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Capítulo 1 Fundamentos da política e da sociedade brasileiras JOSÉ MURILO DE CARVALHO 19 nativas além do pau-brasil e de animais exóticos. Os nativos não produziam mer- cadorias aproveitáveis. A nova colônia não podia competir com as riquezas comerciais das Índias Orientais. A necessidade, porém, de defender a conquista dos ataques de ou- tros europeus, sobretudo franceses e espa- nhóis, forçou a Coroa portuguesa a dar iní- cio à colonização, trinta anos após a chega- da da esquadra de Cabral. Colonização sig- nificava "produzir para o mercado euro- peu". O produto que naquele momento se re- velou mais adaptável à região foi o açúcar. Para sua produção eram necessários terra, capital e mão-de-obra. A terra, abundante e facilmente arrancada dos nativos, foi dis- tribuída em vastas sesmarias. O capital veio de portugueses enriquecidos no comércio com as Índias e de capitalistas judeus ..A mão-de-obra foi buscada inicialmente na escravização da população indígena. Entre- tanto, como esta dificilmenre suportava o trabalho nos engenhos e era rapidamente dizimada por guerras e epidemias, recor- reu-se, já a partir da segunda metade do século XVI, à importação de escravos da costa ocidental da África. Desenvolveu-se, então, um vasto e.duradouro tráfico de es- cravos que durou três séculos. Calcula-se que cerca de três milhões de escravos afri- canos tenham sido transportados para a América portuguesa até 1822 e mais um .. 1. Os Fundamentos. 1500-1930 1.1 A colonização portuguesa Os conquistadores portugueses, como todos os outros do fim do século XV e iní- cio do XVI, além de difundir a fé, estavam interessados em encontrar riquezas naturais e mercadorias vendáveis na Europa ..A co- lõnia americana apresenrava poucas alter- o problema político central do Brasil é construir um país que combine três coisas: liberdade, participação e justiça social. Te- mos liberdade, alguma participação e muita desigualdade. A liberdade e a participação, para sobreviverem, precisam gerar igualda- de. Perseguindo esse tema central, o texto se divide em duas partes. A primeira aponra as principais características da formação social brasileira desde a colonização portuguesa até 1930, quando o país começa a passar por mudanças aceleradas. Nesse longo período de 430 anos houve grande continuidade na economia, na composição das classes e gru- pos sociais e nas relações sociais (como exem- plo de mudança importante, pode-se citar apenas a abolição da escravidão em 1888), A segunda parte resume as grandes mudan- ças posteriores a 1930 e aponta os proble- mas não resolvidos em nossa trajetória para uma sociedade democrática. I li ~. .•..... _-----------------~----------

1.1.CARVALHO, José Murilo de. Fundamentos da política e da sociedade brasileiras

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Capítulo 1Fundamentos da política eda sociedade brasileiras

JOSÉ MURILO DE CARVALHO

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nativas além do pau-brasil e de animaisexóticos. Os nativos não produziam mer-cadorias aproveitáveis. A nova colônia nãopodia competir com as riquezas comerciaisdas Índias Orientais. A necessidade, porém,de defender a conquista dos ataques de ou-tros europeus, sobretudo franceses e espa-nhóis, forçou a Coroa portuguesa a dar iní-cio à colonização, trinta anos após a chega-da da esquadra de Cabral. Colonização sig-nificava "produzir para o mercado euro-peu".

O produto que naquele momento se re-velou mais adaptável à região foi o açúcar.Para sua produção eram necessários terra,capital e mão-de-obra. A terra, abundante efacilmente arrancada dos nativos, foi dis-tribuída em vastas sesmarias. O capital veiode portugueses enriquecidos no comérciocom as Índias e de capitalistas judeus ..Amão-de-obra foi buscada inicialmente naescravização da população indígena. Entre-tanto, como esta dificilmenre suportava otrabalho nos engenhos e era rapidamentedizimada por guerras e epidemias, recor-reu-se, já a partir da segunda metade doséculo XVI, à importação de escravos dacosta ocidental da África. Desenvolveu-se,então, um vasto e.duradouro tráfico de es-cravos que durou três séculos. Calcula-seque cerca de três milhões de escravos afri-canos tenham sido transportados para aAmérica portuguesa até 1822 e mais um

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1. Os Fundamentos. 1500-1930

1.1 A colonização portuguesa

Os conquistadores portugueses, comotodos os outros do fim do século XV e iní-cio do XVI, além de difundir a fé, estavaminteressados em encontrar riquezas naturaise mercadorias vendáveis na Europa ..A co-lõnia americana apresenrava poucas alter-

o problema político central do Brasil éconstruir um país que combine três coisas:liberdade, participação e justiça social. Te-mos liberdade, alguma participação e muitadesigualdade. A liberdade e a participação,para sobreviverem, precisam gerar igualda-de. Perseguindo esse tema central, o texto sedivide em duas partes. A primeira aponra asprincipais características da formação socialbrasileira desde a colonização portuguesa até1930, quando o país começa a passar pormudanças aceleradas. Nesse longo períodode 430 anos houve grande continuidade naeconomia, na composição das classes e gru-pos sociais e nas relações sociais (como exem-plo de mudança importante, pode-se citarapenas a abolição da escravidão em 1888),A segunda parte resume as grandes mudan-ças posteriores a 1930 e aponta os proble-mas não resolvidos em nossa trajetória parauma sociedade democrática.

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I'" milhão para o Brasil, até 1850. Vieram es- nos. Tinham desaparecido cerca de três mi-'"~'0; cravos de várias etnias e de diferentes tradi- Ihões de indígenas e entrado número seme-'C;;'" ções culturais, saídos de regiões que iam da lhante de africanos escravizados. Embora não~.o'" baía de Benin, na costa ocidental da África, haja estatísticas a respeito, é certo que boa"O

'" onde hoje fica a Nigéria, em direção ao sul, parte da população livre era composta de"O

'"'u até Moçambique, já na parte oriental daquele mestiços de todos os tipos, sobretudo de bran- ,.o'" continente. cos e negros (mulatos) e de brancos e índios'""O

Grande propriedade, escravidão e pro- (caboclos).Independentemente das razões que'"'" dução para o mercado externo foram traços levaram à mestiçagem, ela passou a caracteri-<>E(5 definidores da colonização portuguesa na zar a população da colônia e do futuro país.o-

'" América. Essa composição demográfica foi altera-"O

'" da apenas na segunda metade do século XIX,oI"- quando a abolição do tráfico de escravosc:

'"E 1.2 População(1850) e a da escravidão (1888) forçaram a'""O

c: Portugal à época da conquista tinha uma busca de mão-de-obra, agora livre, em paí-::J"- pequena população de cerca de um milhão ses europeus, sobretudo na Itália. A nova imi-de habitantes. Tendo criado um vasto impé- gração, incentivada ou voluntária, a que se .,rio no século XVI, que se estendia da Amé- acrescentou no século XX substancial com- •rica àÁfrica e à Ásia, não contava com gente ponente japonês, mudou a cara do país, so-suficiente para colonizar as novas terras da bretudo no sul. O censo de 2000 registra a -[

jAmérica. Faltavam, sobretudo, mulheres presença de 52% de populaçãobranca, con-brancas para a formação de famílias regula- centrada no sul e sudeste, 9% de populaçãores. Tirando vantagem de sua superioridade negra (nordeste e sudeste) e 39% de popula-tecnológica, a minoria portuguesa impôs-se ção parda ou mestiça (nordeste e norte).à população nativa, calculada em cerca de Pela maneira como se formou a popula-quatro milhões, boa parte da qual foi dizi- ção nacional, não se pode falar em coope-mada por doenças e guerras, à semelhança ração de três raças, ou de três culturas. Pri-do que se passava na parte espanhola da meiro, porque houve um processo inicialAmérica. Como solução para a escassez de violento de submissão, pela escravização, demão-de-obra, os portugueses recorreram nativos e africanos, levado a cabo pelosentão à importação maciça de escravos afri- conquistadores. Segundo, porque tanto o con-canos. Dada a escassez de mulheres brancas, tingente europeu quanto o nativo e o africa- ,o colonizador miscigenava-se com mulheres no incluíam diferentes grupos étnicos e cu!- .'indígenas e africanas, processo em que estu- turais. A primeira razão ajuda a explicar ospro e consentimento se misturavam de ma- preconceitos e as desigualdades sociais basea-neira indistinguível. dos na cor das pessoas. A segunda revelaTrês séculos depois da conquista, à época maior riqueza cultural do que a pretendida

da independência da colônia, a população do pelo mito das três raças. Não há entre nósnovo país foi calculada em torno de quatro uma cultura branca européia, mas várias, as-milhôes de habitantes, número semelhante ao sim como há várias culturas africqnas. Alémde 1500. Dessesquatro milhões, 800 mil eram disso, a geografia também responde por boaindígenas e um milhão eram escravos africa- parte de diversidade cultural.

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1.3 Economia

A produção de açúcar e tabaco em al-guns pontos da costa, o extrativismo e a pe-cuária no interior dominaram a economiados séculos XVI e XVII. No século XVIII, adescoberta de ouro e diamantes na r"giãoque hoje inclui os estados de Minas Gerais,Goiás e Mato Grosso acrescentou nova di-mensão à economia colonial. Pela primeiravez, grandes contingentes populacionais sedeslocaram para o interior da colônia. Re-sultou da nova economia um efeito impor-tante de integração econômica: a vinda detropeiros do sul e do norte para o interiordo país. A descoberta do ouro também pro-vocou o deslocamento do centro adminis-trativo da colônia da Bahia para o Rio deJaneiro. Além dessas conseqüências, o que

de melhor resultou da mineração foram ascidades coloniais mineiras, com seus magní-ficos exemplares de arte barroca.

À época da independência, a economiacolonial podia ser descrita de maneirasimplificada. Era composta por: grandes lati-fúndios voltados p<lraa produção de merca-dorias exportáveis, como o açúcar, o tabaco,o algodão; fazendas dedicadas à produçãoagropecuária para o mercado interno (cere-ais, leite e carne) e à criação de gado, estasúltimas sobretudo no norte e no sul; e cen-tros mineradores já em fase de decadência.Acrescente-se ainda grande número de pe-quenas propriedades voltadas para a agri-cultura e a pecuária de subsistência. Nas ci-dades costeiras, capitais de províncias,predominavam O grande e o pequeno comér-cio. Os comerciantes mais ricos eram os quese dedicavam ao tráfico de escravos.

A única alteração importante nessa eco-nomia foi uma troca de produtos de expor-tação verificada com o desenvolvimento dacultura do café. Já na década de 1830, esseproduto assumira o primeiro lugar nas ex-portações, acima do açúcar e do tabaco. Maso café não mudou o padrão econômico an-terior: era também um produto de exporta-ção baseado no trabalho escravo. Esse mo-delo sobreviveu ainda por mais cem anos.Só começou a ser desmontado após a Seguú-da Guerra Mundial. As conseqüências dahegemonia do café foram principalmentepolíticas. O fato de se ter ela estabelecido apartir do Rio de Janeiro ajudou a consolidaro novo governo do país sediado nessa pro-víncia. Se não fosse a coincidência do centropolítico com O centro econômico, os esfor-ços da elite política para manter a unidadedo país poderiam ter fracassado. Ao final doséculo XIX, o deslocamento da produção docafé para São Paulo favoreceu a implantaçãoda República.e a introdução do federalismo.

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1.4 Sociedade

A economia colonial gerou uma divisãode classes muito hierarquizada e bastantesimples. No topo da pirâmide, estavam osgrandes proprietários rurais e os grandescomerciantes das cidades do litoral. No meio,localizavam-se os pequenos proprietáriosrurais e urbanos, os pequenos mineradorese comerciantes, além dos funcionários pú-blicos. Mais abaixo, estavam os artesãos ,agregados das fazendas, capangas e popula-ções indígenas. Na base da pirâmide,mourejavam os escravos. As relações entreessas classes se baseavam em combinação va-riada de violência e paternalismo. A violên-cia predominava na relação senhor-escravo;o paternalismo, entre ricos e pobres.

No mundo rural, a grande propriedaderesumia as relações entre as classes.Nela pre-

. dominava inconteste o proprietário, a cujadominação todos se submetiam. Submetia-se a ele a família imediata, formada por suamulher e filhos, assim como a parentela,composta de genros, noras, sobrinhos, afi-lhados. Submetiam-se ainda o padre, osagregados, moradores, artesãos, capangas.Finalmente, estava sob seu jugo toda aescravaria. Na grande propriedade, fosse elaengenho de açúcar, fazenda de café ou degado, o senhor era a tonte do poder econô-mico, social e polític,? Ele fornecia prote-ção e distribuía castigos. Substituía o pró-prio Estado. A ação do governo se detinhana porteira das fazendas.

A população urbana era pequena, até1920 apenas 17% dos brasileiros viviam emcidades de 20 mil habitantes ou mais mas,apresentava composição mais complexa.Entre os ricos comerciantes e altos buro-cratas, em um extremo, e os escravos, nooutro, havia grande variedade de gruposocupacionais. Os mais bem colocados eram

os profissionais liberais, padres e frades,militares, pequenos comerciantes. Em segui-da, vinham pequenos burocratas, artesãos,costureiras, parteiras, operários, vendedores'ambulantes, domésticas, prostitutas.

As mulheres ocupavam posição peculiarna sociedade colonial e imperial. As brancaseram as únicas a constituírem famílias orga-nizadas e legalizadas. Tinham situação pri-vilegiada em relação às outras mulheres, so-bretudo suas escravas, mas não escapavamao sistema patriarcal, que as submetia aopoder do chefe da família. Eram excluídasda vida política e mesmo da vida civil, fi-cando confinadas aos limites da casa gran-de ou do sobrado. No extremo oposto, asmulheres escravas ocupavam a posição maisbaixa da escala social, inferior até mesmo àdo homem escravo. Além do trabalho for-çado, eram obrigadas a se submeter àsinvestidas sexuais dos senhores e dos filhosdestes. Asmulheres livres pobres, na maiorianão-brancas, embora não estivessem sujeitasaos constrangimentos sociais das brancas ri-cas e legais das escravas, não escapavam aodomínio de pais e companheiros, pois opatriarcalismo impregnava a escala social dealto a baixo.

Ao lado da grande propriedade e da esCcravidão, o patriarcalismo constituía umaterceira coluna no edifício que sustentava asociedade.

1.5 Educação e religião

As condições em que se deu a coloniza-ção não favoreciam a educação, uma dascondições indispensáveis para a formação decidadãos. No início, os jesuítas encarrega-ram-se da catequização dos índios; e da edu-cação popular. Os colégios jesuítas eram asúnicas e~colas'p'acolõnia. Mas, além de ter a

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catequização implicado a destruição da cul-tura indígena e a imposição do catolicis-mo, as escolas jesuítas eram muito poucaspara o tamanho da colônia e se localiza-vam nas cidades costeiras. Em 1759, houveum retrocesso nessa situação já de si pre-cária. Os jesuítas foram expulsos da me-trópole e da colônia e a educação pop~larficou nas mãos do Estado. Foram criadasaulas régias, a cargo de professores pagospelo governo. Mas, novamente, as aulasrégias eram pouquíssimas para o tamanhodo país e da população.

A falta de escolas era agravada pelo fatode não interessar aos senhores educar seusescravos. Excetuando-se alguns africanos decultura muçulmana que eram alfabetizados,a totalidade dos escravos e libertos era anal-fabeta. O patriarcalismo, por sua vez, eraresponsável pela não-educação das mulhe-res. Restritas a tarefas domésticas, as mu-lheres eram excluídas da educação formal.As brancas de famílias ricas podiam, no má-ximo, aprender a cantar ou tocar piano, paraalegrar os saraus domésticos.

O trágico resultado dessa falta de preo-cupação com a educação popular apareceuno primeiro recenseamento nacional, feitoem 1872. Meio século após a Independên-cia, só 16% da população era alfabetizada.Mais meio século' del;'0is, o censo de 1920registrava 24% de alfábetizados, apenas 8%a mais do que em 1872. Fruto da escravi-dão, do patriarcalisriJo e do obscurantismo,o analfabetismo só fez reforçar as bases dadesigualdade social. Sintomaticamente, em1920, a taxa de alfabetização dos estran-geiros era o dobro da dos brasileiros natos.

A educação superior mereceu mais aten-ção. Mas durante o período colonial ela selimitava aos que podiam viajar à metrópolepara estudar na Universidade de Coimbra.

A Coroa portuguesa, em contraste com aespanhola, não permitiu jamais a criação deuniversidades na colônia. Na época da Inde-pendência, havia 23 universidades na parteespanhola e nenhuma na parte portuguesa.Cerca de 150 mil pessoas haviam se forma-do nas universidades coloniais espanholas,ao passo que apenas 1.242 brasileiros tinhampassado pela Universidade de Coimbra. OBrasil independente não alterou radicalmenteessa política. Apenas quatro escolas superio-res foram criadas até 1830 e as primeirasuniversidades só apareceram no século XX.A educação superior pública manteve suafunção de treinar elites.

Outra dimensão importante na formaçãode nossa sociedade é a religião. A coloniza-ção tinha como uma de suas justificativas adifusão da fé católica. O primeiro nome dopaís foi Terra de Vera Cruz. Lembre-se, noentanto, que, em 1517, Martinho Lutero ini-ciou o movimento de Reforma religiosa. Ocatolicismo ibérico reagiu fortemente con-tra a renovação protestante, e a nova ordemdos jesuítas se colocou à frente da Contra-reforma. Como havia união entre Igreja eEstado, junto com os conquistadores che-garam à colônia muitos padres, sobretudojesuítas e franciscanos. Os jesuítas ficaramfamosos por seu esforço em converter os in-dígenas. Trabalhando juntos, Estado e Igrejaimpuseram o catolicismo à população nati-va e posteriormente aos escravos africanos.O resultado foi a formação de uma socieda-de uniformemente católica, embora com boadose de influência de religiões africanas e in-dígenas.

A união entre Estado e Igreja teve conse-qüências importantes. A Coroa portuguesadesfrutava do padroado, isto é, de privilégiosconcedidos pelo papa relacionados com ogovernQ da Igreja. Documentos papais de-

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viam passar pela aprovação da Coroa e ca-biam também a ela a aprovação dos bispose a indicação de párocos. Os padres eramfuncionários públicos e recebiam ordenadodo governo. A situação era vantajosa parao Estado, que podia contar com a burocra-cia da Igreja para executar tarefas adminis-trativas, como o registro de nascimentos,casamentos e óbitos. Durante o Império, ospárocos também faziam parte das mesaseleitorais e das juntas de recrutamento mi-litar. O Estado podia, ainda, contar com aIgreja para pregar a submissão dos católi-cos à autoridade secular. Para a Igreja Ca-tólica, havia a vantagem de ser consideradaa religião oficial, fato que a protegia da com-petição de outras religiões.Mas o padroadoa tornava dependente do Estado, até mes-mo em seu governo interno. Um exemplode conflito gerado por essa dependência foia Questão Religiosa, surgida na década de1870, quando o governo imperial colocouna cadeia dois bispos que haviam tomado ainiciativa de proibir os católicos de perten-cer à maçonaria.Do ponto de vista político, a fusão de

Igreja e Estado reforçava o poder e dificul-tava o surgimento de oposição e mudanças.Um exemplo disso foi a questão da escravi-dão. Em outros países, como Inglaterra eEstadps Unidos, foram igrejas ou seitas dis-sidentes, como os quakers, que constituíramavanguarda do abolicionismo.No Brasil,emparte, sem dúvida, p'elo fato de estar ligadaao Estado, a Igreja Católica foi sempre coni-vente com a escravidão. O monopólio da re-ligião foi outro fator a dificultar a educaçãopopular. A Igreja Católica, à exceção dos je-suítas, não se ocupou da tarefa. Além disso,a ação das igrejas protestantes, tradicional-mente preocupadas com a alfabetização, eralimitada: -

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1.6 Polftica

a) Patrimonialismo

Duas características marcaram a forma-ção política do país, ambas relacionadas coma natureza da colonizaçãoportuguesa. Apri-meira foi o caráter estatal da empresa colo-nial. A viagem de Cabral, e as que se segui-ram, foram patrocinadas pela Coroa portu-guesa. A ocupação e a exploração da terraconquistada também se deram sob patrocí-nio oficial. No início, a Coroa tentou repas-sar a particulares a tarefa da colonização,utilizando o instrumento das capitanias he-reditárias. A experiência fracassou, porém,e a Coroa recuperou o controle sobre todoo território colonial. Até o final da colônia aadministração se fez sob o controle da me-trópole, que nomeava vice-reis, capitães-ge-nerais, magistrados, padres e bispos. Comodisse um rei português, o Brasil era a vacaleiteira da Coroa. A segunda característicaestá relacionada à escassez de recursos hu-manos de Portugal. A metrópole não dis-punha de gente suficiente para colonizar anova terra, nem tinha pessoal qualificadopara administrá-Ia. A Coroa foi forçada arecorrer à cooperação dos potentados ru-rais para expandir a colônia, manter a or-dem e tocar a administração, sobretudo 'nointerior. A segurança no interior estava nasmãos das ordenanças, tropas comandadas:por ricos proprietários. Mesmo na regiãomais controlada pela Coroa, a das minas deouro e diamantes, o concurso de particula-res se fazia indispensável. A coleta de im-postos nas Minas Gerais estava entregue acontratadores que os recolhiam e repassa-vam ao governo em troca de comissão.Alguns dos env,olvidos na Inc6nfidênciaMineira eram contratadores que se viramem difi'culda"desde pagar a cota do góver-

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no, por causa da queda na produção do ouro.As duas características parecem contra-

ditórias, pois indicam um governo ao mes-mo tempo forte e sem recursos. Mas elasconstituíram um aspecto essencial da políti-ca brasileira: a mistura, O conluio, entre opoder estatal e o poder privado. Essa mistu-ra leva o nome de patrimonialismo, pois sig-nifica que o Estado distribui seu patrimônio_ terras, empregos, títulos de nobreza ehonoríficos - a particulares em troca de co-operação e lealdade. Em um sistemapatrimonial não há cidadãos. Há súditos en-volvidos num sistema de trocas com o Esta-do, regido pelo favorecimento pessoal dogovernante, de um lado, e pela lealdade pes-soal do súdito, de outro. O clientelismo e onepotismo, ainda fortes até hoje, são um re-síduo do patrimonialismo.

O patrimonialismo é a coluna políticaque se juntou às três outras na sustentaçãode nossa sociedade.

candidatos do governo os votos de que ne-cessitavam e o governo entregava-lhes o con-trole dos cargos políticos locais. Esse siste-ma atingiu seu apogeu durante a PrimeiraRepública (1889-1930). Formou-se uma pi-râmide de poder que ia do coronel ao presi-dente da República, passando pelos gover-nadores dos estados. No melhor estilopatrimonialista, o poder do Estado se aliavaao poder privado dos proprietários, susten-tando-se os dois mutuamente, em detrimen-to da massa dos cidadãos do campo e dascidades que ficava à margem da política.

A dimensão da exclusão popular pode seravaliada com auxílio dos dados do censo de1920. Os médios e grandes proprietários,donos de cem hectares ou mais, representa-vam naquela data apenas 180 mil pessoas,numa população de 30,6 milhôes. Esses 180mil eram os coronéis da República, que man-davam nos municípios e iufluenciavam osgovernos estaduais e nacional.

b) Coronelismo c) Estado e governo

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Um dos melhores exemplos de como semesclaram entre nós o poder do Estado e odos particulares é o coronelismo. O coronelera o comandante máximo da Guarda Nacio-nal. Essa Guarda foi criada em 18~1 e subs-tituiu as ordenanças da época colonial. Nãoera paga pelo Estadi> e não fazia parte daburocracia oficial. Era sustentada pelos co-mandantes, em geral proprietários rurais ecomerciantes ricos. Os coronéis se trans-formaram em chefes políticos locais. Quan-do a República introduziu o federalismo, osgovernadores dos estados passaram a ser es-colhidos por eleição popular. Precisavam en-tão do apoio dos coronéis para vencer as elei-çôes. Surgiu, assim, um pacto entre governose coronéis, segundo o qual estes davam aos

Ao se tornar o país independente em1822, a elite política brasileira optou por umamonarquia representativa como forma degoverno, de acordo com o modelo francêsda época. Monarquia, para facilitar a pre-servação da unidade do país em torno da fi-gura do imperador e manter a ordem social.Representativa, para atender à oposição aosgovernos absolutistas, muito forte desde aRevolução Francesa de 1789. A Constitui-ção de 1824, outorgada por D. Pedro I, con-tinha todos os direitos civis e políticos reco-nhecidos nos países europeus. Afastava-se dosistema inglês, modelo das monarquias re-presentativas da época, pela adoção do Po-der Moderador, que dava ao imperadorgrand.7 controle sobre o ministério. Essa

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Constituição, com apenas uma alteração em1834, sobreviveu até 1889, sendo substituí-da pela Constituição Republicana de 1891,que durou até 1930.

O imperador era o chefe do governo edo Estado. Escolhia os ministros entre os lí-deres dos partidos Liberal e Conservador. Osdeputados gerais eram eleitos por quatroanos, a não ser que a Cãmara fosse dissolvi-da, de acordo com os procedimentos do par-lamentarismo. Os senadores eram eleitos portoda a vida em listas tríplices. As provínciastinham suas assembléias também eleitas,mas seus presidentes eram escolhidos pelogoverno central. As principais alteraçõesintroduzidas na República foram a intro-dução do presidencialismo, a eleição popu-lar do presidente para mandatos de quatroanos, e a dos governadores dos estados, deacordo com o sistema federal então intro-duzido.

A realidade da vida política distava mui-to dos dispositivos legais. O novo país sóhavia tido experiência representativa nas elei,ções municipais da época colonial e, mesmoassim, nelas só votavam os chamados "ho-mens bons", ou seja, os proprietários de ter-ra. A abertura do direito de voto a outrascamadas da população não resultou de ime-diato no bom funcionamento do sistema re-presentíltivo. Mulheres e escravos não vota-vam. A dependência social da populaçãoimpedia que os cidadãos exercessem comautonomia o direito do voto. O controle dossenhores de terra no interior e a pressão dasautoridades nas cidades falseavam as eleições.A situação agravou-se quando os analfabe-tos foram proibidos de votar, em 1881. Apartir de então, a participação eleitoral, mes-mo em eleições presidenciais, só superou 50/0da população em 1930. Não se podia falarna existência de democracia representativano Brasil, nem mesmo após a proclamação

da República: A própria República não ti-nha povo.

O fim do Império significou maior po-der para os estados e também para os se-nhores de terra, dando origem ao sistemacoronelista. A proclamação da Repúblicatambém coincidiu com a ascensão de SãoPaulo à posição de estado hegemônico dafederação, graças ao deslocamento da pro-dução do café para novas terras e a entra-da de milhares de imigrantes italianos. Naausência do Poder Moderador, a base desustentação do regime republicano foitransferida para um acordo entre os estadosmais ricos e mais populosos, sobretudo Mi-nas Gerais e São Paulo. Esse acordo levou onome de Política dos Estados e durou aré1930. Quase todos os presidentes da Repú-blica vieram dos dois grandes esrados.

1.7 A Abolição

A principal mudança social ocorrida noImpério foi a abolição do tráfico de escra-vos, em 1850, e da escravidão, em 1888. Osescravos africanos tinham sido a base da eco-nomia nacional durante quase quatro sécu-los. Eles eram indispensáveis nas fazendas,nos engenhos e também na economia urba-na, onde exerciam variada gama de ativida- _des, desde o serviço doméstico, a cargo dasescravas, até trabalhos de rua exercidos porvendedores, artesãos, carregadores, prostitu-tas. Os escravos de ganho eram o sustento demuitas pessoas pobres nas cidades.

A escravidão produzia riqueza para ossenhores e para o país, mas ao custo de ne-gar ao escravo as condições de cidadão e deser humano. Ao fazê-lo, comprometia a saú-de política da sociedade como um ,todo. O-senhor de escravo era pessoalme~te livre,mas não tinha o sentido da liberdade civil,pois nãO"respeitava o direito à liberdade de

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seus escravos. Era um cidadão aleijado.Como conseqüência da generalização da es-cravidão no país, a liberdade civil não eraum valor central da sociedade. Os própriosl:Scravos,ao se libertarem, muitas vezes com-pravam escravos. Como disse JoaquimNabuco, a escravidão afetou os valores dopróprio cidadão brasileiro, dentro de cujacabeça conviviam o senhor e o escravo, aarrogãncia e a subserviência.

A abolição significou um passo funda-mental na história do país. Ela incorporou àsociedade nacional parcela substancial depessoas antes excluídas. Só a partir da aboli-ção é que se pôde falar na existência, aindaembrionária, de uma nação brasileira.

2. Um novo Brasil, 1930-2000

2.1 Divisor de éguas

O ano de 1930 foi um divisor de águas.Até então, as mudanças sociais e políticas ti-nham sido poucas e muito lentas. A partirde 1930, houve grande aceleração nas mu-danças, cujas principais causas foram exter-nas. A ptimeira delas foi a Guerra Mundialde 1914-1918, que provocou carestia, gre-ves e início de substituição de importações.Em se~ida, veio a Revolução Comunista de1917, depois a implantação do fascismo naItália e, já na década de 1930, a tomada dopoder pelos nazistas' na Alemanha. Mas ofator que mais influenciou nessas mudançasfoi a grande crise d~1929, causada pela que-bra na bolsa de valores de Nova York. Oimpacto foi imediato na exportação de café,e atingiu o coração da economia nacional.

Houve, porém, também causas internas.A Política dos Estados não conseguia maismanter o controle sobre as oligarquias des-contentes e sobre os setores emergentes nas

cidades, tanto operários como da classe mé-dia. Os militares se revoltavam. Movimentosculturais, como a Semana de Arte Modernade 1922, desafiavam a tradição. Assim, em-bora o movimento que derrubou o último pre-sidente da Primeira República não tivesse sidouma revolução no sentido estrito do termo,precipitou, mesmo assim, mudanças que, amédio prazo, deslancharam profundas trans-formações políticas, sociais e econômicas nopaís agrário-exportador-oligárquico que O

Brasil tinha sido até então.

2.2 Industrialização e urbanização

A crise de 1929 e, dez anos mais tarde, aSegunda Guerra Mundial aceleraram muito oprocesso de substituição de importações ini-ciado durante a Primeira Guerra. O país teveque produzir os bens industrializados que an-tes sempre importara. O processo não maisse interrompeu, avançando,na décadade 1950,.com a implantação da indústria automobilísti-ca e, na década de 1970, com a produção demáquinas e equipamentos. Atualmente, o Bra-sil não pode mais ser definido como um paísessencialmente agrícola ..O café ocupa papelmodesto nas exportações. O agronegócio éum setor próspero da economia, sobretudona produção de carnes, soja, suco de laranja,mas não representa mais o grosso da expor-ração, localizado em bens industrializados,como carros, máquinas, eletrodomésticos, .aviões, além de minérios e serviços.

Paralelamente ao processo de industria-lização, e .mais rapidamente do que ele, ve-rificou-se uma transformação radical na lo-calização e ocupação do território pela po-pulação. Houve um deslocamento maciço depessoas do campo para a cidade. S~,em 1920,menos de 20% da população morava nas ci-dades,.,em 1?.60 já eram 45%; em 1980,

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680/0;e, em 2000, mais de 80%, chegando a90% no Sudeste. Inverteu-se completamen-te a situação. O Brasil passou a ser um paísurbano, comparável nesse ponto aos Esta-dos Unidos. Se o mundo rural que resta ain-da possui traços do antigo, ele hoje repre-senta pequena parcela da população. A gran-de maioria dos brasileiros reside nas cidadese se emprega na indústria, no comércio e nosserviços ou engrossa o setor de desemprega-dos e subempregados.

2.3 A entrada do povo na política

Desde a proclamação da República até1945, a participação eleitoral não passou de5% da população. A partir dessa data, o cres-cimento do eleitorado foi rápido e constan-te, mesmo durante os governos militares,quando não havia liberdade de oposição. Em1960, votaram 18% dos brasileiros; em1980,47%, uma expansão de 161%. ACons-tituição de 1988, ao permitir o voto do anal-fabeto, mais de cem anos depois de sua ex-clusão, e ao baixar para 16 anos a idade mí-nima para votar, deu o impulso final à de-mocratização do voto. Hoje estão alistados126 milhões de eleitores, cerca de 70% dosbrasileiros, porcentagem que se compara fa-voravelmente com as dos países de mais lon-ga tradição democráti,ca.

A entrada do poyo na política não foitranqüila. Ela se deu, de início, dentro deum processo chamado de populista, inicia-do por Getúlio Vargas na década de 1940.,Além de votar, o povo começou a manifes-tar-se também nas organizações sindicais, nasgreves operárias, nos comícios e em campa-nhas nacionais, como a da defesa do petró-leo. Aparticipação foi interrompida em 1964e dificultada durante os 21 anos de duraçãoda ditadura militar. Embora o voto não te-

nha sido suprimido, foi eliminado o direitode expressão e de organização, essenciais àparticipação política. Ao final da ditadura, aparticipação foi retomada e assumiu novas evariadas formas.

Um avanço importante na construçãodemocrática se deu na década de 1960, quan-do a Igreja Católica abandonou sua posiçãode aliada do Estado. Durante os governosmilitares, ela cumpriu papel muito positivode opositora da ditadura e defensora dos per-seguidos políticos, além de ter organizado ascomunidades de base. Nos anos recentes, ocrescimento rápido de outras religiões, sobre-tudo as pentecostais, alterou radicalmente oquadro religioso do país, tornando-o mais ricoe diversificado e reduzindo a força popularda Igreja Católica.

2.4 Ensaios de democracia

Os esforços para organizar um sistemade governo que incorporasse a participaçãopopular tiveram fracassos e êxitos. A primei-ra tentativa (1945-1964) fracassou quandoas elites se juntaram aos militares para põrfim ao regime democrático. Nova tentativateve início em 1985, ao fim do governo mi-litar. O saldo da nova experiência tem sidopositivo. Instituições como sindicatos, par-tidos e imprensa têm exercido livrementesuas atividades; os poderes constitucionais,Executivo, Legislativo e Judiciário, têm nogeral funcionado de acordo com a lei; osrituais da democracia, eleições, debates,campanhas, não têm sido interrompidos.Apesar de os resultados sociais do funcio-namento da democracia política serem ain-da insatisfatórios, é preciso levar em contaque a prática democrática é recente e preci-sa de tempo para se aperfeiçoar.

