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FAE - Centro Universitário

Instituto de Filosofia São Boaventura

Revista Filosófica São Boaventura, v.2, n.1, p.1-112

Curitiba, jan./jun. 2009

ISSN 1984-1728

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Copyright © 2008 by autores

Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.

FAE - Centro Universitário

Instituto de Filosofia São Boaventura

Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)

Reitor

Frei Nelson José Hillesheim

Pró-reitor acadêmico

André Luis Gontijo Resende

Pró-reitor administrativo

Paulo Arns da Cunha

Diretor do IFSB

Ms. Vicente Keller

Editores

Dr. Vagner Sassi e Dr. Enio Paulo Giachini

Comissão Editorial

Dr. Roberto H. Pich

Ms. Vicente Keller

Dr. Jaime Spengler

Dr. João Mannes

Dr. Marcelo Perine

Conselho Editorial

Dr. Osmar Ponchirolli

Dr. Mauro Simões

Dr. Antônio Joaquim Pinto

Dr. Écio Elvis Pizzeta

Dr. Leonardo Mees

Ms. Solange Aparecida de Campos Costa

Dr. Renato Kirchner

Revisão

Editoria

Projeto Gráfico e Diagramação

Maria Laura Zocolotti

Ana Rita Barzick Nogueira

Capa

Roland Cirilo

R. 24 de Maio, 135 | 80230-080 | Curitiba-PR

e-mail: [email protected]

Catalogação na fonte

Revista filosófica São Boaventura/Centro UniversitárioFranciscano do Paraná. Instituto de Filosofia São Boaventura.

v.1, n.1, julho/dezembro 2008- . Curitiba: CentroUniversitário Franciscano do Paraná, 2008-v. 23cm

SemestralISSN 1984-1728

1. Filosofia - Periódicos. I. Centro Universitário Franciscano doParaná. Instituto de Filosofia São Boaventura.

CDD - 105

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A morada do ser humano é e está

no extraordinário 1

Dr. Arcângelo R. Buzzi

A morte alheia e a nossa: uma

perspectiva existencial 15

Écio Elvis Pisetta

Agostinho e aristóteles como

“fontes” para o conceito

heideggeriano de tempo 39

Renato Kirchner

Duns Scotus e a questão da

univocidade do ser: preâmbulos 59

Fr. Marcos Aurélio Fernandes

Duns Scotus e o fundamento

racional do discurso teológico 75

Frei André Luiz da Rocha Henriques

Dialética trágica: a realidade anterior

a suas determinações 87

Clauzemir Makximovitz

O homem é a mensura de

todas as coisas 99

Nicolau de Cusa

A imagem (das Bild) 103

Heinrich Rombach

The address of the human being is in

the extraordinary 1

Dr. Arcângelo R. Buzzi

The death of the other and our death:

an existential perspective 15

Écio Elvis Pisetta

Augustine and aristotle as

“sources” for the heideggerian

concept of time 39

Renato Kirchner

Duns Scotus and the question

of the univocal being : preambles 59

Fr. Marcos Aurélio Fernandes

Duns Scotus and rational basis

of theological discourse 75

Frei André Luiz da Rocha Henriques

Tragic dialectic: the reality prior to

its determination 87

Clauzemir Makximovitz

The man is the measures of

all things 99

Nicolau de Cusa

The image 103

Heinrich Rombach

SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO SUSUSUSUSUMMARYMMARYMMARYMMARYMMARY

v.2 • n.1 • jan.-jun. 2009

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EditorialEditorialEditorialEditorialEditorial

Não obstante todos os avanços e progressos da ciência e da

tecnologia, a tarefa de tornar-se humano e conhecer-se a si mesmo

não se nos apresenta mais facilitada hoje do que aos que nos

precederam há séculos. Pelo contrário, para nós, filhos da razão e

da consciência, o empenho de viver e ter que forjar um sentido

para a existência se torna, a cada dia, o desafio mais urgente.

Para tal empreendimento, não bastam o acesso e o acúmulo de

cultura ou informação, mesmo porque hoje não nos faltam

excelentes teorias e explicações apontando caminhos. O caminho

para nós mesmos, porém, se faz antes na atenção e no cuidado de

passos mais elementares e simples, e por isso mesmo esquecidos e

descuidados em nosso afã de encontrar logo soluções e respostas.

Respirar, andar, alimentar-se, distrair-se, dormir, pensar, ler e

escrever. Porque impossíveis de ser terceirizadas, tais tarefas

cotidianas e comuns, tidas muitas vezes até como banais e inúteis,

cada vez se apresentam como mais difíceis ao homem que, não

obstante capacitado a estar em todo momento em toda parte, já

não se dá conta e não dá conta de estar onde realmente está no

momento presente.

Nesta Revista Filosófica São Boaventura, leitores e escritores

exercitam o diálogo e a reflexão.

Anterior a qualquer pretensão de predicação e análise, é apresentado

aqui o próprio empenho de ler e escrever e, em lendo e escrevendo

com criatividade e coragem, conquistar e construir seu próprio

mundo. Isso se coloca como desafio fundamental para o pensador

e para o filósofo na busca de uma verdade que, tal como sua própria

existência, nunca está de todo pronta e acabada.

Torna-se oportuna, pois, a audição simples das palavras do Zaratustra

de Nietzsche em sua fala acerca do ler e escrever: “De tudo o que se

escreve, amo somente o que alguém escreve com seu próprio sangue.

Escreve com sangue, e aprenderás que sangue é espírito. Não é fácil

compreender o sangue alheio; odeio todos os que lêem por desfastio”.

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O presente número da Revista Filosófica São Boaventura traz

contribuições significativas na tarefa do pensamento. Dentre elas,

destacam-se a reflexão acerca do modo do ser humano habitar a

terra, a interpretação existencial da morte humana, a compreensão

do tempo desde a facticidade do homem e a consideração filosófico-

teológica da univocidade do ser a partir da ordo caritatis.

Trata-se de questões fundamentais que, por não se esgotarem em

respostas prontas e acabadas, têm atingido pensadores em todas

as épocas da história da filosofia. Cumpre, portanto, tomá-las como

caminho no empenho de quem se põe a ler e escrever com sangue,

na atenção e no cuidado dos passos mais elementares e simples

que caracterizam o trabalho no espírito.

Prof. Dr. Vagner Sassi

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, n.1, p.1-13, jan./jun. 2009

art

igo

s

1

A morada do ser humanoA morada do ser humanoA morada do ser humanoA morada do ser humanoA morada do ser humanoé e está no extraordinárioé e está no extraordinárioé e está no extraordinárioé e está no extraordinárioé e está no extraordinário

The address of the humanThe address of the humanThe address of the humanThe address of the humanThe address of the humanbeing is in being is in being is in being is in being is in the extraordinarythe extraordinarythe extraordinarythe extraordinarythe extraordinary

Dr. Arcângelo R. Buzzi, ofm*

ResumoResumoResumoResumoResumo

Falando a respeito de Heráclito, Aristóteles nos traz à memória a sublimecapacidade do ser humano de perceber a benéfica presença do divino noordinário das coisas existentes do nosso cotidiano. Esta sublime capacidadelhe advém de sua origem, que continua vigente em todo ser humano,confirmada por uma ancestral tradição oral, cuja etiologia existencial foidescrita e depositada também no livro hebraico do Gênesis. Para sentir afaísca de Javé, isto é, o sopro do Divino no corpo que somos, precisamos irao deserto. Cativados pela simplicidade das coisas junto às quais nosdemoramos, aos poucos compreendemos que existir é igualar-se a elas nomodo de cada coisa realizar-se no seu demorar-se. Assim, as coisas que nosrodeiam e que no seu generoso doar-se nos dão ânimo e alegria de viver, elasnos condicionam a considerá-las iguais a nós: portal ou poema apenascomeçado do mistério de sermos fustigados pelo desejo de vida mais plena,jamais saciada pela superabundância dos bens de consumo. O desejo demais vida no infinito é o poema da criança que lateja na carne mortal denossa existência. Quem vive na soleira desse portal do desejo ouve os encantosda proximidade do infinito.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: Morada, extraordinário, divino, corpo.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

Speaking about Heraclites, Aristotle brings back to memory the sublimecapacity of the human being to perceive the positive presence of the divinein the ordinary things of our everyday lives. This sublime capacity originatesin human origins, which remain alive in every human being, confirmed byan ancestral oral traditions, which existential etiology is described anddeposited in the book of Genesis. To feel the spark of Jehovah that is, theDivine breath in the body that we are in, we must go to the desert. Captivatedby the simplicity of the things next to which we dwell, little by little wecomprehend that to exist is to become like them, in the world of eachthing, to realize itself in its dwelling. In that way, the things that surroundus and in their generous donation give us stamina and happiness in living,they condition us to consider them equal to us: portal or poem only startedby the mystery of being instigated by the desire for a more fulfilling life,never overcome by the lavish abundance of consumer goods. The desirefor more life in the infinity is the poem of a child that pulses in the mortalflesh of our existence. The ones that live on the doorsteps of this portal ofdesire can hear the enchantment from the proximity of the infinite.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: dwelling, extraordinary, divine, body.

* Professor do IFITEPS - Instituto defilosofia e de teologia Paulo VI –

Nova Iguaçu - RJ.

De Heráclito (540-480 a.C.) se contam umas palavras, ditaspor ele a um grupo de estranhos que desejavam visitá-lo.Quando se aproximaram e o viram aquecendo-se junto aoforno, detiveram-se surpresos, sobretudo porque Heráclitoainda os encorajou – a eles que hesitavam – fazendo-os entrarcom as palavras: “Pois também aqui os deuses estãopresentes” (ARISTÓTELES, De part. anim. A 5, 654a, 17).

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2 BUZZI, Arcângelo R. A morada do ser humano é e está no extraordinário

Aristóteles (384-322 a.C.), no texto acima por ele redigido a respeito de Heráclito,

nos traz à memória a sublime capacidade do ser humano de perceber a benéfica presença

dos divinos no ordinário das coisas existentes do nosso cotidiano. Esta sublime capacidade

lhe advém de sua origem que continua vigente em todo ser humano, confirmada por

uma ancestral tradição oral, cuja etiologia existencial foi descrita e depositada no livro

hebraico do Gênese: “Então o divino Deus formou o ser humano do pó da terra, soprou-

lhe nas narinas o espírito da vida e ele tornou-se um ser vivo” (Gn 2,7), capaz de perceber

e, na seqüência, capaz de participar da transcendência do ser por ele percebido.

Segundo esta tradição, o sopro do divino Deus entrando narinas a dentro se

concretizou no corpo que somos, afeiçoando todos os seus membros à vida. A todo

instante, sem concurso de nossa consciência, o ato de respirar nos mantém no sopro do

divino, no espírito da vida! Além do respirar, é no ato de perceber as coisas que nos

rodeiam e que nos transporta para junto delas que muito sentimos o divino sopro da

vida! Sentimo-lo, porém, sobremaneira na falação!

Na glossologia, através da atividade articulante e aglutinante da língua,

reconhecemos o espírito da vida nos sons fonéticos das palavras. Isto quer dizer que é

nas palavras da língua falada ou escrita onde mais provamos a essência do nosso corpo

e descobrimos que somos o existente privilegiado do espírito da vida. Em outros termos,

descobrimos que o espírito da vida, atuante em nós, é pura referência que move nosso

corpo à transcendência, a sintonizar-se com a realidade numa união amorosa com as

múltiplas diferenças de sua realização.

Embora tenhamos corpo, nem sempre o consideramos e muito menos o vivemos

no espírito da vida, na intencionalidade de sintonizar-se com todas as coisas que o rodeiam,

de tal maneira que possa elevar-se como sendo a mais verdejante, florescente e frutífera

árvore da terra, a qual todos desejamos ter e cultivar, conservar e amar e nela nos alegrar

e perpetuar! Na reflexão que nos propomos, queremos encurtar a distância que nos

separa do corpo que somos! E se possível, na experiência de sua proximidade, no som

das muitas palavras que falamos e escrevemos, ouvir o sopro da vida que o estruturou

como corpo. Se conseguirmos nos aproximar desse seu instante de vida, o corpo que

somos, no visível de sua aparência, é esplendor do espírito da vida: é a palavra da verdade

proclamada pelo apóstolo Tiago na carta encíclica que escreveu:

Não vos enganeis, caríssimos irmãos! Toda dádiva boa e todo dom perfeito vemdo alto, desce do divino Pai das luzes em quem não há mudança nem sombra deeclipse. De livre vontade ele nos gerou pela palavra da verdade, para sermoscomo que as primeiras dentre suas criaturas (Tg 1,16-18).

Este inspirado texto do apóstolo Tiago nos convida a considerar o ser humano, na

estrutura da vitalidade de seu corpo, como sendo a palavra da verdade, a palavra que

mostra e sonoriza na fala de sua língua a magnífica presença do divino Pai das luzes nas

criaturas de sua criação. Concretizando-se nas criaturas da sua criação, nas quais ela se

estrutura e se multiplica, a palavra da verdade, isto é, a livre vontade do Pai das luzes, na

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, n.1, p.1-13, jan./jun. 2009

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concessão e na comunicação de seu espírito, nos fez existentes privilegiados! Ela nos fez

alguém capazes de perceber, em todas as modalidades de exercício e de realização de

nossa existência corporal, que somos dádiva de sua bondade, belezas que se apaixonam

e nos unem uns aos outros. No dizer do livro dos Cantares: “Cruel como o abismo é a

paixão que nos une; suas labaredas de fogo são uma faísca de Javé!” (Ct 8,6). Existindo

no faísca de Javé, cada ser humano pode sentir em seu corpo as labaredas de seu fogo e

condicionar-se a ser candelabro de sua luz.

Para sentir a faísca de Javé, isto é, o sopro do Divino no corpo que somos, precisamos

ir ao deserto a exemplo de João Batista (Mt 3,1-3). Ir ao deserto significa disciplinar-se:

submeter-se à contínua aprendizagem de reconduzir o corpo à anterioridade de sua

existência, ao instante em que ainda não era, desnudando-o das sensações da sensibilidade,

das idéias da razão, das impressões do sentimento e das representações e ordenamentos

da cultura em que o vivenciamos. E depois de conquistada essa verdadeira identidade, na

transluz de sua nudez, torná-lo apto a traduzir o espírito da vida no projeto de sua existência

enraizada no real da situação em que se encontra. Na realização desse projeto de

enraizamento de nossa existência percebemo-nos indo ao reino do outro.

No deserto, na silenciosidade da sua consciência, no nada de seu ter, no nada de seu

saber e no nada de seu querer, tão só na nudez da pura espera, João Batista mereceu o

inesperado da espera: a faísca de Javé, o espírito do Pai das luzes iluminando a vivenda de seu

corpo. Estando, pois, na luz alumiante da vivenda de seu corpo, ao ver a figura de Cristo, por

um instante de afinidade de seu corpo ao dele, João Batista o reconheceu portador do

espírito da vida que entusiasma e alegra toda carne na viagem de sua temporalidade (Jo

1,29-34). O júbilo de João Batista ao ver o corpo de Cristo e ao saudá-lo como filho do divino

Deus só foi possível por estar seu corpo na fluência do mesmo espírito da vida.

Percebendo na vivenda de seu corpo o hálito da vida qual chama de fogo (Ex 3,2),

João Batista pôde ver na pessoa de Cristo, descendo às águas do rio Jordão (Jo 1,29-34), a

maior obra da criação: o divino encarnado! Isto quer dizer que ele viu no corpo de Cristo o

Divino aparecendo no corpo. João Batista mereceu este singular favor de ver o Divino no

corpo de Cristo porque ele próprio reconheceu em si o mesmo hálito do Divino. Nesta

experiência, a encarnação do hálito da vida transborda para toda criatura. Isto quer dizer

que a encarnação do Divino é universal. Não atinge somente o particular ser humano, mas

estende-se à totalidade do real. Daí o alento misterioso, o ímpeto que nos leva a construir

nossa morada na proximidade das coisas que nos rodeiam, para nelas completar a obra de

nossa encarnação no seguimento a Cristo que desce às águas do rio Jordão. Assim é o ser

humano: é no demorar-se junto às coisas que ele mais faz uso do corpo e se reconhece

como sendo encarnação do Divino que ele não vê nem conhece.

Desde quando o divino Deus disse: “Façamos o ser humano à imagem e semelhança

nossa” (Gn 1,26), o corpo que somos foi alojado na palavra! Não foi alojado numa prisão,

mas na casa da palavra! Isto quer dizer que na imagem da casa, cuja estrutura se direciona à

própria interioridade e se abre à exterioridade, o corpo que somos ao morar na palavra está

sempre no cálculo além de si: à viagem de seu interior mais próximo e à viagem de seu

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4 BUZZI, Arcângelo R. A morada do ser humano é e está no extraordinário

exterior mais distante. Isto quer dizer que estando na casa da palavra, o ser humano é

imagem da palavra: é estrutura de referência: é sinal de significância: é apelo de ultrapassagem:

é viagem para a outra margem! E a certeza de estarmos na viagem para a outra margem nos

é dada pela contínua inquietação e interrogação da margem onde estamos!

Morando na casa da palavra, na clareira de sua luz, dotados do seu lume, somos

agraciados da capacidade de ver. Sem a luz da palavra, poderíamos ter olhos e não ver!

É a luz da palavra que torna nosso olho astro solar, capaz de ver! Por causa desse poder

visionário da palavra atribuímos a nós mesmos competência de mostrar a verdade das

coisas. E embora não seja a primeira coisa que descobrimos, o que mais buscamos desvelar

e mostrar a nós mesmos, mediante a falação, é o corpo que somos. Ao vê-lo mais se

escondendo que se mostrando (Gn 3,7-10), percebemos que algo de estranho há nele.

E logo concluímos que a palavra, para animar o corpo, tomou a forma de alma.

Ao reconhecer a força da palavra na forma de alma estruturando e animando o

corpo dos pés à cabeça, todo ser humano exclama surpreso: algo de estranho apareceu

na terra: a alma no corpo! No vigor da fala de sua língua, o corpo humano, na forma

animal de seu aparecer, se reconhece igual às coisas que crescem, florescem, frutificam e

declinam na terra sob a arcada da céu. Isto quer dizer que o corpo humano, por ser

animal, se instala na paisagem da terra. À diferença do animal, porém, na atividade de

falar, o ser humano se hominiza, quer dizer, percebe que seu viver é temporal. Por causa

dessa percepção ele se instala na paisagem da terra na febril atividade de habitá-la, no

conhecimento do bem e do mal, isto é, sabendo o que é bom e o que é mau para a

conservação de sua vida. Tudo isso é lembrado nesta ancestral escritura:

O divino Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem do Divino o criou,macho e fêmea ele os criou” (1,27) “Depois, o divino Deus plantou um jardim emÉden, ao oriente, e ali pôs o ser humano que havia formado e fez brotar da terratoda sorte de árvores de aspecto atraentes e saborosas ao paladar, a árvore doconhecimento do bem e do mal no meio do jardim e a árvore da vida” (Gen 2,7-11).“E o divino Deus os abençoou e lhes disse: Sede fecundos e multiplicai-vos, enchei aterra e submetei-a! Dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e tudo que vivee se move sobre a terra” (Gn 1,28). E para comprovar o agrado dessa sua maravilhosaobra: “o divino Deus passeava pelo jardim à brisa da tarde” (Gn 3,8).

O que nos leva a considerar o ser humano algo de estranho na terra é ouvir seu

corpo no murmúrio da fala! Mais claramente: é vê-lo falando palavras, que o diferencia

de todos os demais corpos que o rodeiam. Tomando a forma de alma, a palavra anima o

corpo e lhe dá conhecimento de discernir o que é bom e o que é mau em todo seu agir

e comportar-se. Este discernimento é tão categórico que impõe ao ser humano o dever

de cuidar de seu porvir, o que não pode nem necessita fazê-lo o animal. O porvir mais

próximo é a inevitável presença da morte no presente! No viver o presente, no múltiplo

de suas atividades, o dever maior da alma é entusiasmar o corpo humano a viver como

as coisas que o rodeiam, na transiência, na capacidade de desbloquear-se para livre

reconduzir-se ao mistério de sua proveniência. Se a alma conseguir que o corpo se

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, n.1, p.1-13, jan./jun. 2009

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empenhe a morar na terra, à semelhança das coisas que o rodeiam, podemos então

dizer que “habitar é a aspiração fundamental e unificante da condição humana”

(Hoelderlin). Às vezes mais que na falação, é na atividade de perceber que melhor se

mostra a tendência e a intencionalidade de ultrapassagem da condição humana: de

unificar-se ao múltiplo, de habitar no vigor do todo.

De fato, na fadiga do vaivém de muitas e variadas ocupações, no cultivo das

semeaduras e no armazenamento das colheitas, no cuidado de abrigar-se do frio e de

proteger-se do calor, na atenta vigilância do dia e no sossegado repouso da noite, no

acompanhar as estações do ano, no sonhar, no amar, no divertir-se, no orar, no representar

e até no declinar de sua vida, o corpo que somos busca com paciência, coragem e muita

paixão unificar-se às coisas que o rodeiam. Cativados pela simplicidade das coisas junto às

quais nos demoramos, aos poucos compreendemos que existir é igualar-se a elas no modo

de cada coisa realizar-se no seu demorar-se. Desse modo desprendido de realizar-se, de

surgir da terra e florescer por florescer sem nenhuma outra motivação, nos fala o vigor da

rosa proclamado pelo pensador e poeta Angelus Silesius (século XVII):

A rosa é sem porquê! / Floresce por florescer!

Não olha seu buquê! / Nem pergunta se alguém a vê!

Portanto, quem mais nos ensina e nos estimula a praticar uma tal habitação,

desdobrando nossa existência entre o recôndito da terra e o alto céu são as coisas que nos

rodeiam e que delas nos valemos para alimentar, vestir e abrigar o corpo que somos. Quem

mais nos dificulta nessa aprendizagem é a contínua interferência de idéias da razão, que

projetam diante de nós a idealidade de um reino superior, a utopia que nos separa da

simplicidade das coisas da terra. O recurso às idéias é válido quando sua lógica nos ajuda

a melhor ver o real reino das coisas que nos rodeiam e nele perseverar no constante cuidado

de resguardá-lo como pupila de nossos olhos, como morada insubstituível. Para perseverar

no cuidado das coisas que nos rodeiam e, a exemplo delas, habitar entre o recôndito da

terra e o alto céu, o melhor que podemos fazer é empenhar os olhos a ver esse benigno

reino no qual estamos inseridos, atendendo à sabedoria do mestre que disse:

Não vos preocupeis com o que comereis. Olhai os pássaros do céu: não semeiam,nem colhem nem guardam em celeiros! E por que vos preocupais com as vestes?Observai como crescem os lírios do campo: não trabalham nem fiam. Mas euvos digo que nem Salomão com toda sua glória se vestiu como um deles! Elesensinam que a cada dia basta o seu peso (Mt 6,25-34).

Qual seria o peso de cada dia, qual seria a ocupação a praticar para habitarmos a

terra a exemplo das coisas que nos rodeiam? A ocupação seria aquela dos pássaros do

céu que dia após dia buscam a terra que os alimenta e seria aquela dos lírios que dia

após dia se confiam à terra que os faz crescer. As dez mil coisas que nos rodeiam são

parábolas que nos mostram e nos convencem que habitar no seu reino é o traço

característico da condição humana, que deseja resguardar dia após dia sua mortalidade.

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6 BUZZI, Arcângelo R. A morada do ser humano é e está no extraordinário

E mais ainda, elas ensinam que temos de buscar uma habitação condizente à condição

humana, nos situando, como elas se situam no ponto nodal entre o céu e a terra.

À diferença, porém, das coisas que compõem o poema de morar na terra sob a

arcada do céu, sem nada saber de seu crescer, florescer e frutificar, o ser humano

compreende, no esforço mais sincero de sua vida, que ele pode arbitrar como compor o

poema de morar no ponto nodal entre o terra e o céu. A compreensão de como compor

esse poema não lhe advém primordialmente da especulação cerebral, mas dando-se ao

cuidado de construir sua morada na confluência dos elementos da situação. Ora bem, os

elementos de sua situação são a terra e o céu. Para morar nessa situação não basta comprar

uma residência ou tomar posse de um domicílio e muito menos explorar a terra. Requer

antes levantar os olhos e observar as coisas que nos rodeiam: elas compõem o poema de

sua habitação ouvindo o apelo do céu tanto quanto o apelo da terra. Desta disposição

fundamental, que nos promete igual habitação às coisas que nos rodeiam, fala este poema

do poeta: “Quer queiramos confessá-lo ou não, nós somos plantas que devemos crescer

com as raízes na terra para poder florir e dar frutos no céu” (J. P. Hebel, 1760-1826).

O ser humano não é primordialmente a imagem clássica do penso, logo existo,

isolado e recolhido sobre si, no entusiasmo delirante das idéias excogitadas pela razão!

Nem é o seu oposto declarado no mote: o coração tem razões que a razão não compreende!

Graças ao cuidado de sua mortalidade, o ser humano se abre ao universo e se deixa penetrar

da essência das coisas que crescem, florescem e frutificam ao seu redor. E por causa dessa

sua compenetração com as coisas, ele diz a si próprio: assim quero ser também! O cuidado

é o primeiro gesto de sua existência, gesto de transcendência, dinâmica de transiência: de

ir e permanecer na proximidade das coisas que nos rodeiam, de habitar no igual vigor de

sua coisalidade. Na permanência junto às coisas, na sua cercania, o ser humano sente que

elas têm por ele doce, terna e serena amizade. Uma amizade envolvente vinda mais além

da proximidade das coisas, chegando de um abismo sem acesso que as torna acolhedoras

e protetoras de nossa mortalidade.

É o cuidado de sua mortalidade que encaminha o ser humano a ocupar-se com a

terra benfazeja, com as dez mil coisas que nela crescem, florescem e frutificam. Este elemento

terra não existe sem a tangência do azul do céu que a transfigura e a faz surgir como

paisagem habitável. A terra transfigurada em paisagem habitável é a profundidade do céu

distendida sobre sua superfície. Por causa dessa proteção do céu, o ser humano confiante

se dedica dia e noite ao cuidado de habitá-la, usando e fruindo suas dádivas. Dedica-se à

arte e à técnica de fabricar utensílios de uso para delas apropriar-se de maneira mais cômoda,

benéfica e prazerosa! Dedica-se à ciência de inventar meios de comunicação, de construir

pontes, casas e templos para efetuar uma existência em êxtase além de si, porquanto: “O

poder divino plantou um jardim em Éden, ao oriente, e ali pôs o ser humano que havia

formado” (Gn 2, 8).

A partir da atividade de construir edifícios na terra, para se abrigar sob a arcada

do céu, mais ainda, a partir da atividade de fabricar objetos de uso de abertura ao céu

para recolherem os dons da terra, por estas e outras muitas atividades, o ser humano

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, n.1, p.1-13, jan./jun. 2009

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elabora uma compreensão de sua existência direcionada à terra e ao céu, compenetrada

das coisas mortais da terra e dos divinos imortais do céu. No livre jogo desta quadratura:

o infinito-céu se concretiza no finito-terra, os divinos imortais se encarnam nos humanos

mortais. Chegamos à clareza das quatro dimensões que estruturam o existente que somos

observando o direcionamento das construções e analisando o sentido dos utensílios de

uso. Para tanto, evoquemos um só objeto, a ponte! Ao construí-la os humanos sinalizam

sua contínua transiência de ir para a outra margem...

O ser humano é uma corda estendida entre o animal e o além: uma corda sobreum abismo. Perigoso passar o abismo. Perigoso estar a caminho. Perigoso olharpara trás. Perigoso é tremer e parar. A grandeza do ser humano é ser uma pontee não uma meta. O que se pode amar no ser humano é ser ele uma transição eum ocaso (NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra, Pról. IV).

Ao construir sua habitação sobre a terra e ao confeccionar diferentes artefatos de

uso, o ser humano se mostra apropriador da realidade. Se não pudesse se apropriar da

realidade não haveria como manter-se na existência. Ora bem, a habitação, os utensílios

de uso são modos de o ser humano se apropriar da realidade. A apropriação operada

pela habitação e pelos utensílios de uso nunca pretende a posse sem limite da realidade.

Denota antes uma apropriação apoucada. Mas é na pouca apropriação, no suficiente

para o imediato viver de seu dia que está a muita alegria do ser humano. Neste pouco de

cada vez, ele compreende que não perece, mas morre continuamente tanto tempo quanto

permanece no nada de seu ser sem sustentação própria. Na evidência do nada de seu ser

sem sustentação própria, ele se compreende mortal, em permanente núpcias com o

sublime que o entusiasma, isto é, com a vida da qual ele é: pura mortalidade!

A terra e o céu refletem a identidade do ser humano: o instante vida na morte e o

similar instante morte na vida! Isto quer dizer que o céu e a terra são marcas do seu

caminho. As estações do ano, o percurso do sol, o brilho das estrelas, a claridade do dia

e o escuro da noite por obra do céu faz da terra mãe nutriente e morada dos mortais. Os

mortais da terra por sua vez, no entusiasmo de seu instante de vida sob a arcada do céu,

se sentem felizes e agradecidos, participantes da bem-aventurança dos divinos imortais.

No Céu e na Terra começa a geração; nos ritos e no senso moral começa oordenamento da habitação da humanidade. Na origem dos ritos e do sensomoral está o homem de bem que os pratica até compenetrar-se deles, os repetesem parar e os ama mais que tudo. Assim o Céu e a Terra geram o homem debem, o homem de bem estrutura sua habitação entre o Céu e a Terra. O homemde bem forma com o Céu e a Terra uma tríade, nele as dez mil coisas encontramsua soma total (Xunzi).

A parábola de Marta e Maria (Lc 10,38-42) mostra que o mundo da vida, o

doméstico de nosso dia-a-dia, é a coisa mais sublime que nos é concedida, ainda quando

nela “somos fumaça que por um instante aparece e logo desaparece” (Tg 4,14). Instante

este que não podemos merecê-lo nem conservá-lo por alguma astuciosa ação de nossa

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8 BUZZI, Arcângelo R. A morada do ser humano é e está no extraordinário

parte! A parábola nos diz que quando o dom da vida nos visita, instante que seja, ele nos

agita, nos empolga e nos extasia.

Na parábola, Marta representa a ação cortês em prol de outrem no sentido de

querer-lhe bem: de amá-lo, honrá-lo, respeitá-lo, venerá-lo; é também figura da ação

pragmática no sentido de fazer algum bem ao outro, de beneficiá-lo com algo que possa

dar-lhe maior bem-estar e prazer. Marta se move nesse duplo ativismo e reclama da

conduta de Maria porque não tem a cortesia e a eficácia igual à sua. Nesta sua conduta,

Marta desconhece e, consequentemente, não considera o instante propício de puro

recebimento que diz: “Se não se espera, não se encontrará o inesperado, sendo sem vias

de acesso nem ponto de encontro” (Heráclito).

Diferente de Marta, a ação de Maria não provém da autonomia de sua consciência.

No esvaziamento da consciência, no silêncio de sua autonomia, ela é simples disposição

de acolhimento, vazio fértil, pura espera da coisa sublime que a visita, do inesperado que

a extasia, e no êxtase desse instante de pouca duração (no dizer dos místicos de rara

hora et pauca mora), ela se desfaz de tudo e estancia ‘sentada aos pés do Senhor’, num

rito de autêntica religiosidade: de feliz comprazimento com e no inesperado que a visitou.

O texto a seguir da autoria de Xunzi melhor esclarece esse não-agir de Maria:

A marcha do Céu é constante! Por isso, quem conhece claramente a demarcaçãoentre Céu e Homem é completo. Aquilo que se realiza sem que tenha havidoação, aquilo que se obtém sem que tenha havido busca, diz respeito à obra doCéu. Sobre este domínio um homem, mesmo com a mais profunda reflexão, nãoterá qualquer influência; por maiores que sejam suas capacidades, ele não poderáexplorá-las; por mais aguda que seja sua perspicácia, ele não poderá exercê-la. É oque se chama não rivalizar com a obra do Céu.

Toda ocupação se desdobra entre espera e inesperado! No início da ocupação há

oposição entre a espera e o inesperado, tal a distância que os separa. No desempenho da

ocupação, porém, por causa da mútua proximidade, desaparece a oposição e em seu lugar

cresce a tensão entre espera e inesperado. No clímax da tensão acontece a inversão entre

espera e inesperado! Com a inversão queremos dizer que o inesperado sobrevêm com tanta

fúria que passa a comandar o empenho da espera. O inesperado pode vir da Terra ou do Céu.

Cabe ao homem a obra de ordená-lo:

O Céu tem suas estações, a Terra suas riquezas, o Homem sua ordem. Assim elespodem formar uma tríade. Querer participar desta tríade, desdenhando aquiloque a torna possível, eis a ilusão. A água e o fogo possuem a energia mas não avida, as plantas têm a vida mas não a consciência, os animais têm a consciênciamas não o senso moral. O homem possui a energia, a vida, a consciência e, alémdisso, o senso moral, é portanto o ser mais nobre sob o Céu (Xunzi).

A parábola de Marta e Maria fala da importância da ocupação. A ocupação de

Marta é orientada pelo discurso de seu saber. A ocupação de Maria é orientada pelo

inesperado que entrou em sua casa soleira a dentro. Ela se deixa afeiçoar pela visita do

céu! Nela espera e inesperado se abraçam e se beijam! No procedimento de Marta quanto

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de Maria há uma diferença a ser pensada. Para pensá-la, fixemos em três pontos o que

supomos evidente a partir do que dissemos:

1. Algo de estranho apareceu na terra: a alma no corpo! Com isto queremos dizer

que a palavra se fez alma para estruturar, animar, iluminar e elevar o corpo.

Admirando a amável sublimidade do corpo, podemos associar-nos ao poeta alemão

Novalis, (1772-1801) e dizer: “Tocamos o céu quando colocamos nossas mãos

num corpo humano”.

2. Ou ainda, podemos associar-nos ao poeta Rainer Maria Rilke (1875-1926) e

considerar o corpo a mais sublime árvore da terra, proclamando com ele: “Então

elevou-se uma árvore! Pura elevação! Orfeu está cantando! No ouvido uma

grande árvore! Tudo silenciou! Mas mesmo no silêncio unânime, nasceu novo

princípio, gesto e transformação.”

3. Valendo-nos da imagem da árvore, podemos dizer que o ser humano se realiza

na medida em que se enraíza na terra, no cuidado de morar nos seus diferentes

sítios em contínuas e nem sempre previsíveis mudanças. No entusiasmo da

razão científica de produzir conhecimentos objetivos, a modernidade está

afastando os humanos do enraizamento à terra. Objetivos são os conhecimentos

que transformam a realidade em objeto. Essa transformação leva a humanidade

de hoje a relacionar-se com o real na operatividade dos objetos. A objetivação

não diz o real da realidade! Diz apenas a funcionalidade dos objetos. O real da

realidade se presta, mas não se esgota com a objetivação. Heráclito dizia: “A

realidade gosta de retrair-se!” Por causa deste seu retraimento, ela sobeja em

todas as tentativas de objetivá-la e sobra em todos os sucessos de objetivação.

Do infortúnio da objetivação da realidade, com o propósito de explorá-la até sua total

destruição, nos fala a parábola dos Dois Reis e o não-Forma da autoria de Chuang-Tzu:

O Rei do Mar do Sul era age-conforme-teu-palpite.O Rei do Mar do Norte era age-num-relâmpago.O Rei do lugar entre um e outro era o não-Forma.

Ora, o Rei do Mar do Sul e o Rei do Mar do NorteCostumavam ir juntos freqüentemente

À terra do não-Forma. Este os tratava bem.Então, consultavam entre si, pensavam num bom plano,Numa agradável surpresa para não-Forma como penhor de gratidão.

Os homens, disseram, têm sete aberturas para ver, ouvir, comer, respirar,E assim por diante. Mas o não-Forma não tem aberturas.Vamos fazer nele algumas aberturas.

Depois disso fizeram aberturas em não-Forma, uma por adia, em sete dias.Quando terminaram a sétima abertura, seu amigo estava morto.

Disse Lao Tan: “Organizar é destruir!” (MERTON, T. A via de Chuang Tzu...op. cit. p. 86-87).

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10 BUZZI, Arcângelo R. A morada do ser humano é e está no extraordinário

Esta parábola de Chuang Tzu nos mostra um modo desqualificado de o ser humano

habitar a terra porque lhe impõe um estatuto inadequado de convivência, que o impede

de aprender como estar nela e com ela numa unificação conveniente. Do modo

inconveniente e desqualificado de habitar a terra, bastante visível hoje no uso ambivalente

da Técnica e da Ciência, não vamos falar porque é por mais conhecido e posto em questão

por causa do flagelo da violência de sua objetividade. Vamos falar do habitar que se demora

junto às coisas que nos rodeiam. Só depois dessa aprendizagem que enraíza o ser humano

na serenidade das coisas da terra, podemos nos qualificar a construir residências e adquirir

domicílios para morar. O cuidado de não nos afastar das coisas que nos dão morada em

nome de extravagantes conquistas, podemos ouvi-lo nos versos poéticos de Fernando

Pessoa, na contramão dos Lusíadas de Camões:

Pelo Tejo vai-se para o mundo. / Para além do Tejo há América

E a fortuna daqueles que a encontram.

Ninguém nunca pensou / No que há para além do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.

Quem está ao pé dele está só ao pé dele (Poemas de Alberto Caeiro. Rio, l985, p.62).

Se bem consideramos as coisas que nos rodeiam, vemo-las entregues ao cuidado no

qual elas confiantes se dão mutuamente umas às outras. Por este cuidado de umas às outras,

estão todas imediatamente na mútua pertença: o rio se relaciona com a terra e com a pedra,

a terra com o rio e com a pedra, a pedra com o rio e com a terra. Por esta relação de mútua

pertença o rio é rio, a pedra é pedra, a terra é terra. Cada qual na serenidade de seu ser, sem

a inquietação de sua temporalidade! O ser humano ao perceber-se mortal na sua

temporalidade, em vez inquietar-se, ele teria por onde serenar se conseguisse morar na

proximidade das coisas! Por isso diz o poeta:

Ninguém nunca pensou / No que há para além do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.

Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Nesse dizer poético o ser humano confessa que o rio é antes dele, é o impensável

que vem a ele! Confessa que é o rio quem pensa e cuida de sua existência, antes mesmo

de ele pensar e cuidar! Vendo-o nesse cuidado, ele colabora com o rio e constrói a aldeia

não para se afastar do rio mas para vir mais ao pé do rio, porquanto é o rio o fiel

doméstico e salvaguarda da aldeia. Sem o ‘rio’, sem esse doar-se de suas ‘águas’,

totalmente a priori, não seria possível a aldeia, não teria o ser humano como cuidar de

sua existência. O cuidado do ser humano, fixando sua residência na aldeia, é sempre a

posteriori, subsequente ao a priori cuidado das coisas por ele.

Os poucos versos do poema de Fernando Pessoa nos auxiliam a compreender por

que a aldeia, isto é, a morada do ser humano é e está no extraordinário! E mais ainda,

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, n.1, p.1-13, jan./jun. 2009

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ajudam-nos a compreender por que o pensador Heráclito, a um grupo de estranhos que

desejavam visitá-lo, a eles que se detiveram surpresos ao vê-lo aquecendo-se junto ao

forno, os encorajou a entrar com as palavras: Pois também aqui os deuses estão presentes!

No ato de existir, o ser humano se distende no espaço, ocupa sempre um lugar.

Neste particular não é diferente das coisas da terra e dos astros do céu! Na maneira de

nos localizar, porém, somos diferentes porque ao pé do lugar aldeamos, isto quer dizer:

construímos nossa morada, formamos com engenho e arte o mundo onde cuidamos da

duração de nossa existência. Portanto, antes de qualquer projeto da razão nos atiramos

ao lugar e hábeis operários nele edificamos nossa habitação: ocas, malocas, casebres,

casas, arranha-céus, aldeamentos, cidades e, para tudo dizer, construímos diferenciados

mundos. Essas construções não deveriam ser torres de Babel (Gn 11,1-9) que nos afastam

e distanciam das coisas da terra. Construímos para do alto céu ver melhor a terra e a

exemplo do talo do capim e das mais coisas que nela se enraízam aprender a crescer e a

florescer na sabedoria do mistério de simplesmente ser!

No interior da aldeia que construímos, industriamos as coisas para melhor usufruir

das benesses dos frutos da terra que nos dão subsistência. Trazemo-los ao alcance de

nosso uso, apropriamo-nos deles confeccionando utensílios e artefatos técnicos. Quando

gostamos da aldeia, agradecidos, diz o poema do poeta, viemos ao pé do seu pequeno

rio, e ao vê-lo se doando, abandonando-se ao nosso uso, nos pomos a cuidá-lo mais que

a aldeia que construímos por dádiva sua. Ao cuidá-lo, viemos mais ao pé do rio e ao vê-

lo rolar no nada de si, isto é, no outro, talvez decidamos visitá-lo mais vezes não só para

cuidá-lo, mas para aprender dele a deixar brilhar em nós a mesma união amorosa e

singular de ser para o outro, com o outro e no outro, isto é, no nada de nós, no

desprendimento sem qualquer apego mínimo que seja. Se cuidarmos de morar na aldeia

ao pé do pequeno rio, aprendendo dele a nos mover no nada de nós mesmos, na contínua

entrega ao outro desconhecido, numa união amorosa, talvez possamos compreender

Heráclito, aquecendo-se ao forno e dizendo aos surpresos visitantes: Pois também aqui,

no ordinário deste lugar, os deuses estão presentes!

Nosso encontro se propôs algo fácil: mostrar que construímos para morar!

Construímos casas e pontes, fabricamos utensílios de uso, máquinas de produção de

artefatos técnicos, de transporte e de comunicação. E agora nos propomos algo mais

difícil: mostrar que não basta morar neste mundo tecnológico para merecer a felicidade

de habitantes da terra. É preciso, no esforço mais sincero que é a vida, querer habitar a

terra na imagem do céu, que tudo abraça e une em amizade pura! Para realizar essa

imagem é preciso levantar os olhos ao céu e dizer: assim quero ser também! Donde vem

esse projeto existencial do ser humano de medir-se com o céu, de querer ser habitante

da terra na imagem do céu? O projeto vem da própria imagem do céu inseminada e

perdurando no corpo que somos desde sua origem, no claro e melódico soar das palavras

deste ancestral texto:

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12 BUZZI, Arcângelo R. A morada do ser humano é e está no extraordinário

Não vos enganeis, caríssimos irmãos! Toda dádiva boa, todo esse mundo bemservido de mil coisas, surgindo da fria seiva da terra qual árvore dourada de frutosdisponíveis a nós errantes da noite, vem do alto, desce do céu em quem não hámudança nem sombra de eclipse. De livre vontade ele nos gerou pela palavra daverdade, para sermos como que as primeiras dentre suas criaturas (Cf Tg 1,16-18).

E sendo as primeiras, podemos encabeçar todas as outras criaturas no desprendimento

assim proclamado pelo poeta: “Quer queiramos confessá-lo ou não, nós somos plantas que

devemos crescer com as raízes na terra para poder florir e dar frutos no céu”.

Vamos agora, numa fala rápida, evocar instantes que nos mostram como esse

homem que habita os sítios da terra é de fato imagem do céu! Em algum momento mais

sincero de vida, quem não provou instantes de vibração do céu! Instantes esses, não

condicionados pelo sentimento de morar numa confortável casa, sentados à mesa bem

servida, mas pelo sentimento primordial de núpcias com as coisas no igual entusiasmo

de surgir da seiva da fria terra no acolhimento do céu. Através desses instantes de

unificação com as coisas, podemos nos associar a elas no entusiasmo de surgir da seiva

fria da terra no acolhimento do céu. Nem sempre porém, efetuamos nossa existência

como a flor que se abre serena sobre a terra no acolhimento do alto céu. No intuito de

nos persuadir que podemos nos entusiasmar pelo instante de nossa vida mortal, iguais

ao entusiasmo das coisas que nos rodeiam, evoquemos o poema do presépio de Belém.

No contexto da época, o presépio era uma precária acomodação nos arredores da

aldeia de Belém. A palavra presépio significava ‘tapada para animais’, estábulo onde se

recolhia gado. Conforme relato da tradição, na manjedoura do presépio, envolta em

panos foi deitada a criança: o céu na terra, o sobrenatural na carne, o poema do ser

humano concentrado no duplo apelo e ímpeto de conjugar as coisas temporais da terra

aos dons divinos do céu. No real jogo desse duplo apelo e ímpeto, o ser humano é

caminho, viandante entre a terra e o céu, no risco da errância e na ameaça de perder-se.

Salvaguardando a unidade desse duplo apelo e ímpeto, bem antes de avocar profissionais

de grande saber, a criança de Belém, ‘bordadeira de estrelas’ – sempre vigente e florindo

no peito de cada ser humano –, chamou os pastores que no campo vigiavam rebanhos

de ovelhas (Lc 2,8-18), sinalizando no pastor a coragem e a paciência do ser humano no

cuidado de conduzir e de ser conduzido à bem-aventurança de habitante da terra na

correspondência ao apelo mais alto do céu.

O bom pastor se mostra no cuidado da ovelha (Jo 10,1-18), da criança que ele

mesmo é: instante de corpo mortal no sopro da vida! Repetindo o mito de Sísifo: na

coragem e na paciência de pastor, o ser humano se entrega ao cuidado de abrigar-se, de

vestir-se, de alimentar-se. Para revigorar o seu temporário viver, dia após dia ele convoca

as coisas da terra, chama-as e delas se apropria. Por este empenho de se unir a elas no

ardente desejo e na inflamada espera de ter mais vida, ele se transcende e ultrapassa o

real dado de si próprio: seu íntimo evoca a presença de uma causa silenciosa à qual deve

a vigência de seu ser. Na íntima evocação e na efetiva convocação dessa causa velada em

sítio algum não aparecendo, saindo de si sem dissociar-se das coisas que lhe dão arrimo

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, n.1, p.1-13, jan./jun. 2009

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e afago, o ser humano ouve o apelo da causa velada e nela reclinado queda-se em ditosa

bem-aventurança, à semelhança da estática criança de Belém.

Portanto, as coisas que nos rodeiam, que nos servem e que se doam integralmente à

nossa apropriação, elas nunca enganam. Antes, o contrário! Aos mortais que delas se

apropriam para proverem a conservação de suas vidas, as coisas dizem: “não basta instalarem-

se e sentarem-se à minha mesa para superar vossa mortalidade!” Assim, as coisas que nos

rodeiam e que no seu generoso doar-se nos dão ânimo e alegria de viver, elas nos condicionam

a considerá-las iguais a nós: portal ou poema apenas começado do mistério de sermos

fustigados pelo desejo de vida mais plena, jamais saciada pela superabundância dos bens de

consumo. O desejo de mais vida no infinito é o poema da criança que lateja na carne mortal

de nossa existência. Quem vive na soleira desse portal do desejo ouve os encantos da

proximidade do infinito e com o sambista pode cantar:

Vou m’embora, vou m’embora! Eu aqui fico mais, não!Vou morar no infinito e virar constelação!

Ao cuidar da ovelha, a criança que ele é, o pastor convoca as coisas, chama-as para

dentro de casa, põe-nas à mesa para alimentar e salvaguardar sua vida mortal. Nesse

cuidado, ele se aproxima das coisas e as surpreende se doando desprendidas de si próprias

e sem recusa declinam para o seu ocaso, descem para o silêncio e o nada de seu ser.

Afeiçoado por esse desprendimento das coisas, o ser humano decide igualar-se a elas no

poema de sua existência entrelaçada de vida e de morte. Decide ser entusiasta pastor a

caminho para o declínio ao qual se sente chamado: “O bom pastor dá a vida” (Jo 10,11).

Qual é a escondida paisagem que tanto atrai o bom pastor a ponto de desprender-se da

própria vida? O desprendido não está morto no sentido de ter parado de viver. Ao contrário,

o desprendido se move no desprendimento de si porque está no entusiasmo da aurora do

declínio à qual se sente chamado. A aurora do declínio é “o Pai que me ama porque dou

minha vida para de novo a retomar” (Jo 10, 17). O desprendimento da vida é movido pelo

entusiasmo de morrer que acena e confessa a pertença a um outro doce viver.

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, n.1, p.15-37, jan./jun. 2009

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A morte alheia e a nossa: umaA morte alheia e a nossa: umaA morte alheia e a nossa: umaA morte alheia e a nossa: umaA morte alheia e a nossa: umaperspectiva existencialperspectiva existencialperspectiva existencialperspectiva existencialperspectiva existencial

The death of the other and ourThe death of the other and ourThe death of the other and ourThe death of the other and ourThe death of the other and ourdeath: an existential perspectivedeath: an existential perspectivedeath: an existential perspectivedeath: an existential perspectivedeath: an existential perspective

Écio Elvis Pisetta*

ResumoResumoResumoResumoResumo

De acordo com a obra Ser e tempo do filósofo alemão M.

Heidegger, a morte alheia é um caminho inapropriado para a

compreensão da morte que pertence a cada ser humano. Mas a

abordagem desse tema se faz necessária para dar conta da questão

sobre como se deve compreender a completude da presença

(Dasein). No entanto, o problema reside no modo como

compreendemos esses termos e de como interpretamos o

fenômeno da morte. A morte parece frustrar toda tentativa,

inclusive quando buscamos interpretá-la a partir da morte dos

outros. Entretanto, esse fracasso possui algo de positivo. Ele

demonstra tanto as falhas de análise quanto a direção existencial

que deve ser trilhada para satisfazer a relação morte-totalidade.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: morte, existência, outros, filosofia, Heidegger.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

According to Heidegger’s Being and Time, the others’ death is an

inappropriate way for understanding our own death. But death’s

subject is necessary for answering how we should understand

Dasein’s totality. Otherwise our problem appears in the way how

we understand these ideas and how we interpret death’s

phenomenon. Death seems to frustrate every attempt, including

when we try to understand it from other’s death. Therefore, this

misunderstood has something positive. It demonstrates as the

analysis’ failures as the existential way we should move to develop

the relationship between death and totality.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: death, existence, others, philosophy, Heidegger.

* Doutor em filosofia pelo PPGF-

IFCS-UFRJ e professor.

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16 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Este trabalho desenvolve alguns pontos que se encontram no § 47 de Ser e tempo1 de

Martin Heidegger, cujo título diz: “A possibilidade de se experimentar a morte dos outros e de

se apreender toda a presença (Dasein, modo de ser humano)”2. Mesmo assim, ele deve ser

modesto em suas pretensões. Ser e tempo trabalha a colocação da questão pelo sentido do

ser em geral. Mas, para tanto, é preciso recolocar, de maneira nova, a questão pelo ser de

quem, entre outras características, possui aquela de questionar: o ser humano, a presença.

Desenvolve-se então a analítica existencial da presença. No começo da segunda seção de Ser

e tempo, em seu primeiro capítulo, coloca-se (novamente) a dificuldade de uma compreensão

total do ser humano e, em sua esteira, a necessidade de uma interpretação existencial da

morte humana, do ser-para-a-morte. O fracasso da segunda implicaria a impossibilidade da

primeira. É nesse contexto que encontramos o parágrafo supracitado, justificamos nosso

título e limitamos nossa reflexão. Não visamos uma exploração pormenorizada nem da

alteridade, nem da totalidade, nem da morte. Desejamos aproximar-nos filosoficamente dos

problemas ali surgidos, seguindo algumas orientações do pensador já citado. A fim de

conquistarmos uma visão abrangente da problemática existencial envolvida, nos deteremos

numa exploração do fenômeno da morte tal como é compreendido em geral na convivência

cotidiana. Com isso perceberemos tanto a variedade de interpretações dali surgidas quanto

a compreensão distinta de ser humano e de alteridade liberada pela analítica existencial.

11111 O ser humano e a existênciaO ser humano e a existênciaO ser humano e a existênciaO ser humano e a existênciaO ser humano e a existência

O caráter filosófico de um tema não reside em seu aparente “conteúdo” mas no

modo como é abordado e desdobrado, o que exige uma explicação da perspectiva que

nos guiará. Podemos chamá-la de “existencial”. Nela, o ser humano é pensado como

Dasein, como presença, como modo de ser e não como algum ente cuja constituição de

ser esteja previamente, continuamente e eternamente definida. Esclareçamos.

A compreensão da existência deve ser visualizada num certo conflito com a tradição

filosófica em geral. O ser humano é compreendido existencialmente, isto é, o ser desse ente

deve ser colhido a partir de seu próprio ser que, a cada vez, encontra-se situado num aqui e

agora, relacionado às coisas, aos outros e também, a si mesmo. Dessa forma, o ser humano

não é concebido previamente como detendo uma “essência” ou “substância” uniforme e

universal. É existindo, isto é, sendo para fora de si sob os mais diversos modos e formas,

exteriorizando-se (sendo) nas mais diversas realizações, que o ser desse ente põe-se e está

1 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Trad. revisada de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis/Bragança Paulista: Ed.

Vozes/Ed. Universitária São Francisco, 2006. Col. Pensamento humano. Sendo esta nossa principal fonte, utilizaremos,

nas notas de rodapé, a abreviação “ST” seguida do parágrafo e da página correspondentes.

2 ST, § 47, p.311-315.

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, n.1, p.15-37, jan./jun. 2009

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cada vez em jogo. O ser humano se de-fine ou é de-finido nesses relacionamentos. Não se

parte nem se busca uma noção central ou genérica de ser humano que sirva como orientadora.

Chama-se a atenção, antes, para uma copertinência ao que vêm ao encontro da presença,

isto é, ao “exterior”, ao que se encontra nas suas circunstâncias. Não se pensa uma “essência”

em oposição a algo “inessencial” (as coisas do mundo e os outros), mas sua mútua imbricação.

Dessa forma, não devemos sossegar com nenhum conceito pronto e sedimentado, que

possa servir como uma tábua de salvação, mas aprender a ser em consonância com uma

certa dinâmica criadora, uma movimentação incessante do ser humano para as coisas, para

os outros seres humanos e das coisas e dos outros para o ser humano visado.

A isso se ligam duas noções complementares apresentadas logo no início do § 93: a

de existência e de, nela mesma, estar implicado o próprio ser. A partir delas pode-se

compreender que a existência não é nada de qüididativo, nada dotado de um conteúdo pré-

existente, e nem de um vazio de conteúdo a ser, a posteriori, preenchido por meio de algum

procedimento investigativo. A existência perfaz-se ex-sistindo. Ser e existir são sinônimos.

A descrição da existência serve-se do “método” fenomenológico que, em última

instância, em descrevendo, deixa o ser advir: “às coisas elas mesmas”. E seu conteúdo é o ser

mesmo, tal como ele se dá em geral, naquilo que é chamado de “cotidianidade mediana”.

Ali ele se encontra velado, confuso, desfigurado. O tema de uma descrição existencial, conforme

Heidegger, é:

“Justo o que não se mostra numa primeira aproximação e na maioria das vezes,mantendo-se velado frente ao que se mostra numa primeira aproximação e namaioria das vezes mas que, ao mesmo tempo, pertence essencialmente ao que semostra numa primeira aproximação e na maioria das vezes, a ponto de constituiro seu sentido e fundamento”4, isto é, “(...) não é este ou aquele ente, mas o serdos entes”5.

A existência não é compreendida por Heidegger como algum conjunto de temas

que pertencem ao nosso dia-a-dia. Mesmo quando esses estão sendo expostos, o que se

visa, a cada vez, é o que não se mostra de imediato, o ser. Assim, a análise existencial

caracteriza, sobretudo, um modo específico de tornar transparente a vida já sempre

sendo vivida. A oposição ou essência ou existência deve ser abandonada. A existência é

a “essência” ou “substância” da presença (Dasein)6.

Precisamos, então, deslocar nosso olhar comum dos conteúdos e métodos para o

modo de ser do homem, para uma compreensão desse ente como não sendo “algo” dotado

de um conteúdo previamente dado, mas sendo tão simplesmente modo de ser, jeito de ser,

relação, ser-para (Um-zu). Segundo essa ótica, o ser humano já sempre é, sendo no mundo

3 Id., § 9, p.85-86.

4 Id., § 7, p.75.

5 Id., Ibid.

6 Cf. ST, § 63, p.397; § 43, p.282; § 25, p.173.

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18 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

para as coisas, para os outros e para si mesmo. Essa relação se expressa nas mais variadas

formas de se ocupar com as coisas e de se preocupar com os outros. Não há alguma forma

de ser anterior à relação. Não havendo nenhuma essência prévia que o sustente, ele se

encontra jogado ou lançado, como o ser-no-mundo que é, à tarefa (trabalho) de buscar

ou construir, a cada vez, seu próprio “sustento”, “fundamento”, isto é, seu próprio ser. Em

seu ser, o ser humano já sempre se conformou com um modo determinado de ser, segundo

o qual ele se apresenta aos outros, a si mesmo, e também ao nosso pensamento. Ele nunca

se mostra previamente como “puro”, mas já sempre “contaminado” a partir de seus

relacionamentos mundanos.

Na existência está em jogo, a cada vez, o ser do homem. Em sendo, ele se encontra

aberto ou jogado à tarefa intransferível de responsabilizar-se por seu próprio ser como

seu. Nada está decidido de antemão acerca do ser do homem, mas tudo se decide, a

cada vez, na existência. Ao modo de ser do humano, interpretado como existência, não

corresponde, então, uma ausência da dinâmica ou da tarefa de constituir (fazer) seu

próprio ser, mas, muito pelo contrário, a exige. Como podemos perceber essa exigência?

Ela se apresenta no freqüente conflito entre os existenciais e as categorias, entre a existência

e a tradição como herança simplesmente dada de nosso ser. Já sempre somos herdeiros,

isto é, nunca somos uma espécie de “primeiro homem”, pois participamos de uma tradição

já constituída. O problema surge quando nos perguntamos – influenciados pela noção

de existência – pelo modo como herdamos a tradição. Quando, nesse modo, apresenta-

se um certo comportamento que toma o ente como evidente, óbvio, vigora então a

estrutura ontológica do ser simplesmente dado (etwas Vorhandenes). O crucial é que

nessa compreensão simplesmente dada da existência impera a evidência e, com ela, o

esquecimento do ser e, assim, a falta da colocação da questão pelo ser do homem e pelo

sentido do ser em geral. Pois, se tudo já é evidente, para que perguntar? Isto seria um

contra-senso! Nesse sentido, o questionamento existencial empreendido por Heidegger

é um retorno ao começo, buscando novamente o direito ou o sentido de ser daquilo que

é, o ser do ente. O evidente (o ser) é, também, o mais obscuro para o pensamento7, mas,

em contrapartida, é também sua provocação, orientação e princípio.

É intenção da analítica existencial trazer à tona a compreensão prévia a toda

efetividade, um sentido que se estenda às possibilidades de toda efetividade ou àquilo com

o que já contamos sem nos darmos conta em nossos mais diversos afazeres teóricos e

práticos. O ser humano possui, entre outras características, a de questionar a si mesmo, o

mundo, o ser. Pertence a esse processo de auto-interpretação a explicitação da existência.

Na analítica o ser humano esforça-se recuando, vendo e dizendo como sempre já foi,

através da apreensão dos modos mais freqüentes de existência. Esses recebem o nome de

“existenciais” e não podem ser confundidos com as “categorias”. As categorias são formas

impostas ao ente, visíveis para todos, desdobrando, ontologicamente, o que constitui o

7 Cf. ST, § 1, p.40.

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ser do ente. Os existenciais correspondem a modos de ser ou estruturas, por meio das

quais a existência apresenta-se, a cada vez, como um projeto aberto de ser. A preocupação

das categorias consiste sempre em conceber e desdobrar universalmente a composição

substancial do ser humano. Elas pedem pelo “quê” do ser humano. Já os existenciais

ocupam-se com o modo de ser, “como” o ser humano, que cada vez é, é, antes de qualquer

determinação qüididativa. A análise existencial visa não impor ao ente um ser, mas deixar

o ser, tal como ele é, ser. Existencialmente, o ser humano é sempre um “quem” determinado

a cada vez8. Dessa forma expõe-se uma tensão que diz respeito ao próprio pensamento,

entre as categoriais – e o ser simplesmente dado ou presente que lhes pertence – e os

existenciais. Na temática da morte encontramos, também, esse problema.

Para que o ser humano, como ser-para-a-morte, possa ser filosoficamente apreendido,

é preciso uma certa desobstrução de nossa compreensão cotidiana. Segundo a linguagem

de Ser e tempo, o ser humano, em seu fato de ser, sempre localizado num aqui e agora é,

em geral, compreendido de maneira imprópria, isto é, dominado pelo modo de ser ou de

existir chamado “impessoal” (das Man), pela “gente”, pela “sociedade”. É a partir das

coisas que fazemos e dos outros com quem convivemos que nos vêm a primeira indicação

de quem somos. Todo esforço pessoal e intransferível de compreensão é substituído por

noções genéricas, conceitos universais, idéias sedimentadas que aprisionam

interpretativamente cada um no que é comum a toda gente. Essa orientação primeira,

indiferente e impessoal, nos fornece um “ser carente de investigação” e que já sempre

trazemos conosco sem nos darmos conta. Entretanto, pertence também ao ser humano a

possibilidade de uma compreensão própria, isto é, a compreensão impessoal não lhe é a

única acessível. Como compreender essa distinta possibilidade, a da propriedade?

Uma observação nos é útil: não se deve conceber a existência como a oposição

entre esses dois caracteres, ora uma propriedade, ora uma impropriedade. Impropriedade

e propriedade, impessoalidade e pessoalidade, categorias e existenciais, mantêm uma

tensão existencial. O fenômeno da morte assume um lugar importante à medida que

libera o ser humano para a possibilidade de um encontro consigo próprio, não mais

orientado exclusivamente pelos outros e pelas coisas compreendidos como simplesmente

evidentes. Mas isto não se dá “sem mais”. Somente uma compreensão existencial desse

fenômeno libera essa possibilidade. Assim, o ser humano é colocado diante da tarefa

intransferível de seu ser. Numa tal solidão ele pode se libertar do impessoal rumo à

possibilidade de ser um “si-mesmo”, que não nega, mas assume de forma transformada

o impróprio no próprio, isto é, na singularidade dos projetos que compõem a existência.

Por meio da morte, trabalhada existencialmente, talvez perturbemos aquele raciocínio

unidimensional em que sempre procuramos guarida, e que, na era da ciência, nos promete

a resolução de todos os problemas. O modo heideggeriano de explorar o tema pode nos

fornecer um caminho proveitoso de reflexão, principalmente se levarmos em conta nossa

ignorância diante da morte, que se deve, inclusive, ao nosso excesso de informações

através dos mais diversos veículos.

8 Cf. ST, § 9, p.89.

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20 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

22222 O problema morte-totalidadeO problema morte-totalidadeO problema morte-totalidadeO problema morte-totalidadeO problema morte-totalidade

Como podemos, brevemente, localizar a problemática da morte no contexto de

Ser e tempo?

Segundo o que encontramos no § 46, junto à compreensão desse fenômeno

encontra-se também uma compreensão existencial da totalidade do ser humano. Essa

compreensão de totalidade, já apresentada no existencial chamado de cura (Sorge)9,

ainda não teria sido plenamente elucidada, pelo menos levando em conta o modo como

Heidegger a deseja apresentar. O ser humano permaneceria numa incompletude de seu

ser enquanto fosse interpretado somente a partir da impropriedade, a partir daquilo que

ele, essencialmente, não é. Essa interpretação imprópria teria dominado toda a primeira

seção da obra. Façamos uma breve explicação.

O ser humano está sempre a relacionar-se com as coisas, com os outros e consigo

mesmo. Ocupar-se como todo mundo se ocupa, preocupar-se como todo mundo se

preocupa, ser como todo mundo é, é ser de modo impróprio.

O si mesmo da presença cotidiana é o impessoalmente-si-mesmo (das Man-selbst),que distinguimos do propriamente si mesmo, ou seja, do si mesmo apreendidocomo próprio10.

Essa impropriedade diz-nos que o ser humano, antes de tudo e na maioria das

vezes, encontra seu ser a partir das coisas e dos outros. Os outros nos chamam pelo

nome, dizendo-nos, primeiramente, quem nós somos. Eles também nos dizem isso a

partir das profissões, do status social, das funções que exercemos em determinado

contexto etc. Nós mesmos nos autodesignamos a partir do que fazemos junto aos outros,

do que conquistamos, da importância que nos é dada. A impessoalidade não expressa

um defeito, algo que poderia, simplesmente, ser superado ou que deva ser superado. Ela

indica, primeiramente, nosso modo comum, genérico, de ser. Por isso é chamada de

“impessoalmente-si-mesmo”, a “gente” que nós somos. Essa caracterização negativa

pertence essencialmente ao ser humano. Sem ela seria impossível a vida comum em

todos os seus estratos. Mas, podemos também dizer, enquanto o ser humano for apenas

compreendido dessa forma, algo lhe falta.

Sob o ponto de vista da impessoalidade nós somos, de certa forma, como todo

mundo é. No entanto, a bem dizer, ninguém quer ou deseja em seus mais variados

projetos de vida, ser como todo mundo é. Cada um quer ser, ou gostaria de ser, como

somente ele pode ser. Assim a impessoalidade expressa, ontologicamente, a ausência de

uma caracterização positiva do ser humano, isto é, de uma propriedade. A propriedade

que “falta” não deve ser confundida com alguma categoria, ou com alguma qualidade

que se possa acrescentar ao ser do homem.

9 Cf. ST, § 41, p.258.

10ST, § 27, p.186.

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Para justificarmos existencialmente essa exposição, remetemos ao § 9 de Ser e tempo,

onde se diz: “A ‘essência’ desse ente está em ter de ser”11. Podemos encontrar a propriedade

aludida na expressão “ter de ser”. Impessoalmente, nós sempre somos a partir das coisas e

dos outros, herdando nosso ser a partir de um conjunto de experiências sedimentadas. Sob

a perspectiva de uma possível propriedade, o fato de sempre estarmos a herdar os mais

variados modos de ser cunhados pela tradição, não nos exime da tarefa de assumir esse ser

como “nosso”, de nos responsabilizarmos pelo mundo aberto em que sempre já estamos.

Mas, como se constrói essa responsabilidade? Talvez quando o ser humano impõe-se a

tarefa de uma “destruição da tradição metafísica”, isto é, quando ele assume a tarefa de se

medir, de ter que se haver com tudo o que lhe foi transmitido. Há então, entendemos, um

novo posicionamento diante do que herdamos. A tradição descortina-se, não como o que

deve ser meramente aniquilado, mas como uma tarefa de construção desde os fundamentos,

onde somos convocados continuamente pelo nosso ser a ter de fazer, a ter de ser. A ter de

fazer, o quê? E como é esse “fazer” (ainda e sempre a ser feito) que constitui nosso “ter de

ser”? Dentro dos limites de nossa exposição, ele remete ao conflito, anteriormente aludido,

entre os existenciais e o ser simplesmente dado (categorias), onde “fazer” e “ter de ser”

afloram como a questão (a busca, o querer, a questio) de toda investigação genuína. Nossa

tradição converte-se na tarefa humana de assumir nosso ser, não aceitando meramente que

“outros” o façam por nós, mas decidindo-nos. Outros, antes de nós, já o fizeram. Cabe-nos

a mesma tarefa. Assim, ligada à noção de propriedade, encontramos as noções de tarefa,

trabalho, decisão, a-se-fazer, projeto, futuro; a noção de que o feito não nos exime de termos

que pôr mãos à obra, de que somente ocupando-nos em todos os estratos de nosso ser é

que podemos, cientemente, assumirmo-nos.

Mas, a princípio, a gente sempre se ocupa e preocupa segundo os moldes herdados

socialmente. É difícil abandonar os parâmetros sociais dentro dos quais nos criamos,

para deixarmo-nos conduzir pelas coisas elas mesmas.

Formalmente, o impessoalmente-si-mesmo ocupou um lugar proeminente na primeira

seção de Ser e tempo e, agora, surge a necessidade de redirecionar o olhar por sobre toda

essa interpretação. Está em jogo a possibilidade de uma compreensão total do ser humano.

Nesse sentido, enquanto o ser humano vive impessoalmente, sempre lhe falta algo. E, vivendo,

visa-se à satisfação das mais diversas pendências. Mas há algo que nunca poderá ser resolvido

dessa forma: a morte. Ela existe como uma estranha pendência. Pertence, por um lado, à

vida humana e a tudo que vive. Mas sua incorporação significa a extinção da vida. Por isso,

enquanto o ser humano existe, ele vive em seu ser “uma insistente inconclusão”12. Como

pensar essa situação? Enquanto estou vivo, algo sempre me falta. Num sentido extremo,

falta-me a morte, essa que pertence a todo ser vivo. Mas quando essa, finalmente, chega,

não posso satisfazer a minha incompletude, porque estarei morto. Podemos lembrar Epicuro,

a partir do texto de Françoise Dastur, A morte – Ensaio sobre a finitude:

11Id., § 9, p.85.

12Id., § 46, p. 310.

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22 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

O que Epicuro expressa perfeitamente ao dizer que, durante nossa existência, amorte não está e que, quando a morte está presente, não somos mais, e que elanão é, conseqüentemente, nada para nós –, mas somente experiência do outro...13.

A busca dessa totalidade é que justifica a necessidade de uma abordagem existencial

da morte, pois, segundo o raciocínio acima, não estaria o ser humano fadado a uma eterna

incompletude de seu ser? E a analítica existencial não teria então de renunciar a qualquer

pretensão de uma compreensão total desse ente? Mas, será que essas perguntas estão sendo

pensadas de acordo com a proposta existencial de interpretação do ser humano? Indagações

dessa espécie ainda se orientam por uma certa compreensão que separa vida e morte, essência

e existência, homem e mundo. Lida com os termos como evidentes, como simplesmente

dados, pressupondo seu sentido sem questionamento. É possível, então, uma compreensão

existencial do ser humano que inclua tanto a impropriedade quanto a propriedade?

Pode-se dizer que, enquanto o ser humano é de modo impróprio, algo sempre lhe

falta. Se algo falta, ainda não está completo. A morte, o fim, pertence a essa falta num

sentido extremo. Abordá-la, então, é tratar o problema da totalidade da vida, ou de uma

compreensão total do ser humano. Na situação aludida, ganhar a totalidade seria perder a

própria “vida”. Assim, seria impossível ao ser humano apreender-se como ser total. No

entanto, conceitos como “fim”, “totalidade”, “ainda não-ser” e “morte”, foram apresentados

como simplesmente dados, manifestando a existência de um fosso intransponível: ou morte

ou vida. Um termo aparece como a negação do outro, tornando impossível a experiência

de um no outro, pois compreendem o ser humano como um “elemento”, a vida como

“outro”, e a morte como o “fim” da vida. No entanto, o esgotamento das possibilidades

formais de apreensão da totalidade do ser humano ainda não exaure todas as possibilidades.

Restam as possibilidades existenciais e, de modo especial, a conquista de um conceito

existencial de morte.

Existencialmente, a morte se dá como “minha”. A interpretação desse pertencimento

constituirá o conceito existencial da morte. Abre-se, então, uma distinta maneira de

compreender a morte e de encaminhar uma resposta à questão da totalidade do ser humano.

No momento abordaremos um ponto, a morte do outro. Segundo Epicuro, a

experiência da morte cabe unicamente ao outro, sendo alheia a um ser humano singular.

Ela é, primeiramente, nada para nós, mas somente experiência do outro. A “primeira”

experiência que tenho da morte ocorre, então, apenas de forma indireta, mediada por

uma certa noção de alteridade. Mas, como o “outro” está sendo aqui compreendido?

De certa forma, e a princípio, como um ser simplesmente dado, impessoal, dotado de

certa evidência e que, como um vício, nos leva a um certo esquecimento tanto de nosso

modo de ser individual quanto do modo de ser de toda alteridade. Fica no esquecimento

o ser-no-mundo, que é, igualmente, ser para e ser com. Mesmo nos mantendo cercados

por essa compreensão simplesmente dada de “outro”, aqui e ali a ultrapassaremos,

13DASTUR, Françoise. A morte. Ensaio sobre a finitude. Col. Enfoques. Filosofia. Rio de Janeiro: ed. DIFEL, 2002, p.14.

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rumo à possibilidade de admirar-nos um pouco com nossa própria ignorância frente à

alteridade que somos e que não somos14. Exploraremos brevemente a riqueza de

orientações e o alcance que a morte, como experiência do outro, pode nos dar.

Decairemos, ontologicamente, numa gama de interpretações simplesmente dadas da

alteridade e, ao mesmo tempo, as relativizaremos.

33333 A morte do outroA morte do outroA morte do outroA morte do outroA morte do outro

Se não posso, a rigor, conhecer a minha morte (já que estaria morto) poderia,

então, levantar a hipótese de que a morte somente pode ser apreendida como a morte

de um outro ser humano. Esse encaminhamento justifica-se à medida que o ser humano

não é apenas um ente que lida com os manuais e consigo mesmo, mas também com os

outros. Ele é com, ele convive preocupando-se, não apenas no sentido de ocupar-se

antecipadamente com as alegrias, tristezas, vicissitudes da vida alheia, próxima e distante,

que possam, de alguma maneira, afetá-lo. A preocupação está presente em cada

ocupação, um tanto à revelia de nossa comum consciência. Quando escrevemos, quando

um artesão faz uma cadeira, quando um projetista cria uma ferramenta específica, quando

nos vestimos etc., sempre estamos levando em conta o outro. É que, em última instância,

é para ele que tudo é feito, como o destinatário que lerá, sentará, segurará determinado

instrumento (e que, por isso, não pode ter “qualquer” tamanho ou forma), vestirá tal

roupa, consumirá etc. Por certo, a morte não é algo à mão como um instrumento. Ela

não está à nossa disposição. Com ela nada se pode fazer. Não posso experimentar a

minha morte seguindo esse raciocínio. Mas, até certo ponto, a convivência faz algo com

a morte e deixa-se fazer a partir da morte. Esse afazer possui a textura de uma preocupação

e não, simplesmente, de uma ocupação com algo. A morte, então, conforma-se a e é

conformada pela convivência, pela vida social. A comunidade, o grupo, a sociedade,

assumem características de “autor”, de “responsável”. A partir da convivência que

compreende preocupadamente a morte, encontraremos uma variedade de

relacionamentos com suas características específicas. Encontraremos também uma

individualidade ou subjetividade que se forma (e deforma) a partir destas compreensões

sociais. Estabelecendo certas semelhanças, podemos conhecer a nossa morte a partir da

morte dos outros. Podemos também afirmar que a primeira experiência que temos da

morte é a do outro. Pois bem, como a morte alheia dá-se a nós?

Ela se dá ou aparece para nós, de modo especial, no modo como tratamos nossos

mortos, ontem e hoje, ou de como nos relacionamos com os moribundos. Podemos incluir

nesses modos, apesar das aparentes diferenças, as infinitas surpresas que os “mortos” nos

causam quando somos deles informados. Esses relacionamentos revelam, também, aspectos

14Cf. ST § 26, p. 182, por exemplo, onde se lê: “Porque a presença é, ela possui o modo de ser da convivência. Esta não

pode ser concebida como o resultado da soma de vários ‘sujeitos’”.

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24 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

importantes de nossa vida social. Nos rituais funerários das diversas épocas, no culto, nas

orações, nos jogos, na magia, na moral e no direito, na cultura, e, modernamente, na

organização de nossa civilização técnico-científica, transparece uma relação com os mortos

e com a morte, uma relação que expressa certa consciência de nossa transitoriedade bem

como a inclusão e/ou exclusão da morte e dos mortos da vida. Na convivência encontramos

a experiência dos que estão vivos e, portanto, não morreram. A experiência da morte

alheia é vivida pelos presentes, por exemplo, como perda e sofrimento devido à ausência

do outro. Mas esses que perderam alguém e que sofrem, permanecem vivos. O que esta

experiência pode nos oferecer?

Quando o outro morre, ele não está mais presente, ele não está mais no mundo. Seu

ser-no-mundo findou, no sentido de não mais estabelecer relações. Mas, no âmbito da

convivência, o outro que morreu, ainda não “partiu” completamente. Ele é ainda um ser, que

está aí, um “ser simplesmente dado de uma coisa corpórea”15, por exemplo. Ele está presente

numa estranha presença que nos afeta. Pode-se ali ver ou fazer a experiência da passagem da

vida para a não-vida, do modo de ser existente para o modo de não-ser-mais-presente.

Consideremos os cálculos utilizados pela medicina para estabelecer a morte. Servindo-se de

princípios bio-fisiológicos, de uma certa noção genérica de vida, desenvolvida por nossa

civilização científica, e que aproxima a vida humana à do animal e do vegetal, se fixa o

momento da morte. Estas noções ou princípios norteadores, que estabelecem o momento

da morte, modificam-se segundo o desenvolvimento da medicina. Desta forma, também se

pode dizer que alguém sofreu uma parada cardíaca e morreu, ou ainda teve morte cerebral

sendo mantido por máquinas, “vegetando”. O ente tem seu fim como ser humano, e seu

princípio como ser simplesmente dado, como um “vegetal”, como “algo”, como “cadáver”.

Morreu, tornou-se um cadáver, ali, dado.

Mas esta compreensão leva a enganos, pois se deixa de lado a especificidade humana,

a de ser relacionando-se com o que está à sua volta: as coisas e os outros. O próprio cadáver

que aí está, nunca é mero ser simplesmente dado. Ele intriga e move os outros a se posicionarem

diante de sua presença-ausência. O cadáver pode ser interpretado a partir de uma anatomia

(dissecação) patológica, que se orienta por uma certa compreensão de vida, por exemplo, a

de um corpo que se compõe de partes interligadas, que funcionam de determinada maneira,

que possuem uma certa “hierarquia” vital etc. Do contrário, como se poderia fazer uma

anatomia? O que ela busca? Qual o seu interesse? Como se poderia atestar uma causa

mortis? O morto (o cadáver) que está aí, que está como ser simplesmente dado, também “é

‘mais’ do que uma coisa material, destituída de vida. Nele se encontra algo não vivo, que

perdeu a vida”16. A própria idéia de cadáver (“um cadáver qualquer”, “esse cadáver”, “cadáver

de quem?”, “o corpo de fulano” etc.) remete a uma compreensão, mesmo que obscura, de

vida humana. O cadáver nunca é, no âmbito da convivência, isto é, de nossa vida, mera coisa

15Id., § 47, p. 312.

16Id., Ibid.

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corpórea. Possuindo um sentido histórico, ele sempre é revestido do mais rico imaginário, ou

melhor, em relação a ele e à sua intrigante situação, as pessoas e os povos constroem uma

infinidade de relacionamentos. E isto também significa: as pessoas e os povos se constroem

relacionando-se com a morte e os mortos. Vejamos dois exemplos simplificados. Um nos

remete à antiguidade greco-romana e outro aos nossos dias.

3.1 O finado e o culto na antigüidade

O morto não é um ser simplesmente dado segundo os moldes das coisas dentro do

mundo revestidas de uma certa obviedade. O ser do morto não é meramente esquecido.

Diante dele o que sabemos, ou pensamos saber, vacila, exigindo novas apropriações. Prova

disto é que os vivos se ocupam do morto como finado. Isto se concretiza num modo

coletivo17, num ritual, típico da convivência que, de diferentes modos, em diferentes épocas

e circunstâncias se ocupa (e preocupa) com o morto, não como se fosse um objeto à mão,

como uma cadeira, mas na forma de uma pré-ocupação. Os vivos, enquanto vivem e

cuidam da vida, sem se darem conta, preocupam-se com a morte, com sua possibilidade e

com o possível morto, em diversos sentidos. Não leiamos a palavra “cuidar”, aqui, meramente

como uma prevenção, como uma manutenção, por exemplo, unilateral da “vida”.

Deixaríamos escapar algo essencial da vida mesma. “Cuidar” remete antes à construção e

cultivo de canais de relacionamentos, inclusive com o além-túmulo. O ser humano sempre

está a cuidar, mesmo quando se descuida e descuida do mundo. Nesse sentido, o ser

humano corresponde ao modo de ser do cuidado. Isto aparece, também, no culto aos

mortos. Ali, os que não partiram são e estão com o morto no modo de uma reverência.

Esta tem muitas faces, desde a cabeça curvada que murmura uma oração, até a estridente

e fanática aclamação em praça pública. O morto está presente como alguém que partiu,

como alguém que deixou marcas na memória dos que ficam, como alguém que

precocemente, ou tardiamente, ou depois de longa agonia, ou corajosamente, ou

covardemente, ou... etc. morreu. Em todas estas formas percebemos que os outros não se

comportam com o morto como se ele fosse “qualquer coisa”, mesmo quando eles não

têm disso consciência. Por mais que o cadáver, na mesa de dissecação, seja abordado

“universalmente” como qualquer cadáver, ou numa estatística, seja concebido como um

número, uma porcentagem ou, numa guerra, se torne, inclusive, o “soldado desconhecido”

ou “desaparecido”, ele conserva uma certa resistência. Tanto na guerra quanto nas mais

diversas formas de violência, o morto não afeta os vivos como se fosse uma pedra. Os vivos

já estão previamente tomados e tocados por um modo de se relacionar com o morto.

É nítido que, no culto reverencial, o morto não está mais presente. Ele, de fato, morreu.

No entanto, não há uma ausência absoluta. Como morto, ele está presente “com” os familiares,

17Cf. ROHDE, Erwin. Psique. La Idea del alma y la inmortalidad entre los griegos. México: Ed. Fondo de cultura economica,

1948. ARIES, Philippe. O homem diante da morte. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1989.

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26 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

por exemplo. O morto e seus familiares participam e convivem ainda num mesmo mundo. A

convivência entre mortos e vivos, na antiguidade greco-romana, dá-se numa infinidade de

costumes. Recordamos o da adoção. Sua importância era, sobretudo, religiosa, num sentido

que muito se distingue de nossas concepções: o filho, mesmo adotado, era herdeiro das

divindades familiares, e lhe cabia a responsabilidade de oferecer os sacrifícios aos mortos

familiares, sem os quais era impossível a continuação da vida no além e a conservação da

vida social. Uma existência, sem a manutenção constante de tais laços, era vista como a

maior desgraça. Segundo Fustel de Coulanges:

Adotar um filho, portanto, era velar pela continuidade da religião doméstica, pelasalvação do fogo sagrado, pela continuação das ofertas fúnebres, pelo repousodos manes dos antepassados18.

E se, num tribunal, a adoção fosse anulada, estariam em perigo os interesses do

defunto, que continuam em jogo:

Se anulardes a adoção, fareis de Menéclio um defunto sem filhos, e,conseqüentemente, ninguém lhe oferecerá sacrifícios fúnebres, e, finalmente, seuculto se extinguirá19.

A extinção do culto perturba mais do que a morte física. O morto, o culto, o além,

falam da vida mesma. Mas o finado deixou este “mundo”. No entanto, é a partir mesmo do

mundo (como possibilidade relacional, co-presente) “que os que ficam podem ser e estar

com ele”20. Isto deve ser interpretado no sentido de que ser-morto, não-ser-vivo, não-estar-

mais-presente-entre-os-homens, é uma experiência da convivência que é vivenciada na vida

junto com os outros. Os outros são, dessa forma, em seu mundo de ocupações e preocupações.

Assim, percebe-se que toda a multidão de experiências dos vivos com o morto

(funerais, cultos, orações, jogos etc.) “não faz a experiência do ter-chegado-ao-fim do

finado”21. Esta é, justamente, a experiência dos que estão vivos e, portanto, não morreram.

3.2 O finado e o moribundo na atualidade

Já dissemos que a experiência da morte é vivida pelos outros que estão vivos como

perda e sofrimento, devido à ausência do outro. Quem está vivo sofre a perda. Perda,

sofrimento, solidão, devido a uma ausência; mas também uma certa coragem ou covardia

em relação a esta experiência. Esses fenômenos devem ainda ser interpretados como

experiências em relação ao outro que morre. Permanece velada, desta maneira, a possibilidade

18COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. Vol. I. São Paulo: Ed. Das Américas – Edameris, 1967, p.85.

19Id. Ibid.

20ST, § 47, p.312.

21Id., Ibid., p.312-313.

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de considerá-los a partir da singularidade do ser humano existente. Isto é, pode haver uma

solidão que não se defina simplesmente pela ausência (que leva em conta certa presença) do

outro. A experiência da solidão, como uma possibilidade relacional do ser humano consigo

mesmo, ainda não é atingida.

Os sentimentos acima expressos podem ser vistos como momentos que pertencem

a um certo processo onde as pessoas vivem a perda de alguém que agoniza. O próprio

agonizante também percebe sua vida esvaindo-se, perdendo-a e, junto com isso, perdendo

os outros com quem convive. A perda, ela mesma, é significativa, pois diz respeito a um

modo de ser que se torna diferentemente acessível, ora em referência ao agonizante, ora a

seus conhecidos. Na perda, como “simplesmente dada”, o que é perdido? A presença

simplesmente dada do outro, tanto do outro que agoniza, quanto, para esse, do outro

que permanece vivo. Mas isto não significa a perda de toda a vida. Pode haver uma perda

– tanto para um quanto para o outro – que, em remetendo a algo simplesmente evidente,

toca o que nunca é meramente evidente. Isto é, se a presença simplesmente dada do outro

é perdida, abre-se a possibilidade de uma presença do outro não mais como simplesmente

dada. Esse raciocínio sustenta-se, em parte, pela contínua transformação a que está sujeito

o fenômeno em questão, de tal forma que “quem” morre nunca “desaparece” simplesmente.

Quem agoniza pode sentir-se só, abandonado em seus últimos momentos, perdendo

alguma coisa que não pode ser simplesmente explicada dizendo que “perde-se a vida”.

Que “vida” é perdida? Por exemplo: o reconhecimento dos próximos e da sociedade, a

produtividade, o afeto dos outros etc. É nesse sentido que Norbert Elias, em seus dois

pequenos textos A solidão dos moribundos e Envelhecer e morrer, trata a experiência da

morte. Vejamos alguns aspectos por ele desenvolvidos. O que nos interessa é o seu modo

de tratar o problema da morte do ponto de vista da convivência.

O que há de constante é que a morte e o morrer são um problema dos vivos e que

os mortos não têm problemas. Além da interessante e criativa abordagem sociológica

permeada, secundariamente, de problemas filosóficos, é patente que a morte e o morrer,

como problemas dos vivos, são sempre problemas que dizem respeito às diversas

interações que ocorrem no processo civilizador (na construção da história). Como, em

nossos dias, os vivos comportam-se com os moribundos? Esses são excluídos? Sim, há

muito que se fazer para que a situação dos moribundos e da morte que lhes pertence

seja tratada com mais “naturalidade” pelos vivos. N. Elias constrói uma oposição entre

os mortos e os vivos, justificada dentro dos limites sociológicos, mas que deixa um ponto

constantemente sem questionamento.

A morte é problema dos vivos, da sociedade. Esses cuidam, adequadamente ou

inadequadamente, de seus mortos. Fazem-no por medo, por respeito, pelo reconhecimento

de que “amanhã será a vez deles”. Nesse sentido ainda não é problema a morte particular.

Ela é pensada estrategicamente, isto é, é aceita e encaixada dentro de objetivos e formas

mais gerais de organização. Há uma série de atenuantes, reconhecidos por Elias, que

conduzem o ser humano a desviar-se ou a conformar-se com o problema da morte: a

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28 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

longevidade, o progresso da medicina, a compreensão da morte como processo natural-

biológico, a crença de que há, ou não, um fim absoluto para o homem, a recordação de que

somos “finitos”, embora não nos conformemos com isso etc. Sob o ponto de vista apresentado,

a morte nunca é, em primeiro lugar, um problema pessoal para quem morre. O problema

consiste sempre em “como” se está morrendo no âmbito da convivência concebida

sociologicamente. E esse modo permanece restrito aos valores nascidos na própria construção

da sociedade. É desse ponto de vista que a experiência da convivência, trabalhada por Elias,

ocupa-se. Nesse sentido é que os moribundos, mesmo em nosso tempo, estão solitários,

isolados, excluídos, “cheirando mal”. A sociedade tantas vezes, e maldosamente, mesmo

sem se dar conta, condena quem morre, como se esse estivesse fazendo algo de errado. Esta

condenação confirma a compreensão social da morte. Ela é um fenômeno com o qual os

vivos devem aprender a lidar, ora querendo sobrepujá-la, ora conformando-se. Sabemos, até

certo ponto, como aliviar as dores terminais nos hospitais e como prolongar a vida, embora

não saibamos adequadamente como nos relacionar com os agonizantes, como dirigir-lhes a

palavra e conversar, como “senti-los”. É difícil falar com o agonizante, sem a todo momento

estar a enganá-lo (e a nos enganar), isto é, a desviá-lo de sua morte real por meio das polidas

frases da linguagem comum. Os hospitais tornaram-se casas para morrer, o que reforça mais

a distância entre os vivos e os moribundos.

Mas de que modo deveria ser esta aproximação, esse aprender a lidar com a morte?

Dentro do âmbito sociológico ela parece tender para a construção de uma mudança “subjetiva”

de atitude, por meio do cultivo de determinadas práticas “objetivas” que acabem afetando a

convivência numa espécie de conscientização, gerando, então, uma transformação dos

procedimentos mais diversos com relação aos moribundos. Citando N. Elias:

Mas quando as pessoas morrem, nada sabem da reverência com que são ou nãotratadas. E a solenidade com que funerais e túmulos são cercados, a idéia deque deve haver silêncio em torno deles, de que se deve falar em voz abafada noscemitérios para evitar perturbar a paz dos mortos – tudo isso são realmenteformas de distanciar os vivos dos mortos, meios de manter à distância umasensação de ameaça. São os vivos que exigem reverência pelos mortos, e têmsuas razões. Essas incluem seu medo da morte e dos mortos; mas muitas vezestambém servem como meio de aumentar o poder dos vivos22. Mas umacompreensão dessa dependência [= dos outros, da continuidade da sociedade]é particularmente impedida hoje pela recusa de enfrentar a finitude da vidaindividual, inclusive a nossa própria, e a dissolução próxima de nossa própriapessoa, e de incluir esse conhecimento na maneira como vivemos nossa vida –em nosso trabalho, em nosso prazer e, acima de tudo, em nosso comportamentoem relação aos outros23. O medo de nossa própria transitoriedade é amenizadocom a ajuda de uma fantasia coletiva de vida eterna em outro lugar24.

22ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos – Envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.40.

23Id., Ibid., p.42.

24Id., Ibid., p.44.

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A discussão focaliza o comportamento dos vivos. Mas, será que esta abordagem

esgota a compreensão da morte? Em nossa época está-se numa luta constante para “superar”

o problema da morte, para vencê-lo, ou para descobrir e redescobrir novas maneiras de

conviver com esta insuperável experiência. E, ao mesmo tempo, diante das infinitas frustrações,

enraíza-se uma indiferença geral, como um escudo protetor. O que isto significa e como isto

se alia à compreensão de uma morte que não seja mais a dos outros, mas a minha, é um

problema que ultrapassa o âmbito exclusivo da convivência, pelo menos como nós a

interpretamos. A convivência quer soluções. Os problemas por ela apresentados são apenas

obstáculos a serem superados. Diz-nos Heidegger:

Ao sofrer a perda, não se tem acesso à perda ontológica como tal, “sofrida” porquem morre. Em sentido genuíno, não fazemos a experiência da morte dosoutros. No máximo, estamos apenas “junto”25.

Segundo o ponto de vista da convivência social, mantém-se um abismo, uma

separação. Por mais que sejamos solidários com a morte do outro, a minha morte permanece

algo que não pode ser assim, porque o mais próximo que a compreensão dali nascida

pode atingir é a de estar junto. Na morte do outro, a rigor, não podemos nem experimentá-

la como nossa morte, porque quem morre é o outro, nem experimentá-la como a morte

do outro, porque permanecemos vivos. N. Elias serve como exemplo dos imensos problemas

a que está sujeita a convivência em seu esforço de “melhorar ou modificar” as formas

como se está “junto”, a partir de novas possibilidades “recordadas ou descobertas” de

organizar o mundo comum. Por mais que se obtenha sucesso nesta empreitada, o interesse

continua sendo apenas o de estar “junto”. Nesse estar-junto não temos acesso à perda

ontológica sofrida por quem morre. Algo de único ou de singular termina. É impartilhável,

insubstituível. É perda do ser, do meu ser, do ser que sou ou que fui. E, no que se refere ao

outro, é perda do ser do outro, do ser que ele foi e que lhe pertenceu. Não podemos captar

o sentido e o significado porque não somos, simplesmente, quem morre – apenas o outro

morre – mas, sobretudo, porque reforçamos o raciocínio típico do platonismo: ou nós ou

o outro. Esse raciocínio, jogando-nos de um lado para o outro, tanto nos leva negativamente

a um fracasso quanto nos desvia de um outro modo de pensar, aquele que parte do fato

intransferível de que sempre trazemos conosco um certo saber de nossa morte e da alheia.

A “qualidade” desse saber necessita de exploração. Mas ainda devemos perguntar: qual o

direito desta reivindicação, de a morte alheia suprir a minha experiência da morte?

3.3 O fenômeno da substituição

Partir da morte dos outros para compreender o fim e a totalidade que pertencem ao

ser humano demonstra um inteiro desconhecimento do modo de ser desse ente. Está-se

pressupondo ser possível poder colocar no lugar de um ser humano que vive, um outro

25 ST, § 47, p.313.

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30 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

qualquer, como se cada um em questão e qualquer um fossem a mesma coisa. Imagina-se

poder assim ter acesso nos outros ao próprio fim, que um dia cada ser humano pode ter e

terá. Imagina-se experimentar nos outros aquilo que não se deixa experimentar (?!) em si

mesmo. Mas será que esta tendência, tão comum, de colocar no lugar de um ser humano

determinado um outro qualquer, não tem fundamento nenhum? Será que esse

comportamento não encontra uma certa legitimidade no modo de ser do humano,

enquanto presença (Dasein)?

A possibilidade da substituição é um fenômeno que pertence ao ser da própria

convivência, colaborando com sua interpretação. O ser humano a usa em todos os estratos

de seu ser. Por meio dela e, de certa forma, automaticamente, busca-se alcançar algo que

falta ao próprio ser. Nas diversas ocupações cotidianas (os afazeres) faz-se uso de substituições.

Pode-se estar procurando uma caneta azul para escrever uma carta e que pode ser substituída

por uma preta etc. Pode-se redirecionar todo um afazer devido à ausência de um instrumento

necessário, ou de um material, alcançando-se, talvez, criativamente o fim almejado ou outro

inesperado. Mas não apenas isso.

A substituição apresenta-se, especialmente, quando o ser humano se compreende a

partir das coisas com que se ocupa no mundo e a partir dos outros com quem convive, se

preocupa, e compartilha um mundo. É o que há de mais freqüente. Por meio da substituição,

onde os outros e as coisas com as quais se lida realizam a tarefa de uma “auto-interpretação”

de seu ser, encontramos a compreensão mais imediata que o ser humano já sempre traz de

si. O que cada ser humano é, pode ser, então, encontrado no pertencimento a um grupo

social, que é economicamente, politicamente, culturalmente, de mais destaque, por exemplo,

ou no exercício de alguma atividade como a profissional. Cada lida com as coisas e cada

preocupação com suas devidas responsabilidades constituem o próprio ser humano,

fornecendo-lhe um “ser”, um sentido para si mesmo (e, também, para os outros) sobre

quem se é. A convivência, compreendida sempre de alguma maneira, incorpora o coletivo e

o individual sob suas asas. O indivíduo, por exemplo, pode apresentar-se como todo mundo,

já que seu ser mais próprio e singular é substituído pelo que se pode obter junto às coisas

com que se lida e junto aos outros. Assim, pode-se dizer que há toda uma gama de

relacionamentos onde a substituição é necessária e pertence essencialmente ao nosso modo

de ser mundano.

Estas substituições mostram o ser humano sempre junto, “sempre ‘em’ ou ‘junto’ a

alguma coisa, ou seja, na ocupação de alguma coisa”26. Esse, atido a suas ocupações,

automaticamente troca uma atividade por outra, um objeto por outro, um sentido por outro,

atendendo à circunstância em que se encontra. Mas é preciso recordar em que sentido esse

comportamento afeta o ser humano. Pois ele compreende-se antes de tudo e na maioria das

vezes “a partir daquilo com que ela [a presença] costuma se ocupar. Aquilo que se faz é

aquilo que ‘se é’”27. O ser humano está sempre se ocupando com algo, atido a algo, e

26Id., Ibid.

27Id., Ibid., p.313-314.

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sempre se ocupando com ou se preocupando com os outros, direta ou indiretamente, segundo

os modos de ser da convivência. Estas ocupações ocorrem de uma forma impessoal. Ele se

ocupa e preocupa como, em geral, todo mundo se ocupa e preocupa, isto é, numa certa

indiferenciação. No entanto, lhe pertencem essencialmente todos esses modos impessoais

de se ocupar. Isto significa que, freqüentemente, o ser humano ou a identidade que constitui

seu próprio ser, é como que jogado de um lado para outro, de acordo com as diversas

substituições assumidas. Estas alternâncias lhe pertencem autenticamente enquanto ser que

existe ocupando-se e preocupando-se em seu mundo. Ali é-lhe fundamental, dentro de

certos limites, “ser” o outro, ser outro ser humano, ser outro numa outra atividade, ser outro

numa nova ocupação ou preocupação conforme a moda etc. Ser o outro – substituindo

nosso próprio ser –, isto é, a partir das possibilidades sempre trazidas pela alteridade (conforme

apresentamos acima, remetendo às ocupações e preocupações) é uma possibilidade humana

de existir. Nela o ser humano também e freqüentemente é. Mas ele não é, nem pode ser,

unicamente desse modo.

Poderíamos ver nesse modo de ser que sempre se alterna um “defeito”, uma “loucura”

do ser que se perde numa infinidade de substituições. Mas, qual seria a solução? Buscar algo

de estável, imutável, permanente, a fim de fugir da cadeia de substituições? Esse caminho

não apenas trocaria a multiplicidade das substituições por uma única, ou umas poucas,

quanto não questionaria o modo de pensar que ali vigora. Perderíamos a envergadura

existencial do problema. Não devemos ter uma má consciência em relação ao modo do

impessoal. O fenômeno da substituição, onde o ser humano continuamente “se perde”

numa busca inesgotável, revela apenas a face dessa impessoalidade. Não é buscando algo de

estável e permanente que se pode superar o problema. Não é desviando-se ou fugindo. Faz-

se necessário, antes, uma mudança da compreensão, ou seja, o cultivo de uma nova maneira

de encontrar e pensar os problemas28. Observemos que, em sentido amplo, identidade e

alteridade entrelaçam-se, apesar de chamarmos a atenção para uma certa compreensão de

alteridade, dos outros como aqueles que impessoalmente substituem a nossa morte.

44444 Algumas observações sobre os limites da convivênciaAlgumas observações sobre os limites da convivênciaAlgumas observações sobre os limites da convivênciaAlgumas observações sobre os limites da convivênciaAlgumas observações sobre os limites da convivência

Assim, no que se refere ao fenômeno da substituição, encontramos um limite quando

percebemos até onde chegam as possibilidades da convivência. Isto é, por mais que o

outro, tanto na figura do outro próximo (amigos, familiares etc.), quanto do outro “distante”

(a sociedade representada por suas regras, suas obrigações e punições), possa substituir

em grande parte o meu agir, pensar, ser, das mais diversas maneiras, há algo inatingível à

convivência compreendida como simplesmente evidente. Diz respeito à singularidade do

fato de meu ser, que, de forma simples e sugestiva, é assim expressa por Ortega y Gasset

28Cf. ST § 27, p.188.

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32 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

em seu livro O homem e a gente: “Minha dor de dentes só a mim pode doer”29. Na dor

impartilhável e solitária manifesta-se o nível básico e fundamental da existência, onde se

encontra, simultaneamente, o indivíduo que “eu” sou e minha circunstância: ser-no-mundo.

Nunca somos exclusivamente para as coisas, para os outros ou para nós mesmos,

mas, simultaneamente, somos em sendo – num grau maior ou menor – para as coisas,

para os outros e para nós mesmos. Assim, o ser humano, existencialmente, nunca se torna

(para si mesmo) algo como uma propriedade, seja ela compreendida como algo “material”,

“social” ou “individual”. Ele, sendo, já está sempre lançado para o exterior e para além de

si. Mas nós agimos desta forma quando somos conduzidos por uma compreensão evidente

por si, como aquela que toma a convivência como a soma de indivíduos: sem o percebermos

a individualidade é compreendida como a mínima parte de algo maior e a coletividade

como a soma destas mínimas partes, sem atentarmos para o fato de que tanto um elemento

quanto o outro jazem sob a mesma pressuposição. Existencialmente, sendo continuamente

para fora de si, o ser humano libera-se para uma contínua desapropriação. Semelhante

compreensão não pode ser atingida enquanto nos mantivermos presos aos jogos de

oposição entre interpretações simplesmente dadas da existência. Muito mais frutuoso é

imaginarmos um exemplo de convivência, uma atividade lúdica, por exemplo, como um

jogo determinado. Seus integrantes, a princípio, não estão presentes na atividade segundo

o modo de uma soma. Mas, jogando e sendo a partir do jogo, percebemos uma

desapropriação de elementos simplesmente evidentes para, destarte, revelar-se uma

compreensão da convivência e da individualidade inteiramente distintas.

Esse nível da vida, a rigor, por ser e estar tão “colado” àquilo que somos, é apenas

apreendido posteriormente. De início somos conduzidos impessoalmente. Primeiro

aproprio-me da morte como sendo a do outro ou, se quisermos, aproprio-me das vivências

coletivas da morte. Enquanto esse raciocínio ocupa a proeminência, a possibilidade de

uma experiência impartilhável permanece, em geral, oculta. Enquanto o impessoal

predomina, os aspectos impróprios sobrepujam os próprios. E com razão, enquanto a

possibilidade de algo próprio não se manifestar. A compreensão da propriedade reside

não numa eliminação dos aspectos impróprios ou impessoais da existência, mas numa

transformação desse modo de ser. Afinal, quando me aproprio intelectualmente das

vivências coletivas da morte, da morte do outro, sou eu que me aproprio delas? E como

acontece esta apropriação? Ou são, primeiramente, elas que se apropriam de mim, me

tomam o ser? Esta inversão, frutuosa para nós, permanece ainda presa a uma

compreensão simplesmente evidente, que compreende a morte como algo possível de

tornar-se uma propriedade simplesmente dada de alguém. Mas, nesse sentido, talvez a

morte própria seja antes a antípoda de toda propriedade simplesmente dada.

29ORTEGA Y GASSET, José. O homem e a gente. Rio de Janeiro: Ed. Livro Ibero-Americano, 1960, p.45-46.

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55555 Considerações finais: liberdade para a morteConsiderações finais: liberdade para a morteConsiderações finais: liberdade para a morteConsiderações finais: liberdade para a morteConsiderações finais: liberdade para a morte

Em sua analítica existencial, Heidegger procura trazer à tona, por meio dos existenciais,

esta cotidianidade em que já sempre estamos e somos. Mas esta mesma existência cotidiana

não precisa ser sempre e exclusivamente comandada pela “gente”. Outro modo de

compreensão desperta de sua sonolência quando, por exemplo, o ser humano é interpretado

não como dotado de alguma essência ou substância universal, mas, existencialmente, como

possibilidade de ser. É a isso que aludem os existenciais denominados “abertura”

(Erschlossenheit) ou “poder-ser” (Seinkönnen). Os aspectos próprios permanecem em geral

como que trancados, aprisionados naquilo que nos é mais comum. Como realizar esse des-

aprisionamento? O fenômeno da morte nos fornece algumas indicações.

“Ninguém pode retirar do outro sua morte”30. Por mais que possamos morrer por

outro, dar a vida por um outro, sacrificarmo-nos numa causa determinada, isto não significa

que a morte do outro lhe tenha sido retirada. O outro continua com a possibilidade de

morrer a sua morte, e nós, que tentamos em vão assumi-la, com a possibilidade de morrer a

nossa. Como acontece e acontecerá esta experiência, isto diz respeito a cada um. Pois, ao

morrer ou ao sacrificar-me por um outro ou por uma causa, está em jogo o fato insubstituível

de como morro a minha morte, isto é, como vivo. “Cada presença deve, ela mesma e a cada

vez, assumir a sua própria morte”31. Como se pode, a cada vez, assumir a própria morte? Em

certo sentido, a morte é sempre algo de próprio, de singular. Mas o modo como compreendo

tal situação é que se distingue. “A cada vez”: é possível assumir a morte que é minha, e

insubstituível, de uma maneira própria? Significaria isto, meramente, uma preparação para o

momento da morte, momento do qual não sabemos nem o dia nem a hora? Ou será que,

assumir a cada vez a própria morte, remete antes a uma interpretação existencial da morte,

isto é, a uma compreensão da mesma não como um momento estanque, mas como um

modo de ser possível e aberto (disponível) ao ser que somos? Em geral, assumimos a nossa

morte segundo os costumes ou o decoro. Nesses aspectos ocorre um extravio da morte que

a cada um pertence. Esta morte própria necessita, então, de um esclarecimento: no sentido

de que um dia, em algum momento indeterminado, ela virá como certa? De que ela é

intransferível? Ou que é experiência extrema e insuperável? Decerto. No entanto,

apresentaremos aqui apenas algumas indicações que possam orientar brevemente uma

interpretação rumo à singularidade e que sejam, de certa forma, inacessíveis ao outro

simplesmente dado da convivência. Heidegger as desenvolve no § 5332.

Trata-se, sucintamente, do seguinte: a minha morte é fenômeno que somente pode

ser experimentado antecipadamente. Sei da minha morte “antes” dela ocorrer como um

fato segundo os moldes da convivência. No entanto, não se trata de um saber impreciso e

30ST, § 47, p.314.

31Id., Ibid.

32Cf. ST, § 53, p.336s.

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34 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

vago em oposição a um outro saber mais exato e objetivo. Na antecipação encontramos

uma disposição privilegiada para um horizonte, para uma perspectiva ímpar. Esse saber

sobrepuja todo saber acerca de fatos que simplesmente ocorrem. E por quê? Porque todo

encontro ou percepção de fatos já pressupõe tal saber. Antecipadamente já detemos um

saber sobre o que quer que seja. Esse saber antecipado nos revela o ente como isso ou

como aquilo, e assim por diante, numa pluralidade de sentidos e significações. Em relação

a isso, o que a experiência antecipada da morte nos fornece? O que esse saber antecipado

nos diz da morte? A antecipação nos fornece uma compreensão da morte como

possibilidade que precede toda efetividade e que, em relação a toda efetividade, instaura

um não-saber perturbador e angustiante. A morte já sempre esteve acessível a nós como

possibilidade em todo o percurso de nossa vida. Dessa forma, nossa compreensão deve

movimentar-se nesse espaço da possibilidade, exclusivamente. O interesse não está nesta

ou naquela forma da morte, mas em seu caráter possível, apesar do impessoal

continuamente nos desviar desta experiência. A compreensão da morte como possibilidade

é o único saber que genuinamente podemos obter acerca da morte. Todo outro saber

sobre a morte torna-se secundário, derivado. Se nossa compreensão se deslocar para a

noção existencial de possibilidade, como o lugar privilegiado do viver humano, acima de

qualquer realidade simplesmente dada33, encontraremos a experiência da morte em seu

caráter privilegiado. Dessa forma, a própria experiência antecipada da morte nos libera um

espaço antes confusamente conhecido, o da possibilidade.

Como conseqüência desta experiência do possível pode-se tanto alcançar uma

compreensão existencial da totalidade ou completude do ser humano quanto colocar

em questão a totalidade dos entes. Em seu caráter possível, a morte põe em risco a

constância e solidez de toda realidade, à medida que a experiência da possibilidade

precede toda realidade. Isto é, todo ente, toda efetividade, toda realidade, é, à medida

que a morte não é, enquanto a morte não se efetiva. Ela possibilita a existência de todas

as realidades, de todas as constâncias, de todas as permanências. Pode-se, por exemplo,

construir um mundo comum dotado de certa estabilidade em todos os seus níveis. Tudo

pode ser o que é e como é enquanto a morte não é.

No entanto, dentre tudo o que pode ser compreendido como possível, a morte se

destaca, pois toda realidade pressupõe a não realização da possibilidade da morte. A morte,

como a possibilidade privilegiada, estende seu caráter finito a todo ente (tal como uma

cachoeira que tudo irriga com suas águas), despertando, ao mesmo tempo, o aspecto possível

de toda realidade. Desde a possibilidade da morte, tudo o que se pode dizer que “é” atinge

o pensamento como podendo “não ser”. A existência não é composta por entes simplesmente

dados, constantes e eternos, mas por entes ou modos de ser possíveis, portanto, sujeitos ao

caráter finito (que desperta a partir do fim) da morte. Nenhuma possibilidade ultrapassa a da

morte. E, ainda, por ser uma compreensão que apenas se mostra como possibilidade para o

33Cf. tb. ST, § 7, p.78.

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ser humano, ela mesma, a morte, é a que libera antecipadamente o espaço da possibilidade

como o lugar privilegiado da identidade humana. A possibilidade antecipada da morte abre

ou libera o ser humano para uma compreensão de si, dos outros e das coisas como

possibilidades. Isto também significa: o ser humano existente nada mais é do que poder-ser,

possibilidade de realização, nada de meramente feito para todo o sempre, mas a-se-fazer.

A experiência antecipada da possibilidade da morte nos fornece um certo

conhecimento acerca de nós mesmos como possibilidade de ser, como um poder-ser: o

possível nos diz que nosso ser mais próprio não se subordina a alguma essência ou substância

imutáveis. O possível nos lança para o espaço livre e aberto da possibilidade, onde o ser

humano é convocado desde seu “ser possível”, liberado a partir da morte (de ser-para...), a

sempre ter de ser, mesmo quando todas as interpretações já cristalizadas ditam o contrário.

Nenhuma compreensão simplesmente dada me exime desta tarefa, quando esta se nos

impõe como algo intransferível e vital. Existencialmente, a morte própria se caracteriza

mais como um processo de desapropriação constante de tudo o que foi impessoalmente

assumido. Sua negatividade cultiva a positividade de nossa existência, nosso fato singular

e intransferível de ser. Dela brota, então, uma mudança da compreensão onde a experiência

da possibilidade nos toca de tal maneira que a partir dela descobrimos nosso ser e, a partir

desta descoberta, nos tocam todas as outras possibilidades como possibilidades.

“Na medida em que ‘é’, a morte é essencialmente e cada vez, minha”34. O “eu” perde

sua comum sedimentação à medida que é abarcado pelo tempo, o tempo da possibilidade,

onde ele é e se responsabiliza pelo seu ser e de todo ente, a cada vez. O pronome “meu”

pode assim adquirir toda a tensão existencial que lhe é pertinente, não acenando para uma

mera propriedade simplesmente dada, mas antes para um “tornar meu ou fazer a mim”.

Mesmo sem desdobrá-lo minuciosamente, recordemos o conceito ontológico-

existencial da morte:

Enquanto fim da presença [Dasein, ser humano], a morte é a possibilidade maisprópria, irremissível, certa e, como tal, indeterminada e insuperável da presença.Enquanto fim da presença, a morte é e está em seu ser-para o fim35.

Existencialmente, a morte coexiste com a vida em seu aspecto de ser-para. E, quando

atentamos para esta forma de saber, percebemos que todo o poder da morte não reside

em seu “fato”, mas que o terrível e incontornável fato bruto da morte repousa em sua

possibilidade. Esta consciência da mortalidade possui a capacidade de lançar o ser humano

para si mesmo, na responsabilidade de seus projetos finitos de ser, abertos e limitados, e de

retirá-lo das infinitas ilusões construídas pela impessoalidade, não apenas daquelas que

nascem na vida coletiva, mas também daquelas que nascem no relacionamento com as

coisas e consigo mesmo. Na “subjetividade” e nas mais diversas formas de intimismo, há

34ST, § 47, p.314.

35ST, § 52, p.335.

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36 PISETTA, Écio Elvis. A morte alheia e a nossa: uma perspectiva existencial

tanto de ilusão quanto em todas as “objetividades”. Erroneamente, o fato bruto da morte

pode ser interpretado como o fim do percurso de uma vida biológica. Mas assim ele já se

encontra atrelado a uma compreensão científica do que seja vida e morte e, portanto, não

é nenhum fato em si, destituído de remissão à vida humana.

A morte é possível a cada momento, não apenas no sentido de que posso morrer a

qualquer momento, bastando apenas estar vivo, mas também no sentido de que ela é, a

cada vez como possibilidade, para mim. Ela é provocação ou convocação, liberação para o

espaço aberto e angustiante da existência, e assim, descoberta de nosso modo de ser

como poder ser para isto ou aquilo, que se apresenta nos infinitos compromissos sempre

finitos. Não podemos não estar a fazer algo. E todo feito não nos exime da tarefa de ter

que fazer. Não basta conformar-nos ao nosso caráter finito como quem se acostuma a

algo inalienável. É preciso, antes, que o descubramos a partir da possibilidade como poder

ser, isto é, não como algo meramente transitório para nos lastimarmos, mas como o possível

efetivado e que, por sua vez, remete a uma compreensão não substancializada da existência.

A lamúria diante do finito obscurece o poder-ser liberado, como se o transitório e passageiro

não devessem se mostrar desta maneira. O finito remete antes a uma compreensão do ser

humano como poder ser, como sendo sempre e continuamente num contexto possível,

mas não sendo exclusivamente determinado por esse contexto, mantendo-se atrelado a

um modo de ser previamente livre, possível ou aberto. Podemos nos servir da linguagem

artística e apresentar esta vinculação entre o possível e o finito como irrupção, criação,

atividade. O ser-para-a-morte destaca, sobretudo, que nós somos a partir do fim,

compreendido existencialmente. A bem dizer, não se pode ser se não se pudesse não-ser.

No fim e a partir do fim, o ser humano pode ser interpretado como “nada” crescente,

isto é, como uma experiência que se perfaz como e a partir de um si mesmo e não,

meramente, dos outros e das coisas. Deve-se ressaltar: esta experiência constrói-se

incorporando o que advém a partir dos outros e das coisas, quer dizer, fazendo a si mesmo

como uma infinita dinâmica de auto-constituição. No entanto, segundo o que apresentamos

sucintamente até agora, isto somente pode ser alcançado se formos tomados por um

imperativo de singularidade. Como somos e estamos continuamente sob os ditames do

impessoal, o trabalho filosófico-existencial deve visar, nesse sentido, uma transformação

de nosso entendimento usual a partir de uma compreensão fundamental da existência

humana como liberdade para a morte.

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, n.1, p.15-37, jan./jun. 2009

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Endereço do autorEndereço do autorEndereço do autorEndereço do autorEndereço do autor

Écio Elvis PisettaRua São Sebastião, 525 Bloco 9B, Apartamento 201Bairro São Sebastião25675-045 Petrópolis - RJFone: 0xx24-2237-1887E-mail: [email protected]

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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v.2, n.1, p.39-57, jan./jun. 2009

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Agostinho e Aristóteles comoAgostinho e Aristóteles comoAgostinho e Aristóteles comoAgostinho e Aristóteles comoAgostinho e Aristóteles como“fontes” para o conceito“fontes” para o conceito“fontes” para o conceito“fontes” para o conceito“fontes” para o conceitoheideggeriano de tempoheideggeriano de tempoheideggeriano de tempoheideggeriano de tempoheideggeriano de tempo

Augustine and Aristotle as “sources”Augustine and Aristotle as “sources”Augustine and Aristotle as “sources”Augustine and Aristotle as “sources”Augustine and Aristotle as “sources”for the heideggerian concept of timefor the heideggerian concept of timefor the heideggerian concept of timefor the heideggerian concept of timefor the heideggerian concept of time

Renato Kirchner*

ResumoResumoResumoResumoResumo

Este texto propõe-se a evidenciar em que sentido as

investigações agostiniana e aristotélica do tempo desempenham

papel importante para a elaboração heideggeriana do conceito

de tempo. Embora Heidegger tenha se ocupado com as

tematizações da maneira que este fenômeno foi pensado por

filósofos como Kant, Hegel, Kierkegaard, Bergson e Husserl, o

pensador da Floresta Negra dá ênfase toda particular às

tematizações de Aristóteles e Agostinho, especialmente nas

preleções e obras contemporâneas à elaboração de Ser e tempo.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: Conceito de tempo, Heidegger,

Antigüidade, Fenomenologia.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

This text aims to expose in which direction the Augustinian and

Aristotelian time investigations play an important role in the

development from the Heideggerian concept of time. Although

Heidegger has been busy how the time phenomenon was

investigated by philosophers like Kant, Hegel, Kierkegaard,

Bergson and Husserl, the Black Forest thinker gives a particular

emphasis to the thematics from Aristotle and Augustine, specially

in the contemporary lectures and works at the preparation of

Being and time.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: Concept of time, Heidegger, Antiquity,

Phenomenology.

* Mestre e doutor em filosofia pela

Universidade Federal do Rio de

Janeiro, é membro da Associação

Brasileira de Estudos Medievais e

professor na Universidade São

Francisco, câmpus de Bragança

Paulista. E-mail:

[email protected]

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40 KIRCHNER, Renato. Agostinho e Aristóteles como “fontes” para...

Ocupar-se com a tematização heideggeriana do tempo não significa abordar o tema

sob este ou aquele ponto de vista, comparar conceitos de tempo deste ou daquele pensador

citados e interpretados pelo pensador de Messkirch. Se, por um lado, as investigações

agostiniana e aristotélica desempenham papel privilegiado na perspectiva em que o filósofo

alemão as lê e interpreta, por outro, não se trata de fazer meramente um inventário de idéias

e citações utilizadas por ele. Por esta razão, deve ficar claro, de saída, que não entendemos a

palavra “fonte” em sentido bibliográfico, mas como modos genuínos da tematização do

fenômeno do tempo, uma vez que tanto Agostinho como Aristóteles, segundo Heidegger,

pensaram e, a partir do que e como pensaram, nos evidenciam diferentes dimensões do

mesmo fenômeno.

Assim, para Heidegger, está em jogo encarar e assumir o tempo como questão e

pensá-lo desde seu fundamento. Trata-se de compreender o tempo como tempo desde a

facticidade da presença humana (menschliche Dasein), o que significa tematizar o tempo

como problema ontológico fundamental. De fato, a partir da ontologia fundamental,

proposta e elaborada por ele, o tempo é tematizado de uma maneira toda peculiar e

inovadora. Daí o objetivo inicial de Heidegger de fundamentar o conceito de tempo desde

a analítica da presença humana, na medida em que ela, antecipadamente, cada vez e

sempre já conta e se ocupa de algum modo com o tempo, sendo, por isso mesmo, o ente

primordialmente temporal1.

Ao que aqui se propõe, não interessa apresentar o desenvolvimento das pesquisas

de Heidegger numa perspectiva cronológica. Como é sabido, é na aula de habilitação de

1915, a saber, O conceito de tempo na ciência histórica, que ele se ocupa e preocupa pela

primeira vez com o tema. Contudo, é em O conceito de tempo, em Ser e tempo e em Os

problemas fundamentais da fenomenologia, ambos da década de 1920, que a tematização

do tempo – sobretudo da temporalidade! – alcança um desenvolvimento todo peculiar, a

ponto de marcar indelevelmente toda a obra heideggeriana. Por isso, ao citarmos textos

mais tardios, como é o caso da conferência Tempo e ser, de 1962, em que o pensador

reelabora seu próprio pensamento ou, então, Kant e o problema da metafísica e Introdução

à metafísica, onde faz uma autoavaliação do caminho trilhado, nosso objetivo é, na medida

do possível, evidenciar a importância dada por Heidegger às tematizações antigas do

fenômeno do tempo, especialmente as de Santo Agostinho e Aristóteles.

As duas principais tematizações do tempo na AntigüidadeAs duas principais tematizações do tempo na AntigüidadeAs duas principais tematizações do tempo na AntigüidadeAs duas principais tematizações do tempo na AntigüidadeAs duas principais tematizações do tempo na Antigüidade

Ainda jovem, Heidegger se pergunta: será que ao longo da tradição metafísica ocidental

o tema do tempo não foi problematizado como tal? E, caso isso se confirme, o que significa

tal problematização? Que implicações tem, então, o problema do tempo, no seio do

pensamento ocidental e, especificamente, em relação à questão do ser? A partir desse

1 Para Heidegger, “contar com o tempo” e “contar o tempo” são modos pelos quais o tempo é compreendido pré-

científica ou pré-ontologicamente, carecendo pois de uma necessária tematização ontológica.

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questionamento, é possível ver e entender por que Heidegger se confronta com as tematizações

que lhe são cronologicamente mais próximas, como as de Bergson, Husserl e Einstein, passando

pelas de Kant, Hegel e Kierkegaard, chegando nas de Platão, Aristóteles e Agostinho.

No caminho percorrido pelo pensador, é importante ter presente as investigações

fenomenológicas de Husserl. Como resultado dessas investigações, Heidegger mesmo ajudou

a editar Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo. A publicação é

composta de preleções ministradas por Husserl durante os anos de 1893 a 1917, mas somente

publicadas em 1928. Numa passagem dessas preleções, diz Husserl (1994, p.37):

A análise da consciência do tempo é uma antiqüíssima cruz da psicologia descritivae da teoria do conhecimento. O primeiro que sentiu a fundo as poderosas dificuldadesque aqui residem e que com elas lutou até quase ao desespero foi Santo Agostinho.Os capítulos 14 a 28 do livro XI das Confissões devem ainda hoje ser profundamenteestudados por quem se ocupar com o problema do tempo. Porquanto, nestas coisas,a época moderna, orgulhosa de seu saber, nada mais grandioso e mais consideráveltrouxe do que este grande e, na verdade, incansável pensador. Ainda hoje se podedizer com Santo Agostinho: “Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-loa quem me fizer a pergunta, já não sei” [Si nemo a me quaerat, scio, si quaerentiexplicare velim, nescio] (cf. Confissões, livro XI, cap. 14)”.

As investigações de Husserl abriram as portas para Heidegger e, por assim dizer,

fizeram-no despertar para o problema do tempo de uma maneira totalmente nova. Uma

prova disso está numa nota editorial à obra: “Decisiva é aqui a explicitação do caráter

intencional da consciência do tempo e a crescente clarificação principial da intencionalidade

em geral. [...] Ainda hoje, esta expressão não é um santo-e-senha, mas sim o título de um

problema central”2. Nesse contexto, além de apontar para a importância da intencionalidade,

Heidegger apresenta um Husserl profundamente atento à necessidade de voltar para a

compreensão agostiniana do fenômeno do tempo. Isso é manifesto nas interpretações

fenomenológicas, tanto em relação a Santo Agostinho como nas epístolas paulinas,

realizadas por Heidegger nos primeiros anos como professor de Marburgo3.

Kurt Flasch (1993, p. 20), num amplo trabalho intitulado O que é tempo?, escreve:

Tempo é tempo da alma, e nunca puro tempo do mundo. O tempo da alma é oúnico tempo do mundo do qual nós temos conhecimento. O tempo da almapode ser, ao mesmo tempo, tempo do mundo; o tempo do mundo, porém, nuncapode esclarecer o puro tempo da alma. Somente assim se tornará compreensível apartir da essência do tempo, porque nós homens contamos continuamente com

2 Cf. Heidegger (1994, p. 25). A expressão “santo-e-senha” tem o sentido de “senha”, de “secreto”, ou seja, “acesso a

iniciados”. A edição de 1928 contém duas partes e foi publicado no Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische

Forschung, vol. IX, p. 367-490. Trata-se do mesmo anuário em que havia sido publicado Ser e tempo um ano

anterior. Aproximadamente quarenta anos mais tarde, numa edição mais ampla e completa, os mesmos textos

seriam publicados por Rudolf Boehm, sob o título Zur Phänomenologie des inneren Zeitbewusstseins (1893-1917),

Haag, Matinus Nijhoff, 1966, que constitui o vol. X da edição das Obras completas de Edmund Husserl (cf. HEIDEGGER,

1985, p.92; e também HEIDEGER; BOSS (2001, p. 65).

3 Cf. Heidegger (1995, especialmente p. 87-125). Para o que nos interessa aqui, são relevantes as partes: “Introdução

à fenomenologia da religião” e “Agostinho e o neoplatonismo”. Cf. também Flasch (1993, p. 51-63).

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42 KIRCHNER, Renato. Agostinho e Aristóteles como “fontes” para...

o tempo e necessitamos medi-lo nesse sentido. A pergunta “o que é o tempo?”mostra-se como a pergunta: o que é o homem? Este modo de perguntar, porém,é o perguntar mais íntimo das Confissões. É por isso que as Confissões alcançaram,através das considerações do tempo, sua profundidade mais própria e nessaprofundidade mais profunda, a maior amplitude. [...] que o homem se essencializacomo tempo.

Para Cavalcante Schuback (2000, p.82), “mesmo o radical questionamento da essência

do tempo desenvolvido por Martin Heidegger, que busca ‘compreender o tempo a partir do

tempo’ e da facticidade da vida humana, está profundamente ligado à colocação de Santo

Agostinho”, e, mais adiante: “No entanto, ao situar o tempo na alma, Santo Agostinho não

situa o tempo na subjetividade do homem. A subjetividade é algo estranho para o espírito

medieval. Santo Agostinho situa o tempo na capacidade compreensiva da alma humana”4.

De fato, Santo Agostinho tematiza o tempo no livro XI das Confissões, intitulado “O

homem e o tempo”5. Segundo Heidegger (1975, p.329), num determinado sentido, a

abordagem agostiniana do tempo é mais originária que a de Aristóteles, pois foi ele quem

viu “algumas dimensões do fenômeno do tempo mais originariamente”. A célebre passagem

de Santo Agostinho (2006, p.278, grifo nosso) a respeito do tempo diz:

Que é, pois, o tempo? Quem poderá explicá-lo clara e brevemente? Quem poderáapreendê-lo, mesmo só com o pensamento, para depois nos traduzir por palavraso seu conceito? E que assunto mais familiar e mais batido nas nossas conversasdo que o tempo? Quando dele falamos, compreendemos o que dizemos.Compreendemos também o que nos dizem quando dele nos falam. O que é, porconseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo aquem me fizer a pergunta, já não sei. Porém, atrevo-me a declarar, sem receio decontestação, que, se nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agoranada houvesse, não existiria o tempo presente.

Heidegger, ao retomar a questão fundamental com a qual já Santo Agostinho se

deparara em suas análises, diz: “Santo Agostinho [...] conduziu a pergunta ao ponto de se

perguntar: será o espírito mesmo o tempo? E Agostinho deixou a pergunta parada neste

ponto (Augustinus hat die Frage bis hieher getrieben, ob der Geist selbst die Zeit sei. Und

Augustinus hat die Frage hier stehen gelassen)”. “Santo Agostinho chegou à evidência de

que ‘eu mesmo sou meu tempo’”, diz o filósofo de Messkirch mais adiante6. Há que se ver

e mostrar, em que sentido Heidegger aprofunda e radicaliza a questão com a qual Santo

Agostinho já se deparara.

4 Cf. capítulo 3: “Quando o fim está dentro do começo”, item 3.2: “As Confissões de Santo Agostinho e o significado

da fundamentação cristã do tempo na eternidade”, p. 82-89). Sugerimos também Germano Pattaro, “A concepção

cristã do tempo”, in: As culturas e o tempo, Petrópolis/São Paulo: Vozes/USP, 1975, p. 197-228 e WHITROW, G. J. O

tempo na história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993 e O que é tempo? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

5 Um comentário comparativo do conceito de eternidade de Boécio e o conceito de tempo agostiniano, encontra-se

em Marcia Sá Cavalcante Schuback (2000, p.79-117), capítulo 3: “Quando o fim está dentro do começo”.

6 Heidegger (1989, p. 10-11); tradução brasileira (1997, p. 14/15). Cf. Heidegger (2004, p. 17s). Uma das melhores

interpretações da tematizção agostinian do tempo encontra-se em Kurt Flasch (1993).

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No dia 25 de julho de 1925, no Teologado de Marburgo, Heidegger pronunciou a

conferência O conceito de tempo. Logo no início ele diz:

Santo Agostinho, em seu livro XI de suas Confissões, conduziu a pergunta aoponto de se perguntar: será o espírito mesmo o tempo? E Agostinho deixou apergunta parada nesse ponto. Ele diz: “In te, anime meus, tempora metior; nolimihi obstrepere: quod est; noli tibi obstrepere turbis affectionum tuarum. In te,inquam, tempora metior; affectionem quam res praetereuntes in te faciunt, etcum illae praeterierint manet, ipsam metior praesentem, non ea quae praeterieruntut fieret: ipsam metior, cum tempora metior” (livro XI, cap. 27). Em forma deparáfrase: “Em ti, ó meu espírito, meço eu os tempos; é a ti que eu meço, assimque eu meço o tempo. Não venha me perturbar com a pergunta: como será issoentão? Não me induza a desviar meu olhar de ti por meio de umapseudopergunta. Não te obstruas o caminho para ti, confundindo o que podete dizer respeito. Em ti, digo eu sempre de novo, eu meço o tempo; as coisasque ao passarem te encontram, colocam-te numa disposição que permanece,enquanto que as coisas desaparecem. Eu meço a disposição na presença humana(menschliche Dasein), não as coisas que passam, para que o tempo primeiramentese manifeste. É a disposição na qual me encontro, eu repito, que meço eu,quando eu meço o tempo (1989, p. 10-11; 1997, p. 14/15).

A clássica formulação de Santo Agostinho (2006, p. 278), tantas vezes citada mas

nem sempre pensada, diz algo simplesmente paradoxal: “Si nemo a me quaerat, scio, si

quaerenti explicare velim, nescio”, isto é: “Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser

explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei”. Esta formulação deve ser lida da seguinte

maneira: na ocupação mais cotidiana de nossa vida, sempre já pressupomos, ou melhor,

contamos com o tempo e, por isso, também “pensamos saber” o que ele seja. Todavia,

quando se trata de explicá-lo, de tematizá-lo para alguém tal como é, vemo-nos diante de

um problema e, conseqüentemente, caímos em aporia. Portanto, em geral, “pensamos

saber” o que o tempo seja, mas quando somos levados a colocar a pergunta pelo que ele

seja, trata-se de superar as opiniões correntes e, com isso, faz-se necessário pensar, de

algum modo, porque nós, em geral, “pensamos saber” o que seja tempo e, por isso,

também, em geral, “não sabemos” o que seja, ao tentarmos explicá-lo, ou melhor, de

torná-lo acessível à nossa própria compreensão ou mesmo para a dos os outros.

Agostinho diz: “Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se

nada sobrevivesse, não haveria tempo futuro, e se agora nada houvesse, não existiria o

tempo presente”. Podemos compreender isso assim: tempo é a condição de possibilidade

daquilo que comumente nomeamos de presente, passado e futuro e, enquanto tal, é o

que ontologicamente possibilita a tripla visualização. Nessa divisão do tempo e ao

pronunciá-la dessa maneira, apreendemos e compreendemos mais do tempo do que

muitas vezes somos levados a supor. Pois, não houvesse tempo, quer dizer, não houvesse

o que contar e dividir, uma tal contagem e divisão não teria sentido, ou melhor, sequer

seríamos capazes de dizer qualquer coisa a respeito do tempo, isto é, nem teríamos o

que contar, dividir e cronometrar.

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44 KIRCHNER, Renato. Agostinho e Aristóteles como “fontes” para...

Porém, vejamos esta situação colocada por Agostinho um pouco melhor. Talvez não

seja apenas isso que ele queria dizer. Agostinho diz mais: “Quando falamos do tempo,

compreendemos o que dizemos. Compreendemos também o que nos dizem quando dele

nos falam”. É decisivo entender bem como Agostinho compreende aqui o verbo

“compreender”. Compreender significa, literalmente, “prender-se a”, “estar preso com”, ou

melhor, “ser e estar preso e atado com isso ou aquilo”. Assim, ao falarmos do tempo, quer

dizer, ao pronunciá-lo, nós, de um modo ou de outro, já estamos presos e atados a isso

mesmo a que chamamos tempo. A presença humana sempre já, de algum modo, está na

abertura de compreensão de tempo e, nesse sentido, sempre já foi atingida pelo tempo, está

presa e atada a ele.

Nessa perspectiva, não haveria o que chamamos de tempo se não houvesse a

possibilidade de compreensão. Isto é, a idéia de tempo implica necessariamente uma

determinada compreensão a seu respeito. Com efeito, para entender o que a relação

tempo e compreensão implica, podemos ler o comentário à epígrafe de Ser e tempo: “A

interpretação do tempo como horizonte possível de toda e qualquer compreensão do

ser em geral é sua meta provisória” (2006, p. 34, grifo nosso).

Assim, à medida que analisarmos o fenômeno do tempo, perceberemos que há uma

proximidade, em termos fenomenológicos, entre as duas antigas investigações do fenômeno

do tempo. Pois, quando se trata de compreendê-lo, entra em cena o modo de ser de um

ente, que é o próprio ente que compreende, quer dizer, o ser humano, para Aristóteles e

Agostinho, e, para Heidegger, a presença humana (Dasein).

Não é certamente por acaso que, ao buscar dimensionar as condições de possibilidade

da compreensão, Wittgenstein curiosamente tenha recorrido ao texto das Confissões e

justamente onde Agostinho pergunta pelo tempo. Assim, nas Investigações filosóficas lê-se:

É que a reflexão lógica investiga a essência de todas as coisas. Ela quer ver as coisasem seu fundamento e não deve se preocupar se o acontecimento real é deste oudaquele modo. – Ela não emerge de um interesse por fatos da natureza nem danecessidade de apreender conexões causais, mas de uma aspiração porcompreender o fundamento ou a essência de tudo que é empírico. Não que paraisto devêssemos rastrear fatos novos: para nossa investigação é muito mais essencialque não queiramos apreender nada novo com ela. Queremos compreender algoque já está aberto diante de nossos olhos. Porque, em um certo sentido, é isto queparecemos não compreender.

Santo Agostinho diz (Confissões, livro XI, cap. 14): “Quid est ergo tempus? Sinemo ex me quaerat scio; si quaerenti explicare velim, nescio”. – Não daria paradizer isto de uma questão da ciência da natureza (por exemplo, da questão acercado peso específico do hidrogênio). Aquilo que sabemos, se ninguém nos pergunta,mas que já não sabemos mais, se devemos explicá-lo, é algo sobre o qual devemosrefletir (e, obviamente, é algo que, por um motivo qualquer, dificilmente refletimossobre isso) (1996, p. 64-65).

A partir do exposto, poderíamos afirmar: o motivo pelo qual dificilmente “refletimos”

(nachsinnen) a respeito do tempo está relacionado ao fato de, como diz também Heidegger,

não estarmos olhando apropriadamente para o fenômeno do tempo, uma vez que, numa

primeira aproximação e na maior parte das vezes, já estamos entretidos e ocupados com e

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pelo tempo. Heidegger convida-nos, por isso, a refletir mais cuidadosamente (sorgsam

nachsinnen) a respeito do tempo, antes de querer atacá-lo com representações não

examinadas (ungeprüften Vorstellungen) (1969, p.4; 1973, p.457).

Fica claro, então, que Heidegger reclama como tarefa ontológica uma análise do

modo como “o tempo é medido no espírito”. Ou seja, está em jogo, para ele, fazer uma

análise fenomenológica completa do modo de ser fundamental da presença humana que

mede o tempo e como ela, ao contar com o tempo e ao medi-lo de alguma forma,

simultaneamente se co-mede. Em toda e qualquer tentativa de medir, mensurar, com-

preender o tempo, o ser humano se mede a si mesmo e, assim, é co-medido. Ao deparar-

se com a questão do tempo, Heidegger procura conceituá-lo (begreifen) de uma maneira

a liberá-lo em sua estrutura ontológica fundamental. Vemos, assim, por que as tematizações

agostiniana e aristotélica do tempo sejam tão inspiradoras para Heidegger.

No § 82, que contém a mais extensa nota explicativa de Ser e tempo, o pensador

procura estabelecer um paralelo entre as compreensões do tempo de Aristóteles, Hegel e

Bergson, mostrando que estes dois filósofos modernos dependem fundamentalmente da

concepção aristotélica de tempo. Segundo Heidegger, “a concepção bergsoniana de tempo

também nasce, manifestamente, de uma interpretação do tratado sobre o tempo de

Aristóteles” (2006, p.530, nota 258). Tanto no § 82 de Ser e tempo como no § 19 de Os

problemas fundamentais da fenomenologia, Heidegger (2006, p.530; 1975, p.328) demonstra

que as tematizações hegeliana e bergsoniana são totalmente dependentes do Estagirita7.

A partir dessas considerações, é possível perceber que Heidegger, mediante uma releitura

fenomenológica da tradição metafísica, preocupa-se em mostrar que o tempo nem sempre

foi visto e entendido de maneira unívoca e, portanto, que há diferenças essenciais nas diversas

tematizações tradicionais, mas que, segundo ele, há uma posição fundamental pré-vista e

pre-suposta. De fato, é isso que lhe interessa e é com isso que insistentemente se ocupa em

suas abordagens sobre o tema. Segundo ele, os diversos modos tradicionais de tematizar o

tempo só foram possíveis porque há uma posição fundamental em relação ao tempo e que

nunca foi suficientemente elaborada pela metafísica ocidental. Assim, em toda tradição

metafísica, até mesmo as tematizações cronologicamente mais próximas de Heidegger (1975,

p.329), como as de Kant e Hegel, de Kierkegaard e Bergson, permaneceram presas

fundamentalmente às investigações aristotélica e agostiniana do tempo.

Portanto, falar da interpretação heideggeriana das principais tematizações tradicionais

do tempo implica avistar a posição fundamental que norteia não só o pensamento

heideggeriano, mas, sobretudo, evidenciar suficientemente as diferenças das diversas

tematizações realizadas pela tradição metafísica. Entretanto, “posicionamento fundamental”

não implica encontrar um denominador comum nas diversas tematizações do tempo da

tradição metafísica. “Fundamental”, entende Heidegger, é o pensamento que orienta, guia,

7 Obras de Henri Bergson traduzidas para o português: Duração e simultaneidade, São Paulo: Martins Fontes, 2006;

Ensaio sobre os dados imediatos da conciência, Lisboa: Edições 70, 1988; Matéria e memória, São Paulo: Martins

Fontes, 1990; A evolução criadora, Rio de Janeiro: Delta, 1964. Sobre o conceito bergsoniano de tempo, cf. também

Flasch (1993, p. 27-36).

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perpassa e está presente em todas as principais tematizações tradicionais do tempo, sem

que elas necessariamente tenham tematizado este “fundamento”. Assim, ao falar das

tematizações tradicionais do tempo – como, por exemplo, de Aristóteles, Santo Agostinho,

Kant e Hegel8 – é imprescindível avistar a posição fundamental que Heidegger nelas avista

e, a partir da qual, dá sua própria interpretação ontológica ao fenômeno.

Nesse caso, qual seria, então, esta posição fundamental? Como Heidegger a vê e

entende? De onde e com que direito? Para compreender isso melhor, vejamos o que ele diz

na conversa com Cassirer, em Davos, e publicada ao final de Kant e o problema da metafísica:

Toda minha interpretação da temporalidade tem este propósito metafísico deperguntar: todos estes títulos da metafísica [Heidegger refere-se aqui aos seguintestítulos metafísicos: constância e eternidade; ele se pergunta: o que significa, nessecaso, propriamente constante e eterno? Não será a eternidade nada mais do queaquilo que é possível em virtude de uma certa transcendência interna do tempo?]Transcendental são a priori, aei on, casualmente ousia, ou de onde provêm? Sefalam do eterno, como devem ser entendidos? Só podem ser e são possíveis de serentendidos devido ao fato de que, na essência do tempo, há uma transcendênciainterna, de modo que o tempo não só é o que possibilita a transcendência, mas otempo possui em si um caráter horizontal, graças ao qual, diante da atitude emrelação do futuro e da rememorização, me é dado dispor sempre de um horizontede atualidade, porvir e vigor de ter sido, ou seja, que se encontra aqui umadeterminação temporal, ontológica e transcendental, dentro da qual se constituialgo que é primordialmente como a constância da substância. – É a partir dissoque se deve entender toda minha interpretação da temporalidade. E para exporesta íntima estrutura da temporalidade e para mostrar que o tempo não é só umamoldura em que se desenvolvem as vivências e para aclarar este íntimo caráter datemporalidade da presença humana foi preciso o esforço do meu livro [Ser e tempo].Cada página desse livro foi escrita para enfocar unicamente que, já desde os antigos,o problema do ser foi interpretado sempre em relação ao tempo, num sentidobastante incompreensível, e que o tempo sempre tem sido atribuído ao sujeito.Considerando a relação dessa questão com o tempo e considerando a questãopelo ser, foi necessário expor a temporalidade da presença humana, não no sentidoem que se elabora nesta ou naquela teoria, mas dentro de uma bem-determinadaproblemática em que se expõe a questão da presença humana. – Toda aproblemática de Ser e tempo, que trata da presença humana, não é nenhumaantropologia filosófica; para este efeito ela é demasiadamente estreita e provisória.Parece-me que existe aqui uma problemática de modo que, até hoje, ainda não foidesenvolvida como tal, uma problemática que se determina por meio da seguintepergunta: Se a possibilidade da compreensão do ser, e com isso a possibilidade datranscendência do homem, e com isso a possibilidade do comportamentoconformador para o ente, do acontecer histórico na história do mundo do homem,deve ser mesmo possível; e se esta possibilidade está fundada numa compreensãodo ser e se esta compreensão ontológica, de um modo ou de outro, está orientadapara o tempo, então impõe-se a tarefa: verificar a temporalidade da presençahumana em relação à possibilidade da compreensão do ser. Pois para isso estãoorientados todos os demais problemas9.

8 Além das indicações de Heidegger em Ser e tempo (principalmente §§ 6 e 78 a 82), orientamo-nos, para o que é

exposto aqui, a respeito das principais tematizações tradicionais do tempo, pelo que o pensador diz principalmente

em Os problemas fundamentais da fenomenologia (1975, p. 327-329).

9 Heidegger (1973, p. 254-255). Os acréscimos entre colchetes são nossos.

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Importante perceber aqui o âmbito no qual Heidegger avista a necessidade de tematizar

o tempo. Ele afirma que o tempo está relacionado intrinsecamente à “compreensão do ser”.

Esta compreensão é ontológica e orienta-se pelo tempo. Nasce dali a necessidade de “verificar”

se e como a “compreensão do ser” está relacionada à “temporalidade da presença humana”.

Podemos afirmar que o posicionamento fundamental que norteia o pensamento

heideggeriano, em relação à “sua” tematização do tempo, concentra-se nessas duas

expressões. Tratam-se, pois, de duas expressões ontológicas: “compreensão” e “temporalidade”

e, principalmente, as formas genitivas “do ser” e “da presença humana”, que, por sua vez,

relacionam-se mutuamente. Evidencia-se aqui, segundo Heidegger, que a compreensão do

ser nunca se dá fora da presença humana, mas que está sempre já intimamente a ela

relacionada. De fato, ao tratar do tempo, o pensador mostra como a presença humana,

sempre já, isto é, por antecipação, compreende a si mesma, em tudo que faz e como faz,

temporalizando-se. A presença humana é o ente que, queira ela ou não, em tudo que

empreende e realiza, sempre já se descobre sob o domínio da compreensão de ser. Ela sempre

já se descobre na e como possibilidade de empreender isso ou aquilo, de realizar-se dessa ou

daquela maneira, por existir temporalmente.

A presença humana não seria o ente que é e como é, caso fosse destituída de

“compreensão” e “sentido”. Estes dois existenciais revelam o imediato, o súbito, o abrupto

de abertura de mundo, razão pela qual toda e qualquer compreensão, toda e qualquer

compreensão de mundo é possível. Por isso, diz Heidegger, ao final da passagem citada:

“impõe-se a tarefa: verificar a temporalidade da presença humana em relação à possibilidade

da compreensão do ser. Pois para isso estão orientados todos os demais problemas”. A

palavra “verificar” é aqui de importância vital. Está em jogo um modo de falar do tempo que

seja verdadeiro, que revele a verdade do tempo, o fundamento do tempo. Deve-se falar

(tematizar) e, falando (tematizando), revelar o fundamento ontológico do tempo. De fato, a

questão do ser está relacionada à questão do tempo. Não são questões quaisquer ou questões

ao lado de outras tantas possíveis. São, desde seu fundamento ontológico último, a mesma

questão, a questão que orienta e fundamenta todas as demais questões de caráter ontológico.

A partir disso, portanto, é possível compreender a relação intrínseca e vital que o título da

obra capital de Heidegger estabelece: Ser e tempo!

No livro Introdução à metafísica há uma passagem esclarecedora desse posicionamento

fundamental e, conseqüentemente, do caminho percorrido por Heidegger em sua tematização

do tempo:

Mas por que justamente tempo? Porque, no princípio da filosofia ocidental, aperspectiva que guia a abertura do ser é o tempo. Mas o é de tal modo, quepermaneceu e teve de permanecer, como perspectiva, oculto. Quando no fim aousia se converte no conceito fundamental do ser e ser significa, então, presençaconstante (ständige Anwesenheit), que outra coisa poderia ainda fundamentar,de modo não des-coberto e não-revelado, a essencialização da constância e aessencialização da presença do que o tempo? Esse ‘tempo’, porém, ainda nãofoi des-dobrado e des-envolvido em sua essencialização nem poderá sê-lo (noterreno e na perspectiva da Física). Pois, quando, no fim da filosofia grega, se

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introduziu com Aristóteles a reflexão sobre a essencialização do tempo, teve elede ser tomado como algo, de algum modo presente, ousia tis. É o que se exprimeno fato de o tempo ter sido apreendido a partir do ‘agora’, como o que cada veze só está presente. O passado é o ‘não-mais-agora’, o futuro o ‘ainda-não-agora’.O ser, no sentido do que é objetivamente dado (presença = Anwesenheit),subministrou a perspectiva para a determinação do tempo. E assim o tempo nãochega a ser a perspectiva, que propriamente se seguiu na interpretação do ser(1969, p.226-227; 1987, p.157).

Embora haja nessa citação vários elementos que mereçam explicitação, devemos

prestar atenção, por enquanto, que, não por acaso, Heidegger menciona, apesar de um

modo não explícito, a Física de Aristóteles. Segundo ele, foi Aristóteles, ao lado de Santo

Agostinho, quem melhor tematizou o tempo. Vemos isso de modo manifesto numa

passagem de Os problemas fundamentais da fenomenologia:

Já se disse muitas vezes que nas interpretações do tempo da antigüidade, isto é,de Aristóteles e de Agostinho, foi dito o essencial que se pode dizer a respeito dotempo, especialmente em relação à compreensão vulgar do tempo. E se comparadasuma com a outra, as investigações de Aristóteles são conceptualmente maisrigorosas e vigorosas, ao passo que Agostinho vê algumas dimensões do fenômenodo tempo mais originariamente. Nenhuma tentativa de chegar ao enigma do tempodeverá dispensar-se de uma discussão com Aristóteles. Pois foi ele quem, pelaprimeira vez e por um longo período afora, foi capaz de conceituar inequivocamentea compreensão vulgar do tempo, e de tal modo que sua concepção do tempocorresponde ao conceito do tempo natural. Aristóteles foi o último dos grandesfilósofos que tiveram olhos para ver, e o que é ainda mais decisivo, a energia e apersistência de orientar as investigações sempre de novo aos fenômenos e ao quehavia sido entrevisto; e isso apesar de todas estas especulações bravias e perigosasserem sempre de novo menosprezadas desde o seu fundamento pelo coração dacompreensão comum (1975, p.329; 2001, p.63s).

Vê-se claramente que Heidegger dá uma importância toda particular à tematização

aristotélica do tempo. Na forma tradicionalmente conhecida, a definição aristotélica do

tempo diz: “O tempo é isso, a saber, o que é contado no movimento que se dá ao encontro

no horizonte do anterior e do posterior” (touto gar estin o khronos, arithmos kineseos kata

to proteron kai ysteron)10. Em sua interpretação de Aristóteles, Heidegger dá uma formulação

precisa a esta conceituação nestes termos: “O tempo é o que é contadoo que é contadoo que é contadoo que é contadoo que é contado na seqüência

atualizante de contagem do ponteiro no mostrador de suas variações. E isso de tal maneira

que a atualização se temporaliza na unidade ekstática de reter e aguardar, abertos

horizontalmente segundo o anterior e o posterior” (2006, p.517).

Procuremos avistar alguns pontos essenciais pelos quais Heidegger interpreta a

tematização aristotélica do tempo. Em Os problemas fundamentais da fenomenologia e Ser

e tempo, Heidegger analisa e mostra, fenomenologicamente, de onde Aristóteles retira

(elabora) seu conceito de tempo. O decisivo, portanto, consiste em ver e entender “de onde”

Aristóteles retira sua concepção ou definição do tempo. Em Que é uma coisa?, podemos ler:

10Cf. Aristóteles, Física, livro D 11, 219 b 1s. Heidegger cita e comenta essa definição em Ser e tempo e Os problemas

fundamentais da fenomenologia (2006, p.516; 1975, p.324-388).

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“Também em relação à determinação essencial do espaço e do tempo, Platão e Aristóteles

pré-indicaram o caminho que ainda hoje percorremos” (1992, p.54-55)11. Porém, é Aristóteles,

sem dúvida, o principal interlocutor de Heidegger em sua elaboração do conceito de tempo12.

Além de Heidegger reconhecer na definição aristotélica do tempo uma definição decisiva

para as abordagens posteriores, no § 81 de Ser e tempo, intitulado “A intratemporalidade e

a gênese do conceito vulgar de tempo”, Heidegger (2006, p.516-525) também interpreta o

conceito aristotélico do tempo.

O que importa ver e entender aqui é que foi Aristóteles o primeiro pensador do Ocidente

a ocupar-se com o tempo de modo a transformá-lo numa investigação ontológica de fato. A

tematização mais importante encontra-se no tratado da Física13. Esse tratado não é só,

cronologicamente falando, a primeira tematização ontológica do tempo. Segundo Heidegger,

11Heidegger comenta a concepção platônica do tempo em Ser e tempo: “Foi por isso que, dirigindo a visão para o tempo

como seqüência de agoras, que emergem e desaparecem, já Platão teve de chamar o tempo de imagem derivada da

eternidade”. A definição platônica do tempo encontra-se no Timeu: “Então pensou em compor uma imagem móvel da

eternidade e, no mesmo tempo em que organizou o céu, fez da eternidade que perdura na unidade essa imagem

eterna que se movimenta de acordo com o número e a que chamamos tempo” (2006, p. 520, nota 238).

12Além de Agostinho e Aristóteles – e poderíamos incluir também Platão –, os principais filósofos a se ocuparem com o

tempo na antigüidade foram: a) Lucrécio: em De rerum natura (Sobre a natureza das coisas) lê-se sobre o tempo: “O

tempo não existe por si mesmo, mas apenas pelos objetos sensíveis, de que resulta a noção de passado, presente e

futuro. Não se pode conceber o tempo em si e independentemente do movimento e do repouso das coisas”; b) Plotino:

é um dos primeiros comentadores do pensamento grego. De Plotino Heidegger cita explicitamente o terceiro livro das

Enéadas, intitulado Peri aioos kai khronoy (Sobre o aion e o tempo). O aion é uma forma particular intermediária entre

eternidade e tempo, a qual desempenha, segundo Heidegger, um papel importantíssimo na discussão do tempo na

medievalidade (1975, p.327-328; FLASCH, 1993, p.56); c) Simplício: segundo Heidegger, foi ele a fazer o primeiro

comentário importante sobre o tratado aristotélico do tempo (1975, p.325). Uma referência explícita de Heidegger ao

comentário de Simplício à Física encontra-se em “A sentença de Anaximandro” (1979, p.268, 280, 303); d) Boécio: em

De consolatione philosophiae (Sobre a consolação da filosofia, livro V, 6) é elaborada e descrita a célebre definição de

eternidade (cf. BARTH, K. Kirchliche Dogmatik II/1, Zurique/Zollikon, 1946, p.685-764). Marcia Schuback, num estudo

primoroso, escreve: “O conceito teológico clássico de eternidade remete à definição de Boécio, enunciada nos seguintes

termos: aeternitas est interminabilis vitae tota simul et perfecta possessio. ‘Eternidade é a posse per-feita, simultânea e

total da vida interminável’” (CAVALCANTE SCHUBACK, 2000, p. 79-82). A autora descreve o modo como Boécio

compreendeu o conceito de “eternidade” e como este conceito foi importante para a tradição medieval posterior.

13Aristóteles, Physique. Société D’Édition “Les Belles Lettres”, Paris: 1926; Physikvorlesung. Darmstadt: Wissenschaftliche

Buchgesellschaft, 1959; Physics. Chicago/London/Toronto: Encyclopaedia Britannica, 1952, p.255-355. No caso desse

tratado, a ênfase recai principalmente sobre o livro IV, no qual Aristóteles apresenta a célebre definição sobre o tempo,

a saber: “O tempo é o que é contado no movimento que se dá ao encontro no horizonte do anterior e do posterior”

(touto gar estin o khronos, arithmos kineseos kata to proteron kai ysteron) (Física, livro D 11, 219 b 1s). No que diz

respeito ao confronto de Heidegger com as investigações sobre o tempo em Aristóteles, é importante não desconsiderar

os seguintes textos: Ser e tempo (2006, p.516-533, especialmente §§ 81 e 82) e Os problemas fundamentais da

fenomenologia (1975, p.327-361, todo o amplo § 19, onde o autor faz uma das mais originais interpretações do

conceito de tempo herdado de Aristóteles). Cf. também o texto intitulado “Vom Wesen und Begriff der Physis“, publicado

em Wegmarken, Frankfurt, Vittorio Klostermann, 1967, p.309-371. Cf. ainda os seguintes estudos sobre o conceito

aristotélico de tempo: PUENTE, Fernando Rey. Os sentidos do tempo em Aristóteles. São Paulo: Loyola, 2001;

GOLDSCHMIDT, Victor. Temps physique et temps tragique chez Aristote. Paris: Vrin, 1982; CONEN, Paul F. Die Zeittheorie

des Aristoteles. Munique: C.H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1964; COLLOBERT, Catherine (introdução, tradução e

comentários). Aristote: Traité du temps: Physique, livre IV,10-14. Paris: Éditions Kimé, 1995; Hyde, Michael J.; SMITH,

Craig R. “Aristotle and Heidegger on Emotion and Retoric: Question of Time and Space”, in: The Critical Turn. Rhetoric

and Philosophy in Postmodern Discourse. Carbondale/Edwardswille: Southern Illinois University, 1996, p.68-99.

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o que Aristóteles viu em sua definição do tempo – e se manteve até hoje –, passou a ser visto,

pela tradição metafísica ocidental, como algo “evidente”. A partir disso, então, Heidegger

propõe-se realizar uma interpretação fenomenológica da tematização aristotélica do tempo.

Ele mesmo o diz em duas passagens importantes de Ser e tempo:

O tratado de Aristóteles sobre o tempo é a primeira interpretação desse fenômeno,legada pela tradição. Ele determinou, de maneira essencial, toda concepçãoposterior do tempo, inclusive a de Bergson. Ademais, pela análise do conceitoaristotélico de tempo, tornar-se-á claro, retrospectivamente, que a concepçãokantiana do tempo se move dentro das estruturas apresentadas por Aristóteles.Isso significa que a orientação ontológica fundamental de Kant é grega, nãoobstante todas as diferenças que uma nova investigação comporta (2006, p.65).

A primeira interpretação legada pela tradição e que trata amplamente dacompreensão vulgar do tempo encontra-se na Física de Aristóteles, ou seja, nocontexto de uma ontologia da natureza. “Tempo” relaciona-se com “lugar” emovimento” (2006, p.526).

O conceito aristotélico do tempo fundamenta toda a interpretação posterior, afirma

Heidegger. Porém, é importante evidenciar isso melhor. A princípio, poder-se-ia dizer que

Aristóteles viu “algo mais” e é dali que ele retira ou elabora seu conceito de tempo. Está em

jogo, por isso mesmo, esclarecer em que consiste este “algo mais” e como Aristóteles

compreendeu o tempo ao ponto de chegar a esta concepção de tempo e não a outra.

Heidegger reconhece:

Por mais que, à primeira vista, essa definição possa parecer estranha, ao se delimitaro horizonte ontológico-existencial do qual Aristóteles a retira, ela se mostra por simesma ‘evidente’ e autenticamente haurida. Para Aristóteles, a origem do tempoassim revelado não constitui problema. Sua interpretação do tempo movimenta-se, sobretudo, na direção da compreensão ‘natural’ do ser. Mas como estacompreensão e o ser nela compreendido tornam-se um problema de princípiopara a presente investigação, a análise aristotélica do tempo só poderá sertematicamente interpretada, após se resolver a questão do ser. E isso de maneiraque ela conquiste um significado de princípio para a apropriação positiva doquestionamento crítico e delimitado da antiga ontologia.

Toda discussão seguinte a respeito do conceito de tempo atém-sefundamentalmente à definição aristotélica, ou seja, tematiza o tempo tal como elese mostra na ocupação, guiada por uma circunvisão. O tempo é o ‘contado’, istoé, o que se pronuncia, embora implicitamente, na atualização do ponteiro (ou dasombra) que anda. Na atualização do que se move em seu movimento, o que sediz é: “aqui-agora, aqui-agora etc.” O que é contado são os agora. E estes semostram ‘em cada agora’ como “logo-mais-não” e “a pouco não-agora” (2006,p.517-518; cf. também 1992, p.54-55).

Segundo Heidegger, há, na concepção aristotélica de tempo, alguns pontos essenciais

que devem ser destacados14:

14Cf. aqui os tópicos “a) Estrutura do tratado aristotélico do tempo” e “b) Interpretação do conceito aristotélico de

tempo”, desenvolvidos em Martin Heidegger (1975, p.330-361).

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1. Ela é retirada do contexto de uma ontologia da natureza. De fato, no capítulo 10

da Física, de Aristóteles, o tempo é identificado com a esfera celeste que, em seu

movimento circular, tudo abarca e tudo compreende dentro de si mesmo. Para

compreender isso melhor, é preciso ter presente a representação antiga do mundo,

segundo a qual a terra é um disco que flutua no oceano rodeada pela totalidade

da esfera celeste. Dentro dela sobrepõem-se diversas esferas nas quais encontram-

se fixadas as estrelas. A esfera celeste mais extrema é a que abarca tudo o que

propriamente é. Ela e sua revolução identificam-se com o tempo. De acordo com

Aristóteles, o fundamento desta interpretação é o seguinte: en te to khrovo panta

estin kai en te toy oloy sphaira, ou seja, todo ente é no tempo, porém, tudo o que

é subsistente está dentro da cúpula celeste giratória, que é o limite externo de

todo ente. O tempo e a esfera celeste mais externa se identificam. Há, nessa

interpretação, algo que todos nós experimentamos, a saber, o tempo e sua relação

com a revolução do céu e o tempo, por sua vez, como aquilo em que todo ente é.

Certamente dizemos: o ente é no tempo e, nesse sentido, o tempo é algo como o

movimento (kinesis tis)15. De fato, falamos da passagem do tempo e dizemos: o

tempo passa. Para kinesis, Aristóteles emprega também metabole. Este é o conceito

mais geral para expressar movimento: literalmente, transformação16. O movimento

está sempre no móvel e, nesse sentido, não é algo mesmo que se move. Portanto,

o movimento está sempre no móvel. Não é algo que, por assim dizer, flutue sobre

o que se move, mas que é o móvel mesmo que se move. Portanto, o movimento

está sempre ali onde está o móvel. Fica estabelecida, assim, uma diferença entre o

tempo e o movimento, ou seja, enquanto o movimento está sempre apenas no

móvel e somente ali onde o móvel se encontra, o tempo está em todas as partes

(pantakhoy), não está pois em um determinado lugar e não está no móvel mesmo.

Ele está, porém, junto a (para) e, de algum modo, ao lado de. Movimento e tempo

distinguem-se na maneira de pertencerem ao móvel e o que é no tempo é o que

chamamos intratemporal.

2. É no capítulo 11 da Física que a célebre definição aristotélica do tempo é exposta

e analisada. Em seu resultado, o “antes” (Vor) e o “depois” (Nach) dizem respeito

ao movimento ou, dito mais sucintamente, algo contado do movimento com o

qual nos encontramos no horizonte do anterior (Früher) e do posterior (Später).

Aristóteles mostra de forma mais precisa o que está presente na experiência de

um movimento e em que medida encontra-se nela, por sua vez, o tempo. Esclarece

de que modo e em que sentido o tempo é arithmos, quer dizer, número, e como

aparece o fenômeno fundamental do tempo, to nyv, ou seja, o “agora”.

15Cf. Aristóteles, Física, livro D 10, 218 b 6s, bem como Heidegger (1975, p.332).

16Metabole significa “movimento em geral”. Segundo Heidegger, “transformação de qualquer coisa em qualquer

coisa. Nesse sentido lato, é movimento, por exemplo, o empalidecer e o avermelhar, mas também há transformação

quando um corpo é transportado de um lugar para o outro. Este ser-deslocado, este transporte, esta transformação,

chama-se phora“ (HEIDEGGER, 1992, p.88).

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52 KIRCHNER, Renato. Agostinho e Aristóteles como “fontes” para...

3. A partir disso, chegamos ao terceiro ponto importante analisado por Aristóteles

no capítulo 13 de seu tratado. Ele pergunta-se pela unidade do tempo em relação

à multiplicidade da seqüência de “agoras”. Está em jogo mostrar como o “agora”

(to nyv) constitui a autêntica coesão interna do tempo, a synekheia, isto é, o manter-

se unido, a continuidade. Segundo Heidegger, Aristóteles

pergunta pela união do tempo na multiplicidade da seqüência de agoras. Ele procuramostrar aqui, como o agora, to nyv, constitui a unidade própria do tempo, que éa synekheia, ou seja, o manter-se unido (continuum, em latim e Stetigkei, emalemão). Trata-se da questão de que modo o agora reúne em si o tempo comototalidade. Todas as determinações de tempo estão relacionados ao ‘agora’.Aristóteles oferece uma interpretação a algumas determinações de tempo apoiando-se no esclarecimento da synekheia: o ede, o imediatamente, o arti, o justamente-agora ou faz-um-instante e, além disso, o palai, que é o outrora ou faz tempo, eo exaiphnes, de repente. Imediatamente, justamente-agora, faz-um-instante,outrora, faz tempo e de repente são todas determinações que remetem ao nyn. Ofaz-um-instante é visto retroativamente a partir de um agora, o logo-a-seguir évisto a partir do agora igualmente para frente. Aristóteles não compreende essasdeterminações em sua conexão interna, pois dá apenas exemplos de determinaçõesde tempo sem conhecer sua sistemática (1975, p.334-335).

Qual o propósito de Heidegger, então, em relação à definição aristotética de tempo?

Ele faz uma crítica positiva (interpretação fenomenal) no sentido de apropriar-se das conquistas

realizadas por Aristóteles da tematização do tempo. Para Aristóteles como para Heidegger,

está em jogo compreender o tempo “em si mesmo”, ou seja, ontologicamente. A diferença

essencial, entre um e outro, é a posição ontológica de fundo em que se movimentam nas

suas tematizações do tempo. Em suas análises, diz Heidegger, Aristóteles, como ninguém

mais, teve olhos, energia e persistência para manter-se voltado “à coisa mesma” do tempo:

Aristóteles foi o último dos grandes filósofos que tiveram olhos para ver, e o que éainda mais decisivo, a energia e a persistência de orientar as investigações semprede novo aos fenômenos e ao que havia sido entrevisto; e isso apesar de todasestas especulações bravias e perigosas serem sempre de novo menosprezadas desdeo seu fundamento pelo coração da compreensão comum (1975, p.329).

Se a concepção aristotélica de tempo concentra-se no “agora”, como interpretar

o “agora” (nyn)? Como e o que vê Heidegger ao dizer que todas as diferentes

determinações de tempo aristotélicas remetem ao “agora”? O que quer dizer Heidegger

ao afirmar que Aristóteles não compreendeu as diferentes determinações de tempo em

sua conexão interna e que ele dá apenas exemplos de determinações de tempo sem

conhecer sua sistemática “interna”?

Nesse sentido, Heidegger reconhece que “Agostinho vê algumas dimensões do

fenômeno do tempo mais originariamente”, ou melhor, Agostinho é o primeiro grande

pensador a ver, compreender e explicar o tempo em sua “sistemática interna”. Sob o

ponto de vista ontológico, em suas Confissões, Agostinho procura compreender e explicar

se e como se articulam e estruturam “passado-presente-futuro”.

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Devemos considerar, por outro lado, que Heidegger, além de interpretar a Física, também

reconhece que Aristóteles “entreviu o fenômeno do instante”. Podemos ver isso no livro Os

problemas fundamentais da fenomenologia:

O instante é um fenômeno fundamental da temporalidade originária, ao passoque o agora é apenas um fenômeno do tempo derivado. Aristóteles já entreviu ofenômeno do instante, o kairos, e o delimitou no livro VI de sua Ética a Nicômaco.Nisso, porém, ele não foi bem-sucedido, uma vez que faltou mostrar a conexãodo caráter específico do tempo do kairos com o instante, o que ele reconhece, poroutro lado, como tempo (nyn) (1975, p.409).

Evidencia-se aqui o que Aristóteles também teria visto como instante (kairos), embora

não tenha desdobrado toda estrutura e sistemática interna do instante do tempo. Heidegger

mostra isso à medida que tematiza o tempo como temporalidade originária da presença

humana, sendo o agora apenas um fenômeno do tempo derivado. Coloca-se aqui a questão

se é possível uma maneira apropriada de tematizar ontologicamente o tempo. Para

Heidegger, o instante (Augenblick) é um momento constitutivo fundamental da

temporalidade, que é, em si mesma, ekstática (ekstatisch). O ekstatikon é o “originariamente

fora-de-si” (Außer-sich) e o exaiphnes é o “súbito”, o “imediato” (Plötzlichkeit) (2006, p.

413 e 202 respectivamente). Embora esses conceitos já tenham sido empregados por

Aristóteles, Heidegger mostra que a concepção aristotélica de tempo, além de movimentar-

se dentro de uma ontologia “natural” e, por isso, ficar fundamentalmente presa ao “agora”

do tempo, também não é fundamentada desde a presença humana.

Segundo a interpretação de Heidegger, todas as determinações de tempo de

Aristóteles remetem, em última instância, ao “agora” (nyn). Mas o que seria, então, o

“agora”, capaz de abarcar e determinar o tempo? Esta é uma das perguntas fundamentais

que Heidegger se faz ao interpretar o conceito de tempo aristotélico. Ele não vê, então, no

modo aristotélico de compreender o tempo, uma deficiência. Pelo contrário! Reconhece

apenas que Aristóteles move-se no âmbito da compreensão natural, ou seja, que seu conceito

de tempo nasce de uma ontologia que se movimenta dentro de uma compreensão natural

de mundo (1975, p.329). Assim, por exemplo, no § 81 de Ser e tempo, Heidegger diz que

o conceito aristotélico de tempo é “por si mesmo ‘evidente’ e autenticamente haurido. [...]

Toda discussão seguinte a respeito do conceito de tempo atém-se fundamentalmente à

definição aristotélica” (2006, p.517).

Por um lado, se é possível afirmar que Heidegger vê e compreende o modo como

Aristóteles e Agostinho buscam explicar o fenômeno do tempo, por outro lado, porém,

busca compreender o mesmo fenômeno de um modo novo, vale dizer, busca ver, compreender

e explicar a verdadeira possibilidade de conexão ou relação interna entre futuro-passado-

presente. Isso só é possível a partir do fenômeno da temporalidade. A concepção genuinamente

heideggeriana do tempo chama-se, por isso, temporalidade originária da presença humana17.

17A temporalidade como sentido ontológico da cura (Sorge) é um dos temas principais relacionados ao modo como

Heidegger desenvolve sua própria concepção do fenômeno do tempo.

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Porém, em que sentido constitui-se a temporalidade originária da presença humana

numa concepção nova? Heidegger parte do pressuposto, que é necessário fazer uma real e

verdadeira descrição fenomenal do nyn como “agora autêntico”. Pois, se, como acontece em

Aristóteles, o “agora” desempenha uma função toda especial, a ponto de ser o fio condutor

de toda interpretação posterior do tempo e, ainda, se “a unidade própria do tempo é a

synekheia”, isto é, “o manter-se unido” (continuum ou Stetigkeit), como diz Heidegger, então

deve ser possível explicitar fenomenal e ontologicamente esta unidade interna própria do

fenômeno do tempo.

Nosso objetivo não é apontar aqui todas as conseqüências da interpretação

heideggeriana da concepção aristotélica de tempo. O importante a perceber, porém, é por

que Heidegger parte fundamentalmente dessa concepção. Além disso, a tematização

heideggeriana deve, em algum momento, confrontar-se com o conceito aristotélico do

tempo, mostrando de onde o conceito aristotélico é legitimamente haurido (2006, p.516-

525). Por isso mesmo, na tematização heideggeriana do tempo como temporalidade

originária da presença humana, é preciso mostrar como é possível e como surge o “fenômeno

do tempo derivado”. Isso é possível, pensa Heidegger, desde que o tempo seja visto como

se mostra na ocupação e, conseqüentemente, como nossa compreensão do tempo sempre

se orienta a partir da circunvisão do mundo cotidiano (2006, p.517)18. Com efeito, se a

presença humana sempre já conta com o tempo deste ou daquele modo, uma vez que

sempre já é “tempo de” fazer ou não fazer isso ou aquilo – o fato de tomarmos (nehmen)

ou nos darmos ou deixarmos (lassen) tempo a todo momento – fica em questão explicar

como isso acontece. Pois, seja apropriadamente tempo de... seja inapropriadamente tempo

de..., o fato é que o tempo já é sempre pré-visto e, por isso mesmo, há uma tendência

natural de, por contarmos previamente com ele, não mais vermos que ele guia e orienta

nossos afazeres cotidianos. De fato, o que gostaríamos de ver não pode ser visto, pois

sendo pré-visto, também se desfaz nas ocupações de cada momento.

Demonstrar isso é possível, à medida que Heidegger analisa os fenômenos do

“tempo ocupado” (besorgte Zeit) e do “tempo do mundo” (Weltzeit) a partir da

“intratemporalidade” (Innerzeitlichkeit). Por isso, escreve no § 6 de Ser e tempo:

Só será possível avaliar essa influência depois de se ter mostrado o sentido e oslimites da antiga ontologia, a partir de uma orientação feita pela questão do ser.Em outras palavras, a destruição se vê colocada diante da tarefa de interpretar osolo da antiga ontologia à luz da problemática da temporaneidade. Torna-se,assim, evidente que a interpretação antiga do ser dos entes se orienta pelo“mundo” e pela “natureza” em seu sentido mais amplo, retirando de fato acompreensão do ser a partir do “tempo”. A determinação do sentido do sercomo parousia e ousia, que, do ponto de vista ontológico-temporâneo, significa“vigência”, representa um documento externo dessa situação, mas somente isso.O ente é entendido em seu ser como “vigência”, isto é, a partir de determinadomodo do tempo, do “atualmente presente” (2006, p.63-64).

18Cf. ainda §§ 19 e 20 de Os problemas fundamentais da fenomenologia, onde Heidegger demonstra toda a estruturação

pressuposta à concepção aristotélica de tempo.

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Revelam-se, nessa passagem, algumas das tarefas que Heidegger assume e se impõe

em relação à principal tematização tradicional do tempo, a saber: 1) é necessário fazer

uma análise do agora como agora, ou seja, deve-se ver e entender o agora em toda sua

estrutura e sistemática interna. Segundo Heidegger, isso é possível a partir da descrição

fenomenal da estrutura plena do agora pronunciado no mundo das ocupações cotidianas

e confrontá-la com o “agora em que”, o “outrora, não-mais” e o “então, quando” da

intratemporalidade; 2) é necessário mostrar e fundamentar porque tomamos (nehmen) ou

damos ou deixamos (lassen) tempo a todo momento; 3) deve-se justificar se o tempo pode

ou não ser compreendido como uma pura seqüência de agoras pontuais e em que medida

esta compreensão do tempo se justifica ontologicamente. Para Heidegger, portanto, não

basta mostrar “apenas” como se contitui a temporalidade originária da presença humana.

A temporalidade originária, por isso mesmo, pode ser demonstrada, a partir da analítica

temporal, como cotidianidade, historicidade e intratemporalidade, temas com os quais

Heidegger se ocupará nos três últimos capítulos de Ser e tempo.

Para Heidegger, o que fundamenta a temporalidade, enquanto sentido ontológico

da cura (Sorge), não é o tempo “natural”, isto é, o modo pelo qual grande parte da

tradição metafísica compreendeu e interpretou o tempo. Está em jogo “devolver” o tempo

ao próprio ser humano. Já Aristóteles e Santo Agostinho perceberam que é o homem o

ente por excelência a fazer a experiência do tempo, estando nele a origem e o destino do

próprio tempo. A preocupação de Heidegger, portanto, ao tratar do problema do tempo,

é compreender em que sentido o tempo é tempo da presença humana ou, mais

especificamente, em que sentido é ela mesma quem se temporaliza, já sempre, desse ou

daquele modo. Em contrapartida, quanto mais o tempo é o tempo da quantidade e da

mera mensurabilidade – e Heidegger reconhece isso já na aula de habilitação de 1915

(1972, p. 356-375)19 –, menor a possibilidade de se fazer a experiência do tempo enquanto

temporalidade da presença humana. Segundo Dastur (1997, p. 29), com a tese que a

presença humana é o tempo, várias vezes repetida e retomada por Heidegger, está antecipada

a problemática da analítica existencial e temporal, que ele desenvolveria em sua obra capital

Ser e tempo, tratado do qual a conferência de 1924 representa uma notável síntese.

19O conceito de tempo na ciência histórica é o título da aula de habilitação dada por Heidegger, no dia 27 de julho de

1915, em Friburgo. O texto foi publicado pela primeira vez no Zeitschrift für Philosophie und philosophische Kritik,

em 1916 e, posteriormente, no primeiro volume das obras completas (Gesamtausgabe), em 1972, pela editora

Vittorio Klostermann, de Frankfurt. Trata-se do primeiro escrito importante de Heidegger em que é explícita sua

preocupação com o tema do tempo e, também, da história. Ele criou uma nota ao § 80 de Ser e tempo, onde

reconhece: “Uma primeira tentativa de se interpretar o tempo cronológico e os números na história encontra-se na

aula de habilitação, dada pelo autor na Universidade de Friburgo (semestre de verão, 1915)”. Nas palavras do próprio

Heidegger, trata-se de “uma primeira tentativa (Versuch) de interpretar o tempo cronológico (chronologischen Zeit)

e os números na história (Geschichtszahl). Na mesma nota lê-se: “As relações entre os números históricos, o tempo

calculado astronomicamente e a temporalidade e historicidade da presença necessitam de uma ampla investigação”

(HEIDEGGER, 2006, p. 514, nota 233).

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56 KIRCHNER, Renato. Agostinho e Aristóteles como “fontes” para...

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Duns Scotus e a questão daDuns Scotus e a questão daDuns Scotus e a questão daDuns Scotus e a questão daDuns Scotus e a questão daunivocidade do ser: preâmbulosunivocidade do ser: preâmbulosunivocidade do ser: preâmbulosunivocidade do ser: preâmbulosunivocidade do ser: preâmbulos

Duns Scotus and the question of theDuns Scotus and the question of theDuns Scotus and the question of theDuns Scotus and the question of theDuns Scotus and the question of theunivocal being: preamblesunivocal being: preamblesunivocal being: preamblesunivocal being: preamblesunivocal being: preambles

Fr. Marcos Aurélio Fernandes*

ResumoResumoResumoResumoResumo

o presente artigo procura identificar o nascedouro da doutrina da

univocidade do ser em Duns Scotus. A investigação parte do suposto

de que o pensamento de Scotus é a articulação de um Ordo Caritatis;

que a Caritas é o “ontologicum”, isto é, o sentido do ser pressuposto

em toda a compreensão do ente implícita no saber católico da fé

cristã; que a Caritas é a absoluta positividade da gratuidade e que

esta intuição constitui o princípio de re-fundação da metafísica em

Scotus. A partir daí procura mostrar que a decisão pela univocidade

do ente se baseia no fato de que o conceito de ser, em seu vazio,

deixa ser a plenitude da positividade da Caritas, antes de toda e

qualquer diferenciação analógica.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave:caridade, univocidade, transcendentais, nomes

divinos.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

The present article seeks to identify the birth place of the doctrine

of the univocal nature of the being in Duns Scotus. The investigation

starts from the suposition that Scotus’ thinking is the articulation

of an Ordus Caritatis, that Caritas is the “ontologicum”, that is, the

meaning of the supposed being in all the comprehension of the

individual implicit in Catholic knowledge of the Christian faith; that

Caritas is the absolute positivity of the gratuity law and that that

intuition constitutes the principle of re-foundation of metaphysics

in Scotus. From there it seeks to show that the decision for the

univocal nature of the being is based on the fact that the concept

of being, in its emptiness, allow for the plenitude of the positiveness

of Caritas, before all and any analogical differentiation.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: charity, univocal, transcendental, divine names.

* Frade Franciscano (OFM). Professor

do IFITEG (Instituto de Filosofia e

Teologia de Goiás - Goiânia), do ISB

(Instituto São Boaventura – Brasília)

e do Seminário Nossa Senhora de

Fátima (Brasília). Este texto foi

apresentado em comunicação no

IV Congresso Internacional

Franciscano, promovido pelo IFAN,

pela UNIFAE e pelo ITF, por ocasião

do VII Centenário da Morte de

Duns Scotus, nos dias 9, 10 e 11

de outubro de 2008.

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60 FERNANDES, Marcos Aurélio. Duns Scotus e a questão da univocidade do ser: preâmbulos

Primeiramente, ao ler a distinção 3 da Ordinatio I, que trata da cognoscibilidade de

Deus e que propõe, em seu contexto, o tema da univocidade do ser, salta aos olhos uma

proposição, muito breve e simples, mas que parece ser de uma envergadura tal, que alcança

todo o pensamento de Duns Scotus: “Negationes etiam non summe amamus” (é que nós

não amamos sumamente negações)1.

A modo de consideração preliminar, é preciso recordar, aqui, que o pensamento

de Scotus pode ser caracterizado como um pensar segundo “o rigor da caridade”, para

usar um título de Olivier Boulnois2. Com outras palavras, o pensar, em Scotus, constitui-

se a si mesmo, seguindo, por toda a parte, o ordo amoris, melhor, o ordo caritatis. No

pensamento de Scotus, o amor, como caritas, é o ontologicum propriamente dito.

Para Scotus, pensar é seguir o sentido do ser, que é amor, se dando e se retraindo,

como mistério, em todos os entes. Sentido, aqui, não é o mesmo que significado. Sentido

quer dizer rumo, direção. Pensar o sentido é tomar rumo, encontrar direção, achar um caminho.

É ter sido tocado e mobilizado por um poder-ser e deixar-se enviar por suas vias, seguindo o

dar-se e o retrair-se do que nos tocou e afeiçoou. Pensar o sentido é filosofar. O pensamento

é filosofia (philosophia), amor da sapiência. Amor como tendência fundamental, que salta

do ânimo, isto é, do âmago de nós mesmos. Amor como desejo. Amor como bem-querer,

isto é, benevolência. Nesse sentido, a philosophia não é outra coisa do que seguir esse impulso

primordial para o todo, que é o amor da sapiência. Ora, para Duns Scotus a philosophia

acaba sendo amor do amor, pois ele identifica a sapiência com o amor:

A sapiência, pois, é caridade; com efeito, ela é atinência, que saboreia aquele objetoao qual ela se atém, o qual é, em si, apto a ser saboreado, isto é, cujo bem em si meapraz... Sapiência é, pois, aquilo pelo qual Deus em si me dá gosto e me dá gostocomo bem: pois aquele que saboreia aprova em si o sabor e o apetece para si3.

A sapiência, portanto, coincide com a realização do poder-ser mais elevado do

espírito: a fruição do sumo bem, em que o contemplativo alcança sua bem-aventurança,

sua felicidade suprema. Com efeito, a felicidade suprema do humano consiste, segundo

Scotus, na fruição perfeita do sumo bem, que é o bem infinito.

1 IOANNIS DUNS SCOTI, ofm. Ordinatio I, d. 3, q, 1, n. 10, Opera Omnia III, p.5. Cf. também SCOT, Duns. Sur la connaissance

de Dieu et l’univocité de l’etant (Ordinatio I – Distinction 3 – Première Partie; Ordinatio I – Distinctio 8 – Première Partie;

Colatio 24). Introduction, tradution et commentaire par Olivier Boulnois. Paris: Presses Universitaires de France, Collection

Epiméthée, 1988, p.85.

2 BOULNOIS, Olivier. Duns Scoto – Il rigore della carità. Milano: Ed. Jaca Book, 1999.

3 “Sapientia enim est caritas; est enim habitus, quo sapit habenti illud objectum, quod est in se sapiendum, quo scilicet

placet mihi bonum eius in se... Sapientia enim est, qua sapit mihi Deus in se, et qua sapit mihi ut bonum: nam qui sapit,

et saporem in se approbat et sibi appetit“. Rep. III, d. 34, q. u., n. 11, XXIII (ed. Waddingo-Vivès), p.528. Citado apud

RIBEIRO, P. Ilídio de Souza ofm. Escola franciscana (história e filosofia). Braga: Edições Gama, 1943, p.21.

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A felicidade é um bem suficiente, a saber, um bem que exclui defeito ou indigência;é um bem perfeito ou completo, que exclui imperfeição ou diminuição; é bemúltimo, extremo, que exclui a dependência e a referência a um bem mais completo;é um bem em que quem o possui está completamente bem4.

A suma felicidade do humano está, pois, em amar o amor, que é Deus. Nisso, o

humano realiza o seu fim último, como ser espiritual, isto é, como ser vivente intelectivo e

volitivo. A vontade é o movente de todo o reino da alma. A ela é intrínseco o aspirar à

felicidade, querendo, em última instância, o sumo e infinito bem, melhor, o amor, a caridade,

que é Deus.

Dizíamos que, no pensamento de Scotus, o amor, como caritas, é o ontologicum

propriamente dito, isto é, é o sentido do ser, é a verdade que deixa e faz aparecer e brilhar

todo o ente na sua entidade, quer dizer, em sua inteligibilidade. Isso porque o primum ens, o

ente primordial, que é pura positividade de ser, e que é, em última instância, o um cuja vida

é a vida amorosa do tri-uno Deus, a trindade, esse Deus revelado na e para a fé, é amor:

Deus é dileção, é caridade, intrinsecamente, segundo o modo de ser de suaessência, isto é, no vigor mais pleno e próprio de seu ser, e não apenas pelo seuextrínseco atuar, operar, efetivar5.

A caritas é o originário do ser de todo o sendo. Do fundo abissal do amor, que é

Deus e do Deus, que é amor, emerge a vida das pessoas divinas: Pai, Filho e Espírito

Santo. É também dali que salta a criação. Como é dali, ainda, e sobretudo, que brota o

motivo da encarnação e da crucificação do Filho de Deus, destinado a ser o rei do universo.

Enfim, todo o ente, em sua entidade e inteligibilidade, torna-se, nessa compreensão,

uma concreção da mais pura e plena positividade da gratuidade e liberalidade do amor.

O todo do ente, portanto, irrompe e se ilumina como ordo caritatis. O momento

primordial desse ordo, qual ponto de salto, qual fonte imemorial, Duns Scotus o diz nessa

formulação: “Deus intellexit se sub ratione summi boni”6: Deus se inteligiu, se entendeu,

sob o modo de ser do sumo bem. Assim, no tratado De primo principio, nós podemos

acompanhar a contemplação desse sumo bem como o fim último de todo o ente:

4 “Beatitudo est bonum sufficiens, excludens, scilicet, defectum vel indigentiam; est bonum perfectum vel completum

excludens imperfectionem seu diminuitionem; est bonum ultimatum excludens tendentiam et ordinabilitatem ad

aliud completius bonum; est bonum quo habito completo bene est habenti”. Ox. IV, d. 49, q. 2, n. 25, XXI, p.49s.

Apud SCARAMUZZI, P. Diomede ofm (a cura di). Duns Scoto – Summula: scelta di scritti coordinate in dottrina.

Firenze: Libreria Editrice Fioretina, 1990 (ristampa), p.80s.

5 “Deus est formaliter dilectio et formaliter caritas, et non tantum effective“. Apud ALLEGRA, P. Gabriele ofm. Il primato

di Cristo in S. Paolo e in Duns Scoto (Dialogo con P. Teillard de Chardin, SI). In: Comissio Scotistica, De Doctrina

Ioannis Duns Scoti. Acta Congressus Scotistici Internationalis Oxonii et Edimburgi 11-17 sept. 1966 celebrati. Vol. III:

Problemata theologica. Romae, 1968, p. 229 e 249.

6 Cf. SCARAMUZZI, Diomede. Duns Scoto – Summula: scelta de scritti coordinati in dottrina. Firenze: Libreria Editrice

Fiorentina, 1990, p.174s.

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62 FERNANDES, Marcos Aurélio. Duns Scotus e a questão da univocidade do ser: preâmbulos

Tu és bom sem medida. De maneira libérrima tu comunicas os raios da tuabondade, e todos aqueles que participam dela, correm, cada um pela sua própriavia, para Ti, ser soberanamente amável, como para seu último fim7.

À luz da caritas, o todo do ente se torna uni-verso, à medida que está voltado para

esse um, como primum principium, ou seja, como o primeiro na origem, no fim, e na

eminência da perfeição do ser. E a história do uni-verso se desdobra como cumprimento

do ordo caritatis, que envia todos os entes para a plenitude dos tempos em Cristo, o verbo

encarnado e crucificado. Duns Scotus vê a origem arquetípica, quer dizer, eterna, dessa

história e seu desdobramento prévio em quatro momentos:

Digo, pois, assim: primeiro Deus ama a si mesmo; segundo, ama a si mesmo nosoutros, e este amor é amor casto; terceiro, quer-se amado por outro, alguémque possa amá-lo sumamente – falando-se, aqui, de um amor de um ser extrínsecoa Deus; quarto, Deus prevê a união com aquela natureza, que deve amá-losumamente, mesmo se ninguém caísse (em pecado)8.

Por conseguinte, o envio de todos os entes nas vicissitudes e peripécias do tempo

tem por finalidade última a encarnação. Essa é o summum opus Dei – a obra suprema de

Deus, em que a caritas se revela plenamente. Assim, para Scotus, o verbo encarnado, isto

é, o homem Jesus é o summum opus inter omnia opera Dei (a obra suprema entre todas

as obras de Deus), ele é o sumum bonum creatum (o sumo bem criado), caput electorum

(a cabeça dos eleitos), o primo volitum (o primeiro querido) da criação.

Por ser obra da inteira, cordial, generosa, liberal, super-fluente, positividade da

caritas, a encarnação não pode ser pensada como ocasional, isto é, como ocasionada

pela negatividade do pecado. Antes, a positividade da caritas assume toda a negatividade

do mal e do pecado dentro da sua dinâmica de superfluência da bondade infinita. Daí a

exclamação inusitada de Scotus:

Se a queda tivesse sido a causa da predestinação de Cristo, seguir-se-ia que amaior obra de Deus seria somente ocasional. A glória de todos intensivamentenão é tanta quanta é a glória do Cristo; e, no entanto, Deus teria negligenciadouma obra tão grande na hipótese de que Adão não tivesse pecado! Quem nãovê que isso é irracional?9.

7 “Tu bonus sine termino, bonitatis tuae radios liberalissime communicans, ad quem amabilissimum singula suo modo

concurrunt ut ad ultimum suum finem”. Cf. SCARAMUZZI, Diomede. Duns Scoto – Summula: scelta de scritti coordinati

in dottrina. Firenze: Libreria Editrice Fiorentina, 1990, p.114s.

8 “Dico igitur sic: primo Deus diligit se; secundo diligit se aliis, et iste est amor castus; tertio vult se diligi ab alio, qui

potest eum summe diligere, loquendo de amore alicuius extrinseci; et quarto praevidit uniunem illius naturae, quae

debet eum summe diligere, etsi nullus cecidisset”. Cf. Scaramuzzi, Diomede. Duns Scoto – Summula: scelta de scritti

coordinati in dottrina. Firenze: Libreria Editrice Fiorentina, 1990, p.174s.

9 Cf. SCARAMUZZI, Diomede. Duns Scoto – Summula: scelta de scritti coordinati in dottrina. Firenze: Libreria Editrice

Fiorentina, 1990, p.174s.

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Perseguindo, portanto, a pura positividade da caritas, Scotus compreende que a

redenção do humano se dá por um excesso de gratuidade e liberalidade do amor encarnado

e não por qualquer necessidade, que não venha do amor. Ora, amor solicita a

correspondência do amor, a gratuidade pede gratidão:

A conclusão é portanto essa: tudo aquilo que foi feito pelo Cristo para a nossaredenção não foi necessário, a não ser que se pressuponha a ordenação divinaque quis assim; foi, pois, somente uma necessidade de conseqüência, que Cristosofresse. Mas tudo foi essencialmente contingente, o antecedente (isto é, a pré-ordenação) e o conseqüente (isto é, o fato).

Pelo que nós temos grande obrigação para com Cristo: nós podíamos serredimidos diversamente, e ele quis livremente redimir-nos assim. Temos obrigaçãopara com ele, mais do que se fosse necessário redimir-nos assim e não de outromodo. Eu creio que quis redimir-nos assim principalmente para convencer-nosdo seu amor, e para que o homem se sentisse maiormente obrigado a Deus10.

Ora, para Scotus, toda essa positividade da caritas, revelada, em última instância, na

encarnação e na cruz é o positum da Teologia católica, isto é, do saber universal da revelação

(kata to holon). De fato, católico é esse saber não por ser confessional e ortodoxo, mas por

ser um com a unidade misteriosa e mística do real, que, em Duns Scotus se mostra como a

ordo caritatis. Católico é esse saber por enraizar-se na amplidão, profundidade e originariedade

do mistério, isto é, do sentido e da verdade do ser, que morre e renasce na sabedoria da

encarnação e da cruz como caritas. Por isso, a fides, isto é, a existência renascida e iluminada

a partir do mistério da encarnação e da cruz será o solo em que se planta todo o empenho do

humano como ser racional, isto é, como ser capaz de compreender e de amar, como ser que

é capaz de compreender o sentido do ser e de indagar pelo significado do ente:

Os pensadores medievais pareciam intuir a prepotência, com que o poder doconhecimento viria se antecipar às realizações e afirmavam a fé como o real darazão. Sem a fé que anima todos os homens, a sabedoria do mundo se tornaloucura. Mas não se trata, aqui, da fé confessional e discriminadora de umaortodoxia, embora, também, a metafísica da fé se edifique e se supere no diálogoque mantém com a unidade mística do real. A adesão do homem ao mistério darevelação vem de um vigor que transcende qualquer determinação religiosa. Aforça da revelação não exclui nenhum real, mas o compreende num Todo vazioe cheio de tudo, cujo brilho irradia, especularmente, nas realizações humanas, aprópria fé, em que se origina, se desdobra e se sustenta11.

No pensamento de Duns Scotus, a luz natural da razão é subsumida para dentro da

iluminação do saber católico da revelação, tornando-se empenho pela sapiência da

contemplação, isto é, pela elevação da mente para a Majestade de Deus, como mostra o

10Cf. SCARAMUZZI, Diomede. Duns Scoto – Summula: scelta de scritti coordinati in dottrina. Firenze: Libreria Editrice

Fiorentina, 1990, p.183s.

11LEÃO, Emmanuel Carneiro. Apresentação do livro de Denise Quintão: Seguindo o todo por toda a terra. Rio de Janeiro:

editora Daimon, 2008, p.5.

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64 FERNANDES, Marcos Aurélio. Duns Scotus e a questão da univocidade do ser: preâmbulos

começo do Tratado “Do primeiro princípio”: “Concede-me, primeiro princípio das coisas,

que eu creia, saiba e profira aquilo que agrada à tua majestade e eleva as nossas mentes à

tua contemplação”12.

É segundo o saber da revelação, isto é, seguindo o sentido de ser da caritas, que

Duns Scotus realiza a integração entre o saber dos filósofos e o saber dos católicos, de tal

maneira que o saber dos católicos destrua e, ao mesmo tempo, reconstrua o saber dos

filósofos. Desse processo de destruição, reconstrução e integração é que nasce a teologia

scotiana. Para Scotus, a nossa teologia, ou seja, a teologia que é feita in via, quer dizer, a

caminho, segundo a nossa atual condição, in statu iste, essa teologia que ele chama de

theologia nostra, theologia nobis, não é outra coisa do que a ciência da positividade da fé,

isto é, da revelação da caritas, culminante na obra da encarnação e cruz.

Necessário é esse saber da fé, que se edifica como teologia, pois somente a revelação

pode conduzir o humano ao seu fim último: a felicidade da bem-aventurança eterna na

contemplação e fruição de Deus, sumo e infinito bem. É que a aspiração do humano à

felicidade, que lhe é natural, ou seja, intrínseca, melhor, instintiva, necessária, incessante,

intensa, essa aspiração esbarra sempre na sua própria impossibilidade. A condição do

humano in via, ou seja, na concretude da facticidade de sua existência terrena, não é a

condição de quem está in statu naturae purae, ou seja, no estado da pura nascividade, mas

é a condição de quem se encontra, de certa maneira, estranhado de sua essência e decaído

de sua origem nasciva. Ora, colocado em face da possibilidade impossível da felicidade, o

humano encontra-se na indigência de seu ser, de tal maneira, que essa indigência requer e

solicita a vigência da gratuidade da fé. A graça, como impossibilidade possível, toma,

subsume, eleva e dignifica a natureza. A dinâmica da relação entre natureza in statu iste e

graça, aparece, na teologia de Scotus, como integração entre natural e sobre-natural,

onde o sobre-natural não é outra coisa que a dinâmica graciosa e gratuita da caritas, que,

em sua condescendência, abraça, isto é, envolve e põe debaixo de si o humano em sua

naturalidade corrompida, restaurando-lhe a integridade, reconstituindo-lhe o vigor. Com

outras palavras, na teologia scotiana, o homem

é visto através da unidade do seu destino, no qual a natureza e a graça secompenetram mutuamente. Por isso, nem a filosofia nem a teologia são umadialética do mundo e da fé, mas uma inquirição em que se empenha todo o ser13.

Ora, tal inquirição prática, por ser o engajamento ético do pensamento especulativo,

a partir do empenho da inteira liberdade de si em busca da realização, contemplação e

fruição do bem, é o que leva Scotus a re-fundar a metafísica, pondo-a em condições de

12“Primum rerum principium mihi ea credere, sapere, ac proferre concedat, quae ipsius placeant maiestati et ad eius

contemplationem elevent mentes nostras”. Ioannis Duns Scoti Tratactus De primo principio, capitulum primum. Cf. The

De primo principio of John Duns Scotus – a revised text and a translation by Evan Roche, ofm. New York/Louvain: The

Franciscan Institute St. Bonaventure & E. Nauwelaerts, 1949, p.2s. Cf. Também SCOTO, João Duns. Tratado do primeiro

princípio. Tradução do latim e nótula introdutória por Mário Santiago de Carvalho. Lisboa: Edições 70, 1998, p.43.

13RIBEIRO, P. Ilídio de Souza ofm. Escola Franciscana (História e Filosofia). Braga: Edições Gama, 1943, p.26.

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corresponder à positividade do ordo caritatis. Aqui está, podemos dizer assim, o nascedouro

de uma nova metafísica da fé, baseada não mais na analogia entis, mas sim na univocitas entis.

Entretanto, em que medida esta re-fundação é necessária? É que a teologia não

somente vive de sua positividade, vive também de sua cientificidade, embora seja uma

cientificidade peculiar, singular, irredutível à cientificidade normal dos outros saberes

humanos. Em sua positividade, ou seja, enquanto ciência da fé, isto é, ciência que parte da

e se volta para a fé, a teologia não precisa da luz natural da razão. Mas, em sua cientificidade,

ou seja, enquanto ciência da fé, isto é, enquanto saber humano, a teologia precisa da luz

natural da razão. É que, mesmo os conceitos teológicos permanecem enraizados no chão

da luz natural da razão. Por mais que eles tenham um outro teor e sejam ressonâncias da

palavra divina, eles falam sempre a partir da linguagem e da compreensão humana dessa

mesma palavra. Contudo, podemos dizer que isso não é assim um mal necessário. Talvez

isso corresponda mesmo à dinâmica da encarnação, pela qual a palavra divina se encarna

na finitude da linguagem e da compreensão humana.

Nesse sentido, para usar um modo de dizer de Agostinho, mesmo o nomen majestatis

de Deus, revelado a Moisés (Eu sou aquele que sou), é, no fundo, nomen misericordiae,

tanto quanto aquele outro, no qual Deus se revela como o Deus dos pais, ou seja, como o

Deus de Abraão, Isaac e Jacó14. Com outras palavras, mesmo a figura do divino, composta

na teo-logia metafísica, ou seja, na dinâmica do saber haurido da luz natural da razão,

mesmo essa figura ganha vida e se transforma em imagem especular em que o crente

pode exercitar a contemplação da fé, elevando a sua mente para o Deus vivo e verdadeiro.

Na verdade, em Scotus, a figura metafísica do divino é uma espécie de mosaico dos

transcendentais, um mosaico que se transforma em ícone, à medida que, na proximidade

do que nos está ao alcance, guarda a distância da sacralidade do mistério. Entretanto,

como acenamos na alusão a Agostinho, a distância do sagrado não é distância de um

inacessível que nos ultrapassa, mas é a distância de uma proximidade por demais próxima.

Em Scotus, a figura metafísica do divino, vivente no elemento da sacralidade do mistério, é

apenas imagem especular que guarda uma remissão ao Deus da revelação, que é caritas.

Ao investigar os atributos divinos, Scotus reflete e contempla a figura divina configurada à

luz do ser e dos transcendentais e, no seu brilho, ele vislumbra um certo quê do mistério da

positividade e da cordialidade do Deus da revelação, que é caritas. É por isso que, na sua

14 Refiro-me, aqui, a uma passagem das Enarrationes in Psalmos, onde Agostinho diz: “Se Moisés compreendeu bem,

antes, justamente porque compreendeu bem, quando lhe foi dito: Eu sou aquele que sou, aquele que é mandou-me

a vós, acreditou ser isto muito para os homens, viu que isto é muito distante dos homens [...] Quase desesperando

Moisés, pela distância da excelência da essência longamente dessemelhante, Deus põe de pé o desesperançoso,

porque o viu temente, como se dissesse: ‘Por que te disse: Eu sou aquele que sou, e: aquele que é me mandou,

intuíste o que é o ser e desesperaste de compreender. Põe de pé a esperança: Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de

Isaac e o Deus de Jacó. Eu sou o que sou, sou o ser mesmo, mas de tal modo que não quero subtrair-me aos homens’.

Se é assim que nós podemos buscar a Deus e investigar dele o que é, é porque ele não está distante de cada um de

nós: nele vivemos, nos movemos e somos. Louvemos, pois, a sua essência inefável e amemos a sua misericórdia”.

AGOSTINHO, Enarrationes in Psalmos. Roma: Nuova Biblioteca Agostiniana, Città Nuova, 1982, p.7.

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66 FERNANDES, Marcos Aurélio. Duns Scotus e a questão da univocidade do ser: preâmbulos

linguagem, a especulação metafísica se transforma em prece, isto é, em adoração e louvor.

Louvor porque, no nomen majestatis, em que Deus se anuncia como o ser em sentido

pleno e próprio, atua a condescendência de sua revelação, isto é, no nomen majestatis se

doa e se retrai o nomen misericordiae.

Deus Nosso Senhor, ao teu servo Moisés, quando ele se informava do teu nomejunto de ti, veríssimo doutor, para o apresentar aos filhos de Israel, sabendo o quea inteligência dos mortais pode conceber acerca de ti, respondeste, dando aconhecer o teu nome bendito: ‘Eu sou aquele que sou’ (Ex. 3,14). Tu és o serverdadeiro, tu és o ser todo. Se tal me fosse possível, era isto em que acredito queeu queria saber. Ajuda-me, Senhor, a investigar o quanto pode chegar a conhecerdo ser verdadeiro, que tu és, a nossa razão natural, começando a partir do ser, quea ti mesmo atribuíste15.

Aqui fica claro que a pergunta pela condição de possibilidade do conhecimento de

Deus, à luz natural da razão, se dá no sentido de uma contemplação do Nome de Deus,

como pura positividade do ser, isto é, como superabundância e super-fluência do ser. A teo-

logia da metafísica se transforma, assim, na contemplação dos nomes divinos, na esteira da

tradição do Dionísio Areopagita. Daí ressoar, sempre de novo, o “Tu és”, da mesma maneira

como São Francisco faz ressoar, sempre de novo, o “Tu és”, nos seus “Louvores do Deus

Altíssimo”16. Tanto ali, como no texto de Scotus do De primo principio, ressoa o “Tu és”

como eclosão da gratidão e do louvor pela superabundância e super-fluência do ser que se

revelou em Cristo como caritas. Em Scotus, a teo-logia metafísica é subsumida de tal maneira

que, em cada “Tu és”, ressoa um nome do Altíssimo, unindo à condescendência cordial da

revelação a finitude agraciada e agradecida da razão. Os transcendentais são subsumidos

de modo a deixar ser a ressonância do “Tu és” em sua plena positividade de ser, isto é, na

superabundância e super-fluência do infinito amor. Em todos eles ressoam variações de

um mesmo tema, a saber, o tema do ser. Daí que a busca e investigação, sim, a inquirição

do que se pode conhecer de Deus à luz natural da razão é uma especulação e meditação

que se realiza ab ente.

Com outras palavras, a teo-logia, no sentido de uma contemplação dos nomes

divinos, pressupõe a onto-logia, que é uma investigação metafísica, isto é, uma inquirição

acerca do ente e dos transcendentais. É a partir da onto-logia que a teo-logia recebe a sua

condição de possibilidade e toda a sua envergadura. Temos, assim, um círculo: a teo-

logia funda a onto-logia, como o fim funda o começo e a onto-logia funda a teo-logia,

15“Domine Deus noster, Moysi servo tuo, de tuo nomine filiis Israel proponendo, a te Doctore veríssimo sciscitanti,

sciens quid posset de te concipere intellectus mortalium, nomem tuum benedictum reserans, respondisti: Ego sum,

qui sum. Tu es verum esse, tu es totum esse. Hoc, si mihi esset possibile, scire vellem. Adiuva me, Domine, inquirentem

ad quantam cognitionem de vero esse, quod tu es, possit pertingere nostra ratio naturalis ab ente, quo de te predicasti,

inchoando”. Ioannis Duns Scoti Tratactus De primo principio, capitulum primum. Cf. The De primo principio of John

Duns Scotus. New York/Louvain: The Franciscan Institute St. Bonaventure & E. Nauwelaerts, 1949, p.2s. Cf. Também

SCOTO, João Duns. Tratado do primeiro princípio. Lisboa: Edições 70, 1998, p.43.

16In: FASSINI, Dorvalino Francisco (coord. geral). Fontes Franciscanas. Santo André-SP: ed. Mensageiro de Santo Antônio,

2004, p.125S.

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como o começo deixa ser a marcha rumo ao fim. Assim, a metafísica, onto-logia em seu

começo e teo-logia em seu fim, como expressão da transcendência, é subsumida pela

dinâmica agraciada e agradecida da razão natural que responde ao toque do mistério

do ser, que se doa e se retrai na vigência da caritas.

A bem da verdade, o conhecimento humano de Deus, in via, in statu iste, é bem

apoucado. Tanto na ordem da graça, isto é, no horizonte da fé e da revelação, quanto na

ordem da natureza, ou seja, no horizonte da luz natural da razão, vale dizer, no horizonte da

metafísica, o que o humano pode saber de Deus é módico. Somente no lumen gloriae, ou

seja, no esplendor da revelação definitiva e eterna de Deus é que o humano pode fruir, na

visio beatifica, de um conhecimento de Deus sub ratione deitatis, quer dizer, de um

conhecimento de Deus enquanto Deus, em sua deidade, ou ainda, com outras palavras, de

Deus ut haec essentia, enquanto esta essência em sua singularidade. Mas esse conhecimento

de Deus, essa theologia beati, hoje, enquanto estamos em caminho, nos é inacessível. Enquanto

estamos a caminho da ordem da glória, somos presenteados com a ordem da graça e com

o conhecimento de Deus que nos é possibilitado em Jesus Cristo, ou seja, através da revelação

incoativa da caritas e da doação da fé. Contudo, caso se permita, aqui, uma livre alusão a

Mestre Eckhart, podemos recordar que a luz da glória e a luz da graça são a mesma luz,

apenas se diferenciam pelo fato de que esta é incoativa e aquela é perfeita. E vale recordar

que tanto aqui quanto lá o que permanece é a caridade, como diz Paulo, ao término do seu

famoso hino (1Cor 13). Entretanto, o saber da fé, a theologia nostra, que se dá na contemplação

amorosa do Deus de Jesus Cristo, que é caritas, contemplação essa que se cumpre “em

enigma e como por espelho” (Paulo), subsume o conhecimento de Deus que é possível à luz

natural da razão. Ora, esse conhecimento, que é um conhecimento do divino (theion) mais

do que um conhecimento de Deus mesmo (theos), que é uma “teiologia”, mais do que uma

“teologia”, é também e ainda mais um conhecimento apoucado. Não obstante, ele, que é o

“ápice da teoria” (theoria - como ‘visão de Deus’), é, como dizia Aristóteles, recordado por

Scotus17, fonte de indizível alegria e realização da felicidade natural do humano:

No que concerne às substâncias eternas, os frágeis conhecimentos que nós temosdelas nos trazem, contudo, em razão da excelência dessa contemplação, maisalegria que todas as coisas que nos circundam, da mesma maneira como frágilolhar fugidio que se volta para pessoas amadas nos doa mais alegria e alegriamaior do que o conhecimento exato de muitas outras coisas18.

Até parece que podemos ouvir, nessas palavras, o dito poético de Hölderlin: “Pouco

saber e muita jovialidade, é dada aos mortais”.

Pois bem, em Duns Scotus, todo o empenho do pensamento na figura da metafísica

é o de medir-se com o divino, nos limites apoucados e pobres da luz natural de nossa

17Ordinartio I, d. 3, q. 1e 2, n. 55.

18ARISTÓTELES, De partibus animalium, I, 5, 644 b 31-35. Apud SCOT, Duns, Sur la connaissance de Dieu et l’univocité

de l’etant (Ordinatio I – Distinction 3 – Première Partie; Ordinatio I – Distinctio 8 – Première Partie; Colatio 24). Paris:

Presses Universitaires de France, Collection Epiméthée, 1988, p.107-108, 338.

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68 FERNANDES, Marcos Aurélio. Duns Scotus e a questão da univocidade do ser: preâmbulos

razão. Entretanto, para um franciscano, no espírito da Senhora Pobreza, o pouco e módico

já é o bastante para se alegrar e para acolher a finitude como finitude agraciada e agradecida.

Sem ressentimento, o finito não é lamentado como carência do infinito e a indigência que

nos toca, a nós mortais, torna-se fecunda em alegria, à medida que é recebida no vigor da

humildade. Na dinâmica da humildade da encarnação, mesmo a culpa torna-se feliz, pois

na cruz deixa aparecer o Redentor no seu excesso de amor... Isso quer dizer que, a nosso

ver, o tom de fundo do pensamento de Scotus, de sua teologia e até de sua metafísica, vale

dizer, de sua teiologia, é o tom da jovialidade da encarnação!...

A teo-logia, isto é, a teio-logia, enquanto momento da metafísica é, em Duns

Scotus, inquirição acerca dos nomes divinos. Na verdade, ela gravita em torno de Deus e

contempla não a Deus mesmo, mas o que está “abaixo de Deus”, como recorda Scotus,

retomando uma fala de Gregório Magno, em suas homilias sobre Ezequiel: “Por mais

longe que nosso espírito chegue na contemplação de Deus, ele não se aterá àquilo que

Ele mesmo é, mas àquilo que está abaixo dele”19.

“Aquelas coisas que estão abaixo de Deus”, como irradiações de sua essência, são

os atributos, ou seja, os predicados que a luz natural da razão pode atribuir a Deus, como

a uma substância (substantia, ousia) ou sujeito (subjectum, hypokeimenon). Os predicados

não são acidentes dessa substância, pois o “ser por si” (ens per se) da divindade se dá no

modo do “ser a partir de si” (ens a se), cujo modo de ser implica em ser pura e simplesmente

o seu próprio ser, sem mais. Os atributos são como que denominações a que o nome

divino, enquanto verum esse, totum esse (ser em sentido verdadeiro e absoluto), se presta,

na positividade de sua condescendência. Ademais, toda predicação que se refere a Deus

deve pressupor a infinitude desse ens per se, dessa substância. Pois, como recorda Scotus,

retomando João Damasceno, Deus é “um certo oceano de substância infinita”20.

Ora, aqui, a palavra “oceano” deixa e faz o nome “substância” evocar uma presença

abissal, cuja vastidão, profundidade e originariedade, repousa em si mesma. No nome

“substância” nós vislumbramos, pois, a quietude e o silêncio abissal dessa presença e

vigência de ser, cuja dinâmica vivente é a superabundância e a superfluência fontal da

caritas. Tudo, pois, que predicamos dessa essência será infinito. Em Deus todo atributo se

resolve no modo de ser de sua infinitude. Todo atributo será como que uma reluzência,

melhor, uma cintilação de sua essência infinita, misteriosa, abissal.

Pela luz natural da razão, no entanto, nos é dado um conhecimento finito dessa

infinitude. Por esse conhecimento, os nomes do inominável se finitizam na eminência e super-

eminência dos atributos. Numa primeira impressão, eles são negativos, pois negam algo da

19Gregório Magno, comentando Isaías 6,1, em suas homilias sobre Ezequiel. Apud Duns Scot, Sur la connaissance de

Dieu et l’univocité de l’etant (Ordinatio I – Distinction 3 – Première Partie; Ordinatio I – Distinctio 8 – Première Partie;

Colatio 24). Paris: Presses Universitaires de France, Collection Epiméthée, 1988, p.84.

20 DAMASCENO, João. De fide ortodoxa I, 9 (31, 10-13). Apud Ordinartio I, d. 8, n. 198. Cf. SCOT, Duns. Sur la connaissance

de Dieu et l’univocité de l’etant (Ordinatio I – Distinction 3 – Première Partie; Ordinatio I – Distinctio 8 – Première Partie;

Colatio 24). Paris: Presses Universitaires de France, Collection Epiméthée, 1988, p.198.

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criatura. No entanto, se olharmos bem, eles negam a negatividade da criatura. Com outras

palavras, eles são positivos, de tal maneira que neles se expressa a positividade do divino,

como negação da negação. Seja como for, no entanto, os conceitos que lhes servem de

“matéria” para denominar o divino são hauridos, sempre, daqueles conceitos que, em si

mesmos, não estão submetidos às categorias de gênero e espécie. São, por assim dizer,

conceitos transcendentais.

Deus est extra omne genus, diziam os medievais. Mestre Eckhart diria que Deus está

“além de todos os modos”, a saber, de todo o modo de conceituar e dizer o ser da criatura,

em sua finitude. Ora, Duns Scotus não ignora e não nega, antes afirma, através dos

transcendentais disjuntivos, a radical diferença que existe entre o infinito e o finito, entre o

necessário e o contingente, entre o absoluto e o relativo, enfim, entre o criador e a criatura.

Também não nega a relação de analogia, seja de atribuição, seja de proporção, que se dá

a partir dessa relação entre “ens a se” e “ens ab alio”. Contudo, ele reconduz essa relação

de diferença primordial ao interno do ser à unidade do ser mesmo. Quer dizer, ele reconduz

a dia-ferência do modo de ser do “ens a se” e do “ens ab alio” à identidade do ser mesmo.

Temos, assim, uma reductio analogiae ad univocationem!

Ora, para se dizer a positividade do “ens” que é inteira e absolutamente “a se”,

enquanto “ens infinitum”, “ens necessarium”, “ens Creator”; depois, para dizer a positividade

eminente e super-eminente de seu modo de ser, enquanto “summum bonum”, “summum

verum”, “summum unum”; e ainda, para dizer a positividade de sua onipotência e

onisciência, bem como de sua inteligência e vontade excelentes, é preciso que recorramos

à positividade primordial do conceito de “ens”. Com efeito, toda predicação que realizamos

de Deus é ab ente, não obstante o conceito “ens” seja não um conceito de Deus (Dei), mas

um conceito acerca de Deus (De Deo). De fato, quando denominamos Deus de “ens

infinitum”, por exemplo, não estamos dizendo a essência mesma de Deus, mas algo de

próprio dessa essência, assim como quando nós denominamos o homem de um “vivente

que ri” não estamos dando a definição da qüididade do homem, mas estamos nos referindo

a algo que é próprio dele, a partir de sua essência mesma. Ademais, essa denominação

“ens infinitum” que é, segundo Scotus, a mais apropriada para se predicar de Deus, embora

seja uma denominação simples, não é absolutamente simples, pois ela conjuga o conceito

de “ens” e o conceito de “infinitum”. Isso mostra, mais uma vez, o limite de nossa

denominação e predicação do nome divino. Na finitude de nossa condição peregrina, só

nos é dado um conhecimento complexo daquele ente que, em si, é absolutamente simples!

Em todo caso, quer para marcarmos a diferença e a unidade apenas analógica entre o ser

de Deus e o ser das criaturas, quer para denominarmos o nome divino através de seus

atributos no modo da eminência e super-eminência, sempre precisamos recorrer à

positividade do conceito primordial do “ens”.

Entretanto, em que consiste essa positividade primordial do “ens”? Antes de tudo,

“ens” é aquele um conceito ao qual se reconduz toda a multiplicidade dos conceitos. De fato,

os conceitos das coisas se reconduzem aos conceitos das categorias e esses conceitos

categoriais, por sua vez, nos remetem, em última instância, àqueles conceitos que são

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70 FERNANDES, Marcos Aurélio. Duns Scotus e a questão da univocidade do ser: preâmbulos

chamados de transcendentais, por estarem fora de toda a classificação categorial, ou seja,

estão extra omne genus e perpassam todo o ente enquanto ente, isto é, todo o ente enquanto

simplesmente é, ou ainda, todo o ente no seu ser. Eles são formalitates intuídas ex parte rei,

através do processo cognoscitivo próprio da razão humana, ou seja, através da abstração.

Ora, o conceito “ens”, justamente por ser o mais abstrato é o mais prenhe de

concretude, justamente por ser o mais vazio é o mais prenhe de plenitude, justamente por

ser o mais indeterminado é o mais passível de determinação.

Sua universalidade, que se dá a modo de um “todo vazio”, está apta não somente

a deixar ser a compreensão de todo e qualquer ente na sua singularidade, como este

ente aqui em sua haeceitas, como do ente finito em seu con-junto e em sua con-juntura,

a saber, o mundo uni-verso; também está apta a deixar ser a totalidade do ente infinito,

que é vere esse e totum esse, ou seja, o divino.

A positividade do conceito de “ens” não somente se dá por graça de sua universalidade

transcendental, mas também mercê de sua unidade absolutamente simples. Por força dessa

simplicidade absoluta (simpliciter simplex) o conceito de “ens” é indefinível e irredutível. Aqui

o intelecto esbarra numa espécie de paredão incontornável e intransponível. Nessa resistência

e recusa, o que há de mais óbvio no mundo, o simplesmente ser, se torna o mais enigmático.

Mas, talvez seja justamente por graça dessa densidade impenetrável, que a um primeiro

olhar parece ser um vazio e uma indeterminação radicais, que o conceito de “ens” seja

aquele do qual não podemos fugir em todos os nossos empenhos de conceituar e dizer tudo

quanto é e tudo quanto há.

Enfim, a positividade do conceito de “ens” também se dá por graça de sua

originariedade e primordialidade. Em todo e qualquer conhecimento, o intelecto já terá sempre

conhecido o “ens”. Ele é o pre-cognitum em todo o cognoscere. O “ens” é o primum objectum

intellectus. Eis porque nós, em tudo quanto apreendemos e compreendemos, já sempre

fomos referidos ao “ens” e já sempre o pressupomos, partindo dele em todas as nossas

tentativas de denominação, conceituação, definição, dedução, no “âmbito” de nossa

inteligência especulativa, como também em todas as nossas tentativas de ação e operação,

no “âmbito” de nossa inteligência prática.

Enfim, a universalidade transcendental, a unidade absolutamente simples e

originariedade do “ens” fazem desse conceito o mais fecundo e capaz de dar à nossa razão

finita a possibilidade de transcender o ente finito e seu conhecimento habitual, passando

para a contemplação do ente infinito, vislumbrando um certo quê da super-abundância e

super-fluência de seu ser, que se doa e se retrai como caritas. Passamos, assim, do todo vazio

para o todo pleno!

No movimento dessa passagem, que é, na verdade, uma elevação da mente para

Deus, jamais deixamos o elemento do “ens”, ou seja, a proximidade de nossa referência ao

ser. É na proximidade do ser que nós experimentamos a proximidade e a distância de Deus.

É no vazio do ser que a plenitude da caritas se divulga. É no silêncio do ser que ressoa o canto

da caritas, como hino da jovialidade e da gratuidade do amor do Deus de Jesus Cristo. É na

unidade do ser que se desdobra o uni-verso como ordo caritatis.

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De fato, no vazio de seu retraimento, a univocitas deixa ser a analogia entis! E

assim se desdobra o ordo do uni-verso, cantada por Dante no canto primeiro do paraíso,

de sua Divina comédia:

... Le cose tutte quanteHann’ordine tra loro, e questo è forma,Che l’universo a Dio fa simigliante.Qui veggion l’alte creature l’ormaDell’eterno valore, il quale è fine,Al quale è fatta la toccata norma.Nell’ordine, ch’io dico, sono acclineTutte nature, per diverse sorti,Più al principio loro, e men vicine;Onde si muovono a diverse portiPer lo gran mar dell’essere, e ciascunaCon istinto a lei dato, che la porti.

... As coisas todas quantasTêm uma ordem entre si, e isso é forma,Que faz o universo a Deus semelhante.Aqui as altas criaturas vêem o vestígioDa eterna valência, que é fim,Ao qual se conforma a supradita normaNa ordem, que eu digo, tendemTodas as naturezas, por diversas sortes,Ao seu princípio, com mais ou menos vigor.Daí, se movem a diversos portosAtravés do grande mar do ser, e a cada umaÉ dado instinto para que lá aporte21.

Movendo-nos, pois, através do grande mar do ser, qual elemento de nosso pensar,

nós nos elevamos das criaturas ao criador, do finito ao infinito, até contemplarmos a luz

eterna, que é intelecto e amor, entrando, assim, no medium da absoluta solidão e

comunhão do ser divino, que é uno e trino:

O luce eterna, che sola in te sediSola t’intendi, e da te intellettaEd intendente te ami ed arridi!

Ó luz eterna, que, só, repousas em ti mesmaSó, te entendes, e por ti mesma entendidaE entendente, te amas e sorris!22

No sorriso de Deus se irradia a jovialidade da super-abundância e da super-fluência do

seu ser, que é caritas: amor, benevolência e ternura. O pensamento em Scotus, assim como a

poesia em Dante, se faz ressonância e correspondência desse sentido do ser, que se dá e se

21ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Paraíso, canto I, n. 103-114. Elaborei, aqui, uma tradução própria. Cf. ALIGHIERI,

Dante. A divina comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2005, p.600-601.

22ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Paraíso, canto XXXIII, n. 124-126. Elaborei, aqui, uma tradução própria. Cf. ALIGHIERI,

Dante. A divina comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark, 2005, p.886-887.

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72 FERNANDES, Marcos Aurélio. Duns Scotus e a questão da univocidade do ser: preâmbulos

retrai como mysterium caritatis, que move céus e terra, e, entre céus e terra, as criaturas

todas, e de um modo todo próprio, porém, o humano, que, pela encarnação, se mostrou

o destinatário do seu infinito bem-querer.

O pensamento de Scotus, como a poesia de Dante, não é outra coisa que a viagem

no grande oceano do ser, até aportar no amor, l’amor, che muove il sole e le stelle!23.

Assim, passando em revista esses preâmbulos, podemos concluir com o estudioso do

pensamento franciscano, frei Agostinho Gemelli, quando, ao ser referir ao pensamento de

Scotus, acaba dizendo:

Nunca em forma mais seca se exprimiu amor mais profundo, mais inteligente e maisforte. Nenhuma doutrina jamais respondeu como esta às inclinações mais elementarese fundamentais dos homens e – dir-se-ia, de todos os seres vivos: o anseio pelafelicidade, pela especial felicidade que é o bem – bonum24.

Assim, na sobriedade do pensamento e no rigor da especulação filosófico-teológica,

se esconde a alma franciscana de Duns Scotus. Uma alma que, em tudo e junto a tudo

que pensa, está sempre à espreita do rigor da caridade. Na linguagem prosaica de sua

escolástica, porém, vibra tênue a suavidade e delicadeza do amor. Sua prosa é, nesse

sentido, poética, mesmo que sua poesia nada tenha a ver com o deleite estético e literário.

A secura de sua alma é a solidez de uma vida que cresceu no rigor da pobreza e no vigor

da humildade. Nesse sentido, podemos atribuir a Scotus o elogio da alma seca, feito por

Heráclito de Éfeso, o obscuro: “Alma seca, a mais sábia e a melhor” (frag. n. 118).

23ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Paraíso, canto XXXIII, n. 124-126. Elaborei, aqui, uma tradução própria. Cf.

ALIGHIERI, Dante. A divina comédia. Introdução, tradução e notas de Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark,

2005, p.886-887.

24GEMELLI, Agostinho. O franciscanismo. Tradução de Mesquita Pimentel. Petrópolis: Vozes, 1944, p.84.

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Duns Scotus e o fundamentoDuns Scotus e o fundamentoDuns Scotus e o fundamentoDuns Scotus e o fundamentoDuns Scotus e o fundamentoracional do discurso teológicoracional do discurso teológicoracional do discurso teológicoracional do discurso teológicoracional do discurso teológico

Duns Scotus and rational basisDuns Scotus and rational basisDuns Scotus and rational basisDuns Scotus and rational basisDuns Scotus and rational basisof theological discourseof theological discourseof theological discourseof theological discourseof theological discourse

Frei André Luiz da Rocha Henriques, OFM*

ResumoResumoResumoResumoResumo

Do discurso aparentemente inconciliável entre filósofos e teólogosde seu tempo, Scotus extrai uma nova Metafísica, mais geral. Eleparte, para tanto, da “distinção formal”, capaz de identificar, nasessências indivisíveis, determinadas “formalidades”, que, emborairredutíveis entre si, não constituem “coisas” separáveis na mesmaessência. Estas formalidades estão na base de nossos conceitos e,possibilitam a compreensão do próprio conceito de “ser” como sendounívoco a toda a realidade, mesmo a divina; pois, sendo o maisindeterminado, o conceito de ens não possui em si mesmo nenhumareferência a ser imperfeito ou finito; sendo, assim, fundamento detoda analogia entre Deus e as criaturas. Ao ser unívoco unem-se ostranscendentais chamados “disjuntivos”, que possibilitam umadeterminação positiva de Deus enquanto “ser infinito”: o conceitonatural mais perfeito e mais simples acerca da qüididade divina elimite máximo da metafísica.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave:Metafísica, formalidades, univocidade, analogia,transcendentais, Deus, infinito.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

From the apparently inrecocilible discourse between philosopherstheologians of his time, Scotus extracts a new Metaphysics, moregeneral. He starts, to that end, from the “formal distinction”, capableof identifying, in the indivisible core, determined “formalities”, thatalthough not reduceble among them, do not constitute “things”separable in the same core. These formalities are at the base of ourconcepts and allow for the understanding of the concept of the“being” as univocal to all reality, even the divine one; because, beingthe most undetermined the ens concept does not posess in itself anyreferences to imperfect of finite beings; in that way, the foundationof every analogy between God and the living creatures. Being univocalit unites the transcedentals called “disjunctive”, that make possible apositive determination of God while an “infinite being”: the moreperfect and simpler natural concept about the divine qüididade andmaximum limit of metaphysics.

KKKKKeywordseywordseywordseywordseywords: Metaphysics, formalities, univocity, analogy,transcendentals, God, infinity.

* O presente artigo foi elaborado

originalmente a partir do trabalho

de conclusão de curso apresentado

ao Instituto de Filosofia São

Boaventura da FAE – Centro

Universitário Franciscano do Paraná.

O autor é licenciado em filosofia

pela FAE – Centro Universitário

Franciscano do Paraná, atualmente

cursa teologia no ITF – Instituto

Teológico Franciscano. E-mail:

[email protected]

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76 HENRIQUES, André Luiz da Rocha. Duns Scotus e o fundamento racional do...

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

No presente artigo, analisaremos a questão do problema semântico do discurso

teológico, ou seja, a possibilidade de um discurso verdadeiramente humano acerca das

realidades espirituais, que possua, como todo discurso humano, um fundamento sólido na

experiência. Tal análise será conduzida a partir de um resgate histórico das soluções apontadas

pela Metafísica do Bem-aventurado João Duns Scotus1. Este exímio doutor franciscano pretende

apresentar uma solução eficaz aos conflitos entre filósofos e teólogos do século XII a partir

de uma superação da metafísica aristotélica por uma nova metafísica generalíssima, que

possibilite a compreensão e conceitualização positiva das realidades espirituais.

11111 Atualidade do pensamento de Duns ScotusAtualidade do pensamento de Duns ScotusAtualidade do pensamento de Duns ScotusAtualidade do pensamento de Duns ScotusAtualidade do pensamento de Duns Scotus

No longo percurso da história da filosofia ocidental, destaca-se entre os embates

mais polêmicos e conflituosos a já tão antiga e sempre nova questão acerca das relações

entre razão e fé, ciência e revelação, filosofia e teologia. Diante do horizonte aberto

pelas atuais investigações acerca da linguagem, esse conflito se torna ainda mais explícito

e aparentemente insolúvel, a ponto de inúmeros filósofos simplesmente o abandonarem,

julgando-o apenas um “pseudo-problema”.

Para falar de uma coisa é necessário conhecê-la e, para conhecê-la é necessário terdela uma certa experiência. Isto é óbvio e vale também em relação a Deus: odiscurso sobre ele supõe um certo conhecimento d’Ele e, portanto, uma certaexperiência da sua realidade. Diversamente, o discurso teológico seria privado desentido (SCAPIN, 1969, p.493, tradução nossa2).

De fato, perante nós se eleva a barreira aparentemente intransponível dos limites

mesmos de nossa linguagem, que, formando necessariamente seus próprios conceitos a

partir da experiência sensível, não os pode transpor legitimamente para realidades outras,

das quais não possua experiência alguma. Tal é precisamente o impedimento que se

antepõe, na contemporaneidade, a toda pretensão de um conhecimento metafísico, e

com ele de todo o discurso teológico.

1 O Bem-aventurado João Duns Scotus nasceu entre 1265-1266, provavelmente na aldeia de Duns, na Escócia (o que

indica o nome “Scotus” – escocês). Abraçou a vida religiosa sob a Ordem dos Frades Menores por influência de seu tio

Frei Elias Duns, vigário geral da Escócia e guardião do convento de Dumfries, e foi ordenado sacerdote em Northampton

a 17 de março de 1291 por Dom Olívio Sutton, bispo de Lincoln. Lecionou em Oxford, Cambridge, Paris e Colônia, onde

faleceu a 8 de novembro de 1308. É considerado um dos príncipes da Escolástica e, ao lado de São Boaventura, o

principal representante da Escola Franciscana. Foi beatificado por João Paulo II em 20 de março de 1993.

2 Do original: “Per parlare d’una cosa, bisogna conoscerla e, per conoscerla, bisogna averne una certa esperienza. Ciò

è ovvio e vale anche nei riguardi di Dio: il discorso su di Lui suppone una certa conoscenza di Lui e, quindi, una certa

esperienza della sua realtà. Diversamente, il discorso teologico sarebbe privo di senso“.

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Poder-se-ia, no entanto, objetar que a teologia não se fundamenta na experiência

sensível para a formulação de seu conhecimento, mas tão-somente na revelação divina;

sendo, por isso mesmo, independente desses mesmos limites intrínsecos de nossa linguagem.

Contudo, ao analisarmos mais de perto esses mesmos conceitos teológicos e a própria

linguagem utilizada pelas Sagradas Escrituras, não nos resta outra opção senão aceitar que

também esses conceitos estão marcados pela nossa experiência sensível e que o próprio Deus

se revela a nós com uma linguagem verdadeiramente humana. Desse modo, todo o nosso

discurso teológico aparece diante desses mesmos limites de nossa linguagem (“incapaz” de

transcender a realidade empírica) como uma contradição ou, ao menos, um discurso paradoxal.

Duns Scotus, pela profundidade de sua indagação e sutileza de suas distinções, foi

capaz de entrever, já há sete séculos, algumas dessas implicações acarretadas pelos limites

de nossa atividade cognoscente. Embora ainda bastante desconhecido, especialmente no

Brasil, o Doutor Sutil3 é detentor de um sistema filosófico rigorosamente lógico e

profundamente cristão, de caráter essencialmente metafísico e gnoseológico, podendo

nos oferecer uma contribuição valiosa no apontamento de uma possível saída e solução à

predita questão.

Preocupado com o realismo de nossos conceitos, ou seja, de que eles possuam uma

sólida fundamentação na realidade objetiva, o Doutor Sutil realizará uma verdadeira

refundação da Metafísica, alargando o horizonte de seu objeto próprio: o ser enquanto ser,

cujo conceito e definição não implicam por si sós qualquer tipo de imperfeição e contingência,

próprios unicamente à realidade criatural. Tal conceito simpliciter simplex de ens é, portanto,

per se indiferente à realidade finita ou infinita, contingente ou necessária, podendo, assim,

ser predicado de modo unívoco tanto às criaturas quanto à própria essência divina.

22222 Conflito entre filósofos e teólogos no século XIIIConflito entre filósofos e teólogos no século XIIIConflito entre filósofos e teólogos no século XIIIConflito entre filósofos e teólogos no século XIIIConflito entre filósofos e teólogos no século XIII

Scotus surge no fim do século XIII, período marcado por uma profunda crise do

pensamento cristão medieval: a harmonização entre filosofia e teologia, razão e fé,

pretendida pela genial síntese tomista, já quase se rompia ante o desenvolvimento de uma

filosofia independente e de cunho aristotélico-averroístico, que tinha a presunção de

abranger toda a realidade inteligível, negando a necessidade de uma outra ciência que se

fundasse no conhecimento sobrenatural obtido pela revelação. No outro extremo

encontrava-se também a corrente agostiniano-tradicionalista, que pretendia, por sua vez,

submeter a si ou mesmo suplantar pela teologia todo conhecimento filosófico, opondo-se

até mesmo ao aristotelismo moderado de estilo tomista.

3 Era uso comum na Idade Média o emprego de um título que qualificasse o pensamento dos doutores de maior

referência; assim, Santo Tomás é conhecido como Doctor Angelicus ou Communis, São Boaventura como Doctor

Seraphicus etc. O título Doctor Subtilis é o mais comumente aplicado ao nosso filósofo, devido ao caráter

verdadeiramente sutil de seu pensamento, repleto de distinções e demonstrações silogísticas.

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78 HENRIQUES, André Luiz da Rocha. Duns Scotus e o fundamento racional do...

A situação é ainda mais agravada pela condenação de 219 teses do Aquinate de cunho

aristotélico-averroístico, a 07 de março de 1277, pelo bispo Estevão de Tempier. Segundo

Chauvet (1968, p. 80), esta mesma condenação acaba também atingindo a própria síntese

tomista, levando o capítulo geral da Ordem dos Frades Menores (da qual Scotus faz parte),

celebrado em Estrasburgo, no ano de 1282, a restringir a leitura das obras de Tomás de Aquino

aos leitores “notabiliter intelligentes”, e somente numa leitura conjunta com o “Correctorium

fratris Thomae”, escrito por Frei Guilherme de Mare, no qual se criticam 116 proposições tomistas.

Como Duns Scotus teria interpretado os acontecimentos de seu tempo? À semelhança

de Santo Tomás, ele ensinará que entre filosofia e teologia há uma distinção plena, de tal

forma que cada uma possuiria seu próprio método e objeto, não podendo submeter-se

uma à outra, nem serem confundidas ou simplesmente unidas; porém, divergirá deste

quanto à sua perspectiva por demais otimista, que pretendia harmonizar os princípios

aristotélicos com os dados obtidos pela fé cristã.

De fato, para Santo Tomás, conforme explica Bettoni (1968, p.104), o filósofo e o

teólogo consideram e estudam a realidade sob perspectivas diferentes, o que não implicaria

necessariamente que cada um chegaria a conclusões opostas entre si. Por sua vez, Scotus

pensa que os filósofos, desconhecendo as realidades reveladas sobrenaturalmente,

chegariam apenas a conclusões parciais e imperfeitas do ponto de vista da teologia, que

não poderia, por este mesmo motivo, aceitá-las. E do mesmo modo, o discurso do teólogo

seria incompreensível para o filósofo, que, não tendo experiência das realidades por aquele

expressas, julgaria inaceitáveis as conclusões por aquele alcançadas.

De um lado, [Scotus] vê o mundo tal como o fabricaram os filósofos gregos emsuas investigações do perí físeos, que terminam necessariamente, por necessidaderacional, no motor immobilis, como coroamento e limite de toda a sua filosofia;e do outro, contempla o mesmo mundo visto pelos teólogos, não fabricado poreles mas crido, no qual não aparece outra necessidade que a da contingênciaradical por depender, não de um primeiro motor que move por necessidade,mas de uma vontade criadora que opera livre e contingentemente. Em outraspalavras: um mundo de cabeça para baixo. Como se pode unir a visão destesdois mundos, o dos filósofos e o dos teólogos? Como se pode unir a contingênciaradical com a necessidade racional? (OROMÍ, 1960, p.16*, tradução nossa4).

Ressaltamos aqui que não se trata de uma divergência superficial, mas dos próprios

fundamentos de ambas as ciências, que se propõem, cada uma a seu modo, dizer o que

seja a realidade. E é exatamente aí que estas duas ciências aparecem como totalmente

contraditórias: uma afirmando a “necessidade” do mundo material, que, segundo

Aristóteles, seria eterno; e a outra afirmando a “contingência radical” deste mesmo mundo

material, criado livremente pela vontade divina.

4 Do original: “De una parte, ve el mundo tal como lo fabricaron los filósofos griegos en sus investigaciones del Perí

fiseos, que terminan necesariamente, por necesidad racional, en el Motor Immobilis, como coronamiento y límite de

toda su filosofía; y de otra, contempla el mismo mundo visto por los teólogos, no fabricado por ellos sino creído, en

el que no aparece otra necesidad que la de la contingencia radical por depender, no de un primer Motor que mueve

por necesidad, sino de una Voluntad creadora que obra libre y contingentemente. Es decir: un mundo al revés.

¿Cómo se puede ensamblar la visión de estos dos mundos, el de los filósofos y el de los teólogos? ¿Cómo se puede

unir la contingencia radical con la necesidad racional?”

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Estava instaurada assim a crise de todo o pensamento medieval, isto é, a insustentável

conciliação entre razão e fé. E conforme ressalta Oromí (1960, p.16*), pior era a situação do

teólogo do que a do filósofo, uma vez que os conceitos utilizados pela própria teologia

tornam-se, como conseqüência lógica de sua própria teoria, de igual modo contingentes e,

portanto, incapazes de expressar a realidade de Deus enquanto ser necessário e mesmo

qualquer verdade necessária, decaindo, por conseguinte, irremediavelmente no relativismo e

mesmo no absoluto ceticismo. Nem mesmo o recurso à analogia poderia superar este abismo,

revelando-se, deste modo, não passar de uma eqüivocidade, pois a condição lógica de uma

comparação qualquer entre dois termos (o mesmo vale para qualquer silogismo) é a existência

de um termo médio unívoco, ou seja, que não varie de sentido quando aplicado a qualquer

um dos membros da predita analogia.

33333 A solução proposta por ScotusA solução proposta por ScotusA solução proposta por ScotusA solução proposta por ScotusA solução proposta por Scotus

Diante deste abismo aparentemente insuperável aberto entre o discurso filosófico e

o teológico, muitos propuseram a chamada via apofática5 como a única possível ou, de

modo ainda mais radical, o silêncio6 como única via legítima.

Scotus, no entanto, sustenta a afirmação de que não só é possível dizer algo sobre

Deus, mas que também este algo deve ser positivo. Para tanto, ele começa por demonstrar

a insustentabilidade da via puramente negativa:

Além disso, ou a negação é concebida simplesmente em si ou como predicada dealgo. Se a negação é concebida simplesmente em si, como, por exemplo, “não-pedra”, ela verifica-se tanto do nada como de Deus, pois a negação pura predica-se tanto do ser como do não-ser. Portanto, através de tal negação, não se conhecea Deus mais do que ao nada ou a uma quimera (DUNS SCOTUS, 1979, p.268)7.

Essa via puramente negativa conduz necessariamente ao ateísmo, pois, do pretexto

da inefabilidade de Deus, não se poderia sequer afirmar a sua existência.

A “teologia negativa”, afirma Scotus, torna possível todos os erros em relação aDeus: se dele não dizemos positivamente o que é, não temos algum critério paraafirmar o que não é; se poderia dizer de Deus que é imanente, totalmente um como mundo, que é corpóreo etc. A teologia negativa não teria algum critério pararefutar essas afirmações: se poderia também negar Deus e a teologia negativa nãopoderia se manifestar. [...] Um conhecimento puramente negativo, portanto, éimpossível; é necessário um conhecimento positivo, por “afirmação”, à qual a

5 Também chamada “Teologia negativa“, pois afirma a impossibilidade radical de se dizer o que Deus seja, mas somente

aquilo que ele não é.

6 Para Wittgenstein, de Deus nada se pode falar, pois ele se encontra fora dos limites da nossa linguagem, os quais

coincidem com os próprios limites do mundo factual.

7 Ordinatio I dist. 3 pars 1 q. 1 n. 10.

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“remoção” deve ser complementar. Devemos afirmar de Deus, tudo isto que indicaperfeição, a iniciar pelo ser, e excluir dele todo limite. Só então a negação possuivalor, enquanto se traduz em afirmação (MANNO, 1972, p.649-650, tradução nossa8).

Se não é possível isolar a teologia em uma via puramente negativa, como conciliar os

conceitos desta com os da filosofia, isto é, com os conceitos abstraídos da realidade sensível?Para Oromí (1960, p.16*-17*, tradução nossa9), a resposta de Scotus é: “[...] um mesmo seja

filósofo e teólogo ao mesmo tempo [...]”. Mas, não estaria ele se contradizendo? Comovimos acima, Scotus distingue totalmente filosofia e teologia, pois cada uma destas ciências

tem seu próprio objeto e metodologia.Por isso Oromí (1960, p.17*) tenta mostrar que não há contradição nessa resposta

de Scotus, mas, pelo contrário, o filósofo-teólogo deve ter em mente esta mesma distinção,isto é, ele não deve confundir filosofia e teologia, nem mesclá-las. Explica ele: sem

abandonar o método próprio de cada uma destas ciências, e sem confundir os objetosessencialmente distintos, a mente do filósofo, sendo a mesma que a do teólogo, pode

ser iluminada pelos dados da fé, não para passá-los ao acervo filosófico – o que seriailícito – mas somente para tê-los em conta a fim de tornar mais aguda a razão, abrindo-

lhe novas perspectivas, como que estendendo o campo das possibilidades ontológicas,enquanto elabora os dados que lhe confere a experiência sensível. Scotus sabe que a

razão jamais poderia chegar a conhecer diretamente os dados revelados, porém, podeela colocar-se em um plano tal onde, se se dá a revelação, esses possam ser compreendidos.

Por sua vez, a mente do teólogo, sendo a mesma que a do filósofo, saberá quedeverá expressar os dados da revelação em conceitos humanos, e não qualquer um, mas

somente em conceitos depurados pela razão de todo rastro do mundo físico, sendo queseu objeto próprio – a realidade espiritual e sobrenatural – está para além deste.

Duns Scotus pretende ser este filósofo-teólogo, e o resultado de seu pensamento,segundo Oromí (1960, p.17*), é o surgimento de uma nova ciência, com seu método

próprio e seu objeto próprio, adequada ao intelecto humano, que não pudera serconhecida pelos filósofos, nem expressa pelos teólogos. Sendo seu objeto próprio

indiferente às realidades físicas e às espirituais, embora parta sempre da realidade física,esta nova ciência (com mais direito que a “filosofia primeira” de Aristóteles, que não

pudera ir além da realidade física10) será chamada “metafísica”.

8 Do original: “La ‘teologia negativa’, afferma Scoto, rende possibili tutti gli errori intorno a Dio: se di Lui non diciamo

positivamente cos’è, non abbiamo alcuno criterio per affermare cosa non è; si potrebbe dire di Dio che è immanente,

tutt’uno col mondo, che è corporeo, ecc. La teologia negativa non avrebbe alcun criterio per confutare queste

affermazioni: si potrebbe anche negare Dio e la teologia negativa non potrebbe insorgere. [...] Una conoscenza

puramente negativa, dunque, è impossibile; è necessaria una conoscenza positiva, per ‘affirmationem’, alla quale la

‘remozione’ deve fare da complemento. Dobbiamo affermare di Dio tutto ciò che indica perfezione, a iniziare dall’essere,

ed escludere da Lui ogni limite. Allora soltanto la negazione ha valore, in quanto si traduce in affermazione”.

9 Do original: “[...] uno mismo sea filósofo y teólogo al mismo tiempo [...]”.

10A realidade comum de toda essência física é o movimento, cuja razão está na composição essencial de matéria e

forma, substância e acidentes e, de uma maneira geral, a composição ato e potência. A razão última do movimento

é o motor immobilis, razão de todo movimento das essências físicas. Por isso, Scotus chama física à ciência que

Aristóteles denominou com o nome geral de “Filosofia primeira“ e que os aristotélicos medievais chamaram

“metafísica“. De fato, o objeto primeiro dessa ciência filosófica é o ser físico; e as razões que investiga são as razões

essenciais do movimento até chegar ao primeiro motor, que não pode expressar a essência divina, que jamais poderá

consistir simplesmente em ser “motor” (o que, afinal, só o é contingentemente, enquanto criador).

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44444 A metafísica de ScotusA metafísica de ScotusA metafísica de ScotusA metafísica de ScotusA metafísica de Scotus

Chauvet (1968, p.84-85) define a metafísica de Duns Scotus como um novo ponto

de vista mais abstrato e geral em relação ao agostinianismo tradicionalista, ao tomismo e

ao ecleticismo de Gil de Roma, Godofredo de Fontaines e Henrique de Gand, mestres

contemporâneos a Scotus e com quem este disputara a maior parte de suas teses. Essa

“abstração última11” teria Scotus intuído a partir da natura communis de Avicena, o qual

considerava que antes de qualquer ato relacionante12 do intelecto (secunda intentio), a

qüididade de um determinado indivíduo é inteligida (prima intentio) em si mesma como

indiferente ao universal e ao particular.

Para responder à questão da “natureza comum”, Scotus recorreu a uma distinção

intermédia entre aquela que se dá entre as entidades físicas e aquela puramente lógica, a

distinção formal ex natura rei, que nos lança definitivamente no plano das entidades

metafísicas13. De fato, como explica Oromí (1960, p.19*, tradução nossa14), “só o indivíduo

existe15, e tudo o que existe no indivíduo existe individualmente ou individualizado”. Portanto,

embora seja real enquanto anterior a qualquer ato da mente que conhece, a natureza

comum não existe como comum no indivíduo (ou seja, ela não é distinta da essência física,

que é em si mesma indivisível), existindo apenas individualizada (sem esgotar-se, contudo,

neste único indivíduo, ou seja, existindo individualizada em outros). A heceidade16 é esta

formalidade última que restringe a natureza comum a tornar-se individual e que jamais

vem separada dessa nos entes concretos.

11A abstração presente na metafísica aristotélica chegava até à classificação dos entes nas chamadas “categorias”.

Scotus vai além, demonstrando que o conceito de ens transcende à realidade categorial, própria das criaturas, podendo

assim expressar a realidade divina (transcendental).

12Na realidade, não se dão essências universais, mas tão somente predicações das essências. As essências ou são

concretas ou abstratas. Tais essências abstratas possuem uma determinada unidade, distinta da unidade das essências

concretas, por possuírem um único sentido e significação, todavia não se referem a um único indivíduo. A universalidade

consiste na simples função relacionante da mente, que, pelo juízo, relaciona a quantidade de indivíduos a que se

estende um conceito. Por ser abstrato e, portanto, ilimitado o número de indivíduos a que um conceito pode estender-

se, pode-se dizer que o conceito abstrato é universal, sendo que esta universalidade não é do conceito em si, mas da

função relacionante da mente, e esta é o objeto próprio da lógica.

13Esta questão é desenvolvida com maior profundidade em outro artigo nosso, O conceito de “natureza comum” e de

“distinção formal” a partir da Ordinatio II dist. 3 pars 1 q. 1, apresentado nas comunicações do dia 10 de outubro de

2008, durante o IV Congresso Internacional Franciscano: “Pensamento e Atualidade de Duns Scotus – no VII centenário

de sua morte”. Disponível em: <http://www.franciscanos.org.br/rondinha/trabalhos/pdf/Artigo_FreiAndreLuiz.pdf>.

Acesso em: 23fev2009.

14Do original: “Sólo el individuo existe, y todo lo que existe en el individuo existe individualmente o individualizado”.

15Interpretamos o termo “existe”, utilizado por Oromí, como referente unicamente à existência concreta de um ente

(coisa) no mundo objetivo. Todavia, deve-se ter em consideração que tudo que é possui algum grau de existência, de

modo que também existem, ainda que unicamente no intelecto, os entes puramente racionais (como os unicórnios,

dragões etc.). Contudo, existem também, e em grau superior aos últimos, aquelas entidades que se dão antes de

toda atividade do intelecto, ou seja, aqueles entes (conceitos) abstraíveis da realidade concreta e que Scotus chama

de “formalidades” (como a natureza específica, o ser enquanto ser etc.). É preciso ainda recordar que a escolha dessa

expressão por Oromí tem como objetivo evitar uma possível confusão entre entes físicos e entes formais, pois estes,

mesmo sendo muitos em um indíviduo, não destroem a unidade e simplicidade própria do ente individual, não

sendo, portanto, algum tipo de composição neste.

16Em latim, “haecceitas“, isto é, aquilo que faz a natureza ser “esta” – em latim, “haec“.

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No nível da distinção real17 encontra-se a física, na qual só é possível falar em analogia

entre Deus e as criaturas. Nesse ponto, Scotus concorda com a opinião tradicional, no entanto,

ele vai mais além e estabelece um novo horizonte, o metafísico, no qual torna-se possível uma

univocidade, que não só não contradiz a analogia no plano físico, mas até mesmo a fundamenta:

S. Boaventura, S. Tomás de Aquino e Duns Scotus afirmam que, no concreto, otermo ser é meramente análogo. Ousar dizer mais seria cair no panteísmo e suporiauma realidade concreta fundamental comum a Deus e à criatura. Mas onde S.Boaventura e S. Tomás param, o Doutor Subtil passa adiante, e prova que de outroponto de vista, o do metafísico e do lógico, Deus e a criatura se encontramintimamente pela univocidade do ser (SAINT-MAURICE, 1947, p.168-169).

Conforme vimos, é necessário uma univocidade, um ponto médio que aproxime e

torne possível a teologia como ciência análoga à física, isto é, que possibilite a transposição

dos conceitos físicos para a teologia, tomando-os sob uma significação análoga, pois o

nosso intelecto, no presente estado, extrai todo o seu conhecimento a partir dos sentidos.

Acerca dessa necessidade, argumenta Scotus:

Nenhum conceito real é causado naturalmente no intelecto humano nesta vidasenão por aqueles fatores que movem naturalmente o nosso intelecto. Ora, essesfatores são a imagem sensível ou o objeto revelado na imagem sensível e o intelectoagente. Portanto, o único conceito simples que é produzido naturalmente nointelecto do tipo do nosso é aquele que pode ser produzido em virtude dessesfatores. Ora, o conceito que não fosse unívoco em relação ao objeto revelado naimagem sensível, mas totalmente distinto deste, anterior e em relação ao qual oobjeto tenha [apenas] analogia, não pode ser produzido em virtude do intelectoagente e das imagens sensíveis. Portanto, tal outro conceito análogo postuladonunca existirá naturalmente no intelecto humano nesta vida e, conseqüentemente,não se poderá ter naturalmente nenhum conceito de Deus. O que é falso (DUNSSCOTUS, 1979, p. 271-272)18.

Com efeito, conforme assevera Saint-Maurice (1947, p.170), “sem univocidade, o

análogo cai no equívoco”, pois toda analogia de atribuição ou de proporcionalidade supõe

alguma certa semelhança, um ponto médio pelo qual possam ser comparados os dois termos

distintos. Do mesmo modo, se o termo médio de um silogismo não fosse unívoco teríamos

um silogismo defeituoso de quatro termos, cuja conclusão seria, com certeza, absurda.

Exemplo: O banco é um local para assentar-se; o ladrão roubou o banco; logo, o ladrão

roubou um local para assentar-se.

E, para que não haja controvérsia a respeito do termo “univocação”, chamo deconceito unívoco o que é dotado de unidade suficiente para estabelecer umacontradição, ou afirmá-lo ou negá-lo a respeito da mesma coisa. É também dotadode unidade suficiente para servir de termo médio num silogismo; de tal modo que,os extremos unidos através de um termo médio dotado de tal unidade unem-se, emconseqüência, entre si sem a falácia da equivocação (DUNS SCOTUS, 1979, p. 270)19.

17Embora a distinção formal também possa ser chamada de “distinção real”, enquanto antecede a todo ato do intelecto,

essa expressão designa melhor a distinção que se dá entre entidades concretas (res = coisa). Assim, quando se quer

enfatizar a objetividade das formalidades utiliza-se, em geral, expressões compostas, como “distinção real menor”.

18Ord. I dist. 3 pars 1 q. 1 n. 35.

19Ord. I dist. 3 pars 1 q. 1 n. 26.

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Segundo o pensamento do Doutor Sutil, o conceito de “ser” transcende qualquer

modalidade intrínseca da existência concreta, sendo anterior a qualquer determinação, até

mesmo a de finito (as criaturas) e infinito (Deus). Desse modo, a definição de ser, em sua

univocidade, consiste na possibilidade de existir, a qual se estende a todos os seres (Deus e as

criaturas). Compreende-se aqui que a idéia de “possibilidade” estendida a Deus não indica

nenhuma espécie de contingência: “O Deus de Scotus aparece assim como aquela realidade

que coincide com as realidades dadas na possibilidade de ser, porém distinguindo-se delas na

impossibilidade absoluta de que não seja” (MUÑOZ-ALONSO, 1972, p.179, tradução nossa20).

Está latente nesse ponto uma distinção radical entre Tomás e Scotus quanto à

compreensão do próprio conceito de “ente” e “ser”, o que determina toda a construção de

suas respectivas análises metafísicas:

A característica fundamental do ente, segundo Tomás de Aquino, é o “ter seu ser”.[...] Entre o ser e o ente, portanto, subsiste uma real diferença. [...] Dependentedessa doação, o ente para Tomás de Aquino está necessariamente atrelado esubalternado a uma instância que lhe possa comunicar o ser que ele próprio não é,mas precisa ter para vir-a-ser. Esse algo, cujo sentido é puramente ser e que, por isso,não tem seu ser mas, antes, é seu próprio ser, é Deus, o ente singular “cuja essênciaé seu próprio ser”. [...] Ao contrário de Tomás de Aquino, Duns Escoto não determinaa constituição do ente em termos de “ter seu ser” mas segundo o critério do “poderser” ou, mais precisamente, do “não ter o ser como contraditório”. [...] Ao contráriode Tomás de Aquino, portanto, Duns Escoto compreende o conceito de ens comoum conceito neutro, absoluto e indiferente, cuja existência não está vinculada à suaparticipação no ser, mas em sua capacidade de possuir uma unidade [...] que sejacapaz de tornar-se medium entre a infinita essência divina e a finita realidade humana(GUERIZOLI, 1999, p.48-50.54).

A transposição da metafísica para o campo das possibilidades ontológicas operada

pela abstração última abre o caminho para a construção de uma ciência do necessário,

caminho aparentemente cerrado pela contingência essencial do mundo enquanto produto

de uma vontade que opera contingentemente, ou seja, podendo não fazê-lo. A necessidade

dos entes possíveis decorre do intelecto divino infinito que produz necessariamente uma

infinidade de inteligíveis. Desse modo, são os inteligíveis o ponto de encontro entre a teoria

da iluminação agostiniana, compreendida como iluminação geral, e a teoria aristotélica do

conhecimento abstrativo:

Os inteligíveis, de fato – vistos na escala descendente – partem de Deus como suaobra primeira ad extra: são o “produto” do intelecto divino; – vistos, por outrolado, na escala ascendente – reconectam o intelecto do homem ao intelecto deDeus como à própria fonte da certeza nas nossas cognições. Tanto é verdade queentre o nosso intelecto e o intelecto divino – os ditos inteligíveis, chamados tambémidéias eternas, “rationes lucis aeternae” – estabelecem – segundo Scotus – umúnico e mesmo “ponto” de contato: ente comum, ente unívoco (ROSINI, 1972,p.691, tradução nossa21).

20Do original: “El Dios de Scoto aparece así como aquella realidad que coincide con las realidades dadas en la posibilidadde ser, pero que se distingue de ellas en la imposibilidad absoluta de que no sea”.

21Do original: “Gli intelligibili, infatti – visti nella scala discendente – partono da Dio come la prima sua opera ad extra:sono il ‘prodotto’ dell’intelletto divino; – visti, invece, nella scala ascendente – ricollegano l’intelletto dell’uomo all’intelletto

di Dio come alla propria fonte della certezza nelle nostre cognizioni. Tanto è vero che tra il nostro intelletto e l’intellettodivino – i detti intelligibili, chiamati anche idee eterne, “rationes lucis aeternae” – stabiliscono – secondo Scoto – un

unico e medesimo “punto” di contatto: ente comune, ente univoco.”

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Torna-se possível, assim, estabelecer-se, segundo Scotus, uma prova genuinamente

filosófica da existência de Deus, que não somente não viole as leis do silogismo (as provas

anteriores partiam de um conceito de ser análogo e, portanto, equívoco a Deus e às criaturas),

mas também porque parte de uma proposição necessária (a possibilidade) e não da existência

atual das criaturas contingentes. Todavia, esta só é possível graças à reformulação da doutrina

dos transcendentais.

Transcendental, na compreensão escotista, é tudo aquilo que se situa para além das

categorias aristotélicas. Portanto, entre os transcendentais devemos elencar primeiramente

o próprio conceito de ser e, com ele, aquelas propriedades que se constituem como

qualificações e determinações do ser, chamadas de “passiones entis”.

[...] o ser se divide em infinito e finito, antes das dez categorias, pois o segundodestes, isto é, o ser finito, é comum aos dez gêneros. Portanto, tudo o que cabe aoser enquanto indiferente ao finito e ao infinito, ou como próprio ao ser infinito,cabe-lhe não enquanto restrito a um determinado gênero, mas anteriormente e,por conseguinte, enquanto transcendental e fora de qualquer gênero. Tudo o que écomum a Deus e à criatura é tal que cabe ao ser na medida em que é indiferente aofinito e ao infinito. De fato: enquanto cabe a Deus é infinito e enquanto cabe àcriatura é finito. Portanto, cabe ao ser antes que se divida nos dez gêneros e, porconseguinte, tudo que é deste tipo é transcendental (DUNS SCOTUS, 1979, p.339)22.

Duns Scotus distingue três classes de transcendentais: os conversíveis (aqueles que

são predicados a todos os entes: uno, verdadeiro, bom e belo), os disjuntivos, também

chamados de “diferenças últimas” do ser (nos quais somente um dos extremos da disjunção

deve ser predicado ao ente, que pode ser: finito ou infinito, necessário ou contingente,

simples ou composto, substância ou acidente), e as perfeições puras (perfeições que por

sua própria natureza não comportam necessariamente algum tipo de imperfeição, como a

sabedoria, que, deste modo, pode se predicar, segundo um determinado grau e proporção,

ao homem, ao anjo e a Deus).

Eram estas perfeições puras, a partir de uma analogia23 de proporcionalidade, o

instrumento mais utilizado pelos escolásticos para se falar acerca da qüididade divina, porém

estas não são, para Scotus, os conceitos metafísicos mais perfeitos, pois uma noção perfeita

deve incluir também a respectiva modalidade. Por isso, a classe mais importante para Scotus

será a dos transcendentais disjuntivos, pois, conforme Guerizoli (1999, p. 60), a sua

singularidade “está exatamente na sua capacidade de se tornarem predicados positivos e

necessários tanto do criador quanto da criatura”. Portanto, serão estas “diferenças últimas”

do ser a ferramenta indispensável para uma demonstração metafísica da existência de Deus:

22Ord. I dist. 8 pars 1 q. 3 n. 113.

23Esta se desenvolvia, geralmente, em três etapas: a via affirmationis (a afirmação de uma determinada perfeição

presente nas criaturas, como a potência), a via negationis (a negação desta mesma perfeição em relação a Deus, cuja

potência não se identifica com aquela presente na esfera criatural) e a via eminentiae (a afirmação desta elevada a um

grau supremo, digno de Deus, ou seja, a onipotência).

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O método para demonstrar a existência de Deus, em Scotus, consiste precisamentenisto: em descobrir as propriedades essenciais do ser tal como aparecem nascriaturas, em sua forma imperfeita, e, apoiando-se no conceito mesmo de ser,como termo médio unívoco, demonstrar a necessidade da disjuntiva em suaperfeição absoluta (OROMÍ, 1960, p. 72*, tradução nossa24).

A partir disso, compreende-se o porquê em Scotus a concepção da natureza metafísica

de Deus “não é desde logo a asseidade25, tampouco o ato puro, mas a infinitude radical

aplicada ao Ser mesmo” (UNIVERSIDAD IBERO-AMERICANA, 1968, p. 90, tradução nossa26).

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusão

Tendo percorrido, ainda que mui brevemente e de modo superficial, os pontos basilares

sobre os quais se fundamenta a metafísica do Bem-aventurado João Duns Scotus, percebemos

claramente a preocupação do nosso filósofo ante as radicais contradições, já tão presentes

em seu tempo, entre o conhecimento filosófico e o teológico. Suas respostas podem também

ser, para a nossa realidade contemporânea, um auxílio oportuno a fim de resgatar o valor da

Revelação e a sua necessidade, assim como a legitimação científica de nosso discurso teológico.

Deste modo, no conceito de “ser infinito”, que expressa o quanto o nosso intelecto,

no presente estado, pode apreender acerca da essência divina, atingimos o ápice da

metafísica do Doutor Sutil. Nele está contido o conceito comuníssimo de ens, que tomado

em si mesmo, sem qualquer determinação, transcende a realidade criatural, expressa nas

categorias aristotélicas, e que, portanto, pode ser predicado indiferentemente tanto às

criaturas finitas quanto à essência infinita de Deus. Nele, igualmente, se pode encontrar

a propriedade transcendental disjuntiva que distingue radicalmente a essência divina de

todas as suas criaturas, ou seja, o modo próprio de Deus ser e que lhe pertence de modo

exclusivo: a infinitude.

Deve-se, portanto, verificar que, segundo o Sutil, há uma certa “comunidade de ser”

entre Deus e as criaturas, sem, contudo, encontrar-se aí qualquer tipo de confusão que

pudesse decair em panteísmo. Tudo que é real possui inteligibilidade e é inteligível enquanto

sendo, isto é, como ens. Dessa inteligibilidade ou formalidade comum não se pode inferir um

“algo físico” (uma res) compartilhado por todos os seres. O que seria absurdo!

Dá-se, assim, a humilde contribuição deste trabalho, que reconhecemos não expressar

toda a solidez e sutileza do pensamento desse grande príncipe da Escolástica, mas que

poderá servir de inspiração às mentes mais aguçadas, que encontrarão no pensamento do

Doutor Sutil um campo assaz fértil e, infelizmente, ainda muito pouco explorado.

24Do original: “El método para demostrar la existencia de Dios, en Escoto, consiste precisamente en esto: en descubrir las

propiedades esenciales del ser tal como aparecen en las creaturas, en su forma imperfeita, y, apoyándose en el concepto

mismo del ser, como término medio unívoco, demostrar la necesidad de la disyuntiva en su perfección absoluta”.

25Propriedade daquilo que é por si (em latim, a se) e que se opõe àquilo que é por outro (ab alio). Conceito-chave da

metafísica tomista para designar aquilo que é exclusivo da natureza divina.

26Do original: “No es desde luego la aseidad, tampoco el acto puro, sino la infinitud radical aplicada al Ser mismo”.

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Dialética trágica: a realidadeDialética trágica: a realidadeDialética trágica: a realidadeDialética trágica: a realidadeDialética trágica: a realidadeanterior a suas determinaçõesanterior a suas determinaçõesanterior a suas determinaçõesanterior a suas determinaçõesanterior a suas determinações

TTTTTragic dialectic: the realityragic dialectic: the realityragic dialectic: the realityragic dialectic: the realityragic dialectic: the realityprior to its determinationprior to its determinationprior to its determinationprior to its determinationprior to its determination

Clauzemir Makximovitz*

ResumoResumoResumoResumoResumo

O pensamento moderno é fortemente pautado em resultados e,

enquanto assume caráter científico, depende de princípios

norteadores para seu agir: a não-contradição aparece como essencial

a essa produção racional. Uma investigação acerca da anterioridade

do pensar em relação a esses princípios é o que postula esse trabalho.

Vê-se na dialética a expressão privilegiada de aproximação com

essa realidade anterior à exclusão da contradição de uma

racionalidade. E a dialética negativa e trágica se aproxima da busca

desse modo próprio de um pensamento livre se dar. Pensamento

não preso ao formalismo criado por uma razão parcial –

instrumental – mas que antecede o âmbito conceitual e se mostra

na existência, na realidade que, por sua vez, contém em si afirmação

e negação de si mesma.

PPPPPalavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chavealavras-chave: dialética, contradição, niilismo.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract

Modern thinking is strongly based on results and, when it takes a

scientific character, is dependent on guiding principals for its

actions: the existence of no contradictions appears as essential

for this rational production. This work is an investigation about

the precedence of thinking in relation to these principals. It is

apparent in this dialectic the privileged expression of approximation

to this preceding reality of the exclusion of the contradiction of a

rationality. And the negative and the tragic dialectics move towards

the search for this particular way of free thinking. Thinking not

tied down by the formalities created in a partial reason –

instrumental – but that comes before the conceptual realm and

shows itself in being, in the reality that, it contains in itself its

own confirmation and denial.

KKKKKey wordsey wordsey wordsey wordsey words: dialectic, contradiction, nihilism.

* O presente artigo foi elaborado

originalmente a partir do trabalho

de conclusão de curso apresentado

ao Instituto de Filosofia São

Boaventura, ligada à FAE Centro

Universitário Franciscano do Paraná.

Graduado em filosofia pelo Instituto

de Filosofia São Boaventura,

atualmente cursa teologia no ITF –

Instituto Teológico Franciscano, em

Petrópolis, RJ . E-mail:

[email protected]

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88 MAKXIMOVITZ, Clauzemir. Dialética trágica: a realidade anterior a...

IntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntroduçãoIntrodução

Ao indagarmos sobre filosofia, logo nos remetemos aos gregos antigos e, de bom

grado, aceitamos que o filosofar iniciou-se com eles. Por outro lado, seria ingenuidade supor

ou mesmo aceitar que o que conhecemos hoje por pensamento filosófico simplesmente,

como por um passe de mágica, surgiu nas práticas corriqueiras da ágora antiga.

Não há um momento miraculoso em que o mito simplesmente cede espaço à filosofia,

ou à racionalidade, simplesmente porque não se trata de duas instâncias independentes e

separadas. O pensar grego, e sobretudo o pré-socrático, permanece ainda hoje tão original

e por vezes mesmo inacessível, devido também à insistência da filosofia posterior nessa

extrema ruptura e contraposição entre razão e não-razão, não sendo, por vezes, sequer

possível uma aproximação entre esse dois pólos, declarados incompatíveis.

O modo de o grego antigo ver a realidade não era pautado nessas posições

contemporâneas. Sua vista não fora ainda atingida por essa absolutização do princípio da

não-contradição; pelo contrário, sua cosmovisão era espontânea, e, na própria realidade, ele

reconhecia a contradição como natural.

Heráclito se deparava com uma realidade em que o caminho do devir não podia se

estagnar numa linearidade simples. Pelo contrário, via uma realidade controversa, livre, onde

a vida não se opõe à morte como princípio incompatível, mas integra em si mesma a finitude

como seu próprio. A dialética ainda nem tomara corpo, mas já mostrava vitalidade e vigor,

características tão peculiares à própria vida.

O logos, em seus fragmentos é compreendido como discurso1, dinâmico, próximo ao

movimento próprio do dialogar. E é o próprio discurso enquanto autônomo que declara a

unidade dos diferentes: “Auscultando não a mim, mas o logos, é sábio concordar que tudo

é um” (HERÁCLITO, 1991, p.71). Essa compreensão de logos privilegia a possibilidade de

interação entre contrários (momentos ou pessoas), ressalta o valor do oposto (não-igual) e o

mérito da transformação (pelo confronto com o outro). “Assim, há unidade entre vida e seu

oposto, morte, que se projeta sobre ela mas não a atinge” (HUISMAN, 2001, p.486).

A contradição, tão presente em seus fragmentos, não é algo como uma aberração

a ser combatida, mas, pelo contrário, faz parte da natureza do mundo: “Para o Deus,

tudo é belo e bom e justo. Os homens, porém, tomam umas coisas por injustas, outras

por justas” (HERÁCLITO, 1991, p.85). Problemática é justamente a tentativa de negação

dessa realidade em si mesma contraditória, negação que ele atribui à ação do homem, e

não considera como algo próprio e natural, “pois o ajustamento (harmonia) não existiria

sem o agudo e o grave, nem os animais sem os contrários que são macho e fêmea. A paz

universal seria a morte universal. Não há dike e harmonia sem oposição dos contrários”

(CIRNE-LIMA, 1997, p.487).

1 A tradução logos por discurso pede uma ressalva: em nossa época, onde os preceitos analíticos de exatidão e precisão

são tão valorizados, discurso é logo remetido à palavra escrita, perdendo um pouco seu sentido pré-metafísico original

e dinâmico. Heráclito não se preocupa em escrever compêndios ou tratados, pois em sua concepção, o discurso segue

a dinâmica da palavra falada, não pode ser guardado ou preservado fora desse movimento do diálogo.

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Tal compreensão que não nega a contradição na realidade é a origem da dialética.

Essa, por sua vez, se apresentou em diversos momentos da história do pensamento, assumindo

aspectos e acentos diferentes.

Quer-se analisar especificamente, neste estudo, sua forma negativa, enquanto a-

sistematicidade que nega inclusive a possibilidade de síntese determinada.

A contradição é afirmada e assumida na e pela realidade que não pode mais ser

dominada pela previsibilidade de uma epistemologia e de uma lógica instrumentais. Pelo

contrário, o próprio mundo se mostra avesso a qualquer sistematização ou linearidade. A

realidade é antinômica, é trágica.

Nietzsche em suas obras desvela essa cortina de fumaça, a qual ele acusa de iludir

o pensamento com conceitos e valores já esvaziados de conteúdo e significado, e acusa

mesmo a impossibilidade de qualquer sustentação de valores quaisquer que sejam. A

existência é trágica, porque a vida é contradição, o mundo é diferença.

11111 A contradiçãoA contradiçãoA contradiçãoA contradiçãoA contradição

As diferenças e especificações históricas da dialética relacionam-se às diferentes

formas como cada época, cada local ou cada filosofia compreende a contradição2. Como

essencial ao processo dialético, o que se entende efetivamente por contradição influencia

diretamente os rumos que um pensamento de tal natureza terá.

A contradição já foi compreendida a partir do ideal de não-contradição, como

Aristóteles o faz, ou, a partir de Heráclito, como inerente à própria realidade.

A dialética antinomista é intitulada também trágica. Zoroastro, Heráclito,Proudhon, Nietzsche foram dialéticos trágicos, aceitando como fundamento detoda existência uma antinomia profunda na natureza. Outra não era a situaçãodo herói na tragédia grega, colocado sempre entre duas forças opostas [...].Distingue-se [a dialética trágica] por considerar a antinomia como fundamental,tanto do espírito humano, como da natureza, e não como alguns dialéticos que,ao interpretarem Hegel, consideram-na apenas imanente ao espírito [...]. Para adialética antinomista (trágica), há uma antinomia fundamental de toda a existênciaque se desdobra numa indeterminada série de processos e opostos que, por seuturno, geram outros (SANTOS, 2007, p.175).

Trata-se aqui de desenvolver o sentido de contradição e suas conseqüências

existenciais, para então, aproximando esse estudo ao pensamento de Nietzsche, trabalhar

a forma como se compreende dialética e niilismo.

A contradição deve ser tratada como uma categoria (Cf. SANTOS, 2007, p.175),

embora comumente não seja assim compreendida. Uma lógica formal combate como

contraditório o afirmar e negar simultaneamente de uma mesma coisa. Fica claro que esta

não é a postura da dialética, que ao contrário de combater, estimula.

2 Excelente obra para aprofundamento das diversas acepções de contradição, especialmente no tocante a Hegel e Aristóteles:

CIRNE-LIMA, C. Sobre a contradição. Porto Alegre: Edipucrs, 1993.

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90 MAKXIMOVITZ, Clauzemir. Dialética trágica: a realidade anterior a...

A realidade não é estática, A realidade não é estática, A realidade não é estática, A realidade não é estática, A realidade não é estática, não segue a dinâmica da formalidade racional, tal qual

os conceitos assim concebidos. “Nada é estático. O processo da existência é uma transição

contínua de um estado para outro, naturalmente diferente” (SANTOS, 2007, p.175). Nesse

sentido, concebe-se a contradição como categoria mesmo da realidade. Ela é assumida,

não combatida.

O conceito de identidade, em caráter formal, enquanto enunciado como “o que é é;

o que não é não é”, simplesmente não comporta o âmbito da existência no conceito.

Formalmente considerado, um conceito é idêntico a si mesmo; casa é idêntico acasa; um chapéu é um chapéu. Mas, existencialmente considerado, um chapéu,como o objeto que está aqui e agora, o qual chamamos de tal, é, em sua estruturaôntica (hic et nunc), um objeto que distinguimos dos outros e, como um corpo,é um constante vir-a-ser em constante mutação, pois, cada estado que lhe sucedeé outro, distinto do anterior. Portanto, cada estado está em “contradição” como outro. Não podemos dizer que existencialmente considerado, este chapéu éidêntico a si mesmo, porque idêntico é um conceito estático da razão, e estechapéu, como corpo, é dinâmico. Então, como existência, ele é uma contradiçãodo chapéu como conceito, forma (SANTOS, 2007, p.177).

Caberia ainda uma reflexão acerca do conceito enquanto este encerrasse ou não

em si o significado ou o conteúdo da existência. Tal direcionamento a uma espécie de

lógica transcendental, entretanto, não será abordado aqui3.

O que parece estar em questão especificamente nesse ponto, é a compreensão de

identidade4. A dialética não se pauta pelos limites da lógica formal, e não é restritiva

como esta, que exclui qualquer aspecto ontológico. O modelo aqui apresentado parece

antes tender a essa concretização na existência, não significando necessariamente duas

realidades distintas, mas englobando, na condição de conceito, sua existência, mesmo

que enquanto potencialidade.

Assim sendo, algo não continua o mesmo sob todos os aspectos. Continua o mesmo,

e torna-se outro simultaneamente. Esse movimento constante de fluência é a dinâmica

própria do real, e a contradiçãocontradiçãocontradiçãocontradiçãocontradição torna-se uma verdadeira categoria da realidade.categoria da realidade.categoria da realidade.categoria da realidade.categoria da realidade.

Um objeto, como unidade, determinado (um livro sobre a mesa) está emcontradição com as suas relações (quando está na estante) mas, como unidade,ele não é idêntico a si mesmo em nenhum instante e é idêntico a si mesmo também[...] Este livro que está aqui, estaticamente considerado como unidade, como umtodo, é algo invariante, mas como unidade processual é variante. Este livro aqui eagora e daqui a pouco na estante é, formalmente, o mesmo livro extensivamente5

3 Uma tal lógica transcendental mostra sua influência em Husserl e em sua fenomenologia, e se configuraria em excelente

campo de pesquisa com Bolzano, que trabalha um realismo lógico, a existência da proposição em si e da verdade em si.

Esse estudo, todavia, não comportaria uma extensão tão abrangente e vasta desse tema, recomenda-se, assim sendo,

como campo de pesquisas futuras.

4 Superando uma compreensão tradicional que relega à identidade uma espécie de substancialidade, Paul Ricouer apresenta

uma abordagem de identidade baseada na relação dialética entre dois aspectos do que costumeiramente se chama

identidade: mesmidade e ipseidade. Para tanto, desenvolve uma reflexão acerca da ambigüidade do termo mesmo, e de

sua origem nos termos idem e ipse latinos (Cf. RICOEUR, P. O si-mesmo como um outro. Campinas: Papirus, 1991).

5 Está se considerando qualquer ser existente sob dois aspectos: a intensidade intensidade intensidade intensidade intensidade e a extensidadeextensidadeextensidadeextensidadeextensidade. “Para a dialética

antinomista, elas são antinômicas e irredutíveis uma à outra” (SANTOS, 2007, p.178), porém, entre elas há uma

relação de complementaridade, ou seja, uma complementa a outra: “não há intensidade sem extensidade, nem

extensidade sem intensidade” (ibidem).

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considerado. Racionalmente temos de considerá-lo idêntico, no sentido formalque a razão dá ao termo, em qualquer um dos seus estados, e existencialmentecomo extensidade e também como estrutura formal é o mesmo. Há “contradição”em suas relações, pois ora estava na mesa, ora na estante, mas é o mesmo. Mas,como unidade, como um corpo determinado, é “contraditório”, pois é o conjuntode duas ordens dinâmicas antinômicas, inversas uma à outra: intensidade eextensidade (SANTOS, 2007, p.178).

Compreendendo o que se está chamando de contradição aqui, fica mais claro todo o

movimento que a dialética postula. Não se trata meramente de oposição de estruturas lógico-

formais (como a lógica formal entende os conceitos), mas da complexidade de relações –

inclusive consigo mesmo – que um conceito já encerra em si mesmo.

22222 O niilismoO niilismoO niilismoO niilismoO niilismo

Vejamos agora como essa acepção da realidade se relaciona com a denúncia da

descontinuidade dos conceitos e valores, do esvaziamento do pensamento em seu sentido

e significado, tal qual o niilismo apregoa.

Para tanto, uma aproximação do pensamento de Nietzsche representa a oportunidade

de conferir, nos diversos planos – da moral, da cultura, da religião e do próprio pensamento –

como essa corrosão se dá.

Em sua obra O nascimento da tragédia no espírito da música, Nietzsche6 aborda o que

considera o início de uma tendência que perdura até a contemporaneidade, a perda do

caráter dionisíaco7 da vida.

Os gregos viviam em tal harmonia com a natureza própria da vida, que sua conduta

era livre, espontânea, legítima. Aos poucos, entretanto, apologias a um racionalismo foram

destruindo essa liberdade.

Acusa-se com isso o avanço do apolíneo como destruição da tragédia que representa

o próprio do homem livre. Sócrates aparece como um grande vilão, que seduz a juventude

com sua dialética.

6 “Friedrich Willhelm Nietzsche nasceu a 15 de outubro de 1844 em Röeken, localidade próxima a Leipzig. Karl Ludwig,

seu pai, pessoa culta e delicada, e seus dois avós eram pastores protestantes; o próprio Nietzsche pensou em seguir a

mesma carreira [...] Criança feliz, aluno modelo, dócil e leal, seus amigos de escola o chamavam ‘pequeno pastor’; com

eles criou uma pequena sociedade artística e literária, para a qual compôs melodias e escreveu seus primeiros versos [...].

Dedicou-se aos estudos de teologia e filosofia, mas, influenciado por seu professor predileto, Ritschl, desistiu desses

estudos e passou a residir em Leipzig, dedicando-se à filologia [...]. A filosofia somente passou a interessá-lo a partir da

leitura de O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer (1788-1860). Nietzsche foi atraído pelo ateísmo

de Schopenhauer, assim como pela posição essencial que a experiência estética ocupa em sua filosofia, sobretudo pelo

significado metafísico que atribui à música” (trechos da pequena biografia e resumo do pensamento apresentados no

início do volume dedicado a Nietzsche na coleção Os pensadores. Cf. NIETZSCHE, 1978, p. vi.).

7 “Nietzsche estabeleceu uma distinção entre o apolíneo e o dionisíaco: Apolo é o deus da clareza, da harmonia e da

ordem; Dioniso, o deus da exuberância, da desordem e da música. Segundo Nietzsche, o apolíneo e o dionisíaco,

complementares entre si, foram separados pela civilização” (In: NIETZSCHE, 1978, p. vii).

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92 MAKXIMOVITZ, Clauzemir. Dialética trágica: a realidade anterior a...

Nesse estado anterior, a tragédia era assumida na vida sem que isso representasse

um peso, mas de forma natural. Essa valorização apolínea da busca por um sentido

racional, por uma forma a seguir, por um modelo, destrói a espontaneidade da contradição

vivida na vida ela mesma, destrói a tragédia enquanto busca combatê-la.

A identificação da vida virtuosa com um proceder determinado é vista como

problemática. Perde-se o próprio da vida, que é leve, significativa em si mesma, independente.

Basta ter em mente as conseqüências das proposições socráticas: “Virtude ésaber; só se peca por ignorância; o virtuoso é o feliz”: nessas três fórmulas básicasdo otimismo está contida a morte da tragédia. Pois agora o herói virtuoso temde ser dialético, agora é preciso que haja entre virtude e saber, fé e moral, umvínculo necessário e visível [...]. A dialética otimista, com o açoite de seussilogismos, expulsa a música da tragédia: isto é, destrói a essência da tragédia(NIETZSCHE, 1978, p. 13-14)8.

O que Nietzsche considera dialética, segundo o texto supra, se aproxima muito da

concepção de racionalidade formal que ele combate. O que ele critica em Sócrates se aproxima

mais da compreensão aristotélica do que o que propunha Heráclito. É toda e qualquer

sistematização, formalização que é repelida.

A natureza dinâmica, livre e contraditória da dialética, fundamentalmente

considerada, é precisamente o que utiliza Nietzsche para compreender essa realidade, e o

que move sua recusa ao logicismo, enquanto representa qualquer espécie de determinação.

Seu ataque a Sócrates e Platão, que considera anti-gregos, porque anti-trágicos,

aparece como um repúdio à metafísica, que considera como uma ilusão de segurança

sem sentido algum:

“... essa sublime ilusão metafísica de um pensamento puramente racional associa-se ao conhecimento como um instinto e a conduz incessantemente a seus limites,onde este se transforma em arte”. Por essa razão Nietzsche combateu a metafísica,retirando do mundo suprasensível todo e qualquer valor eficiente, e entendendoas idéias não mais como “verdades” ou “falsidades”, mas como “sinais”. A únicaexistência, para Nietzsche, é a aparência e seu reverso não é mais o Ser; o homemestá destinado à multiplicidade, e a única coisa permitida é sua interpretação(In: NIETZSCHE, 1978, p.xv).

Nietzsche considera Sócrates como o inventor da metafísica e o põe em oposição a

Dioniso, que representa a indistinção e unidade do que metafisicamente e, pela civilização,

se separou em apolíneo e dionisíaco. Interessante notar que o que se postula aqui não é

um lado em detrimento do outro (ao contrário da metafísica, que nega o dionisíaco e

propõe a racionalidade da ordem apolínea), mas sim a natureza de complementaridade

que há entre os dois, enquanto constituintes da realidade.

A tragédia não nega de todo a ordem – nem poderia – apenas destitui a lógica

(qualquer que seja) de qualquer caráter dominador no tocante à dinâmica própria da realidade.

A tragédia é a dinâmica própria do real.

8 O nascimento da tragédia no espírito da música, § 14.

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Essa separação é falsa. E leva ao erro, ao engano! Isso Nietzsche denuncia ao falar da

ação do niilismo9, que corrói as estruturas de sentido tidas como certas, levando a um vazio.

O niilismo está à porta: de onde nos vem esse mais sinistro de todos os hóspedes? –Ponto de partida: é um erro remeter a “estados de indigência social” ou“degenerações fisiológicas” ou até mesmo à corrupção, como causa do niilismo.Estamos no mais decente, no mais compassivo dos tempos. Indigência, indigênciapsíquica, física, intelectual (isto é, a radical recusa de valor, sentido, desejabilidade).Essas indigências permitem ainda interpretações bem diferentes. Mas: em umainterpretação bem determinada, na interpretação moral-cristã, reside o niilismo(NIETZSCHE, 1978, p.379).

A causa do niilismo não está em acontecimentos específicos locais ou históricos,

mas em sua própria possibilidade. E isso se dá com mais relevância, segundo Nietzsche,

no cristianismo, que se apropriou da teoria e da metafísica de Platão para justificar uma

moral baseada no além. Essa ilusão está se desgastando. Não resistirá.

Por outro lado, ele não considera negativo – não adianta nem julgar, é apenas uma

realidade – esse evento, pois a consciência dessa bancarrota de conceitos que até então

representavam a segurança de um modo de agir – que não era próprio do homem livre,

mas, de certa forma, construído como imposição – significa a necessidade da retomada de

um modo de ser autêntico – o trágico da vida. Quem consegue assumir essa realidade

realmente real da vida em si mesma, é realmente humano, é übermensch10. Esse conceito

não representa, portanto, algo além da humanidade do homem, mas seu extremo: a

humanidade por excelência em seu próprio. Zaratustra11 aparece como analogia ao próprio

Dioniso, aquele que é superior ao lógico, e ilustra esse modo que o homem precisa assumir.

O niilismo como estado psicológico terá de ocorrer, primeiramente, quando tivermosprocurado em todo acontecer por um “sentido” que não está nele: de modo queafinal aquele que procura perde o ânimo. Niilismo é então o tomar-consciência dolongo desperdício de força, o tormento do “em vão”, a insegurança [...]; em segundolugar, quando se tiver colocado uma totalidade, uma sistematização, ou mesmouma organização, em todo acontecer e debaixo de todo acontecer [...]; o homemperdeu a crença em seu valor, quando através dele não atua um todo infinitamentevalioso: isto é, ele concebeu um tal todo, para poder acreditar em seu valor [...]tem ainda uma terceira e última forma. Dadas essas duas compreensões, de quecom o vir-a-ser nada deve ser alvejado e de que sob todo o vir-a-ser não reinanenhuma grande unidade em que o indivíduo pode submergir totalmente comoem um elemento de supremo valor: resta como escapatória condenar esse inteiromundo do vir-a-ser como ilusão e inventar um mundo que esteja para além dele,como verdadeiro mundo (NIETZSCHE, 1978, p.380-381).

9 Terno derivado do latim nihil: nada, vácuo, vazio. Significa um esvaziamento, um processo de nadificação. Aqui é

relacionado ao que Nietzsche compreende como esvaziamento dos conceitos, nadificação dos valores. Pauta-se no

ateísmo (morte de Deus) enquanto negação de que qualquer outra realidade tenha sentido. O homem é o que é, está

só. Não tem nada lhe esperando. Como o homem não consegue suportar essa realidade, cria uma ilusão a seguir. O

niilismo está no ponto intermediário, no crepúsculo dos deuses antigos e antes da criação de novos valores pelo homem.

10Além-do-homem. Esse conceito, mal interpretado, deu margem para fundamentar posturas altamente preconceituosas e

racistas. Para aprofundamento do conceito sugere-se a leitura das obras Ecce homo e Assim falou Zaratustra, de Nietzsche.

11Personagem principal do livro “Assim falou Zaratustra”, aparece como uma espécie de profeta que “apenas vê” a

realidade como ela é. Um protótipo do super-homem.

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Esses acontecimentos e sua tomada de consciência vão ilustrando o caminho da

decadência da metafísica enquanto valor para o homem. A procura por um sentido nas

coisas, tentando identificar uma realidade ou um valor além, é vã. Da mesma forma, não há

um sentido maior, extra-mundano ou intrínseco às coisas, há, sim, um vazio. E o vir-a-ser não

é uma organização certa e definitiva.

Dessas percepções surge uma grande insegurança, um sentimento de medo. É então

que o homem, porque não encontra um ponto a se fixar, cria a ilusão de um, cria uma

metafísica moral de sua fraqueza12.

Enfim, a grande denúncia de que esses valores não mais se sustentam, nem como

ilusão, para qualquer um que queira examiná-los com mais cuidado, aparece passo a

passo como conclusão do que Nietzsche chama de genealogia. Não se trata de buscar um

fundamento desses conceitos, pois eles não o têm. busque-se, então, a origem de seu uso,

o contexto e o sentido para o qual foram criadas essas palavras.

[...] o juízo “bom” não provém daqueles a quem foi demonstrada “bondade”!Foram antes “os bons”, eles próprios, isto é, os nobres, poderosos, mais altamentesituados e de altos sentimentos, que sentiram e puseram a si mesmos e a seupróprio fazer como bons, ou seja, de primeira ordem, por oposição a tudo o queé inferior, de sentimentos inferiores, de comum e plebeu. Desse pathos da distânciaé que tomavam para si o direito de criar valores, de cunhar nomes para osvalores: que lhes importava a utilidade! (NIETZSCHE, 1978, p.299).

São os poderosos (não necessariamente os fortes, e sim mais comumente os fracos)

que criam o sentido que mais lhes é útil às palavras. Chamam bom àquilo que representa

manutenção de seu status dominante, e mau àquilo que é contra. As palavras, enquanto

criação das classes superiores, não remetem ao significado real de algo, mas àquilo que

foi imposto como tal.

Genealogia é refazer esse caminho e chegar à origem da palavra – não ao

fundamento – é perceber com isso, também a fragilidade desse esquema de significação,

é perceber o vazio de sentido em si mesmo da realidade como um todo. É também

perceber como ilusão a crença na existência e validade de categorias da razão: “A crença

nas categorias da razão é a causa do niilismo, – medimos o valor do mundo por categorias,

que se referem a um mundo puramente fictício” (NIETZSCHE, 1978, p.381).

12Não se tem por objetivo aqui abordar as conclusões no campo da moral a que Nietzsche chega. Todavia, a distinção

entre moral do forte e moral do fraco parece interessante. Os dois, segundo o pensamento nietzschiano, se movem

por formas de pensar muito diferentes: dentro do “mundo” dos fracos, sua fraqueza é culpa do forte, que deveria ser

fraco também. É nessa lógica que se valorizam virtudes como humildade e obediência como positivas; uma forma de

desculpar a própria incapacidade e fraqueza. Já no modo de o forte ver a realidade, ele reconhece a fraqueza do fraco

como parte do fraco mesmo, não o culpa, muito menos se culpa por isso. Vê cada coisa no seu lugar e percebe que

o melhor é simplesmente se afastar (pois ele “se basta”) para a solidão, enquanto o fraco vive a dinâmica das moscas

numa feira: buscando atenção, cutucam ressentidamente o homem forte que por ali passa. Esse homem forte,

todavia, nem por isso esmagará as moscas, pois elas não merecem tanta atenção assim. Quanto à interpretação da

moral por Nietzsche, além dos aspectos brevemente trabalhados nesse estudo, especialmente as obras Genealogia

da moral e Assim falou Zaratustra representam grande campo de pesquisa.

