1 - Um Salto No Desconhecido - Henry Dalton

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Intrigas, história, denaneios

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UM SALTO NO DESCONHECIDO

TTULO: A volta ao mundo por dois aventureiros (1 de 15). Um salto no desconhecido AUTOR: DALTON, Henry; GRAY, Philip (N. F. )TTULO ORIGINAL: LOCAL DA PUBLICAO: Porto EDITORA: Livraria Civilizao-EditoraData da publicao: 1957GNERO: Romance de aventuras CLASSIFICAO: COLECO: A volta ao mundo por dois aventureiros n. 1 DIGITALIZADO E CORRIGIDO POR:Aventino de Jesus Teixeira Gonalves Dezembro de 2006

UM SALTO NO DESCONHECIDO

1957COMPOSTO E IMPRESSO NATIP. E enc. A PORTUENSERUA CONDE DE VIZELA, 80PORTO

HENRY DALTON e PHILIP GRAYA VOLTA AO MUNDOPOR DOIS AVENTUREIROS1UM SALTONO DESCONHECIDOVERSO LIVRE DEMRIO DOMINGUESLIVRARIA CIVILIZAO-EDITORARua Alberto Aires de Gouveia 27 - PORTO

Reservados todos os direitos nos pases de lngua portuguesa(Portugal e Brasil)

A VOLTA AO MUNDOPOR DOIS AVENTUREIROS15 romances, sendo cadavolume uma obra completade HENRY DALTON e PHLIP GRAYI - Um Salto no DesconhecidoII - O Tmulo do FaraIII - Perdidos em fricaIV -Os Mistrios da ndiaV -Do Himalaia ao TibetVI - As Frias do PacficoVII Segredos da Espionagem OrientalVIII - Entre Mujiques e EsquimsIX - Arranha-cus, Gangsters e cow-boysX - Nas Terras Virgens do AmazonasXI - Do Degredo ao ParasoXII - Cidados da LibriaXIII - Africanos na EuropaXIV - No Vulco BalcnicoXV - A Caminho da Felicidade

CAPTULO ITrs legionrios resolvemfugir do TrcioDeram mais alguns passos trpegos,arrastando as babuchas mouriscas, que deixavam na areia um longo sulco. Mas PacoLopez deteve-se, arquejante, amparado peloscompanheiros, e murmurou, em voz entrecortada :- No} no puedo mas ...(1)Roger e Alex trocaram um olhar angustioso, que o argentino, todo derrubado paraa frente, como se a cada momento fosse cair,no pde ver.Circunvagaram depois a vista pelo deserto, na vaga esperana de que, no amploermo, aparecesse a salvao. Nada! Tudodesolado e s. Nem o vulto de uma palmeira(1) Em espanhol, no original.7

surgia ao longe, a acenar-lhes a promessa deuma fresca sombra.-Vamos, mais um pouco de energia -aconselhou Roger, o mais alto dos trs e,por certo, aquele que, devido sua compleio atltica, parecia mais resistente aos tormentos do deserto.- Creio que j vejo alm despontar asfolhas verdes de uma palmeira... -mentiuAlex que, sendo embora o mais franzino,tentava animar o Lopez, vencido pela fadiga.Havia vinte dias que, disfarados naquelas vestes brancas de mouros, se tinhamescapado do acampamento da Legio Estrangeira. A ideia fora de Paco Lopez. Ele emprestara aos camaradas todo o seu entusiasmo; comprara os mantimentos; adquiriraa um rabe amigo os trajos mouriscos; estudara, durante semanas, em silncio, emsegredo, o itinerrio a seguir; dera-lhes oltimo empuxo, quando os companheirosse mostravam hesitantes - e era agora o queprimeiro se deixava abater.A ideia de abandonar a Legio Estrangeira, de que todos trs eram veteranos,andava havia muito tempo assolapada emsuas mentes. Mas calavam-na. O receio deque os oficiais suspeitassem de tais planoslevava-os a dissimul-los, ocultando-os dosprprios companheiros.8

O nico que, s vezes, se atrevia aaludir a uma possvel desero era o Paco.Mas, cautela, fazia-o em tom de chacota,acrescentando at, cheio de seriedade eaparente convico, que o legionrio quetentasse a fuga na poca em curso devia serconsiderado louco varrido.Compreendia-se um desertor do Trcio,naqueles tempos terrveis de Abd-el-Krim,em que se jogava a vida a cada momento;mas agora, que o soldado fora transformadoem colono, trocando a Mauser pela charrua,a baioneta pela enxada, embora sujeito disciplinamilitar, parecia rematada loucuraabandonar uma existncia calma, sem riscos,com alimentao e vesturio garantidos, ealgumas pesetas no bolso, para gastar nacantina.Quem seria o imbecil que, vivendo nestascondies de tranquilidade e segurana,quereria trocar to preciosas vantagenspela vida civil, to incerta, da qual a maioriados soldados j se desabituara, ou pelosriscos de uma fuga, que implicava severaspunies ?O Trcio era formado por gente das maisdiversas condies sociais, vinda, muitas vezes, no se sabia de onde. O passado do homem que se alistava na Legio Estrangeira,para combater o mouro, no contava, Era9

letra morta. A vida, uma existncia espinhosa, plena de perigos, comeava no momento em que ele se alistava, quantasvezes para terminar pouco tempo depois,no primeiro combate em que entrava. Poucoimportava que longe, algures no Mundo, houvesse uma me, uma esposa, uma namorada, para quem esse homem representassea nica afeio. Essas pieguices ocultava-ascada um bem no fundo de sua alma, comose fossem fraquezas condenveis. Raros eramos vestgios dessas afeies distantes. svezes, no esplio de um cado para sempreno campo da luta, encontrava-se um retratode mulher bonita, com terna dedicatriatraada em letra ingnua, ou de um bomvelhote - um pai ou um av - que nemsabiam em que recanto do globo o rapaz seperdera.Havia legionrios que nunca falavam davida passada. Alguns ocultavam crimes quelhes pesavam na conscincia e tentavamredimir-se, expondo a vida nos locais maisarriscados do combate, cometendo temeridades que chegavam a encher de espanto osveteranos, a quem as balas, depois de umalonga e v perseguio, parecia j nem quererem procurar. Outros eram arrastadosquele inferno do Riff na nsia de se atordoarem e esquecerem grandes desgostos, tre- 10

mendas fatalidades, sofridos nas ptrias; remotas. Outros, ainda, alistavam-se porsimples esprito de aventura. E eram estesque, no tendo vergonhas a esconder nemepisdios amargos a recordar, se mostra- vam mais loquazes, sobretudo se as libaesna cantina eram mais abundantes, evocandobons tempos nas suas aldeias tranquilas ounas cidades inquietas onde nasceram.O Trcio era uma autntica Babel. Nele; tinham entrada livre aventureiros de todos ospases, de todas as latitudes, de todas as raas.S ingleses e norte-americanos, por um convnio especial, eram proibidos de se alistar.No entanto, alguns por l passaram...depois de se terem nacionalizado turcos,argentinos ou peruanos. Polacos, russos,lituanos e checos, argentinos e venezuelanos, portugueses e franceses, e at abexinsl apareceram, oferecendo generosamente oseu sangue pela causa da Espanha. Porqueela fosse a mais justa? Por amor a um pasde que, em regra, mal balbuciavam o idioma ?No! Apenas porque ali se arriscava a vida, ou porque se vivia uma grande aventura, ou porque se encontrava um refgio, enquanto a Morte no se lembrasse de os levar. Se Abd-el-Krim tivesse institudo uma Legio Estrangeira e pudesse pag-la to facilmente como os espanhis, mais de11

metade do Trcio passava-se para as fileiras adversas.O legionrio, em regra, depois de alistado, sofria grande desiluso, sobretudo seera um velho ideal de cavalaria que o levavaa Marrocos. A disciplina era frrea, brutal;os castigos pesados, inquisitoriais, e as regalias poucas. Caa-se numa estpida servido. O homem transformava-se em mquinade matar, com alguns momentos de prazergrosseiro, no intervalo das chacinas. Esses,prazeres s contribuam para mais o embrutecer. Cifravam-se no lcool bebido na cantina de Dar-Riffien, servido pela Concha, deolhos aveludados, na companhia de camareras de paixo fcil.Muitos arrependiam-se da precipitadaresoluo, depois de alistados, mas eratarde. Aceito o contrato, por trs ou cincoanos, era preciso cumpri-lo at ao fim, seacaso uma bala libertadora no quebrava ocompromisso... Apanhados na odiosa armadilha, no podiam revoltar-se. S havia umcaminho: aceitar resignadamente aquela vidacomo pena que preciso expiar. E paraquantos o Trcio no teria sido autnticaexpiao de crimes antigos!Mas -coisa curiosa e paradoxal! - muitos deles, quando expirava o prazo do contrato, quando podiam, enfim, libertar-se12

daquele perigo, quando a grilheta se quebrava, restituindo-os, salvos por milagre, existncia civil, voltavam a sold-la comnovo contrato. E, por mais uns anos, repetiam as lamentaes contra aquela vida deco, contra a injustia dos chefes, contra afatalidade de um destino que, afinal, tinhamprocurado por suas prprias mos. Oshomens tm destas irnicas e paradoxaisatitudes...Entre os veteranos, contavam-se doishomens, no Trcio, que ningum sabia aocerto quem eram, nem de onde tinham vindo.Falavam correctamente ingls, mas ningum os supunha ingleses ou norte-americanos, dada a impossibilidade de sbditosdestas nacionalidades se alistarem no Trcio.Um deles, Alex, o mais velho, franzino enervoso, tez morena ou crestada pelo Solafricano, olhos castanhos penetrantes, facechupada e ossuda, devia contar uns trinta ecinco ou trinta e oito anos. J estava noTrcio havia oito anos. As balas fugiam-lhe,embora ele nunca se desviasse para lhes darpassagem.Quando lhe perguntavam qual era a suaverdadeira nacionalidade, Alex sorria e encolhia os ombros. Inscrevera-se checo, mas,um dia, confessara inadvertidamente a outrocheco, com quem alis falava sempre em13

alemo, que gostaria de visitar a Checoslovquia. Contudo, os seus papis eramchecos. Como checo o inscreveram noTrcio as autoridades espanholas. O seunome, porm, era do mais vulgar sbdito deSua Majestade britnica: Alexandre Smith.Por comodidade, os companheiros comearam a chamar-lhe simplesmente Alex. E elesentia-se bem com este chamadouro sinttico. Para qu mais complicaes?Era dos elementos mais antigos daLegio Estrangeira e parecia disposto anunca mais de l sair, a no ser que a Morte,irritada com o seu desafio constante, resolvesse lev-lo um dia, nas dobras do seumanto sinistro.Bom militar, inteligente, disciplinado,cometendo serenamente actos de espantosatemeridade, Alex, contudo, nunca subira almde cabo, e parecia no ter maiores ambies.Condecorado vrias vezes mostrava-se indiferente s honrarias. E, no entanto, toda agente lhe reconhecia excepcionais qualidades paras subir, se quisesse. Mas ele noqueria subir. Era uma coisa bem patente.No queria sair da obscuridade.Se quisesse, j poderia ser alferes. Seussuperiores no o contrariavam. Deixavam-nopermanecer naquele posto humilde, ondealis era de grande utilidade.14

Alex percebia de tudo. Ningum sabiaat onde iam os seus conhecimentos. Nohavia problema de mecnica que no resolvesse, E quando, s vezes, os tcnicos, anteuma metralhadora encravada ou um avioimobilizado, cruzavam os braos, dizendo,como mdicos perante uma enfermidadeincurvel, que nada havia a fazer, chamava-se Alex, em ltimo recurso, quase semprequando j estavam perdidas todas as esperanas. E Alex consertava facilmente ametralhadora e punha o motor do avio afuncionar.Um dia, o capito Sanchez, que erarspido e no tinha papas na lngua, perguntou-lhe :- Homem, tu s engenheiro ?Alex sorriu, com o seu ar misterioso erespondeu, com estranha humildade:- Apenas aprendi alguma coisa de funileiro.Mas a verdade que Alex tinha umacultura pouco vulgar; comprazia-se emdissimul-la, apenas fazendo, de quandoem quando, surpresas aos companheiros.Inmeros idiomas lhe eram familiares.Falava o espanhol como um castelhano, ofrancs e o alemo no tinham segredospara ele. Dois russos que havia no Trcios com ele se deliciavam a falar a lngua15

materna, e afirmavam que ele tinha umapronncia perfeitamente moscovita. Oingls era o idioma em que se exprimiamais correntemente. Mas no se sabia, aocerto, quantas lnguas ele conhecia.Se, na sua presena, se falava de Anatomia, de Qumica, de Histria, de Geografia, ou da Etnografia das regies mais exticas, Alex discreteava com simplicidade,revelando uma erudio que deixava oscompanheiros assombrados.Era muito metido consigo. Embriagava-se raras vezes e fumava como umachamin, por um cachimbo muito queimado. Contava amizades em todo o Trcio,mas ningum se podia gabar da sua intimidade. Havia nele sempre qualquer coisa de inacessvel, E andava geralmente s.O nico que se via mais vezes na sua companhia, em conversas longas e gesti- culadas, era Paco Lopez, o argentino. Mas[ quem poderia resistir loquacidade esimpatia de Lopez ? Nem Alex!O Lopez era o homem mais falador daLegio Estrangeira. E, por falar de mais,algumas vezes fora castigado. Nem mesmoquando era sentenciado a trazer s costas! um pesado saco cheio de areia do deserto,saco que nem durante as refeies lhe eraretirado, o Lopez se calava. Cumpria,16

falando, esta pena brbara a que algumasvezes o condenaram por falar.- Se me calo, rebento! - dizia ele, comos grandes olhos escancarados, no terrorde lhe porem uma mordaa.O Paco ia no quarto ano de servidono Trcio. Apanhara apenas dois anos deguerra. Depois, cessaram as hostilidades eele sentia-se logrado.-Vim para aqui para combater e nopara fazer vida de campons! - berrava ele,num protesto.Mas contratara-se por cinco anos.Tinha que ir at ao fim, sem fazer uso daespingarda, que fora substituda pela charrua. Os legionrios eram agora uns lavradores militarizados, e aborreciam-se naquela vida.Paco Lopez no tinha pejo em confessar que a sua vontade era fugir. No vieraa Marrocos para viver em paz. Ele perten-cia ao nmero dos que se alistaram poresprito de aventura. Vivia folgadamente nasua terra. Seu pai possua boas propriedades na Argentina e uma esplndida vivendaem Buenos Aires. Para fazer vida de campons antes tivesse ficado a trabalhar asterras de seu pai. Viera para combater.Era esse o contrato. Se no lhe davamensejo de combates, porque o governoUm Salto no Desconhecido - 2 17

de Espanha faltava ao contrato. Estava,portanto, rescindido, por falta de uma daspartes...Os oficiais riam-se dos protestos doargentino. Sabiam que ele era sincero nasua indignao, porque se mostrara sempreum bravo, nunca voltando a cara aoperigo.As ameaas de desero do argentino,porm, pareciam platnicas. Toda a gentesabia que muitos desertores tinham pagocom a vida a temeridade de fugir. Brigadasde perseguio partiam no encalo dosfugitivos, e sucedia, por vezes, que os matavam, sem querer, claro. Os que escapavam eram condenados a uma vida tomiservel que s lembr-la causava horror...Outros que logravam escapar hordaperseguidora no podiam salvar-se de outroperigo maior: perecer no deserto, mnguade tudo. .... No, no era fcil fugir ao Trcio. Aprudncia aconselhava aguardar resignadamente o fim do contrato, tanto mais que,concludas as hostilidades havia cerca deum ano, a vida no era de todo m edecorria com calma.Entre os que escutavam a algaraviada do argentino, sobre a vida aborrecida que ultimamente se levava na Legio18

Estrangeira, contava-se um rapazo espadado e alto, o maravilhoso atleta doTrcio, que tinha um gnio folgazo e unsmsculos temveis. Chamava-se Roger,dizia-se belga e falava mal o francs.Era mais um paradoxo daquele ambientede aventureiros. Por que razo o belgafalava to mal em francs e se exprimia tobem em espanhol e em ingls ?Seus camaradas pouco o assediavamcom perguntas a tal respeito, porque ali opassado de cada um coisa sagrada emque, por melindre, no se toca. Se Rogerera um bom companheiro, valente comopoucos, forte como um bfalo, um poucoingnuo, como se fosse um menino muitogrande, isso bastava curiosidade doscamaradas, que admiravam os seus feitosdesportivos e algumas faanhas hericas,praticadas, afirmava ele, sinceramente, semdar por isso.Roger pouco se dava com Alex. Tinhapor ele um respeito muito grande, e sentia-se tmido a seu lado. Durante os seis anosque j vivera no Trcio, podiam-se contaras vezes que falara com o erudito camarada, e este parecia nem dar pela suapresena, pois talvez no compartilhasseda admirao geral pela fora extraordinria do belga.19

Em compensao, principalmente nosltimos tempos, Roger e o argentino tinham-setornado unha com carne. Onde estivesse um estava o outro, O Lopez, morenocomo um mulato, olhos pretos fosforescentes, palavra fcil e ardente, gesto largoe enrgico, exercia uma espcie de fascinao sobre Roger, grande menino louro deolhos azuis e infantis, que lhe bebia as palavras, lhe seguia os gestos e lhe escutavamaravilhado os raciocnios.Foi ao belga que o argentino comeoua assediar, em longos concilibulos, compropostas de fuga Roger perguntava, infantilmente ::- Para onde iremos, depois ?- Hombre! - exclamava Paco Lopez,muito exaltado. - Uma vez livres deste inferno,cada um que siga para as suas terras !Roger ficava apreensivo. Parecia preocup-lo muito o problema do rumo a tomar,depois de abandonar o Trcio. Talvez nofosse a sua terra o ponto do globo que maiso seduzisse.Um dia, a um canto da cantina, onde aConcha, a cantineira, lhes servira largamente uns copos de vermouth falsificado,Paco confidenciou: - Temos mais um companheiro para aabalada.20

Roger lanou-lhe um olhar inquiridor.Paco Lopez fez a revelao:- Alex est disposto a partir connosco.Tive com ele uma conversa muito sria,sobre o assunto. Est resolvido a acompanhar-nos.Roger parecia duvidar.- No foi sem certo trabalho que ele seconvenceu - acrescentou o argentino. -Alex afirmava que estava aqui muito bem.Mas teve que concordar comigo que, paralevar vida de campnio por umas mseraspesetas, ento antes em qualquer parte domundo, onde a vida do campo renda coisaque se veja, sem a canga da disciplina militar que suportamos aqui. Visto no havermais guerra, deviam licenciar-nos, pagando-nos integralmente at ao fim do contrato.No fariam nada de mais, que diabo! Arriscmos a pele, consolidmos o triunfo Espanha. Agora, que no h perigo, que omouro se foi abaixo, tragam para a os paisanos, para colonizar isto!- Ento, Alex decidiu-se a seguir connosco? - inquiriu Roger, ainda numa dvida.- Pois claro que acedeu - afirmou oargentino. - J te disse: mostrou-se hesitante. Mas acabou por prometer acompanhar-nos. Temos que nos reunir amanh ostrs, para afinarmos os pormenores da fuga.21

J tenho o meu plano traado. Com maisumas ideias de Alex, que ele tem-nas sempreboas, a nossa empresa vai ser um xito, cr.Roger ficou calado. Nem mesmo o factode Alex, o mais valioso elemento doTrcio, ter aderido quele empreendimentoparecia comov-lo ou decidi-lo.- Creio que, na companhia de Alex,nada h a temer - disse Paco Lopez. - um homem que sabe tudo, que resolvetudo. Vale por um batalho.- Sim, Alex vale muito - concordouRoger.- Nesse caso, porque no te decides?O belga moveu, por momentos, oslbios, sem emitir som. Depois, tomando oflego, como se tivesse que proferir umalonga tirada, inquiriu:- E para onde vai Alex, depois deabandonar o Trcio?- Segue comigo para a Argentina -respondeu o outro. - Prometi arranjar-lheum lugar em qualquer empresa de meu pai,em Buenos Aires.- Hum... -resmungou Roger, entredentes.Lopez olhou-o, por instantes. Emseguida, numa inspirao, perguntou: - Queres que te arranje tambm umemprego na Argentina?22

Os olhos azuis do soldado encheram-sede uma grande claridade. A sua maiorpreocupao, ao que parece, no era operigo de ser varado a tiro pelos perseguidores, nem as grandes caminhadas por terras desconhecidas - era o local seguroonde acolher-se, depois de abandonar aLegio Estrangeira. Dir-se-ia que aquelemenino grande tinha medo de perder-sepor esse vasto Mundo. A certeza de umdestino, a promessa de um amparo,emprestavam-lhe outro nimo.Mas perguntou ainda, com ar receoso:- E teremos probabilidades de atingirfacilmente a Argentina? - O pior sair daqui - redarguiuLopez. - Quando estivermos bastante longedo Trcio, em territrio ingls, que omais seguro, mando um telegrama a meupai, pedindo lhe fundos. O que ele meremeter chegar certamente para fazermosa viagem, todos trs.-Mas difcil alcanar territrio ingls- observou Roger. - S se consegussemosatingir Gibraltar.- A fuga por esse lado quase impossvel - replicou o argentino. - O caminho muito exposto, e est fortemente vigiado.Lembrei-me de alcanar o Egipto.Roger soltou um assobio fino, e murmurou:

- muito longe. - Mas Alex acha que o mais seguro -argumentou o argentino. E acrescentou: -Alm disso, j tenho o meu plano para lchegar. Teremos que atravessar territriofrancs e italiano, onde no nos convmrevelar a nossa provenincia, porque corremos o risco de ser entregues aos espanhis.Mas j estudei o processo de passarmossem sermos reconhecidos.- Bueno - disse, por fim, Roger. - Conta comigo. Partirei quando quiseres.Mas no me faltes, depois, com um lugarna Argentina. No me importo de trabalharcomo vaqueiro...Paco Lopez exultou com esta resoluo,e mandou vir mais uma garrafa de vermouth falsificado, que lhes soube melhordo que o autntico.CAPTULO IIEstuda-se o plano da fugaNo dia seguinte era domingo, e, conformeafirmara Paco Lopez - espcie de agentede ligao daquela pequena conspirata -deviam reunir-se os trs para darem os ltimos retoques no plano da fuga.Tinham a tarde livre e, alm disso, haviam24

pedido dispensa de recolher, o que lhes davaaprecivel liberdade de aco.O argentino conduzira Roger cantina,onde, dizia, Alex devia juntar-se-lhes, pelasquatro horas da tarde. Para o belga, eraquase uma honra entrar na intimidade docabo Alex, cuja sabedoria o enchia de admirao e de timidez. Ia ombrear com aquelehomem misterioso, ser tratado de igual paraigual por algum que, segundo se propalarano Trcio, poderia ser tudo e se deixavaficar modestamente na sombra de um quaseanonimato.Estava um tempo magnfico, talvez demasiado quente. Mas os soldados estavamhabituados ao calor africano. De quando emquando, um sopro escaldante vinha dodeserto, como um hlito de fogueira. Trilhando as ruas de Dar-Riffien que principiava a tomar forma de cidade, depois deter sido um aglomerado de barracas ebarraces, Paco Lopez no cessava de falarsobre a grande aventura, que os iria arrancar,a eles, homens de aco, monotonia daquelavida, onde morriam lentamente de tdio.Roger escutava-o, embalado na msicadaquelas palavras que despertavam em suaalma o aventureiro que, depois de ter procurado o perigo em Marrocos, principiava aadormecer nos cios da paz. O argentino25

afirmava que Alex tambm tinha as suasideias sobre o assunto, e Roger ia ter ensejode expor os seus alvitres.O belga ficou um pouco atrapalhado.No tinha alvitres a dar. Embora o Lopezandasse, nos ltimos tempos, a incit-lo fuga, o certo que apenas se decidira nodia anterior. E, at ento, mal pensara nosmeios a empregar para pr em prtica umplano daquela natureza. No queria saberde planos. Descansava plenamente no Lopeze no Alex. Eles tinham imaginao para essascoisas; que a pusessem a trabalhar Limitar-se-ia a executar o que lhe ordenassem.Naquele momento, com o tremendo calorde Junho, que o fazia suar por todos osporos, s lhe apetecia uma cerveja bemfresca.-. E eu bebo outra! - concordou oargentino, tomando-o pelo brao e arrastando-o para o interior da cantina.Com grande surpresa sua, encontraramAlex j abancado a um canto, peranteum bock espumoso Na sala, havia maisalguns camaradas, mas, como de costume,o misterioso cabo procurara o isolamento.O argentino, numa expanso bem meridional, alou os braos ao ar, num espanto:- Hombre!- exclamou. - Chegaste comuma hora de avano!26

Alex sorriu, estendendo-lhe silenciosa-mente a mo, que o argentino apertou comviolncia. Roger cumprimentou-o, cheio derespeito.Abancaram. Uma camarera mais pintada do que um palhao chegou-se ao grupo,na esperana de uma lambarice.- Vamos a ver quem o heri capaz deme pagar um refresco! - exclamou ela,procurando ajeitar-se para tomar lugar entreRoger e Paco.Este teve, porm, um gesto de impacincia e afastou-a.- Desampara-nos a loja! - pronunciouele, de sobrecenho carregado. - Temosassuntos muito importantes a tratar;- Ah! No sabia que vocs pertenciamao Estado-Maior - replicou a rapariga. - Vo acertar o plano da prxima campanha...- O nosso plano muito mais importante do que pensas - tornou o argentino,de mau modo.A camarera afastou-se, resmungando,e foi exibir as suas graas junto do grupoque, no lado oposto, j parecia bem animado, pois tinha a mesa pejada de copos egarrafas. Mas no deixava de deitar olharesdesconfiados aos trs legionrios.Sorvidos os primeiros goles das cervejas, logo o Lopez se inclinou para a27

frente, e comeou a cochichar sobre oassunto que o obcecava: a desero.Alex ouviu, ouviu, em silncio. Depois,dirigindo-se a Roger, perguntou-lhe:-Que dizes a isto, camarada?O rapaz corou como qualquer donzela,encolheu ligeiramente os ombros e replicou:-Estou disposto a segui-los, para avida e para a morte... J dei ontem aminha adeso.O outro pareceu ficar contente comaquela resposta, e, apoiando-o lentamentecom a cabea, disse:-Gosto desse esprito resoluto. Na verdade, a aventura em que nos vamos meterno uma brincadeira. No se trata deassaltar uma cabila rifenha. coisa muitopior.Calou-se, com o olhar vago, como se,subitamente, seu pensamento fugisse paramuito longe, l para o Egipto remoto, que oargentino pensava em alcanar com facilidade. Pela maneira como falou, Rogeradivinhou logo nele o chefe, o homem capazde conduzir a bom termo aqueles que neleconfiassem.Lopez comeou a expor, entre dentes,pormenores do plano. Fugiriam disfaradosde mouros. J assegurara trs vestimentasbrancas e as respectivas babuchas, por28

umas escassas pesetas. O mercador rabeque lhas vendera prestara-se a guard-lasat o momento em que decidissem utiliz-las. Era um homem recto, podia depositar-se nele um segredo como num tmulo.Por ele, ningum saberia que utilizariamtal disfarce para fugir.Alex interrompeu aquela torrente depalavras, lembrando:-Aqui no o local mais apropriadopara falar dessas coisas. Podamos dar umpasseio pelos campos, e aproveitarmos oensejo para acabarmos de combinar o plano.A ideia foi bem recebida pelo argentino,que pagou a despesa. Saram.Na rua, estava muito calor. Lufadas devento levantavam, de onde em onde, grandes nuvens de poeira quente e sufocante,que os envolviam. Caminharam lentamente,procurando a direco dos campos prximos, onde anos antes se haviam feridograndes batalhas. Cruzavam-se, por vezes,com alguns camaradas que os saudavamcom um aceno.Saltaram umas sebes e foram procurarabrigo sombra escassa de uma oliveira.O local era aprazvel. Viam-se terras cultivadas e, em alguns pontos mais alm,alouravam searas. Aquilo era a obra pacfica dos legionrios feitos agricultores.29

Alex sentou-se nuns torres de terra e rompeu o silncio em que se mantiveramdesde que saram da cantina.-Paco cuidou admiravelmente dos pormenores do disfarce e pensou de maneiraum pouco vaga em alcanarmos o Egipto -disse ele; em tom repousado. - A ideia excelente. O Egipto a terra onde estaremos mais seguros. De Alexandria ou doCairo, podemos tomar um navio que nosleve, sob a bandeira inglesa, at BuenosAires. Mas preciso pensarmos de quemaneira poderemos percorrer tantos milhares de milhas que nos separam do vale doNilo, na situao de proscritos que automaticamente ser a nossa, aps a desero.- Bem - interrompeu o argentino. -Pensei, em seguir o caminho das antigascaravanas, que continua a ser frequentadopor mercadores rabes. ; - Exactamente - concordou Alex. -Foi isso tambm que eu pensei. Mas noesqueamos que somos trs diabos semdinheiro. O caminho das caravanas no sepode fazer a p. Equivaleria morte certa.Vocs sabem que alguns camaradas nossosforam encontrados mortos, ainda antes deatravessarem as montanhas e alcanar ocaminho que passa do outro lado. A fuga30

transformou-se, para eles, numa ciladafatal. H uma coisa que pode resolver oproblema e, mesmo assim, a empresa serbastante difcil. o dinheiro. Com dinheiro,poderamos comprar um ou dois camelos, quenos transportassem. Improvisar-nos-amosmercadores e, dentro de alguns meses, estaramos na terra dos Faras. Ora, confesso,dinheiro no tenho. A minha fortuna todaso vinte pesetas. O resto est de posse doTrcio e no posso reclam-lo, seno nofim do contrato. E vocs, com que contam?Paco e Roger entreolharam-se.-Todo o meu dinheiro so doze pesetas - disse timidamente o belga. - Estinteiramente sua disposio.Fazia j um movimento para sacar odinheiro do bolso. Alex deteve-o, com umsorriso, segurando-lhe a manga da blusa.-Tenho um pouco mais - pronunciouo argentino. -Ainda posso reunir umastrinta pesetas.- Bem, ponhamos de parte a ideia dodinheiro. Todos trs reunidos somamos umassessenta pesetas. Com isso, no podemoscomprar um camelo. Quando muito, adquiriramos um burro e teramos de lev-lo scostas, atravs do deserto... O melhor guardarmos esse dinheiro, como reserva,para o que der e vier. 31

- Nesse caso, impossvel fugir... -disse Roger, a medo.- O impossvel no existe - sentenciouAlex.- Estou disposto a arriscar tudo! -exclamou Paco Lopez. - Farei a tentativa,mesmo que tenha a certeza de encontrar amorte no caminho.- Bem, a morte a melhor soluo detodas as dificuldades. Portanto, no ser omedo da morte que nos far recuar - disse,muito calmo, o checo, a contrastar com aexaltao do argentino. - Estudemos, primeiro, o itinerrio, e veremos depois amaneira de o percorrer.E, com grande surpresa dos companheiros, tirou do bolso um papel, que desdobrou sobre os joelhos. Era um mapa bastante pormenorizado da frica do Norte,at Arbia.- Onde foste arranjar isso? - inquiriuPaco, num assombro.- Tinha-o guardado h muito tempo.Quem guarda, acha - respondeu Alex.Lopez debruou-se logo sobre o mapa e,apontando com o dedo, disse :- Tive o cuidado de estudar o percurso at Arglia atravs do pequenoAtlas e do Atlas do Saara. Podemosalcanar o trilho das caravanas do deserto,32

em trs dias de marcha, Para l de Figig, otrilho muito frequentado pelos rabes.Podemos incorporar-nos numa caravana eseguir com ela at El Golea, ao sul daArglia.- Sim - concordou o checo, o percurso esse. Mas duvido de que possamoschegar a Figig em trs dias. O caminho difcil. Corremos o risco de nos perder nasmontanhas, porque no podemos seguirpelos caminhos frequentados, sem corrermos o risco de sermos vistos. Mas, enfim,o pior da empresa no a montanha, odeserto. Precisamos de levar bastantes provises e poup-las avaramente, durante aviagem.- Cada um de ns poder levar provi- ses para trs dias - disse Paco. - Devemos levar o mximo que puder- mos acarretar - reforou Alex.- Para os carregos, c estou eu - proferiu Roger, que seguira muito interessadoa discusso e aproveitou ensejo para mos- trar a sua serventia. - Os teus msculos vo ser de grande utilidade - disse o checo. - Paco tratar de adquirir os mantimentos. Entregamos- -lhe o dinheiro para isso. Levaremos com- nosco os cantis da ordem. E, amanh, noite, partimos. Convm levar o sabre e a Um Salto no Desconhecido - 3 33

pistola, que ocultaremos sob os disfarcesmouriscos...- Partimos amanh? -inquiriu obelga, ainda numa dvida.- Claro - respondeu serenamente ocheco. - Temos que partir antes de gastarmos as nossas pesetas na cantina...Comeou a dobrar lentamente o mapa,que tornou a meter no bolso. Ergueu-se dostorres onde se sentara. Os companheirosimitaram-no.- Temos noventa e nove probabilidades contra cem, de no chegarmos ao Egipto- pronunciou Alex, num tom plcido, quecontrastava com a gravidade da opinioexpendida. - Mas, se no fosse assim,creiam, nunca me meteria nesta aventura.Principiaram a descer lentamente, emdireco estrada. Iam silenciosos. Seuspensamentos baralhavam-se, na antevisodas lutas e dos perigos que iam procurarde bom grado, s porque no tinham nascido para uma existncia calma e semperigos.34

CAPTULO IIIA fuga atravs da noiteMal anoitecera, no dia imediato - diaque fora para eles de grande ansiedade -Alex, Paco e Roger saram de casa do mercador, onde se tinham ocultado para vestiros trajos mouriscos, e tomaram a direcodas montanhas.Pisavam terreno conhecido e, mesmos escuras, podiam orientar-se bem. Tinhamcomido farta e contavam no ter quemexer nas suas provises, acondicionadas em alforges colocados a tiracolo, senono dia seguinte e o mais tarde possvel.Paco conseguira obter munies de boca,que, segundo os seus clculos, chegariampara quatro dias, a comer vontade. Mas,bem poupadas, como tencionavam, tinhamalimentao para cinco ou seis dias.Debaixo do albornoz, levava cada umo sabre, a pistola, os cartuchos e o cantilrepleto de gua fresca. Contavam encontrar fontes, enquanto andassem pelas regiesdas montanhas.Pensavam em afastar-se o mais rapidamente possvel de Bar-Riffien, para queHouvesse grande distncia entre eles e osperseguidores, quando se desse o alarme da: 35

sua falta. Ora, sabiam que esse alarme apenas seria dado no dia seguinte. A falta aorecolher, nessa noite, no seria imediatamente tomada por uma desero. Soldadosque passavam a noite fora, em aventurasamorosas ou na estrdia, constituam banalidade. No dia seguinte, eram punidos comuns tantos dias de deteno ou de trabalhos forados, se se tratava de reincidentes.Portanto, s depois de decorrida essanoite, o comando enviaria brigadas de perseguio em vrios sentidos, montando cavalos ligeiros, na esperana de apanh-los nocaminho, como j sucedera com tantosoutros que tinham feito tentativas falhadaspara se libertarem do Trcio.Nas montanhas, no receava Alex osperseguidores. Tinham proteces com queno poderiam contar na plancie, e estaseria percorrida durante a noite. No entanto,por medida de prudncia, abandonaram aestrada e tomaram por atalhos que maisrapidamente os levariam aos contrafortesdos montes, sem o perigo de maus encontros.Falaram pouco, durante o percurso. Iamdemasiado absortos em seus pensamentos, euma grande ansiedade embargava-lhes avoz. At Paco Lopez, to falador por temperamento, se calava obstinadamente. Fora a36

alma daquela expedio ousada. Desafiaraos companheiros, que se mostraram relutantes, at certo momento. Em seu espritopesava, na ocasio em que se lanaram nagrande aventura, a responsabilidade do quepoderia suceder.Por muito optimista que fosse, por feitio,vendo quase sempre dourado onde os outroshabitualmente vem sombrio, o argentinosentia-se apreensivo naquele momento...Tinha a certeza de que o comando noenviaria cavaleiros a persegui-los, seno nodia seguinte; mas no podia deixar de pensar que as coisas, por capricho da fatalidade,poderiam suceder ao contrrio dos seusclculos. E se houvesse suspeitas do que eles preparavam? Paco nem sempre fora discretonas suas intenes ; chegara a falar abertamente na vontade de desertar. certo queno o tomavam a srio. Criara fama de falarmuito e realizar pouco. Alguns chamavam-lhe fanfarro, embora ele, por actos audaciosos, praticados em campanha, tivesseprovado algumas vezes ser capaz de transformar as suas palavras em realidades flagrantes. A sua falta podia ser tomada, essamesma noite; como indcio de que passarados projectos vagos s realizaes concretas.E ento persegui-lo-iam imediatamente, a37

fim de no lhe darem tempo de se afastardemasiado.O pensamento de Paco ia cheio destaspreocupaes, que lhe roubavam o habitualdom da fala. Sabia que o acompanhavamhomens resolutos, que prefeririam lutar aentregar-se. Alex era um homem frio e audaz.Enquanto tivesse munies, no cessaria dedescarregar sobre os que lhe sassem aocaminho, para o prender. Roger to-poucoera homem para se deixar capturar vivo.E ele, Paco, faria o possvel por no desmerecer da companhia.Os soldados do Trcio escolhidos paraestas perseguies eram os mais brbaros,aqueles que tinham ido para Marrocos, afim de satisfazer impunemente os seus instintos sanguinrios. No os animava umideal de herosmo. No havia galhardia nosseus actos, nem lealdade na sua luta. Amavam as orgias de sangue, como se embriagavam em orgias de vinho. Lembrava-se de,uma vez, era ele ainda um novato na Legio,terem conquistado uma aldeia rifenha. Apopulao, conhecedora da ferocidade doslegionrios, abandonara o povoado. A soldadesca saqueara tudo que encontrara echacinara os velhos e os doentes que nopuderam acompanhar o resto da populaona fuga. Ele entrara, com o sargento Weiss,38

um alemo endurecido na Grande Guerra,numa habitao mourisca que parecia desabitada. A inteno de Paco era ver seencontrava alguma coisa para comer oubeber. Mais dois soldados entraram, debaioneta calada. O sargento farejava todosos recantos, como se fosse um mastim. Atravessaram um ptio central, onde uma fontegotejava.De sbito, Paco julgou ouvir um gemido,O sargento Weiss precipitou-se logo parao compartimento onde a dbil voz humanasoara. E logo saiu, arrastando para o ptiouma esteira onde jazia uma pobre moura,muito jovem. Era, por certo, uma enfermaque no tivera foras para fugir. Paco nuncamais pde esquecer as expresses sinistrasdos seus camaradas - o sargento e os doissoldados que tinham acorrido.Paco vira o perigo que a jovem rifenhacorria e tentara salv-la.- uma doente. Deixemo-la sua sorte!E tentara arrastar os companheiros parafora da habitao.O sargento Weiss, porm, teve umaexclamao que mais parecia um grunhido.- uma porca suja!-rouquejou ele.E erguendo a arma, mergulhou a baioneta no corpo da rapariga, que soltou umgrito lancinante.39

- uma mulher! Deixem-na!... - gritou Paco Lopez.Weiss lanou-lhe um olhar feroz e ameaou-o, de arma erguida. Depois, desviandoo golpe, degolou a inocente.Lopez fugiu, horrorizado, enquanto osoutros, gargalhando da sua fraqueza demenina, acabavam a obra destruidora.Cenas como esta iam perpassando namente do argentino, que marchava numacadncia certa, ao lado dos companheiros.Sabia que o sargento Weiss era sempre umdos escolhidos para a perseguio aos fugitivos. O alemo gabava-se de raras vezes trazer um trnsfuga inteiro ao aquartelamento.Ou vinha morto ou moribundo. E Pacopensava que, se acaso o sargento lhe aparecesse, havia de fazer o possvel por ser oprimeiro a atirar. Seria uma morte que nolhe ficaria pesando na conscincia.Tentava sacudir de si aqueles pensamentos sombrios, como quem enxota umenxame impertinente. A seu lado, caminhavaAlex e, ao lado deste, Roger. Todos trscalavam babuchas mouriscas. Aquela espcie de chinelos, a que no estavam afeitos,incomodava-os. De vez em quando, saltavam-lhes dos ps. Mas nem por isso se atrasavam no andar. Quando alguma babucha lhe caa do p40

e ficava no caminho, Paco soltava uma praga,baixava-se a apanh-la e corria a juntar-seaos camaradas, que no se detinham.O terreno principiava a ser mais acidentado e spero. Alex, que tacitamente se tornara o chefe daquela aventura, seguia naescurido com tanta segurana, como setrilhasse caminho plenamente iluminado.No tropeava, como seus companheiros,nem tergiversava. Paco e Roger comeavama desconhecer o local, que decerto lhe seriafamiliar, em pleno dia.- No iremos enganados? - observou oargentino.- No - replicou o checo. - Convmtorcer um pouco para a esquerda, para nosafastarmos do caminho frequentado que conduz s montanhas.A segurana com que Alex falava sossegara os companheiros. E a marcha prosseguiu, em silncio, ainda por mais uma hora.O terreno era cada vez mais ngreme e tortuoso, e o belga e o argentino julgaramreconhecer o local, uma encosta escalvada,cor de ocre, que se avistava de Dar-Rffien.Anos antes, houvera ali duros combates.Os soldados do Trcio haviam tomado deassalto aquelas alturas, onde os rifenhos seencontravam fortemente entrincheirados.Para desaloj-los, a Bandeira de que Roger41

fazia parte perdera mais de cinquenta porcento dos seus homens. Fora uma mortandadehorrorosa. O comando pretendia obter, a todoo custo, aquela posio, e conseguiu-o. Para,afinal, terem que abandon-la no dia seguinte,a fim de evitar uma manobra de envolvimento que, a consumar-se, resultaria numgrande desastre para as armas de Espanha.Roger e Paco admiravam a certeza comque, em plena treva, Alex os guiara atquele local. Dir-se-ia que o checo tinhafaro, Este facto reforou a confiana que jnele depositavam.No sabiam qual era a inteno deAlex, ao alcanar o corao da montanha.Pensavam que procurasse abrigo emalguma caverna, para fazerem um repouso eaguardarem o nascer do Sol.Agora era mais difcil avanar. A primeira elevao escalvada de terreno j foratransposta, ficara para trs, e avanavamnuma subida mais suave, onde cresciamervas que lhes davam pelo joelho. A serraera ali muito desabrigada. E quem estivesse ao longe, na planura, munido de umbom culo, no teria dificuldade, luz dodia, em localizar nitidamente os trs vultosa mover-se. Alex no queria ficar naquele stio descoberto. Seus companheiros compreende- 42

ram que ele desejava embrenhar-se a fundona montanha, a coberto da noite. Depoisde se infiltrarem no labirinto de gargantasabruptas e vales, com grande dificuldadeos descobriria uma brigada, perseguidora,ou, se os descobrisse, teriam tempo deentrincheirar-se fortemente e disparar sobreos que viessem, sem grande perigo deserem atingidos. Qualquer deles era bomatirador e estimava a luta, e, muito nontimo, chegavam quase a desejar umencontro com o sargento Weiss e os seushomens, para medirem foras, para abaterem os seus inimigos, ali, no segredo daserra, vingando a memria de outros camaradas fugitivos que foram abatidos quandotomavam o caminho da liberdade.O piso voltava a ser mais difcil e amarcha fazia-se mais vagarosa. J nopodiam seguir os trs, lado a lado. Iamem fila indiana. Primeiro, Alex, depoisLopez e, por ltimo, Roger. Ao cabo deuma hora de tropees, que por vezes osfaziam ir de mos ao solo spero ondecresciam cardos, o checo enveredou poruma espcie de corredor estreito e em torcicolos, que o belga e o argentino supuseram ladeadas de altas paredes de granito,quase cortadas a pique, pois, quer estendess- sem os braos para um lado, quer para o outro,43

encontravam sempre a rocha dura da montanha.Percorreram por largo tempo aquelaestreita passagem, que os obrigava a marchar mais lenta e cautelosamente. Ao cabode uns bons vinte minutos, perceberam quea garganta principiava a alargar-se e o declive a acentuar-se. Subiam novamente pelodorso mais desafogado da montanha.Paco e Roger comeavam a sentir-sefatigados e no lhes desagradava que Alexlembrasse passarem o resto da noite abrigados em qualquer recesso que encontrassem. A temperatura baixara muito e corriaum ventinho cortante, que lhes anavalhavao rosto. No sentiam frio, devido ao ardorda marcha. Pelo contrrio, suavam, sobaquela espcie de gibo de l, que oscobria do pescoo at aos ps.Alex dir-se-ia adivinhar o pensamentodos companheiros, porque disse, rompendo osilncio soturno que quase sempre os envolvera :- Vamos encontrar agora, ao cabodesta ladeira, uma espcie de rotunda; tempor fundo uma parede escalvada que teremos de tornejar, para continuarmos asubir. . Paco Lopez perguntou aos seus botescomo pudera o checo obter um conheci- 44

mento to perfeito da montanha, para percorr-la, assim, de noite, com tanta segurana como se passeasse pelas ruas de Dar-Rittien, e sabendo de cor a configuraodo terreno que ia encontrar. Decididamente, aquele homem era extraordinrio.Tudo o que no Trcio se dizia a seu respeito, e que j tomara foros de lenda, noera exagero. Os factos demonstravam queas faculdades de Alex eram muito superiores ao que se supunha. Felicitava-se intimamente por t-lo aliciado para aquelaempresa arriscada que, na verdade, requeria como chefe um homem da sua tmpera.Com efeito, no tardaram em encontrara rotunda a que o checo se referira. Pacono pde deixar de lhe perguntar:- Como diabo adquiriste tu um conhecimento to exacto da montanha ?- Andmos por aqui em combate -respondeu ele.Mas isso no bastava. Tambm Rogerali batalhara e seria incapaz de se guiar, denoite, naquela regio selvtica. Mas calou-se, tendo que aceitar como boa a explicao,Alex dirigia-se agora em linha recta,at alcanar a parede escalvada a que aludira. Pela sua posio, a elevao abrupta45

do monte abrigava-os do vento cortante eincomodativo que soprava do Nordeste.- H aqui umas pedras - disse ocheco. - Podemos sentar-nos e descansaruns momentos. J fizemos uma boa caminhada.s apalpadelas, encontraram uns calhausonde se sentaram, com um suspiro de cansao. O suor corria-lhes da fronte, queenxugaram ao tecido grosso do albornoz.Paco e Roger perceberam, na escurido,que Alex, pelo tacto, enchia o cachimbo,que havia muitas horas no fumava.O argentino sentiu despertar o apetite dotabaco; e puxou de uma cigarrilha, quelevou boca. O belga no fumava. Sentia-setonto como uma senhora, quando davaduas fumaas. Desistira de tomar essehbito.Alex feriu lume, chegou-o ao cigarro dePaco e depois acendeu a fornalha, fazendoconcha com as mos luz do tabaco aceso, espreitou ashoras, no relgio de pulso. Notando-lhe ogesto, Paco inquiriu:- Quantas ?- Trs menos um quarto.- Temos mais de cinco horas de marchasobre o lombo - observou Roger- J era tempo de descansar - proferiu46

Lopez. E acrescentou: - Se aqui houvessequalquer recanto onde nos pudssemosestender...Alex quedou um momento em silncio.Depois, com a sua placidez habitual, disse:- Fazemos aqui apenas um breve descanso. Ainda estamos na encosta norte daserra e convm-nos, ao romper do dia, jter ultrapassado os montes. Antes de alcanarmos a vertente sul, no devemos descansar. O nosso programa, enquanto no tivermos posto distncia considervel entre nse o aquartelamento, deve ser o seguinte :marcha de noite e dormir de dia, bem ocultos em qualquer parte. Desta forma, nuncamais nos descobriro.- Assim deve ser, realmente - arriscouRoger, numa concordncia porque de diadevem andar nossa procura, e todos oscaminhos estaro por certo muito vigiados.- Exactamente -corroborou Alex. -No h vantagem nenhuma em ter mausencontros. Avanando de noite, podemospassar a curtas distncias dos nossos perseguidores, sem que eles nos notem; ao passoque, de dia, podem localizar-nos, mesmo demuito longe. S quando tivermos atingidoo deserto, nos podemos aventurar de dia.- E se comssemos alguma coisa, paracriar nimo - alvitrou Paco Lopez.47

- assim tanta a vontade de comer,que no te possas aguentar at ser dia ? -inquiriu o checo.O argentino compreendeu que esta objeco significava, simultaneamente, uma censura e uma discordncia, e apressou-se adizer :- Sim, devemos poupar as provises.Roger perguntou se, depois de atingiremA vertente sul da montanha, ainda teriammuito que andar para chegar a Figig, aprimeira grande etapa prevista da sua caminhada. O checo respondeu-lhe com um assobio longo, que lhe deu logo a ideia de umalonga distncia, e explicou :- O que estamos fazendo agora umpequeno nada do nosso itinerrio. Nestemomento, contornamos pelas passagens maisfceis o extremo leste da cordilheira chamadao Grande Atlas. uma empresa fcil. Depois,teremos que procurar caminho pelo extremoeste de outra cordilheira que encontraremosmais ao sul, chamada Atlas do Saara.Em seguida, teremos o deserto e Figig. Anos orientaremos sobre o que haver a fazer.Estaremos em territrio francs, portanto,muito perigoso para a nossa situao. Se anossa fuga constar, natural que as autoridades francesas nos queiram prender e48

entregar aos espanhis. Talvez os nossosdisfarces mouros nos salvem...Alex calou-se, sobre estas palavras. Oscompanheiros ficaram pensativos. Estavamapenas no incio das suas dificuldades. Mastinham f em que a Providncia os protegeria. Depositavam absoluta confiana emAlex, que falava como se tivesse ummapa aberto na frente.- E quanto tempo gastaremos at deixarmos para trs as ltimas montanhas ?-perguntou Roger.O checo tardou um momento em responder, como se meditasse. Depois, disse:- Se tivermos a sorte de fazer o percurso sem nos enganarmos, calculo que emtrs dias, o mximo, estaremos no deserto.Mentalmente, Paco fez o clculo possvel durao das provises e, compreendeuquo prudente era Alex em querer poup-las.Meia hora depois de se terem sentado,Alex deu ordem de marchar. Caminharamdurante toda a noite, apesar da fadiga. Maseram homens habituados a andar e no sequeixavam. Sabiam que estavam apenas noincio dos tormentos. A liberdade no sepodia alcanar sem sacrifcio.Ao romper do Sol, encontravam-se adescer a encosta sul das montanhas. AlexUm Salto no Desconhecido - 4 49

circundou a vista e, apontando para umagarganta fendida, a oeste, exclamou:- Olhem!Roger e Paco seguiram com a vista ogesto do checo. Umas sombras moviam-seao longe, no crepsculo da manh. Eramcavaleiros a galope.Alex, flectindo bruscamente sua esquerda, meteu por um desfiladeiro que osocultava e disse : - Vamos ver se podemos evitar um mauencontro. CAPTULO IV Desaparecimento misterioso -de AlexOs trs fugitivos -sentiam-se estafados efamintos. Tinham feito aquela enorme tiradadurante toda a noite, para; logo de comeo,se afastarem do raio de aco dos seusperseguidores, , quando calculavam que,ao romper do dia, poderiam ocultar-se tranquilamente em qualquer recesso da serra,comer alguma coisa e dormir, encontravam-seto perto do perigo como se no tivessemsado das imediaes do Dar-Rifien.Alex tomara logo por um desvio quetornava impossvel avistarem-nos do planoinferior, onde passavam os cavaleiros.;50

Ocultos atrs de uns rochedos, puderamobservar melhor o que se passava.Haviam comeado a descer a encostasul da extremidade da cordilheira do PequenoAtlas, isto , julgavam ter posto entre eles eDar-Riffien o primeiro obstculo srio quepoderia fazer desistir da perseguio oshomens que o comando tivesse enviado noseu encalo. E acabavam de verificar queesse obstculo era como se no existisse.Os cavaleiros estavam ali, a pouco maisde uma milha de distncia, movendo-se,perfeitamente distintos, na meia luz damanh, que aclarava rapidamente.Paco Lopez ficara atnito; quase noqueria acreditar no que via, Mas no podiaduvidar. L em baixo, num caminho queserpeava pelo vale; corriam trs cavaleiros.Alex no tirava os olhos deles como fascinado. Roger abria muito as suas pupilasclaras e ingnuas, seguindo as evolues dossoldados. Parecia levarem uma rota premeditada.O checo, aps longa observao emsilncio, pronunciou:- Eles julgam que vamos tomar ocaminho das montanhas do Antiatlas, paranos internar profundamente no Marrocosfrancs e irmos sair costa do Atlntico. -Teve um sorriso e acrescentou; - No 51

pensaram mal, mas enganaram-se. Nsnunca nos meteramos por caminho tofcil, onde o risco de morrer muito menor,mas infinitamente maior o de cairmos nasmos das autoridades francesas.Efectivamente, os trs cavaleiros j noeram mais do que trs pontinhos, que seiam esfumando na direco das serraniasque se erguiam a ocidente.- Boa viagem... - murmurou Alex,Com um risinho de ironia. - Podemos estardescansados. Agora, procuremos um bomabrigo para comermos e dormirmos. Sdevemos retomar a marcha ao declinar datarde, caminhando muito cautelosamente,enquanto houver luz do dia.Roger sentiu um alvio, como se lhe tivessem tirado um grande peso de cima do peito.Paco tambm soltou um profundo suspiro eproferiu:- Aqueles diabos no se demorarammuito tempo em vir na nossa peugada.- Era de esperar - replicou Alex, numtom um tanto spero. - Tu fizeste umreclamo bastante ruidoso das nossas intenes, para que eles no compreendessem oque se passava, logo que faltmos ao recolher.E, anteontem, aquela camarera espiava-nos, na cantina. - O argentino calou-se. Sentia que o52

companheiro tinha razo. J toda a gentealimentava suspeitas acerca das suasintenes, de contrrio no iniciariamas pesquisas seno de manh, ou talvezmais tarde. Por certo, essa mesma noite osteriam procurado em Dar-Riffien, por todaa parte. Como no os encontraram, nodeviam ter hesitado em mandar patrulhasno seu encalo, porque sabiam que, quantomais depressa agissem, mais probabilidadesteriam de xito.Felizmente, os soldados haviam passadobem prximo da presa apetecida, sem suspeitarem da sua presena.Alex continuou a caminhar pelo dorsoda serra, frente dos amigos, procurandosempre trilho abrigado, de forma que nofosse fcil descobrirem-nos de longe. Notardaram em achar-se num local que lhesservia maravilha para comerem descansados. Era uma espcie de furna, um poo deuns cinco metros de profundidade, paredesngremes, pelas quais se deixaram escorregarat ao fundo, onde cresciam ervas daninhas,quase da altura de um homem.Ali medravam algumas figueiras bravase uma pequena palmeira, que lutava porfazer com que as suas palmas ultrapassassema altura do rebordo da grande cova. Emuma das paredes havia uma caverna, com53

alguns metros de profundidade, que Alexafirmou ter sido aberta pela mo do homem.No se viam, porm, vestgios de que tivessesido habitada recentemente.- Abenoado seja quem se lembrou deconstruir aqui este refgio! - exclamou ocheco.- Mal pensou nos benefcios que umdia nos prestaria - acrescentou Roger, queprincipiava a sentir-se menos tmido napresena do checo. Paco comeava a apanhar ervas secas epedaos de lenha.- Para que isso? - perguntou-lheAlex, surpreso.- Para fazermos uma fogueira e aquecermos a comida...- Ests louco - replicou o checo. - Umacoluna de fumo, aqui, seria o melhor sinalda nossa presena. O clima bastantequente para podermos prescindir de alimentos aquecidos. Vamos tratar de abriruma lata de corned-beef.Poucos momentos depois, tinham devorado o contedo de uma lata de carne emconserva e comeriam outra, se Alex noordenasse: - Poupemos as munies de boca.Beberam largamente do cantil, Depois,apanhando braados de ervas secas, fize- 54

ram, dentro da caverna, um leito, queacharam uma maravilha de conforto, e,dois minutos depois, ressonavam em coro.A fadiga e a viglia venceram-nos. Emtorno, pairava um silncio e uma paz queno eram interrompidos seno por algumgrito de ave de rapina, que passava muitoalto ou pela restolhada de algum rptil,arrastando-se por entre as pedras.Roger acordou, j a tarde comeava adeclinar. Quedou uns momentos, estendidode costas, a olhar o tecto rugoso da caverna,intrigado, sem se lembrar onde estava.Uma respirao cadenciada, a seu lado,f-lo voltar a cabea. Viu Paco, que dormiaainda, envolto no albornoz branco, e dejacto iluminou-se-lhe o pensamento. Sim,tinham desertado. Estavam recolhidosnuma caverna, na encosta sul do PequenoAtlas.Sentou-se no leito de ervas secas e,passeando um olhar em redor, teve umsobressalto. Alex no estava junto deles.Lembrava-se perfeitamente da posio emque se deitaram. Paco estendera-se suaesquerda e Alex direita. Via-se ainda amarca do corpo na erva amachucada. Mascomo explicar aquela ausncia?Tentou tranquilizar-se. Alex no podiaestar longe. Provavelmente, acordara muito55

cedo e, como os companheiros dormiam,no os querendo acordar nem permanecerestupidamente metido naquele buracosoturno, fora dar uma volta pelas imediaes.Roger ergueu-se, sem rudo, para nodespertar o argentino, e saiu para a furna,que estava mergulhada na sombra projectada pela parede ocidental, cortada quase apique. Passou a vista em redor, mas nemsinal de Alex se lhe deparou.Soltou um ligeiro assobio, na esperanade que o checo pudesse estar oculto pelasaltas ervas que cobriam o fundo da furna.Respondeu-lhe o eco. Apurou o ouvido.Pairava profundo silncio, que o incomodava.Assaltaram-no mil pressentimentos sombrios e contraditrios. Uma vaga suspeitainfiltrava-se subtilmente em sua alma. Agora,parecia-lhe duvidoso tudo o que at entoo deslumbrara em Alex: a segurana comque ele caminhara atravs da escurido, oconhecimento perfeito que mostrava doterreno que trilhavam, o rumo daquelafurna que logo tomara. Dir-se-ia que tudoobedecia a propsitos reservados, a umplano preconcebido. E, afinal para qu? Paraos abandonar naquela cova, perdidos numamontanha desconhecida, sujeitos, caso56

tentassem seguir caminho, a ficarem nasgarras dos perseguidores, que os rondavamde perto.Todas estas suspeitas se insinuaram nonimo do belga, que no as queria encararbem de frente, mal disposto consigo mesmo,por se surpreender a fazer to mau conceitode um camarada.Regressou pensativo e a passo lento, caverna, onde encontrou o argentino aindaa dormir profundamente. Decidiu acord-lo.J no era cedo e por certo no poderiamficar naquela cova, irresolutos. Era urgenteque Paco tomasse conhecimento da gravidade da situao criada pela inexplicvelausncia de Alex.Sacudiu-o com fora. O argentino sentou-se no feno e olhou estremunhado suavolta. - Que pasa? - pronunciou ele ainda forade si e em voz rouca.- Alex desapareceu - disse-lhe obelga.Mas Lopez ainda tardou um bom bocado em aperceber-se do que Roger lhe comunicava. Espreguiou-se e bocejou ruidosamente. Depois, entrou na realidade.-Que horas so? - perguntou.-Alex que tem relgio e ele no estc - respondeu o belga.57

