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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA NÍVEL DOUTORADO LUTECILDO FANTICELLI CRENÇAS VERDADEIRAS E JUSTIFICAÇÃO: a aporia platônica e suas novas versões SÃO LEOPOLDO 2013

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Tese de Doutorado Unisinos

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  • UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS UNIDADE ACADMICA DE PESQUISA E PS-GRADUAO

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA NVEL DOUTORADO

    LUTECILDO FANTICELLI

    CRENAS VERDADEIRAS E JUSTIFICAO:

    a aporia platnica e suas novas verses

    SO LEOPOLDO 2013

  • Lutecildo Fanticelli

    CRENAS VERDADEIRAS E JUSTIFICAO: a aporia platnica e suas novas verses

    Tese apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor, pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS rea de concentrao: Filosofia. Orientadora: Prof. Dra. Sofia Ins Albornoz Stein

    SO LEOPOLDO 2013

  • Catalogao na Publicao: Bibliotecria Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184

    F216c Fanticelli, Lutecildo Crenas verdadeiras e justificao: a aporia platnica e suas novas

    verses/ por Lutecildo Fanticelli. -- 2013. 180 f. ; 30cm.

    Tese (Doutorado) -- Universidade do Vale do Rio dos Sinos -

    Unisinos. Programa de Ps-Graduao em Filosofia, So Leopoldo, RS, 2013.

    Orientadora: Prof. Dra. Sofia Ins Albornoz Stein. 1. Filosofia. 2. Conhecimento. 3. Crena. 4. Refutao.

    6. Coero. 7. Logos justificacional. I. Ttulo. II. Stein, Sofia Ins Albornoz.

    CDU 1

  • LUTECILDO FANTICELLI

    CRENAS VERDADEIRAS E JUSTIFICAO: a aporia platnica e suas novas verses

    Tese apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor, pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos.

    Aprovada em: 22 de maio de 2013

    BANCA EXAMINADORA

    __________________________________________________________ Prof. Dra. Sofia Ins Albornoz Stein - Unisinos

    _________________________________________________________

    Prof. Dr. Adriano Naves de Brito Unisinos

    _________________________________________________________ Prof. Dr. Luiz Rohden Unisinos

    _________________________________________________________ Prof. Dr. Jayme Paviani - UCS

    _______________________________________________________ Prof. Dr. Albertinho Luiz Gallina - UFSM

  • Sirlei Teresinha Smaniotto minha companheira de todos os momentos.

  • Agradeo aos seguintes professores pela boa vontade e incentivo que me deram desde antes

    do meu ingresso no curso: lvaro Valls, Adriano Naves de Brito e Incio Helfer. professora

    Sofia Stein pela boa vontade em orientar-me sempre quando necessitei. E ao meu colega de

    trabalho Cludio Dalbosco pelas sugestes importantes.

  • Quem vive, sem cessar, a vida do esprito, sejam quais forem suas convices filosficas,

    sabe que as coisas se passam de maneira diferente: a filosofia, precisamente porque no se

    confina no hic et nunc do momento, nem pretende atuar diretamente sobre a vida, uma das

    maiores potncias espirituais que nos impedem de soobrar na barbrie e nos ajudam a

    continuar sendo homens em grau cada vez mais elevado.

    Bochenski (1968, p. 13-14)

  • RESUMO

    No Teeteto de Plato a aporia como uma espcie de vazio filosfico, pois aniquila a mais bela definio de conhecimento, isto , a definio como crena verdadeira justificada. Um Dilogo aportico um Dilogo sem a resposta pretendida e esse exatamente o caso do Teeteto. Scrates alega algumas necessidades prementes para no suster a definio. Todavia, uma investigao cautelosa revela alguma insuficincia nos contra-argumentos. Alguns, alm de insuficientes so tambm expostos de modo sumrio. Fez-se necessrio ento perscrutar a fim de sanar a validade dessas refutaes que desembocaram na aporia do Dilogo. Mas independente disso, o problema do Teeteto , de fato, difcil. Existe, por exemplo, uma enorme propenso amalgamao dos conceitos de crena verdadeira e de logos. A mera definio de um logos j por si consiste numa tarefa extenuante. No sculo XX o conciso texto de Gettier reavivou a mesma discusso do Teeteto. Em poucas palavras ele reiterou a refutao platnica e chamou muita ateno sobre si. Esta tese versa mais propriamente sobre o Teeteto de Plato, pois esse Dilogo o texto base e delimitado para a investigao. O que se questiona primeiramente a validade dos contra-argumentos platnicos e em menor escala o de Gettier. Se eles no se sustm, ento ainda estamos autorizados a continuar definindo o conhecimento como crena verdadeira justificada. Aps a publicao do Teeteto, com efeito, muita epistemologia foi produzida e muito do que se responde a Gettier tambm responde, de algum modo, ao Teeteto. A justificao epistmica de que tanto hoje se fala, parece tratar-se do mesmo logos justificacional tratado no Teeteto. Os contemporneos parecem perseverantes procura do logos que os dialogantes, supostamente no encontraram. Esta tese mostra como nem Plato nem Gettier conseguiram refutar a definio tripartite. A sugesto de Costa sobre a necessidade de pressupor uma condio perspectivista e uma atualista deveras plausvel quanto resoluo do contraexemplo de Gettier. O fundacionalismo neoclssico de Bonjour , de igual modo, uma alternativa muito plausvel. que a sua pressuposio de crenas no carentes de justificao nos livra da antiga preocupao do regresso infinito. Esse autor pressupe uma noo de conscincia no aperceptiva, atravs da qual se d a relao entre a experincia sensorial e a crena bsica. Em parte, pode-se dizer que o prprio Teeteto, se esquadrinhado apropriadamente, acaba por responder algumas questes, pois revela a insuficincia dos contra-argumentos. Por outra, a doxastologia contempornea arrefece o problema com novas propostas. Em sntese, uma anlise cuidadosa do prprio Teeteto aliada a um fundacionalismo claro e elucidativo responde de modo plausvel ao problema aqui proposto. Todavia, sendo o Teeteto o texto base para a investigao, esta tese foca-o mais abundantemente. Palavras-chave: Conhecimento. Crena. Refutao. Coero. Logos Justificacional.

  • ABSTRACT

    In the Platos Theaetetus the aporia is one specie of empty philosophical, because it postpones the most admirable definition of knowledge, i. e, the definition as justified true belief. An aporetic Dialogue is a Dialogue without the answer thats been searched and this is the case of the Theaetetus. Socrates claims some urgent necessities to does not maintain the definition. However, a careful investigation reveals some insufficiency in those counterarguments. Some of them, besides insufficient, are exposed of one summarized way. In this way, it had become necessary an investigation to attain the validity about those refutations, which ended in the Dialogues aporia. But despite that, the problem of Theaetetus is, in fact, very difficult. There is, for example, an enormous tendency of amalgamation among the concept of true belief and the concept of logos. The simple definition of logos is an extenuated work. In the 20th century, the concise text of Gettier gave rise to the same discussion that Theaetetus. In a few words, it corroborated with the platonic refutation and attracted much attention to itself. This thesis discusses more specifically about Platos Theaetetus, which is the Dialogue delimited and fundamental text to investigation. What is inquired is primarily the legitimacy of the platonic counterarguments, which one of Gettier comes in less proportion. If they are not consistent, then we are yet warranted to carry on defining knowledge as justified true belief. After Theaetetus publishment a large amount of epistemologies have been produced and many answers to the problem of Gettier are also, in a certain way, answers to Theaetetus. The epistemic justification that is so discussed nowadays is seems to be the same justificational logos debated in the Theaetetus. The contemporary philosophers search for the logos that the dialoguers probably did not attain. This thesis displays how neither Plato nor Gettier made to refute the tripartite definition. Costas suggestion about the necessity of assuming a perspectivist condition and a current condition is, indeed, plausible as the resolution of Gettiers counterexample. Neoclassic foundationalism of Bonjour is also one alternative too plausible. Indeed, his presupposition of beliefs without necessity of justification let us free of the ancient worry of infinite regress. According to the author, is necessary to presuppose one notion of non apperceptive consciousness, whereby occur the relation between the sensorial experience and the fundamental belief. In part, if the Theaetetus, is adequately investigated, it answers some questions, because, at the end, we can see the insufficiency of the counterarguments. In other, the contemporary doxastology relieves the problem with new proposals. In short, one careful investigation of own Theaetetus allied to one clear and elucidative foundationalism answer, of plausible way, the problem here exposed. However, since that the Theaetetus is the main text to investigation, this thesis stress it more abundantly. Key-words: Knowledge. Belief. Disproof. Coercion. Justificational Logos.

  • SIGLAS DOS DILOGOS PLATNICOS USADOS NESTA TESE

    Apologia de Scrates Ap. Banquete Smp. Crmides Chrm. Cartas Ep. Crtilo Cra. Crtias Crt. Criton Cri. Definies Def. Eutidemo Euthd. utifron Euthphr. Fdon Phd. Fedro Phdr. Filebo Phlb. Grgias Grg. Hpias Maior HpMa. Hpias Menor HpMi. Laques La. Leis Lg. Lsis Ly. Menexeno Mx. Mnon Men. Parmnides Prm. Poltico Plt. Primeiro Alcibades I Alc. I Protgoras Prt. Repblica R. Sofista Sph. Teeteto Tht. Timeu Ti.

  • LISTA DAS QUESTES E DOS TEMAS DO TEETETO

    Primeira Parte (142a-186e)

    Introduo narrativa (142a-143c) As qualidades de Teeteto (143e-144d) A apreciao da descrio feita por Teodoro em relao Teeteto (144e-145d) As duas definies ingnuas (145d-147c) A observao maiutica (148e-151d) A definio como sensao (151e) A analogia com Protgoras (152a-b) As doutrinas secretas de Protgoras: uma espcie de fenomenalismo (152b-154a; 155d-157b; 182a-b) O movimento como um bem e o repouso como um mal (152e-153d) A metfora dos dados e da altura: o princpio da estupefao (154b-155d) As percepes falsas ou iluses: em sonhos, na doena e na demncia (157e-160c) A auto refutao do relativismo: (161c-162d) A mini defesa de Protgoras (162d-163a) A dualidade entre ver e conhecer (163b-163c) A dualidade entre sensao e memria (163c-165b) A defesa de Protgoras (166a-168c) O dilogo com Teodoro (168c-183c) Novamente a auto refutao do relativismo: s o sbio , de fato, a medida (170a-172b) A digresso: o perfil do verdadeiro filsofo (172c-177c) Crtica ao relativismo: a utilidade prtica e o bem futuro (177c-179d) A crtica aos jnios (179d-183b) A protelao da anlise da tese de Parmnides (183c-184a) A autossuficincia da alma: o argumento do syllogismos (184b-186d) Segunda Parte (187a-201c)

