0 Conceito de Idade Média - Le Goff - Parte III

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JACQUES L GOFF

PARA UM NOVO CONCEITO DE IDADE MDIATempo, Trabalho e Cultura no Ocidente

1980 Editorial Estampa Lisboa

mCULTURA ERUDITA E CULTURA POPULAR' / i

CULTURA CLERICAL E TRADIES FOLCLRICAS NA CIVILIZAO MEROVNGIA

Todos os historiadores do cristianismo medieval conhecem o fenmeno da presso das representaes populares sobre a religio dos eruditos. As suas primeiras manifestaes remontavam, verosimilmeate, a muito tempo atrs. Ser admissvel pr o problema da decadncia da civilizao intelectual antiga sem perguntarmos a ns prprios se essa cultura, nascida nas sociedades muito especficas de algumas cidadezinhas helnicas, adoptada em seguida e adaptada pela oligarquia romana, no estaria, antecipadamente, condenada a estranhas deformaes, a partir do momento em que, embora ainda limitada a uma elite, mas a uma elite doravante espalhada pelo vasto mundo, ela ficou, de boa ou m vontade, em contacto com as multides impregnadas de todas as outras tradies mentais? (Marc Bloch, Annales d'Histoire sociale, 1939, p. 186). O desejo de relacionar os grupos ou os meios sociais com os nveis de cultura no momento da passagem da Antigidade para a Idade Mdia. no Ocidente, no novo. Sem voltar muito atrs, devemos lembrar o clebre artigo de Ferdinand Lot Em que altura se deixou de falar latim? C1) citado tambm, mais tarde, por Dag Norberg ('). Sinto-me incapaz de seguir estes dois autores eruditos no campo filotgico em que se colocaram. Mas, se verdade que admiro muito as observaes pertinentes que enchem os seus artigos, se lhes estou reconhecido por haverem baseado o seu estudo lingstico na anlise mais ampla das condies sociais, creio que o essencial, para o nosso debate, no est a. Sem dvida que a utensilagem lingstica faz parte, a nvel fundamental, da utnsilagem mental e intelectual e encontra-se pois includa no contexto social, que marca profundamente a segunda. Mas, do ponto de

O Cfr. Bibliografia, n.' 25. O Cfr. Bibliografia, n. 33.207

vista central da comunicao cultural, pelo menos cm relao aos sculos V e VI, Dag Norberg parece-me ter razo contra Ferdinand Lot: Do ponto de vista social nfio havia na poca duas lnguas, mas sim diversas formas da mesma lngua, de acordo com os diferentes meios da sociedade. O A nvel lingstico, pois, o povo e a aristocracia entendem-se com esta importante reserva: onde falarem latim. Ora se o clero fala, por todo o lado, o latim, os laicos continuam, muitas vezes, a falar as lnguas brbaras quer se trate das lnguas vulgares de populaes que h muito entraram na rea poltica e cultural romana ou das lnguas dos Brbaros propriamente ditos, imigrantes ou invasores recentemente instalados nos limites do Imprio Romano. No primeiro caso, tratava-se sobretudo de camponeses que haviam conservado as suas lnguas tradicionais copta, siraco, trcio, celta, berbere , como lembrou A. R M. Jones num notvel estudo ('). Para nos limitarmos ao Ocidente, a persistncia das linguagens clticas atestada por diversas fontes, nomeadamente por S. Jernimo (') e por Sulpcio Severo (*) No que respeita aos recm-vindos, a permanncia da utilizao dos diakctos germnicos encontra-se em toda a sociedade. H nitidamente uma certa romanizao dos Brbaros, embora seja muito limitada (T). Assistimos assim afirmao de dois fenmenos essenciais: a emergncia da massa camponesa como grupo de presso cultural (') e a indiferenciao cultural crescente com algumas excepcdes individuais ouO Loc. c//., p. 350. O The social bactground of the struggle between paganisra and christianity em Momigliano (Cfr. Bibliographie, n.* 47). O Comm. in Ep. Gol. IL (') Dialogi, L, 27. O Os condes, os salones enviados em misso junto dos funcionrios romanos, conheciam necessariamente algumas frases latinas, aquilo que com certeza sabe qualquer oficial ou ate qualquer soldado, num pas ocupado (P. PJch, Bibliographie, n." 37, p. 101). verdade que alguns aristocratas, brbaros se romanizaram bastante rapidamente. Mas bem evidente que s pode tratar-se de uma minoria, tendo a massa dos Brbaros conservado os seus costumes prprios (ibid., p. 102). C) Trata-se de um fenmeno diferente daquele que se produziu nos incios da cultura romana. Ali, o fundo rural impregnou para sempre uma cultura que se urbanizava e dilatava continuamente (cfr. por exemplo W. E. Heitland, Agrcola, Cambridge, 1921; e as notas de J. Marouzeau sobre o latim como lngua de camponeses, em Lexique de terminologie linguistiqite, 2* ed., 1943). Aqui, o campons, evacuado e mantido afastado do universo cultural (cfr. J. L Goff, Ls paysans et l monde rural dans Ia littrature du haut Moyen Age (V-VT sicle), em Agrcollura e mondo rurale in Occidente neWato medoevo. Settmane di studio dei Centro italiano di studi sulTalto medioevo. XIII. Espoleto. 1965 [19661. pp. 723-741) faz pesar sobre esta cultura uma ameaa que obriga os clrigos a promoverem um movimento inverso, de cima para baixo, lanado do leste.208

locais de todas as camadas sociais laicas face ao clero que monopoliza todas as formas evoludas, e nomeadamente escritas, de cultura. O peso da ma^ camponesa c o\ monoplio clerical so as duas formas essenciais que agem sobre as relaes entre os meios sociais e os nveis de cultura na Alta Idade Mdia. O melhor terreno para estudar estas relaes no me parece ser o da lngua mas sim mais amplo e mais profundoo da utensilagem intelectual e mental. Par melhor se compreender o papel dos suportes sociais da cultura na Alta Idade Mdia, devemos recordar a evoluo das infra-estruturas que, no sculo IV, leva bruscamente o cristianismo ao primeiro plano da cena histrica. A. H. M. Jones (') mostroa que a difuso do cristianismo no mundo romano do sculo IV no era um facto meramente poltico ou espiritual conseqncia da converso de Constantino e do zelo missionrio dos cristos, a partir de ento mantidos pelos poderes pblicos. Em princpios do scuo IV, o cristianismo estava sobretudo difundido nas classes urbanas mdias e inferiores, enquanto quase no atingia as massas camponesas e a aristocracia. Ora a contraco econmica e o desenvolvimento da burocracia conduzem promoo destas tniddle and lower urban classes, onde o cristianismo era j forte. Essa promoo leva expanso crist. Mas quando o triunfo do cristianismo se torna evidente, as classes que o guiaram esto em franco recuo. O cristianismo escapa ao desmoronar das superstruturas frgeis do Baixo Imprio, separando-se das classes1 que lhe garantiram o xito e que a evoluo histrica fez desaparecer. A transformao social da aristocracia, depois das massas camponesas, implanta o cristianismo, mas custa de muitas distorses, particularmente sensveis no domnio da cultura. Entre um clero cada vez mais colonizado por uma aristocracia formada pela paidela greco-romana O e um laicado de predomnio rural, que o recuo do paganismo oficial torna mais vulnervel s presses de uma cultura primiva renascente, a religio crist, introduzida por categorias sociais urbanas moribundas, conseguir definir-se numa cultura comum, atravs de um jogo subtil de aculturaes internas? (u)

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(*) Loc. cit., n.8 6. (") Cfr. a obra clssica de H. L Marrou, Bibliografia, n.* 30; e para os fundamentos gregos da cultura greco-romana; W. aeger, faideia, The Ideais of Great culture, I-IU, Oxford, 1936-1945. (") Sobre a problemtica da aculturao, o relatrio de referncia o de A. Dupront, De 1'acculturation, em Comit internatoru dericiences historiques, XII" Congrs intemational ds sciences historiques (Viena, 1965). Partes da obra: I. Grandes temas (1965), pp. 7-36. Traduzido para italiano com adies em: L'acculturazione. Per un nuovo rapporto tra ricerca sorica e scienze umane (Turim, 1966). Os problemas de aculturao interna nascidos da coexistncia de nveis e de conjuntos culturais distintos dentro de uma mesma rea tnica constituem um domnio particular e particularmente importante da aculturao.209

- I As caractersticas fundamentais da histria da cultura ocidental, desde o sculo V ao sculo VIU, podem definir-se assim: a) A laminagem das class*'5 mdias encontra-se no domnio da cultura onde o fosso se alarga entre a massa inculta e uma elite cultivada; b) Mas a clivagem cultural no coincide com a estratificao social, porque a cultura intelectual se torna o monoplio da Igreja. Mesmo que haia~~grandes diferenas de grau de cultura entre os clrigos, a natureza da sua cultura a mesma e a linha essencial de separao a que separa os clrigos dos laicos; c) A cultura eclesistica, quaisquer que sejam as respostas individuais ou colectivas dos clrigos ao problema da atitude a adoptar para com o contedo da cultura profana paga, utiliza a utensilagem intelectual desenvolvida, do sculo IH ao sculo V, por autores didcticos que sistematizam, a nvel simplificado e medocre, a herana metodolgica e cientifica da cultura greco-romana ("). Desta utensilagem intelectual, o essencial , provavelmente, o quadro das artes liberais e Marciano Capella, o autor mais importante (De nuptiis Philologiae ei Mercur, primeira metade do sculo V) ("-). Seria importante possuir um perfeito conhecimento global desta primeira camada de fundadores da Idade Mdia, por vezes ainda pagos, como o caso de Macrbio ("); d) Os chefes eclesisticos recebem tanto mais facilmente esta formao intelectual quanto, sobretudo no sculo V e no sculo VI a grande maioria pertence s aristocracias indgeno-romanas. Mas os prelados brbaros, os bispos e os abades de origem brbara que fizeram carreira, adoptam muito bem este tipo de cultura, porquanto a sua aquisio , precisamente, um dos melhores meios de assimilao e de ascenso sociais. O tipo hagiogrfico do santo bispo comporta, em geral, uma origem ilustre e, quase sempre antes ou depois da converso, a formao das artes liberais (o que aconteceu com Paulino de Milo na Vita A mbrosii, em 422; com Constando de Lyon na Vita Germani, por volta de 470-480, e com outros); e) A despeito da tendncia para a regionalizao, esta. cultura eclesistica tem, mais ou menos por todo o lado, a mesma estrutura e .o mesmo nvel (cfr. dois exemplos, entre os mais opostos: Isidoro de Sevilha e a cultura visigtica no princpio do sculo VII, a cultura monstica (") Por exemplo, o essencial dos conhecimentos etnogrficos que a cultura greco-latina legar ao Ocidente medieval vir das Colletanea rerum memorabilium, medocre compilao de Solinus, no sculo III (edL Mommsen, 2.* ed., Berlim, 1895). (") Cfr. W. H. Stahl, To a better understanding of Martianus Capella, em Specidum, XL, 1965. C*) Foi a Macrbio que os clrigos da Idade Mdia tardiamente foram buscar, por exemplo, a tipologia dos sonhos to importante numa civilizao em que o universo onrico tem um lugar to vasto: cfr. L. Deu* bner, De Incubaione, Giessen, 1899.

irlandesa de Yns Pyr na poca de Eltud, na primeira metade do sculo VI, segundo a Vita Samsonis) ("); /) Perante esta cultura eclesistica, a cultura laica manifesta uma regresso muito mais acentuada, iniciada desde o sculo II, reforada pela desorganizao material e mental que se tornou catastrfica com as invases e a fuso dos elementos brbaros com as sociedades indgeno-romanas. Esta regresso cultural manifestou-se, sobretudo, com ressurgncias de tcnicas, de mentalidades, de crenas tradicionais. O que a .cultura eclesistica encontrou na sua frente foi, mais que uma cultura paga do mesmo nvel e do mesmo tipo de organizao, depressa vencida, a despeito das ltimas convulses do princpio do sculo V, uma cultura primitiva de cariz mais guerreiro nos Brbaros (em especial na camada superior: cfr. o mobilirio funerrio) C1*), de caracter sobretudo campons no conjunto das camadas inferiores ruralzadas. II Pondo, pois, de lado o testemunho dos documentos arqueolgicos, podemos tentar definir as relaes entre estes dois nveis de cultura atravs das relaes entre cultura clerical e folclore. O facto deste esboo se fundar em documentos pertencentes cultura eclesistica escrita (em especial vidas de santos e obras pastorais, tais como os Sermes de Cesrio d1 Artes, o De correctione rusicorum de Martinho de Braga, os Dialogi de Gregrio, o Grande, os textos dos snodos e conclios e os penitenciais irlandeses), arrisca-se a falsear, se no a objectivdade, pelo menos as perspectivas. Mas no se procura, aqui, estudar a resistncia da cultura folclrica e as diversas formas que ela pode tomar (resistncia passiva, contaminao da cultura eclesistica, ligao com movimentos polticos, sociais e religiosos, revoltas camponesas, arianismo (*), prisciUanismo (**), pelagianismo (***), etc.)- Conten(") A Vita Samsonis foi submetida rgida crtica do seu editor R. Fawtier (Paris, 1912). Mas, mesmo que as adies e os acrescentamentos posteriores tenham sido importantes no texto que nos chegou, os historiadores do monaquismo irlands tendem a considerar a cultura liberal dos abades irlandeses (Santo Iltud ou S. Cadoc pertencem ao mesmo grupo de Samson) como uma realidade e no como uma fico carolingia (cfr. P. Rich, op, cit., p. 357); e O. Loyer, Bibliografia, n.* 26, PP- 49-51). (M) Se bem que a arqueologia nos revele uma cultura guerreira (cfr. E. Salin, Bibliografia, n.' 45), a aristocracia militar da Alta Idade Mdia permanece afastada da cultura escrita espera do impulso da poca carolngia e pr-carolngia (cfr. n. 25, p. 216), onde mergulha de resto na cultura clerical, antes de irromper na poca romnica com as canes de gesta (cfr. J. P. Bodmer, Bibliografia, n.9 6).() Doutrina de Arius, que negava a unidade e a consubstancialidade das trs pessoas da Santssima Trindade e, portanto, da divindade de Jesus Cristo. O ria' nsmo foi condenado pelo Concilio de Niceia (325) e pelo de Constantinopla (381). (N. da T.) ("*) Prisciliano concebia o ascetismo como autentica forma da vida cristi. Prisciliano, heresiarca espanhol, falecido em 385. (N. da T.)

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temo-nos com tentar definir a atitude da cultura eclesistica perante a cultura folclrica C1). H, sem dvida, um certo acolhimento deste folclore na cultura derical: a) favorecido por certas estruturas mentais comuns s duas culturas, em especial a confuso entre o terrestre e o sobrenatural, o material e o espiritual (por exemplo, atitude perante os milagres, o culto das relquias, uso das filacteras (*), etc.); b) Tornou-se obrigatrio, pela tctica e pela prtica evangelizadoras; a evangelizao reclama um esforo de adaptao cultural do clero: lngua(**) Heresia criada por Pelgio, que negava a eficcia da Graa e do pecado original. (N. 4a T.)

(sermo rsticas), recurso s formas orais (sermes, cantos) e a certos tipos de, cerimnias (cultura litrgca, procisses: o caso das ladainhas (**) e das procisses institudas por Gregrio, o Grande ("X satisfao das peties da clientela (milagres a pedido). A cultura eclesistica deve, muitas vezes, inserir-se nos quadros da cultura folclrica: localizao das igrejas e dos oratrios, funes pagas transmitidas aos santos, etc. Porm, eclesistica: a iniciativa a recusa desta cultura folclrica jpela cultura a) Por destruio As inmeras destruies f de templos e de dolos tiveram por simetria, na literatura, a prescrio dos temas propriamente folclricos, cuja recolha, mesmo na literatura hagiogrfica a pror privilegiada neste aspecto, fraca. A recolha ainda mais escassa, se eliminarmos os temas folclricos tirados da Bblia (neste aspecto seria importante distinguir a tradio do Antigo Testamento, rica em motivos folclricos, e a tradio do Novo Testamento, onde estes temas so raros). Por outro lado, devemos distinguir cuidadosamente, nos relatos hagiogrficos, as diferentes camadas cronolgicas de elementos folclricos devidos as sucessivas correces.

(") Por cultura folclrica entendo sobretudo a camada profunda da cultura (ou da civilizao) tradicional (no sentido de A, Varagnac, Bibliografia, n.1 48) subjacente em toda a sociedade histrica e, parece-me, aflorando ou prestes a aflorar na desorganizao'que reinou entre a Antigidade e a Idade Mdia. O que torna a identificao e a anlise desta camada cultural particularmente delicadas, ela ser recheada de contribuies histricas discordantes pela idade e pela natureza. Aqui, s podemos tentar distinguir o extracto profundo da camada de cultura superior greco-romana que a marcou com o seu cunho. So, se se quiser, os dois paganismos da poca: o das crenas tradicionais de muito longa durao e o da religio oficial greco-romana, mais evolutiva. Os autores cristos da Baixa Antigidade e da Alta Idade Mdia distinguem-nos mal e parecem, de resto (uma anlise, por exemplo, do De correctione naticorum de Martinho de Braga, Bibliografia, n. 13 e 27, e do texto ap. C W. Barlow, Martin de Braga, Opera omnia, 1950), o demonstra, mais preocupados em combater o paganismo oficial do que as velhas supersties, que mal distinguem. Em certa medida, a sua atitude favorece a emergncia destas crenas ancestrais mais ou menos purgadas da sua roupagem romana e no ainda cristianizadas. Mesmo um santo Agostinho, contudo ainda atento em distinguir a urbanitas da rusticiias nos aspectos sociais das mentalidades, das crenas e dos comportamentos (cfr. por exemplo a sua atitude discriminatria perante as prticas funerrias no De cura pr mortuis gerenda, PL-CSEL 41 Biblioteca augustiniana, 2; e mais geralmente o De catechizandis Rudibus PL, XL, Biblioteca augustiniana, 1,1) nem sempre consegue a distino. Assim, a clebre passagem do De dvitate Dei, XV, 23, acerca dos Silvanos et Faunos quos vulgo incubes vocant, acto de nascimento dos demnios ncubos da Idade Mdia, como muito bem analisou Ernest Jones no seu ensaio pioneiro obre a psicanlise das obsesses colectivas medievais, cm On the Nighlmare (2.* ed., Londres, 1949), p. 83. Na prtica, considero como elementos folclricos os temas da literatura merovngia que nos levam a um motivo de Stith Thompson, Motif-Index of Folk-literature (6 vol., Copenhaga, 1955-1958). Sobre a historicidade do folclore, temos o artigo luminoso de alcance geral apesar do ttulo, de G. Cocchiara, Paganitas. Sopra vivenze Folkloriche dei Pagancsimo scilano, Atti dei 1.' congresso internazionate di studi sulla Sicilia antica. Studi pubbcati da'Istituto di storia antica deirUniversit di Palermo (X-XI, 1964-1965, pp. 401-416).(*) Pergaminho contendo uma passagem da Bblia e que os Judeus usam como talism. (A1, da T.)

(**) Sabe-se que as Ladainhas datam dos sculos V e VI. Foram institudas, segundo a tradio, por S. Mamert, bispo de Viena (falecido em 474), num contexto de calamidades e rapidamente se estenderam a toda a Cristandade, conforme testemunha Santo Avit (fal. em 518), Homlia de Rogationibus {f L, LIX, 289-294). No certo que tenham sido o substituto directo das mbarvalia antigas: ver o artigo Rogations em Dictonnare d'archologie chrienne et de liturgie (XTV-2, 1948, coL 2459-2461, H. Leclercq). Pelo contrrio, certo que acolheram elementos folclricos. Mas difcil saber se estes elementos deram imediatamente, desde a poca que analisamos, o seu colorido liturgia das Ladainhas, ou se no foram nelas introduzidas ou, pelo menos, desenvolvidas mais tarde. Os nossos testemunhos que, por exemplo, dizem respeito aos drages das procisses s datam dos sculos XII e XIII para os textos tericos (os liturgistas Jean Beleth e Guillaume Durant) e dos sculos XIV e XV para as menes individuais concretas. Estudei o problema dos drages processionais desde a poca merovngia num ensaio, Culture clricale et folklore au Moyen Age: sant Mareei de Paris et l dragon, Mlanges Barbagallo u, 51-90 e aqui infra pp. 221-260. Sobre as caractersticas folclricas das Ladainhas, temos as belas pginas de A. van Gennep, com o ttulo significativo: Ftes liturgiques folfcloriscs, em Manuel ae Fo~ kiore franais contemporain (1/4-2, 1949, pp. 1637 e ss.). (") A sua origem urbana, a sua natureza propriamente litrgica, como o demonstra o alvar de instituio dirigido pelo papa aos Romanos, aps ser elevado ao pontificado por altura da epidemia de peste negra de 590 alvar que Gregrio de Tours inseriu na Historia Francorum pois um dicono de Tours, ento em Roma, para a adquirir relquias, lha havia entregado (HF, X, 1). Mas a sua insero no calendrio litrgico como liturgias majores ao lado das liturgias minores das ladainhas exp-las tambm, sem dvida, a uma degradao popular.

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Certos autores (por exemplo, P. Saintyves, Margem da Lenda Dourada, ou H. Gnther, Psicologia da Lenda) no fizeram uma suficiente distino entre tais extractos e tiveram por isso tendncia para fazer recuar, at Alta Idade Mdia, elementos folclricos introduzidos na poca carolngia e, sobretudo, na altura da grande vaga folclrica dos sculos XII e XIII que vem rebentar na Lenda Dourada de Jacques de Voragine. ti) Por obliterao A sobreposio dos temas, das prticas, dos monumentos e das personagens crists a antecessores pagaos no uma sucesso, mas uma abolio. A cultura clerical encobre, oculta, elimina a cultura folclrica. c) Por desnaturao provavelmente o mais importante processo de luta contra a cultura folclrica: os temas folclricos mudam radicalmente de significado nos seus substitutos cristos (exemplo do drago na Vita Marcelti de Fortunato ("*); exemplo dos fantasmas na Vita Germani de Constando de Lyon, em comparao com o modelo greco-romano de Plnio o Moo c o tema folclrico dos mortos sem sepultura) (") e at de natureza (por exemplo os santos no passam de taumaturgos auxiliares s Deus faz os milagres) (*")-

O fosso cultural reside, aqui, sobretudo, na oposio entre o caracter fundamentalmente ambguo, equvoco, da cultura folclrica (crena nas forcas simultaneamente boas e ms e utilizao de uma utensilagem cultural com dois gumes) e o racionalismo da cultura eclesistica, herdeira da cultura aristocrtica greco-romana ("): a separao do bem e do mal, do verdadeiro e do falso, da magia negra e da magia branca, sendo o maniquesmo propriamente dito evitado apenas pela omnipotncia de Deus. Temos pois de considerar duas culturas diversamente eficazes nveis diferentes. A barragem que a cultura clerical ope cultura folclrica provm, no somente de uma hostilidade consciente e deliberada, mas tambm da incompreenso. O fosso que separa a elite eclesistica, cuja formao intelectual, origem social, implantao geogrfica (quadro urbano, isolamento monstico) a tornam permevel cultura folclrica, da massa rural, , sobretudo um fosso de ignorncia (cfr. a incompreenso admirada de Constando de Lyon perante o milagre dos galos mudos realizado por S. Germano a pedido de camponeses) ("). atitude, to freqente nas colectivdades medievais, de maltratar um santo (ou uma esttua) culpado de no haver atendido as oraes dos seus fiis, ressalta bem de uma mentalidade primitiva persistente, e no de qualquer mudana afectiva da piedade. O que fica que a distino entre o papel de Deus e o papel dos santos puros intermedirios nos milagres oferece psicologia individual e colectiva uma vlvula de escape que salvaguarda, em certa medida, a devoo para com Deus. (") Trata-se sem dvida de simplificar o papel intelectual e mental do cristianismo, ao insistir nos progressos da racionalizao que trouxe a estes domnios. No meio termo da histria das mentalidades colectivas cie parece mais provir de uma reaco mstica, oriental, perante um certo racionalismo greco-romano a que de resto no poderamos reduzir a sensibilidade crtica: muitos aspectos da sensibilidade helenistica serviram de base ao judeo-cristianismo, e os cristos da Idade Mdia percebiam ama certa continuidade ao atrair Virglio e Sneca para o cristianismo. Acontece que, no domnio das estruturas mentais e intelectuais, o cristianismo parece-me ter marcado sobretudo uma nova etapa do pensamento racional, conforme P. Duhem o havia defendido no campo da cincia, onde, segundo ele, o cristianismo permitira ao pensamento cientfico progressos decisivos ao dessacralizar a natureza. Neste aspecto, a oposio folclrica ao cristianismo (mais fundamental, parece-me, que os amlgamas e as simbioses) representa a resistncia do irracional, ou melhor, de um outro sistema mental, uma outra lgica, a lgica do pensamento selvagem. (**) Constando de Lyon, Vie de saint Germain d'Auxerre, ed. cit., pp. 142-143. Germano, albergado pelos aldees, cede s suas splicas e resttui a voz aos galos que se haviam tornado mudos, dando-lhes a comer trigo bento. O bigrafo mostra no compreender a importncia e o significado deste magre, que evita mencionar. Ita virtus diuina etiam in rebus minimus mxima praeeminebat. Estas rs minimae, de que falam muitas vezes os hagigrafos da Alta Idade Mdia, so precisamente milagres de tipo folclrico entrados pela porta do cavalo na literatura clerical. No caso aqui citado h uma combinao de diversos temas folclricos englobados neste milagre de feiticeiro de aldeia que pe em marcha a ordem mgica da natureza. Cfr. Stith Thompson, Motif-Index op. cit..

C*) O drago folclrico smbolo das foras naturais ambivalentes que podem reverter a nosso favor ou em nosso prejuzo (E. Salin, op. cif.. IV, pp. 207-208) continua a existir durante toda a Idade Mdia, ao lado do drago cristo identificado com o diabo e reduzido ao seu mau significado. Na poca (fim do sculo VI) em que Fortunato escreve a Vita Marcelli (cfr. Bruno Krusch, MGH, Scriptores Rerum Merovingiarum, IV-2, 49-54), o tema do santo vencedor do drago fica a meio caminho destas duas concepes, na linha de interpretao antiga que, atribuindo aos heris a vitria sobre o drago, hesitava entre a domesticao e a morte do monstro. Sobre os aspectos folclricos deste tema, cfr. Stith Thompson, op. cit. Motif A 531: Culture hero (demigod) overcomes monsten. Tentei apresentar este problema no artigo citado na nota 8, p. 208. L'ambiyalence ds animaux revs foi sublinhada por Jean Gyory, Cahiers de Cvlsation mdivale (1964, p. 200). Para uma interpretao psicanaltica deste ambivalncia, cfr. E. Jones, On the nightmare, p. 85. C1) Constando de Lyon. Vie de saint German d'Auxerre, ed. R. Borius (Paris, 1965, pp. 138-143): Plnio o Moco, Lettres, VH, 27. (**) H que distinguir. A tese de P. Saintyves, que se exprime no ttulo sugestivo do seu livro, marcado com a indicao modernista: Ls Saints successeurs ds dieux (Bibliografia, n.* 43), aparecido em 1907, falsa, na medida em que os antepassados afastados e eventuais dos santos so no os deuses, mas os semideuses, os heris, e em que a Igreja quis fazer dos santos, no os sucessores, mas os substitutos dos heris e situ-los num outro sistema de valores. Em contrapartida, a tese de G. Cocchiara, loc. cit., afirma o triunfo da Igreja nesta matria, mas no tem em conta o facto de a grande maioria dos cristos, na Idade Mdia, e mais tarde, terem tido para com os santos o mesmo comportamento que os seus antepassados tiveram para com os heris, com os semideuses e at com os deuses. Em especial, contrariamente ao que pensa G. Cocchiara, a

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_ Assistimos assim, no Ocidente da Alta Idade Mdia, mais a um bloqueamento da cultura inferior pela cultura superior, a uma estratificaao relativamente estaaque dos nveis de cultura, do que a uma hierarquizao, dotada de rgos de transmisso, que garantam influncias unilaterais ou bilaterais, entre os nveis culturais. Porm, esta estratificacb cultural, se verdade que culmina na formao de uma cultura aristocrtica clerical O, no se confunde por isso com a estratificaco social. A partir da poca carolngia, a reaco folclrica ser a aco de todas as camadas laicas. Irromper *a cultura ocidental a partir do sculo XI, paralelamente aos grandes movimentos herticos (*).

SELECO

BIBUOGRAFCA

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CULTURA ECLESISTICA E CULTURA FOLCLRICA NA IDADE MDIA: S. MARCELO DE PARIS E O DRAGO (*)

S. Marcelo, bispo de Paris no sculo v, depois de haver forcado o destino, parece ter cado de novo na obscurdade, onde a sua humilde origem o deveria ter mantido. Numa altura em que, com efeito, o cpiscopado da Alta Idade Mdia era essencialmente recrutado na aristocracia, a ponto de o nascimento ilustre figurar entre os lugares-comuns hagiogrficos que os autores das Vitae repetiam, sem grande risco de engano, mesmo que estivessem mal esclarecidos sobre a genealogia dos seus heris Marcelo de Paris uma excepco (*). Assim, quando Venncio Fortunato (*). a pedido de S. Germano, bispo de Paris, e ainda em vida deste, portanto antes de 28 de Maio de 576, escreve a biografia do seu antecessor O, Marcelo, falecido provavelmente em 436, e quando, entre as raras informaes todas orais que recolhe, encontra a meno da mediocridade da sua

(*) Par* as ilustraes a que se faz referenda durante o texto, consultar o artigo original.

C) Sobre as origens aristocrticas de santos na hagiografa rnerovngia, consultar as excelentes notas de F. Graus, Volk, Herrtcher una Heiliger im Reich der Merowingcr. Praga, 1965, pp. 362 e sgts. Sobre o meio monstico cfr. K Prinz, Frhes Monchtum im Fronkenreich, Munique-Viena, 1965, pp. 46 e sgts.: Lerinum ais "Flichtlingskloster" der nordgallschen Aristokratie. O Sobre Fortunato cfr. W. Wattenbach-W. Levson, DeutxMands Geschitsquellen im Mittclalter. Vorzei und Karolinger. I, Weimar, 1952, pp. 96 e sgts. O La Viia S. Marcelli de Fortunato foi editada por Bruno Krusch nos M. G. H.. Script. Rer. Afcr., W/2, 1885a, pp. 49-54. Reproduzimos, em apndice, o X e ltimo captulo da V tia, segundo esta edio. Sobre S. Marcelo de Paris cfr. Acta Sanctorum, Nov., I, 1887, pp. 259-267 (G. van Hoof), onde se encontra o texto da Vifa de Fortunato, reproduo de Migne, PL, LXXXVIII, pp. 541-550; e Vis ds Sants et ds Bienheureux selon 1'ordre du calendrier avec Vhistorique ds fies pelos RR. PP. Bndictins de Paris, 1. XI, Novembro, Paris, 1954, pp. 45-49. Estes dois artigos nada contm acerca do drago processional.

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origem,' Fortunato tem de reconstituir a carreira do santo, por artes milagrosas. Cada etapa da carreira eclesistica de Marcelo segue um milagre e a sucesso destes 6 tambm qualitativa: cada um superior ao que o procedeu. Texto precioso, pois, para nos introduzir numa psicologia do milagre na poca mcrovngia. O primeiro milagre que eleva Marcelo ao subdiaconato (Viia, V) um milagre da vida quotidiana e do ascetismo: desafiado, por um ferreiro, a dizer quanto pesa um pedao de ferro em brasa, Marcelo, toma-o nas mos e calcula com exactido o seu peso. O segundo milagre (V i t, VI) que reveste j um aspecto cristolgico e que lembra um dos primeiros milagres de Cristo antes do apostolado decisivo dos seus ltimos anos, o milagre da bodas de Cana, produz-se quando Marcelo, trazendo gua do Sena para o seu bispo lavar as mos, esta se transforma em vinho, vinho que aumenta de volume a ponto de permitir ao bispo dar a comunho a toda a gente presente; o seu autor torna-se dicono. O terceiro milagre, que apenas marca um progresso qualitativo (miraculum secundam ordine non honore, Vita, VII), envolve Marcelo numa funo sacerdotal. A gua que, nas suas funes litrgicas, oferece uma vez mais ao bispo comea a embalsamar o ar como se se tratasse do santo crisma, o que faz de Marcelo presbtero. O bispo, pondo sem dvida m vontade em reconhecer os milagres de Marcelo, s depois de ser ele prprio o beneficirio do milagre seguinte deixa a sua hostilidade ou as suas reticncias. Emudecendo, recupera a palavra pela virtude taumatrgica do seu presbtero que, por fim considerado digno de suceder-lhe apesar do seu obscuro nascimento (Vita, VIII). Nomeado bispo, Marcelo cumpre os altos feitos que a poca exige aos seus chefes eclesisticos, tornados, em quase todos os domnios, protectores das suas ovelhas: procede a uma dupla libertao milagrosa, fsica, ao fazer cau as cadeias de um prisioneiro, e espiritual, ao libertar do pecado esse mesmo prisioneiro que tambm, e sobretudo, um possesso (Vita, IX). Temos, finalmente, o coroamento da carreira terrestre e espiritual, social e religiosa, eclesistica e taumatrgica de S. Marcelo (Vita, X): Venhamos a este milagre (mistrio) triunfante que, embora sendo o ltimo no tempo, o primeiro pelo valor. Um monstro serpente-drago que nos arredores de Paris semeia o terror entre as populaes caado pelo bispo que, na presena do seu povo, num dramtico 'confronto, o submete ao seu poder de essncia sobrenatural e o f az desaparecer. Ultimo grande feito cuja recordao, diz-nos o hagigrafo, perdura na memria colectiva. Na sua recolha de milagres, Gregrio de Tours, com efeito, em finais do sculo VI, um pouco aps o relato de Fortunato e cerca de sculo e meio aps a morte de Marcelo, conta este milagre de um santo a quem, alias, no prestava qualquer ateno (*).

Parecia pois abrir-se ao culto de S. Marcelo um belo futuro. No entanto, desde o incio, este culto restringiu-se a uma rea local. Na verdade, este culto esbarrava com a venerao por outros Marcelos, entre eles o santo-papa Marcelo (possivelmente martirizado em 309, no tempo de Maxncio (*)) c S. Marcelo de Chalon, cujo culto vinha fazer concorrncia ao seu, na prpria regio de Paris (*). Como santo parisiense, S. Marcelo pareceu triunfar. Ainda que a histria do seu culto fora mesmo do tradicional drago, objecto deste estudo esteja cheia de obscuridades de lendas, sabemos que o teatro do seu ltimo milagre foi o local da sua sepultura e de uma igreja suburbana que lhe dedicaram e que ficou na tradio como a primeira igreja de Paris c deu o nome a um dos bairros mais activos econmica e politicamente da histria de Paris que existe ainda boje: o burgo ou bairro de Saint-Marcel (*). Tendo as suas relquias sido levadas para Notre-Dame de Paris (f), em data difcil de determinar, entre o sculo X e o sculo XII, talvez relacionado o facto com uma epidemia de erisipela gangrenosa, elas desempenharam, da em diante, um papel importante na devoo parisiense. A par das relquias de Santa Genoveva umas e outras andaram sempre juntas foram, ai A Revoluo, as mais populares protectoras de Paris e as insignes relquias para as quais S. Lus construiu a Sainte-Chapelle pareciam incapazes de as suplantar na piedade dos Parisienses {*). Tornado, com

()

Imperador romano, vencido por Constantino (306 a 312). (ff.

da T.)

f

O Gloria Confetsorum, c. 87 (MGH, Scripf., Rer. Mer., 1/2, p. 804).

C) Sobre S. Marcelo de Chalon-sur-Sane e o seu culto na regio de Paris (este culto teria sido favorecido no sculo VI pelo rei Gootrau; S. Marcelo de Chalon , no sculo IX, o patrono da maior parquia do domnio de Saint-Dens) cfr. M. Roblin, L Terroir de Paris aux poques gallo-romaine et franqiie, Paris, 1951, p. 165. (*) Duas teses da Escola das Cartas foram dedicadas ao bairro Satnt-Marcel de Paris. J. Ruinaut, Essai historique sur ls origines et 1'organisaion de l'glise de Saint-Marcel de Paris (sculo V, 1597), 1910 (Ppsitions ds thses... de Fcole ds Charles 1910, pp. 179-184) e, sobre o prprio bairro, M. L. Concasty, L bourg Saint-Marcel Paris, ds origines au XVI' sicle, 1937 (ibid., 1937, p. 26 e ss.). Sobre a igreja e o cemitrio de Saint-Marcel, cfr. Ls glises suburbaines de Paris du IV" au X' sicle, por M. Vieard-Troekouroff, D. Fossard, E. Chatel, C Lamy-Lassalle, em Paris et e~de-france. Memrias publicadas pela Federao das Sociedades Histricas e Arqueolgicas de Paris e da Ue-de-France, t. XI, 1960, pp. 122-134-136 e sgts. O Sobre a histria do culto de S. Marcelo de Paris, cfr. P. Perdrizet, L Calendrier parisien Ia fin du Moyen Age d'aprs l breviaire et ls livres d'hewes. Paris, 1933, s. v. Mareei. (*) Quando, em 1248, S. Lus pediu a todas as relquias de Paris que viessem acolher entrada da cidade a coroa de espinhos que vinha de Saint-Denis onde esperara a consagrao da Sainte-Chapelle, as relquias de S. Marcelo e de Santa Genoveva no chegaram. Cfr. Don Micfael Fliben, Histoire de Ia ville de Paris, revista, aumentada e publicada por Dom G. A. Lobineau, Paris, 1725, t. L, L p. 295. Sobre S. Lus e as