-Ah! Sim!... Mas aonde foi ele? - inquiriu o argentino.-No sei...O belga explicou-lhe ento que, ao acordar, dera pela sua ausncia. Procurara-ona furna e no o encontrara. No sabiaexplicar por que motivo o checo se afastara,sem os avisar.Paco quedou um momento pensativo.- Temos que procur-lo - disse ele porfim. - Vamos dar uma volta pelas imediaes. provvel que no esteja longe...Comearam a equipar-se para a partida,afivelando o cinturo com as armas eenvergando o albornoz. Mas, quando iacolocar o alforje a tiracolo, Paco soltouuma exclamao:- Os nossos cantis?!-Roger notou ento que Alex no slevara toda a sua bagagem, como acarretara os seus cantis, deixando-os sem gua esem vasilha onde transport-la, caso apudessem obter. Para quem tenciona atravessar o deserto, era o mesmo que ir apresentar o peito descoberto a um pelotoinimigo. Faltava-lhes um dos mais valiososmeios de resistncia, na legio rida quese propunham percorrer. Entreolharam-se, estupefactos. Rogeradivinhava, na expresso do companheiro,53

as mesmas suspeitas que o tinham assaltado momentos antes.- Alex abandonou-nos miseravelmente...- pronunciou o argentino, entre dentes. -A sua fuga, levando-nos os cantis, equivalea uma autntica traio. Mas ele no podeir muito longe. Vamos ver se o apanhamos.Mil bombas me rachem de meio a meio, seno o fao engolir os cantis!Paco teve um gesto violento. Roger,mentindo aos seus prprios sentimentos,ainda ops:- Talvez seja cedo para fazermos maujuzo de AlexLopez soltou uma espcie de rugido.Os olhos negros e incendiados rolaram-lhe nervosamente na face trigueira. -V-se bem que no passas de uma[ criana muito grande! - exclamou ele. - Que mais preciso para se ver que Alex andou sempre de m f connosco? Ele conhe- cia perfeitamente o caminho que havia de; conduzir-nos a este buraco; provavelmente,; de combinao com o comando, de quemteria recebido uma boa gorjeta, indicou-lheso caminho que havamos de seguir. A brigada de perseguio no perdeu tempo e veiologo no nosso rastro. Possivelmente, perdera-nos a pista, mas o patife, apanhando-nosa dormir, deve ter ido avisar os nossos ini- 59

mgos, levando-nos os cantis, para nosimpossibilitar de abandonar regies habitadas, onde haja gua, e forar-nos a permanecer eternamente nos montes, como porcosbravos... No me admirava nada que osargento Weiss e os seus soldados nosviessem surpreender aqui!Roger escutava aquele esmagador discurso, que o argentino proferira quase deum flego. No encontrava argumentos comque combater aquela acusao tremenda.Sentia que o companheiro raciocinava comlgica.- Creio que o melhor sairmos quantoantes desta furna, onde poderemos serapanhados como animais inocentes quecaem na armadilha - disse ainda o argentino.- Sim, melhor - concordou o belga,encaminhando-se resolutamente para a sadada caverna.Ao atravessarem a furna, tropeando naservas altas, Roger ainda clamou :- Alex!... Alex!...,O eco repetiu as suas vozes. Uma avedespediu voo, grasnando sinistramente, etudo recaiu em pesado silncio.Paco soltou ento uma risada sarcsticae comentou: - Admiro a tua candura, Roger...60

Imaginavas que alguma coisa mais te poderia responder, alm do eco?O belga corou como uma criana envergonhada e, com auxlio de ps e mos, principiou a escalar as paredes ngremes e speras da furna.Com certo custo, tornaram a atingir onvel do dorso da montanha. O Sol declinavapara ocidente. Ao longe, por entre umapoalha luminosa, enxergava-se o vulto maissombrio de outros montes, que deviam ser,como Alex dissera, os contrafortes doPequeno Atlas, que tencionavam tornejar,durante a tirada dessa noite.Os dois desertores quedaram um momento absortos na contemplao daquelarude paisagem. Alm, pelo vale, o caminhoseria menos difcil, mas corriam o perigo deser mais facilmente apanhados. Por ali, eraa estrada natural de quem queria atingirpovoaes importantes, como Ain Setra,Figig e, mais para o poente, Colomb Bchar.Era natural que as autoridades, prevenidasda sua desero, trouxessem mais vigiadasas imediaes desses povoados. No seriamto tolos que fossem meter-se na boca dolobo. Estavam hesitantes sobre o rumo atomar. Pela primeira vez, desde que saramde Dar-Riffien, tinham que tomar resolues61

sozinhos, e isso atrapalhava-os um pouco.Paco sentiu que lhe incumbia, na ausnciade Alex, que os aliviava do trabalho de pensar, tomar sobre si a direco da fuga Rogerno passava de um bom gigante de obedincia pronta!- Bueno! - proferiu o argentino. -O melhor no perdermos o nosso preciosotempo procura de um traidor. Seria arriscar a nossa pele. O patife levou-nos o mapa,mas temos a bssola e confiamos na nossaboa estrela. Em vez de tornejarmos os contrafortes do Pequeno Atlas, seguimos emfrente, em direco ao Atlas do Saara,onde temos probabilidades de arranjar cantis ou outra qualquer vasilha para transportede gua. Atravessamos, depois, a cordilheira,na direco do sul, e estaremos no deserto,que ser o nosso maior risco, mas tambmpode ser a nossa maior proteco. Em qualquer fonte da serra, poderemos fazer umaboa proviso de vveres e de gua.Roger olhou na direco do sul, paraonde Paco estendia o brao. L estava ovulto azulado, que adquiria agora um tomvioleta, alongando-se na direco de leste-oeste, como uma cortina muito alta, atocar o azul lmpido do cu. - A serra parece altssima deve serdifcil de transpor - comentou Roger.62

- Sim, alta - replicou Lopez -, mash quem tenha escalado o Monte Branco,que muito mais alto e est coberto deneve. Aqui, o nico perigo ser o mauencontro com algum leo.- H muitos lees? - perguntou o belga.- Alguns. Ainda no os caaram todos -respondeu Paco. - No entanto, s por muitainfelicidade encontraremos algum. Os caadores andam s vezes dias e dias, procuradeles, e no os acham...Roger teve um sorriso e murmurou:- Avancemos. J perdemos muito tempo!Os dois fugitivos comearam a descer aencosta, que ali era desafogada. Corria umaaragem tpida, que os fazia esquecer que osraios de Sol ainda eram bastante quentes.Depois de caminharem umas centenasde passos, descobriram que uma espcie devala corria mais abaixo, ao travs da serra,em torcicolos muito irregulares. Seria precisotransp-la, para continuar a descida.Para l dessa grande fenda, que era umaespcie de caminho aberto pela Natureza aolongo do monte, fendendo a encosta a meio,prosseguia a vertente, num desnvel mais suave.Paco Roger aproximaram-se da vala,pensando em como seria fcil a marcha,depois de ultrapassado aquele obstculo.Quando se preparavam para escorregar para63

o fundo do grande valado, soou-lhes aosouvidos um grito que lhes parecia humano.Detiveram-se atnitos, olhando em redor.Logo descobriram, a uns cem passos parao lado do poente, um vulto de homem.- A tropa! - exclamou Paco, num sbitofuror.Era, efectivamente, uma farda do Trcioque eles logo reconheceram. O homemempunhava uma espingarda e berrava delonge.- Faam alto!... Seno disparo!...Paco e Roger entreolharam-se, hesitantes.O homem estava muito afastado para opoderem visar com as pistolas.- Mos ao ar! - gritava o outro.Neste momento mais dois vultos fardados saram da vala, agitando espingardas.- Weiss, com dois camaradas ... -disse Roger, empalidecendo.- Com mil diabos! Vo fuzilar-nos aqui.Fujamos para a vala! - gritou Paco.E arremessou-se para dentro da imensacova. Roger seguiu-o rolando, rapidamente.Soaram dois tiros. As balas chicotearam oar, mas haviam partido muito tarde, paraos atingir. ,Paco no se detivera no fundo do valado.Correu pelo fundo em ziguezague, para os lados do nascente, no intuito de deixar para trs64

os perseguidores. Sempre correndo, forasacando da pistola. Roger fez outro tanto.- Temos que abater um, pelo menos,antes que nos prendam - rosnava Paco,ofegante.Seguiam por uma espcie de labirinto.Poucos passos adiante, viram que o corredorse bifurcava, como se se desdobrasse emdois braos que, aps curto afastamento umdo outro, continuavam a seguir paralelospara os lados do Ocidente. Paco, que ia navanguarda, aproveitou aquela feliz circunstncia, que lhes permitia colocar os perseguidores a uma distncia maior e separadospor duas autnticas trincheiras. O sargentoWeiss e os dois soldados s deram pelo percalo quando avistaram os fugitivos a escapar-se ao longo do segundo corredor. Pararecuperarem o terreno perdido tinham queatravessar a primeira vala, depois correr emterreno descoberto at segunda.Roger, fugindo sempre, compreendeu amanobra que eles iam fazer. Viu-os desaparecer na primeira trincheira.- Temos vantagem agora! - gritou elepara o argentino, que corria na frente, semnotar o que se passava.Paco espreitou para fora da trincheira.Nesse momento j o sargento Weiss emergiado terreno e se erguia para dar uma corridaUm Salto no Desconhecido - 5 65

sobre o abrigo dos desertores. Soou um tiro.Paco disparara, mas o tiro falhara. Atrsde Weiss, j surgiam os vultos dos doissoldados. Serenamente, Roger descarregoua sua arma, duas vezes, com um intervalode segundos. Os dois soldados caram nodorso da serra. Um ficou imvel, o outroestrebuchava. Roger quis ainda dispararterceira vez, mas a arma encravara-se-lhe.Soltou uma praga e empurrando Paco, queno voltara a disparar, incitou-o:- Foge!Fugiram, baixando-se dentro do corredor, para se protegerem das balas que osargento Weiss j disparava em sua direco.A vala, porm, que seguia em linha quebrada, servia-lhes de abrigo. O alemo nodesistia de os atingir. De vez em quando,punha um joelho em terra, para firmar melhora pontaria, e disparava. Mas em vo e s perdia tempo, atrasando-se.- Podemos esper-lo, num cotovelo... dizia Roger, sempre correndo - e derrub-locom um tiro certeiro. - Tenho a pistola encravada! - retorquiu, furioso, o argentino.!Sucedera-lhe o mesmo percalo que aocompanheiro. S a ligeireza das pernas ospoderia salvar. O sargento Weiss, porm,adivinhara que eles no podiam disparar66

por qualquer motivo e tentava agora aproximar-se sem descarregar. Percebera que ostinha na mo, desarmados. O dorso do monteera mais favorvel para correr, e ia ganhandoterreno sobre os fugitivos, que, no fundo irregular e pedregoso do fosso onde se tinhammetido, no podiam imprimir grande velocidade corrida. Se tentassem sair do fosso,para aproveitar o melhor piso, em terrenodescoberto, estavam perdidos, porque entoo sargento poderia vis-los como se estivessenuma carreira de tiro.A situao comeava a tornar-se afli-tiva. J ouviam distintamente os passos deWeiss, que pretendia, com certeza, apontarmesmo queima-roupa, apanhando-os nofundo da vala, como o caador presaencurralada. - Estamos perdidos!... - rugiu o argentino, cerrando os dentes. , Weiss havia de querer vingar os soldados atingidos. No os deixaria sair daquelelabirinto com vida. ,Soou um tiro. Os desertores ainda correram alguns metros mas o eco da detonao parecera-lhes vir de longe. Olharampara trs e viram que Weiss cambaleava,como se estivesse ferido. Intrigados, a curiosidade pesando nos seus espritos mais doque o medo, os dois companheiros pararam,67

no momento em que o sargento, depois detergiversar, caa desamparadamente, rolandopara o fundo da trincheira.Algum atingira o alemo em cheio.Roger e Paco entreolharam-se, perplexos.Depois, trepando ao rebordo da vala, nopuderam reter uma exclamao. Da outravala, saa um vulto branco,- Um rabe!... -exclamou Roger.O rabe fazia sinais amigveis, agitando no ar a pistola com que acabara devisar o sargento.Levados pelo mesmo impulso, os doishomens treparam para fora da trincheira, ecorreram ao encontro daquele homem queos salvara da morte certa.- Mas Alex! - bradou Paco, aoAproximar-se.Era realmente Alex, que j abrandava opasso e abria os braos, de par em par,para um amplexo fraternal.68

CAPTULO VUm itinerrio que se modificaAo sentirem-se nos braos do companheiro por quem se julgavam atraioados,Roger e Paco no puderam deixar de experimentar um grande remorso. Ignoravamainda as razes que teriam levado Alex aafastar-se da furna, sem os avisar. Mascompreendiam agora que ele no era umtraidor. Era um homem a quem deviamestarem vivos, naquele momento. E issobastava para os enternecer at s lgrimas.Depressa Alex, na sua maneira peculiare decidida, ps termo s expanses que pretendiam alongar-se pelos motivos que ele,em parte, ignorava.- Foi uma sorte eu vir pela vala superior, quando ouvi os primeiros tiros -contou ele. - A princpio, fiquei surpreendido,depois, lembrando-me de que vocs, no metendo visto na furna, tivessem disparadopara me dar sinal, trepei ao parapeito eobservei o que se passava. Ainda vi cair osdois soldados. Mas o sargento, em quemreconheci Weiss, continuava a perseguio.Num relance, compreendi o que se passava.Vocs, acordando mais cedo do que euprevira, tinham-se aventurado pela serra e69

foram descobertos por aqueles patifes. Noadivinhei logo por que razo, tendo tido moto certeira para os soldados, no visavamo sargento, tambm. Por certo, alguma coisade anormal os impedia de utilizar as armas.Comecei ento a correr, dentro da outratrincheira, e, quando tive Weiss ao alcancede tiro, disparei. Se acaso no lhe acertasse,poderia, pelo menos, distra-lo, duranteuns momentos, permitindo-lhes tomar umaboa dianteira. Depois, podia acontecer quelhe acertasse com um segundo tiro, porqueestava resguardado pela trincheira e eleencontrava-se em campo aberto. Tive porm,a sorte de o derrubar s com uma bala.Paco e Roger escutavam-no, cheios deentusiasmo.- Salvaste-nos a vida... -murmurou,comovidamente, o argentino. - Conta coma nossa eterna gratido.E narrou-lhe, em seguida, os acontecimentos, desde que abandonaram a furna ese meteram a caminho at carem na emboscada dos soldados do Trcio.- Mas porque se aventuraram at tolonge da furna? - inquiriu o checo.Roger baixou os olhos, como a crianaque teme confessar uma culpa. Paco, porm,mais expansivo, contou-lhe a verdade dassuas suspeitas.70

- Sobretudo, o desaparecimento doscantis fez-nos pensar de ti o pior.Alex soltou uma risada e, levantando oalbornoz, mostrou-lhes os trs cantis, quependiam do cinturo. Depois, explicou:- Como lhes disse, no devamos abandonar a furna, antes de anoitecer, paraprosseguirmos a nossa jornada com maissegurana. E que eu tinha razo em squerer viajar de noite, os factos acabam deconfirm-lo plenamente. Corramos o riscode ser vistos de longe e caados como corasinocentes. Eu acordara deviam ser umastrs horas da tarde. Conservei-me deitado,a pensar, quando, subitamente, me lembreide que, de noite, no teramos facilidade, emencontrar gua. Ia acord-los, mas detive-me.O mais prudente seria ir sozinho procurarqualquer nascente na serra, encher os cantise voltar para a furna, ao anoitecer. Sozinho,podia passar mais facilmente despercebido auma possvel vigilncia, ao passo que trsvultos a deambular na montanha tornar-se-iam logo notados, ;:mesmo de muito longe.Tomei todo o meu equipamento, porqueacho que, nesta vida incerta, devemos trazersempre connosco tudo o que nos pertence, elevei os cantis, para os encher. Sa da furnae, procurando sempre abrigos, fui deslizandoserra fora, por forma a no me expor muito71

a vistas indiscretas. Descobri as valas e percebi que se tratava, nada mais, nada menos,de trincheiras abertas pelos mouros, duranteas suas campanhas contra franceses ouespanhis. Ora, eles no abririam trincheiras, se no houvesse gua perto. Segui pelointerior da vala, e parava, espreitando devez em quando o aspecto das serranias.Depois, caminhava mais uns metros, prudentemente oculto. At que avistei, aolonge, um tufo de verdura, que denunciavahumidade. Caminhei resolutamente para l.Encontrei, efectivamente, uma fonte degua finssima. Enchi os cantis e, quandovinha de regresso, ouvi os tiros. O restosabem vocs como se passou.- E ns pensmos to mal de ti! -exclamou Paco, quando o checo terminouo seu relato.,. : -Mas estamos bem arrependidos -Ajuntou Roger. Por minha parte, juro que, apartir deste momento nunca mais duvidareida tua lealdade, por tanto acusadoras quesejam as aparncias.- No falemos mais nisso - retorquiuAlex. - Acho que devemos prosseguir quantoantes na nossa fuga - alvitrou o argentino.- Concordo. Aqui, no estamos muitoseguros - disse Alex. - Mas, primeiro, tra- 72

temos de reconhecer os despojos da vitria.Os soldados deviam trazer alguma coisa quenos pode ser til.Paco achou a lembrana magnfica, e,seguido do belga e do checo, dirigiu-separa a vala, no stio onde o corpo do sargento Weiss tinha rolado. O alemo estava estendido, de borco,entre os pedregulhos que formavam o leitodo fosso. Roger voltou-o. A expresso eraserena. Apresentava alguns arranhes, produzidos na queda. A farda estava furada,no lado esquerdo, na altura do corao.-Belo tiro! - comentou Paco.Contemplando a sua vtima, Alex teveum gesto triste, e disse: - Sinto grande aborrecimento, sempreque tenho que matar um homem.-Era um canalha! - observou Lopez.-Mesmo um canalha, no tnhamos odireito de mat-lo.- Mas matava-nos ele, com muito prazer - objectou vivamente o argentino.-A salvao dos meus camaradas que desculpa, perante a minha conscincia,o crime que fiz .-Mataste tantos em combate! - exclamou Paco. - S o indispensvel para ser bom soldado ; nenhum mais - redarguiu o checo.73

Paco calou-se, lanando-lhe um olhar deincompreenso. Roger tinha estranho fulgornos seus olhos de menino. Talvez noatingisse as razes de conscincia que levavam o checo quele desabafo, mas as suaspalavras chocavam-no muito no ntimo,despertando-lhe sentimentos que at entonunca experimentara.Placidamente, Alex j desapertava o cinturo do morto, tirando-lhe a pistola, as munies e o cantil, e entregando tudo ao argentino.- Guarda - disse ele. - Estas muniespodem ser precisas. Como a tua pistola seencravou, deita-a fora.-Ele deve ter dinheiro - lembrou Lopez.Alex lanou-lhe um olhar duro e frio.-No somos salteadores - pronunciousecamente. ,, Muito confuso, Lopez calou-se e comeou a ajeitar os despojos no cinturo.Dirigiram-se, depois, para o local ondetinham cado os dois soldados, atingidospelos tiros certeiros de Roger. Ambos estavam mortos, um com uma bala no meio datesta, o outro perfurado no ventre. Jaziamnum lago de sangue. O checo tirou-lhe asarmas e os cantis, que distriburam entresi. Alex ficou com mais uma pistola ealgumas munies, pendurando outro cantilno cinturo.74

-Agora, afastemo-nos o mais depressaPossvel - ordenou o checo. - Tenho o pressentimento de que os cavaleiros que vimospassar, de manh, em direco a Oeste,no devem tardar em voltar, para se juntarem ao sargento Weiss, neste local. Oscavaleiros deviam ter partido de Dar-Riffien,de madrugada, ao mesmo tempo que o sargento metia pernas a caminho, com os seushomens. Estes vieram a p e deviam terchegado momentos antes de entrarem nestecombate fatal. Se vocs no tivessem sadoda furna, talvez se tivesse evitado a batalha.- Mas samos vencedores, o queimporta - disse o argentino.-Escapmos por pouco. Tivemos sorte.Parece que um gnio bom vela por ns -observou Alex, encaminhando-se para atrincheira, cujo fundo pedregoso comeou atrilhar, seguido de Paco e de Roger.Avanaram por muito tempo, aos torcicolos, ao longo da montanha, com rumo aLeste.Paco e Roger no sabiam que itinerrioo companheiro pretendia seguir agora, masperceberam que, ao contrrio do projectodessa madrugada, em vez de atingir osprimeiros contrafortes do Grande Atlas, lhesvoltava decididamente o dorso.75

Lopez no pde conter-se que no observasse, ao cabo de meia hora de silenciosa caminhada:-Afinal, vamos a marchar em sentidooposto ao que planeramos...-Parece-te - retorquiu Alex, sem sevoltar. - que o aparecimento dos nossosperseguidores nos obriga a dar uma voltamaior. Os cavaleiros passaram para oslados do Grande Atlas, supondo que tivssemos tomado o rumo do Atlntico. Em breve,notaro que se enganaram e ho-de retroceder, para comunicar as suas impressesao sargento Weiss, que decerto combinaraaguard-los aqui. Talvez, encontrem oscadveres e suponham que no devemosestar longe. Ora, no temos a certezade ser to bem sucedidos com a cavalaria,como fomos com a infantaria... Vamosinterpor um obstculo de certo peso. Alcanaremos a plancie que fica entre esta cordilheira e a que vemos em frente, que oAtlas do Saara. Nesses terrenos baixos, hpntanos e lagos, esplndidos para os cavaleiros se atascarem e correrem at o riscode por l ficar. Ns, porm, mesmo sescuras, havemos de encontrar passagempor entre os pntanos e alcanar a encostafronteira. Do outro lado, h uma aldeiaindgena que, pelo dio que tem aos espa- 76

nhis, no se importaria de auxiliar todosos soldados a desertar. Tenho l um grandeamigo rabe, que deve sentir muito prazerem auxiliar-nos.Se at ento Alex era alvo de profundaadmirao, por parte dos companheiros, apartir da sua interveno oportuna no momento perigoso, esse sentimento transformara-se em venerao. Bebiam sofregamente as palavras que ele pronunciava. medida que o checo ia desenvolvendoaquele novo plano de jornada, sentiam quetudo devia suceder tal como afirmava.Realmente, havia aqueles terrenos pantanosos. Tanto Roger como Paco ouviramfalar deles por vrias vezes, e sabiam quealgumas pessoas l tinham cado para sempre.Alex pretendia transformar os perigos daregio, que poderiam ser fatais a outros fugitivos inexperientes, em factores em seu favor,em defesas naturais que fossem grandes perigos, sim, mas para os seus perseguidores.Quando chegaram ao termo das longastrincheiras, foram obrigados a saltar para odorso da montanha. Alex passeou demoradamente em redor o seu olhar perscrutador.No se via sinal de vida. Tudo era silenciosoe s. O Sol comeava a cair para ocidentee seus raios haviam perdido bastante daardente violncia.77