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33333 A existência trágicaA existência trágicaA existência trágicaA existência trágicaA existência trágica

A crença em algo que não existe, que se configura numa ilusão que nem mesmo

sustenta a si mesma, representa uma opção pelo nada, um esvaziamento – mesmo que

disfarçado enquanto a ilusão perdura. Esse esvaziamento se dá em todos os âmbitos:

“Há um efeito profundo e completamente inconsciente da décadence mesma sobre os

ideais da ciência” (NIETZSCHE, 1978, p.382).

O pensamento mesmo e a realidade mesma estão como alvos dessa crise que já se

percebe. Seus fundamentos foram “desmascarados”, seu sentido e modo próprios nunca

existiram.

Pensemos esse pensamento em sua forma mais terrível: a existência, assim comoé, sem sentido e alvo, mas inevitavelmente retornando, sem um final no nada: “oeterno retorno”. Essa é a mais extrema forma do niilismo: o nada (o “sem sentido”)eterno! Forma européia do budismo: a energia do saber e da força coage a umatal crença. É a mais científica de todas as hipóteses possíveis. Negamos alvos finais:se a existência tivesse um, teria de estar alcançado (NIETZSCHE, 1978, p.383).

Essa postura ilustra bem uma dualidade existencial antinomista. A realidade é

contraditória e contraditória ao extremo. Até a contradição ela mesma não segue uma

ordem, mas segue a liberdade que ela mesma representa.

O movimento próprio e natural do mundo, então, não é, de forma alguma, linear,

é antes, caótico e espontâneo. Encerra em si mesmo a contradição do próprio movimento.

De fato todo grande crescimento traz consigo também um descomunalesboroamento e perecimento: o sofrer, os sintomas do declínio fazem parte dostempos de descomunal avanço; cada fecundo e potente movimento da humanidadecriou ao mesmo tempo um movimento niilista (NIETZSCHE, 1978, p. 386).

A dialética mesma se vê desconstituída de sua sistematicidade. É o auge da contradição

que desvincula de qualquer ordem pré-estabelecida e se declara livre, livre de si-mesma,

enquanto afirmação de si-mesma.

A denúncia de um esvaziamento de sentido, de um desgaste de fundamentos ou

mesmo da ausência desses, desinstala a compreensão de mundo já tão enraizada em uma

postura metafísica cômoda, que transpira segurança e aconchego, para a trágica realidade

de um mundo do porvir. Um mundo não do devir de algo maior, que dá sentido e que delega

ao homem somente a espera – existência passiva – mas um devir que será o que se fizer dele.

É a evidenciação do homem em sua condição de homem e de sua responsabilidade

perante essa condição, pois, nesse sentido Deus está morto!Deus está morto!Deus está morto!Deus está morto!Deus está morto!13

13 Com essa célebre frase (na Gaia ciência), Nietzsche anuncia a solidão do homem consigo mesmo. Uma realidade que

deve ser assumida. O acento da afirmação não está na existência ou não de um Deus (embora represente um

ateísmo), mas sim nas conseqüências dessa existência, a saber, nenhuma. Basta olhar a realidade: se existe um deus

ou não, não importa: ele não vai interferir na vida do homem! Ele não diminui a responsabilidade, o trabalho ou as

obrigações do homem para consigo. E ele não dá sentido a nada disso! É o homem quem o faz. Deus não pode mais

ser o símbolo da ilusão dessa transferência. E por isso e nesse sentido ele morreu, pois o conceito de Deus com o qual

o homem convivia não suporta essa emancipação.

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96 MAKXIMOVITZ, Clauzemir. Dialética trágica: a realidade anterior a...

A dialética atinge um ponto, além de qualquer sistematização, além de qualquer

normatização, de pura síntese! Síntese enquanto da realidade presente não se pode

inferir o devir, mas apenas perceber nessa mesma realidade já a presença de tese e antítese,

ou melhor, já a presença necessária e constante da contradição, assumida na própria

realidade enquanto negação dela mesma.

Trata-se da conquista de uma compreensão anterior a qualquer sistematização.

Uma compreensão que funda a própria realidade, sem incorrer em normatização, que é

posterior e indica uma tentativa de dominação dessa realidade.

A constatação da destruição – autodestruição – de tudo quanto foi construído

consciente ou inconscientemente pelo homem na evolução de sua cultura, representa

um choque do encontro a essa realidade primeira, a qual se tentou ignorar, mas que

sempre se re-apresenta.

A realidade é contraditória, ou até mais que isso: a realidade é contradição! O

movimento da vida é livre, espontâneo, encerra em sua totalidade a afirmação e a negação

de si mesmo. E isso é dialética!

ConclusãoConclusãoConclusãoConclusãoConclusão

Especificamente a crítica de Nietzsche auxilia a perceber que não se pode apreender

uma realidade anterior com conceitos posteriores. Não se pode compreender a vida

somente com conceitos forjados a partir de um modelo de vida. Não se pode compreender

toda a matemática somente com os números naturais. Não cabe na determinação todo

o determinado, se coubesse, não estaria havendo determinação!

Dessa forma o homem e a existência em si são pautados nesse movimento da

realidade enquanto antinômica. Não é possível estabelecer, a partir de eventos presentes

(tomados como teses), outros eventos que lhe representem uma antítese para se chegar

a uma síntese. Essa leitura faliu. Da mesma forma, a realidade não pode ser lida de forma

a compreender que eventos desencadeados levaram à sua forma hoje, isso porque não

pode mais se fiar em leis de causa e efeito.

A realidade não segue essa nem outra lógica sistemática qualquer, e aí está a

tragédia incorporada. O devir também não é caótico, pois um caos já representaria uma

determinação necessária a priori, o que também não tem espaço. O devir é simplesmente

livre, dependente do que se fizer dele, mas impossível de ser determinado com segurança.

Observa-se especialmente duas formas de se conceber a dialética: uma partindo

da tese, outra da síntese. Partir da tese leva a uma tendência de previsão, determinação

irreal do movimento dialético, tendo em vista que a síntese é um momento próprio da

dialética. Parece que esse ponto de partida ainda resguarda uma tendência muito forte

de se compreender os estágios dialéticos enquanto sucessivos ou temporais, o que,

definitivamente, compromete a liberdade do processo.

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Uma visão, por sua vez, que apenas reconheça nas coisas e na realidade enquanto

tal, que esta encerra em si a contradição, portando simultaneamente afirmação de si e

negação de si (partindo das sínteses, portanto) representa uma visão libertadora dessa

própria tendência determinista. Isso é dialética: perceber a realidade não sob o jugo de

determinações tidas como necessárias (a não-contradição, por exemplo), mas perceber a

determinação própria de cada instante, cada coisa, cada expressão da realidade que não

guarda em si como a algo estranho, mas que tem a contradição como constituinte de si.

ReferênciasReferênciasReferênciasReferênciasReferências

CIRNE-LIMA, C. Dialética para principiantes. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.

HERÁCLITO. In: ANAXIMANDRO; PARMENIDES; HERÁCLITO. Os pensadores originários.Petrópolis: Vozes, 1991.

HUISMAN, D. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

NIETZSCHE, F. Obras incompletas. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os Pensadores).

SANTOS, M. F. Lógica e dialética: Lógica, dialética e decadialética. São Paulo: Paulus, 2007.

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O homem é a mensuraO homem é a mensuraO homem é a mensuraO homem é a mensuraO homem é a mensurade todas as coisasde todas as coisasde todas as coisasde todas as coisasde todas as coisas

The man is the measuresThe man is the measuresThe man is the measuresThe man is the measuresThe man is the measuresof all thingsof all thingsof all thingsof all thingsof all things

Nicolau de Cusa*

* Nicolau de Cusa, De beryllo. In:

Phi losophisch- theo log ische

Schriften. Band III, Viena, Verlag

Herder, 1967, p.81-91. Tradução

de Enio Paulo Giachini.

1 Aristóteles, Met. X, 1, p.1053 a f.

[...] Resta ainda uma coisa para vermos como o

homem é a mensura das coisas.

Aristóteles1 afirmou que, nisso Protágoras nada de

profundo disse, mas a mim parece que ele disse algo muito

grandioso. – E primeiramente considero que no começo

da Metafísica Aristóteles afirmou retamente como, por

natureza, todos os homens desejam saber, e explicita isso

no sentido da visão, a qual o homem não tem apenas para

a operação, mas a qual amamos por causa do conhecer,

pois nos manifesta muitas diferenças. Portanto, se o homem

tem sentido e razão, isso não é apenas para que deles se

utilize para conservação dessa vida, mas para que conheça.

Então as coisas sensíveis alimentam o homem de dois

modos, a saber, para que viva e conheça. Mas o conhecer

é primordial e mais nobre, porque tem um fim mais elevado

e mais incorruptível.

E, como acima pressupomos, o intelecto divino teria

criado tudo para manifestar a si mesmo, como afirma Paulo

Apóstolo, que escreve aos Romanos que nas coisas visíveis

do mundo conhece-se o Deus invisível; assim, as coisas

visíveis são para que nelas se conheça o intelecto divino,

artífice de todas as coisas. Quanta é, portanto, a força da

natureza cognoscitiva nos sentidos humanos, que

participam do lume da razão que lhe é conjugada, tanta é

a diversidade das coisas sensíveis. As coisas sensíveis são

pois livros dos sentidos nos quais é descrita a intenção do

intelecto divino em figuras sensíveis, e é a manifestação

do próprio Deus criador. Se estás em dúvida, portanto, de

alguma coisa, por que isso é assim ou assado ou por que

se porte de tal modo, uma resposta a isso é: porque o

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100 CUSA, Nicolau. O homem é a mensura de todas as coisas

intelecto divino quis se manifestar à cognição sensível, para ser conhecido sensitivamente;

como, por exemplo, quando perguntas por que no mundo sensível há tanta contrariedade;

por isso, porque as coisas opostas, colocadas uma junto à outra, mais se elucidam, e

uma é a ciência de ambas.

O conhecimento sensitivo é tão pequeno que, se não houvesse contrariedade, não

apreenderia as diferenças. Isso porque todo sentido deseja objetos contrários para melhor

discernir, e assim o que é necessário para tal se encontra nos objetos. Assim, pois, se com

o tato, o gosto, o olfato, a visão e o ouvido persegues e consideras atentamente quanta

força cognoscitiva possui cada sentido, descobres todos os objetos no mundo sensível e

subordinados a serviço das forças cognitivas. Assim a contrariedade das qualidades primárias

serve às tactivas, a das cores serve aos olhos, e assim de todos. Em todas essas coisas tão

variadas é admirável o mostrar-se do intelecto divino.

Depois que Anaxágoras considerou o intelecto ser o princípio e a causa das coisas e

nos casos dúbios assignou outras causas que não o intelecto, foi repreendido tanto por

Platão, no Fédon, quanto por Aristóteles, na Metafísica, como se ele postulasse que o

intelecto seria o princípio do universo e não das coisas singulares. Fico surpreso desses

príncipes dos filósofos, visto considerarem que Anaxágoras seria repreensível por isso, e

em relação ao princípio concordarem entre si, por que eles procuraram ainda outras razões

e naquilo que condenavam Anaxágoras, são descobertos cometendo o mesmo erro. Mas

isso lhes acontece por causa de um pressuposto ruim, porque impuseram a necessidade à

causa primeira. Pois se, em todas suas inquirições, tivessem considerado a verdadeira causa

da criação do universo, a qual já assinalamos, teriam encontrado uma solução verdadeira

para todas as dúvidas.

Por exemplo: o que quer para si o criador quando, através do movimento do céu e

pelo instrumento da natureza, de um amontoado de espinhos faz surgir uma rosa sensível

tão bela e odorífera?

O que mais se pode responder, a não ser que aquele intelecto admirável intenta se

manifestar nesse seu verbo, para admirar-se de tanta sabedoria e razão, e de quais são as

riquezas de sua glória, quando com tanta facilidade coloca no sentido cognitivo tanta

beleza, assim tão ornadamente proporcional, através de uma pequena coisa sensível, fazendo

exultar toda a natureza do homem com o movimento da alegria e com uma harmonia

dulcíssima? De modo ainda mais claro se mostra na própria vida vegetal, da qual provém

a rosa. Com uma resplendência ainda mais clara aparece na vida intelectiva, que ilumina

todas as coisas sensíveis, e quão glorioso é seu senhor que pela natureza, como que por

lei, impera sobre tudo, tudo conserva na espécie incorruptível supratemporal e

temporalmente nos indivíduos e como através dessa lei da natureza tudo surge, se move e

opera aquilo que ordena a lei da natureza, em cuja lei nada e ninguém mais vige como

autor de tudo, a não ser aquele intelecto.

Também Aristóteles viu isso, a saber, que uma vez que se tenha subtraído o

conhecimento das coisas sensíveis, subtraem-se igualmente as coisas sensíveis, ao dizer na

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Metafísica que se não houvesse as coisas animadas, não haveria sentidos e nem coisas

sensíveis, e muitas outras coisas sobre isso ali.

Protágoras, portanto, afirmava corretamente que o homem é a mensura das coisas,

que sabendo, a partir da natureza de seu conhecimento sensível, que as coisas sensíveis são

em função desse mesmo conhecimento sensível, mede as coisas sensíveis para poder apreender

sensivelmente a glória do intelecto divino. O mesmo acontece com as coisas inteligíveis,

referindo-as ao conhecimento intelectivo, e por fim, a partir do mesmo, contempla aquela

natureza intelectiva imortal, para que o intelecto divino possa mostrar-se a ele em sua

imortalidade. E assim, a doutrina evangélica torna-se mais manifesta, a qual coloca como fim

da criação ver o Deus dos deuses em Sion2, na majestade de sua glória, que é a revelação do

pai, no qual está a suficiência de todos. E aquele nosso salvador, por quem Deus fez os

séculos, a saber, o próprio verbo de Deus, promete que irá revelar-se naquele dia e que então

aqueles viverão na vida eterna3.

Essa revelação deve ser compreendida de tal modo como se alguém, numa única

mirada, visse o intelecto de Euclides, e que esse avistar fosse a apreensão de sua arte,

explicitada por ele nos seus Elementos. Assim o intelecto divino é a arte do onipotente,

pela qual fez os séculos e toda vida e inteligência. Apreender portanto essa arte, quando

se revela desnuda naquele dia, quando o intelecto, desnudo e puro, aparece diante de sua

face, significa adquirir a filiação de Deus e a herança do reino imortal. Se o intelecto,

portanto, tivesse em si a arte que cria a vida e a alegria sempiterna, estaria assegurado do

último saber e da felicidade.

Mas como se constitui conhecimento através das espécies (species, Eigengestalten)

dos sentidos particulares, que especificam e determinam a força geral do sentir, e como esse

padecer (passio), a saber, a impressão das espécies, se torna ato no sentido, e inclusive como

a inteligência está plena das formas das coisas inteligíveis, embora sendo uma forma simples,

isso, irás conhecer se atenderes como a visão com-plica em si as formas de todas as coisas

visíveis e que essas, portanto, ao lhe serem apresentadas, as conhece por sua natureza (da

visão), através de sua forma, que com-plica em si as formas de todas as coisas visíveis.

Assim se dá com o intelecto, cuja forma é a simplicidade de todas as formas

inteligíveis, as quais, ao serem-lhe apresentadas desnudas, as conhece por sua própria

natureza (dele); e o mesmo ocorre, subindo na direção das inteligências que possuem uma

mais sutil simplicidade de forma, e tudo vêem mesmo sem aquilo que se lhes apresenta em

forma de imagem (in phantasmate); e por fim, como tudo no primeiro intelecto é de tal

forma cognoscitivo que o conhecimento dá o ser ao conhecido, assim como o exemplar

causativo de todas as formas, exemplificando a si mesmo; e por que os sentidos não

atingem as coisas inteligíveis nem o intelecto as inteligências e as coisas que lhe são

superiores, visto que nenhum conhecimento pode adentrar no que lhe é mais simples.

2 Sl 83,8.

3 Jo 11,25 et al.

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102 CUSA, Nicolau. O homem é a mensura de todas as coisas

Conhecer é, portanto, mensurar. A mensura, portanto, é mais simples que as coisas

mensuradas, como a unidade é a mensura do número. Visto que isso tudo está contido

com-plicadamente no Berilo e na alegoria (aenigma) e que muitos já escreveram sobre isso

de forma muito elegante, não me estendo em função da brevidade.

Mas, finalizando esse livrinho, digo com Platão4: se houvessem os que buscam e

estivessem dispostos a tal, a ciência seria brevíssima e seria melhor comunicada sem

precisar recorrer a qualquer escrito. Mas Platão considera dispostos aqueles que desejam

ser impregnados, com tanta avidez, que consideram preferível serem moribundos do

que carentes de ciência, depois, aqueles que se abstêm dos vícios e delícias corporais e

que possuem aptidão de qualidades inatas (ingenium).

Digo que todas aquelas coisas são confirmáveis na medida em que, junto com

isso, seja fiel e devoto a Deus, para que, por preces constantes e insistentes, obtenha ser

por ele iluminado. Pela fé firme, pois, aos que pedem, ele concede a sabedoria, o quanto

é suficiente à sua saúde e salvação. A esses, este livrinho, de certo modo um tanto

indigesto, oferece material para meditar, para descobrir segredos, atingir coisas mais

elevadas, e perseverar sempre nos louvores de Deus, a quem aspira toda alma, pois só ele

opera coisas admiráveis e é bendito eternamente.

4 Platão, Carta 7, p. 341ss.

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A imagem (das Bild)A imagem (das Bild)A imagem (das Bild)A imagem (das Bild)A imagem (das Bild)

The imageThe imageThe imageThe imageThe image

Heinrich Rombach*

* ROMBACH, H. Der kommende Gott.

Hermetik – eine neue Wiltsicht.

Freiburg: Rombach Verlag, 1991,

p.124-130. Agradecemos à

Rombach Verlag KG/Rombach

Publishing Company KG, de Freiburg,

pela permissão de publicação

desse texto. Tradução de Enio

Paulo Giachini.

Falar sobre uma imagem é muito fácil e muito difícil.

Muito fácil porque não há nada mais evidente e mais

fascinante do que a imagem, e muito difícil porque no fundo

tudo é “imagem”, mas tão aprofundado “no fundo” que

na maioria das vezes não pode ser descoberta nem descrita.

Por imagem pensamos sempre primeiramente figura

(Abbild = cópia, reprodução, retrato). Conhecemos uma

grande quantidade de imagens. Assim, a “arte pictórica”

(bildende Kunst) se sustenta no caráter próprio da figuração

(Bildhaftigkeit), pelo menos na forma que nos vem da

tradição. Pintura e arte plástica surgem como arte da

figuração, na medida em que sempre e a cada vez

comportam um tema, um projeto, um “sobre o quê” (sujet),

e em sua figurabilidade (Abbildlichkeit) estão referidas e

voltadas para isso. Reconhecemos uma configuração

(Gestalt) clássica como um Apolo, visto possuir as insígnias

desse Deus, arco e flecha, coroa de louro e nudez.

Reconhecemos uma outra imagem (Bild) como uma

“paisagem”, visto que ali vemos “figuradas” as campinas

clássicas ao modo de um Claude Lorrain. Também nas

“imagens” modernas o caráter figurativo nos serve de ponte

para a compreensão, como quando reconhecemos uma

“mulher chorando” de Picasso como precisamente aquela,

ou quando numa configuração cubista, apesar de tudo,

conseguimos reconhecer um violão. Todavia, às vezes parece

difícil encontrar o caráter figurativo, como por exemplo para

um grupo de normalistas francesas, que diante de um dos

últimos quadros (Bild) de Picasso, interrogadas sobre o que

ele representa, depois de um longo silêncio, hesitantes,

finalmente uma moça pronuncia a informação salvadora:

“encore une baigneuse”. Todas estão aliviadas.

Naturalmente. Uma banhista. Com isso, Picasso está salvo.

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104 ROMBACH, Heinrich. A imagem

Todo caráter próprio de imagem (Bildhaftigkeit) parece ser, de algum modo, caráter

próprio de figuração (Abbildhaftigkeit), ou seja, “imagem” só é algo em relação a algo

outro, que é a coisa, o objeto, a realidade. Estranhamente, porém, a palavra “imagem”

surge em nossa língua precisamente quando se trata de realidades de um grau de realidade

especialmente elevado. Assim falamos, por exemplo, em “imagem de mulher” quando se

trata de uma mulher com uma intensidade especial de realização de todas as características

da mulher. Ou falamos em “imagem de homem”, e por isso também “imagem masculina”,

ao termos em mente um homem especialmente varonil, o que, ademais, não pode ser

traduzido com precisão para “imagem feminil”; ali o uso linguajar oscila. Em todo caso,

“imagem” refere-se sempre a uma forma de realidade forte.

Também quando sentimos uma paisagem como uma “imagem”, temos em mente

um acento especial de seu caráter de realidade. Então é “realmente” uma paisagem de

montanha, “realmente” uma visão do mar, mesmo que de longe não seja um “pedaço

do oceano”. Esse último refere-se apenas à figura, o primeiro à “imagem” do mar.

Em tais casos, pela palavra “imagem”, a linguagem a-nuncia uma realidade especial.

Assim, falamos por exemplo de “imagem originária” (Urbild), tendo em mente com isso

uma esfera que jaz além da realidade, mas não na direção de posterioridade, mas na

direção de originariedade. Nesse sentido, a filosofia de Platão, por exemplo, é uma filosofia

da imaginalidade originária (Urbildlichkeit), pois refere-se a proto-tipos (Vorbilder) segundo

os quais a realidade deve se orientar. Nesse sentido, a região ontológica (Seinsregion)

“imagem” delimita a região ontológica da “realidade” (Realität), designa simultaneamente

uma dimensão originária e uma dimensão derivada. Isso dá o que pensar.

A dificuldade, portanto, reside no fato de que, por “imagem” se expressam coisas

contrapostas. Uma vez o posterior, outra o originário. Será difícil valerem os dois

simultaneamente. Em todo caso, é possível representar-se um constructo-auxílio, a saber,

pensar a imagem originária como “protótipo”, segundo o qual se formam (gestalten) os

objetos, segundo os quais por seu lado forma-se a figura (Abbild). É assim, por exemplo,

que se deve compreender a idéia de “arquétipo”, que já na tradição da teologia da criação

se refere à idéia de Deus, ou seja, a imagem originária segundo a qual formou-se a realidade.

É por isso também que se chama inclusive de “criativo” ao reproduzir artístico de quadros,

embora propriamente não o seja exatamente, mas é criativo em perspectiva do criador,

que formou essa criação segundo as imagens originárias. Toda “configuração” (Gestaltung)

tem algo de criativo, o que provém precisamente desse processo, ou seja, liga as duas

dimensões da imaginalidade (Bildlichkeit), a imaginalidade originária e a figurabilidade

(Abbildlichkeit) com a dimensão da realidade. Mas também ali a realidade é o nível de

sentido sustentador, em relação ao qual são vistas tanto a figurabilidade quanto a

imaginalidade originária. Haverá um nível de “imagem” mais originário?

O significado mais originário de imagem se anuncia quando vislumbramos que na

vivência da realidade pressupomos determinadas “imagens fundamentais”, que embora

sempre esquecidas sustentam a compreensão da realidade. Olhamos, por exemplo, para a

ramagem de uma árvore e vemos ali tronco, ramos, hastes e folhas. Esse caráter de ser em

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três camadas, tronco, ramo e haste, que é o pressuposto para o desenvolvimento das folhas,

tem algo de fundamental. Um caráter de ser em três camadas semelhante observamos nas

águas; rio torrencial, ribeirão, riachinho seguem essa ordem em direção inversa; muitos

riachinhos deságuam num ribeirão, e diversos ribeirões formam um rio torrencial. De acordo

com essa imagem pensa-se também a genealogia do homem. O indivíduo (como uma folha)

está ligado em e pendente de uma família (como numa haste), que está ligada numa linhagem

(como um ramo), que pertence a um povo (como um “tronco”). Através de “tronco” (Stamm,

stammen = surgir, brotar, derivar, descender de), a linguagem fica bem clara; aqui se expressa

literalmente a analogia com a planta. Essa analogia vem expressa também com outras palavras,

assim por exemplo com “ramificação”, o que serve tanto para plantas, como para árvores

genealógicas, linhagens e águas e para a co-pertença das espécies na natureza. Também ali

estabelecemos diferenças seguindo a imagem fundamental da ramificação, sendo que a

espécie designa o ramo e o gênero designa o tronco. Parece faltarem as hastes. Mas essas,

nas relações da natureza são as “raças”. Assim, por exemplo, um cão é um “basset” (haste),

que pertence à espécie “cão” (ramo), que pertence por seu lado ao tronco dos “mamíferos”.

É claro que se pode desmembrar isso de modo bem mais detalhado, mas se investigarmos

com cuidado, esse desmembramento mais detalhado segue novamente esse triplo

desmembramento. À base desse triplo desmembramento está uma imagem fundamental,

que orienta todo e qualquer tipo de diferenciação. Isso é admirável.

De algum modo, todas as realidades estão re-feridas a imagens fundamentais, a

partir das quais elas se nos manifestam. Temos uma imagem fundamental de planta, à

qual, por exemplo, não cabe “sensação” (Empfindung). Por isso, podemos arrancar e

cortar plantas sem recriminar-nos por estarmos impingindo-lhes dor. Donde sabemos

que as plantas não sentem dores, quando as ferimos? Sentimos uma agressão

absolutamente como um “ferimento”. Onde procedemos a tais agressões violentas vemos

também haverem “machucaduras”. Por que então não sentimos ali nenhuma com-

”paixão” (Schmerzen mit) como co-sentimos, logo, a realidade da dor quando procedemos

de modo violento contra um animal, mesmo que seja apenas um verme? Isso se dá

porque temos uma imagem fundamental de plantas na qual não cabe dor. Mesmo assim,

se dá um todo concorde, uma “imagem” da planta, pelo qual nos orientamos em todas

as nossas relações para com plantas e processos arbóricos. – Toda a nossa relação para

com a realidade é regida por imagens fundamentais, das quais não sabemos por que são

assim como são e cuja verdade sempre pressupomos.

Há portanto imagens fundamentais, e essas referem-se ao fundamento de “imagem”

como tal. Vivemos sempre no reino irradiado da atuabilidade (Wirksamkeit) de imagens

fundamentais, que não se esgotam em manifestações singulares, mas que aparecem

absolutamente em todas as manifestações singulares. Assim é a imagem fundamental da

árvore, do caminho, da distância, do homem, do tempo, do espaço etc. Quem traz dentro

de si a imagem fundamental da montanha irá senti-la no momento em que alcança a

montanha. Será para ele como que um regresso à sua terra natal, mesmo que tenha vivido

toda sua vida em paisagens de campos intermédios, e tanto seu pensamento como seu

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106 ROMBACH, Heinrich. A imagem

sentir e seu agir terão a forma da montanha. Mas ninguém irá reconhecê-la, nem ele

próprio, pois não compreendeu nem concebeu o fenômeno “imagem”, assim como tudo

que lhe advém, acontece na forma fundamental de sua imagem.

O mais importante e mais grave e o mais supra-poderoso que se dá em todos os

acontecimentos, tanto do homem quanto da natureza, é a imagem. É só na arte que, às

vezes, alcança-se que a imagem abra caminho até a superfície e então se torne “configuração”.

É por isso que nos sentimos tão interpelados pelas configurações da arte, porque tocam em

nós imagens fundamentais que determinam todo nosso ser e agir. Ninguém, nenhuma filosofia

e nenhuma religião, ainda descreveu, jamais, essas imagens fundamentais, mesmo que

cheguem a tocá-las, na medida em que elas em geral “tocam” (berühren) alguma coisa, pois

é só através de imagens fundamentais que se pode tocar essencialmente (anrühren) o homem.

Sobre isso, haveria muito a ser dito. Se pudéssemos forçar isso a vir à luz, o que

obviamente não é possível, seria possível expressar a bíblia fundamental do homem que,

por exemplo, subjaz no fundo de todas as religiões e que vem cunhada, de algum modo,

em graus distintos, em todas as religiões. Deuses são imagens nas quais vem à luz a cada

vez uma imagem fundamental. É por isso que, nas religiões, encontramos uma grande

riqueza de imagens fundamentais, expressas nos seus céus divinos. Também o céu estelar

contém imagens fundamentais, conhecidas como “imagens estelares”, áries, capricórnio,

vênus, marte... Talvez seja um contra-senso querer descobrir essas imagens estelares em

coisas singulares de nossa vida cotidiana; todavia, faz todo sentido considerar uma vida

no seu todo sob determinada imagem estelar, sob a imagem de gêmeos, de aquário, de

virgem. Seria sensato, de grande auxílio e sadio se cada pessoa tivesse clareza sobre as

imagens fundamentais que determinam sua vida, tanto no todo quanto nas coisas

singulares, assim como na convivência com seus iguais. Isso nem sempre se corresponde,

todavia, sempre expressa, no fundo, uma atuabilidade que constitui o caráter fundamental

de nossa pessoa e a configuração fundamental de nossa vida.

Imagens fundamentais são difíceis de serem apreendidas: Toda e qualquer tentativa

de descrição já se vê emaranhada em imaginabilidades (Bildlichkeiten) derivadas. Assim,

a imagem fundamental de um homem pode ser a confrontação, mas a confrontação

social, então, já será uma interpretação errônea e uma unilateralização que não esclarece

seu prazer por distinções claras e estados de coisas bem demarcados (farbig). Não se

podem conhecer imagens fundamentais, mas podem-se reconhecer, podemos “vê-las”

em configurações concretas.

Com isso, a “imagem fundamental” nos leva para a proximidade daquela “imagem”

como a qual existe um homem. Assim, por exemplo, vemos nalgum lugar da costa um

pescador que é a imagem de um “pescador”, mas isso não por causa de suas características

visíveis, mas por causa de sua constituição de ser. É pescador a partir do fundo e por

inteiro. Conhece todas as leis, possibilidades e artimanhas do pescar, conhece todos os

peixes e sabe seu real valor, conhece o mar e o tempo e vive com ambos em uma unidade

originária. Mas nem por isso é necessariamente um pescador “perfeito”, embora

compreenda naturalmente seu ofício; todavia, é pescador “de corpo e alma”, na totalidade

de sua existência. E, novamente, ele só pode ser tal porque vive o ser-homem como ser-

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pescador. Não é pescador apenas no setor profissional e de ofício, mas é pescador de tal

modo que ali dentro ganha expressão o essencial do ser homem. É assim, por exemplo, “O

velho e o mar”. Esse compreendeu que a todo homem foi concedido “um peixe” e que

importa pescar esse peixe. E nada mais importa. Não se erigem quaisquer outros valores,

fins, normas, mas apenas se espera que pegue e pesque o peixe, o único peixe que lhe foi

destinado, sem se preocupar com todos os outros valores, fins e normas. Um pescador que

é a “imagem” de um pescador vive seu ser-pescador de tal modo que nessa vida vive-se

tudo que pode ser vivido. “Pescador” é uma imagem fundamental do ser-homem, uma

imagem fundamental do ser, sobremodo.

Ou vemos um jovem que é “imagem” neste sentido. Mas não absolutamente porque

tivesse uma “bela imagem”, mas porque em toda imediatez arrogante de sua vida e de

seus jogos, em toda a ambição de sua auto-imagem força todos os outros a se submeterem

à sua concepção, o que talvez seja realmente uma versão de realidade única e brilhante.

Olhar e gestos de tal jovem são “imagem”, pois representam uma possibilidade fundamental

do ser, que se impõe, despreocupada e livremente, na situação concreta como um

acontecimento interpretativo dotado de uma força originária. Tudo que é é de algum

modo assim, despreocupado e livre, a imposição soberana e lúdica de uma interpretação

da vida e do mundo, que quer ser vivida com uma confiança inquebrantável e com ânimo

total. O jovem não sabe que é “imagem”. Tampouco tem em si algo de prototípico. Talvez

seja desconfiado, hirsuto e desajeitado. Tampouco é todo dia assim, só agora, precisamente

nesse momento e nesse local. Agora ele se torna imagem, nem antes nem depois.

Independentemente se é visto ou não. Mas nalgum ponto, no fundo de seu ser, ele se sabe

sendo imagem, se vê a partir de lá, é guiado obscuramente a partir de lá, e assim “está

ciente do reto caminho”.

Todo homem é imagem nesse sentido. Uma representação irrepetível e

inconfundível do todo numa configuração concreta, através da qual precisamente o que

nele há de imperfeito e casual se coaduna numa “imagem” que, como um raio, avia um

sentido possível do todo numa situação todo-concreta.

O reluzir o ser, próprio da imagem, pode certamente também ter uma forma

bastante duradoura. Um lago, uma lagoa. A lagoa de “Mummelsee” é imagem e já o é

desde há muito, até que por fim chega um poeta que a vê como imagem e a encanta na

poesia. Toda poesia é uma imagem. Toda obra de arte é uma imagem. Por isso, a arte

tem sua sublime valia no fato de ser imagem. Quando se vê algo como imagem ou se

torna algo em imagem, o todo ou o absoluto vêm à presença num acontecimento todo-

concreto, num local todo-concreto, em forma todo-simples e casual. Quando Delacroix

mostra uma caçada de leões, o acontecimento da imagem se reduz a um círculo, e as

forças são condensadas numa tal aglomeração que ali surge uma “imagem” para a

realidade em geral. Toda vida é constituída de tal modo que as forças se chocam no mais

estreito espaço, de tal modo que por toda parte acontecem lutas e declínios, através dos

quais, porém, o círculo do todo permanece intocável e não sofre ameaça. O todo continua

“em seus limites”, os acontecimentos retornam para dentro de si mesmos, na realidade

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108 ROMBACH, Heinrich. A imagem

“nada” acontece. Mesmo assim, tudo se desdobra na mais perfeita clareza e transparência

e enfrentamento, e todas as formas e cores são lutas que levam à realização a mais

elevada vitalidade dentro de uma serena constituição do todo. A imagem de Delacroix

não é a imagem de uma caçada de leões, mas a imagem da realidade. Mas enquanto

quadro, é a “imagem” de uma caçada de leões. Enquanto imagem, porém, poderia estar

inserida em qualquer outro “tema” e qualquer outro assunto (sujet).

Nesse sentido, pode-se dizer que todo artista tem apenas uma imagem, que traz

à apresentação em inúmeros quadros. É evidente que ele não a “possui”, mas a desenvolve.

Ou melhor: Ela se desenvolve desde os inícios, levando a desenvolverem-se ela própria e

a ele. Essa imagem única do pintor, do poeta, do profeta, do músico, do arquiteto, do

político, do pedagogo é o “anúncio” que ele procura transmitir aos homens. Esses,

inclusive, devem ser sempre tocados de modo essencial, na medida em que se defrontam

com uma imagem, muito embora não consigam realmente vê-la por trás dos quadros.

Assim Bethoven convence todo e qualquer ouvinte, e do meio do Nilo, um entusiasmado

americano se volta a nós com a frase lapidar: Bethoven is the best composer of the

world” (“Beethoven é o melhor compositor do mundo”). Ao ser-lhe perguntado o motivo,

não sabe responder. Não consegue nomear a “imagem” que Beethoven perseguiu por

toda sua vida e que se expressa em todas as suas obras, embora nem sempre com a

mesma proximidade e presença. Não é possível nomeá-la, apenas “ouvi-la”. É só quem

ouve essa “imagem”, esse “tom”, essa melodia originária que “ouve” Beethoven.

“Hermética” chama-se o esforço para apreender a “imagem” desse sentido e trazê-

la à linguagem. Ela diz o que é o que é visto por um Hemingway, um Michelangelo, um

van Gogh, um Beethoven. Mostra a imagem em todos os quadros. Não está interessada

no tema, no estilo, na forma, na qualidade estética, no nível artístico ou em algo

semelhante, mas procura sacar e ver a imagem e nomeá-la. É claro que, com isso,

abordaram-se também o nível artístico, a qualidade estética, a dimensão historial, pois

quem “consegue apreender” uma imagem, humana, historial e ontologicamente assume

um elevado nível. Não é um “gênio”, mas simplesmente apenas “homem”, na medida

em que por isso se compreende o ser que é “imagem”. Na grandiosa época de sua

pintura, a Holanda chamava os homens simplesmente de “imagens”.

A hermética não se ocupa apenas com imagens, mas também com mundos. Cada

imagem é um mundo ou inclui um tal, mas contém seu mundo não articulado e

diferenciado, mas numa unidade fechada, precisamente enquanto uma “imagem” única.

Em Turner, algo torna-se imagem, a qual até então jamais fora vista: a atmosfera. É

evidente que todos sabiam que há algo assim, e a pintura anterior a Turner também

levou à imagem algo de atmosférico. Em Claude Lorrein encontramos a “clairvoyance”

do pleno meio-dia, mas a atmosfera só se mostra em os objetos reproduzidos

pictoricamente (abbildlich) pela imagem. Em Rembrandt encontramos o elemento

atmosférico em ambientes internos antigos, reproduzidos numa clareza maravilhosa,

mas também aqui a atmosfera só aparece “em” os objetos, não é ela própria o objeto.

Isso, precisamente, só em Turner. A névoa e a vida pura da manhã cedo não aparecem

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“em” a paisagem e “em” os objetos, mas ao contrário: a paisagem e os objetos aparecem

“em” a atmosfera. É essa o objeto e o tema, a coisa em questão e o fenômeno, a força e

a soberania (Herrlichkeit). O absoluto, o todo do mundo, a totalidade da vida, tudo isso

só e unicamente se torna real no atmosférico. Ver isso assim – isso precisamente é Turner.

É essa sua “imagem”, sua imagem da realidade, do ser, da vida.

É evidente que podemos ver o ser, a vida e a realidade também de modo diverso,

como por exemplo são vistos na imagem do templo grego, como ordem rigorosa e livre,

como “harmonia” elevada. Os gregos são os descobridores da harmonia, e essa é sua

“imagem” da realidade, do ser, da ordem, do cosmos, do divino, do belo, do bem, do

humano – precisamente sua “imagem”.

Certamente, é só um hermético que vê isso. Esse “diz” a imagem, e quiçá sem

destruí-la. Dito numa linguagem usual destrói-se uma imagem. Mesmo quando é nomeado

de “belo”, “magnífico” (herrlich), “cheio de Deus” etc. É por isso que o “hermético” cala.

Mas ele não se cala por deixar de lado a fala, mas cala de tal modo que não fala “sobre” a

imagem mas “a partir” dela. Ele faz com que a própria imagem fale. E o auto-enunciar-se

da imagem é exata e precisamente a imagem, nada mais e nada menos.

Mas então hermética e imagem são idênticos? Não, nem toda imagem é mundo,

embora sempre contenha um mundo. Não diferencia esse mundo, não o articula, mas

poderia articulá-lo. Vemos um homem numa certa situação, por exemplo, rindo com

gosto. Nesse momento apreendemo-lo como imagem. Esse rir com gosto poderia ser o

princípio de seu mundo de vida. Mas evidentemente não o é, ele só ri na hora de sair do

trabalho. Por isso ele está desencontrado, mas ele não o sabe. O hermético o sabe, ele

poderia “pintar” o mundo que pertence a esse homem e que é realmente seu mundo.

O todo de um mundo é uma imagem, embora nem sempre possa ser apreendida

opticamente. Através do modo de abordar uma pessoa, pode-se inclusive remetê-la ao

seu mundo. É o que faz, por exemplo, Jesus quando atua como salvador e redentor.

Toma um homem, um doente, um leproso, uma prostituta, um cobrador de impostos e

o coloca a cada vez no mundo que é o seu. “Toma teu leito e anda”. Neste momento o

homem está libertado, liberto para si mesmo, e ele “anda”. Ali não se faz nenhum

“milagre”; ali se abre um mundo hermeticamente – e toda e qualquer pessoa é feliz

quando está em seu mundo. Não existe outra felicidade. Estar no seu próprio mundo

significa ser feliz. Significa sentir-se salvo, ser sadio, sereno, “de boa vontade”, positivo.

Não se pode ser positivo de outro modo a não ser estando em seu próprio mundo.

Isso é um tema hermético. O cume da hermética consiste no fato de um mundo

não aparecer na articulação estrutural de todos os seus momentos parciais, mas num

único ponto, num instante único, numa configuração única. Essa é “imagem”.

Imagem é um fenômeno hermético, mas não é idêntico com mundo, que é o

outro fenômeno hermético. Ver a ambos, mantendo-os num diálogo, embate e distinção

mútuos é a tarefa da hermética. Mais, a hermética de uma vida pode ser um “pensamento”

ou uma “experiência” ou um “intento”, uma “palavra”, um “mondo”. A hermética é a

demonstração identificadora desse sem-nome, que pode sustentar todo e qualquer nome.

Imagem não será o nome do Deus vindouro?

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