    Conhecimento opinio: doxazein (187a) Conhecimento opinio verdadeira: orthe doxa (187b) As duas nicas vias: conhecer ou no conhecer: princpio da inrcia (188a-b) O conceito de allodoxia (189b-c) O pensamento como um dilogo da alma consigo prpria (189e-190a) A alegoria do bloco de cera (191c-196b) A dualidade entre conhecer e perceber: situaes em que impossvel opinar falso (192a-c) As hipteses por meio das quais possvel opinar falso (193a-d) A refutao da alegoria do bloco de cera (195d-196b) A suposta inconvenincia da investigao (196d-197a) Diferena entre ter e possuir (197a) Alegoria do avirio: parte A (197c-199d) Alegoria do avirio: parte B (199e-200a) Refutao da alegoria do avirio (200a-c) Alegoria do jri (201a-c)

  • Terceira Parte (201c-210d) Conhecimento opinio verdadeira acrescida de um logos (201c-d) A teoria atomista (201d-202c) O argumento do todo e das partes (202e-205e) O arremate da refutao da teoria do atomismo: alfabetizao por meio das letras e o exemplo da lira (205e-207b) Primeira definio de logos: o logos como enunciado (206d) Refutao da primeira definio de logos (206d-e) A definio do segundo logos: o logos como enumerao (206e-207d) Refutao do segundo logos (207d-208b) O argumento do aluno alfabetizado (207d4-208b7) Meno aos trs tipos de logos (208c) Definio do terceiro logos: o logos como diferenciao (208c-209c) Refutao do terceiro logos (209d-210b) Desfecho final do Dilogo (210b-d)

  • SUMRIO

    INTRODUO ............................................................................................................ 13

    1 QUESTES FUNDAMENTAIS SOBRE O TEETETO DE PLATO ....................... 17

    1.1 Observaes essenciais sobre o Teeteto.................................................................... 18

    1.2 A questo da presena teoria das Ideias no Teeteto .................................................. 26

    1.3 Um breve perfil do jovem Teeteto ............................................................................ 29

    1.4 O tipo de definio requerida por Scrates ................................................................ 32

    1.5 O doxazein ........................................................................................................... 37

    2 A APORIA EM PLATO ...................................................................................................................................... 42

    2.1 Concepo geral de aporia em Plato ....................................................................... 43

    2.2 A aporia como mera estratgia da ironia socrtica .................................................... 44

    2.3 A aporia na cincia experimental e na vida prtica.................................................... 47

    2.4 A maiutica como um modo de aporia .................................................................... 50

    2.5 Plato e o ceticismo ................................................................................................ 59

    3 A APORIA DA DEFINIO TRIPARTITE NO TEETETO .............................................. 63

    3.1 A aporia na terceira parte do Teeteto: observaes essenciais ................................... 64

    3.1.1 A apresentao da clssica definio tripartite no Teeteto ..................................... 66

    3.2 Observaes sobre o termo logos: as significaes e a sua funo como justificao ..... 68

    3.3 A primeira definio de logos: o logos como enunciado (206c-d) ................................ 71

    3.4 A teoria atomista: uma introduo socrtica ao segundo logos................................... 75

    3.4.1 A refutao da teoria atomista.............................................................................. 82

    3.4.2 A segunda definio de logos: o logos como enumerao (206e-207b) ..................... 87

    3.5 A terceira definio de logos: o logos como diferenciao (208c-210b) ....................... 97

    3.6 A crena verdadeira atuando como conhecimento: o discurso do Mnon .................. 104

    4 A DEFINIO TRIPARTITE NAS DISCUSSES CONTEMPORNEAS: .... 112 o ressurgimento da problemtica e as alternativas propostas............................ 112

    4.1 O ressurgimento da questo da definio tripartite na contemporaneidade ................ 113

    4.2 A imortalidade da filosofia platnica: sua tcita influncia na atualidade ................. 115

    4.2.1 Plato e Russell ................................................................................................. 118

    4.2.2 Plato e o empirismo ......................................................................................... 122

    4.3 Teorias contemporneas da justificao epistmica: algumas posies relevantes ...... 126

    4.3.1 O reaparecimento do logos como foco de discusso ............................................... 133

    4.4 O contraexemplo de Gettier ................................................................................... 134

    4.5 O contraexemplo de Russell................................................................................... 151

  • 4.6 O discurso de Zagzebski e a questo deontolgica na epistemologia .......................... 153

    4.7 Escatologia filosfica: o possvel desaparecimento da epistemologia ......................... 158

    CONCLUSO ............................................................................................................. 163

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ........................................................................... 168

  • 13

    INTRODUO

    Como o prprio ttulo indica, o que se segue uma tese sobre Plato. Trata-se mais

    propriamente de uma tese cujo texto base o Dilogo Teeteto. Alis, em essncia o texto

    delimitado para esquadrinhamento exatamente a terceira parte desse Dilogo. O problema

    motivador da pesquisa a aporia platnica, isto , o final inacabado das investigaes. Esse

    inacabamento , por sua vez, consequncia de consecutivas refutaes no decorrer do

    Dilogo. Fora ento necessrio indagar pelo porqu da aporia e a seguir averigu-la

    cuidadosamente. Como no possvel esquadrinhar muitos textos em um trabalho cientfico

    em nvel de stricto sensu a opo foi pela exclusividade do Teeteto. Esta opo, em princpio,

    tem duas razes: uma o fato de a aporia em questo convergir sobre um tema atualssimo, a

    saber: a definio tripartite do conhecimento; a outra , por assim dizer, a estranheza dos

    argumentos desenvolvidos por Plato nesse Dilogo com o objetivo de atingir a aporia. A

    delimitao na terceira parte decorre do fato de ser essa a parte em que a definio tripartite

    entra precisamente em pauta. O incio dessa parte se d exatamente com a fala do jovem

    Teeteto definindo o conhecimento como opinio verdadeira acrescida de um logos. No

    entanto, as duas primeiras partes incorrem de algum modo sobre a terceira. Em funo disso

    tornou-se primordial que o primeiro captulo fosse composto de sees clarificadoras.

    Os captulos esto distribudos da seguinte forma. O primeiro descreve o Teeteto como

    um todo focando, sobretudo as discusses que desembocaro na terceira parte. Na verdade,

    algumas deliberaes e alguns conceitos tratados bem no incio do Dilogo so relevantes

    para atingir o objeto desta pesquisa e requerem uma boa explicao. importante, por

    exemplo, levar em conta que antes de refutar a definio tripartite, outros argumentos muito

    valiosos j haviam sido refutados.

    A elaborao de uma seo sobre a teoria das Ideias tem a ver com a frequentssima

    insistncia de alguns platonistas no quererem separar a filosofia platnica da teoria das

    Ideias. Mesmo o Teeteto, por exemplo, no escapa dessa insistncia. Diante disso pareceu-nos

    mais prtico e conveniente elaborar uma seo por meio da qual, de modo objetivo e sucinto,

    fosse afirmado a sua inexistncia no Dilogo. Ser adotado o termo Ideia, com a inicial

    maiscula para as poucas ocasies em que houver referncia aos eidos1, isto , s Ideias

    metafsicas2.

    1 . O termo Forma comumente adotado pelos autores anglo-saxnicos. Kraut explica que a preferncia pelo termo tem a ver com o fato de as referidas entidades metafsicas no serem entidades criadas pela mente e

  • 14

    O doxazein outro conceito que tambm merece uma seo exclusiva tanto pela sua

    importncia estratgica quanto pela conotao peculiar que recebe no Teeteto. A sua

    contextualizao e o sentido com que manuseado importante, uma vez que um termo que

    est ligado diretamente definio tripartite. Doxa ou doxazein so os termos que

    normalmente so traduzidos por crena. Mas a sua conotao no Teeteto bastante peculiar,

    bem menos conhecida e quase nenhuma relao tem com a doxa denegrida da Repblica.

    O segundo captulo trata da aporia platnica de um modo geral e expe

    detalhadamente as suas mazelas. Todo o trabalho, obviamente tem como preocupao a

    aporia, mas esse captulo visa situar e defini-la com mais detalhes. A maiutica e o ceticismo

    esto posicionados respectivamente na penltima e ltima seo de modo proposital, pois

    visam a atestar sua relao com a aporia.

    O terceiro captulo o que trata prpria e exclusivamente dos argumentos platnicos

    da terceira parte do Teeteto. Nele os argumentos so primeiramente postos s claras na sua

    forma original. A seguir mostrado como o Scrates platnico executa as refutaes. Cada

    argumento esmiuado e analisado com o objetivo de elucidar a validade das refutaes. A

    primeira seo, enquanto introdutria mostra e situa com mais preciso a aporia na terceira

    parte do Dilogo. A seo sobre o logos pode ser considerada essencialssima visto que o

    logos o foco de discusso por parte dos prprios dialogantes. Essa seo embora sucinta,

    adverte, por exemplo, quanto enorme variedade de tradues e conceptualizaes do termo

    logos. Definir ou dizer de uma vez por todas o que um logos uma tarefa simplesmente

    impossvel, mas essa seo tentar de alguma forma mitigar essa dificuldade. O ltimo

    captulo, por fim, visa averiguar e mostrar o que a contemporaneidade diz sobre a questo.

    Boa parte desse captulo, na verdade, se concentra sobre um dos mais conhecidos textos da

    epistemologia do sculo XX e XXI: o sucinto artigo de Edmund Gettier. Embora haja meno

    e referncias a outros autores, a essncia da discusso sobre o problema de Gettier. As

    primeiras sees iro salientar o porqu do captulo, isto , o porqu da elaborao exclusiva

    de uma seo sobre epistemologia contempornea. Na verdade, o captulo , em parte, mais

    sim entidades perenes independentes da mente humana. Cf. KRAUT, R. In: AUDI, R. (Ed.) The Cambridge dictionary of philosophy. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1999. p. 710. No entanto, interessante levar em conta que os que estudam a filosofia platnica certamente esto cientes de que essas entidades nada tm a ver com as ideias enquanto mero fruto do pensamento. 2 Como ser possvel observar, esta pesquisa acaba por ser bastante crtica. bvio que Plato, como qualquer outro filsofo tem muitos mritos, alguns dos quais podero ser reconhecidos no decorrer desta tese. Contudo, o problema que motivou a pesquisa e a querer escrever uma tese, desemboca num argumento crtico. Mas saliente-se que essa crtica no se estende a todos os campos da filosofia platnica. Ela restringe-se epistemologia e mais propriamente ao modelo aportico. A tica socrtico-platnica, por exemplo, algo simplesmente brilhante.

  • 15

    precisamente sobre teoria da justificao, um campo especfico da epistemologia. Ser

    possvel perceber de imediato que a pretenso do captulo , na verdade, uma necessidade

    premente ao problema central exposto. Eis uma frase que por si responder muita coisa: a

    epistemologia contempornea , com certeza, uma ntida continuao da epistemologia

    platnica. Aquilo que os contemporneos hoje muito discutem, alis, como j notrio, tem

    muita afinidade com o Teeteto de Plato. Tambm vale a pena adiantar que o logos to

    arduamente discutido nesse Dilogo nada mais que um tipo de logos justificacional. Isso

    significa que as teorias da justificao hoje existentes so, de certo modo, nada mais que uma

    espcie de continuao discusso da problemtica platnica. Em sntese, podemos aqui

    adiantar que falar em logos falar em justificao. O apelo aos contemporneos pareceu-nos

    simplesmente uma medida importante e imprescindvel. Os ltimos pargrafos da quinta

    seo esboam uma teoria recentemente introduzida na literatura filosfica, isto , o

    fundacionalismo neoclssico de Laurence Bonjour. Com efeito, o fundacionalismo , de nossa

    parte, reconhecido como uma boa alternativa aos problemas epistemolgicos. Contudo,

    devido delimitao prevista para esta tese, s ser possvel expor um esboo com a sua

    essncia argumentativa.

    O foco do Teeteto , na verdade, o conhecimento, que em ltima instncia fora

    definido como opinio verdadeira acrescida de um logos3. Contudo, rejeitada no fim do

    Dilogo. Nesse caso, a definio ficara em aberto. Isso significa que havia algum problema e

    que teria ento de ser resolvido. Esse problema era exatamente a aporia, isto , o vazio final, a

    inexistncia de uma definio do conhecimento. Foi precisamente o sucintssimo texto de

    Gettier que, de algum modo, o reavivou. Alis, f-lo realmente com algum ar de denodo. Esse

    autor, na verdade, refutou uma definio j supostamente refutada h mais de dois mil anos.

    Diante da sua refutao, ento, muitas alternativas foram suscitadas. Na seo que trata

    estritamente da questo, primeiramente ser apresentado e explicitado o prprio artigo de

    Gettier e a seguir sero feitas consideraes prprias juntamente com a de alguns

    comentadores.

    A ltima seo fecha todo o trabalho, abordando propositadamente a proposta da

    supresso da epistemologia enquanto filosofia, isto , da sua insero como um captulo da

    psicologia. A inteno , de certo modo, empreender um fechamento o mais apropriado

    possvel. Se por um lado o Teeteto consiste nas primcias da epistemologia, por outro, a

    Epistemologia naturalizada de Quine representa o seu eplogo. Ao menos representa uma

    3 Mais comumente formalizada hoje em dia como Crena verdadeira justificada.

  • 16

    proposta. De fato, preciso reconhecer que estamos em pleno sculo XXI e que muitssima

    filosofia foi produzida depois de Plato. Com certeza, faz-se necessrio averiguar o que se

    produziu.

    Vejamos ainda algumas advertncias tcnicas que devem anteceder a leitura desta tese:

    A grafia da palavra Dilogo com letra maiscula significa que se trata de uma referncia a

    algum Dilogo escrito por Plato. Com letra minscula significa um dilogo enquanto

    discurso entre duas pessoas de modo rotineiro. Fica tambm estabelecido o termo opinio

    como traduo padro para o termo grego doxazein. Mas isso no significa que ser

    estabelecida uma definio rigorosa para o termo. Parece-nos que prefervel estabelecer uma

    intercalao entre os termos opinio e crena desde que a circunstncia o requeira.

    necessrio avaliar o contexto de cada caso e, ento empregar o termo mais apropriado. No

    captulo trs, por exemplo, por se tratar de uma leitura direta do texto platnico, mais

    apropriado empregar opinio, pois trata-se do termo da edio em vernculo que ser

    adotada como padro4. A mesma regra valer para os termos alma e mente. Como

    notrio, os tradutores de Plato empregam frequentemente o termo alma para psique.

    Mente muito mais frequente na literatura contempornea. Normalmente no dizemos

    filosofia da alma e sim filosofia da mente. Embora tenhamos nos preocupado com a

    padronizao dos termos, em alguns casos, ser preciso conviver com dois. que por um lado

    teremos que acatar, por exemplo, o termo alma, pois o nosso texto base pertencente

    filosofia antiga. Isso significa que o uso de ambos os termos tem a ver com uma questo de

    coerncia. Mas bvio que cada caso ir obedecer a necessidade do contexto. Alm disso,

    qualquer estudioso atento do Teeteto se apercebe que a palavra alma tem muito a ver com

    mente.

    4 A edio cujas citaes aparecero no texto toda ela extrada do Teeteto. Trad. de Adriana M. Nogueira e M. Boeri. Lisboa: FCG, 2005.

  • 1 QUESTES FUNDAMENTAIS SOBRE O TEETETO DE PLATO

  • 18

    1.1 Observaes essenciais sobre o Teeteto

    O Teeteto tem algumas peculiaridades que por si constituem um fato curioso. Entre

    elas, podemos citar como mais importantes as seguintes: ele um Dilogo estritamente

    epistemolgico, omite a teoria das Ideias, supostamente nega a teoria da anamnese e tem

    como inquiridor o Scrates recalcitrante, tpico dos Dilogos do perodo da juventude.

    bvio que cada Dilogo tem as suas peculiaridades, mas nem todos so to conhecidos, alis,

    alguns so pouquissimamente estudados. Os mais conhecidos so normalmente lembrados por

    alguma peculiaridade marcante. O Sofista, por exemplo, lembra o parricdio de Parmnides, o

    Timeu a clebre referncia ilha de Atlntida, o Parmnides as duras crticas teoria das

    Ideias e a Repblica a alegoria da caverna. Sobre o Teeteto ao menos possvel afirmar que

    ele no recorre teoria das Ideias e nem s reminiscncias. Isso simplesmente indiscutvel.

    E o mais interessante o fato de ele tratar da maiutica sem recorrer anamnese e tratar de

    conhecimento sem recorrer s Ideias. Mas ao mesmo tempo, ele contm caractersticas

    comuns a outros Dilogos, por exemplo, aportico como muitos outros e mantm a habitual

    repulsa platnica em relao aos sofistas.

    Por tradio o Teeteto dividido em trs partes, cada qual trata de uma respectiva

    definio do conhecimento. No entanto, apontaremos seis definies, pois, de fato, ocorre um

    total de seis. Normalmente os estudiosos apontam e falam praticamente em trs, em funo de

    haver relevncia e reflexo em apenas trs delas. Contornaremos a questo classificando as

    trs definies principais como os trs Filhos de Teeteto, pois, o prprio texto procede desse

    modo. A expresso Filho de Teeteto tem a ver com a linguagem metafrica socrtica, de

    acordo com a qual o ser humano d a luz ao conhecimento. As definies que so dadas por

    meio do processo maiutico so como uma espcie de filho epistemolgico. Desse modo,

    podemos dizer que o Dilogo contm um total de seis definies, mas como fruto maiutico

    apenas trs. Pela ordem so:

    1 Conhecimento sabedoria (Tht. 145e); 2 Conhecimento o conhecimento de uma arte qualquer (Tht. 146c-147c); 3 Conhecimento percepo (Tht. 151e); 4 Conhecimento opinio (Tht. 187a); 5 Conhecimento opinio verdadeira (Tht. 187b); 6 Conhecimento opinio verdadeira acrescida de um logos (Tht. 201c-d).

    Os trs Filhos de Teeteto so respectivamente: o conhecimento como percepo, como

    opinio verdadeira e como opinio verdadeira acrescida de um logos. Vale a pena salientar

    que a primeira de todas as definies , na verdade, uma definio que dada antes da

  • 19

    pergunta oficial ser lanada por Scrates e antes da introduo da maiutica. De acordo com

    Santos, trata-se de uma definio apenas com o objetivo de provocar a resposta de Teeteto. Se

    bem que no seja uma definio que tenha muita relevncia para a investigao, diz o autor,

    ela no deve ser totalmente preterida5. Contudo, bvio que ela realmente no tem qualquer

    relevncia. Bostock, por sua vez, diz que essa definio tratada de modo irnico e tambm

    reconhece a sua insignificncia para a investigao6. Em sntese, somente os trs supostos7

    Filhos de Teeteto que tm importncia filosfica para investigao.

    A primeira parte do Dilogo a que se ocupa com a definio do conhecimento como

    percepo, a segunda como opinio verdadeira e a terceira como opinio verdadeira acrescida

    de uma justificao, ou opinio verdadeira acrescida de um logos ou ainda crena verdadeira

    justificada.

    O Teeteto , com certeza, um Dilogo muito difcil e essa dificuldade cresce

    gradativamente, ou seja, cresce proporo que avanamos por entre suas pginas. Cobb-

    Stevens tem razo quando assinala que provavelmente ele seja um dos Dilogos mais

    paradoxais8. Ele contm raciocnios bastante complicados e alguns chegam a ser obscuros9. O

    tema central o conhecimento, o qual Scrates pretende investigar a todo custo. Contudo,

    logo aps algumas investigaes cuidadosas, comeam as digresses. Alis, o Dilogo , na

    verdade, permeado por digresses. Em princpio, podemos adiantar que uma parcela

    importante do texto no se ocupar estritamente com o tema estabelecido. Aproximadamente,

    dois teros de toda a investigao so consumidos na primeira parte, na qual Scrates sem

    perda de tempo desfere duras crticas ao velho Protgoras. A equivocada definio de

    conhecimento apresentada por Teeteto como percepo ser propositadamente imputada a

    esse sofista10.

    A segunda parte ela, prpria uma explcita digresso11, em direo quilo que se

    contrape ao conhecimento, a saber: a opinio falsa. que a essa altura do Dilogo, a

    5 SANTOS, Jos T. In: Teeteto. Lisboa: FCG, 2005, p. 23. 6 BOSTOCK, D. Platos Theaetetus. Oxford: Clarendon Press, 1988, p. 32. 7 importante salientar que no final da investigao Scrates ir declarar que Teeteto no gerou um filho sequer. De acordo com o extremo rigor da investigao at mesmo os Trs Filhos sero abortados em nome da inexorvel aporia. Considere-se nesse caso que um Filho significa nada mais que a perfeita definio do conhecimento. A expresso supostos Filhos de Teeteto acima no texto, devido a aporia final, pois, na verdade, nenhuma das gestaes do jovem ser bem sucedida, ele no ter nenhum filho. 8 Cf. COBB-STEVENS, 1989. p. 247 9 Esse o caso das doutrinas secretas de Protgoras (Tht. 152b-154a; 155d-157b; 182a-b) e da refutao do segundo logos. Tht. 207d-208b. 10 Cf. Tht. 151e-152a. 11 Santos usa tanto o termo deslize como tambm digresso quando se refere aos desvios de argumentao. Os principais desvios, tais como o da investigao do conhecimento para o da investigao do logos, so digresses (ou deslizes). E, alis, o arrependimento pelo deslize insinuado no fim da segunda parte, nada mais

  • 20

    definio de conhecimento opinio verdadeira, porm os dialogantes decidem investigar a

    opinio falsa. No entanto, a segunda parte tambm pode ser encarada como uma continuao

    implcita do argumento. Nesse caso, a referida digresso seria meramente aparente. que, de

    certo modo, a investigao da opinio falsa pressupe uma investigao indireta da opinio

    verdadeira. E, de fato, o que encontramos nessa parte uma clara investigao sobre o

    conhecimento. Alguns conceitos epistemolgicos importantes so desenvolvidos nela. A

    allodoxia, por exemplo, pe termo crua perspectiva ontolgica na qual a sofstica tinha por

    hbito se refugiar12. O conceito de alma, enquanto significando a mente ou o Eu cognoscente,

    coloca a investigao sob um patamar invejvel13. A autonomia da alma introduzida no

    eplogo da primeira parte, mas a sua aplicao s se d a partir da segunda propriamente dita.

    A prpria forma de abordagem de toda a segunda parte , sem dvida, muito mais reflexiva

    que a primeira, pois ocorre, por assim dizer, uma migrao para uma espcie de filosofia da

    mente.

    O pretexto de Scrates para abordar a opinio falsa foi indiscutivelmente um pretexto

    certeiro, visto que acabou por promover uma franca fluncia filosfica. No entanto, cada um

    dos belos raciocnios expostos ser contestado por um altercado interlocutor imaginrio. Os

    dialogantes, ento, pretendero saber como que ocorre uma opinio falsa. O princpio

    estabelecido para a investigao a seguinte: s h duas alternativas epistemolgicas:

    que uma retrica. O autor tambm fala nos interldios. Estes se diferem das digresses por se tratar apenas de interrupo das argumentaes com o objetivo de preparar a transio para outra. As digresses por sua vez consistem em mudana de assunto. SANTOS, In: Teeteto, 2005. p. 6-8; 13. O trecho que denominamos de manifesto maiutico (148e-151d), para o autor trata-se de um interldio. Idem, p. 24. 12 Tht. 189a-e. O argumento enquanto resoluo ontolgica, na verdade, no ser explorado no Dilogo. Essa uma tarefa que ser desempenhada no Sofista. 13 A definio e a descrio exata de psique certamente uma tarefa difcil em qualquer campo, seja na psicologia, na teologia ou na filosofia. De igual modo, tambm nada simples querer diferir o que a alma para os gregos antigos e o que a alma para os cristos. Embora esta ltima tenha suas origens na cultura e na filosofia grega, ambas so evidentemente distintas. O que se poder adiantar aqui apenas uma nota clarificadora para a sua compreenso no contexto platnico e mais precisamente para a compreenso desta tese. Mesmo estritamente na Grcia antiga o termo teve muitos significados. Em Homero a psique () era a respirao da vida e algo ligado ao movimento. Para os pr-socrticos, embora de modo intermitente ela tambm tinha conexo com a respirao. Cf. PETERS, p. 199. Se nos primeiros Dilogos platnicos encontramos fortes caractersticas rficas, noutros a psique j est dotada de capacidades cognitivas e com sentido mais estritamente epistemolgico. Este o caso do Teeteto (184b-186d). Nesse Dilogo ela tida como um tipo de rgo especial que faz uso dos cinco sentidos do corpo com o objetivo de conhecer. Na Repblica h uma exaustiva psicologia de carter tico, poltico e, por assim dizer, emocional. O Timeu (69e-75d), um Dilogo tardio, indica alguns locais especficos no corpo onde se encontram partes da psique. A parte racional, por exemplo, situada na cabea. Castro diz que Plato ao apontar diferentes caractersticas do sujeito em partes especficas da psique, lembra os frenologistas do sculo XIX e os neurocientistas contemporneos. Tanto estes como aquele pretendiam associar funes mentais especficas com estruturas distintas do corpo. CASTRO, 2011. p. 808. Enfim, podemos sintetizar afirmando que a psique um tema frequente em Plato e que tambm algo com capacidades cognitivas. Os termos mente e alma obviamente nem sempre podem ser considerados sinnimos embora muitas vezes sejam os termos usados para a traduo de psique. Cf. tambm a opinio de SANTOS, 2005. p. 116.

  • 21

    conhecer ou no conhecer14. Uma coisa ou outra. Mas esse princpio acabar por criar um

    enorme problema, cuja consequncia ser inevitavelmente uma inrcia absoluta. Santos

    assinala muito bem quando remonta essa inrcia ao velho Parmnides. O altercado

    imaginrio15, baseado nessa inrcia, provocar ento, uma serie de aporias destrutivas e

    sacudir a imaginao dos dialogantes. A condio imposta por esse altercado pode ser

    resumida da seguinte forma: s h opinio falsa se e somente se algum que conhece algo,

    no conhece aquilo que conhece16. bvio que se trata de uma condio que oferece uma

    alternativa, por meio da qual, apenas se permuta um absurdo por outro e isso far com que a

    realizao da opinio falsa se torne um enigma. A segunda parte , portanto, explicitamente

    apresentada como uma digresso pelos prprios dialogantes, no entanto, faz ao mesmo tempo

    uma verdadeira epistemologia17.

    A terceira parte tambm faz uma digresso, visto que o objeto da investigao passa a

    ser centrado no logos e no na episteme. Mas tal como na segunda parte, o que ocorre

    tambm uma investigao indireta do conhecimento, a despeito da enorme amalgamao

    entre os dois conceitos, isto , entre episteme e logos18. De certo modo, acaba tambm por no

    ser muito seguro afirmar que a terceira parte uma digresso do objetivo central. E sequer

    poderemos cham-la de protelao, pois o que os dialogantes pretendiam era, de antemo,

    depurar o termo logos a fim de acopl-lo opinio verdadeira. mais correto falar em um

    desfecho inacabado do que em uma digresso ou protelao. A terceira parte do Dilogo

    aparentemente concluda sem a realizao da investigao do terceiro Filho de Teeteto, ou

    seja, da definio como opinio verdadeira acrescida de um logos. A terceira parte, enquanto

    a parte do desfecho final do Dilogo coincide com a aporia final, ou seja, a investigao

    definitivamente suspensa e a aporia declarada. O argumento propriamente dito que refuta a

    definio tripartite tal como o anterior, sucinto e determinante, pois o que visa apenas

    perpetrar a refutao.

    14 , ou seja, sab-las ou no sab-las. Tht. 188a-b. 15 SANTOS, 2005, p. 124. Refutador imaginrio uma expresso que nos parece bem pertinente, pois, Scrates ao pretender refutar um argumento, s vezes tenta esquivar-se alegando que um suposto refutador impertinente os atacaria de tal e tal modo e, diante da situao acaba por abandonar o argumento recm-criado. 16 Ou no h opinio falsa, ou podemos no saber o que sabemos. Tht. 196c. Estamos de acordo com Burnyeat (1998, p. 67), quando reconhece que o prprio Scrates platnico, em princpio no afirma que a opinio falsa seja impossvel, apenas mostra-se perplexo por no compreender como ela gerada. Diante disso, ento decide investig-la. 17 Cf. o trecho no qual Scrates insinua querer discutir a opinio falsa e os interlocutores assentirem alegando que a verdadeira filosofia no deve ser feita s pressas. Tht. 187d-e. Tambm razovel supor que ao investigar a opinio verdadeira tambm se investiga simultaneamente a opinio falsa. Para Chappell a terceira parte do Dilogo, de algum modo, prossegue com a questo esquadrinhada na segunda, isto , a opinio falsa. CHAPPELL, 2005, p. 198. 18 Mas a amalgamao inicial , ao que parece, entre opinio verdadeira e logos.

  • 22

    Do mesmo modo que a segunda, a terceira parte tambm apresenta alguma faceta

    implcita, ou seja, uma continuao indireta da investigao da episteme19. que toda a

    anlise feita em torno do logos tambm uma anlise do conhecimento, embora fora do

    propsito estabelecido. Aos poucos nos apercebemos que o tal logos ali em causa acaba por se

    tornar, ele prprio, confundido com o conhecimento. E, ao que parece, provvel que devido

    complexidade da questo haja uma propenso natural confuso. Far-se- necessrio san-

    la a todo custo no sentido de fazer com que os dois conceitos sejam distinguidos.

    Scrates apresentar um total de trs conceitos de logos, mas nenhum atingir o

    objetivo requerido. O primeiro deles ser supostamente tido como simples demais e o

    segundo e o terceiro insuficientes. Contudo, podemos assegurar que o segundo ser o mais

    complexo e profundo de todos e o terceiro, talvez o mais completo e o mais eficiente quanto

    ao empreendimento proposto. Em outros termos, o terceiro logos que poderia melhor se

    enquadrar como complemento definio do conhecimento.

    Em sntese, uma boa parte do Dilogo faz seguramente uma investigao em torno da

    episteme, embora de modo pouco sistemtico. As passagens da primeira parte, voltadas para o

    relativismo protagrico no parecem realmente imprescindveis ao programa. Elas so talvez

    as passagens mais furtivas do Dilogo. O que de um modo geral tratado como digresso

    propriamente dita o trecho 172c-177c, no qual, Scrates e Teodoro traam o perfil do

    verdadeiro filsofo. Uma digresso que em nada compromete a finalidade estabelecida.

    Guthrie com razo lembra que a despeito das digresses, o Teeteto ainda mais ordenado e

    sistemtico que muitos outros Dilogos20. Se o Teeteto peca, outros Dilogos ainda pecam

    mais. A sua grande frustrao inevitavelmente a aporia final. Contudo, o que em ltima

    anlise, parece realmente consistir no maior dos defeitos cometidos no Teeteto so as

    refutaes coagidas. Mas bvio que tais refutaes so suscitadoras da aporia. Mas sobre a

    aporia propriamente dita trataremos numa seo parte e sobre a coero dos argumentos, no

    decorrer de boa parte desta tese.

    Desde a primeira at a ltima parte encontramos alguns raciocnios verdadeiramente

    magnficos. Dentre os quais destacamos: o syllogismos, o qual arremata a primeira parte e, por

    isso mesmo, podemos tambm nos referir a ele como o argumento do eplogo da primeira

    19 Sedley diferencia a terceira parte da segunda e da primeira do seguinte modo: Despite its failure, there is a further respect in which part III is more Platonic in spirit than anything that precedes it. In parts I and II the discussion of knowledge focused on ordinary cases of knowing that: knowing that the wind is cold, that such and such an action will be beneficial, that so and so committed the crime. Part III has turned the focus onto the topic of knowing, of something, what it is. SADLEY, 2004, p. 178. 20 GUTHRIE, W. K. C. A history of Greek philosophy: the later Plato and the academy. Cambridge: Cambridge University Press, 1995. v. 5. p. 71.

  • 23

    parte21; outros argumentos como os do bloco de cera, o do avirio e a teoria do atomismo,

    sero aniquilados sucessivamente, alguns de maneira lamentvel e coerciva. Esse fato parece

    sugerir que, desde o incio, Plato j tinha em vista concluir o Dilogo em aporia.

    A fim de abarcar ainda outras questes, vamos resumir o Dilogo do seguinte modo: O

    velho Scrates, o velho Teodoro e o jovem Teeteto renem-se para investigar o

    conhecimento. Scrates faz um acordo determinando que a sua participao na discusso seja

    a de um mero inquiridor. E, por isso, ele prprio no poder ser considerado autor de

    nenhuma eventual descoberta filosfica. A tarefa de ser um genuno autor ser atribuda

    apenas a Teeteto, isto , apenas o jovem Teeteto ser considerado o autor das declaraes. A

    sua primeira importante resposta pergunta de Scrates : conhecimento percepo.

    Imediatamente essa definio associada a Protgoras que por sua vez associado a

    Herclito. Assim, percepo algo que se torna atrelado ao relativismo e ao fluxismo. De

    maneira perspicaz Scrates revela-nos que o sofista tem uma doutrina secreta, mas que nada

    mais do que uma espcie de fuso de teorias sensitistas22.

    A misso de Scrates refutar o sensitismo e, segundo a observao que faz,

    necessrio passar pelo relativismo, ou seja, necessrio primeiramente refutar o relativismo.

    O Dilogo despende uma parcela importante da investigao em torno do relativismo, seja no

    sentido epistemolgico ou tico. E muito esparsamente tambm no sentido teolgico, pois

    sobre os deuses Protgoras se recusa a escrever se eles existem ou no23. A crtica, na

    verdade, no aparece de maneira ininterrupta e sim alternada com a crtica ao sensitismo. At

    ao eplogo da primeira parte, Scrates intercala louvores e stiras, anuncia e censuras ao

    21 Esse um argumento que, com certeza, iria ecoar por entre a posteridade. que se trata de uma espcie de esboo sobre duas correntes filosficas antagnicas, a saber: a racionalista e a empirista. Bem antes de fazer a viragem dianotica, Scrates pretende saber se so os sentidos ou a alma que conhece. Afinal, so os olhos quem v ou a alma quem v por meio deles? Obviamente no se trata de um esboo completo, pois no est em questo o querer saber se o conhecimento inicia na mente ou se inicia com a sensao. Tambm vale a pena salientar que a virada filosfica para o campo mental, com efeito, no faz do Teeteto um Dilogo racionalista, visto que algumas passagens mais adiante tendem mais para algum tipo de empirismo. De qualquer modo, o questionamento suscitado consiste num esboo precioso. Diz Scrates: [...] a alma investiga umas coisas atravs de si prpria e as outras atravs das potncias do corpo []. Ento, o saber no est nas sensaes, mas no raciocnio (, isto , no syllogismo) sobre elas [...]. Tht. 185e; 186d. Kant poder ser considerado um verdadeiro aperfeioador desse esboo platnico. A sua formulao sobre a aquisio do conhecimento realmente louvvel. Ou seja, para ele, so as intuies e os conceitos juntos que geram o conhecimento. A sua formulao soa como uma mxima epistemolgica: Pensamentos sem contedo so vazios; intuies sem conceitos so cegas [...]. Estas duas capacidades ou faculdades no podem permutar as suas funes. O entendimento nada pode intuir e os sentidos nada podem pensar. S pela sua reunio se obtm conhecimento. Cf. KANT, KRV, B 74-76. Para o Scrates do Teeteto realmente a alma quem conhece tanto os objetos mentais quanto os sensveis. Contudo, ela o faz por meio dos sentidos. Sem eles, ela certamente nada conheceria. Ser sempre necessrio a atuao da alma e a dos sentidos, exatamente como alega Kant. 22 Cf. Opinio semelhante em LEE, Mi-Kyoug. The secret doctrine: Platos defence of Protagoras in the Theaetetus. OSAPh, 19, 2000, p. 47, 50, 57. 23 Tht. 166e.

  • 24

    velho sofista. Ora Protgoras o homem mais sbio da Hlade24, ora no mais sbio que

    uma r25. Na verdade, os argumentos estritamente epistemolgicos apresentados na primeira

    parte sero mais bem analisados na segunda. Tanto as doutrinas secretas assim como a

    dualidade entre memria e percepo e tambm a autossuficincia da alma sero perscrutadas

    principalmente na segunda parte.

    A primeira censura tese sensitista feita por meio da confrontao com as chamadas

    percepes falsas26, a segunda, pela confrontao com a memria e a terceira desferida

    diretamente contra o relativismo, apresentada atravs do famoso argumento da auto

    refutao27. Duas importantes intervenes de Scrates na primeira parte so as do manifesto

    maiutico e a da metfora dos dados. A primeira, de certo modo, isenta Scrates de toda a

    responsabilidade quanto s decises alcanadas na investigao. A segunda serve, ao que

    parece, apenas para chamar a ateno de Teeteto quanto ao verdadeiro esprito filosfico.

    Trata-se de um raciocnio tipicamente socrtico-platnico, mas que no se desenrolar por

    entre o Dilogo, pois posto de lado logo em seguida28.

    A passagem que compreende a digresso propriamente dita do Dilogo29, na sua maior

    parte, preocupa-se em dar as caractersticas do verdadeiro filsofo. Este rotulado como uma

    espcie de pessoa puramente intelectual avessa s preocupaes humanas. Trata-se de uma

    passagem que tem muitas semelhanas com passagens da Repblica30, na qual, Plato

    discorre sobre o perfil do verdadeiro filsofo. Esta digresso , sem dvida, a parte mais

    descontrada do Dilogo e poderamos at rotul-la como O recreio do Teeteto. No toa

    que ao fim desse trecho Teodoro admite que o assunto ali tratado, bem mais fcil de ser

    acompanhado do que a reflexo sobre o conhecimento31. Trata-se, na verdade, de uma

    passagem da qual pouco proveito se extrai para a questo central do Dilogo. Todavia, no

    um trecho intil, pois encontramos nele, por exemplo, um respaldo quanto fundamentao

    tica de toda a epistemologia desenvolvida na segunda parte. O verdadeiro filsofo ali

    descrito , sobretudo, uma pessoa sincera e justa. Conceitos esses, essenciais e

    24 Tht. 160d. No Protgoras Plato compara-o com Orfeu. Prt. 315b. 25 Tht. 161d. 26 , isto , sensaes ou percepes falsas.Tht. 158a. 27 Tht. 161c-162d. 28 Cf. respectivamente: 148e-151d; 154b-155d. 29 Tht. 172c-177c. 30 Essa tambm a opinio de David Bostock. BOSTOCK, 1988, p. 98. 31 Tht. 177c. Entenda-se por recreio um intervalo inserido durante um turno de atividades investigativas, de lies acadmicas ou colegiais. Nesse caso, trata-se de um recreio somente quando a sua discusso comparada com a discusso central. Observe-se que nessa passagem h meno pilhrica estria sobre o tombo de Tales. Santos (2005, p. 88) em sua introduo ao Teeteto simplesmente no discute esse trecho alegando a sua irrelevncia para a compreenso do argumento proposto no Dilogo. Classific-lo como recreio no significa que o consideramos irrelevante, mas apenas uma passagem cujo contedo menos rido.

  • 25

    imprescindveis na investigao cientfica. Vejamos, por exemplo, uma observao

    interessante feita por Scrates: o conhecimento da limitao humana ante a magnificncia

    divina sabedoria, o seu desconhecimento ignorncia32. Algumas questes tratadas nesta

    digresso tambm sero abordadas mais adiante na confrontao final do relativismo tico e

    poltico, em 177c-179d.

    A primeira parte, conforme j foi visto, concluda com o belo e determinante

    argumento do syllogismos, o qual coloca a alma como mago epistemolgico.

    Fundamentados, ento, sobre esse argumento iniciam a segunda parte. A alma torna-se

    doravante aquela coisa que verdadeiramente conhece e o corpo torna-se restrito s percepes.

    A alma capaz de emitir uma opinio, coisa que ao corpo impossvel. Assim, o conhecer

    definido como opinar, alis, o conhecer o opinar corretamente. que a opinio pode ser

    tanto verdadeira como falsa33. Ao invs de concluir a investigao, Scrates ignora esse

    explcito sucesso e desvia a ateno dos demais. Ele suplica aos seus interlocutores a

    permisso para investigar a opinio falsa ao invs da opinio verdadeira. Doravante a

    investigao enveredar por sendas abissais a fim de compreender a ocorrncia da opinio

    falsa.

    Uma leitura bem atenta dessa parte do Dilogo mostra como no difcil criar

    confuses filosficas, mesmo quando no se tem a inteno de cri-las. Um exemplo sobre

    essa propenso confuso o quadro das catorze hipteses, por meio das quais, impossvel

    opinar falso34. Trata-se de uma passagem que nos mostra o franco desejo de Plato em

    salientar a dualidade entre a percepo e o doxazein35. A alegoria do avirio parece atingir os

    32 Tht. 176c. Cf. Euthd. 281e onde a sabedoria tambm identificada com o bem e a ignorncia com o mal. 33 Tht. 187b e tambm Phlb. 37a-b. 34 Tht. 192a-c. 35 Em princpio, Scrates assegura que quando nada se conhece nada se erra. E quando se conhece apenas uma coisa e no se percebe nada, tambm no possvel errar. que a opinio falsa a essa altura uma mera allodoxia, cuja natureza requer, ao menos, um par de objetos para que ela ocorra. Por meio das oito primeiras hipteses impossvel errar, da nona em diante a impossibilidade ainda maior. Eis a sntese desse quadro fatigante: impossvel crer que: 1- O que algum sabe e no percebe algo diferente do que percebe; 2- O que algum sabe algo alm do que no sabe; 3- O que algum no sabe algo que no sabe; 4- O que algum no sabe algo que sabe; 5- O que algum percebe algo diferente do que percebe; 6- O que algum percebe algo que no percebe; 7- O que algum no percebe algo que no percebe; 8- O que algum no percebe se encontra entre aquilo que percebe; ainda mais impossvel crer que: 9- O que algum sabe e que percebe diferente do que sabe e percebe; 10- O que algum sabe e percebe o que sabe; 11- O que sabe e percebe aquilo que percebe; 12- O que algum no sabe, nem percebe, o que no sabe, nem percebe; 13- O que algum no sabe, nem percebe aquilo que no sabe; 14- O que algum no sabe, nem percebe aquilo que no percebe. Essas hipteses so elaboradas no contexto da alegoria do bloco de cera. tambm pelo fato de se estar preso a essa alegoria que se tornou necessrio estabelecer essa dualidade to profunda. Plato certamente estava ciente da forte propenso ambiguidade e confuso dessas catorze hipteses. fcil aperceber-nos que algumas acabam por se tornarem semelhantes a outras. Teeteto acaba por admitir que a sua cabea fica cada vez mais confusa com as explicaes dadas por Scrates e, principalmente aps a exposio dessas hipteses. Os dois trechos em itlico nas hipteses 12 e 13 significam que so uma adaptao da traduo de Cornford. As tradues dessa

  • 26

    limites da capacidade racional36. Os dialogantes acabaro por cessar a discusso ante as

    dificuldades que pareciam no ter fim. Enfim, a segunda parte do Teeteto mostra como o

    investigador muitas vezes propenso a criar labirintos filosficos.

    Finalmente, a terceira parte apresenta alguns raciocnios profundos como os da

    segunda. E alm da propenso confuso, ocorre uma verdadeira insuficincia argumentativa

    principalmente na preterio da segunda definio de logos. A teoria atomista um

    argumento sublimemente filosfico. O primeiro logos no oferece muita discusso aos

    dialogantes, o terceiro poderia ter oferecido muito mais, porm Plato resolve cessar o

    Dilogo.