- Parece que no haver grande perigoem caminharmos agora a descoberto - disseo checo.- No vejo coisa alguma suspeita -concordou Paco.Principiaram a descer a montanha, queia perdendo a sua aridez Aqui e ali, j senotavam alguns vultos isolados de rvores,que lutavam por viver naquela solido. Ervacrestada pelos sis tornava o terreno escorregadio. Entardecia brandamente. Nem umaleve brisa corria e o ar era morno. Commais frequncia, aves sulcavam o espao.Algumas, enormes, de grandes asas escuras,pairavam no alto, recortadas no fundo docu azul, que empalidecia. A noite avizinhava-se, e com ela uma estranha melancolia se insinuava no nimo dos caminhantes.Tinham atingido o terreno plano. Respiravam o ar hmido que se desprendia deuma relva verde rasteira, que pisavam comoimenso tapete fofo.Alex quebrou o silncio e disse : - Agora, temos que fazer o impossvelpara no sermos apanhados. Se voltssemosao Trcio, j no respondamos apenas pelodelito de desero. Tnhamos que dar contade trs vidas... Seria afrontar o pelotode execuo.Estas palavras adquiriram um tom fatalista,78

naquele ambiente estranho, em que as coisasenvoltas num crepsculo rpido haviamtomado subitamente um aspecto irreal.- Que a boa estrela nos proteja... - murmurou, mansamente, o argentino, erguendoos olhos ao Cu, onde brilhava j um astrodistante, anunciando a noite.E perguntavam a si prprios como iriadecorrer a segunda noite da sua evaso.CAPTULO VIA merc da trovoada eda cheiaA noite cerrara-se por completo Sob osseus ps, o terreno amolecia, no oferecendomais resistncia do que uma espessa alfombra, e, conforme iam avanando, ia-se tornando mais pastoso, como se, por baixo darelva que o cobria, guisa de epiderme, shouvesse lama impregnada de gua.Paco Lopez j soltara algumas pragas.Estava arrependido de ter trocado as suasbotas grossas do equipamento por aquelasbabuchas de enfiar nos ps como chinelos,que o incomodavam mais do que se marchasse descalo.- Teria certa graa - comentara Alex,79

que seguia na frente, a fim de escolher omelhor caminho - que ns, disfarados demouros com estes albornozes, trouxssemosnos ps as botifarras de legionrios.-Seria gato escondido com rabo deFora - observou Roger, que fechava a marchadaquele pequeno cortejo.A noite era de uma serenidade magnfica, O cu, recamado de estrelas, reflectia-senos charcos que ladeavam o caminho. Emalguns desses charcos, a gua estagnadadesde as ltimas chuvas, e nuvens de mosquitos assaltavam os legionrios, picando-lhes o rosto e as mos, com voracidade.Por mais que agitassem os braos paraos afastar, no os largavam. Voltavam sempre, em nuvens cada vez mais espessas eimpertinentes.Alex e Roger sofriam-lhes as investidascom pacincia, mas o argentino no cessavade blasfemar: No sabia para que Deusfizera os mosquitos. Um animal to pequenono tinha o direito de existir. Antes os animais grandes, com vulto bastante para seremvisados por um bom rifle de caa.- Levaremos muito tempo para atravessar estes pntanos? - inquiriu ele.- Toda a noite, se no surgir algumimprevisto - respondeu Alex.- Toda a noite... - repetiu Paco, em80

voz desalentada. - E, mesmo que quisssemos interromper a viagem, no nos poderamos deitar nesta lama, nem sentar uns momentos, a descansar...- Temos que marchar sempre, atencontrar terreno firme - disse o checo. -Creio que s nas faldas do Atlas do Saarao encontraremos. E oxal no haja maiscontrariedades do que a dos mosquitos.- Mas haver coisa pior?! - exclamouo argentino.-Pior do que os mosquitos s os lees!- lembrou, l da retaguarda, o belga, querecuperara o seu esprito e se sentia optimista, desde que Alex os salvara da perseguio do sargento Weiss.Alex soltou uma risada e Paco, numadaquelas fanfarronadas que lhe eram peculiares, replicou: - Prefiro os lees, hombre, desses notenho medo.Alex parara, de sbito, a orientar-se.No havia luar, mas a visibilidade era relativamente boa. Depois de passar a vista emredor, recomeou a marcha, sem dizer palavra. Intrigado com a sua atitude, o argentino perguntou:- Que h?- Nada - respondeu secamente ocheco.Um Salto no Desconhecido - 6 81

Continuaram, em silncio, durante maisde meia hora. Subitamente, Alex avisou:- preciso mais cuidado com o terreno. Sigam sempre sobre os meus passos.Vamos a caminhar entre dois pntanosperigosos.Seus companheiros, seguindo a recomendao, procuravam pr os ps sobre aspegadas de Alex. Por vezes, enterravam-se,at aos tornozelos. E, como as babuchasficavam, a cada passo, enterradas na lama,resolveram caminhar descalos.De repente, um grito varou a noite silenciosa. Alex volveu-se rapidamente, reconhecendo a voz de Paco Lopez, que se afundava na lama do pntano. Ainda lhe pdedeitar a mo ao albornoz. O argentino agarrou-se ao companheiro com o desespero deum nufrago. Alex sentia-se escorregar parao sorvedouro. No conseguia firmar-se,por mais esforos que fizesse. Ambos iamsubmergindo irremediavelmente.- D-me a tua mo, mas no saias daterra firme! - bradou Alex para Roger,que j tentava aproximar-se, mas quereceava perder o p. O belga ajoelhou-se na estreita passagem firme e lanou a mo possante que o checo lhe estendia. E, assim, de joelhos,num equilbrio difcil, conseguiu, primeiro,82

deter a submerso dos dois homens. Masfaltava o pior: arranc-los ao sorvedouro.A imerso quintuplicava-lhes o peso. Pacoj estava submerso at ao peito e Alex at cinta. Quanto mais esbracejassem, maisrapidamente se afundariam no terreno movedio.Roger fazia esforos desesperados paraos deter. Mas, por motivos de equilbrio,s os podia segurar com a mo direita.O brao esquerdo mantinha-o ele estendidopara auxili-lo no -esforo. A mo de Rogerera como uma garra: o que segurasse nuncamais largava. Durante um minuto, manteve-se aquela situao angustiosa. Nem asubmerso prosseguia, nem viam meio desair do pntano.Roger, ento, soltou como que um rugido.Alex sentiu que ele lhe apertava a mo atlhe fazer estalar os ossos. Os dois corpososcilaram na lama. Um empuxo, e emergiram uns escassos centmetros. Mais doisempuxes enrgicos, e Alex sentiu que olodo descia. Enfim, pde arrancar umaperna daquela armadilha mole, viscosa, epr p em terreno firme. Ento, foi fciltirar o argentino como quem saca umarolha de uma garrafa, ou um dente de umagengiva.Ao sentir-se salvo, Paco soltou todas as83

terrveis pragas do seu reportrio, esquecendo-se de agradecer aos companheiros.- Se no fossem os msculos de ferrode Roger, ficvamos l os dois! - afirmouAlex. - No sei como Paco arranjou estesarilho, depois de eu ter recomendado queno se afastasse dos meus passos...- Nem eu, homem! - exclamou o argentino. - Creio que foi uma distraco minha...No percebo...-Parece-me - comentou Roger, de bomhumor - que Paco vai preferir agora aspicadas dos mosquitos morte por asfixiano pntano...Efectivamente, os mosquitos no cessavam de persegui-los. E, como a lama lhesficara agarrada s vestes mouras, constituindo chamariz, as nuvens dos malditosinsectos tornavam-se mais numerosas e abafadias, no lhes dando um segundo de descanso.No entanto, Paco confessava preferir osmosquitos impertinentes ao sorvedouro pantanoso.Refeitos do susto, prosseguiram na perigosa jornada. Lopez ia agora mui atento spassadas que Alex dava cautelosamente, nasua frente. Embora no tivessem subidas,nem tropeos, aquele gnero de marcha nodeixava de ser tanto ou mais fatigante do84

que a travessia da montanha. A cada passoseus ps enterravam-se no lodo at ao artelho, obrigando-os a um esforo montono epersistente.Sapos coaxavam, num coro ininterrupto,a que os ouvidos se habituaram, por fim.S eles davam sinal de vida, naquele ermo.Em certos locais, adivinhava-se um pequenolago de gua mais lmpida, que brilhavacomo uma imensa chapa de ao, cada naplancie. A, os mosquitos eram menosnumerosos, indicando que o lquido corriapara algures e se mantinha mais puro.Tinham a impresso de ter percorrido odobro do caminho que haviam feito nanoite anterior.Paco, pelos seus clculos, entendia queno devia tardar o nascimento do Sol,muito embora nada confirmasse tal assero. Para o convencer, Alex conseguiu, luz das estrelas, pois no convinha acenderfsforos naquele descampado, ver a posiodos ponteiros, no relgio.- Uma e dez... - informou ele.- Por Dios ,- exclamou o argentino. - Esse relgio est parado!No estava. A ansiedade de Paco quemarchava muito depressa.Mesmo que quisessem estugar a marcha,o terreno no lho permitia, e a boa prudn- 85

cia era auxiliada pela dificuldade daquelapista traioeira, onde no convinha avanarum p, sem saber bem onde assentar o outro.Alex calculava que, a terem que manterdurante toda a noite aquela marcha, no diaseguinte estariam to fatigados que dificilmente se poderiam mover. E ele no se sentia em segurana, enquanto no tivessetransposto o Atlas do Saara, para onde seencaminhavam. Pensava que ainda lhes restavam mais duas noites de boa marcha,atravs dos montes, para alcanarem as proximidades de Figig. Mas essa marcha s apoderiam fazer, desde que estivessem emboas condies fsicas; de contrrio, em vezde duas noites, gastariam quatro, para transpor os montes.O problema da alimentao no o preocupava muito. Tencionava, na aldeia indgena, em plena serra, reabastecer-se, e, sefosse necessrio, confiado proteco de umamigo leal, que era o rabe Abd-el-Rham,repousarem a bom recato umas vinte equatro horas, pelo menos.Paco e Roger ignoravam as preocupaesde Alex, que tinha que pensar por eles nodia de amanh. Sentir-se-iam bem felizes seencontrassem um abrigo prximo, ondepudessem repousar o resto da noite. Alexparecia adivinhar-lhes os pensamentos. Um86

repouso tambm lhe saberia bem. Mas onde,se, naquele terreno encharcado, no haviaum palmo onde pudessem sentar-se pormomentos?Cercava-os aquela imensa desolao.Nada aparecia que lhes incutisse esperananum abrigo para o resto da noite. Foram-searrastando, porque parar seria pior.O tempo esfriara e comeara a soprar umventozinho cortante, que varria a plancie,sem encontrar estorvos. Paco notara quealgumas nuvens ocultavam as estrelas, aquie alm, e no pde reter uma observaopessimista:- Parece que vamos ter mau tempo.Ao checo no passara despercebidaaquela mudana, mas calara-se, para nocausar inquietaes aos companheiros. Compreendera que, se lhes faltasse a luz dasestrelas, no enxergariam o caminho, e orisco de carem em algum pntano aumentaria consideravelmente.A visibilidade era cada vez mais difcil,tornando a situao muito grave. Alex via-seforado a parar, de momento a momento,para tactear o terreno com o p. Nos instantes em que a escurido era menos densa,estugavam passo, para recuperarem otempo perdido nas hesitaes. Roger teveento uma lembrana.87

- Tenho aqui uma corda - disse ele. - Podemos amarrar-nos uns aos outros, deforma que, escorregando um, os outros odetenham.- Excelente ideia! - aprovou Alex. - a tctica dos alpinistas...Atou fortemente a ponta da corda emvolta da cintura, Paco fez outro tanto, porforma a ficar uns dois passos distante deAlex. Roger quedou mais atrs, amarrado outra extremidade. O expediente fora til,porque marchavam mais afoitamente. Jno tinham medo de que lhes sucedessepercalo como o que os ia vitimando.Prosseguiram mais corajosos. No teriamavanado uma centena de passos, quandoAlex, escorregando na lama, se precipitou nopntano. Paco e Roger firmaram-se a tempoe arrancaram-no imediatamente do lodaal.A ideia do belga estava dando excelentesresultados. S no caso inadmissvel de carem os trs ao mesmo tempo no pntano,aquele sistema de salvao seria improfcuo.Apesar da noite se tornar cada vez maisescura, j no tiveram tantas hesitaes. Deonde em onde, Alex caa num atoleiro, masat j achavam essas quedas divertidas, pelafacilidade com que se desembaraavam.- Tiveste uma ideia genial! - disse oargentino, dirigindo-se a Roger.88

As preocupaes dos trs fugitivos principiaram a ser outras. que a noite tornara-se escura como breu e o vento soprava arajadas intermitentes cada vez mais impetuosas. J no se via uma estrela no cu.- Oxal me engane, mas parece-me quevamos ter chuva - disse Lopez, apreensivo.- No devemos escapar de apanharAlguma - concordou Alex.- Seria ptimo, para nos lavar as roupasque esto todas enlameadas - gracejou Roger.- Sim, teria essa vantagem - anuiuAlex. - E no pensaste, que, se viesse umadessas chuvas torrenciais, as guas subiriam;de tal forma que ficaramos para a a nadar?Mas, mesmo que no subam tanto, deixaroo terreno de tal forma empapado que nopoderemos distinguir o pntano do terrenoconsistente e poderemos contar com amorte certa.Paco sentiu um arrepio. A ideia de ficarem para ali atolados, sem esperana desalvao, perdidos na noite escura, apavorava-o. Ele que, pouco antes, experimentaraa angstia de comear a submergir-se nalama, pensou no horror de ver a morteavanar inexoravelmente, subindo sempre,atingindo-lhe a cintura, depois o