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Transbordamentos da arte contemporânea i Daniel Paz de Araújo ii A evidente diversidade de lugares, meios, técnicas, tecnologias, processos, materiais, valores, conceitos e outros elementos os quais artistas atuais têm se apropriado para produção, distribuição e acesso é uma das principais características da arte contemporânea. Além do relativamente recente transbordamento da arte das instituições artísticas para lugares abertos, a utilização de tecnologias da informação e comunicação como mecanismos de registro, publicação e consumo de trabalhos artísticos têm reconfigurado as dimensões sobre as quais tais obras estavam subordinados até algumas décadas atrás. De acordo com Anne Cauquelin (2005, p.64), a intencionalidade no sentido de vontades ou desejos próprios a um sujeito, cede a vez à intenção única de utilizar a linguagem para se comunicar, pois se o mundo circundante tem para nós alguma realidade objetiva, constituída pela linguagem que utilizamos, o que significa, entre outras coisas, que o desenvolvimento de linguagens artificiais e seu uso cada vez mais generalizado alteram nossa visão da realidade, construindo, pouco a pouco, outro mundo. Como consequência, tem-se uma estruturação permanente mais próxima de uma topologia em redes, onde a importância não é concedida a um centro, uma origem de informação em circulação, mas ao movimento que permite a conexão. O deslocamento do objeto artístico de dentro para fora ou vice-versa, das instituições, bem como sua criação, captação e possivelmente reapresentação cíbrida (ciber-híbrida) de dentro para fora ou vice-versa, dos ambientes tecnológicos digitais possibilitam diversas reflexões. Além dos espaços e lugares, as obras de arte em si e os papéis desempenhados por instituições tais como museus e galerias, bem como artistas, curadores, compradores, críticos e admiradores, sejam apenas espectadores ou inter-a(u)tores, passam a ser resignificados considerando a ecologia pluralista que envolve todos estes elementos. Em relação aos espaços físicos da arte contemporânea, Furegatti (2013, p.304) explica que a arte desloca-se de certa independência irrestrita do objeto moderno perante seu entorno para instituir uma relação de forças dependentes no contexto contemporâneo entre o corpo do observador, o espaço dado e a arte. A arte passa então a projetar-se sobre o meio urbano através de estratégias estéticas que retiram do território as situações urbanas que lhe interessam, sem obrigatoriamente incluir nesse processo estético a anuência pública. (...) Inserida numa conduta experimentalista, a arte contemporânea encontra no espaço desabitado um meio de condução possível para a renovação das formas de percepção do espaço artístico, pautada para além da visualidade, na informação sensorial do corpo do espectador como parte condicionante do processo artístico (FUREGATTI, 2013, p.308-313).

Transbordamentos da Arte Contemporânea

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Page 1: Transbordamentos da Arte Contemporânea

Transbordamentos da arte contemporâneai Daniel Paz de Araújoii

A evidente diversidade de lugares, meios, técnicas, tecnologias, processos, materiais,

valores, conceitos e outros elementos os quais artistas atuais têm se apropriado para produção,

distribuição e acesso é uma das principais características da arte contemporânea. Além do

relativamente recente transbordamento da arte das instituições artísticas para lugares abertos,

a utilização de tecnologias da informação e comunicação como mecanismos de registro,

publicação e consumo de trabalhos artísticos têm reconfigurado as dimensões sobre as quais tais

obras estavam subordinados até algumas décadas atrás.

De acordo com Anne Cauquelin (2005, p.64), a intencionalidade no sentido de vontades

ou desejos próprios a um sujeito, cede a vez à intenção única de utilizar a linguagem para se

comunicar, pois se o mundo circundante tem para nós alguma realidade objetiva, constituída

pela linguagem que utilizamos, o que significa, entre outras coisas, que o desenvolvimento de

linguagens artificiais e seu uso cada vez mais generalizado alteram nossa visão da realidade,

construindo, pouco a pouco, outro mundo. Como consequência, tem-se uma estruturação

permanente mais próxima de uma topologia em redes, onde a importância não é concedida a

um centro, uma origem de informação em circulação, mas ao movimento que permite a conexão.