    Uma investigao estrita e direta sobre o conhecimento no ocorrer de maneira

    perene em nenhumas das trs partes do Dilogo. A primeira oscila para o relativismo, a

    segunda para a opinio falsa e a terceira para o logos. No entanto, a segunda e a terceira

    fazem-no de maneira indireta, isto , investiga o conhecimento de um modo indireto. Enfim,

    importante ter em mente que o Teeteto um texto que no um tratado e sim um Dilogo.

    1.2 A questo da presena teoria das Ideias no Teeteto

    E as Ideias esto presentes ou no no Teeteto? Essa uma questo polmica entre os

    estudiosos. Diante disso pareceu-nos conveniente traar ao menos algumas observaes

    parte. Em princpio, afirmamos com todas as letras que elas no esto presentes, pois o

    prprio Dilogo parece-nos bastante claro sobre isso.

    indiscutvel que a maior marca da filosofia platnica a teoria das Ideias37. Contudo,

    ela no a nica, h outras tambm relevantes, embora de menor peso. A maioria dos estudos

    introdutrios sobre Plato versa sobre a teoria das Ideias, o que significa uma medida natural.

    Mas preciso ter em mente que a omisso dessa teoria num estudo sobre Plato no pode ser

    encarada como um defeito. plenamente natural a algum querer fazer um estudo sobre

    passagem normalmente no conferem entre si. Na de Jowett, a 9 hiptese est antes da observao de Scrates sobre as que so mais impossveis. Nesse caso, ela estaria entre o grupo das menos impossveis. At a 11, a traduo de N. e Boeri confere com a de Jowett, mas na 12 falta um no percebe presente na de Jowett. Na 13 de N. e Boeri onde est o ltimo no percebe, na de Jowett est no sabe. Na de Jowett h uma 14 hiptese, mas que coincide com a 13 de N. e Boeri. Para uma melhor compreenso de toda a questo vale a pena conferir de 192a at 194b. 36 Nessa alegoria Scrates estabelece a diferena entre ter () e possuir () alguma coisa. Para Taylor essa distino antecipa os conceitos de potncia e ato estabelecidos mais tarde por Aristteles. Cf. TAYLOR, A. E. Plato: the man and his work. 6. ed. London: Methuen, 1949. p. 343. Cf. tambm, GUTHRIE, 1995, p. 111. MCDOWELL, J. In: Theaetetus. Oxford: Clarendon Press, 1973. p. 220. Em termos lgicos, diz Burnyeat (1990, 106,109), possuir significa uma capacidade e ter significa o exerccio dessa capacidade. 37 bvio que essa uma opinio de consenso. Cf. por exemplo, SILVERMAN, A. The dialectic of essence: a study of Platos metaphysics. Princeton: Princeton University Press, 2002. p. 1.

  • 27

    Plato sem abordar as Ideias. Todo estudioso da filosofia platnica sabe que em alguns

    Dilogos simplesmente no h meno s Ideias. O maior e o ltimo de todos, isto , as Leis,

    simplesmente no as menciona. No nos parece uma atitude importante querer dizer que neste

    ou naquele trecho isolado de tal e tal Dilogo h uma referncia implcita s Ideias. No

    Teeteto, alegamos sem qualquer rodeio, que no h meno a elas, embora isso no queira

    dizer que haja a sua negao. Neg-la ou no uma questo parte e foge do propsito desta

    pesquisa. Eis o que diz Bostock sobre o problema: No Teeteto a teoria das Ideias (embora

    presente), no aparece de modo evidente e, em princpio, ela realmente no parece ser um

    tema relevante para o argumento principal do Dilogo38. Mesquita, por sua vez, diz que as

    Ideias esto presentes de cabo a cabo, embora de modo implcito e que as definies falham

    exatamente por isso39. Ferrari tambm alega que elas esto presentes, porm de modo

    implcito, ou seja, elas so evocadas apenas atravs de vagos acenos40. Todavia, uma

    anlise realmente a fundo desmente essa posio. preciso salientar que a presena e a

    limpidez das Ideias no reverteriam as aporias. Com ou sem Ideias, em nenhum Dilogo

    Plato definiu o conhecimento. Muitos autores infelizmente sustentam que a ausncia das

    Ideias quem determina a aporia no Teeteto41.

    No h, na verdade, uma opinio unanime sobre a presena das Ideias no Teeteto.

    Chappell assinala, em princpio, duas correntes antagnicas, isto , h os que dizem que, de

    modo geral, elas esto presentes e h os que o negam. O autor defende uma posio

    moderadora e assinala que o extremismo torna implausvel tanto uma como outra corrente

    filosfica42. Em princpio, no parece que existam razes suficientes para supor que Plato

    tenha abandonado a sua teoria. Mas no Teeteto podemos estar certos de que ele, ao menos,

    no quis manuse-la. O Timeu , certamente, um dos maiores obstculos aos defensores da

    tese do abandono. Nesse caso, estamos levando em conta o fator cronologia, ou seja, a

    posterioridade do Timeu em relao ao Parmnides e ao Teeteto43. Os Dilogos que

    supostamente sugerem o abandono das Ideias so exatamente o Parmnides, o Teeteto e o

    38 BOSTOCK, 1988, p. 7. Sobre a teoria das Ideias no Teeteto eis uma nota importante de Taylor: Possibly the most striking feature of the whole dialogue is its silence on a matter about which we shoud have expected to hear something. Plato has written a long and elaborate discussion of knowledge without making a single reference to the doctrine of forms, though we might have thought it almost impossible for him to keep it out of the argument against relativism. TAYLOR, 1949, p. 348. 39 MESQUITA, Reler Plato: ensaio sobre a teoria das Ideias. Lisboa: INCM, 1993, p. 304. 40 FERRARI, F. O sonho de Scrates: problemas, aporias, possveis solues. In: SANTOS, J. T. (Ed.). Do saber ao conhecimento: estudo sobre o Teeteto. Lisboa: CFUL, 2006, p. 104. 41 Entre eles, Gulley. Cf. GULLEY, N. Platos theory of knowledge. London: Methuen, 1962. p. 103; 106. E ao que parece, tambm Jos Loureno P. da Silva em: SILVA, 2010, p. 150. FERRARI, 2006, p. 104; 109. 42 CHAPPELL, T. Reading Platos Theaetetus. Cambridge: Hackett Company, 2005, p. 21. 43 Essa parece ser a mesma opinio de Iglsias. Cf. IGLSIAS, M. In: Plato. Parmnides. So Paulo: Loyola, 2003. p. 8.

  • 28

    Sofista. Contudo, no muito seguro dizer que o Sofista no trabalha com a teoria das Ideias.

    E tambm necessrio que tenhamos alguma cautela com a questo da cronologia dos

    Dilogos a fim de no criarmos obstculos inteis. Sobre essa cautela muito valiosa a

    observao de Casertano que diz que o fato de Plato haver efetuado correes nos Dilogos,

    pode por em risco as avaliaes estilomtricas44. Lafrance diz que a problemtica no Teeteto

    realmente no comporta as Ideias. Para esse autor a busca pela definio do conhecimento

    feita num sentido mais proposicional e psicolgico45. Mesquita com o objetivo de socorrer a

    teoria das Ideias no Parmnides, elabora uma sada a partir da primeira hiptese: se o Uno .

    Os resultados do primeiro argumento da primeira hiptese46 so, de fato, totalmente

    negativos. Para o autor as negaes do jovem Aristteles so meramente uma negao

    efetuada a partir de uma perspectiva sensvel. somente por isso que elas so negadas, pois

    simultaneamente elas tambm sempre negam o sensvel47. Diz o autor: luz profunda do

    Dilogo, as negaes da Ideia tornam-se assim no j afirmaes da Ideia, mas afirmao da

    Ideia como negao48. Nesse caso, o autor est considerando o Uno do Parmnides como

    Ideia, o que no algo garantido. E bvio que as negaes no se traduzem em qualquer

    afirmao da Ideia enquanto negao.

    Na apreciao da segunda resposta dada por Teeteto encontramos uma suposta aluso

    s Ideias. Ao dirigir a sua pergunta a Teeteto, Scrates realmente parece estar insinuando para

    que seja respondida de acordo com os requisitos da teoria das Ideias49. Entretanto, Teeteto,

    que tambm uma mera personagem platnica, h de procurar conduzir a investigao sem

    recorrer teoria. De uma coisa podemos estar bem certos: os parmetros sob os quais o

    44 CASERTANO, G. In: SANTOS, Jos T. (Ed.). Do saber ao conhecimento: estudo sobre o Teeteto. Lisboa: CFUL, 2006. p. 139. 45 LAFRANCE, Y. La thorie platonicienne de la doxa. Montreal, Bellarmin, Paris: Les Belles Lettres, 1991. p. 225. Sobre a teoria das Ideias no Teeteto, ele ainda faz uma importante observao. Primeiramente ele pergunta: Quelle est donc loriginalit pistmologique du Thtte par rapport la Rpublique, une fois que nous avons admis labsence de la thorie des Ides lintrieur de la problmatique du Thtte? E responde: Cette originalit se caractrise par une attention particulire apporte au sujet connaissant, au monde des phnomnes et au caractre propositionnel de la science. LAFRANCE, Y. 1991, p. 211. No final do captulo o autor arremata a sua posio. Ibid., p. 303. 46 Cf. a primeira hiptese: se o uno em Prm. 137c-142a 47 MESQUITA, A. P. A Natureza da Ideia platnica: o propsito de duas passagens-chave: Fdon 83b, Parmnides 141e-142a. Philosophica, 10, 1997. p. 66-74. 48 Idem, 1997, p. 74. 49 Tht. 148d-e. No eplogo da primeira parte correm expresses tais como (forma nica) em 184d para se referir alma, (o que comum) em 185b para expressar a capacidade extraordinria da alma em apreender mais de um objeto do conhecimento em detrimento da capacidade dos cinco sentidos do corpo, (a entidade ou o ser) em 186a; 186c para se referir quilo que mais aparece em tudo. Os clebres conceitos de: semelhante (), dissemelhante (), idntico () e diferente () tambm ocorrem embora muito ligeiramente em 186a. bvio que tais expresses aludem metafsica platnica, contudo, tanto a conciso desse trecho tanto quanto o contexto em geral no nos autorizam a afirmar que esto tratando das Ideias.

  • 29

    Teeteto escrito, inauguram um contexto peculiar. Um contexto que, em parte, pode ser

    considerado empirista, no sentido em que isento da metafsica. Na verdade, nem mesmo a

    manifesta preconizao da prerrogativa da alma explorada a partir da segunda parte, poderia

    garantir um rtulo racionalista ao Teeteto. O empirismo em questo significa um empirismo

    contraposto ao racionalismo tal como tradicionalmente entendido, em sntese, no sentido

    lockeano. Se, portanto, observarmos a partir dessa tica, ele no poder ser classificado como

    um Dilogo metafsico50 nem racionalista, pois prescinde tanto da anamnese como das Ideias.

