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118 5. “Todas as religiões são verdadeiras” – Andrés Torres Queiruga Para essa afirmação, tema de um capítulo de seu livro ‘Autocompreensão cristã’, Queiruga chega a dizer que esse, mesmo tendo ‘um certo ar provocativo’, não ‘renuncia ao sentido profundo que trazem suas palavras’ 1 . Queiruga tem como base para sua afirmação uma nova concepção da revelação 2 . Esta deixa de adquirir um caráter de ‘ditado divino’ e forte sentido fundamentalista para assumir um novo entendimento, um ‘dar-se conta’ da presença de Deus ‘sempre aí’, que maieuticamente 3 , na história, revela-se ao homem, sem distinção de tradição cultural ou religiosa. Reafirma a identidade cristã ao mesmo tempo em que favorece novas perspectivas para o encontro real entre as várias tradições religiosas. Como veremos, essa nova maneira de conceber a revelação possibilitou compreender a ‘particularidade’ como necessidade da realização histórica, abrindo um novo caminho e novas possibilidades, vislumbrados com a queda do exclusivismo, pela necessidade de rever a ideia da ‘eleição’ 4 como privilégio divino. Permitida, assim, pela nova compreensão da revelação, com a constatação da universal presença reveladora e salvífica de Deus, pode-se eliminar toda ideia de favoritismo, e as religiões poderão ser apreciadas como verdadeiras pela 1 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreensão cristã, p. 138; Procuraremos desenvolver esse tema, reunindo aqui as reflexões de Andrés Torres Queiruga que foram apresentadas nestas obras: QUEIRUGA, A. Torres. A revelação de Deus na realização humana. São Paulo: Paulus, 1995. Id., O diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 1997. Id., Autocompreensão cristã: diálogo das religiões. São Paulo: Paulus, 2007; Id., Cristianismo y religiones: ‘inreligionación’ y cristianismo assimétrico. Estúdios, Sal Térrea v. 84, n. 1 p. 3-19, 1997. Para este autor, “se Deus revela-se a todos, então, todas as religiões são reveladas e, portanto, nessa mesma medida, verdadeiras”. Cf. Ibid., p. 05. Como veremos mais adiante, para Queiruga esses ‘graus e verdade’ não significam ‘méritos’, mas referem-se à tematização histórica das religiões ante o Absoluto. Referir-nos-emos a Andrés Torres Queiruga apenas como Queiruga. 2 Essa nova concepção parte da relação entre Revelação e História. Queiruga atento a esta relação, procura compreendê-la a partir da dialética existente na experiência religiosa e na sua comunicação na história dos homens. A revelação que é a autocomunicação de Deus à humanidade, acontece na história do próprio homem. Em seu livro ‘A revelação de Deus na realização humana’, Queiruga magistralmente desenvolve sua reflexão, enriquecendo a teologia e possibilitando uma melhor abertura ao encontro e diálogo inter-religioso. 3 Conceito da filosofia moderna, parte ativa da dialética de Sócrates. Cf. REALE, História da Filosofia Antiga. São Paulo: Paulus, 1990. v. 1. pp. 307-315. A maiêutica foi definida por Sócrates como a “arte de observar à psyche” (alma). E Queiruga se utilizará deste termo na teologia da revelação, como veremos mais adiante, realizando uma alteração, sem negar sua intuição primeira, pois o concede a qualificação de ‘histórica’, ressaltando a liberdade de Deus e a novidade da história humana. Sem, é claro, deixar de reforçar sua dimensão histórica. 4 Como veremos mais adiante, Queiruga se utilizará da expressão ‘estratégia de amor’ ao termo ‘eleição’, para evitar que se entenda como ‘favoritismo divino’, ou se utiliza do termo usando-o entre aspas.

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revelação

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    5. Todas as religies so verdadeiras Andrs Torres Queiruga

    Para essa afirmao, tema de um captulo de seu livro Autocompreenso crist, Queiruga chega a dizer que esse, mesmo tendo um certo ar provocativo, no renuncia ao sentido profundo que trazem suas palavras1.

    Queiruga tem como base para sua afirmao uma nova concepo da revelao2. Esta deixa de adquirir um carter de ditado divino e forte sentido

    fundamentalista para assumir um novo entendimento, um dar-se conta da presena de Deus sempre a, que maieuticamente3, na histria, revela-se ao homem, sem distino de tradio cultural ou religiosa. Reafirma a identidade crist ao mesmo tempo em que favorece novas perspectivas para o encontro real

    entre as vrias tradies religiosas. Como veremos, essa nova maneira de conceber a revelao possibilitou

    compreender a particularidade como necessidade da realizao histrica, abrindo um novo caminho e novas possibilidades, vislumbrados com a queda do exclusivismo, pela necessidade de rever a ideia da eleio4 como privilgio divino. Permitida, assim, pela nova compreenso da revelao, com a constatao

    da universal presena reveladora e salvfica de Deus, pode-se eliminar toda ideia de favoritismo, e as religies podero ser apreciadas como verdadeiras pela

    1 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 138; Procuraremos desenvolver esse

    tema, reunindo aqui as reflexes de Andrs Torres Queiruga que foram apresentadas nestas obras: QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana. So Paulo: Paulus, 1995. Id., O dilogo das religies. So Paulo: Paulus, 1997. Id., Autocompreenso crist: dilogo das religies. So Paulo: Paulus, 2007; Id., Cristianismo y religiones: inreligionacin y cristianismo assimtrico. Estdios, Sal Trrea v. 84, n. 1 p. 3-19, 1997. Para este autor, se Deus revela-se a todos, ento, todas as religies so reveladas e, portanto, nessa mesma medida, verdadeiras. Cf. Ibid., p. 05. