.
121. E: Tipo que maneirismo?
122. J: Aquele outro menino do talento...cabeludo mais alto? Ele pergunta as coisas e parece que
bugou.
123. E: Pergunta muito?
124. J: Só o maneirismo dele...lembra um pouco o jeito de Temple Grandin se.…portar quando
tá um pouco neurótica.
Cena 11 – Ofensa a Penny
125. J: Ela...ele fez a comparação que ela não entendeu.
212
Cena 12 – Funeral
126. E: E nessa?
127. J: Morreu uma pessoa...ele não consegue demonstrar visualmente uma característica que
seja de alguém que se importa muito mesmo que se importasse...ele não...tipo a pessoa quer
que ele chore porque o outro morreu, mas a pessoa não é de chorar muito
128. E: Entendi.
Cena 13 – Garoto especial
129. J: Outra comparação que o outro não entende
130. E: Que ele fez?
131. J: Aham...uma comparação que só ele entende.
Cena 14 - Experimento com Penny
132. J: [risos] ele tá...[risos] ele tá caçoando dela de uma maneira mais educada [risos].
133. J: eu até entendo o que é que as outras pessoas conseguem...e sempre eu estou
imaginando...o problema é mais em iniciativa meu...uhum...se for pra fazer alguma
comparação com isso daí.
134. J: Num gosta muito de alguns...ele não gosta de alguns padrões...ele é uma pessoa...ele não
gosta de alguns padrões...
135. E: certo.
136. J: Ele tem um problema com festas de aniversários a Temple um pouco tinha um problema
com elevadores e com alimentação...o meu é com desenhos infantis.
137. E: Por que?
138. J: Quando eu escuto fico querendo assistir, mas eu sei que não vale muito a pena e com
comédias também.
139. E: De todas essas cenas, o que é que você acha que chama atenção no Sheldon que são
características da SA?
140. J: O maneirismo dele e as explicações exageradas dele. Foi o que eu mais identifiquei.
141. E: Quem foi que te falou, J, sobre a SA?
213
142. J: Não, a primeira pessoa que me falou foi M....ele também falou com meus pais depois foi
a....depois...agora na universidade foi E., que contou mais...E. da CAENE?
143. E: Não conheço E.
144. J: É uma psicopedagoga que me atendeu...ela explicou como é que é...como é que funciona
o asperger.
145. E: Então até conversar com ela você não sabia?
146. J: Não sabia direito como é...sabia de algumas coisas.
147. E: Só quando você conversou com ela...
148. J: Aham...e fiquei sabendo mais e eu ainda sei só que eu não sei descrever isso com
palavras...só com algumas imagens que eu também não sei descrever bem
149. E: Então você tem imagens de como é?
150. J: Uhum
151. E: De onde você acha que vem a SA? Já pensou sobre isso?
152. J: Não...
153. E: Tem características do Sheldon que você observa em você?
154. J: Tem
155. E: Como o que?
156. J: As únicas coisas que notei precisamente foi os padrões...as explicações exageradas e os
maneirismos dele...parece que ele está viajando no mundo de Star Trek.
157. E: Você acha que essas coisas parecem com você também?
158. J: É porque de vez em quando eu fi...quando eu tô pensando em alguma coisa eu acabo
passando isso pro corpo e eu ch...eu posso fi...quando isso acontece...tem vezes que eu chego
a ficar estranho, mas isso não acontece com frequência.
159. E: E como é que você se sente sobre ter SA?
160. J: Isso...não...isso não é uma dificuldade acadêmica nem...eu tenho capacidade de...aprender
a controlar essas...as minhas ansiedades e a SA é mais uma um tipo de su...pra mim a SA
não é uma mera deficiência em si é mais uma superdotação e uma pequena ligeira dificuldade
de se relacionar com as pessoas...se a pessoa for um pouco tímida.
161. E: Se a outra for tímida?
162. J: Se a pessoa com SA for tímida
163. E: Você é tímido?
164. J: Um pouco.
214
165. E: E tem coisas boas ou não tão boas que você acha que resultam da SA? Por exemplos
pontos positivos?
166. J: Sim
167. E: Tipo o que?
168. J: Tipo...gosto muito de ficar escutando coisas que tenha...gosto muito de ficar....acho legal
tarefas de lógica e...os meus pontos positivos melhores são em programação que eu tenho
um pouco de facilidade pra apender.
169. J: E eu posso fazer...e...se eu quiser eu posso fazer tudo que eu...eu tenho várias
possibilidades pra fazer...posso até fazer todas elas se possível e também....as...é...além disso
é apenas uma...uma incoerência na parte social que eu ainda não em...algumas coerências na
parte de sociologia que eu não entendo.
170. E: Como assim?
171. J: Como...como como falar com as pessoas sem falar nenhuma frase que eu não entenda
direito ou então...que...eu não sei explicar direito como eu não pesquisei sobre o assunto.
172. E: Mas não precisa ser algo que você pesquisou, pode ser algo que você pensa ou
sente...como você entende que funciona.
173. J: Hum...o asperger em mim, o autismo não é um bicho de 7 cabeças...é só uma coisa que
...é só uma coisa que a pessoa é muito inteligente mas tem um pouco de dificuldade de se
relacionar em algumas situações e se portar em algumas situações, mas essa dificuldade pode
ser superada.
174. E: Você falou que uma coisa boa é...
175. J: É facilidade de aprendizado em geral
176. E: E uma coisa que você acha que é ruim? Tem?
177. J: Só comunicação.
178. E: Tem algum na sua vida com quem você se sente confortável falando sobre a SA?
179. J: Ah...teve E., teve meus pais, teve a J. daqui e poucos dos meus amigos...tipo...os amigos
que consegui me relacionar melhor.
180. E: Com esses você fala?
181. J: De vez em quando chego a falar um pouco, não tenho medo de falar.
182. E: Sua família então fala com você sobre o asperger?
183. J: Fala sim também, porque já pesquisaram sobre isso e as vezes eles me ajudam a me
orientar pra não parecer que eu tô com essa...pra não ficar parecendo que eu estou com essa
síndrome.
215
184. E: E que conselho você daria pra outra pessoa da sua idade que acabou de descobrir que tem
SA?
185. J: Na verdade eu daria algumas dicas de como se portar na sociedade, algumas coisas que
eles tem tiraria algumas dúvidas que eles tem sobre se comportar na sociedade e diria pra
eles pra que não precisasse de...ficar contando isso pra...não precisa contar sobre essa doença
pra todo mundo e pra se...pra tentar fazer com que as pessoas não percebam que você tem
essa dificuldade.
186. E: E que dicas você daria? Tem algum exemplo?
187. J: Tem um...seja uma pessoa que tente se parecer com as outras pessoas, mesmo que você
não seja igual a eles.
188. E: E que conselho você daria para pais?
189. J: Que...ajudem essas pessoas...que ajudem seus filhos a se portarem...que encontre meio
delas contornarem seus problemas sem causar muito transt..muito ...sem que elas tenham
que passar por transtornos como...o que aconteceu com a Grandin na primeira vez que ela
foi na faculdade...que ela ficou tão estranha que todo mundo notou.
190. J: Eu não consigo descrever direito como é isso
191. E: A cena?
192. J: Aham...mas pessoa tem...se...a pessoa se comportando mais naturalmente e quase ninguém
percebe que a pessoa é...tem alguma coisa estranha...alguma coisa diferente...anormal
193. E: Certo, John. Estamos chegando ao fim de nossa entrevista. O que você achou?
194. J: Foi mais um paradigma do que eu a gente entende como SA, ainda vou procurar um pouco
mais sobre isso pra se entender um pouco melhor e poder tentar ser igual as outras pessoas
195. E: Você acha que tem que ser igual?
196. J: Sim, menos na presença dos meus pais que eu fico um pouco ansioso
197. E: Na presença deles que você acha que tem que ficar?
198. J: Isso na presença deles que tenho que melhorar e não é só isso...tem alguns detalhezinhos
que mesmo sem ser na presença deles preciso melhorar como se comportar...algumas
situações como a dos encontros
199. E: E você acha que foi bom falar disso?
200. J: Eu acho que foi bom falar disso...eu acho que alguém tiver conhecimento sobre isso e
quiser falar que fale porque pode ajudar a esclarecer e tentar quebrar esse paradigma que
asperger não é nada mais que um caso de autismo. Porque algumas pessoas pensam assim.
201. E: É bom pra tentar esclarecer...
216
202. J: Isso! O que na verdade é isso...
203. E: Tipo o que?
204. J: As únicas coisas que notei precisamente foi os padrões...as explicações exageradas e os
maneirismos dele...parece que ele esta viajando no mundo de star trek
205. E: Você acha que essas coisas parecem com você também?
206. J: É porque de vez em quando eu fi...quando eu to pensando em alguma coisa eu acabo
passando isso pro corpo e eu ch...eu posso fi...quando isso acontece...tem vezes que eu chego
a ficar estranho, mas isso não acontece com frequência
207. E: E como é que você se sente sobre ter sa?
208. J: Isso...nao...isso não é uma dificuldade acadêmica nem...eu tenho capacidade de...aprender
a controlar essas...as minhas ansiedades e a sa é mais uma um tipo de su...pra mim a sa não
é uma mera deficiência em si é mais uma superdotação e uma pequena ligeira dificuldade de
se relacionar com as pessoas...se a pessoa for um pouco tímida
209. E: Se a outra for tímida?
210. J: Se a pessoa com sa for tímida
211. E: Você é tímido?
212. J: Um pouco
213. E: E tem coisas boas ou não tao boas que você acha que resultam da sa? Por exemplos pontos
positivos?
214. J: Sim
215. E: Tipo o que?
216. J: Tipo...gosto muito de ficar escutando coisas que tenha...gosto muito de ficar....acho legal
tarefas de lógica e...os meus pontos positivos melhores são em programação que eu tenho
um pouco de facilidade pra aprender
217. J: E eu posso fazer...e...se eu quiser eu posso fazer tudo que eu...eu tenho várias
possibilidades pra fazer...posso até fazer todas elas se possível e também....as...é...além disso
é apenas uma uma incoerência na parte social que eu ainda não em...algumas coerências na
parte de sociologia que eu não entendo
217
218. E: Como assim?
219. J: Como...como como falar com as pessoas sem falar nenhuma frase que eu não entenda
direito ou então...que...eu não sei explicar direito como eu não pesquisei sobre o assunto
220. E: Mas não precisa ser algo que você pesquisou, pode ser algo que você pensa ou
sente...como você entende que funciona.
221. J: Hum...o asperger em mim, o autismo não é um bicho de 7 cabeças...é so uma coisa que
...é so uma coisa que a pessoa é muito inteligente mas tem um pouco de dificuldade de se
relacionar em algumas situações e se portar em algumas situações mas essa dificuldade pode
ser superada
222. E: Você falou que uma coisa boa é...
223. J: É facilidade de aprendizado em geral
224. E: E uma coisa que você acha que é ruim? Tem?
225. J: So comunicação
226. E: Tem algum na sua vida com quem você se sente confortável falando sobre a SA?
227. J: Ah..teve E. teve meus pais, teve a J. daqui e poucos dos meus amigos...tipo...os amigos
que consegui me relacionar melhor
228. E: Com esses você fala?
229. J: De vez em quando chego a falar um pouco, não tenho medo de falar
230. E: Sua família então fala com você sobre o asperger?
231. J: Fala sim também, porque já pesquisaram sobre isso e as vezes eles me ajudam a me
orientar pra não parecer que eu to com essa...pra não ficar parecendo que eu estou com essa
síndrome
232. E: E que conselho você daria pra outra pessoa da sua idade que acabou de descobrir que tem
SA?
233. J: Na verdade eu daria algumas dicas de como se portar na sociedade, algumas coisas que
eles tem tiraria algumas dúvidas que eles tem sobre se comportar na sociedade e diria pra
eles pra que não precisasse de...ficar contando isso pra...não precisa contar sobre essa doença
218
pra todo mundo e pra se...pra tentar fazer com que as pessoas não percebam que você tem
essa dificuldade.
234. E: E que dicas você daria? Tem algum exemplo?
235. J: (Silencio) tem um...seja uma pessoa que tente se parecer com as outras pessoas, mesmo
que você não seja igual a eles
236. E: E que conselho você daria pra pais?
237. J: Que...ajudem essas pessoas...que ajudem seus filhos a se portarem...que encontre meio
delas contornarem seus problemas sem causar muito transt..muito ...sem que elas tenham
que passar por transtornos como...o que aconteceu com a grandin na primeira vez que ela
foi na faculdade...que ela ficou tão estranha que todo mundo notou
238. E: Eu não consigo descrever direito como é isso
239. J: A cena?
240. E: Aham...mas pessoa tem...se...a pessoa se comportando mais naturalmente e quase
ninguém percebe que a pessoa é...tem alguma coisa estranha...alguma coisa
diferente...anormal
241. J: Você ta arrumando a bolsa. Já quer ir?
242. E: Não
243. E: Posso perguntar mais coisas?
244. J: Pode
245. O que você achou de fazer essa entrevista?
246. J: Foi mais um paradigmas do que eu a gente entende como sa, ainda vou procurar um pouco
mais sobre isso pra se entender um pouco melhor e poder tentar ser igual as outras pessoas
247. E: Você acha que tem que ser igual?
248. J: Sim, menos na presença dos meus pais que eu fico um pouco ansioso
249. E: Na presença deles que você acha que tem que ficar?
219
250. J: Isso na presença deles que tenho que melhorar e não é só isso...tem alguns detalhezinhos
que mesmo sem ser na presença deles preciso melhorar como se comportar...algumas
situações como a dos encontros
251. E: Encontros?
252. J: Aham, porque teve uma vez que fui bater la no prédio da universidade e ligaram la pra
outro prédio achando que eu tava estranho e realmente eu tava um pouco estranho pq a
menina não tinha ligado e eu queria falar com ela
253. E: Porque vocês tinham combinado ne?
254. J: Aham...situações que não sei direito como me portar...so que nessas situações eu já sei
como fazer...15 min de tolerância!
255. E: E se a pessoa não aparecer?
256. J: Vou embora! E eu descobri que a menina é furona e aí eu terminei dando um fora nela de
uma forma discreta não falei mais com ela so porque descobri que ela tava me enrolando
257. E: Mas você também trouxe muitas coisas boas e eu concordo com você...tem muitas coisas
boas
258. J: Tem mais coisas boas do que coisas ruins
259. E: E você acha que foi bom falar disso?
260. J: Eu acho que foi bom falar disso...eu acho que alguém tiver conhecimento sobre isso e
quiser falar que fale porque pode ajudar a esclarecer e tentar quebrar esse paradigma que
asperger não é nada mais que um caso de autismo. Porque algumas pessoas pensam assim.
261. E: É bom pra tentar esclarecer...
262. J: Isso! O que na verdade é isso
220
Chaves
1. E: você entendeu a história?
2. R: sim
3. E: Oh é um ser de outro planeta que veio habitar a terra. Como vimos no vídeo, ele
é um Boov, e todos os boovs receberam um panfleto sobre como a terra funciona.
No filme, nós vemos que o Oh está começando a aprender sobre muitas coisas e,
agora, está particularmente interessado em aprender sobre as pessoas desse
planeta, mas, como vimos, ele percebeu que nem tudo está no panfleto e as pessoas
parecem mais complicadas do que diz lá. Uma coisa que ele descobriu é que existem
pessoas que têm transtorno de Asperger, mas não achou nada sobre isso no panfleto.
Ele acredita que que adolescentes ou jovens adultos como você, com SA, são os
verdadeiros experts que podem ensinar as outras pessoas sobre como é ter SA. Ele
gostaria de entender sobre como é ter TA, como isso te afeta e como faz você se
sentir, bem como que impactos da SA você percebe no seu dia-a-dia.
4. R: o que eu não entendo é porque que...? Peraí, como é o nome dele?
5. E: OH. O – H.
6. R: o que eu não entendo é porque toda vez que ele chegava a alguém dava bom dia,
boa tarde alguém dizia “ooh”.
7. E: aí ele acha que esse é o nome dele. O OH era sempre muito animado e os boovs
não eram muito animados aí toda vez que ele chegava a eles diziam “ooh”...aí ele
acha que esse é o nome dele.
8. R: aah sim
9. E: aí uma coisa que o Oh descobriu depois que chegou a Terra foi que existe uma
coisa chamada “SA”...
10. R: huum
11. E: só que não tem nada sobre isso no panfleto...
12. R: ele descobre isso no filme??
13. E: É...não! Não tem no filme. Essa é uma atividade lúdica, de faz de conta. A gente
vai fazer de conta
14. R: huum
221
15. E:...e como o Oh descobre a SA e não acha nada sobre isso no panfleto, ele vai te
entrevistar. Ele acredita que pessoas que tem SA é que sabem mais sobre isso e por
isso ele quer saber de você.
