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    O sentimento do sentimento do que nos

    acontece: a conscincia em Damsio RONALDO BISPO

    O mistrio da conscincia: do corpo e das emoes ao conhecimento desi de Antnio Damsio (trad. Laura T. Motta; reviso tcnica Luiz H.MCastro). So Paulo: Companhia das Letras, 2000, 474 pp.

    Resumo O texto a seguir apresenta em linhas gerais a concepo de conscincia de Antnio

    Damsio desenvolvida em seu livroThe Feeling of What Happens body and emotionin the making of consciouness . Nele, o autor, baseado em sua experincia como mdicoe neurocientista, sugere que a conscincia um sentimento de si gerado pelo relatono-verbal resultante da percepo concomitante das alteraes orgnicas e do objetoque as provoca.

    Palavras-chave conscincia, emoo, sentimento

    Abstract The review shows Antnio Damsios consciousness conception developed in hibookThe Feeling of What Happens body and emotion in the making of conscious-ness . There, the author, based on his experience as doctor and neuroscientist, suggestthat the consciousness is a feeling of self as generated by non-verbal report and as aconsequence of the concurrent perception of the organic alterations and of the objectthat provokes them.

    Key words consciousness, emotion, feeling

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    RONALDO BISPO

    293-299Ao contrrio do que poderia parecer para alguns precipitados, longe estamos do

    fim da cincia, da arte, da histria ou de qualquer outra atividade humana individualou social. Na cincia, em particular, questes cruciais permanecem em aberto, novasdescobertas e invenes podem a qualquer momento abalar nosso conhecimentosedimentado e alguns temas continuam gerando acaloradas e polmicas discusses.

    Um desses temas ou questes que ainda no recebeu resposta adequada, e paraalguns nem estatuto cientfico, a conscincia. Como e por que ela surgiu? Qualsua natureza ontolgica? Quais suas propriedades? O que a sustenta? Cientistascognitivos, filsofos, neurofisiologistas seguem correndo contra o tempo, e uns con-tra os outros, na busca de solues consistentes para essa e outras perguntas.

    Uma tentativa recente de enfrentar esse espinhoso e escorregadio campo pro-blemtico partiu de um dos mais respeitados e famosos neurocientistas da atuali-dade, o portugus radicado nos Estados Unidos Antnio Damsio.O mistrio da conscincia , traduo brasileira do original inglsThe feeling of what happens body and emotion in the making of consciousness , um extraordinrio esforopor compreender o fenmeno da conscincia a partir de estudos neuropsicolgicos,neurofisiolgicos e neuroanatmicos. Nele, Damsio expe com clareza e elegnciasua concepo pessoal do que conscincia, desenvolvida ao longo de anos de pes-quisa experimental, curiosidade filosfica e tratamento de pacientes com os maisvariados tipos de dano neurolgico.

    Para comear, Damsio esclarece que h dois tipos distintos de problemas en-volvendo a conscincia. O primeiro investiga como o crebro, no organismo huma-no, capaz de transformar um padro neural (ou objeto) em um padro mental (ouimagem). Dito de outro modo, como surge a narrativa ou filme multi-sensorial quecaracteriza nossos estados mentais. Objeto, aqui, a designao geral para coisasto variadas como um rosto, uma msica, uma dor de barriga ou uma experinciaesttica; imagem um padro mental em qualquer modalidade sensorial, como,por exemplo, uma imagem sonora, uma imagem ttil, a imagem de um estado debem estar.

    Da perspectiva da neurobiologia, resolver esse primeiro problema descobrir como o crebroproduz padres neurais em seus circuitos de clulas nervosas e como ele consegue converter essespadres neurais nos padres mentais explcitos que constituem o nvel mais elevado do fenmenobiolgico, o qual designo por imagens (p. 25).

    Para Damsio, responder a esse problema significa tambm enfrentar a ques-to filosfica dosqualia , as qualidades sensrias simples encontradas nos objetos,

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    e, para ele, ainda que um dia a neurobiologia possa explic-los, neste momento aexplicao que ela oferece ainda incompleta e lacunar.

    O segundo problema da conscincia investiga como, concomitantemente aoengendramento de padres mentais (imagens) para um objeto, o crebro tambmfaz emergir um sentido do self 1 no ato de conhecer. Como o corpo cria a sensaode um eu implicado em cada um de seus estados mentais. O que o autor est suge-rindo que uma coisa compreender como objetos se tornam imagens, e outra compreender como conhecemos que existe umself ao qual estas imagens estorelacionadas. Usando a metfora do filme no crebro, podemos dizer que h umconjunto de padres neurais que cria uma sucessiva e quase ininterrupta narrativasem palavras desde a hora em que acordamos at o momento em que adormece-mos, e tambm durante o sono REM no qual sonhamos responsvel pela sensaode si mesmo que cada um tem qual vem modificar todas as outras narrativasrepresentadas pelos objetos por ns percebidos. So filmes dentro do filme. Mesmque no tenhamos conscincia do sentido do self implicado em cada uma dasimagens sensoriais percebidas e evocadas, ele est ali o tempo todo dizendo quesomos ns que estamos criando essas imagens e no outros.

    Resolver o segundo problema da conscincia consiste em descobrir os alicerces biolgicos d

    curiosa capacidade que ns, humanos, possumos de construir no s os padres mentais de umobjeto as imagens de pessoas, lugares, melodias e de suas relaes; em suma, as imagens mentaiintegradas no tempo e no espao, de algo a ser conhecido , mas tambm os padres mentais quetransmitem, de maneira automtica e natural, o sentido de umself no ato de conhecer (p. 27).

    Em seguida, Damsio esclarece que a diviso da questo da conscincia em doiproblemas responde a uma necessidade metodolgica e que no fundo ambos estointimamente relacionados. Em suma, diz o autor, a conscincia, de seus nveis elementares aos mais complexos, o padro mental unificado que rene o objeto e oself , um fenmeno que ocorre como parte do processo privado de primeira pes-soa que denominamos mente.

    Omistrio da conscincia tenta responder ao segundo problema da conscin-cia, o problema doself . Mesmo admitindo no t-lo exatamente solucionado e acre-ditando que no atual estgio da neurocincia e da cincia cognitiva ainda duvi-

    1 Aqui cabe uma explicao. A traduo nacional evitou verter o vocbuloself e manteve-o como nooriginal em ingls por sugesto do prprio autor. Como explica nota do revisor da traduo, emportugus (e nas lnguas neolatinas) no existe uma palavra que traduza com exatido o conceitode self apresentado no livro.

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    RONALDO BISPO

    293-299dosa a idia de resolv-lo, Damsio passa ento a descrever sua hiptese do que a

    conscincia em termos mentais e como esta pode ser construda no crebro huma-no. Para tanto, recupera a distino entre emoo e sentimento avanada em seulivro anteriorO erro de Descartes (Damsio 1996). Para o autor, a conscincia evolutivamente posterior e intimamente dependente dessas duas outras proprie-dades do organismo humano. De modo inusitado e heterodoxo, Damsio recuperaa concepo desacreditada de William James e define emoo como o conjunto dereaes orgnicas, a maior parte delas publicamente observveis, ou o conjuntocomplexo de reaes qumicas e neurais em face da percepo de um objeto exter-no ou interno. Emoes, portanto, so observveis do ponto de visa de uma terceirapessoa (expresso facial, ritmo dos movimentos do corpo) e so quantificveis(batimento cardaco, sudorese, etc.). Paralelamente, sentimentos so resultados dapercepo dessa mudana na paisagem corporal e so acessveis apenas na pers-pectiva de primeira pessoa. Sentir uma emoo consiste em ter imagens mentaisoriginadas em padres neurais representativos das mudanas no corpo e no cre-bro que compem uma emoo. A conscincia surgiria como um sentimento dosentimento. A seqncia ento seria: um objeto percebido pelo organismo, essapercepo ativa circuitos cerebrais e esses estimulam mudanas no funcionamentodo corpo (emoo); essa ativao e essas mudanas so percebidas por outros cir-cuitos cerebrais (sentimento); um padro neuronal de segunda ordem tem lugarreunindo a percepo do objeto percebido inicialmente e a percepo das mudan-as na paisagem corporal (conscincia). A maior dificuldade enfrentada por Damsio provar que essas so, de fato, trs propriedades distintas e no-coincidentes. Boaparte do livro dedicada a isso. Inmeros exemplos de pacientes com danos cere-brais demonstram a relativa independncia desses trs estgios da percepo cons-ciente. H aqueles que se emocionam, mas no sentem sua emoo; h outros quese emocionam, sentem sua emoo, mas no sabem que o que esto sentindo estrelacionado ao seuself .

    Detalhando mais minuciosamente os vrios estgios que constituem o fen-meno da conscincia humana, Damsio introduz uma srie de novas propriedades.A primeira oproto -self . Damsio afirma que o sentido doself possui um prece-dente biolgico pr-consciente. Oproto -self seria um conjunto coerente de pa-dres neurais que mapeiam, a cada momento, o estado da estrutura fsica do orga-nismo nas suas numerosas dimenses. No somos conscientes doproto -self . Umexemplo deproto -self poderia ser o padro neural formado pelo funcionamento

    sadio do fgado de um indivduo. Em uma situao habitual, no temos conscinciada existncia de nosso fgado e, no entanto, seu funcionamento est permanente-

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    mente sendo mapeado e enviado ao crebro. precisamente uma mudana signifi-cativa do estado doproto -self que faz surgir uma outra propriedade denominadapor Damsio deself central. Ele explica que a essncia biolgica doself central arepresentao, em um mapa de segunda ordem, doproto -self sendo modificado. Oself central caracterizado ainda como o protagonista transitrio da conscinciagerado por qualquer objeto que acione o mecanismo da conscincia central.

    Damsio fornece uma definio no muito distinta de conscincia central efreqentemente somos levados a tom-la como sinnimo deself central. A cons-cincia central ocorre quando os mecanismos cerebrais de representao geramum relato imagtico, no-verbal, de como o estado do organismo afetado peloprocessamento de um objeto por esse mesmo organismo, e quando esse processoreala a imagem do objeto causativo, destacando-o assim em um contexto espaciale temporal.

    Aconscincia central gerada de modo pulsante, para cada contedo do qual devemos estarconscientes. Ela o conhecimento que se materializa quando algum se v diante de um objeto,construindo um padro neural para ele e descobrindo automaticamente que a imagem do objetoagora realada formada de sua perspectiva, que lhe pertence (p. 167).

    Voltando aoself central, Damsio esclarece que este pode ser acionado porqualquer objeto, que o mecanismo de sua produo sofre mudanas mnimas nodecorrer de toda vida e que devido permanente disponibilidade de objetos acio-nadores ele gerado continuamente, parecendo contnuo no tempo. Em resumo:arriscaramos dizer que a conscincia central seria a imagem mental e oself cen-tral o padro neural do conjunto resultante do processamento concomitante doorganismo e de um objeto realado que o modifica em um determinado momento.O que o mesmo que dizer que a percepo imagtica doself central redunda na

    conscincia central. Um sentimento e um relato de segunda ordem, portanto.As trs outras novas propriedades que complementam o quadro da conscincia

    levantado pelo autor so: memria autobiogrfica,self autobiogrfico e conscin-cia ampliada. A memria autobiogrfica constituda por memrias implcitas demltiplos exemplos de experincia individual do passado vivido e do futuro anteviste tem como base os aspectos invariveis da biografia de um indivduo. Ela cresccontinuamente com a experincia de vida e pode ser parcialmente remodelada pararefletir novas experincias. Baseado na memria autobiogrfica, oself autobiogr-

    fico organizado em registros permanentes, mas dispositivos de experincia doself central. Esses registros dispositivos podem ser ativados como padres neurais

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    293-299transformados em imagens explcitas sempre que necessrio. Oself autobiogrfico

    requer a presena de umself central para iniciar seu desenvolvimento gradual, as-sim como requer o mecanismo da conscincia central para a ativao de suas me-mrias. Cada memria reativada opera como um algo a ser conhecido e gera seuprprio pulso de conscincia central. O resultado oself autobiogrfico do qualsomos conscientes.

    Finalmente, a conscincia ampliada caracterizada por Damsio como o est-gio mais evoludo da experincia consciente. Ela vai alm do aqui e agora da cons-cincia central e nos d a viso de conjunto da nossa vida individual e particular. Aconscincia ampliada resultado do conjunto de memrias registradas por cadapulso de conscincia central e exige uma memria operacional para reter por umcerto tempo as imagens recuperadas. Nela, o sentido do self surge na exibio con-sistente e reiterada de algumas de nossas memrias pessoais, os objetos de nossopassado pessoal, aqueles que podem facilmente dar substncia a nossa identidade,momento a momento.

    A conscincia , assim, tanto em seu modo central como ampliado, um senti-mento de algo a ser conhecido, um fenmeno mental sustentado por circuitos esistemas neurofisiolgicos que garantem ao indivduo um sentido doself complexoe duradouro.

    Curioso perceber que, segundo a concepo de Damsio, os mecanismos queengendram a conscincia so relativamente distintos e independentes dos meca-nismos responsveis pela construo de outras de nossas funes mentais superio-res, tais como viso, audio, inteligncia, memria, linguagem verbal. Pacientescom danos neurolgicos demonstram a capacidade que o corpo pode ter de conti-nuar fazendo mapas coerentes de um objeto percebido externamente mesmo nomais sendo capaz de criar um saber de que est vendo algo.

    Damsio detalha ainda as estruturas e reas cerebrais envolvidas em cada umadas propriedades sugeridas, descreve inmeras evidncias para cada uma de suasproposies, mas ainda assim sabe que se tratam apenas de hipteses, que aindano possvel bater o martelo quanto a veracidade das mesmas. Mesmo no tendoexatamente resolvido o problema da conscincia, Damsio parece ter dado um pas-so importantssimo nessa direo. Seu rigor cientfico, sua experincia profissionalcolocam-no em patamar privilegiado para o desvendamento dessa problemticacomplexa, na linha de frente representada pela neurofisiologia. Outros especialis-tas devem ser chamados a contribuir filsofos, cientistas cognitivos, semioticistas

    , e dessa frente ampla podemos esperar melhores resultados.Mais especificamente duas questes permanecem sem explicao. A primeira,

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    referida no incio dessa resenha, como exatamente um padro neural converti-do em um padro mental? Como obtemos a qualidade que experimentamos emnossas sensaes? A outra, diretamente ligada a anterior e mais ainda s preocupa-es de Damsio, diz respeito compreenso da natureza ntima dos sentimentosQue um sentimento seja a percepo de uma emoo pode parecer razovel, masde que so feitos exatamente os sentimentos, da percepo precisa de que elesemergem? Quais os diferentes correlatos orgnicos para sentimentos to prximosquanto respeito, admirao ou reverncia?

    A conscincia parece ser assim. De to ntima, to prxima, e tambm por ter-mos que us-la ao mesmo tempo como instrumento e objeto de conhecimento, suaexplicao e compreenso surgem e desaparecem intermitentemente. Caso o leitortermine o livro com a sensao de que no capaz de reter por muito tempo a idiade conscincia proposta pelo autor, no se preocupe, retome a argumentao, con-centre-se em seus estados mentais e ela retornar brevemente.

    Finalmente, para aqueles que ainda estranham o comentrio crtico sobre osavanos em cincias cognitivas em geral no contexto de uma revista de comuni-cao, semitica e cultura, lembramos que precisamente a conscincia que nospermite saber o que sentimos e o que conhecemos, e s atravs de sua compreen-so, levada a cabo por aquelas cincias, poderemos nos comunicar cada vez maise melhor.

    REFERNCIA

    Damsio, Antnio R. (1996).O erro de Descartes: emoo, razo e o crebro humano . So Paulo: Com-panhia das Letras.

    RONALDO BISPO professor do Departamento de Comunica-o Social da Universidade Federal de Alagoas, membro do Centro deEstudos em Semitica e Complexidade e doutorando do Programade Estudos Ps-Graduados em Comunicao e Semitica da PUC-SP.

    [email protected]

    Resenha agendada em novembro de 2002 e

    aprovada em janeiro de 2003.