O deslocamento do objeto artístico de dentro para fora ou vice-versa, das instituições,

bem como sua criação, captação e possivelmente reapresentação cíbrida (ciber-híbrida) de

dentro para fora ou vice-versa, dos ambientes tecnológicos digitais possibilitam diversas

reflexões. Além dos espaços e lugares, as obras de arte em si e os papéis desempenhados por

instituições tais como museus e galerias, bem como artistas, curadores, compradores, críticos e

admiradores, sejam apenas espectadores ou inter-a(u)tores, passam a ser resignificados

considerando a ecologia pluralista que envolve todos estes elementos.

Em relação aos espaços físicos da arte contemporânea, Furegatti (2013, p.304) explica

que a arte desloca-se de certa independência irrestrita do objeto moderno perante seu entorno

para instituir uma relação de forças dependentes no contexto contemporâneo entre o corpo do

observador, o espaço dado e a arte. A arte passa então a projetar-se sobre o meio urbano através

de estratégias estéticas que retiram do território as situações urbanas que lhe interessam, sem

obrigatoriamente incluir nesse processo estético a anuência pública. (...) Inserida numa conduta

experimentalista, a arte contemporânea encontra no espaço desabitado um meio de condução

possível para a renovação das formas de percepção do espaço artístico, pautada para além da

visualidade, na informação sensorial do corpo do espectador como parte condicionante do

processo artístico (FUREGATTI, 2013, p.308-313).

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Concomitantemente o impacto das tecnologias digitais no contexto da arte

contemporânea também é evidente. Nicolas Bourriaud (2009, p.92) constata que de um lado o

mundo se “ampliou” sob novas vistas, mas por outro lado, nosso otimismo em relação ao poder

emancipador da tecnologia em larga medida dissolveu-se: agora sabemos que a tecnologia, além

de trazer melhorias à vida cotidiana, representam ameaças e instrumentos de sujeição. Segundo

Bourriaud (2008, p. 94-96), a tecnologia só tem interesse para o artista na medida em que ele

confere uma perspectiva a seus efeitos, sem aceitá-la como instrumento ideológico. Assim, a

relação entre arte e técnica apresenta-se como um desafio da contemporaneidade em apropriar-

se dos hábitos perceptivos e comportamentais criados pelo complexo tecnoindustrial para

produzir objetos artisticamente duradouros a partir de técnicas e modos de produção atuais.

Assim, o que identificamos atualmente no domínio da arte é a influência de diversos

elementos, desde lugares, conceitos filosóficos até técnicas digitais, que, segundo Anne

Cauquelin (2008), não estão em conflito aberto, mas sim trocam suas formulas, constituindo

dispositivos complexos, instáveis, maleáveis, sempre em transformação. Este reflexo permite aos

artistas perceberem o conjunto do mundo artístico contemporâneo, através da criação de uma

realidade bem diferente da que existia há algumas décadas, ao considerar a construção da arte

contemporânea fora das qualidades próprias da obra, na imagem sustentada dentro dos circuitos

de comunicação. Neste sentido, o que se constata é o transbordamento do objeto artístico entre

lugares físicos e/ou digitais tensionando as características espaço-temporais as quais a arte até

então estava limitada, criando novas possibilidades artísticas no objeto em si e em seu entorno.

Referências Bibliográficas

CAUQUELIN, Anne. Arte Contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins, 2005.

CAUQUELIN, Anne. Frequentar os Incorporais: contribuição a uma teoria da arte

contemporânea. São Paulo: Martins, 2008.

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional. São Paulo: Martins, 2009.

FUREGATTI, Sylvia Helena. Aspectos constitutivos da arte no meio urbano ao longo do século

XX. In: COUTO, M. F. M; FUREGATTI, S.H. Espaços da arte contemporânea. São Paulo: Alameda,

2013.

i Statement produzido para a disciplina Laboratório I "Arte Extramuros. Tensionamentos conceituais e espaciais presentes na produção artística contemporânea" do curso de pós-graduação em Artes Visuais da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, ministrada no 1º semestre de 2014 pela Profa. Dra. Sylvia Helena Furegatti. ii Doutorando em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP.