01O Imperio Ideal

O Imprio Ideal: uma Abordagem do Pensamento Poltico de Dante Alighieri

Maria Eugenia Bertarelli

R. Mest. Hist., Vassouras, v. 12, n. 1, p. 7-24, jan./jun., 20107

Dossi Imprios

O Imprio Ideal:

uma Abordagem do Pensamento Poltico de Dante Alighieri

Maria Eugenia BertarelliDoutora em Histria Social pela Universidade Federal Fluminense

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Resumo: A partir da anlise de duas obras centrais do poeta florentino Dante Alighieri busca-se destacar a defesa da ideia de Imprio no seu pensamento. As obras so: a Monarquia, um tratado de filosofia poltica escrito possivelmente entre os anos 1310 e 1312 e a Divina Comdia, o poema sacro redigido ao longo das duas primeiras dcadas do sculo XIV. Acredita-se que a doutrina esboada no tratado estava em harmonia com a defesa de um ideal de Imprio apresentado nos versos dedicados ao Paraso Terrestre no livro do Purgatrio.

Palavras-chave: Idade Mdia. Dante Alighieri. Imprio. Poder temporal. Poder espiritual.

The ideal empire:

An approach to the political thought of Dante Alighieri

Abstract: From the analysis of two main works of the Florentine poet Dante Alighieri we aim to identify the defense of Dantes idea of Empire. These works are: The Monarchy, a philosophic-political treatise written possibly between 1310 and 1312, and the Divine Comedy, the sacred poem written along the first two decades of the XIVth century. We believe that the doctrine outlined into the treatise was in harmony with the defense of an Empires ideal presented in the lines devoted to the Earthly Paradise at the Purgatory book.

Keywords: Middle Ages. Dante Alighieri. Empire. Temporal Power. Spiritual Power.




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O poeta florentino Dante Alighieri (165-1321) foi um defensor da Monarquia imperial ao final da Idade Mdia. Num momento em que o Imprio encontrava-se com poucas foras diante da supremacia da Igreja romana, o florentino sustenta ser a soluo para os conflitos no interior das Comunas italianas.

Embora sua concepo do poder imperial repouse na defesa de uma figura nica capaz de acumular uma imensa quantidade de poder e, em virtude disso, colocar-se acima de todos os prncipes para govern-los na direo da paz, sua perspectiva imperial abrange um aspecto mais amplo. O imprio significava para Dante a restaurao do Paraso sobre a terra e, deste modo, inauguraria um perodo onde reinaria a paz, fornecendo ao homem um ambiente para o desenvolvimento de suas virtudes intelectuais que o aproximam de Deus. O imprio era, portanto, um lugar tempo de realizao do fim humano no caminho at a divindade.

Dante Alighieri apresenta sua defesa imperial em duas obras fundamentais, ambas escritas no incio do sculo XIV. A primeira define-se como um tratado de filosofia poltica intitulado Monarquia. A segunda referncia noo imperial encontra-se na Divina Comdia. No poema sacro o autor-personagem percorre os trs reinos que formam o mundo do Alm passando pelo Paraso Terrestre, localizado no cume do monte Purgatrio, onde alude a vinda de um messias capaz de assumir o Imprio universal.

A MonarquiaA Monarquia foi dividida por Dante em trs livros. Segundo ele, no primeiro buscava demonstrar a necessidade do Imprio para a boa ordenao do mundo, no segundo, que o povo romano seria legitimamente o herdeiro da insgnia imperial, e no terceiro e ltimo, o autor procurou esclarecer a questo de se a autoridade do monarca vem imediatamente de Deus, ou se lhe concedida por intermdio dum ministro ou vigrio de Deus.1

Segundo explicou o prprio Dante, o tratado teria por finalidade elucidar os homens a respeito da necessidade de uma Monarquia Temporal. Por esta monarquia ele entende, na realidade, o Imprio, definido como uma forma de governo que se ergue sobre todos os seres que vivem no tempo, ou sobre tudo aquilo que medido pelo tempo.2

No modelo apresentado na Monarquia o homem deveria agir no mundo guiado por um monarca nico. Segundo Dante, este monarca que governaria acima de todos os outros poderes seria o nico capaz de garantir a paz. A manuteno da paz aparece como pressuposto essencial para o Imprio, visto que Dante a concebeu como o meio mais imediato para chegar ao fim supremo.3 Portanto, os argumentos apresentados ao longo do primeiro livro do tratado convergem no sentido de demonstrar que a Monarquia universal seria a nica forma de governo capaz de gerar as condies necessrias paz e ao bem-estar do mundo.

Entretanto, no terceiro livro do tratado que o autor explicita sua tese imperial, atribuindo

1 ALIGHIERI, Dante. Monarquia. (Coleo Os Pensadores). So Paulo: Abril Cultural, 1973, p. 193.2 bid.,p.193.

3 Ibid., p. 195.




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ao imperador uma autoridade legtima neste mundo, distinta daquela espiritual do Papa, ao qual ele no devia estar submetido. Assim, segundo Dante, a autoridade do prncipe romano, legitimamente o monarca do mundo, dependia diretamente de Deus. Deste modo, questiona a tese elaborada no interior dos cnones catlicos onde a legitimidade do imperador dependia de Deus por intermdio de seu vigrio na terra. Ao longo do terceiro livro Dante busca demonstrar que o poder do imperador no se encontrava subordinado quele vindo de Roma.4

O Alighieri sustenta sua doutrina afirmando que somente os seres humanos so formados por uma essncia corruptvel e outra incorruptvel, ou seja, apenas os seres humanos estariam constitudos de corpo e alma. Segundo ele, o homem se caracteriza como um ser que est entre os dois hemisfrios, participando dos meios corruptveis e incorruptveis. Desta forma, cada ser humano comportaria em si as duas naturezas que convm sua existncia dupla. Da infere que, como toda a natureza est ordenada a um fim ltimo, o homem o nico entre todos os seres que possui dois fins, um que lhe pertence como ser corruptvel e outro que lhe pertence como ser incorruptvel. Estes dois fins so entendidos por ele como duas beatitudes distintas. A primeira se realizaria em vida, a beatitude em vida, beatitudo huius vite, e outra depois da morte, a beatitudo vite eterne. primeira chegava-se por meio das doutrinas filosficas, desde que, segussemos os ensinamentos destas e [exercitssemos] as virtudes morais e intelectuais.5 J para alcanar a beatitude da vida eterna devia-se seguir as doutrinas espirituais que excedem a razo humana, desde que a ponhamos em prtica com o auxlio das virtudes teologais, f, esperana e caridade.6 Ao estabelecer esta distino Alighieri conclui que o imperador seria o responsvel por guiar a humanidade beatitude huius vitae, enquanto o Sumo Pontfice guiaria a humanidade beatitude da vida eterna.

Segundo Ernest Kantorowiz,7 o autor da Monarquia teria se inspirado em Aristteles para atribuir comunidade humana o que ele chamou um fim tico-moral que era fim em si mesmo, era paraeclesistico.8 O historiador afirma que a dualidade de valores estabelecida no tratado era totalmente desconhecida dos juristas daquele tempo, os quais sustentavam que a universitas era um corpus morale et politicum paralelo ao corpus mysticum da Igreja. Para Kantorowicz, Dante radicalizou esta distino construindo uma monarquia universal auto-suficiente associada a um fim humano-imperial realizvel no Paraso Terrestre.

Com efeito, para atingir este fim terreno, a beatitude huius vitae, o conjunto da humanidade deveria atualizar o intelecto possvel, sendo necessrio para tal desfrutar de uma vida numa sociedade em paz. De acordo com Dante, esta paz necessria somente poderia ser alcanada no Imprio, cujas funes seriam distintas e no subordinadas Igreja. por conta disso que Kantorowicz refere-se a um fim humano-imperial. Este

4 O autor da Monarquia esclarece que no sua inteno questionar a autoridade do Papa quanto s suas atribuies nos assuntos sagrados, pois, ele verdadeiramente quem possui as chaves do reino dos cus (Ibid p. 195). Ou seja, era sua a funo de cuidar das almas pelo caminho at junto de Deus.

5 Ibid., p. 231.

6 Ibid., p. 231.

7 KANTOROWICZ, Ernest. Os dois corpos do rei. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.8 Ibid.




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fim no seria absolutamente independente do fim sobrenatural, seria autnomo no sentido de que se alcanaria neste mundo. Porm constituiria, para Dante, uma etapa (necessria) da trajetria do homem em direo beatitude celeste.

A Divina Comdia possvel observar a teoria imperial dantesca numa segunda obra, que passaremos a analisar a seguir: a Divina Comdia.

O poema sacro divide-se em trs partes: na primeira, Dante percorre o Inferno, na segunda a montanha do Purgatrio, e na terceira ascende ao cu ou Paraso celeste. Interessa no mbito deste estudo o segundo reino no qual, ao chegar ao cume do monte Purgatrio, o peregrino, acompanhado de seu guia Virglio, adentra o Paraso Terrestre. Ali Dante encontra a personagem Matelda9 que conduz os viajantes pelo Jardim ednico, at a apario de sua musa Beatriz, que assumir a funo de guia ao longo do terceiro reino da Comdia.

No livro do Purgatrio, canto XXIX, o peregrino encontrava-se no Paraso Terrestre ao lado de Matelda quando avista uma forte claridade, como um raio que se prolonga no ar. Entre a aura refulgente notou aproximar-se um cortejo com sete candelabros, em meio ao canto de Hosana. Emocionado, Dante vira-se para seu mestre, que somente com um olhar lhe responde. Enquanto fitava a forte luminosidade que invadia o ambiente, Matelda sugere que o poeta olhe para a procisso que vinha logo atrs. Sob o rastro luminoso deixado pelos sete candelabros vinham, enfileirados, de par em par, vinte e quatro senhores que estariam representando os vinte e quatro livros do Velho Testamento, ou mais possivelmente seus autores.10

A seguir, Dante avista quattro animali,/ coronati ciascun di verde fronda11 e dotados de seis grandes asas. O poeta no se atm descrevendo-os, mas sugere a leitura de Ezequiel que j os havia descrito. As figuras simbolizariam os quatro Evangelistas; So Joo, em forma de guia, Lucas em forma de touro, Marcos, de leo e Mateus, de homem. Em meio aos quatro animais vinha um carro, uma espcie de carruagem:

Lo spazio dentro a lor quattro contenneUm carro, in su due rote, triunfale,Chal collo dum grifon tirato venne.12

9 O debate acerca da figura de Matelda muito extenso dentro dos estudos dantescos. Acerca das contribuies mais recentes, gostaria de citar o estudo de Stefano Carrai, da Universidade de Siena, que chama ateno para a influncia dos mitos antigos na construo do personagem de Matelda. Segundo Carrai, Dante teria se inspirado no mito de Proserpina, posto que a cena do rapto enquanto ela colhia flores ambientada no bosque de Enna lembraria o Paraso dantesco. Ainda, o autor supe que dentre as heranas antigas nas quais Dante se inspirou para conceber o personagem de Matelda estaria a Flora de Ovideo (chamada tambm de Clris na mitologia grega).Cf. Carrai, Stefano. Matelda, Proserpina e Flora (Per Purgatrio XXVIII). Revista LALIGHIERI: Rassegna dantesca. Ravenna: Longo Editore, 30 Nova Srie, ano XLVIII, p49-64, jul-dez.2007.

10 Enciclopdia Dantesca. Diretor: Umberto Bosco. Roma: Instituto della Enciclopdia Italiana, 1970.op cit. Verbete Paraso Terrestre.

11 ALIGHIERI. A divina comdia. op. cit., p. 192.

12 Ibid., p. 192. A meio deles, plcido e contido,/ um carro a duas rodas se movia,/ que ao pescoo de um Grifo era jungido., p. 259.




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A carruagem se aproxima sendo puxada, sob duas rodas, por um grifo animal mtico, metade guia e metade leo. Segundo o verbete sobre o Paraso Terrestre da Enciclopdia Dantesca13, devido sua dupla natureza, o grifo estaria representando a figura de Cristo, humano e divino.14

direita do carro, Dante v trs damas que vinham danando, uma vestida de vermelho, outra de verde, enquanto que a ltima vinha de branco: Tre donne in giro da la destra rota/ venian danzando;....15 As trs damas estariam aqui representando as virtudes teologais: a de vermelho, a Caridade, a de verde, a Esperana, e a de branco, a F. A seguir, danando do lado esquerdo da roda do carro aproximavam-se mais quatro damas, vestidas de prpura. A que vinha na frente ostentava trs olhos sobre a testa:

Da la sinistra quattro facean festa,in porpore vestite, dietro al mododuna di lor chavea tre occhi in testa.16

Por sua vez, estas damas estariam representando as quatro virtudes cardinais: Prudncia, aquela que tinha trs olhos, depois a Justia, a Temperana, e a Fortaleza. Mais adiante seguiam dois velhos que caminhavam lentamente. A identificao destes dois senhores bastante difcil, segundo Andra Ciotti dentre as hipteses aventadas pelos estudiosos, a mais provvel seria aquela que reconhece neles os apstolos Pedro e Paulo.

Seria interessante notar alguns aspectos de forte carter simblico no cortejo apresentado por Dante neste canto XXIX. O carro, que vinha no centro da procisso, seria uma representao alegrica da Igreja. Ela, por sua vez, vinha sendo puxada por um grifo, simbolizando a figura de Cristo, fundador da Igreja catlica. Dos lados do carro vinham danando as trs virtudes teologais e as quatro virtudes cardiais, representando as doutrinas filosficas e espirituais capazes de conduzir o homem dupla beatitude para as quais foi destinado pela divina Providncia. Vimos com o estudo da Monarquia que, assim como Cristo possua uma dupla natureza, o ser humano era formado de corpo e alma, e desta forma, possua um fim para sua natureza corruptvel e outro para sua natureza incorruptvel. Observamos que neste cortejo visto por Dante no Paraso Terrestre estaria apresentada uma encenao da salvao da humanidade, que atravs de Cristo fundou a Igreja para resgatar os homens aps o pecado. Porm, cada um devia buscar a prpria salvao cultivando as virtudes que conduzem dupla beatitude do homem, e, por isso, elas vinham danando ao lado da carruagem durante o cortejo.

13 op cit. Verbete Paraso Terrestre.

14 Corrado Calenda.adverte que ao lado da interpretao tradicional que identifica o grifo como Jesus Cristo encontra-se aquela de alguns autores, especialmente anglo-saxes, que o identifica com a figura do imperador. Calenda, Corrado. Increspature soggetive e Litanie numerali in Purgatrio XXIX. In: Rivista di Studi Danteschi. Julho-Dezembro, Ano II, pp. 262-278. Roma: Salerno Editrice, 2002.

15 ALIGHIERI. A divina comdia. op. cit., 1998, p 193, Bailando, destra roda, sobre a via,/ vinham trs damas:.., p. 260.

16 Ibid., p 193, Tambm esquerda, na radiosa festa,/ bailavam quatro, em prpura, e a da frente/ ostentava trs olhos sobre a testa. p. 262.




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No canto XXX Dante descreve a apario de sua musa Beatriz, a quem esperou ansiosamente desde o incio de sua peregrinao. A dama surge em meio a uma profuso de flores e de uma doce cano que diz: Benedictus qui venis!,17 isto , bendita tu que vens!. A partir deste canto, Beatriz se tornaria a nova guia na peregrinao ao longo do Paraso celeste.

O poeta romano Virglio, representando a razo e o conhecimento filosfico podia guiar o florentino at o Paraso Terrestre, mas somente os ensinamentos da f, simbolizada por Beatriz, poderiam conduzi-lo at o cu. A troca de guias bem significativa se recordarmos aquilo que Dante havia afirmado no ltimo livro da Monarquia, quando explicava que alcanamos o Paraso Terrestre atravs das doutrinas filosficas e que alcanamos o Paraso celeste atravs das doutrinas espirituais. A substituio de Virglio por Beatriz fazia-se, portanto, necessria para que o poeta continuasse caminhando em direo ao Paraso celeste, atravs dos ensinamentos da f, transmitidos de agora em diante por sua dama.

No canto XXXII a procisso dos sete candelabros, que havia parado para dar lugar cena da chegada de Beatriz, reinicia sua marcha. A procisso segue at parar perto da rvore do bem e do mal, localizada, segundo a tradio, no meio do Paraso Terrestre. Ento, o Grifo amarra o timo do carro ao tronco daquela rvore que se encontrava ressequida. Miraculosamente, a rvore se enche de vida e comea a florescer, com flores roxas e verdes que cobriam os galhos secos.

Dante adormece por um instante e acorda com Matelda ao seu lado. Esta avisa que os personagens do cortejo haviam subido para o firmamento e ali permaneciam somente Beatriz, sombra da rvore, e as sete ninfas ao seu lado. De repente, uma guia, veloz como um raio, se atira sobre a rvore (deixando-a mutilada e arrancando-lhe as folhas novas) e sobre o carro amarrado ao tronco. Logo depois, chega uma raposa, como que farejando uma presa, mas afastada com rudeza por Beatriz. Novamente a guia investe sobre o carro, deixando cair algumas penas por cima dele. Pouco depois, o poeta descreve como as penas cadas da guia comeam a se espalhar rapidamente como uma erva daninha. Em meio cena, surge de repente uma prostitua semi-desnuda que lana um olhar lascivo ao redor. Ao seu lado, como um vigia desconfiado, v-se um gigante curvando-se para acarici-la, mas, ao perceber enciumado que a moa olhava para Dante, passa a agredi-la. Logo o carro se solta da rvore e se embrenha na floresta densa, levando consigo a prostituta e o gigante.

interessante observar como a cena aparece carregada de forte simbologia, representando a percepo de Dante acerca dos episdios que marcaram a histria da Igreja catlica no ocidente. Segundo a tradio dos estudos dantescos,18 a guia que aparece para atacar o carro simbolizaria o Imprio ou os imperadores romanos. A primeira investida da ave contra a rvore do bem e do mal e contra o carro estaria representando a perseguio dos antigos imperadores romanos aos cristos. A loba que Beatriz afasta do carro seria

17 Ibid., p. 266

18 Cf. MESSINA, Michele (org.). Dizionario della Divina Commedia. Milo: Feltrinelli, 1965; DAMIANI, Paolo Rembadi. Um cinquecento dieci e cinque: Unhipotesi per risolvere lenigma forte di Dante. In: Revista Studi Danteschi. Direo Francesco Mazzoni. Publicati dalla Societ Dantesca Italiana, Firenze: Le Lettere, 2005, vol. 70, pp.103-117; Enciclopdia Dantesca. op. cit.; e NARDI. op. cit.




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uma referncia s heresias que ameaavam a Igreja. A segunda investida da guia estaria representando uma cena importante para o desenvolvimento da histria do cristianismo: seria uma aluso Doao de Constantino19 que teria ferido a Igreja com inteno de fazer-lhe o bem. As penas deixadas pela guia, que foram se espalhando por todo o carro, representariam os males advindos da atitude do imperador.

Para Dante, a interferncia da Igreja nos assuntos do mundo a afastava da misso espiritual para a qual havia sido criada. Ainda, a influncia do Papado na poltica de Florena agravara os conflitos na cidade, causando o afastamento dos brancos no poder, cujo partido o poeta integrava. Este episdio, que culminou com o exlio de Dante de sua cidade natal, determinou a posio do florentino contrria a interveno da Igreja na vida poltica.

Neste sentido, a prostituta que se aproximou do centro do carro simbolizaria a cria romana corrompida pelas riquezas materiais, como uma mulher que vende seu corpo em troca de luxo e dinheiro. Por sua vez, o gigante ao seu lado seria o rei francs Felipe, o belo, que aliado primeiramente ao Papa Bonifcio VIII e depois a Clemente V, buscava colocar a Igreja a servio de suas ambies polticas. Sabe-se que o rei da Frana, em acordo com Bonifcio VIII, articulou para enviar seu irmo Carlos Florena precipitando os acontecimentos que levaram sada do poeta da cidade.

No ltimo canto do Purgatrio, Beatriz, que observava toda a cena sentada, ps-se de p e, falando ao poeta, pede ateno s suas palavras:

Non sara tutto tempo sanza redLaguglia che lasci le penne al carro,Per che divenne mostro e poscia preda

Chio veggio certamente, e per il narro,A darne tempo gi stelle propinque,Secure dognintoppo e dogne sbarro,

nel quale um cinquecento diece e cinque,messo di Dio, ancider la fuiacom quel gigante che con lei delinqe.20

Com estes famosos versos Beatriz anuncia o advento de um lder na Itlia. Ela explica que no reinar para sempre o poder atual provindo da guia, que espalhou suas penas no carro tornando-o um monstro. Ela estaria se referindo ao poder corrompido exercido pela Igreja sobre os assuntos temporais, e que segundo Dante, teria que chegar ao fim. A dama, ento, vaticina a vinda daquilo que nomeou de um cinquecento diece e cinque21,

19 Trata-se de um documento redigido por um falsrio, onde este relatava as condies em que se teria operado entre o imperador romano e o Papa Silvestre I uma diviso dos poderes. Parrise, Michel. Imprio. Verbete do Dicionrio Temtico do ocidente medieval.

20 ALIGHIERI. A divina comdia. op. cit., 1998, p 216, Um herdeiro afinal h-de ser dado/ ave que sobre o carro voando ardente/ o fez de suas penas maculado:/ que eu vejo aproximar-se claramente,/ nas estrelas que o vo prefigurando, um tempo mais feliz e mais ridente,/ em que um Quinhentos, Dez e Cinco, a mando/ de Deus, liquidar a dama impura/ mais o gigante ao lado seu pecando, p. 291.

21 Num artigo recente Paolo Rembadi Damiani (ver bibliografia) analisa como os estudiosos se esforaram por interpretar este prenncio da vinda de um lder que pusesse fim degradao poltica na pennsula, denunciada por Dante. As palavras proferidas por Beatriz anunciavam a chegada de um cinquecento diece e cinque, porm os estudiosos buscaram compreender o que precisamente quis dizer a dama.




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enviado por Deus para acabar com a prostituta e com o gigante que com ela peca.

A profecia de Beatriz suscitou dvidas e interpretaes discordantes, contudo, de modo geral entendida pelos estudiosos no seguinte sentido: um imperador havia feito involuntariamente um dano, a Doao de Constantino, um outro imperador, o herdeiro da guia, depois de mil anos devia reconduzir as coisas ao lugar correto.

Segundo Dante, o trabalho do imperador seria rduo, posto que a Igreja no pretendia submeter-se ao comando do Sacro Imprio. Em virtude disso, ele concebia como seu papel de intelectual a tarefa de convencer os homens da necessidade de um imperador para conduzir a humanidade nos assuntos temporais. Desta forma, a Igreja poderia dedicar-se aos temas espirituais, e, assim, se encontraria distante das tentaes mundanas que a corrompiam. A inteno de Dante verifica-se de forma clara nas palavras ditas por Beatriz imediatamente aps o anncio da vinda de un cinquecento diece e cinque:

Tu nota; e si come da me son porte,cosi queste parole segna avividel viver ch um correre a la morte.22

A dama pede ao poeta que grave na memria as palavras proferidas por ela para transmiti-las queles que caminham para a morte, isto , aos vivos, quando regressar de sua viagem pelo outro mundo. Observa-se como Dante deixa transparecer nestes versos a tarefa da qual se sentia incumbido.

Depois do discurso pronunciado por Beatriz o florentino levado por Matelda at o rio Euno, o rio da Boa-memria, onde mergulhado para completar o rito de purificao, iniciado com sua imerso no rio Letes, o rio do Olvido. Aps terminar o ritual, o poeta encontrava-se puro e leve para seguir viagem em direo s estrelas. Com efeito, o Paraso Terrestre no poema representa a ltima etapa superada pelo peregrino antes de encontrar-se perfeitamente puro para seguir viagem em direo ao cu. Com os seguintes versos o poeta encerra o XXXIII e ltimo canto do Purgatrio:

Io ritornai da la santssima ondarifatto si come piante novellerinovellate di novella fronda,puro e disposto a salire a le stelle.23

O pensamento poltico de Dante possvel observar algumas semelhanas fundamentais entre a doutrina exposta na Monarquia e aquela que se explicita nos versos sobre o Paraso Terrestre da Divina Comdia.

22 ALIGHIERI. A divina comdia. op. cit., p 217, Minha palavra grava, de tal sorte/ que a possas transmitir inalterada/ aos que, na terra, voam para a morte., p. 292.

23 Ibid., p 220, Volvi da sacratssima abluo/ purificado como as plantas belas/ que se vestem de nova florao, pronto a subir s fulgidas estrelas., p. 296.




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Acreditamos que a noo bsica que norteia o pensamento poltico do florentino estava assentada na ideia de que a corrupo de uma Igreja dedicada aos assuntos temporais constitua um mal que afetava toda a humanidade. Com efeito, para Dante a interferncia do Pontfice nos assuntos do mundo havia levado o clero cobia por poder e dinheiro, afastando-o de sua verdadeira vocao espiritual. Tal ideia encontrava-se intimamente relacionada com sua experincia pessoal na Comuna florentina. O apoio do Papa aos negros de Florena havia conduzido os lderes da faco branca ao exlio e entre eles o prprio Alighieri. Como remdio para a situao de desordem na Cristandade, bem como especificamente em Florena e, particularmente, em sua vida, ele aposta na figura de um lder capaz de guiar a humanidade nos assuntos temporais, deixando a Igreja livre para suas obrigaes espirituais. Estas ideias que caracterizam o pensamento poltico de Dante aparecem delineadas de forma geral nas duas obras analisadas.

Entretanto, este esboo resumido de sua doutrina poltica constitui uma tentativa esquemtica de contemplar as nuances e transformaes de seu pensamento ao longo do tempo, representado por obras de estruturas to distintas como o so a Monarquia e a Divina Comdia. Neste sentido, seria importante compreender a formao de seu pensamento, procurando alguns pontos essenciais que marcam uma aproximao entre as obras e nos permitem fazer relao entre a concepo de Paraso Terrestre presente no tratado e no poema sacro.

Francesco Ercole24 realizou um estudo onde distingue trs fases do pensamento poltico de Dante. A primeira compreenderia o quarto tratado do Convvio e o Inferno, cuja composio foi provavelmente iniciada antes de 1308, momento em que o tratado fora interrompido. Nesta fase aparece a necessidade do Imprio, onipotente e universal, e seu natural centro na pennsula itlica. Ele no teria ainda desenvolvido conscientemente a teoria da independncia entre as autoridades do Papa e do imperador. A segunda fase teria sido iniciada no canto XVI do Purgatrio, onde surge pela primeira vez a ideia de que os problemas da pennsula no se devem exclusivamente ausncia do imperador, mas juno entre a espada e a pastoral, isto , entre o poder temporal e o espiritual. A esta fase corresponderiam os cantos XVI a XXXI do Purgatrio e as trs Epstolas referentes descida de Henrique VII na pennsula. Contudo, os eventos sucessivos chegada de Henrique VII na Itlia deram um golpe na confiana de Dante sobre as boas intenes do Papa Clemente V. Escrevendo os cantos XXXII e XXXIII do Purgatrio sob a amarga desiluso, o poeta teria feito, de acordo com Ercole, uma profunda reviso do seu programa poltico, e assim o desenvolvimento de seu pensamento entra na terceira fase. Ele percebe que havia se enganado quanto s intenes da Igreja de restaurar o poder imperial, e que as condies para o atual estado de corrupo em que a sociedade se encontrava haviam sido lanadas em tempos remotos, desde a Doao de Constantino. A humanidade, por culpa de Constantino, retornou, aos poucos, ao estado em que havia sido deixada desde o pecado original. Os remdios dados por Deus para apaziguar os males advindos da queda dos primeiros pais haviam sido deturpados e j no cumpriam sua funo. A esta terceira fase poltica do pensamento dantesco pertenceriam os dois ltimos cantos do Purgatrio, o Paraso, onde aparecem referncias ao engano que havia

24 ERCOLE, Francesco. Per la genesi del pensiero poltico di Dante: la base aristotlico- tomista. Torino: G. Chiantore, 1918.




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cometido o Papa Clemente, e a Monarquia, que teria sido escrita ao lado dos primeiros cantos dedicados ao cu.

Bruno Nardi25 contestou o estudo de Francesco Ercole em alguns pontos, especialmente no que concerne formao na conscincia de Dante da doutrina sobre as relaes entre Imprio e Papado e, consequentemente, em torno ao lugar ocupado pela Monarquia no desenvolvimento do pensamento poltico dantesco. Nardi demonstra que ao escrever o IV tratado do Convvio o florentino j tinha em mente uma ideia bastante delineada a respeito dos limites entre a esfera de atuao Papal e aquela do imperador. Nardi questiona:

Come potremmo pensare che, scrivendo il quarto trattato del Convvio intorno al 1307, Dante non si fosse ancora posto il problema dei rapporti fra la giurisdizione dell Impero e quella della Chiesa, quando il problema era nellaria stessa, non che nelle trattazioni dei giuristi e dei polemisti si di parte regia e imperial che di parte guelfa?26

Para Nardi, Dante acreditou, desde cedo, que a corrupo da Igreja e o enfraquecimento do Imprio eram dois aspectos do mesmo fato. Assim, seu poema sacro devia ser compreendido como uma espcie de viso potica, concedida por Deus, e utilizada por ele como um instrumento para anunciar os seus desgnios sobre a humanidade desviada. Inconformado com as pretenses teocrticas de Bonifcio VIII o poeta assume a misso de anunciar ao mundo uma renovao civil e religiosa da cristandade, afirma o estudioso. Portanto, assim como a Enias, Deus concedeu a Dante uma viagem ao mundo do Alm para que visse com os prprios olhos aquilo que devia anunciar ao povo cristo. De acordo com Nardi, ele tornava-se profeta de uma grande reforma moral e religiosa:

Se Dante, quando pose mano al poema, avesse ritenuto che la cagione dei mali del mondo era soltanto lassenza dellimperatore dallItalia, e che di questa assenza era motivo lincuria, e non lusurpazione del potere imperiale da parte del Papato, se egli, insomma, non fosse stato scandalizzato dalla pretesa di Bonifcio VIII di sostituirsi allimperatore nel governo dItlia, e dalla conseguente rovina della Chiesa, sarebbe inconcepibile la conscienza in lui di una missione impostagli come a profeta del rinnovamento civile e religioso della cristianit, missione chegli intende di compiere colla Commedia.27

25 NARDI. Saggi di filosofia dantesca. op. cit., 1967.

26 o Convvio em torno a 1307, Dante no tivesse ainda se colocado o problema das relaes entre a jurisdio do Imprio e aquela da Igreja, quando o problema estava no prprio ar, nos tratados dos juristas e dos polemistas seja da parte rgia e imperial, como tambm da parte guelfa?.

27 Ibid., p.293. Traduo nossa: Se Dante, quando lanou mo ao poema, tivesse pensado que a razo dos males do mundo era somente a ausncia do imperador da Itlia, e que desta ausncia era motivo a negligncia, e no a usurpao do poder imperial por parte do Papado, se ele, em suma, no tivesse se escandalizada pela pretenso de Bonifcio VIII de substituir o imperador no governo da Itlia e da conseguinte runa da Igreja, seria inconcebvel a conscincia dele de uma misso imposta a ele como profeta da renovao civil e religiosa da cristandade, misso que ele tenta cumprir com a Commedia.




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Neste sentido, Bruno Nardi argumenta que o problema das relaes entre Igreja e Imprio aparece desde o princpio no esprito de Dante. A doutrina da Monarquia seria uma forma de encontrar soluo para tais questes, constituindo-se o pressuposto para elaborao da Comdia. Nardi defende que a doutrina contida no ltimo livro da Monarquia seria um desenvolvimento dos princpios apresentados no Convvio. O forte carter racionalista, e a nfase nas doutrinas filosficas caractersticas do tratado poltico, por sua vez, teriam sido posteriormente superadas na Divina Comdia. Isto porque o poema se apoiaria no edifcio filosfico medieval da distino entre razo e f, entre filosofia e teologia, porm aceitava a subordinao dos primeiros termos aos segundos, diferentemente do que teria pregado no tratado poltico. De acordo com Nardi, Virglio no poderia conduzir o peregrino atravs dos reinos da culpa se lhe faltasse a ajuda da virtude que vem do alto, assim, dal quinto girone del Purgatrio in s alla guida di Virgilio si aggiunge quella di Stazio, ritenuto cristiano da Dante.28

A partir destes argumentos Bruno Nardi conclui:

Luomo ispirato, cui Dio aveva concesso il singolare privilegio della proftica visione, e che aveva posto mano al poema sacro colla conscienza di uma missione da compiere, poteva ormai sdegnare gli argomenti umani della Monarchia.29

possvel aceitar os argumentos de Bruno Nardi, em oposio tese defendida por Ercole, de que Dante, j desde a elaborao do Convvio, possua uma reflexo sobre os limites entre a esfera do poder temporal e do poder espiritual, e o problema advindo de se confundirem estas esferas. Desde cedo Dante identificava o problema poltico que significava a participao da Igreja nos assuntos temporais. Entretanto, apesar da importncia das pesquisas de Nardi para o desenvolvimento dos estudos dantescos, sua teoria que identifica uma superao na Comdia da original distino na Monarquia entre razo e f, para ele de ascendncia averroista, parece questionvel. Acredita-se que a Monarquia teria sido escrita, segundo informaes retiradas de Giovanni Boccaccio, no perodo da descida do imperador Henrique VII pennsula. Portanto, a obra teria sido redigida entre o final de 1309 e incio de 1313, mais possivelmente entre os anos 1310 e 1312, segundo argumentos fornecidos por Enrico Malato.30 J a Divina Comdia teria sido escrita durante um perodo mais amplo, entre os anos de 1304-08 e 1316-21, e, portanto, englobando o perodo de elaborao do tratado poltico. Se considerarmos a datao apresentada por Giorgio Petrocchi, e posteriormente confirmada por estudiosos como Robert Hollander,31 Enrico Malato, e recentemente ratificada por Paolo Rembadi Damiani, os cantos do Purgatrio teriam sido redigidos entre 1308 e 1312. Por fim, aqueles cantos referentes especificamente ao Paraso Terrestre teriam sido escritos entre os anos

28 Ibid., p. 309.

29 Ibid., p. 310.

30 MALATO, Enrico. op.cit.

31 HOLLANDER, Robert. Dante: a life in works. New Haven e Londres: Yale University Press, 2001.




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de 1310 e 1312, correspondendo, justamente, ao perodo de elaborao da Monarquia. Em virtude disso, no se acredita numa superao, na Comdia, da distino entre razo e f defendida no tratado, posto que, alguns trechos daquela obra teriam sido escritos durante a elaborao da Monarquia e, portanto, sob influncia dos mesmos acontecimentos polticos na pennsula.

Com efeito, a proximidade cronolgica em que foram idealizados e tomaram forma os contedos apresentados no tratado e nos ltimos cantos do Purgatrio permitem observar um campo de sentidos comum no que se refere ao pensamento de Dante contido nestas duas obras. Contudo, no ser aprofundada a anlise de todas as transformaes ocorridas na doutrina poltica do florentino ao longo do tempo e que podem ser observadas na Comdia, cuja elaborao durou quase 17 anos para ser completada. Chama-se a ateno apenas para a correspondncia das ideias polticas defendidas na Monarquia e no Paraso Terrestre do poema sacro, que teriam sido escritos em momentos muito prximos, especificamente por ocasio da vinda do imperador germnico pennsula, sobre a qual o poeta florentino depositou enormes esperanas.

Desta forma, observa-se que quando Bruno Nardi identifica um tom proftico na Divina Comdia somos levados a pensar numa atitude poltica de Dante, tambm explicitada na Monarquia. O florentino acreditava que deveria convencer seus contemporneos a aceitar um modelo imperial que traria a paz e a harmonia para a cristandade. Via-se incumbido de demonstrar ao mundo que o Imprio e o Papado eram essenciais para a salvao, mas somente guardando suas funes propriamente distintas poderiam guiar a humanidade aos distintos fins para os quais fora predestinada pela Providncia Divina. Em virtude disso, para J.H. Burns32 o pensamento de Dante se esboa plenamente na Monarquia, quando o autor explicita a teoria da dualidade de poderes, e se finaliza na Comdia, quando faz duras crticas a um Papado e uma Igreja corruptos, e apresenta como soluo para a degradao da sociedade a elevao espiritual em direo a Deus.

Assim, a doutrina poltica apresentada na Monarquia se harmonizaria com o pensamento proftico colocado por Dante nas palavras de Beatriz, quando esta anuncia a vinda de um herdeiro do trono para recuperar a Igreja e a sociedade terrena no ltimo canto do Purgatrio. A esperana posta na vinda deste lder aparece no momento em que o poeta florentino confiava que a descida de Henrique VII o transformaria no imperador universal que a pennsula aguardava e carecia para alcanar a estabilidade e a paz terrena. Contudo, possvel identificar na argumentao de Dante um projeto de sociedade que iria alm do mbito poltico e, especificamente por conta disso, devia transbordar as pginas de um tratado poltico e tomar forma num poema sacro, em cuja beleza dos versos somos conduzidos em direo a Deus junto com o personagem central.

Certamente, Dante acreditou que a chegada do herdeiro do trono imperial poria fim s disputas nas cidades, especialmente as intensas discrdias em Florena, e que os lderes da faco negra, partidrios do Papa, seriam destitudos do poder pelo imperador, permitindo a volta dos lderes brancos exilados. O florentino viu em Henrique VII a possibilidade

32 BURNS, James Henderson (Editor) Histoire de la pense politique mdievale. 350-1450. Paris: Presses Universitaires de France, 1993.




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de retornar sua ptria de que tanta falta sentia. Assim, o projeto de sociedade universal apresentado por Dante esteve intimamente relacionado com sua experincia poltica na vida pblica de Florena. A paz almejada no Paraso Terrestre no foi concebida descolada do desejo de paz nas cidades italianas. Tratava-se da busca pela paz universal num mundo marcado por disputas polticas. No Convvio ele expe tal ideia sobre a necessidade de paz entre os reinos, as cidades, e as casas vizinhas para que a humanidade possa gozar da felicidade:

De onde, como o animal humano no se aquiete numa determinada possesso de terra, mas sempre deseje ganhar glria, tal como vemos por experincia, no podem deixar de surgir discrdias e guerras entre reino e reino, as quais so tribulaes para as cidades, e para as cidades das vizinhanas, e para as vizinhanas das casas, e para as casas do homem; e assim se impede a felicidade. Pelo que, para evitar estas guerras e as suas causas, convm de necessidade que toda a terra e quanto foi dado ao gnero humano para sua posse seja Monarquia, isto , um s principado, e tenha um nico prncipe; o que possuindo tudo e mais no podendo desejar, os reis tenha contentes nos confins dos reinos, tal que entre eles haja paz, na qual as cidades descansem, e neste repouso as vizinhanas se amem, neste amor as casas consigam tudo o que lhes necessrio, conseguindo o que possa o homem viver com felicidade; que para o que nasceu.33

O imperador seria a figura responsvel por apaziguar os conflitos das faces citadinas, afastando a influncia do Papa Bonifcio VIII, que aos olhos do poeta aparecia como prejudicial ao bom ordenamento da sociedade.

O intenso intercmbio entre a obra e a vida do florentino foi observado por Bruno Nardi:

Nella lotta si matura il suo pensiero poltico, allorch, concentrandosi nella meditazione filosfica e cercando lo scioglimento dei gravi problemi che laffannano, i vecchi concetti appresi nei trattati medievali son cimentati al contatto della realt, nella quale sincarnano e della quale subiscono lo svolgimento.34

Com efeito, o modelo imperial apresentado por Dante no deve ser entendido como uma forma de governo ultrapassada, superada pelo desenvolvimento das cidades-estado na Itlia, ou da monarquia centralizada na Frana. Este modelo surge a partir da experincia viva do florentino em sua cidade e da profunda esperana de que Henrique VII conduzisse a Itlia paz. Neste sentido, Dante deve ser visto como um homem que viveu e compreendeu a vida pblica de seu tempo, e se dedicou a idealizar um mundo livre de conflitos.

33 ALIGHIERI. Convvio. Lisboa: Guimares Editores (Coleo filosofia & ensaios) 1992, p. 155.

34 NARDI. Saggi di filosofia... op cit., 1967, p. 255, Na luta se madura o seu pensamento poltico, quando, concentrando-se na meditao filosfica e buscando solucionar os graves problemas que o preocupavam, os velhos conceitos apreendidos nos tratados medievais so cimentados no contato com a realidade, na qual se encarnam e da qual completam o desenvolvimento.




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Seu projeto de sociedade a partir da atuao do imperador seria impossvel se a pennsula continuasse mergulhada em sangrentas lutas nas quais lderes citadinos, apoiados por uma Igreja corrompida, impediam o estabelecimento da paz universal. Dante desejava que os homens compreendessem a situao de degradao em que se encontravam os territrios e cidades da cristandade, e que a vinda de um lder seria a soluo para pr fim a tal situao. Especialmente os lderes florentinos da Comuna deviam se convencer dos benefcios da chegada do imperador e, assim, defender sua empresa na Itlia, apoiando as pretenses de Henrique VII.

Com efeito, numa epstola escrita em abril de 1311 ele incita os perversssimos florentinos a se arrependerem pela oposio feita ao imperador germnico dizendo:

...na verdade se com justificado temor se arrependem de vossa loucura mesmo que no sintam dor por ela, de forma que na amargura da penitncia medo e dor no confluam num mesmo rio, no resta se no cravar em vossos espritos que este divino e triunfador Henrique, suporte dos romanos asuntos, buscando ardentemente o bem, no o prprio, mas o pblico do mundo, confrontou espontaneamente grandes dificuldades, compartilhando nossas penas... Por conseguinte, notem que chegado o tempo de arrepender-se amargamente de tudo o que temerariamente presumiram, se no querem continuar simulando.35

Os homens deviam alcanar a compreenso desejada pelo poeta no contexto em que reconheceriam a necessidade de seu desenvolvimento humano e espiritual para alcanar os dois fins estabelecidos pela Divina Providncia. No se tratava apenas de reconhecer a eficcia do Imprio no esforo de alcanar a estabilidade poltica na pennsula, mas sim de dar-se conta de que a funo do imperador justificava-se dentro de um projeto mais amplo, como uma etapa da salvao do gnero humano. Neste sentido, Bruno Nardi argumenta que Dante teve conscincia de uma misso imposta a ele como profeta de uma renovao civil e religiosa que ele busca realizar atravs da Comdia.

Nos versos em que Beatriz anuncia a vinda de um lder e adverte que o poeta mantivesse o ouvido atento s suas palavras "... ascoltarmi tu sie ben disposto"36 para depois repass-las aos vivos quando retornasse terra37 torna-se clara a incumbncia poltico-proftica de Dante. Ele, experto em doutrinas polticas,38 devia prestar o seu concurso

35 ALIGHIERI, Dante. Epstola VI. A los perverssimos florentinos. Disponvel em: www.servisur.com/cultura, consultado em 07/07/2010. A traduo prpria foi realizada a partir do espanhol: en verdad si con justificado temor os arrepents de vuestra locura aunque no os dolis de ella, de forma que en la amargura de la penitencia miedo y dolor no confluyan en un mismo rio, no queda sino enclavar en vuestros espritus que este divino y triunfador Enrique, soporte de los romanos asuntos, buscando ardientemente el bien, no prprio, sino pblico del mundo, h afrontado espontneamente grandes dificultades, compartiendo nuestras penas....Por consiguiente, veis que ha llegado el tiempo de arrepentirse amargamente de todo lo que temerariamente hbeis presumido, si no quereis seguir simulando.

36 ALIGHIERI. A divina comdia. 1998, Traduo nossa: escuta-me tu estejas bem disposto.

37 ALIGHIERI. Idem. Tu nota; e si come da me son porte,/cos queste parole segna avivi/del viver ch um correre a la morte.

38 ALIGHIERI. Monarquia. op. cit., 1973, p. 193.




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Repblica (rem publicam),39 e assim, iluminar os homens de que ... a Monarquia necessria boa ordenao do mundo.40

A respeito dos mecanismos de leitura da Idade Mdia preciso notar que a leitura medieval pressupunha um carter ativo, onde uma obra literria ou parte dela era re-presentada pelo leitor para traz-la memria e utiliz-la, segundo Mary Carruthers,41 como modelo tico criador de lugares-comuns. Em virtude disso, observamos que ao escrever a obra, seja o tratado ou o poema, Dante acreditou no efeito de transformao da realidade poltica e religiosa a partir das ideias contidas nos textos oferecidos leitura.

A doutrina poltica apresentada na Monarquia estava em harmonia com aquela analisada nos versos dedicados ao Paraso Terrestre da Comdia. O poema, contudo, abrange um significado mais completo, posto que o projeto de sociedade idealizado por Dante ultrapassa os limites do poltico estabelecendo um percurso mstico de salvao das almas. A poesia criaria uma atmosfera sublime capaz de fazer com que Deus, nos seus efeitos da criao, pudesse ser contemplado pelo homem. A beleza dos versos que descrevem a paisagem paradisaca, o encanto e a graa de Matelda, e o encontro com sua musa inspiradora, de certa forma nos conduzem contemplao do divino almejada pelo poeta.

A partir do que foi dito neste artigo conclui-se que o ideal poltico dantesco em defesa do imprio no deve ser concebido como modelo ultrapassado, num contexto em que as cidades-repblicas, por um lado, e as monarquias nacionais, por outro, se apresentam como as novas formas de governo da Europa Ocidental. preciso refletir sobre a afirmao de Le Goff a respeito do florentino: foi o ltimo grande homem da Idade Mdia (...) [que] morreu com os olhos virados para o passado....42 Nesta passagem o medievalista se refere ao modelo imperial defendido por Dante que estaria j sem fora e vitalidade ao final do sculo XIII, a partir de quando as monarquias adquirem gradativamente um maior espao no cenrio poltico europeu. A percepo de Le Goff tendeu a desconsiderar a relevncia do modelo de governo defendido pelo autor florentino e, algumas vezes, consider-lo mesmo ultrapassado. Por exemplo, Quentin Skinner, em seu livro sobre o pensamento poltico moderno, cita a doutrina da Monarquia destacando a sofisticada defesa do Imprio apresentada no tratado sem, contudo, enfatizar sua importncia para a tradio poltica ocidental. Segundo esta tendncia dentro da historiografia, Dante seria um profundo conhecedor da filosofia aristotlico-tomista, na qual se baseou para escrever uma inteligente justificativa da autoridade imperial, porm num momento em que representava um modelo um tanto superado no ambiente poltico medieval. Neste estudo tentamos avanar numa abordagem que complexifica tal viso, mostrando a singularidade do pensamento dantesco em apontar uma harmnica distino entre as atribuies da Igreja e do Estado. Neste sentido, seguiu-se a perspectiva de James Burns43 que afirmou: A grande inovao do pensamento poltico medieval tardio foi o desenvolvimento da concepo de Estado secular resultante da natureza poltica do homem.44 Burns

39 Ibid., p. 193.

40 Ibid., p. 202.

41 CARRUTHERS, Mary. Le livre de la mmoire: Une tude de la mmoire dans la culture mdievale. Paris: Mcula, 2002.

42 LE GOFF, Jacques. A civilizao do ocidente medieval. Vol. I, Lisboa: Editorial Estampa, 1983, p. 132.

43 Op.cit.

44 Ibid. p.340. Traduo nossa do francs




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destacou a contribuio do raciocnio exposto na Monarquia ressaltando que Dante foi o responsvel pela primeira apologia sistemtica ao princpio imperial da dualitas. Tal princpio seria, segundo o autor, plenamente desenvolvido por Marslio de Pdua alguns anos depois. O paduano atacou a prpria origem divina da funo pontifical, coisa que Dante jamais pretendeu fazer.

Por fim, considera-se que o ideal de Imprio apresentado por Dante no estava voltado para o passado, na medida em que ele deseja fundar um presente propondo uma reflexo sobre a participao poltica da sociedade. Dessa forma, no defendeu apenas um governo descendente, que representaria a dimenso temporal do poder divino, mas um modelo onde a ao do homem adquiriria valor na busca pelo governo ideal.




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