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S. Dinis e Santa Genoveva, patrono de Paris, S. Marcelo foi gratificado, desde a Idade Mdia, com uma casa lendria, naturalmente situada na ilha da CitO). Tambm o Ano de Tillemont(*) pde, no sculo XVII, admirar esta vitria histrica de S. Marcelo de Paris: Nem o longo espao de tempo escreveu nem a celebridade dos seus sucessores conseguiram impedir que o respeito que esta Igreja (a de Paris) tem por ele no ultrapasse o que tem por todos os outros e que no seja considerado como o seu protector e o seu primeiro patrono depois de S. Dinis ("). Contudo, no tardaria o retorno de S. Marcelo obscuridade quase completa. A partir do sculo XVIII e sobretudo aps a Revoluo, o seu culto foi vtima da depurao progressiva da devoo que, no meio parisiense, se verificou por um enfraquecimento da piedade local; S. Marcelo acaba por ser eclipsado sculos passados, por S. Diois e, em especial, por Santa Genoveva. O seu drago, conforme veremos, foi uma das primeiras vtimas da desgraa do santo que, a partir do sculo XIX, raramente citado entre os drages hagiogrficos e folclricos com os quais o santo partilhou por tanto tempo o seu destino! Porque tentar ento ressuscit-lo neste ensaio cientfico? Porque o seu caso, vulgar ao primeiro olhar lanado ao texto de Fortunato e sua sobrevivncia medieval, mostra-se, a um exame mais atento, complexo, instrutivo e talvez exemplar. Os dois aspectos sob os quais o drago de S. Marcelo aparece na histria medieval nada tm de muito original primeira vsta. No sculo VI, sob forma literria, no texto de Fortunato, parece no passar de um desses drages, smbolos do diabo e do paganismo, que servem de atributo a muitos santos e, especialmente, a santos-bispos evangelizadores. A partir de certa data, pouco verosimilmente anterior ao sculo XII, e situada entre o sculo XII e o sculo XV, parece ento no ser mais que um desses drages de procisso que a liturgia das Ladainhas passeia um pouco por toda a parte. No entanto, no deixa talvez de ter interesse fazer, a seu respeito, algumas investigaes e formular, a propsito, algumas perguntas susceptveis de esclarecerem a histria da devoo, da cultura e da sensibilidade no Ocidente medieval c, mais precisamente, num dos grandes centros de civilizao: Paris. O drago merovngio de S. Marcelo ser apenas o smbolo diablico.'

em que a Igreja transformou um monstro portador de uma das cargas simblicas mais complexas da historia das culturas (")? O drago de S. Marcelo da Idade Mdia clssica ser o mesmo do seu velho antecessor e os significados que mais ou menos se uniam nele no se separam ento, revelando tenses, divergncias, antagonismos socioculturais? No podero estas tenses ser reagrupadas em volta de dois plos o de uma tradio erudita, libertada pelos clrigos e que atribui ao smbolo do drago um papel de fixao das forcas do mal e o de uma tradio popular que, atravs de toda uma srie de contaminaes e de metamorfoses, lhe conserva um valor ambguo? Se pudssemos esboar, com verosimiUiana, uma resposta afirmativa a esta pergunta, a estrutura e a curva da cultura medieval poderiam ser um pouco reveladas, Do rico texto de Fort u n ato, do qual fazemos ponto de partida, poremos de lado os elementos qe no se ligam nossa finalidade ou reduzi-los-emos ao aspecto esquemtico que os liga ao simbolismo do drago. Distinguiremos, em primeiro lugar, os dois temas nele misturados: o da serpente que devora o cadver de uma mulher adltera e o do drago sobre o qual o santo consegue uma brilhante vitria. O primeiro, que no deixa de ter interesse, continuar ao longo 3 toda a Idade Mdia e de tornar-se- o smbolo iconogrfico da luxria C ). Mas aqui est ligado, mais ou menos artificialmente (por tradio ou por habilidade literria (u) No tratamos aqu do simbolismo poli valente do drago, de uma maneira que .desejaramos exaustiva, nem procuraremos citar a imensa . literatura dedicada a este assunto. M. Eliade, nomeadamente, insiste no pofissimbolsmo do drago, da serpente (Tratt d'histoire ds religions, nova i d., Paris, 1964, p. 179). Encontraremos indicaes interessantes em dois artigos dedicados ao simbolismo do drago; o de L. Mackensen, em Handwrterbttch desdeutschen Aberglaubens, t. II, 1929-1039, col. 364-405 e o de R. Merkelbach em Reallexion fr Antike und Christentum, t. IV, 1959, col. 226-250. A respeito do drago de S. Marcelo, este ltimo declara nicht ganz fclar ist die Legende vom Drachensieg ds hcilingen Marcellus e resume o texto de Fortunato, sem fazer interprekensen. Voltaremos ao assunto, n. 139, em relao ao artigo de L. Mactaes. (") Sobre o simbolismo medieval da serpente-Juxria e a representao da mulher devorada por uma serpente, cfr. nomeadamente E, Mle, L'Art rvligieux du XIV sicle en France, Paris, 1953. La Femme aux Serpents, pp. 374-376 (que abandona todo o cenrio arcaico de um tema que se figa ao mito da Deusa-mae) e V. H. Debidour, L Bestiaire sculpt en France, Paris, 1961, pp, 48, 309, 317, 320 e ill. 438 e 440. As modalidades serpente-drago (que nos bestirios medievais, quando se trata do tentador da Gnese, so modalidades serpente-drago-grifo) so muito antigas e encontramo-las na tradio grega no par opxKwtpt como na tradio hebraica no par tannin-nhsh. Na Idade Mdia explica-se mesmo, por um texto da Gnese, II, 14 (Et ait Dominus Deus ad serpentem: quia fecisti hoc, maledictus es inter omnia animantia et bestias errae; super pectus tuum graderis), a perda das asas e das patas que transformava o dragogrifo em serpente. Cfr. F. Wd, Dractien n Beowulf und andere Drachen, Viena, 1962.

() Sbastien L Nain de Tillemont, historiador francs (1637-1298). Colaborou oo* escritos dos solitrios (nacoretas) de Port-RoyaL (N. da T.)

relquias.