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Mestrado em Solicitadoria de Empresa Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Processo 1328/10.7T4AVR.C1.S1, de 2 de Abril 2014) Ana Margarida Duro de Azevedo Trabalho escrito realizado sob a orientação do Doutor Jorge Mendes, Professor da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria. Leiria, Junho de 2014

Comentário a Acórdão STJ - Processo 1328/10.7T4AVR.C1.S1, de 2 de Abril 2014

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Mestrado em Solicitadoria de Empresa

Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (Processo 1328/10.7T4AVR.C1.S1, de 2 de Abril 2014)

Ana Margarida Duro de Azevedo

Trabalho escrito realizado sob a orientação do Doutor Jorge Mendes, Professor da Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico de Leiria.

Leiria, Junho de 2014

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Lista de Abreviaturas e Siglas

AA Autores

DL Decreto-Lei

EN Estrada Nacional

h hora(s)

Km Quilómetro

m metro(s)

M.º Meritíssimo

min minuto(s)

NLAT “Regime de Reparação de Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”,

constante da Lei 98/2009, de 4 de Setembro

RR Rés

STJ Supremo Tribunal de Justiça

TRL Tribunal da Relação de Lisboa

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Índice

Lista de abreviaturas e siglas II

1. Análise do Acórdão 1

1.1. Enquadramento Factual 1

1.2. O “thema decidendum” 3

1.2.1. Tribunal de Primeira Instância 3

1.2.2. Tribunal da Relação de Coimbra 5

1.2.3. Supremo Tribunal de Justiça 5

1.3. Decisão do Supremo Tribunal de Justiça 7

2. Posição Adoptada 9

Bibliografia 18

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Comentário ao Acórdão do STJ

1. Análise do Acórdão

No âmbito da unidade curricular ˗ “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais” ˗,

inserida no plano de Mestrado em Solicitadoria de Empresa, da Escola Superior de

Tecnologia e Gestão, do Instituto Politécnico de Leiria, foi-nos proposto, pelo docente

Professor Doutor Jorge Mendes, a elaboração de comentário ao Acórdão do Supremo

Tribunal de Justiça, de 2 de Abril de 2014, relativo ao processo 1328/10.7T4AVR.C1.S1.

Com esse propósito, começaremos por fazer uma breve exposição dos factos dados como

provados, das questões suscitadas e da decisão do douto tribunal “ad quem”.

1.1. Enquadramento Factual

O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que nos cabe analisar, surge do recurso,

interposto pela Ré-Seguradora, da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, através do

Acórdão de 26 de Setembro de 2013, que decidiu em sentido diferente da sentença proferida

pelo tribunal de primeira instância.

Foi dada como provada, a seguinte factualidade:

A aqui sinistrada foi admitida ao serviço da sociedade “CC, Lda.”, no dia 1 de Setembro de

2010, para desempenhar “funções de abastecedora de combustíveis e de caixa de pagamento

dos combustíveis”, no posto de combustíveis, sito em Branca.

Essas funções seriam exercidas pela sinistrada de acordo com as indicações da entidade

empregadora (através de representantes e superiores hierárquicos), ou seja, de forma

subordinada.

O horário de trabalho, em turnos rotativos, foi fixado das 6h00 às 14h00 e das 14h00 às

22h00, sendo que, na semana de 29 de Setembro de 2010, a sinistrava encontrava-se a fazer o

turno das 6h00 às 14h00.

A sinistrada compareceu no posto de abastecimento, nos dias de trabalho, entre 1 e 29 de

Setembro de 2010, ininterruptamente.

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No dia 29 de Setembro de 2010, cerca das 6h15m, na EN 1 (sentido sul/norte), a sinistrada

dirigia um veículo ligeiro de passageiros, pelo percurso que utilizava todos os dias, por ser a

via mais directa entre a sua residência e o posto de abastecimento, onde trabalhava.

A residência da sinistrada distava cerca de 7 Km do referido posto de abastecimento,

demorando o trajecto cerca de 15 min a percorrer de carro.

A sinistrada não estava habilitada para conduzir veículos a motor na via pública.

Acresce, que o veículo conduzido pela sinistrada não possuía nem seguro nem certificado de

inspecção periódica, válidos.

No mesmo dia 29 de Setembro de 2010, cerca das 6h15m, na EN 1 (sentido norte/sul),

transitava um veículo pesado de mercadorias, composto de tractor e semi-reboque, conduzido

por motorista, empregado da sociedade “GG, Lda.”, no cumprimento das funções que lhe

haviam sido acometidas por esta e sob autoridade desta.

O veículo pesado de mercadorias circulava à velocidade de 70 Km/h, apesar de se encontrar

dentro de uma localidade e existir indicativo de proibição de exceder a velocidade de

50 Km/h.

“Ambos os veículos transitavam com as luzes de presença acesas”, pese embora a faixa de

rodagem fosse visível em toda a sua extensão e o céu estivesse limpo sem nebulosidade.

Acresce que o tempo estava seco e, bem assim, o piso de asfalto, encontrando-se este em bom

estado de conservação.

Ao Km 252,40 da EN 1, a sinistrada perdeu o controlo do veículo, embatendo no veículo

pesado de mercadorias, na hemi-faixa esquerda, atento o sentido de trânsito do veículo por

aquela conduzido.

“Antes do embate o veículo pesado de mercadorias travou, numa extensão de 49 metros”. A

sinistrada, porém, não efectuou qualquer travagem.

Da colisão dos veículos resultou o seu incêndio. Sendo que, o embate teve como

consequência directa a ocorrência de lesões na sinistrada, “que foram a causa necessária e

adequada da sua morte”.

A faixa de rodagem, existente ao Km 252,40, da EN 1, “é uma via composta de duas hemi-

faixas de rodagem (uma em cada sentido de trânsito), divididas por um traço longitudinal

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contínuo, com 6,30 m de largura no total das duas hemi-faixas, e com bermas (de 0,70 m) e

passeios (de 1,50m) em cada lado”.

Tomando como referência o local do embate, a estrada, segue para norte, numa recta

levemente encurvada, com visibilidade superior a 200 m, e, segue para sul, numa recta de

cerca de 100 m, após o que encurva para a direita.

A co-Ré “CC, Lda.”, entidade empregadora da sinistrada, transferiu a responsabilidade por

acidentes ocorridos com os trabalhadores ao seu serviço para a co-Ré Seguradora, através de

um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho de prémio variável.

A co-Ré “CC, Lda.” comunicou a inscrição da sinistrada na Segurança Social, como sua

trabalhadora, às 19h43, do dia 29 de Setembro de 2010, ou seja, depois de saber do

falecimento desta.

A co-Ré “CC, Lda.” processou o recibo de vencimento da sinistrada em 30 de Setembro de

2010, sendo regra na empresa o processamento desses vencimentos no final de cada mês.

A folha do quadro de pessoal relativa às remunerações pagas no mês de Setembro de 2010 foi

entregue à Segurança Social no dia 15 de Outubro de 2010.

A sinistrada constava como trabalhadora de “CC, Lda.” na folha do quadro de pessoal de

2010, que foi enviada à co-Ré Seguradora, para cálculo do prémio de seguro de acidentes de

trabalho de prémio variável.

1.2. O “thema decidendum”

1.2.1. Tribunal de Primeira Instância

Em processo especial emergente de trabalho, vieram os AA., mais concretamente, a filha

única e o viúvo, da ora sinistrada, demandar as co-RR. Seguradora e “CC, Lda.” (entidade

empregadora), para que estas fossem condenadas a reconhecer o acidente de trabalho, que deu

origem à morte da sinistrada, e, em consequência, lhes paguessem a pensão e subsídio

devidos pela morte daquela, acrescido de juros desde a sua data de vencimento.

Peticionaram, ainda, caso se não entendesse que a co-Ré Seguradora era a responsável pela

reparação, a condenação subsidiária da co-Ré “CC, Lda.”, no pagamento da referida pensão e

subsídio devidos pela morte da sinistrada.

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Em sede de contestação, veio a co-Ré “CC, Lda.” admitir que a sinistrada sofreu o acidente

enquanto se deslocava para o seu posto de trabalho, devendo ter entrado ao serviço 15 min

antes do acidente ter ocorrido, alegando a única e exclusiva responsabilidade da mesma e não

aceitando a sua qualificação como acidente de trabalho.

Mais alegou, que a responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho se encontrava

transferida para a co-Ré Seguradora.

Por seu turno, veio a co-Ré Seguradora contestar, alegando desconhecimento da ocorrência do

acidente de trabalho, ora invocado, e bem assim, se o trajecto percorrido pela sinistrada

consubstanciava o percurso mais curto entre a sua residência e o local de trabalho.

Acresce que, a co-Ré Seguradora afirmou que o modo em que ocorreu o acidente leva à sua

descaracterização, pois que se deveu a “negligência grave e indesculpável (grosseira) da

sinistrada”.

Finalmente, rejeitou a co-Ré Seguradora a transferência de responsabilidade da entidade

patronal, porquanto só depois da ocorrência do acidente, e consequente falecimento da vítima,

foi comunicada a inscrição desta como trabalhadora da co-Ré “CC, Lda.” à Segurança Social

e preenchida a folha do quadro de pessoal a enviar à co-Ré Seguradora.

Alega, pois, que o contrato de seguro celebrado entre a sociedade “CC, Lda.”, aqui co-Ré, e a

co-Ré Seguradora, não abrange eventos passados e certos.

Porém, em sede de resposta à contestação, veio a co-Ré “CC, Lda.” sustentar que a inscrição

na Segurança Social não determina a qualidade de trabalhador da sinistrada e, tão-pouco as

comunicações devidas à co-Ré Seguradora foram efectuadas fora da normalidade.

Acresce, que a co-Ré Seguradora “com base nas folhas do quadro de pessoal que lhe foram

enviadas”, “aceitou, processou, cobrou e recebeu” o prémio de seguro referente à sinistrada.

Nestes termos, e sem prescindir da descaracterização do acidente, apontou a co-Ré

Seguradora como responsável pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente de

trabalho, se este viesse a ser qualificado como tal.

Por sentença proferida pelo M.º Juiz do tribunal de primeira instância, foram os RR.

absolvidos dos pedidos formulados pelos AA.

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Entendeu o M.º Juiz que a sinistrada agiu com notória leviandade, pois conduzia sem se ter

submetido a exame prévio de avaliação, traduzindo-se tal acto temerário em negligência

grosseira, conexionando essa falta de habilitação legal com a súbita perda de controlo do

veículo, que deu origem ao acidente.

1.2.2. Tribunal da Relação de Coimbra

Não satisfeitos com aquela decisão, vieram os AA. interpor recurso para o Tribunal da

Relação de Coimbra, que julgou procedentes aquelas apelações, alterando a sentença da

primeira instância e, na sua decorrência, considerou existir acidente de trabalho, condenando a

co-Ré Seguradora no pedido e absolvendo a co-Ré “CC, Lda.”.

Tal decisão assentou na impossibilidade de determinação do motivo que deu origem à perda

do controlo do veículo pela sinistrada, que levou à invasão da faixa de rodagem esquerda.

Acresce, que entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra que “não basta existir uma

infracção estradal grave para, em sede de acidente de trabalho, se ter por preenchida a

negligência grosseira”.

Por outro lado, o veículo pesado de mercadorias circulava em excesso de velocidade, não se

podendo concluir se esse facto terá concorrido, ou não, para a ocorrência do acidente.

Assim, ainda que se provasse a negligência grosseira da sinistrada, ficaria por demonstrar a

sua exclusividade na produção do acidente, sendo que a exclusividade é pressuposto da

descaracterização do acidente de trabalho.

1.2.3. Supremo Tribunal de Justiça

Inconformada, veio a co-Ré Seguradora recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça,

apontando dois equívocos ao acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra: “um

quanto à culpa na produção do sinistro e outro relativo à identificação da entidade

responsável”.

Pugna, assim, a co-Ré Seguradora pela descaracterização do acidente, por força do

comportamento “culpado, temerário em elevado grau e exclusivamente causador” daquele

sinistro, pela própria sinistrada.

Para aferição de um tal comportamento, relaciona uma série de factos: a circulação do veículo

sem inspecção obrigatória, pondo em causa a segurança da sinistrada e demais utentes da via;

a circulação do veículo sem dispor de seguro obrigatório de responsabilidade civil, cuja

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obrigatoriedade assenta na “necessidade de proteger o cidadão em geral”; a condução do

veículo pela sinistrada, sem que esta tenha habilitação legal, o que, “até por prova de primeira

aparência, usada pelos nossos tribunais para estas situações”, terá conexão com a perda do

controlo do veículo e invasão da faixa contrária, que deu origem ao sinistro; o atraso de cerca

de 30 min, violando a obrigação de assiduidade e pontualidade a que está vinculada perante a

entidade patronal, e que leva a crer que a sinistrada conduzia “com mais pressa e menos

cuidado”; a invasão da metade esquerda da via em local com risco contínuo, que

consubstancia contra-ordenação muito grave; e, finalmente, o incêndio deflagrado pelo

choque dos dois veículos, que atesta a violência do sinistro, provocado, “unicamente, por

quem invadiu a meia faixa contrária em zona de traço contínuo” e não pelo veículo pesado de

mercadorias, “que seguia a 70 Km/h, mas em condução regular”.

Alega a co-Ré Seguradora que os factos supra enunciados deverão ser analisados no seu

conjunto.

Acresce, que havendo lugar ao pagamento de indemnizações, deverão estas ser pagas pela co-

Ré “CC, Lda.”, pois que esta agiu dolosamente ao incluir uma nova trabalhadora no contrato

de seguro de acidentes de trabalho, sabendo, como de facto sabia, que esta já havia falecido.

Com efeito, argumenta a co-Ré Seguradora que “um contrato de seguro previne um

acontecimento futuro e incerto”, conforme art.º 1.º DL 72/2008, de 16 de Abril.

Vieram as AA. contra-alegar, referindo que, a perda súbita do controlo do veículo com

invasão da metade esquerda da via definida por um traço contínuo, não pode por si só

justificar uma actuação com negligência grosseira.

Tão-pouco, a falta de habilitação legal e da inspecção do veículo podem ser conexionadas

com a perda de controlo do veículo.

E, ainda, que deve ser levada em conta toda a factualidade dada como provada, incluindo o

excesso de velocidade em que circulava o veículo pesado de mercadorias, ou seja, 70 Km/h,

quando deveria circular a 40 Km/h, e o rastro de travagem por este deixado, de 49 m.

Esses factos, segundo as AA., permitem concluir que a conduta da sinistrada “não foi a causa

exclusiva do sinistro”.

Quanto ao registo da trabalhadora na Segurança Social, contra-alegam os AA. que, ao invés

de ter sido registado uma “cadáver”, como a co-Ré Seguradora pretende fazer valer, o que

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ocorreu foi o registo de uma pessoa que até ao dia 28 de Setembro foi efectivamente

trabalhadora da co-Ré “CC, Lda.”.

Por seu turno, veio a co-Ré “CC, Lda.” argumentar em sua defesa que “nem a lei, nem o

contrato de seguro subscrito entre as partes faz depender a qualidade de trabalhador por conta

de outrem da sua inscrição na Segurança Social”.

Acresce, que a sinistrada foi efectivamente sua trabalhadora desde o dia 1 até ao dia 29 de

Setembro de 2010, tendo sido processado seu recibo de vencimento no dia 30 de Setembro

2010, isto é, no final do mês, tal como é hábito da empresa empregadora. Sendo que, a

obrigação de inscrição e remessa das folhas do quadro de pessoal da Segurança Social é uma

obrigação da empregadora para com aquela e só com ela.

Também, a folha do quadro de pessoal a enviar à Segurança Social relativa às remunerações

de Setembro de 2010, foi feita e entregue dentro do prazo normal, ou seja, em 15 de Outubro

de 2010, figurando aí, pela primeira vez, a sinistrada-trabalhadora, pois que, só começou a

prestar serviços para a “CC, Lda.” em 1 de Setembro de 2010, e não antes.

Finalmente, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto veio emitir parecer, no sentido de que da

“factualidade assente não se afigura bastante para se poder concluir pela existência de

negligência grosseira da vítima” e, caso assim não se entenda, que “aquela negligência” não

terá sido “a causa exclusiva do acidente”, não havendo, assim, lugar à sua descaracterização.

Refere, ainda, que não tendo a co-Ré Seguradora alegado, nem tendo sido demonstrado, o

incumprimento pela co-Ré “CC, Lda.” do disposto na cláusula 24.º do contrato de seguro,

deverá aquela ser a responsável pela reparação do acidente.

Como dos factos, alegações, contra-alegações e parecer fluí o “thema decidendum” assenta

em duas questões: saber se houve, ou não, descaracterização do acidente e determinar a

entidade responsável pela sua reparação.

1.3. Decisão do Supremo Tribunal de Justiça

Ora, o tribunal “ad quem” sufragou inteiramente a análise e interpretação dos factos levada a

cabo pelo tribunal “ad quo”.

Quanto à primeira questão, entendeu este tribunal que “o empregador não tem (…) de reparar

os danos decorrentes de todo e qualquer acidente de trabalho, sem mais”, ou seja, não tem de

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reparar os danos provenientes exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado, aqui

entendida, como “comportamento temerário em alto e relevante grau”.

Afirma este douto tribunal que é ténue a fronteira que separa os comportamentos causais

dolosos ou intencionais e a falta grave e indesculpável da vítima (negligência consciente).

No entanto, a “progressiva elaboração doutrinal e jurisprudencial” tem vindo a estabilizar o

entendimento “de que apenas relevam para a descaracterização do acidente os

comportamentos ostensivamente inúteis, indesculpáveis, gratuitos, reprovados por um

elementar sentido de prudência, casuisticamente aferíveis pelo padrão do cidadão médio,

diligente e honesto” (“bonus pater familias”).

Com efeito, em variadas situações o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a afirmar que não

basta a mera circunstância de a conduta do sinistrado consubstanciar uma infracção estradal,

ainda que esta venha a ser qualificada como contra-ordenação grave, para que se preencha o

requisito que integra a causa de descaracterização do acidente.

Pelo que, a conjugação da falta de habilitação legal para conduzir, a falta de inspecção

obrigatória do veículo, a falta de seguro obrigatório, a infracção estradal e o atraso na ida para

o trabalho, ainda que analisadas em conjunto, não relevam na “delimitação do comportamento

sindicado como desencadeante do acidente”, como é entendimento pacífico e uniforme da

jurisprudência emanada do Supremo Tribunal de Justiça.

Acresce, que ainda que se entendesse que a conduta da sinistrada revelava negligência, havia

que provar que essa negligência era grosseira, e que esta havia sido a causa exclusiva do

acidente.

Considerou, pois, o tribunal “ad quem” que não ocorreu a descaracterização do acidente.

Quanto à segunda questão, o Supremo Tribunal de Justiça veio confirmar o ajuizado pelo

Tribunal da Relação de Coimbra, entendendo que a co-Ré Seguradora era a responsável pela

reparação das consequências danosas do acidente de trabalho.

Com efeito, estando em causa um contrato de seguro do ramo “Acidentes de Trabalho”, na

modalidade de prémio variável, através do qual a co-Ré “CC, Lda.” transferiu a sua

responsabilidade infortunística laboral para a co-Ré Seguradora, estarão cobertas por este

seguro um número variável de pessoas e um valor variável de retribuições, sendo a sua

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concreta identificação feita através das folhas de vencimento, que são enviadas

periodicamente pela co-Ré “CC, Lda.” à co-Ré Seguradora.

A obrigação da tomadora do seguro perante a seguradora, consistia em dar a conhecer a esta,

até ao dia 15 de cada mês, o teor das declarações de remuneração do seu pessoal enviadas à

Segurança Social, relativas às retribuições pagas no mês anterior, e não, como pretendeu fazer

valer a co-Ré Seguradora, a data da inscrição do trabalhador na Segurança Social.

Acresce, que a inclusão do trabalhador na declaração de remunerações do pessoal enviada à

Segurança Social, não é requisito de validade ou de eficácia jurídica do seguro contratado.

Ora, “in casu”, a sinistrada-trabalhadora foi admitida no início do mês em que foi vítima do

acidente que lhe pôs termo à vida, sendo certo que a co-Ré “CC, Lda.” processava os

vencimentos dos seus trabalhadores, em regra, no final do mês, pelo que não poderia vir agora

a co-Ré Seguradora impor que o processamento desses vencimentos fosse efectuado antes do

falecimento da sinistrada e, tão-pouco, afirmar que o seu processamento após aquele

falecimento era ilícito.

Nestes termos, o tribunal “ad quem” confirmou a decisão do tribunal “ad quo”.

2. Posição Adoptada

No caso dos autos, a sinistrada deslocava-se da sua residência para o posto de abastecimento,

seu local de trabalho, pelo percurso normalmente utilizado, pelo que estamos em presença de

um acidente “in itinere” nos termos conjugados do n.º 1/a) e n.º 2 proémio, do art.º 9.º NLAT.

Com efeito, acidente “in itinere” é aquele que ocorre “na ida para o local de trabalho ou no

regresso deste, no trajecto normalmente utilizado pelo trabalhador e durante o período de

tempo ininterrupto por ele habitualmente gasto”, e, bem assim, “nas mesmas condições, no

percurso entre o local de trabalho e o local de refeição e aquele onde o trabalhador se

desloque por determinação do empregador” [1].

Nos termos do art.º 7.º da NLAT o empregador é responsável pela reparação e demais

encargos decorrentes de acidente de trabalho relativamente ao trabalhador ao seu serviço.

Porém, nos termos do art.º 79.º, daquele preceito normativo, o empregador é obrigado a

__________

[1] AAVV, Manual de Direito do Trabalho, XAVIER, Bernardo da Gama Lobo (Coord.), 2.ª Edição, Verbo, Lisboa, 2014, pág. 1041.

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transferir a responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho para entidade legalmente

autorizada a realizar o seguro, ou seja, uma seguradora.

Todavia, como bem refere o tribunal “ad quem”, “o empregador não tem (…) de reparar os

danos decorrentes de todo e qualquer acidente de trabalho, sem mais”.

Com efeito, os art.ºs 14.º a 16.º da NLAT, prevêem várias situações em que o empregador não

tem de reparar os danos decorrentes do acidente.

Nesse sentido, e tendo presente o caso, ora em análise, interessa saber se o acidente que

provocou a morte da sinistrada se subsume, ou não, na alínea b), do n.º 1, do art.º 14.º, da

NLAT, ou seja, se é passível de ser descaracterizado por se dever exclusivamente à

“negligência grosseira” da sinistrada.

Para tal, necessitamos de delimitar o conceito de “negligência grosseira” e aferir se o acidente

“in casu” se deveu exclusivamente a essa negligência.

A prova da existência ou não de “negligência grosseira” e, bem assim, da sua exclusividade

na produção do sinistro, cabe à pessoa legalmente responsável pelo acidente de trabalho, ou

seja à Seguradora (por força da transferência de responsabilidade efectuada pela entidade

empregadora).

No caso em apreço, são apontados pela co-Ré Seguradora vários motivos que consubstanciam

a alegada “negligência grosseira”: o atraso para o início do trabalho; a condução do veículo

sem dispor de habilitação legal; a circulação do veículo sem inspecção obrigatória; a

circulação do veículo sem seguro obrigatório de responsabilidade civil; e a prática de uma

contra-ordenação muito grave por invasão da meia faixa de rodagem contrária ao eixo da via

com a transposição de traço contínuo.

A Base VI, da Lei 2127, de 3 de Agosto de 1965, previa a descaracterização de um acidente

que proviesse exclusivamente de falta grave e indesculpável da vítima. Posteriormente, veio a

Lei 100/97, de 13 de Setembro, substituir a expressão “falta grave e indesculpável da vítima”

pela expressão, que ainda hoje vigora, “negligência grosseira”.

Entendia Carlos Alegre que para que a falta fosse grave e indesculpável, dever-se-ia

“demonstrar que a vítima era um trabalhador experimentado e consciente das condições de

segurança”, sendo a gravidade traduzida “em imprudências ou temeridades inúteis, de todo

inexplicáveis”, sem qualquer relação com o trabalho, e, por isso, indesculpáveis.

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Esses actos indesculpáveis deveriam ser voluntários, pese embora, não intencionais.

Defendia Carlos Alegre que não seriam considerados como indesculpáveis, as temeridades

resultantes do hábito de lidar com o risco, por força do trabalho, nos termos do art.º 13.º, Base VI,

nem os actos de abnegação, pois que, estes últimos, deveriam ser galardoado e não punidos [2].

Por outro lado, a falta grave e indesculpável, não deveria ser aferida com base num tipo abstracto

de comportamento, mas, antes, deveria ter em conta a própria vítima e as suas circunstâncias.

Para Carlos Alegre, a mudança legislativa que veio substituir o pressuposto “falta grave e

indesculpável da vítima” por “negligência grosseira”, visou afastá-lo do conceito de dolo, pois

que este já se encontrava previsto na al. a) daquela norma, e aproximá-lo do conceito de

negligência.

Ao estatuir como pressuposto para a descaracterização do acidente de trabalho, a existência de

“negligência grosseira”, o legislador pretendeu qualificar aquela negligência quanto à sua

intensidade.

Segundo Carlos Alegre a “negligência grosseira” corresponderá à negligência “lata ou grave”

(que confina com o dolo), tendo em conta os três graus de intensidade estabelecidos pela

doutrina: lata, leve e levíssima.

Assim, para este jurisconsulto, “a negligência grosseira: é grosseira, porque é grave e por ser

aquela que in concreto não seria praticada por um suposto homo diligentissimus ou bonus

pater-familias” [3].

Segundo Mariana Lemos “a negligência grosseira é a espécie mais grave ou especialmente

qualificada de culpa negligente”, implicando uma agravação da pena legal aplicável,

conforme se retira do art.º 137, n.º 2, do Código Penal.

Entendendo que para uma correcta avaliação de “negligência grosseira” serão relevantes

factores como: “a especial relevância do bem jurídico lesado ou posto em perigo, ou seja, o

forte risco e probabilidade de ‘produção do resultado’, o especial dever de cuidado,

considerando a profissão do sinistrado e a posição que ocupa dentro da empresa” [4].

__________ [2] Pensamos que estes “actos de abnegação”, a que Carlos Alegre se refere, deverão consubstanciar actos de altruísmo, como por exemplo, arriscar a vida para salvar alguém. [3] ALEGRE, Carlos, Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, Almedina, Coimbra, 2001, pág. 62. [4] LEMOS, Mariana Gonçalves de, Descaracterização dos Acidentes de Trabalho, dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2011, pág. 78.

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Mariana Lemos defende que a “negligência grosseira” deverá ser aferida tendo em conta a

diligência particular da vítima, ou seja, deverá ser considerada em concreto.

Esse é, aliás, o entendimento da maioria da jurisprudência [5]. No entanto, o acórdão cuja

análise nos foi acometida, refere que “apenas relevam para a descaracterização do acidente os

comportamentos ostensivamente inúteis, indesculpáveis, gratuitos, reprovados por um

elementar juízo de prudência, casuisticamente aferíveis pelo padrão do cidadão médio,

diligente e honesto, simbolizado no clássico paradigma do ‘bonus pater-familias’” (nosso

sublinhado).

Também Júlio Gomes defende que a culpa do sinistrado deverá ser aferida em concreto e não

em abstracto, por forma a permitir que sejam levados em conta factores como o cansaço, o

stresse no trabalho e o ritmo de produção a que o trabalhador está sujeito.

Entende Júlio Gomes que seria necessário perceber se o bom pai de família, em relação ao

qual se aferirá a culpa do sinistrado, está “repousado”, ou seja, “fresco como uma alface”, ou

se, antes, se encontra extenuado, devido a horas e horas de trabalho, situação em que a

atenção e concentração diminuem, dando origem a erros “inevitáveis” [6].

Concordamos com a posição de Júlio Gomes.

Entendemos, que “in casu”, o facto de a sinistrada-trabalhadora ser mãe deveria relevar na

apreciação que se fez da condução de veículo sem habilitação legal, inspecção obrigatória e

seguro obrigatório de responsabilidade civil.

É que, sendo possível admitir como desculpável, devido ao stresse causado pelo atraso da

hora de entrada ao serviço, uma condução em excesso de velocidade (que não ficou provado),

em que uma manobra “mais arrojada”, sem que a sinistrada represente a possibilidade de

acidente, dê origem à perda do controlo da viatura (que também não se provou), com

transposição do traço contínuo e embate no veículo que circulava na faixa contrária.

Não pudemos de todo admitir que uma mãe de família, habituada a zelar pela segurança da

sua filha, consinta perigar a sua vida e a de terceiros, por se permitir conduzir um veículo,

__________ [5] LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito do Trabalho, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 359; STJ 30-01-1987 (MELO FRANCO), STJ 20-11-2001 (MÁRIO TORRES); STJ 29-01-2014 (MELO LIMA), em sentido contrário, STJ 10-10-2007 (BRAVO SERRA), in www.dgsi.pt, última consulta em 02-06-2014. [6] GOMES, Júlio Manuel Vieira, O Acidente de Trabalho – Acidente in itinere e a sua descaracterização, 1.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pág. 218.

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sem que para tal esteja habilitada, a que acresce a falta de inspecção obrigatória, que visa

“confirmar com regularidade a manutenção das boas condições de funcionamento e de

segurança dos veículos”, por forma a prevenir acidentes, e, ainda, a falta de seguro

obrigatório, que se destina a proteger os lesados dos danos provocados por um acidente de

viação [7].

A obtenção de habilitação legal de condução, a realização da inspecção obrigatória do veículo

e a subscrição de seguro de responsabilidade civil automóvel, não são decisões que possam

ser afectadas pelo stresse originado por um atraso na hora de chegada ao local de trabalho.

Acresce, que se a falta isolada de um destes procedimentos poderia ser considerada

negligência inconsciente (o agente não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e era

capaz, pois não chegou a representar a possibilidade de realização do facto ilícito), a falta

conjunta de todos aqueles procedimentos, revela um padrão de comportamento, que indicia

um desvalor não só do dever objectivo de cuidado, mas também das consequências daí

advenientes, que põem em causa bens de especial relevância, como seja, a integridade física e

a própria vida de quem circula nas estradas.

Ora, quando a mulher dá lugar à maternidade, tende a alterar o foco da sua atenção, deixando

de se focalizar em si própria e passando a concentrar a sua atenção no filho e, bem assim, no

meio em que este está inserido e aos perigos a que este está sujeito, prevenindo uns e

eliminando outros, tudo para a segurança e bem-estar deste. Torna-se, assim, uma pessoa mais

atenta, cuidadosa e previdente.

Pelo que concluímos que a sinistrada-trabalhadora, não só tinha consciência da necessidade

de proceder: à obtenção de licença de condução, à realização da inspecção do veículo e à

subscrição do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel; como conseguia

representar que, a falta destes procedimentos, conduziriam a um incremento do risco de

acidente (por falta de perícia e/ou pela falha mecânica do veículo), pondo em causa, não só a

sua segurança, mas também a daqueles que com ela se “cruzassem”, o que a nosso ver

consubstancia “negligência grosseira”.

Questão diversa é a conexão entre essa “negligência grosseira” e a perda de controlo do veículo. É

que não resulta dos factos dados como provados, que essa perda de controlo se tenha devido à

imperícia da sinistrada ou a falha mecânica do veículo.

__________ [7] “Inspecção Periódica”, in www.controlauto.pt

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Maria do Rosário Palma Ramalho entende que a responsabilidade por acidentes de trabalho é

uma responsabilidade objectiva pelo risco, valorizando a lei o elemento subjectivo da culpa

para aferir da concreta composição da reparação.

Nesses termos, a culpa do trabalhador ou de terceiro na produção do acidente pode constituir

causa de exclusão ou redução da responsabilidade do empregador [8].

Este não é, porém, um entendimento pacífico. Menezes Leitão defende que o regime da

reparação de acidentes de trabalho se funda num dever de assistência social, de características

híbridas, simultaneamente indemnizatórias e alimentares [9]. Não subscrevemos esta posição.

Sendo responsabilidade objectiva pelo risco, e tendo em conta o presente estudo, interessa

definir qual o risco que se pretende acautelar nos acidentes “in itinere”.

As primeiras leis de acidentes de trabalho, não abrangiam os acidentes ocorridos durante o

trajecto.

Quando se entendeu necessário tutelar os acidentes ocorrido no trajecto, as razões subjacentes

a essa protecção divergiam na doutrina e jurisprudência. Havia quem entendesse que só

ocorreria um acidente “in itinere” quando existisse um risco específico ou genérico agravado;

outros defendiam que o acidente “in itinere” estava subjacente à teoria do risco necessário (o

risco deveria ser tutelado fosse, ou não, um risco diverso do risco geral da vida) [10].

As teorias mais recentes consideram que, nestes casos, o risco está subjacente ao

cumprimento do dever de comparecer ao trabalho, a fim de cumprir a prestação inerente ao

contrato de trabalho, consubstanciando, assim, uma obrigação instrumental ou acessória [11].

Prevê o n.º 2 e 3, do art.º 9.º, da NLAV, que acidente “in itinere” se verifica nos trajectos

normalmente utilizados, não deixando, porém, de ser considerado acidente trabalho quando o

trabalhador opte por outro trajecto ou faça um desvio do trajecto habitual, para satisfação das

suas necessidades ou por motivos de força maior ou por caso fortuito.

__________

[8] RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, Coimbra, 2012, pág. 753. [9] LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, “Acidentes de Trabalho e Responsabilidade Civil (a natureza jurídica da reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho e a distinção entre responsabilidade obrigacional e delitual) ”, in ROA, n.º 48, 1988, pág. 829. [10] GOMES, Júlio Manuel Vieira, ob. cit., pág. 66. [11] ALEGRE, Carlos, ob. cit., pág. 55.

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Não há qualquer alusão a uma necessidade de escolha do caminho mais curto, até porque o

caminho mais curto pode ser mais perigoso (por ex: pela sinuosidade e/ou mau estado da via).

Porém, não deixa de ser pertinente perguntar até que ponto poderá ir a responsabilidade

objectiva pelo risco do empregador.

Pensemos, por exemplo, que havendo mais do que um caminho disponível, o trabalhador opta

pelo que oferece maior perigo, por ser o mais curto e lhe permitir ficar mais uns “minutinhos

na cama”? Neste caso, o trabalhador agrava o risco do trajecto por um interesse que

aparentemente não tem qualquer relação com a sua prestação de trabalho.

Ou, conjecturemos outra situação, o trabalhador, porque gosta de desportos radicais, entende

ir de “skate”, aproveitando os veículos que encontra pelo caminho “para tomar balanço”?

Mais uma vez, é agravado o risco do trajecto, aumento as probabilidades de ocorrência de um

acidente que, por preencher os pressupostos de acidente “in itinere”, deveria ser reparado pela

entidade empregadora.

Finalmente, e tendo em conta o caso que temos vindo a analisar, uma trabalhadora que se

dirige para o trabalho em viatura automóvel, sem dispor de habilitação legal (que visa atestar

a aptidão para conduzir veículos a motor na via pública), num veículo não submetido a

inspecção periódica (por forma a atestar a sua boa condição de funcionamento e segurança),

estará a agravar o risco do trajecto, aumentando as possibilidades de ocorrência de um

acidente?

Entendemos que nestes casos o trabalhador “extravasa” o risco que a norma pretende

salvaguardar.

Nesse sentido, defendemos, não uma exclusão de responsabilidade da entidade empregadora,

pela quebra de um nexo “causal” entre o acidente e os riscos conexos com o trabalho, mas

tão-só uma partilha de responsabilidades entre esta e o trabalhador-sinistrado, na medida da

contribuição deste no incremento do factor risco [12].

Com efeito, uma análise dos acórdãos proferidos nos tribunais superiores demonstra uma

“tendência” para a subvalorização de uma conduta grosseiramente negligente, ante a

dificuldade de conexioná-la com o acidente [13].

__________ [12] GOMES, Júlio Manuel Vieira, ob. cit., pág. 266 e 267. [13] STJ 29-10-2003 (FERNANDES CADILHA); STJ 21-05-2003 (DINIZ ROLDÃO); TRL 23-02-2011 (ALBERTINA PEREIRA); TRL 02-02-2011 (RAMALHO PINTO), in www.dgsi.pt, última consulta em 02-06-2014.

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Acresce, que pese embora se consiga estabelecer a conexão entre a “negligência grosseira” e o

acidente, basta que haja um outro factor a concorrer na produção do sinistro, para obstar à sua

descaracterização, imputando-se à entidade empregadora a responsabilidade da sua total

reparação.

É, aliás, o que acontece no caso sob análise, com efeito refere o tribunal “ad quem” que

“mesmo que se entenda que o sinistrado agiu com negligência, era sempre necessário

demonstrar, para que se considere descaracterizado o acidente, que essa era uma negligência

grosseira e que foi causa exclusiva do acidente”; ou como refere o tribunal “ad quo” “acresce

que o outro veículo interveniente no acidente circulava em excesso de velocidade (…) no

circunstancialismo provado, não é possível concluir que esse facto também não tenha

contribuído para o acidente (…) assim, ainda que estivesse demonstrada a negligência

grosseira da sinistrada, ficaria por demostrar que ela fosse a causa exclusiva do acidente,

exclusividade essa que, como já dissemos, é pressuposto da descaracterização do acidente de

trabalho”.

Entendemos, por isso, que a norma que prevê a descaracterização do acidente de trabalho,

quando este provém exclusivamente de “negligência grosseira” do sinistrado, oferece uma

solução de “8 ou 80”.

Se por um lado, ocorrendo o acidente de trabalho exclusivamente por “negligência grosseira”

do sinistrado, o empregador fica totalmente ilibado da obrigação de reparação; por outro,

basta que concorra para a produção do acidente de trabalho um qualquer facto que não

consubstancie “negligência grosseira” do sinistrado, ainda que não se possa aferir da sua

relevância na ocorrência do sinistro, para que, apesar da coexistência desta, o empregador

fique obrigado à totalidade da reparação.

Parece-nos uma solução incoerente, pois se num acidente de trabalho provocado

exclusivamente por “negligência grosseira” do sinistrado, há exoneração total do empregador

da obrigação de reparar; seria de todo lógico que, para um acidente parcialmente provocado

por “negligência grosseira” do sinistrado, se fizesse uma ponderação da contribuição deste

para a produção daquele sinistro, impendendo sobre o empregador uma obrigação de

reparação parcial, tendo em conta aquela contribuição.

Em conclusão, e pese embora entendermos que o STJ andou bem na sua douta decisão, pois

que não foi demonstrada nem a conexão da “negligência grosseira” da sinistrada com o

acidente de trabalho, nem tão-pouco a exclusividade desta na produção do sinistro.

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Entendemos que esta decisão vem confirmar alguma “injustiça” do actual regime de acidentes

de trabalho, que acomete à entidade empregadora uma responsabilidade pela reparação de

acidentes que, não raramente, extravasam o universo dos riscos conexos com o trabalho.

Há quem entenda o risco laboral, não como um risco do dador do trabalho, mas um risco

pessoal do próprio trabalhador, defendendo que a sociedade em geral, e não apenas os

empresários, beneficiam do esforço da população activa, devendo-lhe a correspondente

protecção da sua capacidade de trabalho.

Esta é a posição de muitos países europeus, que vêem a reparação dos acidentes de trabalho

como obrigação do Estado (através do Sistema Segurança Social) [14].

Em Portugal, devido a factores que se prendem com a insustentabilidade do nosso Sistema de

Segurança Social, o Estado tem vindo a “demitir-se” da sua responsabilidade na reparação dos

acidentes de trabalho, continuando esta a recair sobre os empregadores (ou seguradoras, para

quem estes transferem a sua responsabilidade), através do instituto da responsabilidade

objectiva pelo risco.

Porém, tendo em conta o actual contexto de crise, não vislumbramos para breve uma mudança

no actual paradigma.

__________

[14] ALEGRE, Carlos, ob. cit., pág. 50.

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Bibliografia

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Almedina, Coimbra, 2001.

AAVV, Manual de Direito do Trabalho, XAVIER, Bernardo da Gama Lobo (Coord.), 2.ª

Edição, Verbo, Lisboa, 2014.

GOMES, Júlio Manuel Vieira, O Acidente de Trabalho – Acidente in itinere e a sua

descaracterização, 1.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2013

LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito do Trabalho, 3.ª Edição, Almedina,

Coimbra, 2012.

LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes, “Acidentes de Trabalho e Responsabilidade Civil

(a natureza jurídica da reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho e a distinção

entre responsabilidade obrigacional e delitual) ”, in ROA, n.º 48, 1988, pág. 773-843.

LEMOS, Mariana Gonçalves de, Descaracterização dos Acidentes de Trabalho, dissertação

de mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, 2011.

RAMALHO, Maria do Rosário Palma, Tratado de Direito do Trabalho – Parte II –

Situações Laborais Individuais, Almedina, Coimbra, 2012.

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