16. R: eu até já tinha pensado nisso também porque por mais que a pessoa tenha
entendimento do que é miopia, dislexia, ou qualquer outra coisa, só a pessoa que
realmente tem é que pode explicar. Por exemplo, eh...tem na internet como uma
pessoa míope vê...a visão normal e a visão míope...só quem tem a visão míope
realmente sabe como é, que é o meu caso. Eu tenho um amigo que tem dislexia, a
gente pagou mecânica clássica juntos. Eu não sabia que ele tinha dislexia. Ele me
disse que ele tinha muita dificuldade na escola, quando ele foi fazer o ENEM ele
teve que fazer outra prova, uma prova diferente, e com alguém ajudando ele.
Ajudando que eu digo, lendo...
17. E: Sim. Tem mesmo. Chama o ledor. Alguém pra ler pra ele. Pois então é isso...o
OH acredita que quem tem SA ou quem tem miopia ou quem tem dislexia é que é
o verdadeiro expert que pode ensinar isso as pessoas. Então ele gostaria de entender
como é isso...
18. R: claro!
19. E:...como é ter SA, como isso te afeta, como você se sente e como você percebe
isso no seu dia a dia.
20. R: uhum...
21. E: e aí? O que é ter SA pra você?
22. R: bem...no início eu não dei tanto valor a esse assunto. Quando eu soube que era
só um espectro autista, minha mãe ficou mais aliviada por saber que era apenas o
grau mais leve de autismo.
23. E: sim
24. R: no início eu não dei tanta bola, mas depois que eu soube que a SA é conhecida
como síndrome dos gênios aí eu comecei a dar um certo valor a isso que eu tenho.
25. E: huum...por que?
26. R: meio difícil de explicar essa parte mas eu...mas assim sinceramente eu não me
envergonho de ter SA até porque um dos maiores gênios da humanidade, que já
ganhou o prêmio nobel de física e desenvolveu as leis de Newton, esses dois
cientistas tinhas a SA. Inclusive um jogador de futebol muito famoso, o Messi, que
é considerado um dos melhores do mundo e foi considerado o melhor jogador de
222
fute...o melhor jogador da copa do mundo de 2014, ele foi considerado o melhor
jogador daquela copa do mundo.
27. E: Sim...verdade eu já ouvi falar. E o que é isso? O que é a SA?
28. C: bem, é um espectro autista em que o indivíduo ele tem as características de um
autista só que é num grau mais leve porque, diferente de um autista ele consegue
desempenhar certas atividades sozinho e tem fala compreensível, mas a voz
também varia de pessoa pra pessoa. De portador pra portador.
29. E: E como é que você sabe se alguém tem SA?
30. C: bem, eu gostaria de usar como exemplo uma coisa que aconteceu comigo esse
ano que foi nas disciplinas de expressão gráfica e mecânica clássica. Eeh...eu tava
com uma certa dificuldade em expressão gráfica em relação aos meus outros
colegas, enquanto eles já tavam desenvolvendo a terceira e ainda tava terminando
a primeira, aí minha professora ela viu que tinha algo de diferente em mim em
relação aos outros e ela passou a dar uma atenção maior a mim. Então, quando eu
contei a ela que eu tenho SA de fato melhorou muito. Uma colega minha eu contei
pra ela que se eu não tivesse contado que eu tenho SA pra minha professora eu teria
me dado mal, mas ela disse...a primeira coisa que ela disse...ela não disse “muito
bem, C, você fez o certo” ela disse “olhe C, não use isso como desculpa pra não
estudar, porque capacidade você tem”. Eu de fato fiquei um pouco chateado com
isso. Eu contei pra um colega meu o que tinha acontecido e ele disse que me entende
e que...ele não disse isso a ela, mas disse pra mim que ela não devia ter dito isso
porque...é meio difícil de explicar, mas...eh...como posso dizer? Ele disse eh pra
que...ele disse..eeh...que ela não devia ter dito isso porque ela não sabe o lado de
quem tem eh...de uma certa forma...e a minha outra experiência em mecânica
clássica eu já tinha tirado nota baixa nas duas primeiras unidades...o...e o meu
professor de mecânica ele vinha notando algo de diferente em mim em relação aos
outros. Eu perguntei: “como assim algo diferente?” Ele disse: “você é agitado. Não
muito, mas é um pouco agitado”. Eu perguntei? “como assim?” Aí ele disse: “olhe,
eu to copiando aqui no quadro. Tudo bem, você também ta copiando no seu
caderno, mas quando eu viro pra dar aula eu não percebi muito isso em você no...na
primeira unidade, mas na segunda eu passei a perceber mais e vi que
você...ehh...enquanto tava todo mundo olhando pra mim você tava olhando pra
outra...pro outro lado”. Bem, foram alguns desses comportamentos que os
223
ajudaram, que...ja foram assim...despertaram o pensamento deles: “não esse aluno
deve ter alguma coisa de diferente em relação aos outros”.
31. E: E pra você? Como foi isso? Como é que você percebe em você? Você percebe
alguma coisa que é diferente?
32. C: Bem, todos nós temos diferenças...
33. E: claro.
34. C: é...mas assim...eu...eu quando era pequeno, quando eu tava no fundamental, foi
no 8 ou 9 ano, antes eu até me enturmava. Eu fui deixando de me enturmar aos
poucos, tinha momentos que eu ficava só. Alguém chegava pra mim: “C, por que
você tá aí só?” e assim...e eu...eu não...em nenhum momento eu contei pra minha
mãe o que tava acontecendo, eu simplesmente deixei...eh...deixei ir pela correnteza,
deixei a correnteza me levar.
35. E: sim...isso foi uma coisa que você percebeu?
36. C: bem, eu não dei muita bola pra isso também...
37. E: Hum..e como você acha que isso te afeta no dia a dia? Ou não?
38. C: Bem, hoje em dia não me afeta mais, porque depois que eu soube que eu tenho
Asperger minha vida melhorou e muito. Por que? Porque deu pra fazer certas
coisas. Deu pra melhorar coisas que eu já sabia que eu tinha aí deu pra melhorar...
39. E: o que?
40. C: é...alguns dos meus colegas...eles sabem que eu tenho SA e eles me entendem
e assim, hoje em dia eu ainda me isolo, mas não é com tanta frequência e tipo de
tanto eu me isolar nesse tempo hoje em dia se eu me isolar eu não sinto mais nada...
41. E: hum...como assim não sente mais nada? O que você sentia antes?
42. C: não, não sentia tanta diferença não...
43. E: hum...e o que são coisas que você acha que melhorou depois que você soube?
44. C: bem, eu...como um dos sintomas da SA é ...uma...eu não sei a palavra certa
agora, mas...é uma voz diferente. Eu falava muito, mas muito devagar, aí depois
que eu soube a psicóloga responsável por mim no ano de 2012 ela pediu pra que eu
continuasse na fonoaudióloga, porque eu já usei aparelho. Ela pediu pra que eu
continuasse na fonoaudióloga porque pra tentar melhorar minha voz...e deu certo.
Eeh...tanto é que esse meu professor de mecânica, quando eu disse a ele, ele disse
“olhe C, eu também já percebi que você fala muito bem explicado, mas você não
consegue expressar isso no papel”
224
45. E: huum...você concorda com ele?
46. C: concordo.
47. E: E você tem algum amigo ou conhece mais alguém que tem SA?
48. C: Bem, é...sim...eu diria pra essa pergunta duas respostas e não é com “e”: sim e
não...não, eu quero dizer...não é com “ou” é com “e”. Sim e não, porque tem um
amigo meu que, diz ele que ele foi diagnosticado com SA, mas a mãe dele fala que
ele tem TDAH.
49. E: aah é, você me falou desse amigo...e o que é que você acha que ele tem?
50. C: bem, é...pra ele ter repetido tanto tempo eu acho que...o que ele tem é TDAH...
51. E: por que?
52. C: é que ele...segundo o que ele já tinha me dito uma vez, ele tinha dificuldade
em...eeh...eu não lembro direito eu só sei que ele tinha dito que...eh...já tinha
reprovado muitas vezes na escola, mas assim pra ele ter reprovado tanto eu acho
que o que se encaixa melhor aí é TDAH, porque embora a gente tenha certa
dificuldade, muitas vezes a gente vai atrás, a gente estuda, a gente conversa com
um professor, com um colega...e eu acho qeu ele...ehh...não tava estudando.
53. E: hum...então você acha que talvez as características dele não tenham a ver com o
asperger?
54. C: é.
55. E: e você já viu algo na TV, na internet...
56. C: já.
57. E: ...em filmes sobre isso?
58. C: Já. Aquela reportagem do Fantástico sobre...ehh...sobre o autismo. Aí o subtítulo
da reportagem: ehh...não não, o tema foi autismo e...e o segundo tema, como
po...ehh...vamos dizer...o segundo tema foi “universo particular”.
59. E: huum...eu não assisti essa reportagem mas muita gente fala...como foi? O que
você achou?
60. C: bem, depois...eu resolvi assistir essa reportagem, porque...porque nesse tempo
eu já tava sabendo que tenho SA aí resolvi estudar melhor e vi alguns
jovens...eh...teve um adulto que tem SA e tem dois filhos autistas. Eu...não dei
muita atenção a isso, mas eu prestei atenção em dois jovens que um é dos Estados
Unidos e ele tem...eh...no início do primeiro capitulo não falava de síndrome de
asperger, dizia apenas que ele era autista, só no final que disseram eu ele tem
225
asperger. Bem, na primeira reportagem eh...ele...alguns cálculos que pra algumas
pessoas parecem impossíveis...ele...pra ele em questão de segundos ele fazia. Pra
ele física quântica, mecânica clássica...pra muita gente isso pode...isso pode ser dor
de cabeça, mas pra ele era diversão e outro...e outro dessa vez aqui do brasil, que
também tem SA, ele tava terminando o ensino médio...aliás...tava...eu acho que ele
devia tá no primeiro ou no segundo ano, mas ele já tinha feito cursos univer...alguns
cursos universitários, não lembro direito, mas que ele disse que ele prefere tá
fazendo alguma atividade que envolve cálculo e informática do que esporte porque
pra ele esporte é apenas uma diversão. E...e uma coisa também que esse jovem de
dos estados unidos falou e que eu concordo com ele foi que...ele disse que os
autistas...os autistas que eu digo nós que temos SA, conseguem pensar de uma
forma mais lógica e mais clara. A mãe dele ficou preocupada porque achava que
ele não ia conseguir amarrar um cadarço, mas...mas não foi isso que aconteceu e
ela descobriu que ele tinha uma certa habilidade que muitas pessoas não tem e
alguns especialistas dizem que um dia ele poderá até ganhar um prêmio Nobel de
tão inteligente na física que ele é.
61. E: e você se identifica com algum deles?
62. C: bem eu diria que não porque eu tenho minhas dificuldades. Embora eu goste de
matemática como eles eu ainda tenho minhas dificuldades em números. Pra
mim...eh...números é melhor do que letras...então...mas assim...eu só me sinto
confortável mesmo com os números se tiver um professor bom. Se tiver um
professor que não consegue passar o conteúdo ou que não ensina direito, eu fico
agoniado
63. E: olha só, agora eu queria te mostrar umas cenas de uma série...eu não sei se você
já viu...é essa aí.
64. C: é Friends?
65. E: Não, é The big bang theory.
66. C: Eu já ouvi falar nessa série, mas...mas nunca assisti.
67. E: pronto. Ela mostra o dia a dia de um grupo de amigos cientistas. E aí um deles
tem algumas características da SA, até umas coisas que você já mencionou, certo?
Eu vou passar as cenas e você vai me dizer quem você acha que é e o que você acha
dessas cenas que são características do TA. Tá certo?
68. C: está bem.
226
69. E: são só cenas de episódios diferentes então vou contextualizar a série pra você e
qualquer dúvida você pergunta.
Cena1 – Sheldon conforta Leonard
70. C: (risos)
71. E: que é que você achou dessa?
72. C: é...eu acho que é esse aí o Sheldon...eu acho que o outro que tem SA.
73. E: não é o Sheldon?
74. C: não é o Sheldon.
75. E: vou passar essa.
76. C: essa...?
77. E: essa é outra.
Cena 2 - Penny está dormindo no sofá e Sheldon quer sentar
78. C: [risos]
79. E: e daquela? O que você achou?
80. C: bem...eu retiro o que eu disse...eu achei que era o outro que tinha SA, porque
ele...ele tava muito fechado ele não queria conversar, mas agora eu digo que é o
Sheldon que tem, porque...o.…porque eu pude ver que o Sheldon ele tem uma
rotina e eu observei uma coisa que eu também faço uma vez: repetir uma certa frase.
81. E: que nem o Sheldon?
82. C: é.
83. E: porque você repete a frase?
84. C: não é bem a frase, é mais assim...uma pergunta.
85. E: certo...repetir a pergunta?
86. C: isso.
87. E: vou passar a próxima.
88. C: a última.
89. E: ainda não.
Cena 3 - Os quatro amigos vão a um restaurante e não conseguem pedir
227
90. C: [risos]
91. E: O que você achou dessa?
92. C: engraçada [risos]
93. E: [risos]E você viu algo nessa cena que você acha que pode ser porque ele tem
asperger?
94. C: Sim. É.… eu observei que ele é bem lógico e que ele só quer começar a.…ele só
quer fazer o pedido quando o outro amigo chegar e que ele fica insistindo o tempo
todo...eh..."não vamos pedir enquanto o ‘tananam’ não chegar”.
95. E: e como você acha que isso se relaciona? Porque?
96. C: ele também foi repetitivo e chato e foi bem lógico quando disse: não, vamos
dividir o bolinho. Aí ele disse: não, se dividirmos o bolinho não vai ser mais um
bolinho, vai ser no máximo um sanduichezinho. [risos]
97. E: [risos]vou botar a próxima.
Cena 4 – Sorriso de Sheldon
98. C: [risos]
99. E: nessa o que é que você achou
100. C: eh...eu acho que por certo ele tava nervoso. “Como que eu vou me com...ehh...me
portar lá dentro?” E quando o cara disse sorria ele levou ao pé da letra e ele sorriu
mesmo aí quando ele disse “sorria com menos dentes” ele levou ao pé da letra
também.
101. E: vou botar outra. Essa é com a Penny. Penny deu um presente de natal a Sheldon
que ele gostou muito.
Cena 5 – Presente de natal para Penny
102. C: [risos]
103. C: ele não toca não nos outros é?
104. E: ele não gosta muito.
105. C: é igual a mim de vez em quando.
106. E: você não gosta muito também?
228
107. C: de vez em quando não...aí quando é forçado é que não gosto mesmo
108. E: certo. Mais quando é espontâneo e quando você quer?
109. C: aí sim eu aceito
Cena 6 – Empréstimo de dinheiro a Penny
110. C: [risos]Ele não sabe nem o que ela tá escutando [risos]
111. E: o que você acha que pode ter a ver essa cena?
112. C: eeh...ele só entende alg...tem algum que só entendem algo se for específico.
Acho que foi o caso do Sheldon quando a menina veio correndo e disse feche a
porta. Ele não entrou, ele apenas...ele ficou lá fora sem entender o que tinha
acontecido, aí ela abriu a porta de novo e disse “entre e feche a porta”
113. C: [risos]
114. E: aquela era outra? O que você achou dessa?
115. C: ele não entendeu bem quando ele perguntou se.…ele perguntou a ela se ela
estava sendo sarcástica, ela disse não, aí ele perguntou pro outro amigo ele disse
sim aí “afinal ela foi ou não? ”
116. E: essa pode ser uma característica?
117. C: sim.
Cena 7 – Conversa desconfortável
118. E: naquela?
119. C: eeh...
120. E: viu algo?
121. C: sim. O fato dele ter demorado a perceber que ela tava chateada. Que ela não
queria...ele perguntou se ela se importaria de ter relações sexuais com homens fora
do casamento. Ela não gostou. E Sheldon ficou procurando expressões nela que
ajudasse a entender que ela...que ela não queria conversar sobre isso.
122. E: essa é uma característica também?
123. C: uhum.
124. Cena 8 - Decifrando expressão de Rajesh
125. E: e nessa você identifica algo?
229
126. C: o fato dele não conseguir interpretar expressões faciais. Isso eu não diria que é
muito uma característica de um asperger, mais de um autista. Não num grau muito
exagerado, mas num grau acima da SA eu diria que é um...bem...que é isso, que...
127. E: essa não é uma coisa que você percebe? Que você tem dificuldade?
128. C: eu...não, não tenho muita dificuldade não em identificar isso.
Cena 10 - Sheldon e Leonard se conhecem
129. E: essa é a cena que mostra como eles se conheceram.
130. C: [risos]
131. E: e nessa aí? Você viu algo?
132. C: é.…eu percebi que ele se interessa muito por química e ele ficou empolgado
quando descobriu que um cientista também iria morar com ele aí começou a fazer
umas perguntas. É.…a primeira pergunta foi sobre um gás nobre, aí quando viu que
ele...que o cara sabia ele passou pra outra pergunta. Esse cara sabia e eu percebi
também que o Sheldon é muito...ele só aceita as coisas do jeito dele...igual a certos
professores daqui...
133. E: huum...verdade (risos) E você acha que alguma dessas características é uma
característica da SA? Dessa cena?
134. C: bem, eu...eu diria que o fato dele ser bem particular, dele só aceitar as coisas do
jeito dele “não, eu que sento aqui e...eu que...eh...eu...eu gosto de sentar aqui,
porque aqui é melhor e o seu lugar é ali...pessoas não entram no meu quarto”. De
fato, ele é bem fechado, bem particular. O fato dele só aceitar as coisas do jeito
dele.
135. E: uhum...próxima.
Cena 11 – Ofensa a Penny
136. E: (explicação sobre quem é Amy)
137. C: [risos]
138. E: Nessa aí? Viu alguma?
139. C: não. Só o fato dele não ter percebido que tinha sido um insulto.
Cena 12 – Funeral
230
140. E: olha, essa é Amy.
141. C: UAU ela é tão velha!
142. E: nessa aí?
143. C: éé...ele...dá pra ver que ele tem certas dificuldades em entender sentimentos, mas
assim, todo...nem todos os aspergers são iguais...alguns tem dificuldades em
entender certos assuntos enquanto outros tem capacidade de entender uma
expressão facial, por exemplo.
144. E: certo. Você acha então que essa é uma dificuldade do Sheldon?
145. C: sim.
Cena 13 – Garoto especial
146. C: rsrs
147. E: e nessa?
148. C: eh...eu diria que não porque ele tava vendo...eu acho que assim era uma coisa
que ele tav...não não, pera aí eu retiro meu “não” porque ele tava identificando uma
coisa que o outro não tinha conseguido identificar quando ele disse...quando ele
falou em números primos.
149. E: Então é uma coisa que ele faz melhor que o Raj?
150. C: Isso.
Cena 14 – Experimento com Penny
151. C: (risos)
152. E: nessa o que você achou?
153. C: ehh...quando ele tava brincando com ela sobre os superpoderes logo de primeira
ele entendeu que ele tava caçoando ela. Mas aí depois ele disse que ele gostaria de
ter um superpoder que ela tem que é o de ler men...a mente dos homens porque
todos os homens são iguais...ela disse que...aí ele disse que “mas eu te invejo,
porque eu queria poder ler a mente de todos pra saber o que estão pensando sobre
mim. Se estão tristes, se estão felizes, se tão falando algo de mim”.
154. E: você acha que essa é uma característica?
155. C: pode ser...
231
156. C: eh...eu percebi que ele levou ao pé da letra, quando ela disse: se você fosse
morrer hoje, você contaria algo a alguém que você deixou de contar? “ Ele: “eu vou
morrer hoje??”. Já aconteceu de eu levar ao pé da letra e não perceber que era só
uma brincadeira ou que tinha um significado por trás daquilo.
157. E: certo.
158. C: (risos)
159. E: Sheldon está falando que tem memória eidética, que lembra de tudo em muitos
detalhes.
160. C: ah tá.
161. E: e nessa cena?
162. C: é.…eu acho que a parte do contato visual que e uma coisa que eu acho que eu
não identifico isso nele porque geralmente os aspergers...alguns, nem todos, não
mantem contato visual
163. E: Certo. Você acha que o Sheldon mantém?
164. C: Bem, ele tava mantendo até aquele momento.
165. E: Certo. E de forma geral, das cenas que você viu do Sheldon, o que é que você
acha que são características que ele tem que tem a ver com o asperger?
166. C: Primeiramente a superinteligência dele, o fato dele não conseguir perceber certos
sentimentos, como foi o caso que algumas vezes alguns personagens estavam tristes
ou chateados e ele não percebia. O fato dele seguir sempre uma mesma rotina e de
repetir as coisas. Tipo ele, eu coloco dois por cento de leite no meu cereal, com essa
mesma quantidade de gramas e assim que coloco ou assistir a BBC. O fato dele ser
bem repetitivo.
167. Eu: Hum. E algumas das coisas que você viu...você acha que você se identifica?
Você também tem ou não?
168. C: Não.
169. E: Nenhuma das coisas?
170. C: Não.
171. C: Só o fato de eu as vezes ser...bem...eu diria que...eu vou dar um exemplo. É...nas
férias do início do ano eu paguei uma disciplina de química da ect...
172. E: certo
173. C: eh...eu já tinha dito aqui que eu demonstrei um conhecimento...eu...um
conhecimento não, perdão. Que eu resolvi um problema no quadro
232
174. E: Foi, você falou
175. C: Só que quando eu cheguei lá, antes de eu entrar na turma de férias uma coisa que
eu disse pra mim mesmo, eu botei na minha cabeça: eu vou, vou pagar a turma de
férias, mas eu não vou pra fazer amigos, eu vou pra estudar, mas eu diria que meu
plano terminou fracassando.
176. E: Foi?
177. C: Foi.
178. E: Você acabou fazendo amigos?
179. C: Isso. Eu não tava querendo me enturmar muito, mas assim teve uma menina que
ficou no meu pé. Eu diria que se eu não soubesse que eu tinha SA eu acho que eu
teria expulsado ela, mas como eu já sabia eu procurei manter a calma e comecei a
dar atenção a ela.
180. E: Hum. Porque, como você acha que te ajudou nesse caso saber?
181. C: Bem, porque se eu não soubesse eu acho que eu não teria paciência. Minha
paciência teria se esgotado de vez e eu diria: “eu não quero conversa! Va procurar
o que fazer! Va procurar outro pra conversar! ”. Eu teria dito isso se eu não soubesse
que eu tenho SA.
182. E: hum, isso faz você ter mais paciência?
183. C: Já fez.
184. E: E antes de você saber você acha que você faria isso?
185. C: O que?
186. E: De dizer a ela que não queria conversa
187. C: Bem, eu acho que se eu não soubesse eu teria dito sim.
188. E: E como é que você soube? Quem te falou?
189. C: Bem, eu só fui saber mesmo em 2013. Mas assim, no final da pesquisa que S.
tinha feito eu acho até que ela disse mas eu não tinha prestado muita atenção nisso,
até porque eu há um tempo atrás, até 2012 por aí eu não prestava muita atenção nas
coisas.
190. E: Como assim?
191. C: Eu simplesmente era como uma missa de corpo presente. Eu tava ali mas meu
pensamento tava em outro lugar e ...mas assim uns professores da escola souberam
antes de mim, porque a psicóloga tinha dito, aí teve um professor que depois que
233
soube – eu não percebi – mas as provas dele que eram complicadas passaram a ficar
mais fáceis, não só pra mim, mas pra turma também.
192. E: Hum. Você acha que ele mudou as provas?
193. C: Ele disse.
194. E: E quem te falou a primeira vez foi a S.?
195. C: Foi
196. E: E antes disso você percebia alguma coisa?
197. C: Não, não prestava muita atenção em mim não.
198. E: Huum. Mas como foi assim que você soube? Como você chegou até S.?
199. C: Eh...porque eu tava com dificuldade em memorizar o assunto da prova, de uma
prova...eu disse pra minha mãe, minha mãe contou pra E. o que tava acontecendo e
E. eu acho que ela deve ter contado pra S. Nessa época ela tava fazendo um projeto
e precisava de alguém aí E. me encaminhou pra S..
200. E: E você lembra de ter sido testado? De ter feito alguma coisa?
201. C: Bem, eu lembro que eu fiz os testes que eu fiz aqui nesses dias.
202. E: E como te disseram? Como ela te disse da SA?
203. C: Num lembro direito. Só sei que a gente tava sentando nesses bancos aí (aponta
para as poltronas do SEPA).
204. E: Foi aqui?
205. C: Não, foi na outra sala.
206. E: E o que é que você acha que fez você ser assim? Porque que você acha que tem
SA?
207. C: É bem, como eu já tinha dito pelo modo como eu ajo em relação aos outros.
208. E: Como é esse modo?
209. C: Bem, não foi a primeira vez que isso aconteceu esse ano. A primeira vez foi em
2004. Não, fiz antes, porque enquanto meus colegas já aprendiam a fazer as coisas
sem muita dificuldade eu tive muita dificuldade em aprender a escrever letra
minúscula. E em 2003 uma coisa que minha professora da alfabetização fazia muito
era me ensinar a usar a tesoura e por mais que eu tentasse eu não conseguia. Em
2004 não foi diferente. Teve uma vez que a professora passou...foi só livro, nada
de caderno enquanto eu tava na...tava todo mundo na última eu ainda tava
terminando a primeira.
210. E: E você acha que isso era uma característica?
234
211. C: Da tesoura e...? Sim.
212. E: Mas eu te perguntei também num sentido do que você acha que causou isso? Se
algo causou?
213. C: Se algum problema da descendência? Não sei...
214. E: Como você se sente sobre ter SA?
215. C: Num fico triste com isso não. Também eu não fico feliz. Mas eu me sinto bem
eu tô tentando vencer minhas limitações.
216. E: Mas você mesmo falou coisas positivas ne que tem relação? E de fato todo
mundo é diferente e quem tem SA também é diferente, mas quem tem dislexia
também...e é só uma forma de ser não é um problema. E como todo mundo tem
coisas ao, pontos de força que a gente chama e coisas em que a pessoa não é tão
boa. Pra você o que você acha que são coisas boas que tem relação com a SA?
217. C: Bom o fato da...da inteligência, a minha inteligência não é como a daqueles
meninos que passaram naquela reportagem, mas eu não fico triste com isso.
218. E: E o que é que você acha que são dificuldades que você tenha que são associadas
a sa?
219. C: Bem, é... já tinha dito, vou repetir. Que algumas dificuldades que eu tinha no
passado hoje eu não tenho mais como é o caso de em enturmar que hoje em dia eu
me enturmo. Quando eu não me enturmo é porque eu não tô no horário de aula dos
meus amigos. Bem é...é só isso.
220. E: Hum. Você acha que é uma dificuldade mais nisso em relação a fazer amigos?
221. C: Não, não tenho dificuldade com isso não.
222. E: Não, mas que era?
223. C: Bem é...eu tive um melhor amigo até o 9 ano. A gente não se fala há algum
tempo no Facebook, mas assim...embora eu visse ele como melhor amigo, eu não
falava muito com ele. Eu assim, uma característica que eu observei no Sheldon e
que eu agora lembrei sobre mim é que em 2011, que foi o último ano que nós
estudamos juntos que eu disse duas coisas pra...eu disse uma coisa pra ele duas
vezes em dois tempos diferentes que assim deixaram ele chateado e eu não percebi.
224. E: Hum...hoje você lembrando percebe que talvez ele tenha ficado chateado?
225. C: Não, eu percebi depois
226. E: E como é que saber mudou sua vida?
235
227. C: Porque coisas que eu tinha dificuldade, como em enturmar, assim eu diria que
de um modo geral melhorou e muito, porque eu me senti mais tranquilo. Eu acho
até que depois de eu ter dito pros meus professores que eu tenho eu me senti mais
tranquilo até porque foi como se eu tivesse tirando um peso das minhas costas.
228. E: E tem alguém na sua vida com quem você se sente confortável falando sobre
isso?
229. C: Bem é...uns amigos meus que eu tenho que a gente mantem...eles moram que a
gente mantém contato no Facebook as vezes a gente sai...um eu conheci no SENAC.
No SENAC não, perdão, no FISK e o outro eu conheci através desse meu amigo.
230. E: Sim. Com eles você conversa. E com sua família? Você conversa sobre isso?
231. C: Não, sobre sa eu num toco nesse assunto não com a minha família.
232. E: Mas como é pra eles?
233. C: Num sei...assim, minha mãe ficou aliviada porque soube que não era um caso de
autismo grave.
234. E: E que conselho você daria a outra pessoa? Um adolescente, uma criança ou
mesmo um jovem adulto assim da sua idade que acabou de descobrir que tem SA
o que você diria a ele?
235. C: Bem, o que eu diria é: não tenha vergonha de você. Não tenha vergonha da sua
história e do seu passado, pelo contrário. Procure corrigir os erros que você não
percebia que tinha no passado pra tentar melhora-los no futuro.
236. E: Uhum. E que conselho você daria pros pais desses adolescentes?
237. C: Não fiquem tristes. Tenham paciência.
238. E: Essa era minha última pergunta da entrevista, mas antes de terminar tem alguma
coisa que você gostaria de acrescentar? De falar? Que você não falou...
239. C: Não
240. E: E como foi pra você fazer essa entrevista?
241. C: É, até que foi bom porque eu já tinha pensado nisso que a melhor pessoa pra
responder uma pergunta sobre a SA é o próprio asperger.
242. E: Então você acha que foi bom?
243. C: Foi
244. E: Mas você acha que foi desconfortável falar sobre isso?
245. C: Não.
236
Satoshi
1. E: vamos lá, S.? A nossa entrevista vai ser o seguinte: a gente vai fazer de conta.
Eu vou te mostrar primeiro uma cena e depois te explico.
2. Oh é um ser de outro planeta que veio habitar a terra. Como vimos no vídeo, ele é um
Boov, e todos os boovs receberam um panfleto sobre como a terra funciona. No filme,
nós vemos que o Oh está começando a aprender sobre muitas coisas e, agora, está
particularmente interessado em aprender sobre as pessoas desse planeta, mas, como
vimos, ele percebeu que nem tudo está no panfleto e as pessoas parecem mais
complicadas do que diz lá. Uma coisa que ele descobriu é que existem pessoas que têm
transtorno de Asperger, mas não achou nada sobre isso no panfleto. Ele acredita que
que adolescentes ou jovens adultos como você, com SA, são os verdadeiros experts que
podem ensinar as outras pessoas sobre como é ter SA. Ele gostaria de entender sobre
como é ter TA, como isso te afeta e como faz você se sentir, bem como que impactos da
SA você percebe no seu dia-a-dia.
3. E: o Oh, você entendeu? O oh veio de outro planeta e ele é um boov. Todos os
boovs vão invadir a terra. Porque o planeta que eles moravam foi atacado e aí eles
não sabem nada sobre……
4. S: eu explicar pra ele?
5. E: uhum, já que ele acha que pessoas que tem esse diagnóstico podem explicar pra
ele.
6. S: vai.
7. E: você quer que eu passe novamente?
8. S: passe novamente.
9. S: bem...
10. E: você vai tentar explicar como se...porque que é o Oh? Porque faz de conta que é
um extraterrestre que nunca viu isso.
237
11. S: bem...ter sa é como se...nem eu sei explicar...essa é uma das características da
síndrome de asperger...é não ter essa objetividade que as pessoas mais
normais...como se eu não fosse normal...teriam.
12. E: Mas o objetivo é você explicar da maneira que você acredita que seja.
13. S: Ta bom, mas é porque o asperger ele é meio que um empecilho na minha
vida...ele é meio que um transtorno que afeta as minhas relações sociais e até
mesmo minhas dificuldades na vida vem desse transtorno que pode gerar outros
transtornos como o TOC.
14. E: O que é isso? SA?
15. S: É uma forma mais leve do autismo.
16. E: Hum
17. S: as pessoas acometidas pela SA têm dificuldades na socialização e
inconformidade com o mundo em que vivem.
18. E: huum. Como assim essa inconformidade?
19. S: Porque o mundo é mais complicado...o mundo é muito complicado pra eles
entenderem e eles não se sentem encaixados na sociedade. A sociedade é muito
complicada pra eles entenderem. Ate mesmo eu não entendo. As vezes eu tenho
pensamentos intrusivos demais, mas já não é parte do asperger, já é parte do toc. E
também eu...quem tem asperger costuma ter muito foco com certas coisas e
pouc...muito interesse por certas coisas e baixo interesse por outras. No meu caso,
eu...eu...gosto muito de desenhos e jogos. E também de filmes. Eu sou meio
aficionado por tecnologia, meio que viciado e não sei viver sem luz elétrica nem
água encanada. E não durmo sem ar condicionado. Outro lado do asperger. Não
precisa me filmar.
20. E: Não to te filmando
21. S: Outro lado do asperger é esse lado mais infantil, infantilizado das coisas...da
visão da pessoa. As vezes a pessoa...as vezes essa pessoa com asperger pode se ver
...se portar uma hora como criança outra hora como adulto.
[Pausa– 5 min aproximadamente]
238
22. E: E como é que a pessoa sabe que alguém tem SA? [repito várias vezes a pergunta]
23. E: tem alguma característica marcante?
24. S: Dificuldade de socialização, fixação por certas coisas, comportamentos
estranhos as vezes.
25. E: Tipo o que?
26. S: Bem autistas tipo...alguns tiques...alguns tiques e outras coisas...
27. E: E você tem algum amigo que tem SA?
28. S: Num sei
29. E: Ou conhece alguém que você acha?
30. S: Eu conheci alguém que poderia ter, mas aí ele já morreu não da pra mais
fazer...num teve tempo de ter o diagnóstico.
31. E: E você já viu algo na tv ou alguém famoso que você diria que tem sa?
32. S: Diria.
33. E: Quem você já viu?
34. S: Bem...eu num...eu num diria que ninguém tem sa porque eu tenho dificuldade
em..em identificar, mas eu posso dizer que eu sei quem tem, porque eu já ouvi falar
que aquelas pessoas tinham. Einstein, por exemplo, tinha,
35. E: É verdade, dizem isso.
36. S: Messi, também tem. Messi, jogador de futebol. Tem asperger.
37. E: Sim...é já ouvi falar de messi e de Einstein. Tem mais alguém?
38. S: Isaac Newton tinha.
39. E: Hum
40. S: Mas eu não sei...eu não sei exatamente se isso é um caso confirmado porque na
época que..num sei se o cientista que denominou...que denominou a sa que
descobriu esse transtorno nasceu antes ou depois de newton
41. S: É, mas se caso confirmados...
239
42. E: Agora, vou te mostrar cenas de uma série. Nessa serie, the big bang theory...
43. S:Tem o Sheldon que tem SA.
44. E: Aah então você já sabe. Na verdade o diretor não confirma ne? Ele diz que não
tem nada disso, mas se acredita que talvez ele tenha. Eu tenho umas cenas que eu
vou passar pra você e queria que você me dissesse se tem características do Sheldon
que você acha que são da SA.
45. E: Agora, vou te mostrar cenas de uma série. Nessa série, The Big Bang Theory...
46. S: Tem o Sheldon que tem SA.
47. E: Aah então você já sabe. Isso. Eu tenho umas cenas da série que eu vou passar
pra você e queria que você me dissesse se tem características do Sheldon que você
acha que são da SA.
Cena 1 – Sheldon conforta Leonard
48. S: Interess...interesses...comportamentos meio autistas e socialização.
Perguntas...perguntas...meio estranhas que só uma criança com.…que...interesse
por informações peculiares sobre as coisas.
Cena 2 – Penny está dormindo no sofá e Sheldon quer sentar
49. S: repetições de...repetições de frases.
Cena 3 – Os quatro amigos vão a um restaurante e não conseguem pedir
50. S: TOC de simetria.
Cena 4 - Sorriso de Sheldon
51. S: dificuldade de expressar emoções.
52. S: [risos] Mister Bean, Coringa [refere-se ao Sheldon esboçar um sorriso igual ao
desses outros personagens]
240
Cena 6 - Empréstimo de dinheiro a Penny
53. S: falta de entendimento dos procedimentos sociais
54. S: não saber como levar uma conversa adiante
55. S: não entender sarcasmo...não entender as...não entender ironia
Cena 7 – Conversa desconfortável/ Cena 8 – Decifrando expressão de Rajesh
56. E: Nessas? Identificou alguma?
57. S: Não saber identificar emoções
Cena 10 – Sheldon e Leonard se conhecem
58. S: Memória...memória...
59. S: perguntas desnecessárias
60. E: Naquelas só “perguntas desnecessárias”?
61. S: sim.
Cena 14 - Experimento com Penny
62. S: dificuldade no contato visual.
63. E: o que é que você achou de maneira geral? O que você vê no Sheldon que parece
ser da SA?
64. S: um monte de sintomas. Dificuldade de manter contato visual, dificuldade de
interpretar emoções, interpretar ações, dificuldade de identificar emoções.
65. E: Alguma dessas coisas você acha que você também tem?
66. S: Dificuldade de julgar ações e de identificar o sarcasmo, a intenção da pessoa
67. E: Essas são características do Sheldon ou que você acha que você também tem?
68. S: Eu também tenho...e também dificuldade de contato visual.
69. E: E quem te falou sobre a SA a primeira vez? Você lembra?
241
70. S: Ah eu li na internet.
71. E: Você leu na internet? Mas antes de alguém te falar?
72. S: Não...nao...
73. E: Alguém te falou?
74. S: Não, ninguém nunca falou.
75. E: Mas você lembra de ter sido testado?
76. S: Lembro, lembro. Me apresentaram vários sintomas da SA e eu me identifiquei
com vários deles.
77. E: Como você se sente sobre isso? Sobre ter SA?
78. S: Huum...[pausa] bem, já que a SA me fez ter TOC, então não me sinto muito bem
com isso não. Me fez desenvolver toc, porque...eu sou mais propício a desenvolver
toc porque eu sou hipersensível as coisas que me apresentam...
79. E: Aos estímulos?
80. S: Aos estímulos que me apresentam
81. E: Ao que é que você é mais sensível?
82. S: Coisas religiosas.
83. E: E você acha que é sensível a coisas como cheiro e barulho?
84. S: Aah já fui. Principalmente barulho.
85. E: Hoje não te incomoda muito?
86. S: Não, ainda me incomoda.
87. E: Que coisas boas, pontos de força seus...
88. S: Eu tenho medo de altura desde que eu nasci, medo de olhar pra cima. Me
desenvolvi medo de olhar pra baixo mais recentemente. Medo de altura assim...lá
embaixo...lá em cima eu olho pra baixo assim...
89. E: Tem pontos de força seus? Coisas que você acha que é muito bom que você
atribui a SA?
242
90. S: Tem.
91. E: Tipo o que?
92. S: Habilidade de decorar datas...horários nem tanto, mas datas eu sei...
93. E: Realmente eu já vi que você é bom nisso...mais algumas coisas que você acha
que são um ponto de força?
94. S: Ponto de força?
95. E: É. É uma coisa que você acha que é muito bom.
96. S: memoria. Memoria eu já disse ne que sou bom em decorar datas? Memória de
longo prazo, no caso, porque memória de curto prazo eu sou horrível
97. E: você acha que você é horrível na de curto prazo? Porque?
98. S: Sou. Se eu fosse bom eu nunca teria tirado um 0 nas provas. Nunca teria tirado
nota baixa nas provas.
99. E: Mas o que te atrapalha na hora da prova você acha que é a memória ou outra
coisa?
100. S: As vezes a memória, as vezes o próprio TOC em si.
101. E: Você fica preso em outro pensamento?
102. S: Éé [boceja] eu fico preso em outras coisas...é...
103. E: E você acha que tem coisas que você não é tão bom como uma fragilidade? Que
você atribua a SA?
104. S: Socialização. E alguns empecilhos que o toc causa. Muito medo das coisas, de
enfrentar a vida. Medo de enfrentar os medos, porque penso que pode ter
consequências graves. Enfrentar medos.
105. E: Quando foi que você pesquisou pela primeira vez e você pensou ou descobriu
que tinha SA?
106. S: Ah eu era pequeno ainda...eu descobri que Satoshi tajiri que foi um japonês que
criou Pokémon ele tinha SA.
107. E: É mesmo?
243
108. S: Ele foi diagnosticado.
109. E: Foi aí que você pensou sobre isso?
110. S: Foi
111. E: Quantos anos você tinha?
112. S: Eu tinha 11 eu acho, 12, 10...11 nos...não tinha mais, tinha 12.
113. E: Você acha que ter sabido mudou sua vida de alguma forma ou ?
114. S: Mudou.
115. E: Como mudou?
116. S: Primeiro eu achei interessante ter esse negócio de ter asperger, mas depois eu
achei um empecilho grande assim. Um obstáculo na vida.
117. E: Mas hoje você , apesar dos empecilho, você acha que é interessante?
118. S: Não, não acho muito interessante?
119. E: Porque de fato tem coisas boas não é?
120. S: De fato tem coisas boas, mas....era melhor se eu tivesse asperger, mas não tivesse
esse TOC todo.
121. E: Você faz tratamento pro TOC?
122. S: Faço
123. E: Tem medicação também?
124. S: Tenho.
125. E: E você acha que tem ajudado?
126. S: Ultimamente não porque eu comecei uma medicação nova que demora um pouco
pra fazer o efeito. Demora 15 a 30 dias pra fazer o efeito.
127. E: É aquela que tava te dando sono ou já é outra?
128. S: Já é outra.
129. E: Você parou aquela?
244
130. S: Parei. Algumas pessoas da minha família também têm esse outro tipo de
transtorno.
131. E: O asperger?
132. S: É...não, espera. Outros tipos. Alguns tem até TOC mesmo, mas tem outros que
tem outros tipos de transtornos. Por exemplo, um tio meu, tio L., que na verdade o
nome dele é B [risos]
133. E: ele tem o que?
134. S: ele tem um aparente transtorno bipolar e dizem que ele tem como é que é?
135. E: Depressão?
136. S: Não...esquizofrenia.
137. E: Tem alguém na sai vida com quem você se sente confortável falando sobre isso?
Sobre a SA?
138. S: Minha mãe
139. E: Vocês conversam sobre isso?
140. S: Conversamos.
141. E: E sua família em gera conversa com você sobre a sa ou so sua mãe?
142. S: Não...eu converso sore os pensamentos que eu tenho com a minha mãe. Não é
bem sobre a SA não...mas eu converso com M.L. que é minha psicóloga sobre esses
empecilhos que a SA causa. Porque eu tava tendo muita dificuldade de socialização
ultimamente na escola...o povo fica me batendo, me empurrando me zoando...e eu
sou bastante sensível a coisas como essa
143. E: Sim. Se você pudesse dar um conselho a outro adolescente que acabou de
descobrir que tem SA o que você diria?
144. S: Você teria algum conselho pra dar? De alguém que já sabe há muito tempo?
145. E: Há muito tempo?
146. S: Isso. Já que você já sabe há muito tempo e tem bastante experiência com ter SA.
245
147. S: Eu daria. Realmente, meu amigo, nossos verdadeiros amigos que nos entendem,
que estão abertos a nos ouvir são poucos. Mesmo pra quem não tem SA, mas são
poucos. Pra toda pessoa é assim. Eu digo isso porque ...eu digo isso porque...já vi
várias pessoas dizerem que pra um homem os amigos que importam são aqueles
amigos de infância...amigos...pra uma mulher já é diferente. Mulheres conseguem
socializar muito mais rápido que um ser hu...que um homem. Que um homem,
mulheres. Mulheres conseguem socializar muito mais rápido que um ser hum...que
um homem...desculpa eu fico... [se referindo que estar trocando a palavra ‘homem’
por ‘ser humano’ sem querer]
148. E: Tudo bem
149. S: Por exemplo eu já vi um vídeo que a mulher ela tem um negócio chamado melhor
amigo do mês. As duas acabaram de se conhecer e já são melhores amigas. [risos]
150. [Risos]
151. S: Mas ela só...so é a a melhor amiga da mulher até ela dar em cima do namorado
dela aí acabou a amizade rs
152. E: Rs com os homens é diferente?
153. S: Com os homens não é assim.
154. E: Como é?
155. S: Com os homens o melhor amigo é aquele que vive...que conviveu com ele desde
pequeno é amigo de infância assim sabe?
156. E: Sei
157. S: Ne o povo que ele conheceu agora.
158. E: Então é mais difícil fazer amizade?
159. S: É. E mais difícil depois de adulto. Mas depois de muito tempo de convivência
você já consegue se acostumar.
160. E: Sim
246
161. S: É meio difícil você arrumar um novo amigo no ensino médio caso você fosse
como eu que não cursou o ensino médio na mesma escola que você cursou o ensino
infantil e fundamental
162. E: Em qual escola você estudava?
163. S: Era o nec
164. E: Aí foi difícil pra mim me adaptar porque era um sistema de ensino
completamente diferente...completamente estranho a mim porque era um sistema
de ensino suíço. Aí a escola era muito aberta e eu tava desacostumado com
isso...tava desacostumado mais...a pessoa passava o almoço lá e
tinha.............escadas em vez de rampas e...era meio difícil de entender
165. E: Você acrescentaria mais alguma coisa ao conselho?
166. S: É isso. E geralmente... [pausa e para de falar, precisando de novo incentivo]
167. E: E se fossem pais de um adolescente com SA que conselho você daria pra eles?
168. S: Tentem conversar com ele com frequência, tentem dar atenção a ele, porque ele
é como um ser humano normal que eu sei que vocês sempre deram...tentem tratar
ele como vocês sempre trataram ele...apesar das dificuldades. Façam o seu filho
feliz porque ele pode estar meio infeliz...com..com o ambiente...exterior...
169. E: Antes da gente terminar tem mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar?
170. S: Não.
171. E: E o que é que você achou dessa entrevista?
172. S: Boa.
173. E: Você gostou de fazer?
174. S: sim.
247
Anexo 3: Transcrições dos áudios dos pais dos sujeitos
Pai de John
E: Essa é a parte da entrevista que eu digo que vai ser um pouco mais lúdica e é lúdica porque
você vai tentar fazer um exercício de ser J, responder pensando e se colocando no lugar dele.
E eu vou mostrar uma cena desse filme que tem um personagem que é alienígena. Ele veio de
outro planeta habitar a terra. [Passo cena]
E: pronto. A cena que mostra os boovs invadindo a terra é para mostrar que eles não sabem
absolutamente nada sobre seres humanos. Eles recebem apenas um panfleto que diz o que são
homens e mulheres e o que esses seres comem. Então quando Oh chega na terra ele descobre
que existem mais coisas quando que o que existe no panfleto. E o dessas coisas é a síndrome
de asperger. Ele descobre que tem pessoas que tem SA. Ele não sabe o que é isso. Então ele
quer saber de alguém que tem SA, como é ter SA, o que é isso? O que é que isso tem de
diferente? Como isso afeta o seu dia-a-dia e como você se sente tendo SA? E agora. Você tenta
pensar nisso a partir do ponto de vista de John. Como você acha que é pra ele? Ter SA e todas
essas questões.
PAI: ah deixa eu pensar um pouquinho...eu acho que o asperger assim, primeiro ele
inicialmente pensa assim...ah sei lá: acho que eu tenho um problema. Mas dentro da cabeça
dele como a gente já diferenciou as palavras doença, interação e tudo ah...eu tenho uma
diferença, eu sou diferente dos outros. A minha dificuldade é não perceber o que os outros
estão sentindo ou pensando com a mesma facilidade que outras pessoas percebem. Então eu
tenho que olhar um pouquinho mais e assim juntar algumas características físicas ou de tom
de voz pra poder chegar a conclusão do que tá acontecendo né...
E: E você acredita que existem mais impactos disso ou mais coisas no sei dia a dia que são
relacionadas a SA?
PAI: Ah o que atrapalha mais o dia a dia é o relacionamento social...é formar e integrar grupos
sociais. Você percebe que se você tá parado e você se intromete em assuntos que estão sendo
248
conversados em determinado grupo o grupo normalmente ele não aceita bem essas
intromissões. Ate porque os grupos são formados por pessoas que tem pensamentos muito
comuns para aquela idade ou pra aquele meio de vida social. Então você chega de um
determinado meio e você quer se inserir no assunto...você normalmente você não se insere,
você é inserido então se o grupo não te insere ele não consegue se inserir. Então ele fica um
pouco a parte dos grupos que estão próximos a ele.
E: Certo. Agora, eu vou passar cenas dessa serie de tv, que tem um personagem que tem SA.
Que tem um personagem que tem SA. É a The big bang theory
PAI: the big bang theory, é…
E: sabe qual é? (o personagem)
PAI: os dois né?
E: o Leonard algumas pessoas até dizem, mas talvez ele fique mais na área...tenha um
comportamento mais nerd, digamos...e não é considerado asperger, mas o Sheldon é que o
autor nega, talvez pelo peso de ter o nome no papel, mas ele tem diversas características.
PAI: O Sheldon eu já tachei ele tem um perfil mais autista de alto desempenho do que asperger,
por causa da aversão ao contato social, que é bem mais característico do autista...alguns negam
também até a morte em relação ao asperger...eu citei porque o nerdzinho aí, o Leonard...gente
do céu as vezes é a cara do John…as meninas falam com ele “ah porque você é muito
bonitinho”...é porque você não conhece a mãe...a mãe tem que gerenciar...as vezes chegam
cartas de amor das meninas e tem ate um caso bem interessante que a menina manda uma carta
de amor pro John “ah eu gostaria muito de namorar com você, você é muito inteligente, muito
bonito”. Até brinquei com o John, “poxa John, que legal cara, você evitou de morrer hoje”. Ele
pegou a mesma carta - ele não guardou – ele virou a carta ao contrário, o outro lado estava em
branco, aí uma grande oportunidade, a folha já estava em branco mesmo né? Aí coloca “olha,
infelizmente ainda não estou preparado pra namorar. Você tem que entender que eu ainda to
na universidade, vou terminar meus estudos e depois é que eu vou pensar nisso”. E devolveu
pra menina no mesmo papel. E até hoje eu dou graças a deus que ele tem o mesmo número de
braços e pernas.
[Risos]
E: é parece o Leonard, parece mesmo.
249
E: eu vou passar as cenas e vou pedir para você identificar se você acha que algumas das
características ou que características das cenas já aconteceram ou parecem com o ou não.
CENA 1 – Sheldon conforta Leonard
E: essa era a primeira. Você acha que essa característica do Sheldon parece com John em algo?
PAI: a batidinha nas costas já aconteceu. Mas ele... ele não dá o...ele não usa todo o grado do
que vai agradar a pessoa, ele já consegue fazer o limite do que é ridículo. Mas a batidinha nas
costas assim já parece...já houve uma vez...não agora mas há alguns anos quando...acho que
não sei se aconteceu alguma coisa triste, alguma coisa assim...ele aquela cara de “eu to
tentando...eh...oferecer conforto” itens que podem oferecer conforto. rsrs
E: [risos] sim, como se “ah é tudo que eu tenho”. Algo assim?