    , sem dvida, um fato muito surpreendente um Dilogo platnico pretender atingir o

    conhecimento em si51 sem recorrer s Ideias. E um enorme equvoco querer rotular as

    Ideias e a anamnese como panaceias absolutas52. que o Mnon, por exemplo, aborda a

    anamnese, mas acaba em aporia e a Repblica aborda as Ideias, mas insuficiente com

    relao Ideia do Bem53. Basta-nos ler os livros VI e VII da Repblica para ficarmos

    convencidos de que Scrates apenas promete descrever a Ideia do Bem sem nunca a definir. O

    melhor que faz apresentar o smile do Sol, nesse caso, comparando o astro rei com a Ideia

    do Bem. O smile do Sol , alis, dado como uma espcie de juro de uma dvida cujo capital,

    na verdade, nunca h de ser quitado54. Ele insinua claramente que a sua protelao devido

    ao fato de o conceito em questo tratar-se de um conceito inefvel55. muito provvel que no

    Teeteto Plato tivesse preferido que Scrates mostrasse toda a sua habilidade sem recorrer s

    Ideias e dizer como tambm possvel ir to longe.

    1.3 Um breve perfil do jovem Teeteto

    Das trs personagens principais do Dilogo, apenas Teodoro devidamente

    classificado como sbio. Scrates o filsofo invulgar e Teeteto o jovem discpulo no de

    Scrates, mas de Teodoro. Este ltimo sbio num sentido bem tradicional do termo e

    igualmente respeitado pelos gregos. Sua sabedoria alm de ser daquela que os aristocratas

    gregos consideravam requintada, era tambm uma sabedoria especializada. A nossa contagem

    50 Sedley, ao menos em parte, tambm da mesma opinio visto que reconhece que o Scrates do Dilogo no um Scrates metafsico. Cf. SEDLEY, 2004, p. 156, 161, 167. Ressalte-se que ele reconhece apenas a personagem Scrates como no metafsico e no o prprio Plato. A opinio desse autor a de que o Plato da senectude to metafsico como o da juventude. Cf. Idem, p. 168. 51 Tht. 146e. 52 No Mnon Scrates recorre anamnese como soluo para o paradoxo do conhecimento. Cf. opinio semelhante em SANTOS, J. Trindade. In: Mnon, 1993, p. 24. 53 E, alm disso, pode-se at mesmo falar em suposta a faceta religiosa de Plato em relao Ideia do Bem. Ao menos a linguagem usada faz alguma insinuao. 54 R. VI 506e-507a. 55 R. VI 509b-c.

  • 30

    seria omissa se tambm no inclussemos Protgoras como um integrante do Dilogo. Se ele

    era apenas uma personagem imaginria, todos os outros tambm o eram. Todos faziam parte

    de um esboo do imaginrio platnico.

    Das declaraes de Teodoro pode-se esperar por uma sinceridade plena. Scrates e

    Teeteto confiam piamente no que ele diz. Antes de dialogar com Teeteto, Scrates j

    dialogava com Teodoro com quem se informava sobre o jovem56. Aquilo que o velho sbio

    transmite a Scrates , em princpio, uma informao segura e sincera at demais. Demasia

    essa que se confirma quando ele diz que Teeteto e o prprio Scrates so de fisionomias

    muito feias. E, alm disso, revela que as suas fealdades so tambm to parecidas de modo

    que um poderia servir de espelho para o outro57.

    De acordo com Teodoro, Teeteto, filho de Eufrnio, uma pessoa sublime, e daquele

    tipo de jovem com quem Scrates aprecia dialogar. O primeiro conhecimento revelado no

    Dilogo , na verdade, a descrio feita por Teodoro em relao a Teeteto. Se no um

    conhecimento descritivo, ele ao menos uma opinio verdadeira. Nesse caso, uma opinio

    verdadeira dada por Teodoro em relao a Teeteto. Scrates no desconfia da descrio feita

    por Teodoro, simplesmente cr e, ento, passa a inquirir o rapaz de acordo com as garantias

    do amigo sbio. Ao menos uma das descries feitas por Teodoro imediatamente

    confirmada: a fealdade de Teeteto. Este, no entanto, recusa-se em aceitar os elogios de

    Teodoro, porque o fato de admitir ser inteligente e virtuoso diante dos outros algo

    constrangedor. E, afinal, sua fealdade no entrar em questo, apenas a sua beleza de alma58.

    Teeteto, portanto, confia em Teodoro, mas ter de apresentar alguma relutncia, pois est

    diante de outras pessoas. Eis as qualidades que Teodoro atribui ao jovem: natureza espantosa,

    de aprendizagem rpida, gentil, excelente, corajoso, precoce em relao ao conhecimento,

    feio, estudioso, disciplinado, aristocrata e liberal. O elogio de Teodoro parece no ser

    suficiente para o convencer. Para ele Teodoro ainda continua a parecer um mentiroso59. O

    que est em jogo para Teeteto tornar-se o interlocutor principal de Scrates, proposta essa

    considerada muito sria. Ele no pretendia correr o risco de cometer erros em suas respostas e

    assim envergonhar-se a si prprio e tambm a Teodoro. Scrates alega que Teodoro um

    56 Tht. 143d-144d. 57 Sobre a semelhana entre Teeteto e Scrates em sentido dramtico cf. ARIETI, J. A. Interpreting Plato: the dialogues as drama. Maryland: Rowman & Littlefieldm Publishers, 1991. p. 165-183, passim. 58 Tht. 145a, 185e. 59 Tht. 148c.

  • 31

    sbio, uma pessoa que normalmente no galhofa60, nem ironiza e, por isso, Teeteto no teria

    razes para se preocupar.

    Scrates havia sido informado que com Teeteto poderia alcanar muito proveito

    filosfico, mas ao que parece, era preciso convenc-lo da sua capacidade. Capacidade esta

    que o prprio Teeteto parecia no saber que possua. Scrates compreende a relutncia do

    jovem, pois est de acordo que mesmo a informao de Teodoro tambm deve ser posta

    prova. Se Teodoro, por exemplo, discorrer sobre uma arte que no a sua, a sua informao

    no poder ser inteiramente confivel61. No entanto, ainda que no seja um professor de

    virtude, ele um sbio e sobre isso h um consenso. E enquanto sbio, bvio que tem a

    capacidade para supor o que virtude e o que conhecimento. Se Teeteto virtuoso

    tambm sbio62 ou, pelo menos, um aspirante a sbio. Uma pessoa com as referidas

    caractersticas tem, ento, os devidos requisitos para proferir aquilo que Scrates pretende

    ouvir.

    Em princpio, o nico sbio propriamente dito o velho Teodoro, mas Teeteto, em

    certo sentido, tambm o , pois assim o prprio Teodoro quem o diz63. Vamos, ento,

    defini-los do seguinte modo: Teodoro um sbio propriamente dito, Teeteto um sbio no

    no sentido completo do termo e sim uma espcie de aspirante. Scrates inclui a si prprio e

    tambm todos os supostos sbios como ignaros, mas ao mesmo tempo ser obrigado a

    compreender que h homens sbios. A classificao que nos parece mais adequada para

    Teeteto a de um legtimo aspirante, isto , aquele que sente as dores do parto

    epistemolgico. E, alm disso, qualquer possvel erro cometido por Teeteto no representaria

    um prejuzo descrio feita por Teodoro64. Um grande erro seria a sua recusa em responder,

    pois desse modo estaria contradizendo o mestre. o seu desejo vivaz em dialogar que se

    constitui um requisito bsico para o sucesso da investigao. Teodoro era, portanto, quem

    muito bem o conhecia e, se porventura no o conhecia, tinha acerca dele uma opinio

    verdadeira justificada, pois se tratava de uma opinio que tinha consenso entre muitos

    cidados. Possivelmente o que melhor corrobora a opinio verdadeira de Teodoro sobre ele

    a sua reao espantosa que ocorre aps a apresentao dos raciocnios dos dados65.

    60 Tht. 145c. 61 Tht. 145a-b. 62 Tht. 148b. 63 Tht. 162c. 64 Tht. 148c. 65 Tht. 155d. Cf. tambm 162c, a expresso da parte de Teodoro: o sbio Teeteto.

  • 32

    1.4 O tipo de definio requerida por Scrates

    Scrates no pretende ouvir uma resposta por meio de exemplos de conhecimentos,

    nem sobre o conhecimento de alguma coisa isolada. Pretende ouvir uma definio simples. Se

    fosse perguntado: O que barro? A resposta mais simples e eficiente seria: terra

    misturada com lquido66. A segunda definio: conhecimento uma arte qualquer,

    taxada como trivial e redundante, mas a terceira: conhecimento percepo est de acordo

    com as condies estabelecidas por Scrates. No se trata, na verdade, de uma definio

    devidamente genuna, pois Scrates v nela uma analogia com a tese de Protgoras. Contudo,

    o que importa que seja uma resposta feita de maneira legtima, ou seja, feita dentro dos

    parmetros dos grandes sbios. Protgoras, ao menos ironicamente classificado como um

    homem sbio. O que Scrates, em princpio, requer que a resposta seja dada da maneira

    como convm, maneira filosfica de se responder. Essa maneira parece ter tanta relevncia

    quanto a prpria exatido da definio. que a resposta poderia, por exemplo, ser correta por

    acaso e, portanto, no ter legitimidade. Saliente-se que o acerto ao acaso, no conhecimento.

    Em princpio, Scrates no parece estar muito preocupado com o fato de a resposta estar

    correta ou no, mas o que lhe interessa acima de tudo examin-la. No entanto, isso no

    significa que ele era indiferente quanto veracidade da resposta. bvio que ele aguardava

    uma resposta acertada, mas todo o contexto da discusso preparatria mostra-nos que a sua

    ateno estava voltada principalmente para o modo de responder. Se Teeteto proferisse a

    palavra-chave da questo sem o verdadeiro e genuno sentido, a resposta no teria

    importncia. Um mero enunciado sinonmico no poderia satisfazer as genunas necessidades

    filosficas. , portanto, imprescindvel que ela tinha de ser feita de modo incisivo. Eis a

    observao de Scrates ao ouvir que conhecimento aisthesis: Respondeste bem e com

    nobreza, meu jovem, pois necessrio que as opinies sejam ditas assim claramente67. A

    resposta, portanto, tem de ser dada de maneira vivaz e bem clara. Mesmo que em si, no seu

    contedo, no seja correta, ela tem de ser correta na forma em que respondida68. Todavia,

    importante adiantar que mesmo a resposta mais certa que pudesse ser dada, seria aniquilada

    de qualquer modo pelos rigores da aporia platnica.

    A segunda resposta de Teeteto a de que conhecimento uma arte, ou seja,

    conhecimento o conhecimento de uma arte. Entre as quais, esto as habilidades de Teodoro:

    66 Tht. 147c. 67 Tht. 151e. 68 Tht. 148d, 150e. Reao semelhante ter Scrates ao ouvir a definio como opinio verdadeira em 187b.

  • 33

    a geometria, a astronomia, a harmonia e o clculo. No entanto, para Teeteto, toda e qualquer

    habilidade dos artesos, tais como sapataria e olaria, tambm conhecimento. Trata-se de

    uma resposta muito distante do verdadeiro escopo socrtico, pois alm de pluralizar uma

    unidade, banaliza-a e responde sem muita determinao.