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2.5 A polftica social

A década de 1930 foi um marco tam-bém no qU,ese refere à mudança de postu-ra do governo em relação aos direitos so-ciais, mesmo na ausência da democraciapolítica. Os sindicatos operários foram re-conhecidos, uma vasta legislação trabalhis-ta foi introduzida, culminando em 1943 coma Consolidação das Leis do Trabalho, e fo-ram criados vários institutos de previdênciae aposentadoria. Pela primeira vez, os ope-rários urbanos foram objeto de atenção dogoverno. Posteriormente, foram também in-cluídos na legislação trabalhista e social ostrabalhadores rurais, as empregadas domés-ticas e os trabalhadores autônomos. Emborao sistema ainda não funcione satisfatoriamen-te, sua introdução constituiu mudança im-portante no sentido de estender a setorescada vez mais amplos da população a parti-cipação na riqueza pública.

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3. O grande desafio: reduzir adesigualdade

Apesar das grandes mudanças havidas,as características da formação de nossa so-

ciedade ainda pesam no presente sob a for-ma da desigualdade social. Apesar de ser aoitava economia do mundo, o Brasil está en-tre os países mais desiguais, isto é, entre aque-les em que é maior a distância entre ricos epobres. Tem havido algum progresso na re-dução da pobreza a partir da introdução doPlano Real em 1993, mudança aceleradapelas políticas sociais como a Bolsa Escola,depois mudada para Bolsa Família. Mas em2005, os 50% mais pobres detinham apenas12% da renda nacional, ao passo que os 10%mais ricos ficavam com 460/0. Cai o númerode pobres, mas a distância entre ricos e po-bres quase não se altera. A desigualdadeincide sobretudo sobre os grupos da popula-ção mais vitimados ao longo da história, osdescendentes dos escravos, os trabalhadoresrurais, as mulheres, os nordestinos.

Os resíduos da escravidão sobrevivem nopreconceito racial e nas desigualdades entrebrancos e não-brancos no que se refere à ren-da e à educação. O índice de analfabetismoentre não-brancos é duas vezes superior aodos brancos. Estes têm, em média, dois anosa mais de escolaridade que os primeiros.Igualmente, a renda média dos brancos é odobro da dos não-brancos. Essa desigualda-de' é a razão da discussão atual sobre meiosde corrigir a injustiça histórica cometida con-tra os escravos trazidos da África.

As desigualdades regionais também sãodramáticas. O analfabetismo no Nordesteem 2000 era de 26%, mais que o dobro donacional. O analfabetismo funcional (qua-tro anos ou menos de escolaridade) atinge50% da população nordestina.

Apesar de as mulheres terem consegui-do superar a inferioridade no que se refere àeducação, até mesmo superando os homensnesse campo, os salários pagos para igual tra-balho ai.nda são menores para elas. Segundo.. ....

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o censo de 2000, o salário médio das mulhe-res naquele ano ainda equivalia a apenas 71%do salário médio dos homens. A pobrezarural se reflete nas estatísticas de educação erenda. A taxa nacional de analfabetismo em2000 era de 12,8%, mas nas áreas rurais su-bia para 28%. A renda média urbana era deR$ 854,00, contra R$ 327,00 da renda ru-ral. Outro resíduo do latifúndio é a existên-cia dos trabalhadores sem-terra. Num paísimenso, chegamos ao século XXI sem re-solver o problema da democratização dapropriedade rural.

O crescimento acelerado das cidades ge-rou também uma grande população urbanapobre, excluída do mercado formal de tra-balho e vivendo em condições precárias, compouco acesso aos serviços públicos. A misé-ria urbana facilitou a entrada do tráfico dedrogas nas comunidades, que, por sua vez,causou o aumento da violência em nossasgrandes cidades, com índices de homicídiossó inferiores aos de países vítimas de guerracivil. Um sistema policial inadequado e umajustiça ineficiente contribuem para tornar asegurança individual um dos problemas maissérios do país.

O grande teste da democracia política deque gozamos desde 1985, e o grande desa-fio dos brasileiros, será conceber e executarpolític:,s que gerem desenvolvimento e, emconseqüência, reduzam a desigualdade quenos separa e a violência que nos amedronta.A desigualdade é hoje o equivalente da es-cravidão no século XIX. José Bonifácio di-zia da escravidão que ela era um câncer quecorroía as entranhas da nação e ameaçavasua existência. O mesmo se pode dizer hojeda desigualdade. Para isso se faz necessárioenvolvimento cada vez maior dos cidadãosna política e recuperação da crença nas ins-tituições representativas, abalada por práti-cas anti-republicanas.

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Sugestões de leitura

FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo, Edusp, 1996.

CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 200~.

IGLÉSlAS, F. Trajetória política do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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