PAI: É. Vou abraçar, mas você vê que o abraço é pro-forma.
CENA 2 – Penny está dormindo no sofá e Sheldon quer sentar/ CENA 3 – Os quatro amigos
vão a um restaurante e não conseguem pedir a comida
E: nessas cenas. Essas eram cenas talvez de maior rigidez...
PAI: ele não segue padrões...ele levanta as 6, pode levantar as 6:30, pode levantar 5:30...se o
que tiver...ele come uma coisa, ele come outra...não faz questão se é um tipo de coisa ou a
outra. Agora essa salvação que o Leo..ah, mas você pode...você problema...assim...matemático
né? Eu tenho 4 coisas, mas eu preciso dividir por 3, ele daria a solução. Ele tem a iniciativa
para esse tipo de coisa.” Não, mas peraí, então a gente pode resolver de tal jeito, tal jeito...”
Isso aí é bem notório.
E: ele tem uma flexibilidade pra resolver o problema?
PAI: é, ele não tem...ele não segue padrões. Padronização não é a cara do John...ele...nem hora,
nem alimento....gosta de assim “pai, da pra (indefinido)diferente?
E: mas foi assim a vida inteira ou teve um momento que isso existiu?
PAI: A gente não permitiu. Então, se não deu pra perceber é porque desde a primeira infância
a gente fez com que ele sempre fizesse coisas diferentes. Ele não teve a opção de repetir uma
coisa duas vezes. Isso fez com que ele se adaptasse a qualquer ambiente. Se você chama ele
pra cá, se disser "John, no lugar de fazer a entrevista aqui vamos fazer na lanchonete", ele não
vai dizer...não vai achar estranho. “tá bom”. Ele vai dizer que tá bom na hora vai sentar com
250
você e fazer como se tivesse aqui e vai fazer e vai falar do mesmo jeito, inclusive assuntos
íntimos que você perguntasse na mesa do lado com ele...porque se ele tá fazendo a entrevista
a prioridade é essa, o foco é esse então ele não vai perder o foco pra uma coisa que tá
acontecendo ao lado.
E: de por exemplo, saber que um assunto íntimo talvez incomodasse falar em publico. É isso?
PAI: exatamente. Claro, hoje ele não falaria alto...sei lá...uma coisa de caráter muito íntimo.
Mas antes ele até poderia...começar a falar “ei cara, você tá em público!” “ah pai, desculpa”.
Aí hoje ele já mantém isso. Uma curiosidade daquela cena que você passou antes ali, não tem
o cara do restaurante chinês?
E: sim.
PAI: é o cara do star trek! Eles resgataram o cara pra fazer aquela ponta do restaurante.
E: essa? De algo mais da expressão...e do reconhecimento?
PAI: hoje não mais, talvez quando fosse criança a gente já...”oh John, não faz essa cara de
assustado quando você vê uma coisa...”acho que quando...no inicio a gente dizia “oh, tente
imitar mais as expressões, cuidado quando as pessoas ficarem tal...” por um período curto acho
que de alguns meses ele...não, menos que isso, ele tentou ver se dava certo assim imitar o
mesmo que outra pessoa fazia. Aí eu disse “oh, não adianta, você vai ter que criar sua própria
expressão...então...
E: isso quando ele era pequeno ou mais para a adolescência?
PAI: não, quando ele era pequeno.
E: ele tentava imitar na situação exatamente...
PAI: não, a gente falou: “ah, pra você se misturar as pessoas tente agir como elas”. Então
assim, por exemplo, alguém sentava, cruzava a perna tal, então ele ia, olhava e ficava do mesmo
jeito. Aí “oh John, não cola, melhor você criar sua própria maneira de ser e a gente vai verificar
se essa maneira é “condizível” com o que existe hoje em sociedade, se for, a gente fala que é.
E: certo.
CENA 5 – Presente de natal para Penny
E: Essa da coisa mais do contato?
251
Pai: não, nunca teve, a mãe nunca deixou. Usa-se uma regra muito boa lá em casa você é
obrigado a abraçar e beijar ném que seja na marra. Então assim, desde pequenininho o estimulo
sempre foi muito grande. É tanto que assim, o que mais se fala que é a dificuldade de
demonstração emocional...todo díade noite ele só dorme se entrar no quarto, der abraço e tal...
E: e quando é com outra pessoa que não vocês?
PAI: se a pessoa dor dar um abraço, dois beijinhos, ele já dá com toda naturalidade. Você nem
percebe nada, não tem dificuldade...o start de partir pra dar beijinho...normal.
CENA 6 – Empréstimo de dinheiro a Penny
E: essas? Essas ultimas foram cenas que tiveram mais a coisa dele precisar da dica do social,
não entender o contexto. Como são essas questões pra ele?
PAI: não, ele passa ainda por isso aí...se alguém agir com sarcasmo com ele ele não vai
perceber diretamente não. Dependendo da situação, se já não tiver passado pela mesma
situação ele não vai reconhecer. E o empréstimo de dinheiro também que não tá aí
mas...acontece também, se alguém precisar, quer dizer, não externamente, ele já tem um limite,
sabe que não vai dar dinheiro na rua mas...ele sabe que se alguém de casa falar “ah você tem
alguma coisa?” as vezes é o dinheiro do...ah vou separar tanto...aí ele separa...vou separar tanto
que vou precisar hoje e tá aqui, pronto...não tem o menor receio de dividir...também não é
esbanjador, ao contrario, pão duro. Se tiver que dar um presente ele vai comprar o presente
especificamente que ele planejou dentro dos limites de gasto. Rsrs
E: rsrs mas vocês ainda tem que dar essas dicas a ele? Como é?
PAI: ele já administra o próprio dinheiro..abrimos uma conta pra ele...
E: mas nem em relação ao dinheiro, mas a essa coisa social, ele ainda se refere a vocês pra
perguntar?
PAI: ele não...ele as vezes olha com aquela cara de “vixe, acho que alguma não deu certo”
[fala como se fosse John]. Ehh...ele tem 20 anos, a gente não anda por aí com ele pra todo
canto, mas assim, por exemplo, lugares que ele frequenta talvez seja ótimo fazer estudo
social...universo geek...sei lá...arena geek pra jogar magic se você entrar ali você...se você tiver
ração pra asperger você com certeza pode jogar ali que vai dar muito pássaro...então assim, o
próprio ambiente vai chamando. Então assim...qual o...desde criança uma falha e foi falha, é a
escolha de esportes...o correto era ter insistido em esportes sociais, só que, como ele tinha
252
dificuldades na interação, ele teria dificuldades na interação esportiva. Então colocou-se no
basquete, só que ele não tinha a maldade do passa a bola, do pega aqui, do da a volta pro outro
pra pegar e tal era obrigatoriamente ele era colocado no banco o tempo todo, não treinava então
não adiantava você deixar. Já se você coloca numa atividade individual, coloca no kung fu. Ele
é faixa marrom avançada, vai tirar preta agora, não tirou porque teve que apertar universidade
ele saiu do treino. Então...coisas individuais o movimento é ótimo, coisas que necessitam
atividade em grupo...então...atividade agora físicas ele faz tênis, que é individual, não deixa de
ser...
E: é, não deixa de ser...
PAI: e...ele vai interagir, ele...tem o outro né? E natação. Que também tá na raia dele, tá na
dele. É...ele quer aprender a surfar, por isso que coloquei na natação pra apertar um pouquinho
mais, porque não confio ele nadando em alto mar ainda, mas pra surfar, assim, teoricamente é
um grupo que você para, conversa, você pode interagir um pouquinho mais...mas aí não tá
pronto fisicamente pra isso, mas se ele melhorar um pouquinho mais eu libero. Mas atividade
em grupo, jogar futebol de salão, futebol...pra, como interação ele não...nunca conseguiu se
juntar num grupo.
Cena 7 – Conversa desconfortável
E: eu fui passando essas e acho que são como a primeira...a primeira cena era mais em relação
a perguntas e comentários inadequados...
PAI: é ele não chega...ele ainda faz comentários inadequados, mas não... com determinados
limites, por exemplo ele não vai perguntar sobre sexo ou...ele vai saber o limite. O
alter...superego dele já tá um pouquinho mais evoluído, conseguiu evoluir de tanta lenha que
ele levou.
E: mas ainda tem coisas que...
PAI: ainda tem coisas que passam despercebidas. Ele tá aqui aí diz “olha...será que não tá bom
de acabar não? To com fome” por exemplo. Ou então ele segura, segura e diz “UFA” “que
foi?” “não, porque eu tava com fome”
CENA 8 – Decifrando expressão facial de Rajesh
E: essa é uma mais longa que tem varias coisas. Tem alguma coisa que chama atenção com o
John...
253
PAI: uma coisa é...o John não tem problema em ter mais pessoas...ele tem vontade, o que ele
não tem é iniciativa. Ele adoraria estar cercado por amigos, você percebe que ele tem uma certa
inveja daqueles grupos de amigos, mas ele não encontra uma maneira de se inserir no grupo.
E aí remonta muito a questão do local, por exemplo, você é de CG, talvez se John morasse em
CG ele fizesse parte de um grupo de amigos que fossem pro shopping que fossem pro cinema,
que saísse de noite, porque as pessoas se integram. Mas Natal é bem característico isso, a frase
não é minha é de muita gente, que assim, quem já se conhece há muito tempo e é do mesmo
lugar ou veio da mesma escola forma grupos de amigos e normalmente eles não deixam
pessoas alheias entrarem nesses grupos. Sua mãe de ter comentado isso também né? na
universidade ela deve encontrar isso...
E: nunca vi ela comentando mas...rsrs
PAI: aah aqui é jogo duro.
E: e em relação a...tem uma parte que é em relação ao olhar, a dificuldade de...
PAI: ah o John encara, encara, olha no olho já
E: Foi sempre assim?
Pai: Não! Ele pequeninho você ficava chamando atenção [estala o dedos] pra que ele
olhasse...”ei, olha aqui, ooh, olha aqui” esse tipo de coisa.
E: e quanto á piadas?
PAI: contanto que você não deixa ele fazer tudo bem....alguma coisa e acha engraçada aí as
vezes é claro, tem reações exageradas de riso a coisas simples...algumas são muito bobas, aí
você faz aquela famosa frase “pô, tu é muito bobo né?” aí ele ri mais ainda.
E: mas em relação a entender piadas mais complexas...
PAI: piadas mais complexas ele tem dificuldade.
CENA 9 – Abraço na lavanderia/ CENA 10 – Sheldon e Leonard se conhecem/
CENA 11 – Ofensa a Penny/ CENA 12 – Funeral
E: e dessas que passaram?
PAI: eu não sei se ele tem ainda toda essa noção da...porque tudo a explicação dele foi acima
do que normalmente é pros outros né?
254
E: É, como se o Sheldon já tivesse chegado a um insight
PAI: É, já tivesse chegado a conclusão de insight...não é assim que funciona né… destoa um
pouco algumas coisas
E: Mas você acha que o John tem essa percepção? De uma dificuldade...
PAI: Ele já tá conseguindo contara ate 3 antes de fazer as coisas, o que da a ele aquele tempo
necessário de se focar na situação. Mas ainda...ainda vai chegando a...você vê a percepção
que...você coloca ele na faculdade ou num grupo de aula...um exemplo agora ele tá...os colegas
se juntaram com ele pra que ele tirasse dúvida dos colegas da matéria de uma prova aí ele foi
tirou todas as duvidas eu disse “olha John, mas era sua manhã livre, você conseguiu tirar da
questão que você tinha duvida?” não, ele não sabia. Se fosse outras pessoas não, ah deixa eu
primeiro procurar resolver o meu problema, depois eu resolvo os problemas dos outros.
E: e quanto aquela percepção de que o que ele fala magoou ou que ele falou alguma coisa
ruim?
PAI: ah agora ele percebe né? Mas antes ele falava alguma coisa...ah você é feia ou...ou então,
gente mas se você estudasse você conseguia..não, uma coisa bem característica, alguém assim
que você vê que não tem um pouco mais de condição financeira e tal e tá conversando no grupo
“ah, não to conseguindo melhorar, aquele meu emprego não tá tão bom e tal” fala num grupo
de amigos que tá comigo e ele tá também e tal aí ele se mete “ah mas se fizesse um curso
melhor, se você estudasse mais, não melhorava?” Isso assim, pra quem tá ouvindo é uma
chamada de atenção...na verdade é a pura realidade, mas ele não se toca que aquilo pode
ofender o brio do outro que não conseguiu chegar.
E: mas mesmo hoje em dia que ele já teve avanços ele ainda não tem essa percepção? Ainda
acontece de falar...
PAI: não, hoje ele já tem mas pode passar despercebido. Posso sentar eu, você, mais dois na
mesa e dizer “e aí gente, com é que foi o concurso?” ah passei, pô não consegui passar. “pô,
mas quer dizer que eles estudaram mais que você?”
E: entendi. Mas então a percepção vem so para casos em que ele já sabe o qe ele não pode
falar? Você estava falando no inicio que...
255
PAI: é, situações novas que ele ainda não passou...é...e algumas que ele já passou as vezes ele
repete. “pô, bicho você tá repetindo? Você fez isso...tal dia você fez desse jeito” “ah pai, eu
prometo que nunca mais faço isso” “ah eu vou ver quanto tempo dura esse teu nunca mais...”
E: mas você acredita que ele consegue entender porque a outra pessoa ficaria chateada?
PAI: se ele parar para pensar sobre o que aconteceu ele consegue porque ele consegue , porque
ele consegue descrever o caso, desenhar na cabeça e ver o resultado, porque ele consegue
resolver o que aconteceu de uma forma matemática.
E: certo. Então de maneira geral, depois de todas as cenas que vimos, você acha que tem coisas
do Sheldon que lembram o John?
PAI: ah tem coisas que lembram o John.
E: principalmente o que?
PAI: a principalmente a dificuldade de percepção das situações de sarcasmo que são as mais
complexas né...sarcasmo e cinismo...que são alheias assim...como se fosse uma situação
inversa, fala uma coisa e é o contrário que você quer dizer, então assim...quando é cinismo ele
ainda percebe, porque é fácil, é só ele reverter a frase para o negativo dela e comparar com a
situação, quando é sarcasmo é mais difícil porque envolve uma situação mais complexa com
elementos ate que não tão presentes no momento e ele não vai buscar esses elementos
em...lugares estranhos...mas ele não tem dificuldade no contato físico...é só você perceber
John, me da um abraço, você percebe na hora que não tem isso...e ele não tem tanta...ele
apresenta uma dificuldade ainda de se colocar socialmente dentro de entradas...que ele vai ter
que se impor dentro de determinados limites, por exemplo: ele sabe que vai ter que pedir
licença, porque vai ter que interromper aqui pra falar alguma coisa. Aí normalmente a pessoa
bate “opa”, ai olha pra tudo mundo, vê como é que tão as caras fala “tudo bem? Será que eu
posso tal coisa?” Aí não, ele vai e (bate na porta) “oh gente tudo bom? Eu vim aqui pra fazer
tal coisa, tal coisa...” né? Ele não espera a resposta do ouvinte pra poder terminar o que tava
falando...ele iniciou, ele vai e leva ate o final. Ele tem que dar o tempo, tem que aprender a
fazer lacuna.
E: certo. E quem foi que conversou com ele a primeira vez sobre a SA?
256
PAI: eu acho que a gente foi apresentando...a gente primeiro iniciou mostrando, estimulando,
como a gente tava pretendendo fazer e com o tempo foi mostrando publicações, livros e..”oh,
olha aqui tá vendo esse livro?” acho que mãe com certeza mais do que eu
E: e ele conhece mais algum que tem sa?algum amigo?
PAI: não...acho que amigos ele não tem...conhecido ele já passou por alguns conhecidos que
tem autismo e ele percebeu a diferença
E: e vocês conversaram sobre isso?
PAI: que o asperger é um espectro do autismo. “mas porque que ele parece um deficiente?”
porque é um espectro no qual você vai ter dificuldade só no lado social, mas você não tem
dificuldade cognitiva. Se eu não tenho dificuldade cognitiva, porque que minha cognição não
é igual o de outra pessoa, é maior? É porque, ou sorte sua, puramente por sorte, a sua área
social, se ficou algo inibida, houve uma compensação a mais na área cognitiva, mas nem todo
mundo que tem asperger vai ter uma cognição aumentada, tem gente que não vai conseguir
trabalhar matematicamente tudo como você trabalha, não dá pra você generalizar com relação
a isso.
E: e como você acha que ele se sente sobre isso? Sobre esse diagnóstico?
PAI: inicialmente, eu fiquei preocupado que ele ficasse pensando, preocupado, “pô, mas como
é que vai ser o meu futuro então, se eu tenho algum tipo de problema?” mas hoje ele já começa
a se enquadra assim, olha “ se eu sou muito no que eu posso fazer, então eu posso trabalhar
com aquilo e desenvolver em cima daquilo”
E: teve algum momento de você perceber que isso o entristeceu ou não?
