-A-escola-e-o-professor e a paixão de ensinar

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Moacir Gadotti

A Escola e o Professore a paixo de ensinar

Paulo Freire

Copyright 2007 Publisher Brasil

editor

Renato RovaiCoordenao editorial e reviso

Maurcio AyerCapa

Carmem MachadoProjeto grfico e diagramao

Amanda Fazano

Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Gadotti, Moacir a escola e o professor : Paulo Freire e a paixo de ensinar / Moacir Gadotti. 1. ed. So Paulo : Publisher Brasil, 2007. iSBN 978-85-85938-45-1 Bibliografia. 1. aprendizagem 2. educao popular 3. ensino 4. escolas Paulo, 1921-1997 6. Professores Formao i. Ttulo. 5. Freire,

07-2934ndices para catlogo sistemtico:

CDD-370.71

1. Professores : Formao : Viso de Paulo Freire : educao 370.71

So Paulo, 2007 PuBliSher BraSil rua Bruno Simoni, 170 05424-030 Pinheiros So Paulo (SP) Tel/fax: 55 11 3813.1836 [email protected] www.publisherbrasil.com.br

Moacir Gadotti

A Escola e o Professore a paixo de ensinar

Paulo Freire1 edio So Paulo, 2007

Sumrio

apresentao Trs livros que se completam .................. 9 a escola como um lugar especial ................................... 11 a utopia como tema epocal freireano ............................ 15 Pedagogia da luta, pedagogia da esperana .................... 19 algumas teses freireanas .............................................. 29 Paulo Freire e a formao do professor ......................... 37 a vida como foco central da prtica docente .................. 51 aprender e ensinar com sentido .................................... 61 educar na cidade que educa .......................................... 69 O paradigma do oprimido .............................................. 77 Continuar e reinventar Freire ....................................... 85 referncias bibliogrficas .............................................. 93 anexo Pequeno glossrio freireano............................ 105

ApreSentAo

Trs livros que se completam

S

empre tenho escrito por uma necessidade interna de dizer alguma coisa, de responder a alguma pergunta, a alguma preocupao. A idia de escrever este livro nasceu de uma dupla motivao: primeiro, a lembrana dos dez anos da morte de Paulo Freire; segundo, a preocupao com a qualidade do nosso ensino e a conseqente necessidade de formao do professor. Eu fui buscar em Paulo Freire resposta questo de como ensinar e aprender hoje, como ele via a formao do educador, a formao do professor, como ele via a escola. Resultado: A escola e o professor Paulo Freire e a paixo de ensinar, que escrevi pensando, sobretudo, nos meus alunos do curso de Pedagogia e das Licenciaturas. Esse livro completa dois outros j publicados. Em 2001, publiquei, pela Editora Cortez, um livro sobre Paulo Freire, com o ttulo Um legado de esperana, procurando responder pergunta: o que ele nos deixou como legado? Apresentei as lies que ele nos deu, o seu mtodo, a sua prxis poltico-pedaggica, suas intuies originais. Inspirado nele, publiquei, mais tarde, em 2005, pela Editora Positivo, o livro Boniteza de um sonho: ensinar-e-aprender com sentido, procurando

responder pergunta de por que ser professor hoje, qual o sentido dessa profisso. Mas a obra no estava completa. Faltava responder como Paulo Freire entendia o ato de ensinar, hoje em crise. Como seria a docncia hoje, na viso de Paulo Freire. O que ser professor na tica de Paulo Freire? Como devemos formar o professor para esse novo tempo? O que ele deve saber e como deve ser para ensinar? Paulo Freire dedicou todo um livro ao tema dos saberes necessrios prtica educativa. Essa era uma de suas preocupaes centrais. Debrucei-me sobre toda a sua obra para entender melhor essa sua preocupao e entreguei minha reflexo editora Publisher Brasil para apresent-la ao leitor, leitora. Espero que este livro possa contribuir para que os professores e professoras se tornem ainda melhores, mais competentes e, sobretudo, mais comprometidos e mais felizes na profisso que escolheram.Moacir Gadotti So Paulo, 2 de maio de 2007

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a escola como um lugar especial

a

escola o lugar preferencial do professor. Com base na minha leitura de Paulo Freire, gostaria de falar da escola como um lugar especial, um lugar de esperana e de luta. J falamos muito mal da escola. Costumamos reclamar dos nossos professores como se eles fossem os responsveis por todos os males da humanidade. Mas na escola que passamos os melhores anos de nossas vidas, quando crianas e jovens. A escola um lugar bonito, um lugar cheio de vida, seja ela uma escola com todas as condies de trabalho, seja ela uma escola onde falta tudo. Mesmo faltando tudo, nela existe o essencial: gente. Professores e alunos, funcionrios, diretores. Todos tentando fazer o que lhes parece melhor. Nem sempre eles tm xito, mas esto sempre tentando. Por isso, precisamos falar mais e melhor de nossas escolas, de nossa educao. A escola um espao de relaes. Neste sentido, cada escola nica, fruto de sua histria particular, de seu projeto e de seus agentes. Como lugar de pessoas e de relaes, tambm um lugar de representaes sociais. Como instituio social ela tem contribudo tanto para a manuteno quanto para a transformao social. Numa viso transformadora ela tem um papel essencialmente crtico e criativo.11

A escola no s um lugar para estudar, mas para se encontrar, conversar, confrontar-se com o outro, discutir, fazer poltica. Deve gerar insatisfao com o j dito, o j sabido, o j estabelecido. S harmoniosa a escola autoritria. A escola no s um espao fsico. , acima de tudo, um modo de ser, de ver. Ela se define pelas relaes sociais que desenvolve. E, se quiser sobreviver como instituio, precisa buscar o que especfico dela. A escola no pode mudar tudo e nem pode mudar a si mesma sozinha. Ela est intimamente ligada sociedade que a mantm. Ela , ao mesmo tempo, fator e produto da sociedade. Como instituio social, ela depende da sociedade e, para se transformar, depende tambm da relao que mantm com outras escolas, com as famlias, aprendendo em rede com elas, estabelecendo alianas com a sociedade, com a populao. No somos seres determinados, mas, como seres inconclusos, inacabados e incompletos, somos seres condicionados. O que aprendemos depende das condies de aprendizagem. Somos programados para aprender, mas o que aprendemos depende do tipo de comunidade de aprendizagem a que Boniteza pertencemos. A primeira comunidade das salas de aprendizagem a que pertencemos incrvel que no a famlia, o grupo social da infncia. imaginemos a significao do discurso Da a importncia desse condicionante formador que faz uma no desenvolvimento futuro da criana. escola respeitada em A escola, como segunda comunidade de seu espao. a eloqncia do discurso proaprendizagem da criana, precisa levar nunciado na e pela em conta a comunidade no-escolar dos limpeza do cho, na aprendentes. E mais: todos precisamos boniteza das salas, na higiene dos sanitrios, de tempo para aprender, na escola, na nas flores que adorfamlia, na cidade. nam. h uma pedagogicidade indiscutvel Quando os pais, mes, ou outros na materialidade do responsveis, acompanham a vida escoespao. (Pedagogia da lar de seus filhos, aumentam as chances autonomia, p.50) da criana aprender. Os pais precisam12

tambm continuar aprendendo. Se qualidade de ensino aluno aprendendo, preciso que ele saiba disso: preciso combinar com ele, envolv-lo como protagonista de qualquer mudana educacional. O fracasso de muitos projetos educacionais est no fato de desconhecer a participao dos alunos. O aluno aprende quando o professor aprende; ambos aprendem quando pesquisam. Como diz Paulo Freire, no h ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda no conheo e comunicar ou anunciar a novidade (Freire, 1997, p.32). Vivemos hoje numa sociedade de redes e de movimentos, uma sociedade de mltiplas oportunidades de aprendizagem, chamada de sociedade aprendente, na qual as conseqncias para a escola, para o professor e para a educao em geral so enormes. Torna-se fundamental aprender a pensar autonomamente, saber comunicar-se, saber pesquisar, saber fazer, ter raciocnio lgico, aprender a trabalhar colaborativamente, fazer snteses e elaboraes tericas, saber organizar o prprio trabalho, ter disciplina, ser sujeito da construo do conhecimento, estar aberto a novas aprendizagens, conhecer as fontes de informao, saber articular o conhecimento com a prtica e com outros saberes. Nesse contexto de impregnao da informao, o professor muito mais um mediador do conhecimento, um problematizador. O aluno precisa construir e reconstruir o conhecimento a partir do que faz. Para isso, o professor tambm precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e apontar novos sentidos para o que-fazer dos seus alunos. Ele deixar de ser um lecionador para ser um organizador do conhecimento e da aprendizagem. Poderamos dizer que o professor se tornou um aprendiz permanente, um construtor de sentidos, um cooperador, e, sobretudo, um organizador da aprendizagem. No h ensino-e-aprendizagem fora da procura, da boniteza e da alegria, dizia-nos Paulo Freire. A esttica no est separada da tica. E elas se faro presentes quando houver prazer13

e sentido no conhecimento que construmos. Por isso, precisamos tambm saber o que, por que, para que estamos aprendendo. Ningum nega a importncia da Educao Bsica para a formao da cidadania e como forma de se preparar para o trabalho. Entretanto, muitos se perguntam para que servem esses anos de estudo. Por isso, saber distinguir o essencial do secundrio muito importante; saber distinguir o estrutural do conjuntural decisivo. E saber aonde queremos chegar crucial. Educar para qu? Com que mundo sonhamos? Como educar para um outro mundo possvel? A Educao Bsica conseqncia de um longo processo de compreenso/realizao do que essencial, do que permanente, e do que transitrio para que um cidado exera criticamente a sua cidadania e construa um projeto de vida, considerando as dimenses individual e coletiva, para viver bem em sociedade.

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a utopia como tema epocal freireano

a

s passagens mais bonitas das obras de Paulo Freire so as que ele escreveu sobre o sonho e a utopia. Paulo Freire era um educador voltado para o futuro. A leitura de Paulo Freire deveria comear sempre por essa porta de entrada, a porta da utopia. A partir desse ponto de vista que gostaria de tirar algumas conseqncias para a formao do professor. A utopia o que ele chamaria de um tema epocal. Para ele, epocal o tema que sintetiza uma preocupao ampla e convergente de toda uma poca. Em todos os seus livros, Paulo Freire nos fala alguma coisa sobre utopia e sonho. No livro Pedagogia da tolerncia, ele nos diz que o sonho dele era uma sociedade menos feia, uma sociedade em que seja possvel amar e ser amado (Freire, 2004, p.91). Ele retoma o tema sempre acrescentando alguma idia nova. E nos diz que no possvel sonhar e realizar o sonho se no se comunga este sonho com as outras pessoas (Idem, p.206). Num outro livro, Pedagogia da indignao, encontramos algumas dessas passagens belssimas sobre sonho e utopia: 1 Sem sonho e sem utopia, sem denncia e sem anncio, s15

resta o treinamento tcnico a que a educao reduzida (Freire, 2000, p.124); 2 O sonho de um mundo melhor nasce das entranhas do seu contrrio. Por isso corremos o risco tanto de idealizarmos o mundo melhor, desgarrando-nos do nosso concreto, quanto de, demasiado aderidos ao mundo concreto, submergirmo-nos no imobilismo fatalista (Idem, p.133); 3 A desproblematizao do futuro, numa compreenso mecanicista da histria, de direita ou de esquerda, leva necessariamente morte ou negao autoritria do sonho, da utopia, da esperana (Idem, p.56). Freire nos fala ainda de um pensamento proftico como um pensamento utpico, um pensamento que anuncia um mundo melhor sem a soberba e a arrogncia de quem pretende determinar a histria. Ao contrrio, o pensamento proftico, diz ele, implica a denncia de como estamos vivendo e o anncio de como poderamos viver. um pensamento esperanoso (...). Falando de como est sendo a realidade, denunciando-a, anuncia um mundo melhor (...) na real profecia, o futuro no inexorvel, problemtico. (...). Contra qualquer tipo de fatalismo, o discurso proftico insiste no direito que tem o ser humano de comparecer Histria no apenas como seu objeto, mas tambm como sujeito (Freire, 2000, p.119). Como define Paulo Freire a utopia? No livro O Educador: Vida e Morte, organizado por Carlos Rodrigues Brando, h um artigo de Paulo Freire intitulado Educao: o sonho possvel, no qual fala sobre a utopia, afirmando o seguinte:O sonho vivel exige de mim pensar diariamente a minha prtica; exige de mim a descoberta, a descoberta constante dos limites da minha prpria prtica, que significa perceber e demarcar a existncia do que eu chamo espaos livres a serem preenchidos. O sonho possvel tem a ver com os limites destes espaos e esses limites so histricos. (...) A questo do sonho possvel tem a ver exatamente 16

com a educao libertadora, no com a educao domesticadora. A questo dos sonhos possveis, repito, tem a ver com a educao libertadora enquanto prtica utpica. Mas no utpica no sentido do irrealizvel; no utpica no sentido de quem discursa sobre o impossvel, sobre os sonhos impossveis. Utpico no sentido de que esta uma prtica que vive a unidade dialtica, dinmica, entre a denncia e o anncio, entre a denncia de uma sociedade injusta e expoliadora e o anncio do sonho possvel de uma sociedade que pelo menos seja menos expoliadora, do ponto de vista das grandes massas populares que esto constituindo as classes sociais dominadas. (Freire, 1982, p.100)

A palavra utopia foi cunhada pelo escritor catlico ingls Thomas Morus (1450-1535) com a publicao de seu livro que traz como ttulo, em 1516. Morus imaginou um lugar perfeito, que ao mesmo tempo um bom lugar e nenhum lugar. Escrevendo em latim e na forma de dilogo, ele criou o marinheiro Raphael Hythloday que, voltando de uma viagem com Amrico Vespcio, conta a histria da descoberta de uma ilha fantstica chamada Utopia, possivelmente na costa brasileira, onde existiria uma sociedade feliz e igualitria. O alvo das instituies sociais na Utopia , em primeiro lugar, corresponder s necessidades do consumo pblico e particular, deixando a cada cidado o maior tempo possvel para se libertar da servido do corpo, cultivar livremente o esprito e desenvolver as suas faculdades intelectuais pelo estudo das cincias e das artes. Neste desenvolvimento completo consiste para eles a verdadeira felicidade (Morus, 1998, p.84). E Thomas Morus no esqueceu do papel do professor em sua Utopia. Para ele, o professor na Utopia deveria empregar todo o seu talento e experincia em gravar na alma ainda terna e impressionvel da criana os bons princpios que constituem a salvaguarda da repblica. A criana que recebe o germe desses princpios conserva-o quando homem, tornando-se mais tarde um elemento til conservao do estado (Idem, p.148). Um dos estudiosos mais importantes relacionados com o papel da utopia na educao o educador suo Pierre Furter. Em seu livro Edu1

cao e reflexo (1972), ele dedica um captulo ao tema. Segundo ele, a utopia tem uma funo social educativa porque uma maneira de escapar violncia, preparando, no entanto, as reformas necessrias, organizando mentalmente um espao prprio s mudanas, sem revoluo sangrenta. A utopia no foge da histria para uma ilha ou uma cidade fechada (...) mas fundamentalmente uma maneira de tomar distncia em relao histria, de modo a poder refletir dialeticamente sobre ela. A utopia, graas ao imaginrio e fico, permite se retrair um pouco da realidade para escapar s obrigaes tirnicas da realidade imediata e medir todas as conseqncias de uma ao (Furter, 1972, p.39). Para Paulo Freire uma das tarefas mais importantes da prtica educativo-crtica propiciar as condies em que os educandos em suas relaes uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experincia profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histrico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar (Freire, 1997, p.46). O educador um realizador de sonhos. Para ele, o pensamento utpico liga-se muito reflexo pedaggica na medida em que o educador, ao refletir sobre como sua ao opera mudanas, por meio de sua ao realiza, de fato, uma utopia. A educao como um instrumento eficaz de transformao essencialmente utpica. Furter adverte, porm, que, sendo a utopia ligada imaginao, ela sempre ser ambgua e que preciso v-la de maneira crtica. O educador pensa o futuro, est voltado para o futuro, mas sua ao cotidiana est totalmente engajada no presente. Sua ao, portanto, uma ao contraditria. Por isso as relaes entre o pensamento utpico e a ao pedaggica so complexas e dialticas. por isso, tambm, que a utopia pedaggica deve ser concreta, para no se tornar uma abstrao delirante. Estamos vivendo hoje um tempo de crise da utopia. Afirm-la novamente se constitui, para ns, educadores, num ato pedaggico essencial na construo da educao do futuro. Crise perder as respostas, aquelas nas quais nos apoivamos para viver melhor. Crise ruptura e promessa. Por isso tambm oportunidade.18

Pedagogia da luta, pedagogia da esperana

N

a dcada de 1980 escrevi meu primeiro livro sobre Paulo Freire analisando sua vida e sua obra: Convite leitura de Paulo Freire (1989). Na dcada de 90, com a colaborao de inmeros autores e autoras e depois de cinco anos de trabalho, conclu o livro Paulo Freire: uma biobibliografia (1996). Um grosso volume, dificilmente acessvel a muitos professores. Em 1996, ao entregar esse volume ao Paulo, ele ficou espantado sobre o quanto se havia escrito sobre ele. Disse-nos que sabia que haviam escrito muito sobre ele, mas no imaginava que fosse tanto. Neste momento, lembrando que h dez anos Paulo Freire partiu, gostaria de refletir sobre as lies deixadas por ele, principalmente para ns educadores, professores, animadores culturais e tantos outros que nos dedicamos tarefa de educar para um outro mundo possvel. Se muito escrevemos sobre ele, porque foi principalmente para ns que ele escreveu. Como tenho 45 anos de magistrio quase uma necessidade para mim. assim que gostaria de prestar minha homenagem a ele, no dcimo aniversrio de sua morte. Tenho muitas boas lembranas dele.1

Conheci Paulo Freire pessoalmente em Genebra, em 1974. O contato com a sua obra era anterior, desde 1967, quando publicou Educao como prtica da liberdade, seu primeiro livro. Sobre esse livro, fiz meu trabalho final de licenciatura em Pedagogia. A partir de 1974, comecei a trabalhar estreitamente com ele. Primeiramente, foram as trocas de idias sobre a situao brasileira, dez anos depois do golpe militar de 1964. Engajamo-nos em campanhas para auxiliar refugiados polticos. Foram muitos os encontros na cantina do Conselho Mundial de Igrejas de Genebra. Paulo sempre tratava a todos com enorme cortesia e pacincia, sempre sonhando com algo, projetando algo, atendendo inmeros alunos de vrios pases, dando entrevistas, lendo e escrevendo, discutindo. Depois de me orientar pedagogicamente por trs anos, em 1977 participou da banca de meu doutoramento na Universidade de Genebra. Minha tese foi sobre educao permanente, uma educao ao longo de toda a vida. Paulo era muito otimista, acreditava nas pessoas e as estimulava, com suas palavras, ao engajamento e luta por um outro mundo possvel. Repetia muitas vezes que o mundo possibilidade, no fatalidade. A educao no um tesouro que se perde ao entregar a outros. Ao contrrio, um tesouro que aumenta ao ser repartido. Mais tarde ele diria que s vlido o conhecimento compartilhado. Em 1977 eu estava em Genebra, planejando voltar ao Brasil. Disselhe que havia sido convidado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Paulo me confidenciou que se pudesse tambm voltaria, mas tinha receio de sofrer novas perseguies polticas. Voltaria se conseguisse um contrato com uma universidade pblica que, segundo ele, lhe daria maior segurana. Ao retornar ao Brasil, ainda naquele mesmo ano, procurei a Universidade de So Paulo (USP) e a Unicamp para falar sobre o assunto. O diretor da Faculdade de Educao da Unicamp, professor Eduardo Chaves, encaminhou a proposta de contratao do professor Paulo Freire, que foi plenamente aceita pelos rgos internos da faculdade. Mas a tramitao do processo foi retardada pelo reitor da Universidade. Alunos20

e professores da Faculdade de Educao fizeram, ento, vrias manifestaes pblicas para exigir a vinda de Paulo Freire. Nesse nterim, Dom Paulo Evaristo Arns, gro chanceler da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), comeou as negociaes para trazer Freire. Mas as dificuldades no eram apenas de contratao. O governo brasileiro negava a anistia a oito brasileiros. Entre eles, Paulo Freire. Em 1978, Paulo havia sido convidado para abrir um seminrio nacional, no Brasil, mas lhe negaram o passaporte para regressar. Contudo, por uma artimanha muito bem montada pela Comisso Organizadora do evento, pde fazer, clandestinamente (por telefone), a abertura do I Seminrio de Educao Brasileira, realizado em setembro daquele ano, em Campinas. Era a primeira vez que os educadores se reuniam livremente, desde o incio da ditadura militar (1964), a primeira vez que estavam ouvindo a voz de Paulo Freire. Ela soava misteriosa e subversiva. Paulo falou de sua alegria de se dirigir aos professores brasileiros depois de 14 anos de exlio. Sua fala foi emocionada, afirmando que sua palavra no poderia ser outra seno uma palavra afetiva, uma palavra de amor, uma palavra de carinho, uma palavra de confiana, de esperana e de saudades tambm, saudade imensa, grandona, saudades do Brasil, desse Brasil gostoso, desse Brasil de ns todos, desse Brasil cheiroso, distante do qual estamos h 14 anos, mas distante do qual nunca estivemos tambm. Paulo estava com muitas saudades do Brasil. Queria retornar, mas sem o passaporte era impossvel. Aqui dentro, a luta pela anistia ganhava cada vez mais espao na mdia e o governo militar teve que ceder. No ano seguinte, finalmente, Paulo e sua esposa Elza puderem retornar ao pas. Dia 20 de junho de 1979, antes de voltar, Paulo me escrevia: que vontade danada de dar um pulinho at ai; vontade mais danada ainda de, aproveitando o pulinho, ficar a. Se o problema de nossos passaportes j tivesse sido resolvido, nossa inteno era ir a logo que terminasse o Seminrio que vou coordenar na Universidade de Michigan no ms de julho. Tudo indica, porm, que visitaremos o Brasil este ano ainda. O nosso advogado est absolutamente convencido de que, durante o ms de julho, ganharemos o mandado de segurana. Se assim acontecer, esta21

remos a talvez em setembro, desde que possamos enfrentar as despesas com as passagens. Paulo Freire era uma pessoa bondosa, generosa, solidria. Ele queria bem s pessoas, falava bem delas, era sempre tico, positivo e respeitoso para com todos e todas. Todos os ttulos dos seus livros so positivos, esperanosos, mesmo quando escritos com indignao. Ele escrevia para as pessoas que amava, por isso, tudo o que escrevia deveria pertencer queles para os quais ele o havia feito: os oprimidos. Por isso, tambm, no se incomodava em ver alguns de seus escritos reproduzidos sem consulta prvia. Testemunhei isso em 1979 quando traduzi o livro Educacin y cambio, o qual ele me pediu para prefaciar. At eu enviar-lhe esse livro, ele no sabia da sua existncia. Esse livro havia sido publicado na Argentina por um grupo de educadores populares, reunindo alguns de seus artigos escritos no Chile, porque precisavam desses textos para as suas prticas poltico-pedaggicas. Isso ocorreu com vrias de suas obras. Educadores populares, educadores comprometidos com a causa da mudana, utilizavam seus textos de diversas maneiras. Paulo nunca se incomodava com isso. Foi assim que o nome dele acabou tomando um tamanho maior do que a sua pessoa e o mito em torno de seu mtodo ganhou fora no mundo. Como ele escreveu em defesa de uma causa, a causa dos oprimidos, no se incomodava em ver seus escritos pirateados. No caso do livro Educacin y cambio, no era nenhuma pirataria. No faz muito tempo encontrei, na Espanha, num encontro de educadores populares, uma edio artesanal, grampeada, da Pedagogia do oprimido, reproduzida por um sindicato de trabalhadores e vendida a um euro. Aprendi muito com Paulo. Aprendi a ter pacincia impacientemente, a esperar que a verdade aparea, mesmo que tenha que percorrer uma longa jornada e essa jornada esteja cheia de espinhos. Um dia a verdade vai aparecer, dizia Paulo, quando foi acusado de no levar em conta os contedos na educao e de ser no-diretivo. Ele no respondia s crticas diretamente. Limitava-se a explicar melhor suas posies, sem entrar em polmicas estreis e destrutivas. Paulo nunca polemizou com ningum. Mas22

tambm no deixava de responder. aprender a Quando Paulo Freire, Srgio Guimaescutar res e eu, juntos, escrevemos o livro Se, na verdade, o soPedagogia: dilogo e conflito (1985), nho que nos anima deele respondeu a diversas crticas que mocrtico e solidrio, no havia recebido nos primeiros anos de falando aos outros, de cima para baixo, sobretuseu retorno ao Brasil. do, como se fssemos os Mas Paulo no era indiferenportadores da verdade a te a certas crticas, sobretudo as que ser transmitida aos demais, que aprendemos a vinham de rumores annimos. Os escutar, mas escutando rumores so mais destrutivos do que que aprendemos a falar as crticas abertas. Os rumores so com eles. Somente quem escuta paciente e criticacovardes. Seus autores escondem-se mente o outro fala com atrs do anonimato e da maledicnele, mesmo que, em cercia. Mas foram poucos os momentos tas condies, precise de falar a ele. (Pedagogia em que o vi sofrer por causa disso. da autonomia, p.128) Ele era, em geral, uma pessoa alegre e raramente se sentia infeliz. Certa vez eu lhe apresentei minha teoria sobre o rumor e o dio: odiar s faz mal a quem odeia porque o ser odiado, em geral, no sabe que odiado e os outros no ligam. Paulo riu da minha teoria e eu me senti feliz. Mas, s vezes, difcil manter o bom humor diante das crticas, sobretudo quando so pessoais. Paulo jamais respondeu a qualquer ataque pessoal. Paulo Freire confessou, no ltimo grande Congresso Internacional sobre o seu pensamento, realizado em setembro de 1996, em Vitria (Esprito Santo, Brasil), que se considerava, desde sempre, como um menino conectivo1. Essa caracterstica no era apenas pessoal. Era tambm epistemolgica. Ele conseguia, melhor do que qualquer outro intelectual que conheo, criar laos, interligar as categorias da histria, da poltica,1

Em 2007, o coordenador da Universitas Paulo Freire (Unifreire), Jason Ferreira Mafra, defendeu sua tese de doutorado sobre o tema da conectividade em Paulo Freire, na Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo, com o ttulo: A conectividade radical como princpio e prtica da educao em Paulo Freire (Mafra, 2007).

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da economia, de classe, gnero, etnia, pobres e no-pobres. Sua pedagogia no apenas uma pedagogia para os pobres. Ele, como ser conectivo, queria ver tambm os no-pobres e as classes mdias se engajando na transformao do mundo. Toda pedagogia contm uma proposta poltica, implcita ou explcita. O mtodo Paulo Freire um excelente exemplo disso: no faz sentido separar o seu mtodo de uma viso de mundo. Sua teoria do conhecimento est ancorada numa antropologia. Em todos os seus escritos, Freire nos fala das virtudes como exigncias ou virtudes necessrias prtica educativa transformadora. Mas tambm nos deu exemplo dessas virtudes, entre elas, a tolerncia e a coerncia. Freire no foi coerente por teimosia. Para ele, a coerncia era uma virtude que tomava a forma da esperana. Praticava sobretudo a virtude do exemplo: dava testemunho do que pensava. Nessa coerncia entre teoria e prtica, eu destacaria o valor da solidariedade. Em 2004, Ana Maria Arajo Freire organizou um livro com diversos escritos de Paulo Freie com o ttulo Pedagogia da tolerncia. Nele, Freire nos fala da tolerncia autntica como a capacidade de conviver com os diferentes: falo da tolerncia como virtude de convivncia humana. Falo, por isso mesmo, da qualidade bsica a ser forjada por ns e aprendida pela assuno de sua significao tica a qualidade de conviver com o diferente. Com o diferente no com o inferior (...). O que a tolerncia autntica demanda de mim que respeite o diferente, seus sonhos, suas idias, suas opes, seus gostos, que no o negue s porque diferente. O que a tolerncia legtima termina por me ensinar que, na sua experincia, aprendo com o diferente (Freire, 2004, p.24). Tolerncia e solidariedade so duas faces da mesma moeda. A solidariedade no apenas uma virtude; condio de sobrevivncia da espcie humana. A solidariedade no uma qualidade do ser humano; inerente sua natureza. o que o distingue dos outros animais. Outra virtude que conquistou foi a simplicidade. O simples no o fcil. difcil ser simples. Ele conseguia estranhar o saber cotidiano sem ser pernstico, arrogante. Paulo detestava o intelectual arrogante, sobretudo o intelectual arrogante de esquerda. Para ele, o intelectual de24

direita j era arrogante por natureza, mas o de esquerda o era por deformao. O ltimo pargrafo de seu ltimo livro refere-se a esse tema: estou convencido, porm, de que a rigorosidade, a sria disciplina intelectual, o exerccio da curiosidade epistemolgica no me fazem necessariamente um ser mal-amado, arrogante, cheio de mim mesmo. Ou, em outras palavras, no a minha arrogncia intelectual a que fala de minha rigorosidade cientfica. Nem a arrogncia sinal de competncia nem a competncia causa da arrogncia. No nego a competncia, por outro lado, de certos arrogantes, mas lamento neles a ausncia de simplicidade que, no diminuindo em nada seu saber, os faria gente melhor. Gente mais gente (Freire, 1997, p.165). O legado de luta e de esperana de Paulo Freire no pertence a uma pessoa ou a uma instituio. Pertence a quem precisa dele. Recordo o filme O Carteiro e o Poeta (de Michael Radford, 1994) no qual o carteiro se apropriou de um poema de Pablo Neruda para seduzir sua namorada. Pablo questionou o carteiro sobre a autoria do poema e o carteiro respondeu: a poesia no pertence queles que a escrevem, mas a quem precisa dela. A relao entre luta e esperana particularmente desenvolvida por Paulo Freire em seu livro Pedagogia da esperana (1992). Esperana na luta: a esperana sem a luta ingenuidade e a luta sem a esperana frvola iluso, diz ele. No nascemos esperanosos. Por isso precisamos de uma educao para a esperana e uma pedagogia da esperana. o que ele defendeu numa expressiva passagem de seu livro Pedagogia da esperana:Pensar que a esperana sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade um modo excelente de tombar na desesperana, no pessimismo, no fatalismo. Mas prescindir da esperana na luta para melhorar o mundo, como se a luta se pudesse reduzir a atos calculados apenas, a pura cientificidade, frvola iluso. Prescindir da esperana que se funda tambm na verdade como na qualidade tica da luta negar a ela um dos seus suportes fundamentais. O essencial, como digo mais no corpo desta Pe25

dagogia da esperana, que ela, enquanto necessidade ontolgica, precisa de ancorar-se na prtica. Enquanto necessidade ontolgica, a esperana precisa da prtica para tornar-se concretude histrica. por isso que no h esperana na pura espera, nem tampouco se alcana o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera v. Sem um mnimo de esperana no podemos sequer comear o embate, mas, sem o embate, a esperana, como necessidade ontolgica, se desenderea e se torna desesperana que, s vezes, se alonga em trgico desespero. Da a preciso de uma certa educao da esperana. que ela tem uma tal importncia em nossa existncia, individual e social, que no devemos experiment-la de forma errada, deixando que ela resvale para a desesperana e o desespero. Desesperana e desespero, conseqncia e razo de ser da inao ou do imobilismo (Freire, 1992, p.10-11).

muito importante associar a pedagogia da esperana como concepo da educao, pedagogia da luta. Essas pedagogias so inseparveis no pensamento de Paulo Freire. Carlos Alberto Torres, um dos melhores estudiosos de Paulo Freire, afirma que luta e esperana so tambm inseparveis de sua teoria do conhecimento e de sua concepo de educao. Para Paulo Freire, o conhecimento uma construo social, constitui um processo de produo discursiva e no um mero produto final resultante do acmulo de informaes ou de fatos (Torres, 1997, p.151). O objetivo que Paulo Freire se propunha era o de utilizar a educao para melhorar o mundo, neutralizando os efeitos da opresso. Luta e esperana no podem prescindir uma da outra nessa tarefa humanizadora ou nessa vocao ontolgica da humanidade, na expresso de Freire. Na perspectiva freireana, o objetivo aliar educao a um projeto histrico de emancipao social: as prticas educacionais deveriam estar relacionadas a uma teoria do conhecimento. Conseqentemente, a educao aparece como ato de conhecer e no como uma simples transmisso do conhecimento ou bagagem cultural da sociedade. Uma vez que conhecimento e poder so considerados intimamente ligados, tra26

dies e prticas culturais no ensino, por exemplo, esto sob suspeita de dissimular relaes de dominao (Idem, p.70). Essa afirmao de Carlos Alberto Torres confirmada literalmente por Paulo Freire no livro Pedagogia da tolerncia: para mim, o processo de aprender, o processo de ensinar so, antes de tudo, processos de produo de saber, de produo de conhecimento, e no de transferncia de conhecimento (2004, p.135). Pedagogia da esperana um reencontro com a Pedagogia do oprimido. um relato de como ele escreveu a Pedagogia do oprimido. Retoma alguns de seus aspectos e responde a algumas das crticas que recebeu, entre elas a marca de machista com a qual foi escrita a obra. Naquela poca, dizia ele que, quando falava homem, a mulher necessariamente estava includa. Mas logo percebeu que essa no era uma explicao correta. Freire agradeceu s mulheres que lhe fizeram ver o quanto a linguagem tem de ideolgico e que a recusa da ideologia machista faz parte do processo de mudana do mundo. preciso distinguir sem separar, em Paulo Freire, a sua teoria, o seu mtodo e a sua prxis. Pensando nos professores, principalmente da educao bsica, que gostaria de apresentar algumas breves consideraes sobre a obra de Freire a partir desses trs enfoques: o da teoria, o do mtodo, o da prxis2. Essa apresentao apia-se em suas principais obras e na anlise crtica do corpo de idias, princpios e valores, feitas por estudiosos do seu pensamento3, nas diferentes interpretaes de sua obra e nos desdobramentos de seu legado de luta e de esperana. A teoria do conhecimento de Paulo Freire continua muito atual, em especial, a resposta que deu questo da aprendizagem a partir de quatro intuies originais: 1 a nfase nas condies gnosiolgicas do ato educativo; 2 a defesa da educao como ato dialgico;Deixo de tratar aqui de alguns pontos importantes da obra de Paulo Freire, por exemplo, sobre a questo do mtodo, porque j o fiz em outra obra sobre Paulo Freire, publicada pela editora Cortez com o ttulo Um legado de esperana. 3 Ver no final deste livro as Referncias bibliogrficas.2

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3 a noo de cincia aberta s necessidades populares; e 4 o planejamento comunitrio e participativo. Diga-se o mesmo em relao a seu mtodo. Para construir seu mtodo de ensino, aprendizagem e pesquisa, Paulo Freire parte das necessidades populares e no de categorias abstratas, entrelaando quatro momentos interdependentes: 1 ler o mundo, o que implica o cultivo da curiosidade; 2 compartilhar o mundo lido, o que implica o dilogo; 3 a educao como ato de produo e de reconstruo do saber; 4 a educao como prtica da liberdade. Liberdade, para Paulo Freire, no saber escolher, como defendem os neoliberais (Friedman, 1982). A liberdade a capacidade de autodeterminar-se. Liberdade no agir espontaneamente, mas agir de acordo com uma direo consciente. A teoria e a prxis de Paulo Freire cruzaram as fronteiras das disciplinas, das cincias e dos espaos geogrficos. Foram para alm da Amrica Latina. Ao mesmo tempo em que as suas reflexes foram aprofundando o tema que ele perseguiu por toda a vida a educao como prtica da liberdade suas abordagens transbordaram-se para outros campos do conhecimento, criando razes nos mais variados solos, fortalecendo teorias e prticas educacionais, bem como auxiliando reflexes no s de educadores, mas tambm de mdicos, terapeutas, cientistas sociais, filsofos, antroplogos e outros profissionais. O seu pensamento considerado um exemplo de transdisciplinaridade. Freire conseguiu fazer uma sntese pessoal original entre humanismo e dialtica, o que confere um carter muito atual a seu pensamento.

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algumas teses freireanas

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eus alunos da Universidade de So Paulo sabem que gosto muito de trabalhar em classe com teses. Os seminrios e grupos de trabalho que discutem as principais teses de um autor tm debates sempre muito produtivos. uma forma muito prtica de aprofundar a leitura crtica de um autor. Mas preciso destacar sempre argumentos a favor e argumentos contra. o que costumo fazer em minhas aulas. H muitas formas de trabalhar essas teses em sala de aula. A discusso de cada tese pode ser precedida pela leitura das obras de Paulo Freire onde ele desdobra essa tese. Em qualquer mtodo utilizado temos sempre necessidade de relacion-las com sua teoria do conhecimento e sua antropologia. No se pode compreender a pedagogia de Paulo Freire separada de uma antropologia. Vejamos algumas dessas teses freireanas que poderiam ser objeto de debate. Umas foram feitas a partir de notas que fiz de um simpsio44

O simpsio aconteceu em Vitria, Esprito Santo, em setembro de 1996, com o ttulo Paulo Freire: Prxis poltico-pedaggica do educador, coordenado pelas professoras Silvana Ventorim, Marlene de Ftima Pires e Edna Castro de Oliveira, da Universidade Federal do Esprito Santo.

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sobre Paulo Freire ainda nos anos 1990 e outras, posteriormente, em diferentes cursos que ministrei sobre Paulo Freire na Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo. Bom trabalho! 1 A interdisciplinaridade freireana n o apenas um mtodo pedaggico ou uma atitude do professor: uma exigncia da prpria natureza do ato pedaggico. 2 Os temas desenvolvidos por Paulo Freire nas suas ltimas obras sugerem a emergncia de uma pedagogia do desenvolvimento sustentvel ou ecopedagogia. 3 O futuro do pensamento freireano est ligado ao futuro da educao popular e sua reconceituao, j que a educao popular se constitui num movimento dinmico e tem passado por vrios momentos. 4 Alm das primeiras categorias que Paulo Freire utilizou como opressor-oprimido , hoje encontramos outras como a categoria excludo. preciso mudar o contedo e a metodologia da educao popular adequando-os nova realidade dos excludos. 5 Segundo a exposio feita pelo socilogo Luiz Eduardo Wanderley no simpsio citado, a obra de Paulo Freire pode ser vista a partir de seis idias-fora: 1. pelo alargamento do conceito do educativo (para alm da educao estritamente escolar); 2. pela politicidade inerente educao; 3. pelo conhecimento dos limites da prtica educativa; 4. pela construo de uma nova cultura poltica; 5. pelo princpio da gesto democrtica; 6. por uma pedagogia da pergunta. 6 Segundo a exposio feita pelo educador Pablo Gentili no simpsio citado, o neoliberalismo consegue naturalizar a desigualdade. Por isso, Paulo Freire chama nossa ateno para a necessidade de observarmos o processo de construo da subjetividade democrtica, mostrando, ao contrrio, que a desigualdade no natural. preciso aguar nossa capacidade de estranhamento. 7 Paulo Freire considera necessria a politicidade do processo pedaggico uma vez que os problemas educacionais no so apenas tcnicos nem apenas pedaggicos: so tambm polticos e econmicos. 8 Devemos construir nossa filosofia da igualdade e desnaturalizar30

a desigualdade, pensando-a com o reconhecimento da diversidade, o que d sentido pedagogia da esperana. 9 Segundo a exposio feita pelo filsofo e educador Balduno Antonio Andreola no simpsio citado, o poder que est a no para ser conquistado, participado ou distribudo: para ser reinventado. Paulo Freire nos indica qual o papel dos educadores na reinveno do poder: reinventar a educao reinventando a poltica. 10 Segundo a exposio feita pela educadora Clia Frazo Linhares no simpsio citado, o pensamento de Paulo Freire polifnico. Sua obra capaz de gerar mltiplas leituras. Sua fala e sua escrita geraram diferentes interpretaes em diferentes lugares. O pensamento de Freire representa a afirmao da polifonia contra os controladores de uma voz nica. 11 Paulo Freire no se preocupou s com os mtodos de alfabetizao, no se preocupou s com o desenvolvimento da lngua escrita nos adultos. Entre outros temas, ele se preocupou com as relaes entre professor e aluno e com a formao para a conscincia crtica. 12 Segundo a exposio feita pelo educador Osmar Fvero no simpsio citado, Paulo Freire foi o primeiro educador brasileiro a falar que o analfabetismo era um problema social. Para Freire, o analfabetismo um problema social a ser resolvido por um profundo processo de mobilizao social. E isso no foi at hoje assumido por nenhuma plataforma de governo federal. 13 Angicos se contrapunha experincia do Iseb Instituto Superior de Estudos Brasileiros e campanha De p no cho tambm se aprende a ler. Foi a primeira experincia sistematizada de alfabetizao. A riqueza existencial da palavra geradora devia refletir as necessidades lingsticas para a alfabetizao. 14 A escola pblica popular implantada por Paulo Freire na Prefeitura Municipal de So Paulo rompeu com a tradio de que s a elite competente para governar. 15 Segundo a exposio feita pelo historiador Jos Eustquio Romo no simpsio citado, Paulo Freire exerceu uma funo simblica na Prefeitura Municipal de So Paulo. Ele considerou que a escola deve31

ser o canal do resgate cientfico de No h docncia expresso da cultura popular. A essem discncia cola pblica deve ser o espao de preciso que, desde os coorganizao das reflexes sobre as meos do processo, v ficando determinaes sociais. Essa escola cada vez mais claro que, emdeve ter uma funo insurrecional, bora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ou seja, deve se constituir num esao formar e quem formapao de organizao poltica das do forma-se e forma ao ser classes populares e instrumento de formado. nesse sentido que ensinar no transferir coluta contra-hegemnica. nhecimentos, contedos, nem 16 Paulo Freire parece ter formar a ao pela qual um compreendido desde muito cedo sujeito criador d forma, estilo ou alma a um corpo indeque as universidades, com seu ciso e acomodado. No h doacademicismo, com suas lutas incncia sem discncia, as duas ternas pelo poder e controle do se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenas que os conhecimento, revelam-se, com conotam, no se reduzem freqncia, como espaos estreicondio de objeto, um do outados, onde o pensamento criador tro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende enenfrenta srios problemas. sina ao aprender (Pedagogia 17 Paulo Freire nos ensinou da autonomia, p.25). a olhar para o caos cotidiano e enxergar nele a utopia, a no perder a esperana diante das dificuldades. O educador precisa ser profeta. 18 O construtivismo crtico freireano simples de entender e difcil de praticar, pois exige mudanas no s individuais, mas tambm sociais. 19 O espao de socializao informal oferece possibilidades de encontros e vivncias que levam solidariedade, ao ser humano completo. 20 Paulo Freire retoma sempre as mesmas teses, relendo-as em novos contextos com o mesmo olhar humanista. Ele v o mundo sob a tica da libertao humana e individual. 21 Pedagogia do oprimido nasceu nas lutas utpicas dos anos 60 e que ainda no se realizaram na prtica. Por isso, esse livro de Paulo Freire ainda atual e ser atual enquanto houver oprimidos. O seu anncio32

ainda no se realizou. No pode estar superada uma pedagogia do oprimido enquanto existirem oprimidos. No pode estar superada a luta de classes enquanto existirem privilgios de classe. 22 A pedagogia do oprimido tanto uma crtica pedagogia tradicional, centrada no professor, quanto ao movimento da Escola Nova, que descura da politicidade da educao. Por isso errneo chamar Paulo Freire de escolanovista popular. 23 A teoria da comunicao emancipadora aproxima Habermas de Freire. A teoria poltica da transformao social o aproxima de Gramsci. 24 Paulo Freire vive a tenso ante o grego, que sobrevaloriza o ser e a razo, e o semita, que coloca o bem e o desejo como o centro da vida, como sustenta Benedito Eliseu Cintra (1998). 25 Paulo Freire colocou o oprimido no palco da histria, pelo seu engajamento poltico e pela sua teoria como contranarrativa ao discurso dos poderosos e privilegiados. 26 H necessidade de trabalhar tambm com os no-pobres e no-oprimidos para criar o contradiscurso entre aqueles que tm mais vez na sociedade. 27 A aprendizagem muito facilitada se os novos conhecimentos a construir forem relacionados com saberes anteriores dos alunos. 28 A utopia o verdadeiro realismo do devir humano. Isso significa que para ser realista em educao, o educador precisa ser utpico: a utopia representa um impulso para se colocar a caminho para alm do dado histrico. Ela se torna desafio e estmulo. 29 A pedagogia fenomenolgico-hermenutica de Paulo Freire oferece uma base para a tica e para a educao religiosa na perspectiva da teologia da libertao. 30 As reformas pedaggicas para o povo fracassam porque so feitas para ele no por ele: o povo acaba sendo o objeto e no o sujeito ativo das mudanas. 31 A escola pblica de horrio integral facilita a introduo da teoria freireana, pois possibilita prticas culturais e comunitrias, a relao entre a educao formal e a educao informal.33

importante observar como Paulo Freire insistia nos limites da educao e, sobretudo, nos limites da prtica educativa. A educao no pode tudo, dizia ele. No podemos ser ingnuos se quisermos ter uma prtica educativa crtica e transformadora. Paulo Freire no pode ser acusado de ser um otimista ingnuo. No h prtica educativa, como de resto nenhuma prtica, que escape a limites. Limites ideolgicos, epistemolgicos, polticos, econmicos, culturais. (...). Creio que a melhor afirmao para definir o alcance da prtica educativa em face dos limites a que se submete a seguinte: no podendo tudo, a prtica educativa pode alguma coisa. (...). Esta afirmao recusa, de um lado, o otimismo ingnuo que tem na educao a chave das transformaes sociais, a soluo para todos os problemas; de outro, o pessimismo igualmente acrtico e mecanicista de acordo com o qual a educao, enquanto supra-estrutura, s pode algo depois das transformaes infra-estruturais (Freire, 1993, p.96). Paulo Freire era um otimista crtico, sustentando o que dizia Antonio Gramsci: pessimismo da inteligncia e otimismo da vontade. Porque a educao pode transformar as pessoas que transformam o mundo. Transformar pessoas e transformar o mundo so processos interligados. No livro mais conhecido de Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, ele defende uma tese original: a superao da situao de oprimido no pode dar-se simplesmente quando o oprimido assumir a posio de opressor. A superao da contradio oprimido-opressor no implica em que os oprimidos se tornem opressores, mas a supresso da condio de opresso. Freire nos adverte que o oprimido precisa conscientizar-se e engajar-se na luta. O homem no pode participar ativamente na histria, na sociedade, na transformao da realidade se no for ajudado a tomar conscincia da realidade e da sua prpria capacidade para transformar (...). Ningum luta contra foras que no entende, cuja importncia no mea, cujas formas e contornos no discirna; (...) Isto verdade se se refere s foras da natureza (...) isto tambm assim nas foras sociais (...). A realidade no pode ser modificada seno quando o homem descobre que modificvel e que ele o pode fazer (Freire, 1977, p.48).34

Da o papel importante da educao como conscientizao, no a educao bancria na superao da condio de opresso. Nessa educao conscientizadora, educador e educando so sujeitos em dilogo na construo do conhecimento. A educao conscientizadora problematizadora, crtica e prioriza o dilogo, o respeito, o amor, o ato de criao e recriao, partindo do estudo em crculo cultural, das situaes-problema retiradas da realidade do educando.

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Paulo Freire e a formao do professor

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ue ensinamentos Paulo Freire deixou para ns, professores? A formao do professor foi uma preocupao constante em Paulo Freire, manifestada em suas numero-

sas obras. Em Professora sim, tia no: cartas a quem ousa ensinar, ele reafirma a necessria profissionalizao da docncia contra a desvalorizao dessa profisso. O sonho de mudana no se consolida nas sociedades sem a presena da professora. verdade, diz ele, a educao no a alavanca da transformao social, mas sem ela essa transformao no se d. Nenhuma nao se afirma fora dessa louca paixo pelo conhecimento, sem que se aventure, plena de emoo, na reinveno constante de si mesma, sem que se arrisque criadoramente. Nenhuma sociedade se afirma sem o aprimoramento de sua cultura, da cincia, da pesquisa, da tecnologia, do ensino. E tudo isso comea com uma pr-escola (Freire, 1993a, p.53). Comea com uma professora. Em seu livro Medo e ousadia: o cotidiano do professor, preocupado com essa dialtica entre utopia e cotidiano, entre o sonho e a realidade, Paulo Freire, em dilogo com o educador norte-americano Ira Shor, tro3

ca idias sobre as experincias pessoais de ambos como docentes, comparando as situaes vividas no Brasil e nos Estados Unidos e tendo como pano de fundo o sonho de uma educao libertadora. Aprender ousar, superar o medo. Nisso eles so secundados pelo educador popular Carlos Rodrigues Brando. Em seu maravilhoso livro Paulo Freire: o menino que lia o mundo uma histria de pessoas, de letras e de palavras, ele afirma que o bom de se aprender a ler-o-mundo em que se vive que, aos poucos, os nossos medos vo desaparecendo. Pois a gente s tem medo mesmo do que no entende (Brando, 2005, p.18). Em Medo e ousadia os autores afirmam que a educao libertadora se constitui num estmulo para as pessoas se mobilizarem, se organizarem e se empoderarem (eles utilizam o termo ingls empowernment). Ambos criticam o currculo oficial, pois entendem que ele implica a falta de confiana na capacidade dos estudantes e dos professores, negando-lhes o exerccio da criatividade. Freire defende, na ao educadora, o rigor e no a rigidez, o direito do professor tomar a palavra, mas no o direito de entediar seus alunos com sua fala. As teorias clssicas do currculo separavam os contedos do seu processo de construo, transformando a educao num processo de acumulao de pensamentos j pensados. Se uma criana est com dor de dente a atividade nuclear do currculo deve ser a assistncia odontolgica. Existem necessidades, interesses, que so anteriores a todos os currculos, prpria alfabetizao, que o acesso condio humana, em que aprender qualquer coisa um prolongamento dessa necessidade de ser gente. A defesa que faz Paulo Freire da fala do professor lembra um outro livro dialogado dele, desta vez com Antonio Faundez, no livro Por uma pedagogia da pergunta. Nesse livro ele defende a diretividade da prtica educativa: se nada temos a propor ou se simplesmente nos recusamos a faz-lo, no temos o que fazer verdadeiramente na prtica educativa. A questo que se coloca est na compreenso pedaggico-democrtica do ato de propor. O educador no pode negar-se a propor, no pode tambm recusar-se discusso, em torno do que prope, por parte do educando (Freire e Faundez, 1985, p.45). Nesse livro, eles ainda falam da necessidade38

da escola ter um projeto poltico-pedaggico afirmando que o ponto de partida de um projeto poltico-pedaggico tem de estar exatamente nos nveis de aspirao, nos nveis de sonho, nos nveis de compreenso da realidade e nas formas de ao e de luta dos grupos populares (Idem, p.38). Mas o livro mais importante de Paulo Freire sobre o professor e sua formao Pedagogia da autonomia, escrito logo aps a sua experincia como secretrio municipal de Educao de So Paulo (1989-91), sua grande experincia como administrador pblico5. Alis, h uma relao direta entre esse livro e a avaliao que estava fazendo, naquele momento, dessa sua ltima experincia como gestor pblico. Em Pedagogia da autonomia ele mostra o quanto a formao do professor importante para qualquer mudana educacional, sobretudo para a melhoria da qualidade do ensino. A qualidade da educao e do ensino foi um tema constante dos debates de Paulo Freire. Qualidade, para ele, era um conceito poltico. Como ele afirma em seu livro Poltica e educao exatamente porque no h uma qualidade substantiva, cujo perfil se ache universalmente feito, uma qualidade da qual se diga: esta a qualidade, temos que nos aproximar do conceito e nos indagar em torno de que qualidade estamos falando (Freire, 1993, p.42). Educao e qualidade so sempre uma questo poltica, fora de cuja reflexo, de cuja compreenso no nos possvel entender nem uma nem outra (Idem, p.43). A qualidade do ensino tambm se mede pela formao de um aluno crtico e politizado. Os neoliberais confundem qualidade com competitividade. Nos pases com grandes disparidades de renda como o Brasil, so os professores que financiam a expanso do ensino. Nesses pases, se5

Sobre Paulo Freire como administrador pblico existem vrios trabalhos publicados, entre eles os de Licnio C. Lima, Organizao escolar e a democracia radical : Paulo Freire e a governao democrtica da escola pblica e o de Carlos Alberto Torres, em parceria com Maria Del Pilar OCadiz e Pia Lindquist Wong: Educao e democracia: a prxis de Paulo Freire em So Paulo. Viviane Rosa Querubim est concluindo sua dissertao de mestrado na Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo com o ttulo: Um desafio que no poderia recusar: Paulo Freire como administrador pblico. Veja-se tambm a tese de doutorado de Rubens Barbosa de Camargo, Gesto democrtica e nova qualidade de ensino: o Conselho de Escola e o Projeto da Interdisciplinaridade nas Escolas Municipais da Cidade de So Paulo (1989-1992), defendida na Faculdade de Educao da Universidade de So Paulo em 1997.

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a escola ainda tem alguma qualidade devido a eles. A desprofissionalizao do professor o atinge como cidado. No livro Pedagogia da autonomia ele nos fala dos saberes necessrios prtica educativa, indicando uma dificuldade que ele havia encontrado na prefeitura de So Paulo na implementao de suas teorias educacionais, justamente a formao do professor. E no se tratava de qualquer formao, era uma formao baseada em princpios e valores que ele estava apresentando no livro. Em 1991 ele saiu da Secretaria saindo como quem fica, dizia ele, porque sua poltica iria continuar com o novo secretrio Mrio Srgio Cortella. Saa porque queria voltar a escrever. E estava motivado a escrever sobre a formao do professor, do educador. A escola pblica a escola da maioria, das periferias, dos cidados que s podem contar com ela. Nenhum pas do mundo se desenvolveu sem uma boa escola pblica. Nenhuma sociedade se desenvolveu sem incorporar a grande maioria dos seus cidados ao bem viver. A escola pblica do futuro, numa viso cidad freireana, tem por objetivo oferecer possibilidades concretas de libertao para todos. Ele entendia a escola pblica como escola pblica popular (grande mote de sua gesto), como escola cidad, definida por ele, mais tarde, como escola de companheirismo que vive a experincia tensa da democracia, como expresso concreta da escola pblica popular. A escola cidad o resultado de um movimento crescente de renovao educacional tal como o movimento da Escola Nova no final do sculo XIX, um movimento enraizado nas experincias das gestes populares e democrticas da escola6. Caracteriza-se pelo pluralismo de instituies e de projetos poltico-pedaggicos. dever da escola ser cidad e desenvolver na sociedade a capacidade de governar e controlar o desenvolvimento e o mercado. A cidadania precisa controlar o Estado e o6

O Movimento da Escola Cidad ganhou muita fora nos ltimos anos, inclusive no exterior. Veja-se sobre esse tema as obras de Jos Eustquio Romo (2000), de Paulo Roberto Padilha (2004) e de Jose Clovis de Azevedo (2007), e a numerosa literatura sobre as experincias de gesto municipal democrtica.

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Mercado, verdadeira alternativa ao capitalismo neoliberal e ao socialismo burocrtico e autoritrio (Gadotti, 2000, p.252). Na prefeitura de So Paulo, Paulo Freire defendeu a Escola Pblica Popular como escola autnoma, escola cidad, mas teve dificuldades na sua implementao, inclusive por divergncias na sua equipe e porque essa no era a concepo majoritria no Partido dos Trabalhadores, que havia conquistado o governo municipal. Penso que o subttulo do seu livro Pedagogia da autonomia, saberes necessrios prtica educativa, pode ser traduzido como: os saberes necessrios ao educador para a construo da escola autnoma, da escola cidad. Porque esses saberes referem-se a uma pedagogia da educao, como prtica da liberdade e da autonomia. Essa idia ele repetiu diversas vezes no Instituto Paulo Freire, fundado em 1991, que a partir de 1992 foi um dos espaos onde ele mais analisou e refletiu sobre os ltimos temas que o preocuparam, inclusive o tema da ecologia. Considero que o ttulo pedagogia da autonomia uma espcie de crtica ao que no conseguiu fazer na prefeitura de So Paulo e que, em 1997, ano em que a publicou, representava uma reinveno do que ele havia feito como secretrio. Isso em nada tira a importncia da sua obra como secretrio. A repercusso reinventada do que ele fez pode ser percebida em numerosas prefeituras que adotaram, posteriormente, as mesmas prioridades que a gesto dele em So Paulo. Na verdade ele se identificava muito com essas novas experincias de gesto que estavam retomando o que ele havia feito, sem copi-lo. Paulo sentia-se constrangido, s vezes, quando alguns seguidores repetiam mecanicamente o que havia escrito, dito ou feito. Ele era radicalmente contrrio aos repetidores de idias. Sempre retomava suas idias a partir do contexto onde se encontrava e, assim, nos deu exemplo de que no era um repetidor de suas prprias idias. Era coerente com elas, sem repeti-las. Da que, para mim, Pedagogia da autonomia representa no s seu ltimo livro, mas um dos mais importantes que ele escreveu. Sem dvida, o mais importante para a formao do professor e para o gestor pblico. Em sua ltima mensagem, ele nos chama a41

ateno para a importncia da formao do professor e para a autonomia da escola. Para ele, a autonomia uma conquista. No doao. A autonomia no distanciar as escolas de um padro nacional de qualidade. Ao contrrio, quanto maior for a autonomia da escola, maior ser a sua capacidade de chegar a esse padro. O que o professor precisa saber para ensinar? O professor precisa saber muitas coisas para ensinar. Mas, o mais importante no o que preciso saber para ensinar, mas como devemos ser para ensinar. O essencial no matar a criana que existe ainda dentro de ns. Mat-la seria uma forma de matar o aluno que est nossa frente. O aluno s aprender quando tiver um projeto de vida e sentir prazer no que est aprendendo. O aluno quer saber, mas nem sempre quer aprender o que lhes ensinado. Devemos aprender com a rebeldia do aluno, que um sinal de sua vitalidade, um sinal de sua inteligncia. Ela deve ser canalizada para a criatividade social e no para a violncia. O que ensinar nessa tica emancipadora? Educar sempre impregnar de sentido todos os Presena no atos da nossa vida cotidiana. mundo entender e transformar o a professora democrtica, mundo e a si mesmo. comcoerente, competente, que tespartilhar o mundo: compartitemunha seu gosto de vida, sua lhar mais do que conhecimenesperana no mundo melhor, que atesta sua capacidade de tos, idias... compartilhar o luta, seu respeito s diferenas, corao. Numa sociedade viosabe cada vez mais o valor que lenta como a nossa preciso tem para a modificao da realidade; a maneira consistente educar para o entendimento. com que vive sua presena no Educar tambm desequilimundo, de que sua experincia brar, duvidar, suspeitar, lutar, na escola apenas um momento, mas um momento importante tomar partido, estar presente que precisa ser autenticamente no mundo. vivido (Pedagogia da autonoEducar posicionar-se, mia, p.127). no se omitir. Para Paulo Freire42

no pode haver caminho mais tico, mais verdadeiramente democrtico do que testemunhar aos educandos como pensamos, as razes por que pensamos desta ou daquela forma, os nossos sonhos, os sonhos por que brigamos, mas, ao mesmo tempo, dando-lhes provas concretas, irrefutveis, de que respeitamos suas opes em oposio s nossas (Freire, 1993, p.38). A educao um lugar onde toda a nossa sociedade se interroga a respeito de si mesma, ela se debate e se busca. Como diz Hanna Arendt (2000, p.247), a educao o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele (...). A educao , tambm, onde decidimos se amamos nossas crianas o bastante para no expuls-las de nosso mundo e abandon-las a seus prprios recursos. Educar reproduzir ou transformar, repetir servilmente aquilo que foi, optar pela segurana do conformismo, pela fidelidade tradio, ou, ao contrrio, fazer frente ordem estabelecida e correr o risco da aventura; querer que o passado configure todo o futuro ou partir dele para construir outra coisa. Por tudo isso, ser professor um privilgio. No podemos imaginar um futuro sem ele. assim que entendo a preocupao de Paulo Freire em apontar os saberes necessrios prtica educativa crtica. Ele muito exigente em relao a esse profissional insubstituvel. Em Pedagogia da autonomia ele sustenta que, para ser professor, necessrio: rigorosidade metdica, pesquisa, respeito aos saberes dos educandos, criticidade, tica e esttica, corporificar as palavras pelo exemplo, assumir riscos, aceitar o novo, rejeitar qualquer forma de discriminao, reflexo crtica sobre a prtica, reconhecer e assumir a identidade cultural, ter conscincia do inacabamento, reconhecer-se como um ser condicionado, respeitar a autonomia do ser do educando, ter bom senso, ser humilde, tolerante, apreender a realidade, ser alegre e esperanoso, estar convicto de que mudar possvel, ser curioso, ser profissionalmente competente, ser generoso, comprometido, ser capaz de intervir no mundo. Ensinar exige liberdade e autoridade, tomada consciente de decises, exige saber escutar e reconhecer que a educao ideolgica, exige disponibilidade para o dilogo e, finalmente, exige querer bem aos educandos. E conclui falando da43

necessidade de uma formao continuada do professor na qual o momento fundamental o da reflexo crtica sobre a prtica. pensando criticamente a prtica de hoje ou de ontem que se pode melhorar a prxima prtica (Freire, 1997, p.44). Para Paulo Freire, um dos primeiros saberes o saber do futuro como um problema e no como inexorabilidade. o saber da Histria como possibilidade e no como determinao. O mundo no . O mundo est sendo (Freire, 1997, p.85). No se pode entender o pensamento pedaggico de Paulo Freire descolado de um projeto social e poltico. Por isso, no se pode ser freireano apenas cultivando suas idias. Isso exige, sobretudo, comprometer-se com a construo de um outro mundo possvel. Sua pedagogia sem fronteiras um convite para transformar o mundo. Essa afirmao de Paulo Freire tem tudo a ver com o lema do Frum Social Mundial: um outro mundo possvel. para construir esse outro mundo possvel que Paulo Freire props a sua pedagogia da luta. para isso que ensinamos e aprendemos: colocamos nosso saber disposio de uma causa. Os ensinamentos de Paulo Freire para a formao do professor no esto s em suas teorias. Ao contrrio, eles esto, de forma muito coerente, nas suas prticas. Veja-se, por exemplo, a sua preocupao em no promover a invaso cultural quando assessorou o governo de Guin-Bissau (Freire, 1977). Para Paulo Freire a alfabetizao deve ser significativa, e s significativa quando produo cultural e no reproduo cultural. O exemplo ele deu no livro escrito com Donaldo Macedo refletindo sobre a sua experincia em Guin-Bissau (Freire e Macedo, 1990). Analisando essa sua experincia na Guin-Bissau, ele reconhece que existiram certos traos populistas e critica o fato de no terem sido levados em conta os diferentes grupos tnicos. O seu projeto de alfabetizao no foi bem sucedido principalmente porque os diferentes grupos s falam a lngua local e no conseguiram aprender o portugus, lngua oficial, e quando a aprendiam no a usavam, regredindo ao analfabetismo.44

Paulo Freire insistiu num programa de ps-alfabetizao para dar continuidade formao inicial. Reconheceu que as dificuldades eram imensas para o projeto de uma alfabetizao bilnge. Mas afirmava que a experincia lhe ofereceu muitas lies. Uma alfabetizao emancipadora no poderia continuar com a invaso cultural portuguesa e eurocntrica. Se a colonizao visava desafricanizao (Freire, 1977, p.125), a nova educao deveria reafricanizar a cultura. Reafricanizar significava, para Freire, descolonizar as mentes dos colonizados. O portugus precisava ser ensinado j que era a nica lngua comum, escrita, falada e impressa. Mas no se poderia esquecer que essa lngua fora a lngua do colonizador. Paulo Freire no era populista ou basista, para renunciar lngua portuguesa. Ele tentava ressignificar o ensino da lngua portuguesa em Guin-Bissau ao mesmo tempo em que insistia na alfabetizao tambm na lngua do povo. Afinal, dizia ele, por meio dela que o alfabetizando nomeia o prprio mundo. Paulo Freire sustentava que para que houvesse uma nova sociedade era preciso uma nova escola, alicerada numa nova prxis educativa. Para que isso se desse, insistia na necessidade de uma reflexo sobre os mtodos utilizados pelas escolas dos colonizadores. Para transformar as estruturas sociais dominantes preciso primeiro conhec-las. Freire havia trabalhado em Guin-Bissau com a equipe do Idac (Instituto de Ao Cultural), do qual foi um dos fundadores, em parceria com o Departamento de Educao do Conselho Mundial de Igrejas, ambos com sede em Genebra. Freire no se colocava como um especialista neutro. A experincia de alfabetizao, iniciada quatro anos antes, integrava um grande processo de reconstruo nacional, logo aps a conturbada independncia decretada dia 24 de setembro de 1973 e s reconhecida por Portugal um ano depois, dia 10 de setembro de 1974. A educao era uma parte do processo de mudana pelo qual o pas estava passando. Paulo Freire havia sido convidado por Amlcar Cabral, assassinado logo aps a independncia de Guin-Bissau, por quem tinha uma enorme admirao, seja como intelectual, seja como militante. Amlcar havia liderado o Paigc (Partido para Independncia de Guin e Cabo45