    Provavelmente ao menos, uma das disciplinas ministradas por Teodoro poderia ser

    classificada como conhecimento69. Se a resposta se limitasse, por exemplo, apenas

    geometria, estaria, talvez, menos errada70.

    Se Scrates no sabe o que conhecimento, nada lhe adianta uma resposta de que o

    conhecimento o conhecimento de um oleiro, ou o conhecimento de outro arteso qualquer.

    Teeteto com a sua resposta apenas suscita uma redundncia negativa porque nada acrescido

    a Scrates, ou seja, Teeteto no d nenhuma informao, ele nada comunica. Assim, Scrates

    que indaga sobre o conhecimento, nada se informa se o que lhe dito que conhecimento a

    arte do oleiro. Teeteto, ao que parece, expressara-se pretendendo definir que conhecimento

    uma habilidade, como, por exemplo, a habilidade de fabricar olaria. Em outros termos,

    conhecimento seria o conhecimento do ofcio do oleiro em fabricar telhas, vasos, talhas, etc.,

    mas o que Scrates pretende ouvir uma resposta simples e breve71, no redundante. ,

    portanto, por meio de uma resposta acertada e eficiente que se poderia evitar um retorno ao

    infinito. Scrates, portanto, no pretende enumerar e sim definir de maneira eficiente aquilo

    que se chama conhecimento; o que lhe interessa o conhecimento em si72. Teeteto d uma

    resposta que, alm de mltipla, no oferece um canal para a reflexo que Scrates pretende. A

    sua definio pertinente ao conhecer isso ou conhecer aquilo. O carpinteiro, por

    exemplo, sabe exercer a sua funo. A pergunta de Scrates fora: o que te parece que seja o

    69 Ou cincia. Alguns autores alegam que o termo saber prefervel ao de conhecimento. Desse modo, ao invs de dizer que conhecimento crena verdadeira justificada, diz-se que o saber crena verdadeira justificada. Em lngua inglesa, diante da ausncia de um termo equivalente, alguns autores recorrem ao francs e citam como exemplo o savoir em detrimento de connatre. Cf. NEHAMAS, Alexander. Virtues at autenticity: essays on Plato and Socrates. Princeton: University Press, 1999. p. 224-225. A prpria edio do Teeteto que usamos como padro para as citaes diretas adota o verbo saber. Contudo, afora essas citaes pareceu-nos conveniente permanecer usando o termo conhecimento. Alm de ser o termo predominante entre os autores lusfonos, o seu uso em epistemologia no implica em dificuldades tais como s vezes proposto. Bostock (1988, p. 37-38) diz que Plato trata do conhecimento num sentido completo de modo que envolve tanto savoir quanto connaitre, ou seja, tanto saber quanto conhecer. 70Os ofcios braais eram considerados ignbeis para um aristocrata grego. Cf. Tht.180d. Sobre o preconceito platnico, cf. R. II 371c-e; VI 495d-e; Grg. 465a-c; 518a; Phdr. 273e-274a; Plt. 297b-d. Todavia, bvio que no presente contexto a preocupao nada tem a ver com preconceito. 71 Tht. 147c. 72 Tht. 146e. De modo semelhante Scrates pede para utifron definir a piedade. Mas naquele Dilogo ele quer saber do aspecto nico () da piedade. Cf. Euthphr. 6d-e. Cf. tambm com relao a Mnon na definio da arete. Men. 79b-c.

  • 34

    saber?73, mas Teeteto responde como se a pergunta fosse: do que te parece que seja o

    saber? Eis a razo da sua resposta enumeradora, ou seja, feita atravs de exemplos74.

    Scrates parece ter toda a razo, porque essa espcie de redundncia no informativa.

    Se uma criana se dirige ao pai e pergunta: o que fome? Subentende-se que a criana

    ainda no sabe o que a palavra fome significa. Digamos que o pai responda: fome a fome

    que tu s vezes tens, que eu s vezes tenho, que tua me s vezes tem e que os animais

    tambm tm. Se a resposta for dada dessa forma, a criana apenas ir saber que fome algo

    que ela j tem, mas sem ainda saber do que se trata. O melhor que o pai poderia fazer sem

    recorrer a qualquer exemplo dizer que fome o desejo de comer. Toda vez que uma pessoa

    sente alguma vontade de comer, ela estar de posse da fome. E poderia explicar-se melhor ao

    filho a fim de torn-lo satisfeito e devidamente informado sobre fome. A compreenso

    plena da essncia do fenmeno, ou seja, a experincia propriamente concreta de fome ,

    certamente mais importante do que o mero significado da palavra. Mas isso no quer dizer

    que a significao no seja importante. A comunicao perfeita ir, certamente culminar no

    fenmeno, na coisa concreta, ou seja, precisar transpor o muro da linguagem a fim de atingir

    o que busca. Contudo, a experincia de fome por si tambm no o suficiente para que quem

    a experimente saiba o que fome. Afinal, esse seria o caso do prprio filho que indaga ao pai,

    o qual certamente sentia fome (apetite), mas desconhecia o que significava a palavra fome.

    O exemplo que Scrates expe a Teeteto a fim de faz-lo responder da maneira correta

    o do conhecimento do barro. Se algum pergunta: O que barro? A resposta correta

    aquela que realmente define o barro e o faz de modo eficiente. Nesse caso, bastaria enunciar

    que barro terra misturada com lquido75. Suponhamos que uma pessoa que nunca viu, nem

    tenha qualquer noo do que possa ser o ouro, pedisse uma definio eficiente sobre ouro. A

    eficincia, nesse caso, tem a ver com a preciso da comunicao e a economia de palavras. A

    pessoa que faz uma pergunta est a fim de ser realmente informada e, por isso, a resposta tem

    de ser clara e sem tergiversao. Considere-se, nesse caso, que tal pessoa pretende, de fato, ter

    uma informao com a mxima preciso. E, alm disso, essa informao s pode ser feita de

    modo oral. Nenhuma pepita ou joia poder ser utilizada como comunicao. Uma definio

    eficiente poderia, talvez, ser feita do seguinte modo: ouro um metal precioso, de tonalidade

    mais ou menos amarelada que normalmente lembra a gema de ovo. ainda possvel ampliar

    a resposta a fim de tornar o inquiridor mais bem informado. Poder-se-ia acrescentar outros

    73 ; o que te parece que seja o saber? Tht. 146c. 74

    Para Bostock (1988, p. 32), a tentativa de se explicar por meio de exemplos no significa necessariamente uma circularidade. 75 Tht. 147c.

  • 35

    detalhes que normalmente envolvem o ouro, como, por exemplo, o de que ele pode servir

    como moeda e que quem o possui guarda-o com muita segurana, pois um produto muito

    visado pelos larpios. No entanto, uma resposta eficiente aquela que com poucas palavras

    estabelece uma comunicao completa e eficaz. Uma definio tal como Scrates requer, a

    que contm um pequeno nmero de palavras, mas com uma boa capacidade informativa.

    Enfim, uma comunicao completa aquela que satisfaz e realmente informa o interlocutor76.

    Digamos que uma pessoa precise capturar leopardos, mas no a panthera pardus

    comum e sim uma subespcie, designado por panthera pardus*. No stio em que se far a

    captura, suponha-se que h uma infinidade de subespcies diferentes de leopardos, alm de

    muitos outros felinos. A hiptese de essa pessoa capturar leopardos que no lhe interessa ser

    muito grande, por isso ela ter de ser informada da melhor forma possvel. Tratando-se de

    uma misso delicada e perigosa ser necessrio que haja comunicao entre os falantes.

    Aquele que vai caa ter de conhecer uma panthera pardus*, pois ele ir passar por muitos

    bichos conhecidos genericamente como ona-pintada, jaguar, pantera, leopardo comum, etc.

    Essa pessoa no est interessada em delongas, mas em eficincia informativa. com uma

    seriedade desse tipo que Scrates est requerendo a sua resposta.

    O modelo socrtico de resposta tem a ver com definio simplificada. Nesse caso, uma

    definio no deixa de ser o resumo de uma demonstrao discursiva, ou seja, o resumo de

    uma lio sobre aquilo que foi perguntado. Uma definio de terra apenas: barro

    misturado com lquido, mas uma demonstrao uma lio muito mais ampla. A definio

    de ouro, ento, resumir-se-ia em: ouro , de todos os metais, o mais precioso. Nesse caso,

    necessrio supor que a pessoa que no sabe o que ouro, saiba, no entanto, o que um metal.

    Certamente tem de saber que metal um bem precioso e tambm saber o que significam

    todas as coisas mencionadas na expresso definidora. Suponhamos que a definio visa

    inform-la da melhor maneira possvel sobre o ouro a fim de que ela no se engane quando se

    deparar com esse metal, pois o que ela visa o ouro concreto. Caber, portanto, ao falante

    definir de modo eficaz.

    Contudo, a redundncia que Scrates pretende evitar, conforme veremos , na verdade,

    uma redundncia inevitvel. Toda a sua preocupao sensata e correta, mas, em filosofia

    no h como evit-la. Bostock com razo alega que simplesmente impossvel no redundar

    76 A sugesto de Zagzebski para uma boa definio do conhecimento lembra-nos os requisitos socrticos no Teeteto. Diz ela: [...] uma definio no dever ser ad hoc, no deve ser negativa quando pode ser positiva, deve ser breve, no deve ser circular, deve utilizar apenas conceitos que sejam menos obscuros que o conceito a ser definido [...]. ZAGZEBSKI, Linda. O que conhecimento. In: GRECO, John; SOSA, Ernest (Orgs.). Compndio de epistemologia. So Paulo: Loyola, 2008. p. 164.

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    diante da indagao de Scrates77. De qualquer modo, a definio como uma arte qualquer

    no poderia ser acatada. Seja por meio de exemplo ou sem, necessrio a existncia de uma

    informao correta. imprescindvel defini-la convenientemente. bem verdade que a mera

    substituio de um nome por outro em nada acrescenta o vazio de quem pretende saber sobre

    determinada coisa.

    Mesmo a melhor de todas as definies, de certo modo, s atinge o seu objetivo

    mximo quando a pessoa informada depara com o produto. A pessoa que quer saber sobre o

    ouro s saber completamente quando tiver contato fsico com ele. A informao-definio

    oral apenas parte de um caminho que constri o conhecimento. Se ela visse o ouro sem estar

    previamente informada sobre ele, certamente no saberia que se tratava de ouro. Por outro

    lado, se dissesse que sabe o que ouro sem nunca t-lo visto e sem ter feito qualquer contato,

    tambm comprometeria o seu posto de conhecedor de ouro. Nesse caso, estamos pressupondo

    que o conhecimento verdadeiro o conhecimento de trato. Afinal, em parte exatamente

    esse o tipo de conhecimento que o Dilogo aborda78.

    A fim de contornar a questo, Teeteto, ento, supe que o objetivo de Scrates poderia

    ser atingido atravs de um mtodo criado por ele e por seu amigo Scrates o Jovem. Trata-se

    de um mtodo aplicado na geometria, mas