PAI: Ainda o entristece a parte social. Isso aí é notório, mas como ele ainda não consegue se
inserir, mas não fica angustiado com isso. Mas você percebe que ele sente falta...se você
perguntar ele queria ter um amigo, tá ligando agora pra casa e “vamo pro cinema?” ah vamo,
vamo sair ali, vamo conversar...ate porque assim, seria um estimulo a mais, mas aí é muito
complicado pra gente oferecer esse estimulo por uma questão também nossa. Eu sou filho
único, não tenho irmãos, então ele não tem primos, não tem tios, e a P. a família tudo mora em
MG, que é a mãe. Então assim, apesar da gente ter ofertado tudo que a gente queria na área da
cognição, na área de estimulo, a gente não conseguiu ofertar como quis a parte social, porque
nós não temos coleguinhas da rua e coincidentemente, nenhuma da idade dele. Desde pequeno
257
ele não tinha coleguinhas do mesmo tamanho que brinca na rua jogando bola, esse tipo de
coisa. Então não teve como...foi falta de sorte. Quem sabe se essa hiper estimulação também
acontecesse na área social ele teria o mesmo desenvolvimento que teria na cognitiva.
E: e na escola também ele nunca chegou a fazer assim algum amigo próximo?
PAI: não, próximo não. Já teve alguns amigos em algumas escolas que eram amigos de se
encontrar todo mês e de a deixar na casa dele pra brincar e vir pra car pra brincar , mexem no
pc juntos, vão pro cinema juntos uma ou duas vezes, mas ele tem 20 anos talvez tenha ido pro
cinema com um amigo ou outro uma ou duas vezes. Agora todas as outras atividades ele faz
em grupo, em grupo familiar.
E: e o John fala sobre a sa? Tem alguém que ele conversa? Ele conversa com vocês?
PAI: não. Eu acho que ele já...ele vai se misturando de tal jeito que pra ele passa como uma
áurea distante. Ele só se percebe quando acontece alguma dificuldade ele putz foi por causa
disso.
E: mas já teve algum momento de ele fazer pergunta ou...
PAI: pra mim não, talvez pra mãe.
E: o que é um John que você consegue ver que são coisas boas, pontos de força associados a
sa?
PAI: ah o John é extremamente honesto, ele é incapaz de mentir, não como o Sheldon que fica
com aquela cara de bobão. Não, ele não mente. Então assim, ele é extremamente confiável,
pontual, preocupado em terminar as coisas corretamente, mas sem grandes stress…claro tá na
véspera de uma prova ele não conseguiu terminar tudo tá com aquela cara de aluno que vai se
ferrar né? Mas sem grandes absurdos. Mas assim o controle de coisas que tem pra fazer, de
tarefas, é muito bom. Mas a parte de...de...sociabilidade, a parte humana é muito superior, é
impressionante! É uma pessoa que você pode confiar, que você pode conversar, que sabe que
não vai te passar pra trás, o que ele falar vai ser verdade...é muito interessante isso
E: e do ponto de vista cognitivo? A inteligência é acima não é..
PAI: olha, matematicamente...porque geralmente você desenvolve matemática as vezes em
áreas muito pontuais. Raramente você faz matemática em crescimento piramidal. Como é as
múltiplas áreas do conhecimento né? Que você conhece muito uma coisa...você sempre sabe
258
um pouquinho de alguma coisa, né? Menos matemática. Matemática geralmente a pessoa sabe
aquela coisa e evita saber tanto bem de outras né? O John não...o John consegue fazer a parte
de ciências exatas em um crescimento piramidal. Como ele tem uma memória muito
boa...assim...não é memória fotográfica porque fotográfica ele teria que ler um texto e gravar
coisas e ter [parte incompreensível] o que ele fez, mas a memória você percebe que é maior
porque detalhes de uma coisa que você pode pedir a ele que aconteceu há um pouco mais de
tempo que você não tem ideia de que tá acontecendo ele lembra ponto a ponto e consegue
resolver né? Isso facilitou demais programação. Normalmente você estuda uma ou duas
linguagens, 3 linguagens de programação, e a ultima contabilidade que ele fez de linguagem
de aprender programar ele tá programando em quase 5 linguagens diferentes. Só que são
funções diferentes, mesmo que você faça por analogia né não é tão fácil fazer esse tipo de
coisa...só que ele não co...ele não desenvol...eu percebo que ele não desenvolveu ainda tanto
porque as próprias aulas que ele tem não são pra desenvolver aquilo. Eles só dão
conhecimentos básicos pra os ouros colegas e é o que ele também tá pegando, igual os outros.
Português, por exemplo, enquanto é a questão de regras e gramática e tudo tá perfeito, ele sabe
tudo..não vai escrever, não vai errar uma palavra...não troca sílabas, não troca letras, acentua
bem, porque são regras e as regras ele guarda todas. Na elaboração de texto é que foi um grande
susto...a gente pensou “pô, como é que esse cara vai passar se ele vai ter que fazer uma
redação?” e redação ele vai ter que dar alguma ideia. Ele fez 680 pontos na redação. “mas ah
não tem lógica, todo mundo deve ter sido muito ruim” e a gente fala brincando “cara, todo
mundo deve ter sido muito ruim pra tu tirar 680 pontos” aí ele fica rindo.
E: na coisa de interpretação de texto durante a vida escolar, como é que foi?
PAI: sempre conseguiu...ele nunca...ele só foi pegar a primeira recuperação no segundo ano
do segundo grau em uma disciplina.
E: então era uma coisa que ele deu conta...
PAI: não...escolar a gente não tinha essa preocupação.
E: uhum...sim...e em relação a questões mais visuais? Tanto de memória como de
reconhecimento, que as vezes é um ponto positivo na SA. Vocês percebem isso néle como um
ponto de força ou chama atenção?
PAI: você fala de fazer foco?
E: mesmo gravar foto...só pela memória visual
259
PAI: se você perguntar...as vezes você tá perdido aqui em natal...uma curiosidade, isso é muito
comum...”cara, que rua é essa?” tudo bem. Se ele não...aí ele fala é a rua tal. “pô, bicho, mas a
gente não tem placa. Você lembrava o nome da rua?” “não, eu lembrei que o sistema de fiação
elétrica de condução aqui de alta tensão dessa rua é esse”. Então assim...ele grava detalhes que
passam despercebidos mesmo né...
E: e você acredita que esses detalhes que ele grava são visuais ou era um conhecimento que
out...
PAI: não, visual o detalhe...ele sabe que ah...essa rede elétrica aqui é de tal tipo e essa rua tem
essa rede. A prudente de morais usa essa rede, a salgado filho essa rede, a mor gouveia essa
rede, a norton chaves essa rede e tal, que é muito parecida com a rede de tal lugar...ele treina
fazendo relação, relaciona com o nome da rua e acerta a rua olhando pra cima e reconhecendo
a rede elétrica.
E: e se você pensar na maior fragilidade pra o John que tem a ver com a SA?
PAI: aham...ainda é o comportamento em grupo. Constantemente a gente vai ver peças de
música clássica...concerto da orquestra, alguma apresentação, por exemplo, de um virtuoso
qualquer, concerto de um violinista, de um violoncelista...então o cara no meio do concerto de
violoncelo, John me cutuca assim e fala “pai, olha só essa estacato é muito bonito”. Todo
mundo vai olhar, porque você tem que falar num quase nada...ta todo mundo bem calado, ele
vai fazer um comentário mesmo. “deixa pro final!” eletádeixando pro final mais...ou então
aquela pressão:táno meio da apresentação etáaquela coisa, o cara tirando um solo muito longo
e o piano muito longo e todo mundo tem que ficar parado, fixo olhando, mas aquela coisa
começa a demorar muito aí ele começa a fazer isso com o papel (amassa o papel), porque não
consegue ficar quieto. Rsrs
E: você acha que tem alguém com quem ele se sente confortável falando sobre isso?
PAI: eu acho que ele não se sente desconfortável.
E: é indiferente?
PAI: é...ele não é tão...não, não seria confortável ele falar com...talvez ele se sentisse
desconfortável se tivesse no meio de um grupo que ele tivesse se expondo por falar, mas por
exemplo, se você perguntar a ele “e aí John, como é que tá?” e você tá sentindo alguma coisa,
você tá sentindo diferença, ele vai falando normalmente o que sente, sem dificuldade nenhuma.
260
E: como, se é que isso aconteceu, você acha que ter SA mudou a vida de John?
PAI: eu acho que não mudou, porque sempre foi assim. As dificuldades e as facilidades...as
dificuldades foram trabalhadas pra tentar minimizar e as facilidades compensaram um
sofrimento qualquer que teria por causa das dificuldades né?
E: sim..você...voltando para o lugar do John...que conselho você daria pra um adolescente ou
jovem adulto que acabou de descobrir que tem SA?
PAI: alguém falou pra ele né...”ó isso daí é SA”...aaah..não fazer parte uma família pequena e
estar o tempo todo em contato com pessoas, pra que você possa o tempo todo estar se
ambientando e descobrindo como se comportar com as pessoas.
E: e que conselho você daria para pais de um adolescente com SA?
PAI: aah tá o tempo todo próximo a eles nunca deixando de ofertar opiniões e conselhos.
Sempre estar estimulando.
Mãe de Chaves
Mãe: Vamos lá. Tem que ter sempre uma rotina, não se pode sair daquela rotina, certo? De
manha tem que tomar café no mesmo horário, porque se eu não tomar naquele horário, tal
hora eu só vou comer metade do café, porque se eu comer todo eu não vou almoçar direito,
meio dia o almoço tem que estar pronto, sempre come a mesma coisa, sempre a mesma
coisa, feijão tem que ser feijão carioca, não pode ser outro tipo de feijão porque senão não
como. Arroz, frango...se tiver, peixe, come peixe e salada e suco. O lanche da tarde esse
não tem horário, é qualquer hora a hora que der vontade come biscoito. A janta tem que
ser de seis horas em ponto, não seis horas eu tomo banho, depois eu vou jantar e depois
261
assiste tv, e essa é a minha rotina, se tiver uma festa, eu tenho que saber primeiro de painho
e mainha, de que horas vai e de que horas volta, porque se não for vamos dizer, se não tiver
hora pra voltar eu não vou pra festa, não vou porque, porque vou me chatear, porque vou
ficar atrasado pra no outro dia acordar, todo esse detalhe. Então não, não saio, mas se não
tiver nada vou pro computador, assistir televisão. O momento melhor que eu sinto é quando
to assistindo chaves, a minha gargalhada é a melhor que tem, é assim maravilhosa, é o
único momento que eu vejo C realmente assim se sentindo feliz, é a risada com as
brincadeiras do chaves, que sempre passa e agora eu acho q ele já descobriu porque é outro
horário, depois do almoço então só escuta...
mãe: e a vida é assim... toda programada, porque no dia que um negócio da errado, aí eu
fico muito contrariado, chateado, tudo isso...e fim de semana ele é evangélico, então ele
tem uma rotina da igreja: sábado de manhã ele vai pra igreja oito horas da manha sem tomar
café porque é um jejum, volta de nove, nove e pouquinho aí toma café, já toma o café pela
metade.
E: o jejum é uma coisa sua, de C ou é da igreja?
Mãe: da igreja, mas ele obedece a igreja. Aí almoça, fica por ai...as vezes tem uma
evangelização de três horas, vai e volta. O domingo de noite tem o lanche com os colegas
né, os amigos, os dois únicos amigos então a brincadeira, quando tem uma brincadeira fica
até mais tarde, volta tarde pra casa, no domingo de nove horas tem a aula dominical então
vou pra aula de nove, volto de onze e meia aí almoço meio dia. O almoço tem que estar
pronto de novo ne, ai durmo um pouquinho, cinco e meia começo a me arrumar pra ir pra
igreja, que a igreja começa de seis e meia, cinco e meia, seis horas tem que ta pronto. Este
é o único dia que eu não janto de seis horas, eu janto de nove horas quando chego da igreja.
E: mas também isso já ta programado?
Mãe: também ta programado, mesmo que eu (mãe) insista, pra ele comer antes de ir, não
come porque só posso comer depois que chegar da igreja. E assim...família todo mundo
gosta muito de mim, porque eu sou bem...assim eu entendo muito de tudo, tenho
informações e sempre converso sobre os assuntos atuais, tipo se você quiser saber quando
foi o aniversario de vovó, qual foi o dia que caiu, eu digo, de que horas a gente foi, de que
horas a gente voltou, quem tava lá...eu falo tudo isso, e as vezes as pessoas não me
262
entendem o porque de eu agir assim e mainha fica explicando porque eu tenho essa
síndrome que tem que todo mundo entender, ter paciência comigo e as vezes eu fico
chateado com o almoço familiar, fico bem chateado mesmo, medo de falar, me altero e
mainha: “tenha paciência meu filho, tenha paciência”, até eu me acalmar, mas outro dia
que eu encontrar aquele fulano, ai eu vou de novo questionar aquilo, daquela pergunta que
ele me fez naquele dia, ai vou perguntar pra ele se ele: “você não entende não assim, que
eu sou assim”, até que o fulano fique mais assim: “não tudo bem, não tem problema não”...
e tem, sempre tem, muita ajuda da família, dos mais próximos. A avó por parte de pai me
ajuda muito, ate porque eu fui pra igreja através dela né, ser evangélico por ela, fiquei muito
tempo na igreja dela. Lá todo mundo até hoje ainda sente saudade de mim, quando vou pra
igreja da minha vó ela me chama porque o pessoal ta perguntando por mim. Lá na igreja
da minha vó também tem um menino que é bem parecido comigo, mas que a mãe não ta
nem aí, e assim, pelo que eu to vendo a vida dele ta se complicando, mas vovó disse que
eu deixasse pra lá, porque “tome conta de você e eu tomo conta de você e ele a mãe que
tome conta”. “A gente não pode fazer nada porque a mãe ignorante, não tem o cuidado que
sua mãe teve com você”. Então, e vou sempre lá pra igreja de vovó, a minha outra vó, as
vezes a gente tem uns papos sobre a bíblia, e também eu questiono muito, sempre bato
nessa mesma tecla com a minha vó materna, a historia de Maria, porque Maria para o
evangélico Maria não existe, e vovó sempre diz: meu filho, todo mundo nasce de uma mãe,
pai pode ser vários mas mãe é só uma, mas eu sempre questiono porque Jesus sempre
chamava a Maria de mulher, “ mulher, eis o teu filho” e nunca disse que era mãe e fica
nesse questionamento, todas as vezes que se encontram vem esse mesmo bla bla bla que
eu já disse: “vamos conversar outras coisas, porque religião, política” - graças a Deus na
minha família ninguém gosta de futebol então não se discute, mas religião e política a gente
não discute – “cada um tem uma opinião diferente, e tem que respeitar pra não dar
confusão”. Aí tem um primo que eu tenho muita afinidade com ele, gosto muito de
conversar com ele, mas ele assim é mais da gandaia, ele bebe, eu não bebo, ele namora
muito e eu tenho certa dificuldade de namorar, ainda não namorei com ninguém e fica, mas
ele fica passando pra mim, como seria se eu namorasse, e eu acho que agora ele ta
apaixonado pela filha do pastor da igreja dele rsrsrs, ai ele fica “mãe, e ai, o que é que eu
faço?” Eu digo: “e aí você vai conversando com ela, sabendo se ela tem também interesse
em você, se tiver, vocês conversem, e pronto, a gente conversa sobre isso”, tem também
uma prima que ta na Austrália de vez em quando eu ainda converso com ela, tem noticias
263
dela, ela ajuda em algumas coisas, ai os primos os outros são todos pequenos. Não tenho
uma relação muito boa com a minha irmã… agora que eu to começando (a ter uma relação)
de vez em quando a gente consegue conversar.
E: a do meio ou a menorzinha?
Mãe: a do meio. A mais nova eles tem uma afinidade boa, consigo conversar, ela agora já
ta no segundo namorado e eu nada de namorar, todo mundo fica cobrando, ai mainha diz
que tudo tem seu tempo e eu vou esperar o meu tempo, e vou levando, toda vida que mainha
vai pra algum canto eu sempre pergunto: “que horas vai voltar”? Se ela disser “não sei”,
não vou, nunca vou porque não tem hora pra voltar e eu quero voltar tal hora, porque se
não amanhã, vai me prejudicar. Então é sempre essa mesma rotina, que eu acho que pra
mim não é rotina, é o que eu tenho que fazer, tem que ser daquele jeito, não interferindo os
outros tem que se amoldar ao meu jeito, eu não tenho como me amoldar ao jeito dos outros,
e o que eu não entendo, já foi acordado com a minha mãe que eu conversaria com ela e ela
me diria. De vez em quando eu não consigo controlar isso e estouro e digo o que não devia
dizer, mas nem tudo...é esse processo o tempo todo.
E: e como é que ter síndrome de asperger faz você se sentir? Será que ele já pensou sobre
isso, o que é que a senhora acha?
Mãe: em algumas coisas eu acho que se sente diferente...me sinto diferente, mas não que
isso possa assim, interferir muito na minha vida. Eu to buscando o que eu to querendo,
inclusive agora, esse começo de ano eu quis desistir do curso de engenharia de alimentos,
e quis ir pra matemática, e meu pai “ COMO É QUE VOCE DEIXA DE SER
ENGENHEIRO E VAI SER PROFESSOR DE MATEMÁTICA???”, e minha mãe já foi
dizendo: “se é o que você quer, vá fazer, se é uma vontade sua, não leve em consideração
o que seu pai ta dizendo, mas se é uma vontade sua...”, “não eu vou insistir mais um
pouquinho em engenharia de alimentos” [fala como se fosse Chaves], ai a minha mãe foi
pra internet, deu uma olhada, que sempre sobra vagas na UFRN, sempre tá sobrando vaga,
ela disse assim: “ó se você realmente não gostar do que você ta fazendo, vá fazer o que
você acha que vai gostar, ou então faça outro ENEM, e veja mas se você achar que da pra
você ir andando nessa carruagem”, que ela diz que tento andar na carruagem, “você vai
andando até onde você acha que der, se você vê que não dá”, você:”mãe não dá, eu vou
fazer aquilo, vou precisar de você porque PAINHO...” ,”não ligue pro seu pai, porque o
futuro é seu, o seu pai o que tinha de fazer ele já fez, se ele não quis estudar, ele nunca
264
gostou de estudar, então ele parou ali, parou”. Hoje a gente tem que pensar assim porque a
vida da gente um dia vai ser só nossa, a gente não vai depender dos outros. Aí eu to levando
o curso, tem umas disciplinas meio difíceis, minha mãe fica doidinha quando chega as
notas, mas eu to indo, descobri que a UFRN tem uns programas, de ajuda e eu to numa
aula agora que ta me ajudando, aí minha mãe diz assim: “se agarre com as meninas, que
elas são mais amáveis, elas gostam de ajudar o próximo”, e eu to com umas colegas que
realmente tão me ajudando, mas também tem uns colegas que eles me ajudam, eu sempre
marco pra estudar, a CAENE informou ao departamento, os professores hoje estão me
vendo com outros olhos, diferente do primeiro semestre, já olham assim e já sabem que eu
sou diferente, que eu tenho um tempo assim, tanto é que o professor chegou pra mim e
disse assim: “você vai começar a prova e todo mundo vai terminar em tal hora mas você
pode ficar mais meia hora”. Então isso foi muito bom pra mim, eu consegui terminar a
prova que no tempo que ele tinha dado eu não ia conseguir. Sei que todo mundo acha que
eu sou diferente, mas eu tento ir do jeito que ta dando, dançando de acordo com a musica,
e ate agora to tendo, pelo menos na fase de universidade, não to tendo problema. Fui
reprovado só em calculo um, paguei de novo, já passei.
E: e se você tivesse que explicar síndrome de asperger, como você explicaria?
Mãe: deixe-me ver... é uma síndrome assim, eu explicaria mais ou menos o que eu sinto,
em que eu tenho um problema comportamental, assim, não comportamental, um problema,
social, de entender e me comunicar melhor com as pessoas, de entender se certos
significados, certos gestos, a minha mãe disse assim: “C, quando você tiver falando numa
coisa que não é pra falar você olha pra mim, se eu tiver com uma certa expressão, tipo, aí
você já sabe, que não é pra falar aquilo” e “as coisas que acontecem na nossa casa, tem
que ficar na nossa casa, não interessa a ninguém os nossos problemas, os problemas da
gente a gente resolve aqui ,porque, porque se a gente vai resolver problema nas frentes das
pessoas, as pessoas vão dizer ‘que tipo de família é essa’”? Que deixa pra resolver os
problemas, lavar roupa suja (não entendi muito o que era lavar roupa suja, depois fui
questionar pra mainha, mas mainha lavar roupa suja é o que mesmo?) então a gente tem
que resolver aqui, tudo que acontece a gente tem que resolver na nossa casa.
E: essa coisa da dica, funciona, dele olhar pra você?
Mãe: as vezes não funciona, as vezes eu tenho que sair e prestar mais atenção a mainha
que é pra eu não ta falando o que não devo, e assim já passei por umas situações difíceis,
265
tipo: falei de alguém e alguém tava atrás escutando, e pegou mal porque não era pra ter
falado naquela hora, era pra eu ter ficado na minha, mas como saiu minha mãe emendou,
e tentou emendar mas não deu muito certo, depois pediu desculpa eu tive que pedir
desculpa. E me sinto assim...que tenho certas dificuldades de relacionar com as pessoas,
consigo se relacionar bem com mais novos que eu, sempre consigo, brincar até, sento com
minha irmã pra assistir os filmes e me divirto bastante... chaves então, eu e ela a gente da
bastante gargalhada, e um programa tipo, vamo pro cinema, vamo não sei pra onde com
alguém, to fora porque eu não tenho muita paciência de ficar numa cadeira de cinema, não
tenho muita paciência de assistir um filme completo, eu começo a assistir, mas já saio. E
tem esses detalhes, eu me sinto assim, as vezes me sinto um pouquinho excluído de
conversas, porque sabem que eu vou dar uma opinião que não é condizente com o que eles
acham, então aí minha mãe faz: “C, C ta fazendo o que? Ta falando o que?”, ai eu volto e
fico quieto. E assim...eu não consigo conversar muito com meu pai, não tenho muita
conversa com ele porque ele não me entende, eu tento explicar e ele não quer me entender,
aí a gente vive assim, cada um, ele fala uma coisa eu escuto depois eu questiono com minha
mãe, o que era que ele quis dizer com aquilo, pra eu poder depois dar uma resposta, porque
eu dou uma resposta, sempre dou uma resposta, na hora eu posso não dar, mas depois eu
vou lá e digo: “olhe pai”... e vamos lá...
E: nessas coisas são coisas que ele não entendeu como ironia?
Mãe: ironia. Meu marido ele gosta muuuuito de piada, e você sabe que isso pra ele é uma
dificuldade.
E: um duplo sentindo, uma coisa por trás...
Mãe: aí ele não entende, eu como já to calejada, eu consigo hoje dar uma resposta a altura,
mas C ele fica perdido, ele fica perturbado.
E: hoje ele já entende que é uma coisa que ele tava querendo dizer outra, mas não entende
o que é...
Mãe: tanto é que quando, é assim, hora do almoço, meu marido chega ele ta almoçando na
mesa, aí meu marido chega pra pegar o almoço, aí meu marido sempre diz uma coisa, ai C
agora faz o seguinte: quando meu marido entra na cozinha pra pegar o almoço ele sai, e vai
lá pra mesa da sala, porque eu disse: “é melhor do que você estar se indispondo, então pra
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evitar problema faça o seguinte: almoce todo dia nessa mesa”, mas eu não consigo eu
tenho que almoçar, naquela mesa.
E: só no momento em que...
Mãe: mas, você sabe que de tal hora seu pai chega, e ele vem com umas perguntas você
não entende, aí você para seu almoço, se chateia, você diz coisas que não devia dizer, então,
almoce todo dia nessa mesa, pegue um joguinho americano, bote aí...mas não tem jeito.
Ele almoça na mesa. Aí o pai chega - doze em vinte em ponto meu marido também tá em
casa - aí pega o almoço e vai pro trabalho de novo, mas ele sempre tem uma coisa pra dizer.
E: Mas o seu marido assim, ele tem interesse em saber, aprender sobre a síndrome de
asperger? Não tem...
Mãe: não, eu digo assim: “tem como você botar seu almoço calado e sair calado não?”,
porque ele é muito calado. Ele diz assim: ”não”. Aí por coincidência nós temos um casal
amigo que a filha ela tem, 8 anos e ela é autista. Clássica. Uma mulher, porque é muito
raro, só que ele já acompanha a filha, e lá na casa dele é o inverso, ele que cuida da filha,
a mulher não da muita atenção, então ele que toma conta e as vezes a gente se encontra e
conversa muito...eu converso a minha experiência com C e ele conversa a experiência dele
com a filha dele só que a filha dele é beeeeem diferente, beeem complicaaada.
E: é porque de fato...
Mãe: eu fico assim olhando pra ele, ele tem uma paciência, sabe? ai ele faz: “olhe S. lá em
casa tudo sou eu, tudo, tudo, tudo, a minha mulher ela não da a mínima”. A mulher dele é
uma boneca, então ela sabe, ai ele fica assim, ai ele pergunta pra o meu marido: “e aí, n sei
o que... [o marido responde] “não, não entendo nada disso, quem sabe é S., eu não sei de
nada”, ai ele diz: “não mas você não pode ser assim, você tem que se inteirar do problema,
é o seu filho, você tem que ajudar”, “não não, mas isso não da pra mim não”.
E: é que conhecendo as características é bem mais fácil de lidar porque você sabe porque
surge um comportamento
Mãe: [marido falando] “não não, mas não da pra mim, não sei o que”...Aí eu fico assim...Eu
tenho outro casal amigo que o filhinho tem 4 anos e o filhinho é também autista e eu
conversei muito com ela, aí ela disse: “ai meu Deus, se meu filho fosse como o seu filho...”,
267
mas ele tem... olhe, no dia que a gente tava lá, ele passou o dia gritando, gritando, gritando,
aí C tentava ajeitar e não conseguia.
E: porque, hoje a gente chama ne que é um espectro, e o espectro vai desde a criança muito
difícil, talvez como ele, a C, que as dificuldades de C são muito específicas, é uma coisa
de uma dificuldade da interação social que vai desde o total alheamento à C que tem a
dificuldade do entendimento de coisas mais complexas mas que entende as relações sociais
e tem a linguagem que a criança do autismo clássico, frequentemente não tem a linguagem
pra se comunicar e então é muito diferente, muito diferente.
Mãe: ele, C, ele tá numa fonoaudióloga. A fonoaudióloga me ajudou muito, U., e ela diz
que C é o carro chefe de propaganda pra ela, porque ela diz que...ela inclusive ela faz um
trabalho muito bom: ela leva eles...agora em junho, eles foram todos pro cinema,
são...marcou com uns quatorze mas parece que foram dez. Todos portadores da síndrome
e três autistas mesmo, C disse, de verdade. Mas C chegou em casa muito feliz com esse
encontro, porque ele disse que: “mãe olha, conversei bastante”. Então quer dizer é a área
dele, a praia dele...
Mãe: Aí ela levou eles pro cinema...ela tem uma família só que são duas pessoas são
autistas e um Asperger, na mesma família.
E: tem umas pesquisas que trazem muito que tem uma coisa genética
Mãe: eu nunca fui pra esse lado genético, mas me abriu os olhos a minha sogra, porque ela
disse no passado que ela tem conhecimento de um familiar que tinha um comportamento
assim como C. Aí C tem um primo que portador de fibrose cística aí a família, ela foi cavar
a família dela e já teve caso de fibrose cística, aí vem a historia ne? Tem que ter uma carga
genética, pra isso.
E: porque hoje não se sabe de fato, tem síndromes que a gente sabe, é por isso, como por
exemplo uma síndrome de down, sabe que é uma trissomia do vinte um, mas o autismo
hoje se sabe que tem forte correlação genética mas onde ta, ninguém sabe.
Mãe: até porque tem as variações ne...
268
E: Agora eu vou te mostrar cenas de uma série de TV, a The Big Bang Theory. Nela tem
um personagem que tem características de AS e eu queria que você visse as cenas e depois
me dissesse o que você acha que parece o Chaves.
CENA – Penny está dormindo no sofá e Shledon quer sentar/ CENA – Os quatro
amigos vão a um restaurante e não conseguem pedir
Mãe: o sofá, pra sentar, sempre senta no mesmo lugar, e se alguém tiver ele manda sair
E: essa cena é bem característica dele ne?
Mãe: sim, ele sempre come a mesma coisa
CENA 4 – Sorriso de Sheldon
E: essa é mais uma coisa de mostrar a emoção, como é pra C, lembra ele ou não? Da risada
em hora inapropriada?
Mãe: quando ele vai entender alguma coisa, todo mundo já tem parado de rir aí ele dá uma
risada, pronto parou
CENA - Presente de natal para Penny
E: nessa essa menina deu um presente que ele gostou muito e ele quer retribuir
Mãe: contatos
E: é difícil?
Mãe: é
E: ele não é tão assim de abraçar...
Mãe: não, não gosta muito de abraço nem de beijinho não. Ele me abraça e como ele
cresceu muito né, aí ele me abraça, aí se eu der um abraço mais acalorado ele diz: “tá bom,
mãe, ta bom”.
CENA – Empresta dinheiro a Penny/ CENA – Conversa desconfortável
269
E: nessas tinha alguma coisa que lembrava C? A coisa do sarcasmo...
Mãe: é
E: mas ele costuma trazer um assunto que é inapropriado assim, sem perceber?
Mãe: sim
Mãe: [sobre ironia na cena] é ele não entenderia, e tem uma historia de sempre sentar no
mesmo lugar.
E: mas ele diz um motivo pra sempre sentar no mesmo lugar?
Mãe: não, e se tiver muita gente ele sentou aí, se ele chega e você tiver ele faz: “vamo
saindo que esse lugar é meu”. Não tem problema dele sentar em outro lugar entendeu? mas
ele quer sentar naquele lugar.
E: sendo uma pessoa conhecida, mas sendo uma visita?
Mãe: não, ele fica por ali aí se você levantar ele senta (risos), fica arrudiando, arrudiando,
se você der uma brecha aí ele ainda diz assim: “pronto, agora eu to no meu lugar, arranje
outro”
E: (risos)
Mãe: aí eu tenho que ficar seria ne, e tento fazer ele sentar em outro lugar mas ele não
senta, tento contornar a situação porque as vezes as pessoas não entendem.
CENA – Decifrando expressão de Raj/ CENA – Abraço na lavanderia
Mãe: [sobre a cena] ele nunca entende a situação
E: precisa desse guia
Mãe: é
E: e no geral, o que você acha de Sheldon parecido com R?
Mãe: tem um bocado de coisa, essa de não entender as expressões das pessoas, não
entender os momentos apropriados pra entender certas coisas, me lembra bastante
E: e assim na síndrome de asperger o que é que a senhora acha que ele tem assim que são
pontos de força, coisas boas que ele tem que pode se relacionar a asperger e fragilidades,
coisas que ele tem mais dificuldade?
270
Mãe: força: eu não se foi a criação, talvez tenha sido, eu sempre disse pra eles que eles
sempre tem que buscar o que eles querem, se vocês sonharem tem que correr atrás dos seus
sonhos, e tem que chegar nele não passando por cima de ninguém, respeitando, e C ele tem
conseguido atingir esses objetivos dele, uma vez eu disse assim quando eu tinha quinze
anos eu disse: “eu vou estudar, eu vou trabalhar, eu vou comprar uma casa, eu vou comprar
um carro e eu vou casar”, porque eu sempre pretendi ter filhos. Então eu sempre tive esses
objetivos, casamento foi o ultimo, estudei, sempre fui muito estudiosa, passei diversos
concursos fui trabalhar, comprei uma casa, uma apartamento, morro de medo de dirigir,
tirei carteira mais não dirijo, não é possível que eu não consiga fazer isso, porque esse é o
único sonho que falta chegar lá, e casei e tive os meus filhos, então você tem que sempre
ter aquela meta a seguir e chegar, e olhar pra trás e não se arrepender de nada que fez, agora
respeitando as pessoas, com o discurso de que as pessoas elas tem que ser respeitadas, não
adianta querer passar por cima de ninguém porque assim não chega a lugar nenhum. Então
eles sempre tiveram essa historia...se eu cheguei ainda falta uma coisa, que eu sempre digo
pra eles: “falta dirigir porque a vida seria bem melhor”. Não que eu não deixe de ir pra
nenhum lugar, mas a vida seria bem melhor, e C ele ta interessado agora em aprender a
dirigir, eu digo a ele: “vamo esperar um pouquinho”, eu acho que ele tem condições de
dirigir, mas eu só disse pra ele uma coisa: “você só vai ter que ter muita paciência porque
o transito não ta brincadeira, as pessoas não respeitam os outros”, então você vai ter que:
“é isso que eu quero? então você vai ter que dirigir”, “eu vou ter cuidado comigo e com os
outros?”. Você vai ter que fazer todas essas perguntas.
E: porque é questão de muitas vezes, pra gente entende e releva que a gente fez uma coisa
errada mas, tá, tudo bem, deixa passar mas ele vai ter que relevar que a pessoa não seguiu
a regra
Mãe: e assim, quanto a fraqueza, eu não vejo em C, porque ele ta descobrindo coisas nessa
universidade que como aluna a diversos anos nem procurei me inteirar, procurei saber, e
ele descobre, e todo dia ele descobre uma coisa diferente, ele me mostra aquilo
E: e como é que a senhora acha que ter descoberto que tinha síndrome de asperger, ter
descoberto isso, mudou a vida de C? se é que mudou alguma coisa...
Mãe: não, não mudou, eu vendo assim desde pequeno ate hoje, é como se ele: “descobriu?
pronto, meu problema é esse”. Mas era algo que ele sempre fez, ele só sabe que tenho certos
limites e pronto.
271
E: e tem alguém na família que ele se sente confortável de conversar sobre isso?
Mãe: assim a gente conversa muito, as pessoas que ele convive sou eu e a vó dele, minha
sogra, eles gostam de conversar que não é brincadeira. E ele questiona muito ela, ela
questiona muito ele...A única conversa que ela não me passou foi essa conversa do começo
do ano, mas ela me conta tudo... “ C falou isso e isso, fez isso e isso”.
E: e que conselho a senhora daria pra pais de um adolescente ou jovem adulto que tem
síndrome de asperger?
Mãe: pra ajudar...que se eu não tivesse visto que C era diferente no começo, ele não estaria
como está, e como eu percebi e comecei a conversar...quem me ajudou muito foi essa
senhora que é psicóloga, na realidade ela é amiga da minha mãe, mas eu a tenho como
amiga, ela falou assim: “procure ajuda, se você ta achando isso procure, porque quanto
mais cedo você cuidar, melhor”. Tanto é que C chegou aonde chegou.
E: e vai chegar muito mais.
Mãe: com certeza. A historia dele agora é ir pra um país, eu vou ter que tirar um passaporte,
viver viajando, e a minha filha diz que vai “simbora” pra Inglaterra, a pequena faz: e eu
vou pra onde? Rsrsrs
Mãe: e ele tem uma parte de engenharia de alimentos, muito boa no Canadá ne, aí ele quer
ir, e tem chance, não sei agora sem o ciências sem fronteiras...
272
Pais de Satoshi
[Momento anterior ao inicio da entrevista que mãe já conversa sobre ele]
E: Satoshi faz acompanhamento com psiquiatra?
Mãe: faz. Toma remédio por causa do TOC. Que o problema dele é a mistura né? Porque
ele não é...ele tem o asperger mas tem o TOC também...na realidade eu acho que o asperger
não causa tanto problema na vida dele quanto o TOC
E: com que idade vocês descobriram o asperger?
Mãe: 8 ou 9 anos...por aí.
E: a questão da religiosidade começou na adolescência?
Mãe: Foi...na realidade o que eu noto é que o TOC as vezes muda o foco. Quando ele
começou ele começou com coisas de limpeza, de contaminação...ele tinha nojo do xixi,
nojo do coco, nojo disso e nojo daquilo. Ai depois passou muito tempo assim, foi
melhorando...agora depois que ele mudou pra essa história de religiosidade já tem um bom
tempo que tá nessa e não mudou e eu acho que é uma coisa muito mais difícil de trabalhar
porque é uma coisa muito abstrata. Aí eu acho que é por isso que tá tão persistente, ficando
tanto...e é isso que atrapalha a vida dele, porque ele tá ótimo aí daqui a pouco começa a
rezar, pedir perdão, entendeu? Mas se não fosse esse TOC ninguém notava nem que ele era
asperger assim na maneira de ser, porque ele fica super bem. Quando ele tá tranquilo sem
o TOC é outro nível. Eu acredito, na minha concepção, que todo o problema gira em torno
do TOC, entendeu? Porque se ele fosse um asperger puro ele era muito tranquilo...tranquilo
demais. Porque ele é mega inteligente, ele faz tudo, ele sabe tudo...Agora tudo isso aqui...é
o TOC que atrapalha.
Mãe: O problema dele todinho gira em torno desse TOC, porque assim o asperger ele tem
lógico. Algumas características, ne? Dificuldades como...ele pega tudo ao pé da letra, que
isso é uma característica. Ele entende tudo ao pezinho da letra. Não entende as
""nuancezinhas"...ele chega normal, por exemplo. Se ele lhe acha feia, ele vai e diz que lhe
acha feia. Você diz ‘olha Satoshi, como ela é linda? ” ele diz: ‘não, eu gosto dela, mas ela
é feia’. Ele diz na cara da pessoa! Eu só falto me matar, fico atrás de um buraco pra me
enterrar! Aí isso aí eu reclamo e ele diz ‘você quer que eu minta é?’ Entendeu? Aí isso é
273
uma característica do asperger. Mas aí ao longo do tempo a gente vai ensinando: “olhe,
isso aí...não quero que você minta, mas você omite” “como é omitir? ” “Olhe é você...as
vezes eu acho também uma pessoa super feia, mas não fico dizendo ‘ei, fulano, você é feio,
você é horroroso... eu não vivo dizendo isso e nem por isso sou mentirosa. Você, se eu
dissesse que você é feio, ou gordo ou magro, você gostaria? ” Ele diz: ‘não’ e eu digo ‘pois
é, a pessoa também não gosta. A gente não precisa dizer. Não é mentir, é omitir. Fique pra
você. O que você acha é seu’. Então isso é uma característica e ele realmente diz. Se a gente
não orientar, ele vai dizer, porque acha que não dizer ou omitir é mentir e ele não mente!
Ele é o famoso super sincero. Que eu acho que é uma característica do asperger. Porque
ele realmente diz as coisas como elas são, como ele enxerga aquilo e é normal ele dizer.
Antigamente ele tinha uma dificuldade enorme de abordar as pessoas...por exemplo as
vezes a gente chegava num restaurante aí encontrava algum amigo ele já dizia ‘quem é
você?’ sem nem dar boa noite, nem perguntar a gente, nem nada. Hoje ele já não faz mais
isso. O se liga já está melhor. Já entende porque não pode abordar pessoas e porque tem
que dar boa noite. Essas coisas ele já tá melhor. E as pessoas ficavam “não, deixe o
bichinho”, mas eu não deixava, ele tem que aprender.
E: então é o seguinte: vou te dar as instruções da atividade e você irá tentar responder como
se fosse o Satoshi, certo? [Instruções sobre a atividade com o personagem]
Mãe: Vamo lá...eu acho assim que a SA pra mim é realmente assim, no caso dele, de
Satoshi, eu noto que ele é um menino muito inteligente, mas que ele tem dificuldades de
se inserir num contexto social...ele tem dificuldade...é aquela história né...bem...ele é o
super sincero, ele é o menino que as vezes não entende o olhar que a gente chama o ‘olhar
43’ que aquele olhar de reprovação...tipo ele faz uma coisa e acha que aquilo é normal,
né...é como se ele tivesse dificuldades nos limites...fosse assim, sem limite. Pra ele, ele
acha que tudo aquilo é normal, quando não é. Que tem certas regras...ele tem dificuldade
de entender as regras. Na minha concepção é isso. As regras normais, habituais da
sociedade, da vida, do contexto geral. Ele tem dificuldade. Ele quer fazer uma coisa e na
cabecinha dele aquilo é normal...ele chegar, ele tipo tá uma pessoa conversando e ele chega
e entra na conversa e interrompe, né? Que a pessoa que não o conhece, na minha concepção,
a pessoa acha que ele é ‘mal educado’, né? Que na realidade não é. É a falta do limite e a
falta do entendimento das regras. Eu acho pra mim é só, basicamente. Porque ele funciona,
pra uma pessoa que é normal e não sabe que ele tem asperger...tem horas que determinadas
atitudes que ele toma que a pessoa pensa que: ’esse menino não tem educação, chega aqui,
274
se mete e fala e coisa...’. Que na realidade não é isso...é falta do entendimento, do limite,
das regras que eu acho que eles tem. Muita inteligência com um déficit realmente na parte
social. Eu entendo ele mais ou menos assim.
E: E você acha que ele percebe? Como ele se sente?
M: Eu não acho...as vezes eu fico pensando assim...eu acho que...no início eu ano achava
e agora que ele tá virando adolescente ele já começa a perceber algumas coisas, mas antes
ele fazia no automático. Eu acho que ele achava que tava fazendo uma coisa normal, que
pra ele era normal. Pra os outros não, mas pra ele era normal. Hoje com os ensinamentos,
com a terapia que a gente investe pesado nele em termos de ensinamento e de terapia, ele
já começa a ter um discernimento maior. Eu acho que hoje ele já tem. Tipo assim: ele já
sabe que fazendo assim não é correto...aí você explica...sempre que a gente faz alguma
coisa, que ia sair, etc. Sempre a gente tinha que fazer as regrinhas pra ele, dar as
orientações: ‘olhe, você não pode fazer isso, não pode fazer isso e nem pode fazer aquilo”
aí fluía muito bem. Mas se não orientasse ele fazia com a maior naturalidade do mundo.
Era como se ele achasse que o que tava fazendo tava certo. Que na realidade ele não tinha
o verdadeiro discernimento. Ele não sabia que aquilo não era o certo.
[Pai de Satoshi chega em casa e mãe pede que ele participe]
E: E vocês acham que ele generaliza de uma situação para outra o que ele tem que fazer ou
vocês têm que explicar todas as vezes para toda situação?
M: No início a gente tem que explicar. Ate...é como se houvesse uma “demorazinha" em
absorver. Mas eu sempre falo a mesma coisa, repito, repito pra que ele não faça. Aí depois
de um bom tempo ele passa a não fazer mais sem precisar que eu explique anteriormente.
Mas geralmente a gente precisa orientar. Como esse exemplo de quando não acha a menina
bonita, aí quer dizer a menina de qualquer jeito. Ele acha que o certo é você ser sincero.
Sempre alguns assuntos a gente tem que repetir a orientação. Realmente eu noto que nos
últimos anos ele tem melhorado em relação a isso, porque antes todas as vezes eu tinha que
repetir a mesma história pra que ele não tivesse aquela atitude que incomodava. Ele tinha
uma dificuldade de abordar as pessoas.
E: Como foi quando vocês souberam do SA? Conversaram logo com ele? Ele percebeu
sozinho?
275
Mãe: Não, a gente soube do diagnostico com o teste neuropsicológico que ele fez em São
Paulo. A psicóloga veio e nos informou que pelo teste ele tinha síndrome de asperger...a
gente de início não disse pra ele. Aí na época eu acredito...se não me falha a memória, uma
primeira psicóloga que ele teve aqui disse. Foi. Ele que disse ‘é fundamenta ele que ele
saiba o que ele tem”. E foi ele que disse. Ele que deu pra ele o diagnóstico.
E: E como foi a pra ele? Ele falou sobre isso?
Mãe: Não, a princípio ele ficou quieto na dele. Eu não sabia nem que já tinha
conhecimento...até que um dia conversando ele disse ‘é, mãe, eu tenho SA” e eu tomei um
susto! Ou seja, ele já sabia, mas não fez nenhum comentário...nada. Na época o que foi que
ele fez, ele foi estudar a síndrome. Ele foi ler na internet o que era, as limitações...e eu
lembro que ele veio me dizer, me falar sobre a síndrome, o que era, etc. ele próprio. A
atitude dele quando soube foi exatamente se aprofundar sobre a síndrome, né? Chegou pra
contar como era e que ele soube que tinha e o que ele tinha que fazer por isso. Pronto, foi
assim.
E: Hoje ele conversa sobre isso com vocês?
Mãe: Fala. Ele diz a mim. As vezes eu falo algo sobre quando ele tem alguma atitude e ele
diz ’mas é porque eu tenho asperger e o Asperger tem uma certa dificuldade de entender
as coisas de uma maneira gral. Eu entendo muito ali do meu jeito’. Ou seja, ele fala sem
grandes problemas, né?
E: Pra pessoas de fora ele também fala?
Mãe: Fala. Um dia desses eu saí com ele e uma senhora falou não sei o que com ele...eu
acho que nota pelo jeitinho dele, aí ele disse ‘eu tenho Asperger’ disse a ela na rua. Ele foi
bem taxativo. ‘você sabia que eu sou portador da síndrome de asperger? ‘ah é, mas você é
muito bacana’ ele disse: ‘tudo bem, mas eu tenho síndrome de Asperger viu?’ [risos] então
eu noto que ultimamente ele fala pras pessoas. Que antes eu não notava não, mas agora ele
fala. Mais de uma vez ele já fez isso comigo.
E: Na família tem mais alguém?
Mãe: Não, autismo não. Nem na minha nem na do pai. Tem outro tipo de patologia mental
na família do pai, mas autismo não.
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E: Certo. Agora eu vou te mostrar cenas de uma série de TV, a The Big Bang Theory. Nela
tem um personagem que tem características de AS e eu queria que você visse as cenas e
depois me dissesse o que você acha que parece o Chaves.
CENA 1 – Sheldon conforta Leonard
Mãe: O que tá em pé. Acho que isso não acontece com Satoshi. Não o que eu noto é assim,
se eu tiver doente ele vem e pergunta e fica preocupado. E se ele vir alguém chorando aí
ele vai perguntar porque. Ele oferece conforto.
Pai: ele é preocupado com o semelhante. Ele se preocupa muito e é incapaz de fazer algo
ao seu semelhante.
CENA 2 – Penny está dormindo no sofá e Sheldon quer sentar/ CENA 3 – Os quatro amigos
vão a um restaurante e não conseguem pedir a comida
Pai: percebo isso não. Se dizemos ‘meu filho sente aqui’ ele vai ou ‘meu filho mude de
lugar’ ele vai.
Mae: não, não tem essa rigidez.
Pai: acho que sou mais Asperger do que ele [risos]
Mãe: concordo. [risos]
Pai: Ele fica ansioso com as mudanças. Qualquer mudança, aí eu acho que geram uma
ansiedade, por mais besta que seja. Por exemplo, você ia pra um restaurante aí você vai pra
outro, o sentimento que fica é de que gera uma ansiedade. Normalmente é quando você
impõe uma mudança...eu fico com esse sentimento, mas ele não fala.
CENA 4 – Sorriso de Sheldon
Mãe: Tem uma "dificuldadezinha" né? De demonstrar.
Pai: as vezes ele se põe no espelho e fica fazendo careta, mas no espelho. Aí você chega
chama ele pra ir e ele vai.
Mae: se bem que no sentido de ter um sentimento e não saber expressar? Não, não tem
dificuldade. Ele expressa...
CENA 5 – Presente de natal para Penny
Mãe: Aí eu acho que tão afetuoso. Ele é muito carinhoso. Tem essa dificuldade não.
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Pai: mas ele é diferente. Por exemplo com um estranho, uma coleguinha da escola...a
coleguinha vai e beija ele, abraça ele, aí ele fica meio indiferente aquilo.
Mãe: é, com estranho é assim...ele é mais comigo
Pai: aí tem uma hora que ele vai e abraça e beija. Ele tem a hora dele. A hora dela ele não
consegue se ajustar. Se sensibilizar com aquele afeto, de responder.
Mãe: ele fica indiferente.
Pai: aí tem uma hora que ele vai e beija
Mae: é como se tivesse o tempo dele.
E: Mas acontece de ser em momentos inadequados?
Pai: tem. A hora dele é a hora dele.
Mãe: acontece.
CENA 7 – Conversa desconfortável
Mãe: tem...é...isso acontece. Totalmente. Inadequado. Ele falar de assuntos que não é pra
ser falado na frente das pessoas.
Pai; as vezes ele também sai da mesa e vai na mesa vizinha pra pessoa perguntar algo ou
dizer ‘você é parecida com a mãe do meu amigo’.
Mae: quando era mais novo ele dizia que queria fazer amizades e não sabia como era, então
ele era inadequado, procurava na hora errada ou falava coisas que não devia. Isso acontece.
CENA 8 – Decifrando expressão facial de Rajesh
Mae: é as vezes...se ele tem noção?
Pai: tem não. Ele tem dificuldade.
Mãe: é, isso aí é verdade.
[Satoshi chega em casa e demanda a atenção dos pais]
[Mãe vai até ele e pai continua na entrevista]
E: Como vocês acham que ele sente?
Pai: Ele nunca falou. Ele encara com naturalidade, não esconde e não tem vergonha
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E: o que você considera que são pontos de força de Satoshi associados ao SA?
Pai: eu sinceramente...vantagens? Eu diria que nenhuma.
[Pai vai dar atenção à Satoshi e mãe continua entrevista]
E: se você pudesse dar um conselho a pais de adolescentes com SA o que você diria?
Mãe: [se emociona bastante] que desse muito amor a ele. Muito amor, atenção, que lutasse
por ele e que conseguisse dar um bom apoio psicológico que eu acho que a coisa melhora.
Muito amor, eu acho que eles precisam muito disso. Amor, atenção e um acompanhamento
psicológico adequado. Que é o que a gente busca fazer, sempre.
E: Você acrescentaria mais alguma coisa?
Mãe: Não, eu acho que eu só acrescentaria que mesmo assim, com todas essas dificuldades
ele é um presente de Deus na nossa vida que eu sou muito feliz com ele mesmo ele tendo
essa característica especial. Ele faz a gente muito feliz. As dificuldades a gente luta pra
enfrentar. Dificuldades todo mundo tem. Cada um tem seu jeito. É continuar nessa luta
com ele sempre apoiando.
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