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2 Subjetividade e capitalismo em Deleuze e Guattari Neste capítulo aprofundaremos, a partir da obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari, nossas investigações acerca das relações entre capitalismo e subjetividade. Buscaremos mostrar como se delineia no pensamento destes autores uma concepção de subjetividade que, ligada à questão da relação entre ontologia e individuação, nos fornece mecanismos para uma análise crítica do capital. Mecanismos, portanto, para pensarmos processos subjetivos para além do poder capitalista. Apresentaremos na conclusão deste trabalho a relação entre a filosofia de Deleuze e Guattari e os teóricos da pós-modernidade. Mas cabe, aqui, indicarmos alguns dos elementos que relacionam o pensamento de Deleuze e Guattari com o dos autores que vimos estudando sob o tema “pós-modernidade e capitalismo”. Caracterizamos, em linhas gerais, a pós-modernidade como o lugar em que a diferença, o hibridismo e a particularidade vêm à cena do debate contemporâneo — caracterização que é compartilhada, malgrado as diferenças de abordagem, por todos os autores que estudamos até agora. Veremos, nas páginas que se seguem, que, para Deleuze e Guattari, uma política da subjetividade capitalista “pós- moderna” é apenas possível no sentido em que a pós-modernidade não vai longe o bastante no hibridismo e na diferença que ela propaga: ou seja, a pós- modernidade deve defrontar-se com o capital. Sendo assim, os autores operam um deslocamento em relação às análises dialéticas da pós-modernidade (Jameson); da acumulação flexível como condição da pós-modernidade (Harvey); da expulsão do negativo (Baudrillard e Zizek) e da falência da moralidade (Bauman). Malgrado a diferença entre todos estes autores, a via percorrida pelo pensamento de Deleuze e Guattari aponta para uma alternativa diversa das que foram apresentadas até este momento. De fato, dos autores estudados apenas François Lyotard, privilegiando o tema da diferença e criticando os universais modernos, se coloca num terreno mais próximo de análise.

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capitalismo e subjetividade

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  • 2 Subjetividade e capitalismo em Deleuze e Guattari

    Neste captulo aprofundaremos, a partir da obra de Gilles Deleuze e Flix

    Guattari, nossas investigaes acerca das relaes entre capitalismo e

    subjetividade. Buscaremos mostrar como se delineia no pensamento destes

    autores uma concepo de subjetividade que, ligada questo da relao entre

    ontologia e individuao, nos fornece mecanismos para uma anlise crtica do

    capital. Mecanismos, portanto, para pensarmos processos subjetivos para alm do

    poder capitalista.

    Apresentaremos na concluso deste trabalho a relao entre a filosofia de

    Deleuze e Guattari e os tericos da ps-modernidade. Mas cabe, aqui, indicarmos

    alguns dos elementos que relacionam o pensamento de Deleuze e Guattari com o

    dos autores que vimos estudando sob o tema ps-modernidade e capitalismo.

    Caracterizamos, em linhas gerais, a ps-modernidade como o lugar em que a

    diferena, o hibridismo e a particularidade vm cena do debate contemporneo

    caracterizao que compartilhada, malgrado as diferenas de abordagem, por

    todos os autores que estudamos at agora. Veremos, nas pginas que se seguem,

    que, para Deleuze e Guattari, uma poltica da subjetividade capitalista ps-

    moderna apenas possvel no sentido em que a ps-modernidade no vai longe o

    bastante no hibridismo e na diferena que ela propaga: ou seja, a ps-

    modernidade deve defrontar-se com o capital.

    Sendo assim, os autores operam um deslocamento em relao s anlises

    dialticas da ps-modernidade (Jameson); da acumulao flexvel como condio

    da ps-modernidade (Harvey); da expulso do negativo (Baudrillard e Zizek) e da

    falncia da moralidade (Bauman). Malgrado a diferena entre todos estes autores,

    a via percorrida pelo pensamento de Deleuze e Guattari aponta para uma

    alternativa diversa das que foram apresentadas at este momento. De fato, dos

    autores estudados apenas Franois Lyotard, privilegiando o tema da diferena e

    criticando os universais modernos, se coloca num terreno mais prximo de

    anlise.

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    Dividimos este captulo em cinco partes. Na primeira, denominada

    ontologia, procuramos investigar qual concepo ontolgica encontra-se

    presente na obra dos autores, j que no terreno da ontologia que eles podero

    pensar a produo da subjetividade. Na segunda, chamado Que subjetividade?

    As snteses do inconsciente procuraremos, a partir da anlise ontolgica, mostrar

    qual concepo de subjetividade est presente na obra de Deleuze e Guattari,

    como eles concebem o processo de subjetivao.

    Na parte 2.3, munidos do estudo prvio das relaes entre ontologia e

    subjetividade, partiremos para uma anlise especfica da subjetividade capitalista.

    Buscaremos apontar em que medida, para os autores, o capital reprime ou libera o

    desejo. Na 2.4, intitulado capitalismo e complexo de dipo, estudaremos de que

    forma, para Deleuze e Guattari, o capital produz subjetividades edipianizadas.

    Finalmente, na parte 2.5, intitulada A subjetividade para alm do capital,

    apontaremos alguns dos caminhos abertos pelos autores para que pensemos

    processos de subjetivao para alm do capital.

    2.1 Ontologia

    A tese fundamental de que partem Deleuze e Guattari, em O anti-dipo

    (2010), estabelece a identidade de natureza e diferena de regime entre produo

    desejante e produo social. Ela ser repetida, diferencialmente, ao longo das

    paginas de O anti-dipo, funcionando como uma espcie de ritornello, refro

    ontolgico que re-enuncia a premissa bsica que sustenta a construo da filosofia

    contida no livro.

    De que d conta este postulado? Primeiramente, de uma recusa radical a

    qualquer espcie de dualismo entre natureza e cultura, recusa esta que

    caracterstica de toda a obra de Deleuze e Guattari. Nas reflexes de O anti dipo

    tal recusa assume a forma de uma dupla crtica: psicanlise freudiana e lacaniana

    e ao marxismo influenciado pela leitura dialtica de Marx. Se esta crtica no

    aponta para uma sntese freudo-marxista, e sim para um novo pensamento poltico

    e clnico, porque no se trata de uma simples reforma (ou sntese, unio de

    contrrios) do pensamento marxista e freudiano, mas para a criao de um novo

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    pensamento que permita revolucionar essas teorias, deslocando seu campo

    problemtico.

    Os autores pretendem chegar a um novo conceito de clnica e de poltica:

    clnica imediatamente poltica, poltica imediatamente clnica. O desejo, sendo

    coextensivo ao social, no precisa se qualquer mediao, familiar ou estrutural,

    para realizar seus investimentos. A mediao deixa de ser uma premissa para se

    pensar o investimento social ou mesmo para se conceber a formao da cultura, e

    torna-se o efeito de uma dada organizao social sobre o desejo efeito de

    captura, represso, rarefao:

    Na verdade, a produo social unicamente a produo desejante em condies determinadas. Dizemos que o campo social imediatamente percorrido pelo desejo, que seu produto histrico determinado e que a libido no precisa de nenhuma sublimao e mediao, e nenhuma operao psquica, de nenhuma transformao, para investir as foras produtivas e as relaes de produo (Deleuze e Guattari, 2010, p. 46).

    Um dos conceitos que une dois dos principais objetos trabalhados pelo

    livro a psicanlise e o marxismo aquele de mquinas-desejantes.

    Funcionando atravs de fluxos e corte de fluxos, ligando e conectando objetos

    parciais dispersos, de qualquer natureza, so mquinas binrias, ou de regime

    associativo. No se ocupam, em sua sintaxe heterognea e nmade, com a

    produo de objetos totais ou eus unificados. Constitudas de puras

    multiplicidades, no totalizam suas conexes em sistematizaes ideais ou

    regularidades pr-fixadas.

    Voltaremos ao conceito de mquina desejante quando estudarmos, na parte

    2.2 deste trabalho, as snteses do inconsciente. Agora nos interessa salientar que

    no se trata de uma concepo antropomrfica de desejo. Por um lado, verdade

    que o funcionamento das mquinas desejantes explica como possvel que se

    produza um eu como pea adjacente mquina. Mas, por outro, para

    compreender a amplitude explicativa deste conceito, preciso no referi-lo apenas

    produo de efeitos de subjetividade, mas consider-lo como um princpio

    ontolgico: as mquinas desejantes constituem a operao infinita da produo

    universal primria (Deleuze e Guattari, 2010, p. 14).

    Trata-se, portanto, de um pressuposto, onde reencontramos a tese

    fundamental do livro: igualdade de natureza e diferena de regime entre produo

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    desejante e produo social. No h, de um lado, o homem desejante e, de outro,

    a natureza determinada, instintual ou mecanicista. O que h, seja na natureza, seja

    na cultura, so mquinas desejantes, produo universal primria, ontologia do

    ilimitado que inclui o homem e suas culturas, mas apenas como uma das

    expresses de sua produo, ao lado de tantos outras.

    neste sentido que podemos dizer que o pensamento de Deleuze e

    Guattari de um anti-humanismo radical. Se o desejo, tornando-se uma premissa,

    no referido exclusivamente ao homem, ele tambm deixa de ser vinculado a

    uma falta primordial que barraria a coincidncia imaginria do homem consigo

    mesmo. Na ontologia de Deleuze e Guattari no h que se mediar a imagem com

    uma falta para que a imagem seja levada a diferir de si mesma: qualquer imagem

    (no apenas de homem) difere imediatamente de si mesma. Se a falta

    introduzida, ela o por uma determinada organizao social, ela arrumada na

    produo, vacuolizada e como veremos nas partes 2.3 e 2.4 deste trabalho

    no capitalismo, ela ser interiorizada.

    aqui, no terreno do que Deleuze e Guattari chamaro de metafsica da

    falta que reencontramos a segunda afirmao do principal postulado de O anti-

    dipo: diferena de regime entre produo desejante e social. Pois, se partirmos

    de uma igualdade de natureza, em que existe apenas uma produo universal

    primria imanente a todas as suas diversas expresses, verdade que encontramos

    na produo social uma diferena de regime. E por essa diferena que

    poderemos pensar a questo da subjetividade produzida pelo capitalismo

    contemporneo. O problema da diferena de regime o de como cada sociedade

    ou, para usar o termo que Deleuze e Guattari criam em O anti-dipo, cada

    socius organiza de maneira diversa sua relao com este ilimitado que o

    ultrapassa, reprime em maior ou menor grau este fora absoluto que lhe assombra,

    mas do qual depende.

    Se ambas as produes, desejante e cultural, ou natural e cultural, no

    diferem em natureza, porque se parte de uma premissa rigorosamente monista,

    inspirada na longa tradio maldita da filosofia, tradio que Deleuze elege em

    suas obras anteriores e posteriores a O anti-dipo: Lucrcio, Espinosa, Nietzsche,

    Brgson. Para citar apenas Espinosa, tido por Deleuze como o prncipe dos

    filsofos ou o cristo dos filsofos (Deleuze, 1968, p. 79), podemos

    rapidamente encontrar a ressonncia espinosista contida no postulado da

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    igualdade de natureza entre produo social e desejante dentro de uma produo

    universal primria: (...) uma substncia que consta de infinitos atributos, cada um

    dos quais exprime uma essncia eterna e infinita (Espinosa, 2007, p. 25). A

    substncia infinitamente infinita sendo Deus, numa formulao conceitual em que

    Deus imanente natureza infinita, Deus sive natura: deus, ou seja, a natureza.

    Assim, Deus no transcende os atributos que constituem sua essncia, nem os

    modos que dele dependem como de uma causa. Pois a causa a substncia

    no sai de si para produzir seus efeitos. Ela dita causa eficiente, ao contrrio de

    causa final8: no h projeto de um Deus legislador que regule a natureza; ou de

    causa transitiva9: a substncia infinitamente infinita no sai de si para produzir os

    modos, ou efeitos que a exprimem. No h eminncia nem transcendncia na

    natureza infinita.

    Espinosa, como Deleuze nota em Spinoza e o problema da expresso

    (1968), no parte de uma distino numrica para pensar a substncia, mas de uma

    distino formal, que a divide apenas formalmente em seus infinitos atributos, dos

    quais conhecemos apenas dois, pensamento e extenso. No havendo diviso

    numrica que fenda o real, h apenas diferenas formais entre os atributos

    (infinitos atributos, cada um infinito em seu gnero, que constituem a essncia da

    substncia) e intensivas entre os modos (graus de intensidade referidos

    substncia infinitamente infinita). No nvel da ontologia espinosista no possvel

    qualquer dicotomia de base, seja entre natureza e cultura, ser e no ser, ordem e

    caos, pensamento e extenso... Em O anti-dipo, Deleuze e Guattari permanecem

    essencialmente espinosistas quando apontam que entre produo social e

    desejante h apenas diferena de regime.

    E esta diferena de regime que nos permite compreender a relao dos

    diversos socius com a produo universal primria da qual so uma parte, ou com

    a substncia infinitamente infinita da qual so modos. Porque, se podemos dizer

    que o desejo que ocupa o lugar do ser unvoco ou substncia em O Anti-dipo,

    os regimes sociais, como partes desta substncia, so ainda produes do desejo.

    De fato,

    A libido como energia sexual diretamente investimento de massas, de grandes conjuntos e de campos orgnicos e sociais. (...) na realidade a sexualidade est em

    8 Espinosa, tica (2007), parte I, apndice, p. 65. 9 Espinosa, tica (2007), parte I proposio 43, p. 43.

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    todo o lado: no modo como um burocrata acaricia os seus dossiers, um juiz faz justia, um homem de negcios faz circular o dinheiro, a burguesia enraba o proletariado, etc. (Deleuze e Guattari, 2010, p. 386).

    atravs da diferena de regime e no de natureza, portanto, que os

    autores pensam o socius capitalista e sua relao com a produo de

    subjetividade. E o que lhes permite criticar a represso do desejo realizada pelos

    organismos sociais que, como veremos, mesmo sendo expresses da natureza

    infinita, constituem uma produo desejante privada daquilo que ela pode, uma

    potncia mais baixa da produo universal primria.

    Mas, antes de realizarmos este estudo, passemos a outra formulao

    central ao objetivo de nosso trabalho: as trs snteses do inconsciente, ou como a

    subjetividade produzida.

    2.2 Que subjetividade? As snteses do inconsciente

    Como vimos, uma das principais tarefas de O anti-dipo realizar uma

    crtica da psicanlise, denunciar o contedo metafsico contido na teoria

    psicanaltica, principalmente a lacaniana e a freudiana. E o alvo principal ser o

    complexo de dipo, entendido seja como imagem mtico-familiar (Freud), seja

    como modelo estrutural de emergncia do psiquismo e da cultura (Lacan).

    No se trata de uma recusa existncia do dipo. Pelo contrrio: os

    autores afirmam repetidas vezes que dipo aquilo que existe em demasia e que

    ultrapassa sua teorizao pela psicanlise. Esta j o encontra, como veremos na

    parte 2.3 deste trabalho, interiorizado pela subjetividade produzida pelo regime

    capitalista. Mas, ao invs de realizar sua crtica, denunciando-o como efeito de

    uma determinada organizao social sobre o desejo, ela coloca-o como causa

    mesma da cultura e do psiquismo, como aquilo do qual s se pode escapar sob

    pena de loucura ou barbrie. Um dos conceitos que permite aos autores operar esta crtica aquele das

    trs snteses do inconsciente e de seu uso ilegtimo, edipiano, ou legtimo, no

    representativo. Estas trs snteses so uma referncia Kant e a crtica realizada

    pelo filsofo alemo metafsica de sua poca. Para falarmos brevemente da

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    crtica kantiana, j que pretendemos apenas mostrar como o kantismo serve

    teorizao das snteses do inconsciente, podemos dizer que uma das maneiras em

    que ela define o campo das condies a priori para o conhecimento ser atravs

    do postulado das snteses do conhecimento.

    Estas snteses so caracterizadas como snteses de representaes no

    pensamento consciente. O papel do conhecimento, para Kant, ser, atravs do uso

    legtimo das snteses, unificar o imediato disperso da sensao em representaes

    conceituais que subordinem a diferena do sensvel unidade do conceito no

    entendimento10. Em Kant, O prefixo re- na palavra representao, significa a

    forma conceitual do idntico que subordina as diferenas (Deleuze, 1968, p. 79,

    apud. Machado, 2009, p. 101)

    Obviamente, a complexidade do pensamento kantiano no se reduz

    reconciliao entre o sensvel e o sujeito racional atravs da operao unificadora

    do entendimento na sntese de recognio. Deleuze, em outras obras, mostrar

    que, apesar de restituir a identidade do diverso no entendimento, Kant elabora em

    seu percurso conceitos com uma fora crtica verdadeiramente subversiva: o de

    campo transcendental, fora das coordenadas de sujeito e de objeto, e o de tempo

    puro, tempo no mais subordinado ao movimento quantificado.

    Mas, dentro da problemtica das snteses do inconsciente e da produo de

    subjetividade, que a que nos interessa agora, vemos que, atravs deste conceito,

    a formulao kantiana subvertida. De snteses representativas do sensvel para

    um sujeito do conhecimento, da conscincia, tornam-se snteses inconscientes,

    modos de processamento de toda experincia possvel. No mais a operao de

    um sujeito do conhecimento que domestica o sensvel ao represent-lo, mas o

    prprio processo da produo universal primria, que imediatamente descentraliza

    o sujeito, em que ele imediatamente um efeito de uma produo universal que o

    ultrapassa. O sujeito produzido como uma pea adjacente a maquina, sujeito

    nmade e vagabundo (Deleuze e Guattari, 2010).

    importante frisar que este descentramento no fruto da mediao do

    sujeito com uma falta fundamental o phallus castrado, ou o furo essencial

    operao de representao que lhe barraria o aceso plenitude do gozo, 10 Cf. Roberto Machado, Deleuze e a filosofia, 2009, p. 101: Partimos, portanto, da definio do conhecimento como sntese de representaes e, em busca de preciso terminolgica, chegamos a identificao entre conhecimento e representao no sentido de que o conhecimento a sntese do que se apresenta , a sntese do diverso da representao.

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    completude do imaginrio ou, poderamos dizer, ao entendimento seguro na

    operao da sntese de recognio. A castrao, como veremos na parte 2.4 deste

    trabalho, fruto da represso capitalista do desejo: no a operao fundamental na

    constituio do psiquismo.

    O sujeito difere imediatamente de si. Esta diferena, portanto, no

    pensada em funo de um significante desptico, instncia transcendente que,

    valendo por sua ausncia, produza o sujeito como efeito da falta original, mas

    porque existe, nas trs snteses do inconsciente, uma operao ilimitada da

    produo universal primria, devir absoluto das formas constitudas que arrasta o

    sujeito (e certamente no apenas ele, mas qualquer forma de individuao),

    constituindo sua glria ou runa. Este devir absoluto do real substncia

    infinitamente infinita, plano de imanncia, multiplicidade, entre tantos outros

    nomes que os autores empregam em suas obras exprime menos a impotncia

    do sujeito que a potncia ontolgica da qual ele parte.

    Recapitulando: as trs snteses do inconsciente no esto referidas

    necessariamente a um sujeito, apesar de serem a condio mesma para que a

    subjetividade seja produzida como pea adjacente mquina. E de que mquina

    se trata? Das mquinas desejantes, pr-individuais, a-subjetivas. Se o inconsciente

    no antropomrfico, a anlise das snteses nos ajuda a explicar como a

    subjetividade produzida ao final dos processos inconscientes das mquinas

    desejantes.

    Quanto ao termo sntese, portanto, surgem algumas questes: sintetizar,

    no vocabulrio kantiano, remete operao de um sujeito do conhecimento que

    rene partes fragmentadas da experincia em um todo, conferindo coerncia

    identitria ou representativa a uma matria informe. Mas as snteses deleuze-

    guattarianas so de outra ordem. Em sua operao legtima no se colocam o

    problema do todo, no se referem a qualquer instncia de unificao, seja no

    sujeito ou no objeto. Constituem um regime rigorosamente imanente e

    heterogneo. Brian Massumi refere-se

    juno de elementos separados atravs do acaso de encontros em persistentes, aparentemente estveis , mais ou menos reproduzveis conglomerados capazes de serem tomados por sua prpria iluso objetiva de identidade (Massumi, 1992, p. 47).

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    Ou seja, a identidade subjetiva no a aquisio de um conhecimento

    verdadeiro, claro e distinto, uma via reta do pensamento que corresponde

    conduta correta nas aes e juzos morais. Ela , antes, uma iluso, um efeito

    ptico de assombramento produzido pelo encontro dos corpos. Seguindo a

    terminologia de Espinosa, podemos dizer que, retendo apenas os efeitos do

    encontro de um corpo com o nosso, conhecemos por signos: mutilada e

    confusamente. A conscincia do corpo afetado , assim, povoada de iluses,

    assombreamentos que exprimem a impotncia deste corpo em compreender as

    causas que, agindo sobre ele, determinam suas aes.

    Em Espinosa e as trs ticas (1993), Deleuze distingue, na obra do

    filsofo holands, quatro destes signos: indicativos, abstrativos, imperativos e

    interpretativos. Todos eles confluem na produo da transcendncia, da identidade

    e da obedincia subjetiva como efeitos ilusrios gerados pela compreenso

    inadequada dos encontros. Retendo apenas as indicaes dos estados de nosso

    corpo, ignoramos a multiplicidade de causas atuantes nos encontros, abstramos

    de suas potencialidades apenas aquilo que nos afeta mais fortemente, passando a

    agir conforme o imperativo desta constncia abstrada. Finalmente, interpretamos

    o que escapa ao padro identitrio dos encontros conforme a imagem normativa

    que retemos, colmatando a multiplicidade causal imanente segundo nossa

    esperana ou medo de que a identidade imaginada retorne. Mistificando o plano

    causal com instncias superiores, transcendentais, remendamos a imanncia

    reticular do tecido ontolgico com planos adjacentes, intenes profundas,

    significados ocultos.

    Todo o universo da servido , assim, povoado pelo hbito como norma

    naturalizada, ainda que esta norma seja ontologicamente irrealizvel. Ela

    aparece, ento, seja como falta fundamental, expressando nossa resignao frente

    impotncia constitutiva da realizao do princpio de identidade, seja como erro

    contingente, passvel de ser corrigido por meio de um mtodo ou do uso legtimo

    do conhecimento. Em ambos os casos, permanecemos dentro da imagem de

    pensamento que coloca a identidade como princpio primeiro, ou seja, dentro de

    uma imagem de pensamento que, segundo Deleuze, opera pelos signos que

    exprimem nossa impotncia. E, para Deleuze e Guattari, sistemas polticos so

    erigidos seguindo a lgica da servido, da impotncia e do desconhecimento,

    produzindo a iluso da identidade e, portanto, da transcendncia.

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    Passemos, agora, exposio das trs snteses.

    Sntese conectiva de produo

    a sntese produtiva propriamente dita. Insere produzir no produto, ou

    seja, no tem como causa de sua atividade produtiva algum produto final a que se

    deva chegar ou algum produto passado que se deva repetir. Nem causa final, nem

    causa primeira: causa eficiente que engendra a si mesma em seu processo auto

    constituinte. O regime associativo, em seu uso legitimo, estritamente imanente.

    Sua sintaxe aquela do verbo infinitivo, do produzir conectando e cortando

    fluxos: e, e, e.... dita binrio-linear. Binria, pois se trata sempre da conexo

    de dois fluxos, um que corta e outro que cortado: fluxos e cortes no podem ser

    pensados isoladamente, sendo sempre constitudos em uma relao. E linear, pois

    sua progresso ininterrupta, desdobrando-se em todas as direes, de forma que

    uma mquina que corta o fluxo de outra ser, para outra mquina, a cortada, e

    assim sucessivamente.

    O conceito de corte e fluxo torna-se importante para evidenciar que a

    sntese conectiva opera com limites e ultrapassamentos relativos (relacionados),

    limites que se tornam limiares, limiares que se tornam limites. necessrio frisar

    que, neste universo composicional e decomposicional, existe apenas limite

    relativo a um fluxo: o corte que uma mquina exerce sobre outra. Este limite

    difere completamente da noo de castrao, utilizada por Freud para descrever a

    operao decisiva no desenvolvimento psquico e retomada por Lacan para

    caracterizar a lgica que funda o desejo, atravs da noo de recalque originrio.

    Corte e fluxo so expresses de um pensamento que no pressupe uma

    contradio ontolgica essencial entre ser e no-ser, contradio fundamental que

    caracteriza a filosofia hegeliana:

    Fluxo e corte, formam, no Anti-dipo, um nico e mesmo conceito, to difcil quanto essencial. No remetem a um dualismo ontolgico ou a uma diferena de natureza: o fluxo no apenas e interceptado por uma mquina que o corta, sendo ele prprio emitido por uma mquina. No h portanto seno um termo ontolgico, "mquina", e eis por que toda mquina "mquina de mquinas (Zourabichvilli, 2003, p. 17-18).

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    Mesmo que critiquemos, como o fez Lacan, o carter teleolgico e

    racionalista da filosofia de Hegel, caracterizando a operao dialtica de resoluo

    dos termos contraditrios como impossvel, permanecemos ainda dentro de uma

    problemtica hegeliana. Neste sentido, Lacan mantm a contradio fundamental

    presente no pensamento hegeliano, apenas barrando nele qualquer possibilidade

    de reconciliao, concluindo da a relao necessria entre o desejo e a falta, entre

    o impossvel da sntese dialtica fundando a possibilidade do desejo como

    tentativa barrada de retorno identidade mtica11.

    De fato, o anti-hegelianismo deleuziano no se limita a criticar a teleologia

    da sntese racional, do Estado absoluto ou do fim da historia. Se Deleuze e

    Guattari rejeitam a lgica da contradio porque, no pensamento destes autores,

    o ser no constitui um todo em contradio com o no-ser ao qual ele deve negar

    para se constituir. O ser no precisa, assim, da mediao do no-ser para diferir,

    mesmo que atravs desta mediao seja impossvel uma sntese final: o ser j

    pura diferena, difere imediatamente de si mesmo.

    O trabalho do negativo, em que a identidade deve negar tudo que ela no

    para se constituir, assim revelando sua dependncia ontolgica em relao ao que

    ela se ope, seria uma operao secundria, derivada deste plano de diferenas

    imediatas. Operao que pode ser compreendida como sintoma de um regime

    social (ou representativo) determinado e no como um pressuposto ontolgico.

    Sntese disjuntiva de registro

    A segunda sintaxe a mais complexa das trs, e a que melhor nos

    permitir acesso compreenso dos mecanismos de represso social do desejo.

    Trata-se da sntese disjuntiva. apresentada como um terceiro termo na srie

    binrio-linear. Se a srie conectiva opera conjugando fluxos heterogneos, a

    disjunta adiciona um terceiro termo srie binrio-linear, termo que funciona

    como elemento de anti-produo: 2-1-2-1. Esse terceiro termo, ao invs de

    11 Cf. Peixoto Junior, C. A., Singularidade e subjetivao: ensaios sobre clnica e cultura, 2008, p. 90: O desejo indica, no propriamente um paradoxo, mas o domnio de uma contradio irreparvel. Com isto, a teoria lacaniana se mantm aprisionada ao discurso de Hegel; e p. 91: De qualquer forma, parece que o desejo em Lacan continua em busca do Absoluto (...). Embora ele entenda que refutou a possibilidade da busca dialtica pela plenitude, a crena nesse tipo de estado evidente na nostalgia pela qual sua teoria do simblico caracteriza todos os desejos humanos.

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  • 43

    conectar elementos heterogneos, registra as conexes: a transformao de

    energia de investimento em energia de registro.

    A disjuno, portanto, coexiste s conexes no uso legtimo da primeira

    sntese, pois aquilo mesmo que garante a identidade paradoxal entre produzir e

    produto. que a sntese conectiva, conforme seu automatismo produtivo, se no

    for trespassa por um elemento de anti-produo termina por se deixar aprisionar

    em um produto. Este, se destacando da sria associativa, tornar-se-ia uma

    organizao, organismo ou estado transcendendo a imanncia das conexes

    heterogneas, amarrando-lhes num sistema de repetio manaca, ou o que

    Deleuze chama, em Diferena e repetio (1968), de repetio nua.

    Para que a repetio no abrigue qualquer transcendncia, para que ela

    siga seu curso de diferenciao sem que um objeto-produto destaque-se da cadeia

    e subjugue o produzir conforme o imperativo da cpia e da obedincia, essencial

    este elemento de anti-produo, o 1 que se interpe entre o 2-2-2 das

    conexes binrio-lineares. Sua sintaxe aquela do ou, ou, ou..., mas um ou

    que no supe uma alternativa entre termos mutuamente exclusivos.

    A disjuno se diz inclusa, pois cada termo registrado afirmado e a

    distncia entre eles no implica oposio: ela percorrida como aquilo mesmo

    que excede qualquer possibilidade de identidade e, portanto, de oposio. Pois

    esta s existe sob a lgica da identidade, mesmo que se mostre a dependncia do

    idntico em relao quilo a que ele se ope para se constituir. Segundo

    Zourabichvilli,

    Com Deleuze, a noo [de sntese disjuntiva] assume um sentido bem diferente: a no-relao torna-se uma relao, a disjuno, uma relao. J no era essa a originalidade da dialtica hegeliana? Mas esta contava paradoxalmente com a negao para afirmar a disjuno como tal, e s podia faz-lo pela mediao do todo, elevando a negao contradio (B tudo o que no A: DR, 65); no havia ento sntese disjuntiva, mesmo elevada ao infinito, a no ser no horizonte de sua reabsoro ou "reconciliao", distribuindo definitivamente cada termo em seu lugar. (Zourabichvilli, 2003, p. 78).

    Na disjuno inclusa os termos registrados atravessam a distncia que os

    separam numa linha de diferenciao infinita: a relao anterior aos termos;

    estes so efeitos de relaes, prmios de devires, como veremos a respeito da

    terceira sntese. No se trata, ento, de metamorfose, onde um termo se tornaria o

    outro. O devir dos termos afirmados pela sntese disjuntiva significa que a

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  • 44

    distncia entre eles se torna uma relao que os descentra de si, produzindo

    diferena.

    A operao da disjuno , ento, registrar as conexes produzidas. Mas

    impossvel pensar este registro, no funcionamento legtimo desta sntese, sem a

    superfcie na qual as conexes se registram: esta superfcie, parte indissocivel da

    operao de registro, o que Deleuze e Guattari chamam de Corpo sem rgos

    (CsO). To essencial quanto entender a pressuposio recproca, na primeira

    sntese, da atividade do fluxo e do corte de fluxo, entender, na sntese disjuntiva,

    o registro como inseparvel desta superfcie ou Corpo sem rgos.

    Portanto, o que se registra: a produo; aonde se registra: no CsO. Se este

    processo impede a fixao das mquinas desejantes num produto destacado-

    transcendente, pelo estatuto paradoxal que esta atividade de registro adquire,

    segundo seu uso legtimo.

    Freud, por exemplo, em A interpretao dos sonhos (1900), j pensara o

    aparelho psquico como constitudo por marcas mnmicas, traos que registram os

    objetos de satisfao. Estes traos constituem uma memria voltada para a

    repetio de um prazer prvio, atravs da recatexizao das vias registradas. um

    sistema de diferenas entre trilhas e marcas, mas um sistema regressivo, aonde as

    diferenas de registro so subsumidas seleo operada pelo prazer-descarga, que

    busca sempre a ausncia de excitao, a estase do aparelho psquico: uma seleo

    operada pelo idntico.

    E ser mesmo na impossibilidade dessa obteno plena do prazer-

    descarga, ou da realizao completa da identidade almejada, que Freud, em Alm

    do princpio do prazer (1920), poder pensar a pulso de morte. Na

    metapsicologia freudiana, a pulso de morte caracterizada como aquilo que, no

    mesmo movimento em que transforma o prazer-descarga em princpio busca

    do prazer atravs da descarga completa das excitaes provenientes de meios

    endgenos e exgenos impede-o de realizar-se plenamente. Pois a descarga

    absoluta, ou o nirvana, seria, por um lado, o limite inalcanvel, tendencial, do

    princpio do prazer, s atingido pela abolio do princpio, mas por outro lado, seu

    limite interior, responsvel pela sua constituio.

    O desejo em Freud pensando, ento, como um mecanismo regressivo

    onde o objeto futuro deve repetir uma satisfao mtica sempre barrada, pois que a

    obteno do objeto do desejo seria o fim do prprio desejo. Assim, tambm, para

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  • 45

    o complexo dipo, e a sua dissoluo dita normal: a proibio da unio

    incestuosa com a me, atravs da ameaa de castrao, fazendo com que o desejo

    invista fora do crculo familiar. nesta linha de raciocnio que Lacan formalizar

    o pensamento freudiano12, colocando a falta como causa do desejo. Neste

    esquema mtico-regressivo as diferenas entre os registros as vias de acesso

    satisfao so entendidas como efeitos de um princpio de identidade primeiro,

    porm inalcanvel: o prazer descarga absoluto, ou a unio incestuosa pr-edpica.

    A funo do Corpo sem rgos, como superfcie de registro, ser

    exatamente impedir esta concepo faltosa e regressiva de desejo e reformular o

    conceito de pulso de morte para que esta no esteja mais associada regresso a

    um estado inorgnico. Pois a seleo que o CsO opera na produo que nele se

    registra no pautada por um princpio de identidade mas, pelo contrrio, pelo

    elemento diferenciador da disjuno inclusa, que abole qualquer possibilidade de

    transcendncia e identidade, mesmo que (necessariamente) perdidas.

    De fato, a pulso de morte s adquire este carter de retorno ao mesmo

    dentro da metafsica dualista que a supe em oposio pulso de vida, e dentro

    de um determinado sistema social o socius capitalista, como veremos que

    interioriza a pulso de morte, referindo-a a identidade de um indivduo no mesmo

    movimento em que impede que esta identidade seja alcanada. Vejamos o que

    dizem Deleuze e Guattari a este respeito:

    Porque o desejo deseja tambm isso, a morte, pois o corpo pleno da morte o seu motor imvel, assim como deseja a vida, pois os rgos da vida so a working machine. No perguntamos como que isso funciona em conjunto: essa questo j produto de uma abstrao (Deleuze e Guattari, 2010, p. 20).

    Ou seja, a morte no vista aqui como um nada original, nem o resto de

    uma totalidade perdida (Deleuze e Guattari, 2010; p. 20). O que se abstrai,

    quando se pergunta como elas funcionam em conjunto, o carter de

    pressuposio recproca das duas. Camos, ento, na contradio inexorvel entre

    as duas pulses, entre o ser da pulso de vida e o no-ser da morte. A pulso de

    morte, o que nos mostra O anti dipo, j , sempre, pulso de vida: no o no-

    12 C.f. Peixoto Junior, C. A., Singularidade e subjetivao: ensaios sobre clnica e cultura, p.87: Note-se que o desejo, neste tipo de leitura, esta sempre vinculado a um projeto de recuperao impossvel, onde o que deve ser recuperado tanto o campo libidinal reprimido, constitutivo do inconsciente, quanto o objeto perdido, a me pr-edipiana.

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  • 46

    ser a que tudo quer retornar. No h funcionamento ideal da pulso de vida,

    construindo indivduos cada vez maiores 13, que seria ameaado pelo exterior

    vazio da morte do qual contraditoriamente ela depende, como de uma causa. Pois

    as mquinas desejantes s funcionam avariadas, avariando-se constantemente

    (Deleuze e Guattari, 2010, p. 20). A avaria, as diferenas que excedem o elo

    identitrio, no so exteriores s maquinas desejantes, so partes constituintes do

    dinamismo pulsional.

    O Corpo sem rgos, portanto, no o no-ser com o qual o ser das

    conexes produtivas se media para diferenciar-se. Ele o elemento diferenciador

    em pressuposio recproca imediata com a produo: produo de anti-produo.

    Se ele um limite, um limite para a identidade, do ponto de vista da identidade.

    Mas, do ponto de vista da produo universal primria, pura potncia para a

    diferena. E, ainda, se a disjuno uma memria (um registro) ela o somente

    na medida em que excede repetio identitria do passado, abrindo espao,

    atravs da potncia da diferena, para o esquecimento ativo.

    Por fim, podemos caracterizar, junto com Eugene Holland (1999), o CsO

    e a sntese disjuntiva como uma espcie de tabula rasa. Mas uma tabula rasa sem

    uma subjetividade prvia onde a produo se inscreva. Pelo contrrio, a

    subjetividade produzida como um efeito de um processo que imediatamente a

    descentra de si, que a ultrapassa em todas as direes. Tabula rasa ontolgica que

    liga a subjetivao ao elemento diferenciador do qual ela depende seu sombrio

    precursor.

    Sntese conjuntiva

    A sntese conjuntiva a terceira sntese, o terceiro tempo da srie. ao

    mesmo tempo um efeito das snteses conectiva e disjuntiva e uma causa para

    novas conexes e disjunes. O que se produz nela o consumo de um

    determinado estado subjetivo, caracterizado como intensivo. Pois, se na

    superfcie de inscrio, algo da ordem de um sujeito se deixa assinalar (Deleuze

    e Guattari, 2010, p. 30), este sujeito apenas o consumo de uma volpia, um

    gozo, ou um sofrimento: uma intensidade resultante dos regimes associativo da

    13 Cf. Freud, S. O Mal-estar na civilizao (1930).

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  • 47

    conexo e disjuntivo do registro. Mas, mais uma vez, por resultante no

    devemos entender almejado, ou projetado. O terceiro tempo das snteses no

    uma causa final, sendo estritamente imanente ao processo conjunto das outras

    snteses.

    Se a subjetivao intensiva funciona tambm como causa para novas

    produes e registros, no porque a individuao assim atingida exprima

    qualquer identidade que opera selees baseadas em critrios repetitivos, mas sim

    porque ela constitui o solo intensivo onde se operaro novas selees de

    elementos heterogneos em novas snteses conectivas. O elemento seletivo

    presente nas snteses, podemos ver agora, opera no sentido estrito de uma seleo

    intensiva, ligada prova tica da afirmao da diferena e do eterno retorno

    (repetio) pela vontade de potncia. Pois esta seleo intensiva, no uso legtimo

    das snteses, nos leva diretamente concepo de diferena nela mesma, central

    filosofia deleuziana. A seleo seleo do que difere, e a alegria a prova tica

    da vontade de potncia no eterno retorno da diferena (Deleuze, 1968).

    O sujeito vagabundo, produzido como pea adjacente mquina, se

    define, portanto, pelas intensidades por que passa, pelos afetos a-subjetivos que o

    descentram imediatamente de si. Sua sintaxe a do afinal, era eu... ou afinal,

    era isto.... Mas, neste era, tempo passado do verbo ser, revela-se o excesso que

    impede o sujeito de coincidir consigo mesmo. Sempre j passada, ou ainda futura,

    a subjetividade produz-se neste excesso que impede o passado e o futuro de se

    atualizem num presente definitivo que . J era este o objetivo de Deleuze em A

    lgica do sentido (1969): destituir o imprio do verbo ser, do , que cristaliza a

    diferena num produto, sujeito ou estado transcendentes, afirmando o devir como

    vontade de potncia pela seleo do que difere.

    ***

    Partimos de um pressuposto ontolgico que afirma a igualdade de natureza

    e a diferena de regime entre a produo desejante e a produo social.

    Apontamos que, pela igualdade de natureza, garantamos a imanncia da produo

    universal primria, a inocncia de uma ontologia no s liberta do trabalho do

    negativo e sua lgica de oposio, mas tambm da falta e sua nostalgia da unidade

    impossvel. Vimos tambm, quanto s snteses do inconsciente, que seu uso

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  • 48

    legtimo implicava uma concepo imanente e no faltosa dos processos de

    subjetivao.

    Mas uma pergunta essencial resta a ser respondida: mesmo afirmado este

    devir ilimitado da diferena atravs da diferena, plano de imanncia do desejo,

    como ento possvel a transcendncia, o trabalho do negativo, a oposio?

    Como pensar a estranha genealogia dos afetos tristes, das servides desejadas?

    Pois fato que elas existem: a inteno de Deleuze e Guattari no afirmar que

    no h contradio, transcendncia, falta. Assim, tambm, para o dipo: existe

    em demasia. Modulemos ento a pergunta: Como o desejo pode desejar sua

    prpria represso? E, ainda, em uma verso espinosista: por que que os homens

    combatem por sua servido como se se tratasse da sua salvao? (Espinosa, 2008,

    p. 8). Esta inquietao, esta perplexidade com o negativo, esta sintomatologia da

    falta, da transcendncia, como realiz-la?

    A questo nos reenvia diretamente ao tema de nosso trabalho e

    investigao das relaes entre capitalismo e subjetividade. Ou seja, como, para

    Deleuze e Guattari, se d a represso social do desejo, da lgica diferencial e

    heterognea das snteses do inconsciente, no socius capitalista. Em que medida os

    processos capitalistas de subjetivao confluem na represso das mquinas

    desejantes.

    2.3 Subjetividade capitalista

    Deleuze e Guattari afirmam que a funo das mquinas sociais codificar

    os fluxos do desejo14 segundo um sistema global do desejo e do destino que

    organiza as produes de produo, as produes de registro, as produes de

    consumo (Deleuze e Guattari, 2010, p. 188), fazendo-os operar conforme o uso

    ilegtimo das snteses do inconsciente. Este uso ilegtimo implica sempre na

    produo de representaes, ou codificaes, que reprimem a atividade plurvoca

    e nmade das mquinas desejante.

    14 A partir deste momento, o termo fluxos, ou fluxos desejantes pode ser compreendido como sinnimo do que descrevemos, nas partes 2.1 e 2.2 deste trabalho, como mquinas desejantes. E o termo codificao, como sinnimo de representao.

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  • 49

    Os autores distinguem, em O anti-dipo, trs socius ou corpos plenos que

    vem ocupar o lugar de instncia de anti-produo, corpo sem rgos ou pulso de

    morte. So eles o selvagem, e o corpo pleno da terra; o brbaro, e o corpo pleno

    do dspota; e, finalmente, o civilizado, ou capitalista, cujo corpo pleno o capital.

    Para compreendermos o funcionamento do capital e da produo de subjetividade

    realizada por este regime, que a que nos interessa aqui, devemos empreender,

    primeiramente, um breve estudo daquela que realizada pelas outras mquinas

    scias. Pois, de fato, cada socius, ou formao social, efetua de forma distinta a

    represso dos fluxos desejantes. E o que constitui, para os autores, a singularidade

    do capitalismo que ele , como veremos, ao contrrio das outras mquinas

    sociais precedentes, (...) incapaz de fornecer um cdigo que abranja o conjunto do

    campo social (Deleuze e Guattari, 2010, p. 51). De acordo com Eugene Holland

    os socius selvagem e brbaro, ao proceder, o primeiro, pela codificao, e o

    segundo, pela sobre-codificao, qualificam a produo desejante segundo

    sistemas simblicos de conduta, significado e crena. (Holland, 1999, p. 66).

    Ou seja, as subjetividades so produzidas conforme valores idealmente estticos,

    de acordo com as representaes impostas pela mquina social.

    Selvagens

    No corpo da terra a comunidade erige-se como entidade nica

    indivisvel (Deleuze e Guattari, 2010, p. 187) segundo uma horizontalidade

    coletiva15 que tem uma dupla funo. Por um lado ela deve negar que qualquer

    grupo ou indivduo separe-se do corpo social. Ou seja, deve esconjurar a apario

    de um lder ou chefe que verticalize a unidade coletiva. Por outro, atravs da

    rgida codificao de valores, funes e crenas, ela deve impedir que qualquer

    fluxo escape, que qualquer investimento desejante fuja aos cdigos da mquina.

    funo do corpo pleno da terra, como instncia de anti-produo, impedir tanto a

    15 Deleuze e Guattari baseiam suas pesquisas sobre o socius selvagem, em grande parte, na obra do antroplogo francs Pierre Clastres. Segundo este A propriedade essencial (quer dizer, que toca a essncia) da sociedade primitiva exercer um poder absoluto e completo sobre tudo que a compe, interditar a autonomia de qualquer um dos subconjuntos que a constituem (...) sociedade qual nada escapa, que nada deixa sair de si mesma, pois todas as sadas esto fechadas. Sociedade que, por conseguinte, deveria eternamente se reproduzir sem que nada de substancial a afete atravs do tempo (Clastres, 1974, p.228)

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  • 50

    fuga dos fluxos como, atravs do consumo ritual dos excedentes de produo, o

    aparecimento de um chefe separado do corpo social.

    A sntese disjuntiva levada a operar segundo o seu uso exclusivo e

    limitativo, selecionando as conexes da primeira sntese conforme constncias

    que devem ser repetidas, hbitos institudos. Assim, de acordo com seu

    funcionamento exclusivo, ou se guerreiro ou caador: as conexes da

    primeira sntese determinam a subjetividade a escolher papis previamente

    qualificados segundo os cdigos da comunidade.

    Finalmente, na sntese conjuntiva, temos a forma do afinal, era a Terra,

    pois a terra, tornada corpo pleno, funciona como uma quase-causa de onde todas

    as produes parecem emanar a dvida de cada subjetividade para com os

    cdigos da comunidade indivisvel. Deleuze e Guattari descrevem este fenmeno

    atravs da expresso movimento objetivo aparente, pelo qual a produo

    atribuda ao socius como superfcie miraculante ou pressuposto natural ou

    divino (Deleuze e Guattari, 2010, p. 21). E a operao dita fetichista, pois (seja

    na mquina selvagem, desptica ou civilizada-capitalista) o socius apenas uma

    quase-causa, j que a produo desejante o corpo pleno sem rgos da

    produo desejante que permanece, aqum ou alm das representaes sociais,

    como a causa eficiente responsvel pelo movimento de todo o processo.

    Brbaros

    O socius desptico, ao contrrio do selvagem, opera pela verticalizao da

    mquina social. O conceito de despotismo, em O anti-dipo, abarca a formao

    de imprios e Estados heterogneos, mas que exprimem uma mesma fatalidade,

    ou ideia racional, contra a qual so medidos os fluxos da produo desejante: o

    Urstaat16. Segundo Guillaume Sibertin-Blanc, o dspota, como entidade separada

    do corpo social ou objeto transcendente, sobre-codifica as comunidades

    16 Deleuze e Guattari apoiam-se, para caracterizar o regime brbaro, ou desptico-Estatal, em Nietzsche. Vale citar a passagem em que se apoiam os autores para descrever a chegada dos brbaros, ou dos fundadores de estado: (...) a insero de uma populao sem normas e sem freios numa forma estvel (...) foi levada a termo somente com atos de violncia(...) o mais antigo estado, em consequncia, apareceu como uma terrvel tirania, uma mquina esmagadora e implacvel (...), na qual as partes e as funes foram delimitadas e relacionadas entre si, na qual no encontra lugar o que no tenha antes recebido um sentido em relao ao todo (Nietzsche, 1999, p. 75).

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  • 51

    selvagens, fazendo-as convergir em direo a um princpio de unificao de onde

    elas parecem decorrer como de uma fonte transcendente. (Sibertin-Blanc, 2010,

    p. 118-119). Ainda segundo este autor, a relao de foras desptica modifica os

    modos de subjetivao, j que hierarquiza o corpo social segundo castas,

    estriando-o entre dominantes e dominados, senhores e escravos. O desejo torna-

    se, ento, desejo do desejo do dspota desejo que deve interpretar e adequar-

    se, submeter-se, aos desgnios de uma instncia transcendente e ausente.

    A falta, ento, distribuda atravs da distncia que separa os sditos do

    Estado. Ela exprime o regime da dvida infinita. O objeto transcendente, tornado

    credor absoluto do socius, agente de sobre-codificao, dita as normas que

    exprimiriam uma adequao perfeita da subjetividade mquina, normas que tem

    como funo realizar o Urstaat, ou seja, amarrar o desejo de forma absoluta ao

    desejo do Estado. Mas, na distncia que separa fato e direito, estas normas

    tornam-se irrealizveis os regimes das mquinas desejantes (fato)

    insubordinvel s exigncias da unificao transcendente (direito). Nesta

    inadequao ontolgica entre desejo e representao, o regime desptico ou

    Estatal emite seus juzos, suas condenaes, tornando a subjetividade

    infinitamente faltosa, devedora.

    Segundo Holland, a anti-produo, ou pulso de morte, torna-se, na

    imagem do dspota, uma ameaa permanente que vem de cima, na qual a [a]

    obedincia lei transcendente do dspota reforada (...) pela ameaa de morte

    (Holland, 1999, p. 76). Como senhor da sntese disjuntiva, o dspota ou o Estado

    se apropriam, no apenas do sobre-trabalho e dos excedentes na forma de tributo,

    mas, no limite, da vida dos prprios indivduos.

    O socius desptico opera, portanto, assim como o selvagem, segundo

    critrios ilegtimos, ou representativos, das snteses desejantes. Enquanto instncia

    de anti-produo, funciona segundo o ou limitativo e exclusivo das castas

    estriadas: ou se senhor, parte da casta dominante, ou sdito. A sobre-codificao

    impe o objeto transcendente das alturas, que determina as snteses conectivas a

    produzirem conforme as normas de um organismo idealmente unificado, e a

    conjuntiva reporta todas as atividades produtivas ao dspota, ou Estado: Ento,

    era o dspota!.

    As mquinas desejantes, ou a atividade heterognea e plurvoca das

    snteses do desejo, so, assim como no socius selvagem, duramente reprimidas. A

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  • 52

    subjetividade produzida segundo os desgnios de um corpo social que a mantm

    idealmente presa ao desejo do Estado. Tanto no socius selvagem como no

    desptico, a subjetividade recebe uma funo pr-determinada, na qual subtrada

    a priori, ao menos idealmente, qualquer possibilidade de variao, de

    diferenciao que j no se encontrem inscritas nas normas coletivas. E, embora o

    funcionamento da represso social do desejo, atravs da produo de

    representaes, permanea ideal j que, por toda parte, aqum e alm das

    normas erigidas, as mquinas desejantes continuam a emitir fluxos no

    codificados , ele no deixa de produzir efeitos na realidade.

    Civilizados

    Ora, com o capitalismo, segundo Deleuze e Guattari, temos um fenmeno

    de natureza inteiramente diversa. Os autores enxergam no capital um processo

    generalizado, indito em escala e intensidade, de abertura da histria sobre a

    diferena. Caracterizam o capitalismo como descodificao e desterritorializao

    generalizada dos fluxos do desejo. Aquilo que era temido, esconjurado, em outros

    sistemas a descodificao e desterritorializao do desejo torna-se agora,

    paradoxalmente, uma norma de funcionamento:

    (...) o capitalismo e seu corte no se definem apenas pelos fluxos descodificados, mas pela descodificao generalizada dos fluxos, (...) e pela conjuno dos fluxos desterritorializados. Foi a singularidade desta conjuno que fez a universalidade do capitalismo (Deleuze e Guattari, 2010, p. 298).

    A descodificao e desterritorializao dos fluxos ou seja, a liberao

    de fluxos no inscritos em qualquer norma representativa no so reprimidas,

    mas constituem parte essencial da mquina. Pois o corpo pleno do capital, como

    instncia puramente econmica, torna-se indiferente ao contedo do que

    produzido, contanto que a produo sirva a seu alargamento infinito17. Segundo

    Brian Massumi, o capital, como novo corpo pleno do socius, uma medida 17 Marx permanece como a referncia essencial de Deleuze e Guattari para pensar o capitalismo. Segundo o filsofo alemo: A indiferena em relao ao trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade na qual os indivduos podem passar facilmente de uma forma de trabalho a outro e na qual o gnero determinado de trabalho fortuito, e, portanto -lhes indiferente. (...) o trabalho se converteu no s como categoria, mas na efetividade, em meio de produzir riqueza em geral (...) (Marx, 2000, p. 42-43).

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  • 53

    abstrata, pois indiferente ao (...) contedo: no importa o que um corpo compra,

    ou que atividade ele vende, apenas que ele compre (Massumi, 1992, p. 132). Ou

    seja, ele promove uma abstrao da produo em relao a qualquer cdigo ou

    representao substancial, a qualquer norma tica ou moral que possa barrar a

    produo desejante.

    Guillaume Sibertin-Blanc aponta que, no socius capitalista, a relao

    econmica torna-se seu prprio pressuposto, e nico pressuposto de direito do

    sistema social ( Sibertin-Blanc, 2010, p. 63), pois relega todos os cdigos,

    crenas ou significados a posies secundrias, subordinadas expanso do

    capital. Este, como novo corpo pleno do socius, quase-causa e pressuposto natural

    ou divino de onde toda produo parece emanar , no limite, indiferente ao

    contedo do trabalho e a da riqueza, desde que estes sejam passiveis de realizao

    no mercado. Ou seja, desde que o dinheiro investido, independente da mercadoria,

    possa gerar mais dinheiro e veremos, mais adiante, como neste critrio nico

    reside, entretanto, a chave para compreendermos a face repressora do capitalismo,

    na perspectiva de Deleuze e Guattari.

    O capital tornado corpo pleno s conhece um imperativo,

    fundamentalmente amoral, pois indiferente aos meios pelos quais ele ser

    cumprido: que o dinheiro gere mais dinheiro. Este imperativo constitui a famosa

    frmula descrita por Marx, que retomada por Deleuze e Guattari na descrio da

    lgica capitalista: D-M-D+. O dinheiro desempenha, aqui, o papel de causa

    primeira e final, sendo a mercadoria um meio qualquer, meio subordinado s

    exigncias da expanso econmica18.

    18 Marx distingue, no primeiro livro de O capital (2010), a forma simples da circulao de mercadorias, M-D-M (vender para comprar), da forma propriamente capitalista, D-M-D+ (comprar para vender): No primeiro caso, a mercadoria e, no segundo, o dinheiro, o ponto de partida e a meta final do movimento. Na primeira forma de movimento, serve o dinheiro como intermedirio e, na segunda, a mercadoria (Marx, 2010, p. 179). O filsofo alemo assevera que a frmula da expanso capitalista no implica, portanto, numa diferena qualitativa entre mercadorias e seus diversos valores-de-uso, como na circulao simples, mas na diferena puramente quantitativa representada pela expanso do dinheiro. O objetivo da relao capitalista que o dinheiro que compra a mercadoria (D-M), quando a mercadoria vendida na segunda fase do processo de circulao: (M-D+), aumente. E que o capital resultante deste excedente possa ser reinvestido numa novo ciclo de valorizao. A mais- valia decorre do processo aberto e tendencialmente infinito de valorizao do dinheiro, e revela o carter da explorao realizada pelo capital. Segundo Marx, a fora de trabalho a nica mercadoria capaz de gerar o valor excedente que se realizar ao final do processo de circulao (D+): O processo de consumo da fora de trabalho , ao mesmo tempo, o processo da produo de mercadoria e de valor excedente (mais-valia) (Marx, 2010, p.206). Mas o capitalista, proprietrio dos meios de produo, paga aos trabalhadores apenas o tempo de trabalho necessrio sua reproduo e subsistncia, extorquindo, ento, o excedente produtivo, o mais valor gerado

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  • 54

    As mercadorias no dependem de qualquer qualificao substancial para

    serem sancionadas ou reprimidas pelo corpo pleno. E seu carter abstrato permite

    a mercadificao generalizada do socius: tanto objetos de consumo, como

    eletrodomsticos, televisores ou automveis, como a prpria subjetividade, os

    afetos, desejos e mesmo a sexualidade, tornam-se meios, no apenas tolerados,

    mas necessrios, para a expanso capitalista. De fato, segundo Guattari, a

    mquina capitalstica produz (...) aquilo que acontece conosco quando sonhamos,

    quando devaneamos, quando fantasiamos, quando nos apaixonamos e assim por

    diante. (...) (Guattari, 2005, p. 22). Ela torna-se responsvel por uma indita

    produo de subjetividade que, seja em seus aspectos materiais (bens de consumo)

    ou imateriais (afetos, desejos, etc.) , em relao aos socius selvagem e brbaro,

    significativamente mais diversificada, instvel e hbrida.

    Por estas caractersticas descodificadoras e desterritorializantes Deleuze e

    Guattari podem apontar que o capitalismo aproxima-se de um limiar dito

    esquizofrnico da produo desejante. As snteses do inconsciente, como vimos,

    em seu uso legtimo, no-representativo, operam segundo relao diferenciais

    onde o encadeamento das conexes, o registro das disjunes e o efeito de

    subjetivao ou individuao das conjunes no obedecem a qualquer

    representao destacada, a nenhuma norma que deva ser copiada segundo os

    critrio de identidade e semelhana.

    O inserir produzir no produto torna a diferena afirmada nela mesma,

    impedindo qualquer cristalizao normativa de hbitos, crenas ou desejos,

    tornando a diferena o nico critrio de afirmao. A subjetividade produzida por

    um processo desejante legtimo no nunca, ento, aquela de um Organismo

    soberano a comunidade tribal ou o Estado, como vimos a respeito dos socius

    selvagem e desptico que se coloque como proprietrio das conexes e

    disjunes. Pelo contrrio, o corpo sem rgos da produo universal primria

    produz subjetividades imediatamente descentradas, nmades, que resultam dos

    estados intensivos pelas quais passam. Subjetividade dita, portanto,

    esquizofrnica. No no sentido clnico, psiquitrico, do termo, mas na medida pelo processo laboral. A mais-valia a apropriao privada, pelo capitalista, da riqueza gerada pela produo coletiva do trabalho: O segundo perodo do processo de trabalho, quando o trabalhador opera alm dos limites do trabalho necessrio, embora constitua trabalho, dispndio de fora de trabalho, no representa para ele nenhum valor. Gera a mais valia que tem, para o capitalista, o encanto de uma criao que surgiu do nada (Marx, 2010, p. 253).

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  • 55

    precisa em que escapa aos cdigos e valores institudos, abrindo espao para a

    produo contnua da diferena.

    Seria o capital, ento, para Deleuze e Guattari, um sistema que faria

    coincidir produo desejante e produo social? Lembremos que, segundo os

    autores, o socius opera uma represso nas mquinas desejantes que se apoia no

    recalcamento propriamente dito realizado pela instncia de anti-produo, ou

    corpo pleno sem rgos. No recalcamento, legtimo e conforme ao desejo, o 1

    da sntese disjuntiva vem introduzir produzir no produto, barrando qualquer

    cristalizao da produo. J a represso social, pelo contrrio, conforme j

    observamos a respeito dos selvagens e brbaros, implica na produo de

    identidade, na repetio do mesmo como critrio seletivo e na sujeio do desejo a

    uma potncia mais baixa, atravs da produo de imagens que se supe

    represent-lo. Qual a relao, ento, entre o capital e represso social se este

    sistema, como vimos, necessita da produo ininterrupta de diferenas para

    perpetuar-se?

    Peter Pal Plbart, em um trecho do livro A vertigem por um fio: polticas

    da subjetividade contempornea (2000), toca o corao de nosso problema. Ele

    lana a pergunta decisiva: No ser uma subjetividade mais esquizo, mais

    fluxionria, (...) talvez por isto mais resistente (...) imagem do capital, de suas

    carncias seriais, de suas capturas, grudes e lamrias? (Plbart, 2000, p. 19).

    Ora, qual seria ento esta imagem do capital, ele que, como corpo pleno

    puramente econmico, mquina profundamente desterritorializada e esquizoide,

    no possui imagem a-priori, mas opera segundo fluxos de qualquer ordem, desde

    que estes possam agregar mais valor ao valor econmico? E quais seriam os

    grudes ou lamrias citados por Peter, se a expanso econmica , como vimos,

    fundamentalmente amoral, indiferente a contedos e cdigos constitudos?

    que, para Deleuze e Guattari, o movimento de descodificao e

    desterritorializao no constitu o nico aspecto da mquina capitalista: ele

    acompanhado, ao mesmo tempo, pelo movimento oposto, denominado

    recodificao e reterritorializao. Pois, ao lado da lgica do mercado, de uma

    atividade econmica conforme ao imperativo de uma produo desejante

    altamente esquizofrnica, o capital s se realiza, ou seja, s se efetua e concretiza,

    nos agentes privados de acumulao.

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  • 56

    Esta efetuao, ou concreo, se d pelo franqueamento de um limite,

    denominado mais valia de fluxo19, e representado pela passagem de D (limite) a

    D+ (limite ultrapassado), na frmula marxiana. Nela, os agentes sociais, os

    contedos e papis substanciais reaparecem sob a forma de realizadores privados

    da mais-valia de fluxo liberada pela produo desejante. A diferena entre D e D+

    apenas se torna concreta, somente se realiza, quando apropriada por uma

    subjetividade privada: recodificao e reterritorializao. Segundo os autores

    A pessoa deveio realmente privada, na medida em que deriva das quantidades abstratas e devem concreta no devir concreto destas mesmas quantidades (...) j no preciso investir coletivamente os rgos, eles j esto preenchidos pelas imagens flutuantes que no param de ser produzidas pelo capitalismo (...) essas imagens (...) acarretam menos numa publicizao do privado do que numa privatizao do pblico: o mundo inteiro se passa em famlia, sem que se tenha que deixar a sua televiso (Deleuze e Guattari, 2010, p. 332).

    Eugene Holland, seguindo o pensamento dos autores, aponta que [o]s

    efeitos emancipatrios da descodificao (...) so acompanhados pelo processo

    oposto (...) para extrair e realizar mais valia privadamente aproprivel. (Holland,

    1999, p. 80). Segundo este autor, na caracterizao que Deleuze e Guattari fazem

    do socius capitalista, este possui dois polos, conforme os dois tipos de

    investimento desejante acionados pelo sistema: o esquizo-revolucionrio e o

    fascista paranoide. No primeiro polo, temos os fluxos de uma produo

    desejante cada vez mais diferencial, de um processo de subjetivao que se situa,

    para citar Nietzsche, para alm do bem e do mal, capaz de produzir no apenas

    novas mercadorias, mas novos afetos, desejos e relaes sociais.

    No segundo polo, porm, retornam os mecanismos de uma gigantesca

    represso da produo desejante: o critrio da acumulao privada, pela qual o

    franqueamento do limiar capitalista, em sua expanso tendencialmente infinita, s

    concretiza-se pela gerao de mais valia apropriada pelas subjetividades

    soberanas (Holland, 1999, p. 52), indivduos abstrados do corpo social. Neste

    polo reacionrio, uma produo diferencial, envolvendo todos os elementos

    heterogneos do desejo isto , no pessoas privadas, mas multiplicidades que

    no se deixam aprisionar num eu redimensionada dentro do quadro estreito

    19 Cf. Abbes, C., Pensando o contemporneo no fio da navalha, In: Revista Lugar Comum 19-20,2004, p.70: A mais-valia na sociedade capitalista se converte em mais-valia de fluxo desde o ponto de vista da produo econmica at a produo da vida.

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  • 57

    da vida privada, numa privatizao que incide sobre os bens, os meios de

    produo, mas tambm os rgos do prprio homem privado (Deleuze e

    Guattari, 2010, p. 325).

    E no corpo pleno do capital, como superfcie fetichista, as subjetividades

    privadas tornam-se, na falsa conscincia do ser capitalista, ou seja, na

    conscincia verdadeira de um movimento aparente (Deleuze e Guattari, 2010, p.

    23), causa da produo desejante: a busca de lucro (privado) torna-se condio

    da produo desejante. O que barreira e limite transforma-se, no mundo

    perverso enfeitiado do socius, em causa. A sntese conjuntiva torna-se a

    possesso ilusria - objetivamente ilusria - pelas pessoas privadas, engajadas no

    teatro ntimo e familiar da vida privada, dos fluxos de uma produo desejante

    que se realiza aqum e alm de qualquer pessoalidade: Ento, seu pai, ento

    sua me, ento voc: a conjuno familiar resulta das conjunes capitalistas,

    uma vez que estas se aplicam as pessoas privatizadas (Deleuze e Guattari, 2010,

    p. 352).

    O mecanismo que produz o indivduo burgus como agente de acumulao

    chamado por Deleuze e Guattari de axiomtico. Ao contrrio do socius

    selvagem, que codifica a produo no coletivo tribal, e do estatal-desptico, que a

    sobre-codifica no objeto transcendente, o capitalista, segundo os autores, a

    axiomatiza na acumulao privada. A axiomtica opera segundo procedimentos

    que, assim como a codificao ou a sobre-codificao, contrariam a tendncia

    (...) descodificao dos fluxos, mas que, ao contrrio destes mecanismos, assim

    o faz no lhes opondo obstculos exteriores, mas arranjando os deslocamentos de

    limites imanentes nos quais esta tendncia tende a se realizar. (Sibertin-Blanc,

    2006, p. 676). Estes limites tornados interiores so, portanto, os limites da

    acumulao privada, onde a tendncia de expanso ilimitada do capital se

    realiza: (...) a forma da propriedade privada que constitui o centro das re-

    territorializaes factcias do capitalismo (Sibertin- Blanc, 2006, p. 652).

    Ora, mas porque estes limites so ditos imanentes, ao contrrio dos limites

    ainda transcendentes, dos selvagens e brbaros? De fato, em O que a filosofia

    (1991), ltima obra dos autores escrita em conjunto, eles podem afirmar que, no

    capitalismo [o] campo social no remete mais, como nos Imprios, a um limite

    exterior que o limita de cima, mas a limites interiores imanentes, que no cessam

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  • 58

    de se deslocar, alargando o sistema, e que se constituem deslocando-se. (Deleuze

    e Guattari, 1991, p. 127).

    que a concretizao ou a efetuao do mais valor gerado pela

    desterritorializao e descodificao no constitui um limite idealmente absoluto,

    uma efetuao que se realizaria de uma vez por todas. um limite que, ao se

    concretizar nas subjetividades privadas, no encontra nelas uma parada: o capital

    gerado por D-M-D+ dever ser reinvestido numa busca infinita de um mais valor

    sempre alargado.

    No capitalismo a sntese disjuntiva ou pulso de morte introduz, ento, a

    falta no seio da abundncia, j que a falta subjetiva arrumada, vacuolizada na

    produo social (Deleuze e Guattari, 2010, p. 45) como desejo eternamente

    insatisfeito ganncia infinita do homem privado. O capital produz

    subjetividades faltosas no, como no socius desptico, a partir de uma instncia

    exterior que absorve os excedentes e fixa a sobre-codificao normativa, mas a

    partir do interior da prpria produo. E por isto este interior no se constitui

    como um conjunto idealmente fechado, como na mquina social selvagem, mas

    sim como um conjunto que necessita ser continuamente alargado, deslocando

    perpetuamente seus limites imanentes. O capital, em seu processo de infinita

    expanso, produz nas subjetividades privadas em que se concretiza a eterna falta

    de um a mais de capital20.

    Este o contexto no qual, segundo Eugene Holland, o ascetismo

    trabalho infinito para pagar a dvida infinita, torna-se a regra da subjetividade

    capitalista (Holland, 1999, p. 83). Ou seja, a dvida infinita, antes encarnada no

    dspota ou no Estado como credor absoluto do socius, interioriza-se nos agentes

    privados de acumulao: no se deve mais a instancia exterior do dspota, mas a

    si mesmo. E veremos um pouco mais adiante como esta interiorizao

    determina o que os autores chamam de edipianizao do campo social, ou a

    culpabilidade intrnseca s subjetividades produzidas pela mquina capitalista.

    Segundo Deleuze e Guattari, portanto, a axiomatizao da produo

    desejante sobre os agentes privados de acumulao faz com que o pequeno eu de 20 Neste sentido, conferir Rauter, C., Produo social do negativo: notas introdutrias. In. Psicologia clnica, 2003, p. 116-117: Produzir a falta no seio da abundncia (gerada pela abundncia de bens caracterstica deste modo de produo) foi desde o incio uma das invenes da mquina capitalista em sua expanso. O capitalismo foi, desde sempre, um enorme empreendimento de acumulao e gesto de homens e no apenas de capital: foi necessrio produzir subjetividades faltosas e obedientes.

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  • 59

    cada um, reportado ao seu pai e me, seja verdadeiramente o centro do mundo

    (Deleuze e Guattari, 2010, p. 352). Ou seja, com que os fluxos desterritorializados

    e descodificados, ao serem re-codificados, submirjam o socius num familialismo

    obstinado, num teatro ntimo aonde a subjetividade busca apropriar-se como pode

    da parte a que est destinada do mais valor econmico.

    Por um lado, a subjetividade assediada pelos fluxos descodificados do

    desejo, pela esquizofrenia como processo legtimo da produo desejante

    conforme sua lgica heterognea e diferencial. Mas, por outro, ela levada a

    ressuscitar, segundo as exigncias da acumulao privada, as imagens

    representativas que aprisionam o desejo segundo critrios ilegtimos da produo.

    Se estas imagens possuem o eu privado como centro, elas engajam em seu

    movimento de re-codifico todas as formas de identidade e representao que,

    segundo o primeiro polo do investimento desejante, tendiam a desaparecer. Ento,

    [t]udo repassa ou regressa, os Estados, as ptrias, as famlias(Deleuze e

    Guattari, 2010, p. 53).

    Os Estados, de fato, no desaparecem, mas retornam como peas

    essenciais da axiomatizao capitalista, do polo paranoico-fascista do socius. Seu

    reaparecimento, no entanto, implica numa mutao essencial em relao aos

    mecanismos de represso do socius desptico. Pois se antes eles se constituam

    como agente de sobre-codificao transcendente, agora se tornam pea

    subordinada, mesmo que essencial, da axiomtica de acumulao privada.

    Perdem seu papel determinante de sobre-codificao para ganhar um papel

    subordinado axiomtica econmica que o ultrapassa.

    No socius desptico so os sditos que servem ao soberano, ou ao Estado,

    segundo as normas sobre-codificantes de uma mquina social essencialmente

    pblica. E, aqui, pblico no ope a privado simplesmente impossvel a

    figura de um indivduo privado que se aproprie da produo. Mas, no capital, a

    privatizao que atravessa o socius faz do Estado um agente a servio das pessoas

    privadas, do teatro ntimo e familiar onde o desejo capturado. Como agente de

    re-codificao, o Estado perde seu carter pblico, tornando-se numa esfera

    pblica do privado, procedendo atravs da publicizao constante da esfera

    privada. O pblico no chega a se opor a um domnio privado a no ser a partir

    do momento onde ele torna-se um quadro para as apropriaes privadas, meio

    pelo qual (...) elas se realizam (Sibertin-Blanc, 2006, p. 604-605). A funo do

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  • 60

    Estado, ento, constituir-se como agente de re-codificao, garantindo, atravs

    de seu aparato administrativo, jurdico, policial e militar, que a produo desejante

    liberada pelo polo esquizo-revolucionrio do capital no ultrapasse o limiar da

    acumulao privada, de sua realizao nos agentes personalgicos do capital.

    2.4 Capitalismo e complexo de dipo

    Todas estas caractersticas que descrevemos como pertencentes ao polo

    axiomtico, ou fascista-paranoico, do capital, levam Deleuze e Guattari a

    caracterizarem a produo de subjetividade neste socius como essencialmente

    edipianizada, ou culpada. De fato, segundo Guattari

    A noo de responsabilidade individuada uma noo tardia, assim como as noes de erro e culpabilidade interiorizada. Num certo momento, se assistiu a um confinamento generalizado das subjetividades, a uma separao dos espaos sociais e a uma ruptura de todos os antigos modos de dependncia. (Guattari, 2005, p. 44)

    O dipo, para os autores, o efeito da captura do desejo nas coordenadas

    do sujeito privado, da famlia burguesa como foco de absoro de capital. Deleuze

    e Guattari mostram, atravs de uma anlise crtica do complexo de dipo

    freudiano e lacaniano, que a interiorizao do sujeito capitalista, como sujeito

    privado, torna-o essencialmente culpado e castrado.

    Como vimos na parte 2.2 deste trabalho, o complexo de dipo concebido

    por Freud como o momento fundamental na constituio da vida psquica. De

    fato, em Totem e Tabu (1913) o autor pode afirmar que os primrdios da religio,

    da moral, da sociedade e da arte convergem, todos, para o complexo de dipo

    (Freud, 1913, p. 63). O sujeito emerge, do dipo, atravs de um ato fundador de

    proibio: a ameaa de castrao, realizada pelo pai, probe ao filho o acesso

    relao incestuosa com a me. So duas as premissas bsicas que norteiam, ento,

    a concepo de desejo freudiana: o desejo o movimento atravs do qual um eu

    privado busca a completude e, ao mesmo tempo, o movimento pelo qual esta

    completude impossvel pois sempre falta, exatamente, o objeto que viria

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    complet-lo (a me) 21. A castrao, como fenda no sujeito , contraditoriamente,

    aquilo que o constitui enquanto sujeito do desejo:

    (...) as pessoas globais, a prpria forma das pessoas, no preexistem s proibies que pesam sobre elas e que as constituem, (...) o desejo, ao mesmo tempo, recebe seus primeiros objetos e os v proibidos. (Deleuze e Guattari, 2010, p. 95).

    A relao incestuosa com a me o estado mtico ao qual o sujeito busca

    regressar, estado de completude absoluta ou das pessoas globais, conforme a

    citao no trecho acima. Ora, mas alcanar esta completude significa, ao mesmo

    tempo, a abolio, a morte do prprio sujeito. Ou seja, o desejo, concebido como

    direcionado completude de um eu privado, torna-se desejo de morte, de

    aniquilao22. Desejo que de acordo com Freud poderia expressar-se de duas

    maneiras: voltado contra si, ou direcionado aos outros:

    O que acontece [no indivduo] para tornar inofensivo o seu desejo de agresso? (...) sua agressividade introjetada, internalizada; ela , na verdade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto , dirigida no sentido de seu prprio ego. A, (...) est pronta para pr em ao contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre outros indivduos, a ele estranhos (Freud, 1930, p. 127).

    M-conscincia e culpa, de um lado; ressentimento e agresso, de outro. A

    vontade de completude oscila entre estes dois polos: autodestruio atravs de

    abnegao interior, ou violncia dirigida contra os outros, concebidos como

    concorrentes na busca pelo acesso ao gozo incestuoso da me23. O importante

    para Deleuze e Guattari que, segundo o complexo de dipo, o desejo quer o

    absoluto de uma realizao individual plena, quer livre acesso completude

    narcsica da relao incestuosa. E deve, ento, ser castrado para que a vida social

    21 Cf. a discusso sobre a sntese disjuntiva, na parte 2.2 deste trabalho. 22 Cf. Freud, S. O mal estar da civilizao, 1930, p.147: A questo fatdica para a espcie humana parece-me ser saber se, e at que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguira dominar a perturbao de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agresso e autodestruio. 23 Cf. os comentrios de Laura Ferreira dos Santos sobre a concepo de desejo e subjetividade freudiana, em Pensar o desejo a partir de Freud, Girard e Deleuze, 1997, p. 59: (...) Todo dano causado ao nosso Eu onipotente e autocrtico no fundo um crimen lesae majestatis. Tal eu no faz mais que atuar em funo das pulses e desejos mais bsicos que existem no inconsciente. Embora, segundo Freud, o nosso inconsciente no leve ao assassinato, pensa-o e deseja-o. (...) No de admirar que Freud (...) nos considere, tal como os primitivos, uma horda de assassinos..

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  • 62

    seja possvel a falta do objeto que viria completar o sujeito deve ser assumida,

    interiorizada.

    De fato, para Guillaume Sibertin Blanc, em Freud, o interdito do incesto

    exprime (...) positivamente o recalque de moes pulsionais que, deixadas a sua

    satisfao livre, tornariam impossvel a ordem da cultura (Sibertin-Blanc, 2010,

    p. 84). Ou seja, a vontade, no mesmo movimento em que referida a

    absolutizao de uma subjetividade privada, torna-se vontade de nada, pulso de

    morte e de abolio. O sujeito privatizado, narcsico, vive sua filiao com o

    social como castrao ningum pode possuir a completude incestuosa, se

    algum a possusse a vida social seria impossvel24 e seu desejo privado como

    desejo de abolio.

    Ao contrrio de ser um mecanismo essencial da constituio da cultura,

    como em Freud, o complexo de dipo, para Deleuze e Guattari, uma

    consequncia imediata do mecanismo de axiomatizao capitalista. Ao realizar a

    privatizao generalizada do socius, o capital, como corpo pleno, inscreve em

    todos os agentes abstrados do corpo social o desejo de acumulao plena de mais

    valia e capital ou, segundo a formulao freudiana, de acesso pleno ao gozo

    incestuoso. Ora, a consequncia deste acesso absoluto seria a colonizao ntima

    de toda a vida social, significando a dissoluo da prpria sociabilidade.

    Tornam-se justificadas, ento, a represso, a assuno da falta e da

    castrao, como condies mesmas da vida em comunidade: reconhecer a

    castrao como o ponto fundamental onde a impossvel coincidncia do sujeito

    consigo mesmo torna possvel a convivncia social. A necessidade de soldar o

    desejo individual lei, para que o indivduo no desestabilize o campo social,

    legitima, portanto, o investimento do polo fascista-paranoico do desejo. A

    subjetividade privada edipiana necessita dos Estados, das famlias e da lei como

    agentes de regulao (represso) de seu individualismo possessivo: re-codificao

    e reterritorializao.

    Mas, segundo Deleuze e Guattari, a prpria lei a prpria represso

    que cria uma falsa imagem do desejo, segundo o qual ele quer o absoluto, o

    24 Cf. Freud, S. O mal estar da civilizao, p.101: A substituio do poder do indivduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilizao. Sua essncia reside no fato de os membros de uma comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfao. (Freud, 1930, p. 101)

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    desejo absolutista e anti-social de uma subjetividade privada. A lei cria, no mesmo

    instante, a si mesma e ao sujeito sob o qual ela se exerce:

    A lei nos diz: no desposars tua me e no matars teu pai. E ns, sujeitos dceis, nos dizemos: ento isso que eu queria! (...) Procede-se como se fosse possvel concluir diretamente do recalcamento a natureza do recalcado, assim como da proibio a natureza do que proibido. (Deleuze e Guattari, 2010, p. 156),

    que a represso, conforme nos mostram os autores, no se passa entre a

    lei e o desejo concebido como individual, mas sim entre o desejo, conforme este

    produzido pela lei como desejo individual, e a produo desejante, conforme esta

    desfaz o eu em nome de processos de subjetivao imediatamente heterogneos e

    descentrados. Ou seja, entre o desejo individual, referido a um sujeito privado

    quer este assuma ou no a castrao que, de todo modo, insiste e a produo

    universal primria, ou a descodificao e desterritorializao dos fluxos

    desejantes, que apontam imediatamente para um fora do eu atravs de novas

    formas de sociabilidade que no necessitam mediar-se com a castrao ou com a

    falta, para serem atingidas.

    Se s h sujeito fixo pela represso (Deleuze e Guattari, 2010, p. 45),

    no ser interiorizando a represso no sujeito fixo que o levaremos a diferenciar-

    se no mximo, o tornaremos culpado, e lhe inculcaremos a dvida infinita de

    que o capital necessita para perpetuar-se:

    O dipo(...) a nossa formao colonial ntima que responde a forma de soberania social. (...) O campo social (...), rebate-se sobre o dipo, onde cada um agora ocupa s o seu canto cortado. (...) o tringulo edipiano a territorialidade ntima e privada que corresponde a todos os esforos de reterritorializao social do capitalismo (Deleuze e Guattari, 2010, p. 351-353).

    A privatizao castrada, consequncia imediata da vinculao do desejo a

    uma individualidade separada do corpo social , justamente, para Deleuze e

    Guattari, a parada no processo de descodificao e desterritorializao que o

    capitalismo libera. Que ele no libera, portanto, sem reconduzi-lo continuamente

    s ilhas de reterritorializao do eu, da lei e do Estado. E a experincia da

    esquizofrenia como fragmentao, autismo ou paranoia, constitui o rebatimento

    dos fluxos do desejo, de seu movimento constituinte, positivo, pleno, na

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    subjetividade privada. Ou seja: no a ausncia de lei que acarreta na

    esquizofrenizao do campo social, mas a presena, ainda, da lei da re-

    codificao e da reterritorializao que conduz o desejo a uma ausncia, a uma

    falta, que paralisa a esquizofrenia como processo, produzindo, em seu lugar, a

    figura do esquizofrnico clnico, como trapo autista (Deleuze e Guattari, 2010).

    Aonde, ento, se encontra a aposta poltica de Deleuze e Guattari para uma

    subjetividade que se produza, conforme as snteses legtimas do inconsciente, para

    alm da represso social realizada pela axiomtica capitalista? A aposta dos

    autores clara: franquear os limites interiores que a acumulao privada impe ao

    processo de desterritorializao e descodificao do desejo. Pois,

    o desejo no tem como objeto pessoas ou coisas, mas meios inteiros que ele percorre, vibraes e fluxos de qualquer natureza que ele esposa, introduzindo cortes, capturas, desejo sempre nmade e migrante cujo carter primeiro o gigantismo (Deleuze e Guattari, 2010, p. 386).

    Gigantismo, portanto, que no constitui a projeo narcsica de um

    indivduo privado, que deve sempre ser mediado pela falta, como condio de sua

    vontade anti-social de completude. O gigantismo a que se referem os autores o

    gigantismo imediato da produo desejante, da subjetividade fora dos eixos da

    privatizao capitalista:

    [t]alvez os fluxos ainda no estejam suficientemente desterritorializados e descodificados, do ponto de vista de uma teoria e de uma prtica dos fluxos com alto teor esquizofrnico. No retirar-se do processo, mas ir mais longe, acelerar o processo (...) a esse respeito, ns ainda no vimos nada (Deleuze e Guattari, 2010, p. 318).

    A produo que o capital libera, da qual se apropria e pela qual se

    responsabiliza, no sua propriedade, mas a prpria produo desejante como

    limiar absoluto, e no mais relativo, do socius descodificado. Desterritorializao

    e descodificao absolutas, portanto: o polo esquizo-revolucionrio do sistema

    tornado exterior aos limites interiores que as imagens do capital produzem.

    Ultrapassar o muro axiomtico e destituir o capital como processo de privatizao

    generalizada do socius, em nome do que Deleuze e Guattari chamam de uma

    nova terra (Deleuze e Guattari, 2010, p. 401) este o papel da esquizofrenia

    como devir revolucionrio, revoluo permanente.

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    Investigaremos agora, na parte 2.5 deste trabalho, de que maneira

    encontramos, nas elaboraes tericas que atravessam toda a obra dos autores,

    uma crtica representao, identidade e a servido que coloca em jogo os

    elementos para uma produo de subjetividade verdadeiramente a- representativa,

    para alm do dipo, da transcendncia e da falta. Ou seja, uma subjetividade ps-

    capitalista.

    2.5 Processos de subjetivao para alm do capital

    Deleuze apresenta, em Diferena e repetio (1968), a imagem dogmtica

    do pensamento como aquela organizada pela doxa em torno do senso comum e do

    bom senso. O senso comum supe a identidade como fundamento, o bom senso o

    sentido nico como mtodo. Ou seja, a imagem dogmtica do pensamento

    qualquer pensamento que opere por imagens, como (...) figura em que a doxa

    universalizada ao ser elevada ao nvel do racional. A opinio, ou doxa, realiza,

    segundo O que a filosofia? (1991), um corte no caos das diferenas, que priva o

    caos de seus direitos irredutveis, recortando o acaso segundo uma seleo

    operada pelas figuras do idntico, da semelhana e da re-cognio. A

    representao, ento, o corte realizado em uma apresentao primeira, a

    repetio que reage sobre os elementos intensivos de um campo transcendental de

    apresentao, buscando, o melhor que pode, sufoc-los, reprimi-los, colmata-los

    segundo o critrio do idntico: tudo isto que pedimos para formar uma opinio,

    como uma espcie de guarda sol que nos protege do caos (Deleuze e Guattari,

    1991, p. 260).

    imagem dogmtica corresponde, portanto, um modelo de subjetivao

    centrado em torno do Eu como agente de unificao, como ponto de estabilizao

    e pacificao do caos intensivo das diferenas nmades, recalque do plano de

    singularidades pr-individuais. E este plano de singularidades, ao ser submetido

    ao princpio da identidade, retorna sob a forma do desfigurado, sob a figura

    negativa do abismo indiferenciado (Deleuze, 1968, p. 52). A identidade como

    fundamento insufla o campo intensivo das diferenas puras com o signo do

    negativo, com o nome de uma anarquia que ser preciso domar, para repartir os

    espao