Verde). As cartas do livro eram endereadas aos membros da Comisso de Alfabetizao e, particularmente, a Mrio Cabral, ento Comissrio de Estado para a Educao e a Cultura de Guin-Bissau. A luta pela libertao desenvolveu no povo a capacidade de fazer sua prpria histria. Paulo Freire no foi a Guin com nenhuma receita pedaggica, sendo coerente com aquilo que escreveu: a ajuda verdadeira aquela em que os que nela se envolvem se engajam mutuamente, crescendo juntos no esforo comum de conhecer a realidade que buscam transformar (Freire, 1977, p.16). Juntos elaboraram o programa nacional de alfabetizao e a poltica educacional do novo governo. O povo precisa reinventar a sua sociedade e a educao deveria integrar esse grande projeto histricosocial. Seria impensvel reproduzir a educao dos colonizadores. A ajuda verdadeira aquela na qual os envolvidos se ajudam mutuamente no esforo comum de conhecer a realidade opressora que desejam modificar. A questo de fundo, afirma Freire numa de suas cartas, no est em apenas substituir um velho programa adequado aos interesses do colonizador por um novo, mas estabelecer a coerncia entre a sociedade reconstruindo-se revolucionariamente e a educao como um todo que a ela deve servir. E a teoria do conhecimento que esta deve pr em prtica implica num mtodo de conhecer antagnico ao da educao colonial (Idem, p.123). Toda a obra de Paulo Freire perpassada pela preocupao com a contextualizao. Conhecimento uma informao contextualizada. No h saber sem referncia a um contexto. Por isso a sua insistncia na formao crtica do professor. Da a sua preocupao, por exemplo, com o processo crescente de globalizao na dcada de 90, e suas incidncias na vida cotidiana. A globalizao capitalista era uma preocupao constante nas ltimas falas de Paulo Freire. No quadro a seguir destaco uma anlise crtica desse tema que ele fez em seu ltimo livro.Fala-se, porm, da globalizao da economia como um momento necessrio da economia mundial a que, por isso mesmo, no possvel escapar. Universaliza-se um dado do sistema capitalista e um instante da vida produtiva de certas economias capitalistas hege46

mnicas como se o Brasil, o Mxico, a Argentina devessem participar da globalizao da economia da mesma forma que os Estados Unidos, a Alemanha, o Japo. Pega-se o trem no meio do caminho e no se discutem as condies anteriores e atuais das diferentes economias. Nivelam-se os patamares de deveres entre as distintas economias sem se considerarem as distncias que separam os direitos dos fortes e o seu poder de usufru-los e a fraqueza dos dbeis para exercer os seus direitos. Se a globalizao implica superao de fronteiras, a abertura sem restries do livre comrcio, acaba-se ento quem no puder resistir. No se indaga, por exemplo, se em momentos anteriores da produo capitalista nas sociedades que lideram a globalizao hoje elas eram to radicais na abertura que consideram agora uma condio indispensvel ao livre comrcio. Exigem, no momento, dos outros, o que no fizeram consigo mesmas. Uma das eficcias de sua ideologia fatalista convencer os prejudicados das economias submetidas de que a realidade assim mesmo, de que no h nada a fazer, mas seguir a ordem natural dos fatos, pois como algo natural ou quase natural que a ideologia neoliberal se esfora por nos fazer entender a globalizao e no como uma produo histrica. (Freire, 1997, p.143-4)

O impacto da globalizao na educao foi analisado por muitos especialistas. Entre eles Martin Carnoy, da Universidade de Stanford (EUA) e um grande amigo de Paulo Freire. Ele utiliza o termo mundializao (como os franceses) para designar o fenmeno da globalizao. Segundo Martin Carnoy, dois dos fundamentos essenciais da mundializao so a informao e a inovao (...). A circulao macia de capitais, atualmente, operantes, se baseia na informao, comunicao e saber relativamente aos mercados mundiais. E como o saber altamente transfervel presta-se facilmente mundializao (...). A mundializao exerce um profundo impacto sobre a educao em planos bastante diferentes e, no futuro, esse fenmeno ser tanto mais perceptvel quanto mais plenamente for apreendido pelas naes, regies e localidades o4

papel fundamental das instituies educativas, no somente para transmitir os conhecimentos necessrios economia mundial, mas tambm para reinserir os indivduos em novas sociedades construdas em torno da informao e do saber (Carnoy, 2002, p.22-3). A globalizao como processo algo que vem desde a antiguidade. O que ns observamos hoje a globalizao de um modelo de sociedade, o capitalista. J tivemos outros processos de globalizao: a helenizao, a romanizao, a evangelizao, a misso civilizadora da colonizao e hoje o mercado global. Walter Mignolo (2003) distingue nos ltimos 500 anos quatro momentos desse processo recente: Cristandade, Misso Civilizadora, Desenvolvimento e Mercado Global. Segundo ele, cada momento corresponde a um projeto global especfico e, certamente, inaugura diferentes histrias locais que respondem aos mesmos projetos globais (Mignolo, 2003, p.377). Carnoy refere-se sobretudo globalizao como fenmeno provocado pela expanso dos meios de comunicao e das novas tecnologias da informao. Sem dvida, h muitas conseqncias positivas do avano tecnolgico, mas a tecnologia, por si s, no libertadora. A globalizao capitalista neoliberal (globalismo) trabalha com a noo de governo (aparatos administrativos) separada da noo de estado. O estado, alm do governo, tem uma dimenso simblica que inclui a noo de cidadania. O estado no apenas financia a educao, mas tambm constri valores, sentidos (direitos, cidadania...). Para o globalismo, o cidado reconhecido apenas como cliente, como consumidor, que tem uma liberdade de escolha entre diferentes produtos. O cidado precisa apenas ser bem informado para escolher. Por isso ele precisa saber do ranking das principais escolas, as melhores. Esse cidado no precisa ser emancipado. Precisa apenas saber escolher (Friedman, 1982). O argumento bsico do modelo neoliberal est na justificativa de que o nico modelo eficaz diante do fracasso das economias socialistas e do estado de bem-estar. Isso impe a necessidade de adequar a educao s exigncias da sociedade de mercado (argumentam que o sistema educativo est em crise porque no est adequado globali48

zao capitalista que considera a escola como uma empresa que precisa se submeter lgica da rentabilidade e da eficincia), principalmente os contedos, a avaliao, a gesto da educao, pois eles so atrasados, no respondendo s novas exigncias do mercado. Contra essa ofensiva neoliberal no campo da educao o Frum Mundial de Educao aprovou, em sua quinta edio, realizada em Nairbi (Qunia), no final de janeiro de 2007, uma Plataforma Mundial em defesa do direito educao pblica e contra a mercantilizao da educao. Nesse contexto, o Frum Mundial de Educao representa uma fora real de resistncia s ameaas das polticas neoliberais e, ao mesmo tempo, uma esperana de construo da educao necessria para um outro mundo possvel.

plataforma do Frum mundial de educao1. Lutar pela universalizao do direito educao pblica com todas e todos os habitantes do planeta, como direito social e humano de aprender, indissocivel de outros direitos, e como dever do estado, vinculando a luta pela educao agenda de lutas de todos os movimentos e organismos envolvidos na construo do processo do FME e do FSM; 2. Difundir uma concepo emancipadora da educao, que respeita e convive com a diferena e a semelhana, popular e democrtica, centrada na vida, associada cultura da justia, da paz e da sustentabilidade no mundo; 3. Garantir o acesso educao e o uso da riqueza socialmente produzida, com prioridade aos oprimidos, silenciados, explorados e marginalizados do mundo; 4. Promover o controle social do financiamento da educao e a desmercantilizao da educao; 5. Exigir dos governos e organismos internacionais o cumprimento da prioridade que do educao em suas declaraes, mas no em sua prtica.

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a vida como foco central da prtica docente

O

s livros de Paulo Freire so autobiogrficos. Eles podem ser considerados como uma autobiografia intelectual constantemente revisitada. Esse estilo freireano encontra-se desde os seus primeiros escritos. Sua primeira obra Educao e atualidade brasileira. Ela o resultado de dez anos de trabalho, pesquisa e reflexo no Sesi, em Recife. Trata-se de sua tese de concurso para a cadeira de Histria e Filosofia da Educao da Escola de Belas Artes de Recife, escrita em 1959 e s publicada em 2001, depois que eu e Jos Eustquio Romo fizemos, por recomendao sua, uma contextualizao. Paulo no queria que a sua tese fosse simplesmente reproduzida. Ele mesmo j havia reescrito grande parte dela ao publicar seu primeiro livro, A educao como prtica da liberdade, em 1967. Ele no queria que, novamente, fosse criticado pelas esquerdas que o consideravam ingnuo por acreditar demais nas virtudes revolucionrias da democracia, mesmo entendendo que democracia no se confunde com escolher, eleger, pessoas ou governantes, mas ter a possibilidade de construir um projeto poltico com liberdade. Ele no queria que fosse considerado como um idealista: ocorreu comigo uma longa e lenta evoluo. Apesar disso superficial51

criticar meu trabalho denunciando os elementos idealistas de meus livros sem considerar estes a partir da linguagem do povo, dos valores do povo, de sua concepo de mundo. necessrio perceb-lo como um elemento prenunciador de minha nova posio (apud Beisiegel, 1989, p.22). Paulo Freire afirmava que a nossa inexperincia democrtica, um dado da nossa atualidade, era uma conseqncia da nossa colonizao. No livro Educao e atualidade brasileira ele afirma que centralismo, verbalismo, antidialogao, autoritarismo assistencializao so manifestaes de nossa inexperincia democrtica, conformada em atitudes ou disposies mentais, constituindo, tudo isso, um dos dados da nossa atualidade (...). O sentido marcante de nossa colonizao, fortemente predatria, base da explorao econmica do grande domnio, em que o poder do senhor se alongava das terras s gentes tambm, e do trabalho escravo, inicialmente do nativo e posteriormente do africano, no teria criado condies necessrias ao desenvolvimento de uma mentalidade permevel, flexvel, caracterstica do clima cultural democrtico, no homem brasileiro (Freire, 2001, p.13 e 61). Para ele a cultura do silncio era a marca da colonizao. Era necessria uma educao que superasse posturas passivas e antidialgicas, transitando da heteronomia para a autonomia e a participao ativa. Essa educao democratizante transcende o ambiente escolar formal necessitando envolver a comunidade nessa tarefa. S participamos do que nos pertence. O sentido de afiliao, de pertencimento pr-condio da participao. Aquilo que no interessa s classes dominantes s se conquista quando as classes subordinadas estiverem organizadas e mobilizadas: a luta faz a lei. Em Educao e atualidade brasileira, ele defende a necessria organicidade entre educao e contexto histrico. Uma educao emancipadora deve ser uma educao crtica, uma educao que faz uma leitura crtica do mundo vivido. Fazendo a anlise da realidade daquele poca, o jovem educador Paulo Freire afirma que o ser humano no vive autenticamente se no estiver integrado criticamente ao seu meio: um dos aspectos mais importantes do nosso agir educativo, na fase atual de nossa histria, ser, sem dvida, o de trabalhar no sentido de formar o homem brasileiro, um52

especial senso, que chamamos de senso de perspectiva histrica. Quanto mais se desenvolva esse senso, tanto mais crescer no homem nacional o significado de sua insero no processo de que se sentir, ento, participante, e no mero espectador (apud Beisiegel, 1989, p.20). Um exemplo ainda mais claro dessas narrativas autobiogrficas e da necessidade que tinha de contextualizar o que escrevia est no seu livro Cartas a Cristina: reflexes sobre minha vida e minha prxis. Nesse livro ele conta que sua sobrinha (Cristina) lhe fez um pedido: gostaria de que voc me fosse escrevendo cartas falando algo de sua vida mesma, de sua infncia e, aos poucos, dizendo das idas e vindas em que voc foi se tornando o educador que est sendo. Foi a partir desse pedido da sobrinha Cristina, durante o exlio, que ele resolveu, ento, escrever esse livro. Cartas a Cristina um livro de memrias. A encontramos o relato de Paulo Freire lembrando de sua infncia e adolescncia, relacionando narrativa histrica autobiogrfica e conceitos educacionais. Ele mostra, por exemplo, como da experincia da vida difcil, vivida em Jaboato (PE), o jovem adolescente Paulo Freire tirava lies: Jaboato ia se dando a ns como um novo mundo, bem mais vasto do que o em que ns experimentramos at ento, o do quintal de nossa casa do Recife. Um mundo cheio de verde de cana-de-acar, do cheiro de seu caldo, do cheiro do melado dos engenhos (...). Mas um mundo tambm em que a explorao e a misria iam se revelando a ns em seu dramtico realismo. a que se encontram as mais remotas razes da minha radicalidade (Freire, 1994, p.98). Logo depois Paulo lembra que a morte de seu pai agravou a situao financeira da sua famlia: ao lado do vazio afetivo que a morte de meu pai nos deixou, seu desaparecimento significou tambm o agravamento de nossa situao. De um lado, a ausncia do chefe de famlia; de outro, a diminuio drstica na parca aposentadoria que meu pai recebia, reduzida penso que a minha me passou a receber como sua viva (Idem, p.107). Ele nos diz que faltava dinheiro, mas, mesmo assim, freqentava livrarias em Recife e acabava comprando livros que gostava de ler. nesse livro que ele fala dos autores que gostava de ler como professor de por53

tugus: Ea de Queiroz, Jos Lins do Rego, Graciliano Ramos, Gilberto Freyre, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, entre outros. Nesse livro, vida e obra se entrelaam. Diz que foi obrigado a ler Marx para entender o mundo. No foi o contrrio: no leu primeiro Marx para, depois, entender o mundo. A realidade o levou a ler Marx. Os temas que perseguir durante toda sua vida nasceram no jovem Freire: a mutabilidade do mundo (Idem, p.199), o papel da democracia na mutabilidade do mundo, o gosto da liberdade e a vocao humana a ser mais: que o gosto da liberdade faz parte da natureza mesma de mulheres e homens, faz parte de sua vocao para ser mais (Idem, p.198). Mas uma vocao condicionada pela realidade histrica, econmica, social e poltico-cultural, conclui ele. Esta no um dado, um destino certo. Por isso que viver a vocao implica lutar por ela, sem a qual ela no se concretiza. neste sentido que a liberdade no presente que recebemos, mas o direito que ora conquistamos, ora preservamos, ora aprimoramos, ora perdemos (Idem, p.199). Paulo Freire era uma pessoa inquieta, em incessante busca, procurando entender. Antes de falar, seja qual fosse o lugar onde falava em suas palestras, sempre aguardadas e apreciadas, ele procura informar-se sobre o contexto no qual ele ia falar. Quase sempre iniciava a palestra a partir de um dado novo da realidade apreendido poucos antes. Como ele afirma em Cartas a Cristina o gosto da liberdade, o amor vida, que me faz temer perd-la, o amor vida, que me situa num permanente movimento de busca, de incessante procura do ser mais, como possibilidade, jamais como sina ou fado, constituem ou vieram constituindo social e historicamente a natureza humana. Uma das coisas, se no a que mais me agrada, por ser gente, saber que a histria que me faz e de cuja leitura participo, um tempo de possibilidade, e no de determinismo. por isso que, responsvel em face da possibilidade de ser e do risco de no ser, minha luta ganha sentido. Na medida que o futuro problemtico, e no inexorvel, a prxis humana ao e reflexo implica deciso, ruptura, escolha (Freire, 1994, p.213). Paulo Freire insistia que somos seres incompletos, inacabados, in54

conclusos. Por isso estamos sempre aprendendo e passando por novas experincias que vo tambm interferindo na forma como vemos o mundo. Isso ele deixa claro num instigante dilogo com o educador norte-americano Myles Horton, transformado num livro: O caminho se faz caminhando: conversas sobre educao e mudana (2003). Esse livro o resultado de uma conversa entre os dois educadores num encontro de troca de experincias e idias sobre educao radical e escolas democrticas. Para eles, a educao deve ser libertadora e participativa, buscando a criao de uma nova sociedade. O tema central do livro a mudana. Minhas idias, diz Myles Horton, mudaram e mudam constantemente e devem mudar; estou to orgulhoso de minhas inconsistncias como de minhas consistncias (Freire e Hortom, 2003, p.42). Paulo Freire acrescenta que isso faz parte da prpria existncia incompleta: uma das melhores maneiras para a gente trabalhar como seres humanos no s saber que somos seres incompletos, mas tambm assumir essa incompletude. Existe pouca difeProfessor rena entre saber intelectualmente que pesquisador estamos incompletos e assumir a naFala-se hoje, com intureza de ser incompleto. No somos sistncia, no professor completos. Temos que nos inserir em pesquisador. No meu entender o que h de pesum processo permanente de busca. quisador no professor Sem isso, morreramos em vida. O no uma qualidade ou que significa que manter a curiosidauma forma de ser ou de atuar que se acrescente de absolutamente indispensvel para de ensinar. Faz parte que continuemos a ser ou a vir a ser da natureza da prtica (Idem, p.43). docente a indagao, a busca, a pesquisa. O de A docncia uma atividade baque se precisa que, seada em perguntas. Por isso no em sua formao peruma atividade rotineira. Cada dia manente, o professor se perceba e se assuma, uma surpresa. Cada dia o ser humano porque professor, como diferente. No entramos duas vezes pesquisador. (Pedagogia da autonomia, p.32) na mesma classe, como diria Herclito. Eu mudei e a minha sala de aula55

mudou. Por isso, a docncia , tambm, uma atividade fascinante. uma atividade de reencantamento permanente. Hugo Assmann, um dos primeiros bigrafos de Paulo Freire, afirma que o reencantamento da educao requer a unio entre sensibilidade social e eficincia pedaggica. Portanto, o compromisso tico-poltico do/a educador/a deve manifestar-se primordialmente na excelncia pedaggica e na colaborao para um clima esperanador no prprio contexto escolar (2001, p.34). Na docncia ser e saber so indissociveis. Nossa tradio clssica da educao, porm, evita, a todo custo, conectar nossos afetos com a nossa razo. Paulo Freire, ao contrrio, defendia uma razo encharcada de emoo. Insistia muito nesse ponto. A educao no deve ser um processo de formao de cidados teis ao estado, ao mercado ou sociedade. A educao responde pela criao da liberdade de cada ser, consciente, sensvel, responsvel, onde razo e emoo esto em equilbrio e interao constante. Plato foi um dos primeiros filsofos a colocar a relao entre a razo e a emoo em termos opostos. Para ele o ser humano precisava libertarse das paixes e dos prazeres. Descartes tambm sobrevalorizou a razo ao coloc-la como base da existncia: penso, logo existo. Immanuel Kant idem. Este radicalizou. Para ele, as paixes so consideradas como uma enfermidade: quanto mais apaixonados, mais infelizes, quanto mais cultivo a razo mais feliz eu me torno, sustentava ele. Felicidade e razo no convivem juntas. Para ele, a construo do conhecimento deveria percorrer um caminho de muita infelicidade e sofrimento. Exageros parte, se a razo e a emoo nos acompanham ao longo de toda a vida, elas devem conviver pacificamente na construo do conhecimento. Deve existir alguma forma de faz-las trabalhar juntas. E poderamos, ento, nos perguntar: o afeto, o sentimento, pode contribuir na formao das estruturas cognitivas de uma criana? Para o psiclogo francs Henri Wallon a resposta sim: a emoo a fonte do conhecimento. A afetividade pode acelerar ou retardar o desenvolvimento intelectual, embora no seja a causa da formao das estruturas cognitivas de uma criana. A afetividade no condio suficiente na56

formao de tais estruturas. Elas so independentes do afeto, mas essa independncia no significa que estejam separadas. Tanto Jean Piaget quanto Henri Wallon admitem a necessidade de superar a dicotomia entre razo e emoo. Eles sublinham a importncia do papel da afetividade na construo de conhecimentos. Todo conhecimento sempre um conhecimento congitivo-afetivo. No existe um conhecimento puramente afetivo ou puramente cognitivo. Quem produz conhecimento um ser humano, um ser de racionalidade e de afetividade. Nenhuma dessas caractersticas superior outra. sempre um sujeito que constri categorias de pensamento atravs de suas experincias com o outro, num determinado contexto, num determinado momento. O aspecto afetivo nesta construo continua sempre (Fernndez, 1990). Segundo Edgar Morin (2000, p.59), o desenvolvimento da inteligncia, do conhecimento e da percepo inseparvel do mundo da afetividade, da paixo, da curiosidade, tornando-se estas verdadeiras alavancas para as pesquisas filosficas e cientficas. O cientista objetivo, srio e calculista tambm um ser de sonhos, fantasias, impulsos e desejos. Uma razo onipotente gera uma escola burocrtica e racionalista, incapaz de compreender o mundo da vida e o ser humano em sua totalidade. uma escola dogmtica e morta. preciso compreender os processos cognitivos como processos vitais na medida em que o intelecto e a sensibilidade so inseparveis. Como diz Humberto Maturana, se queremos compreender qualquer atividade humana devemos atentar para a emoo que define o domnio de ae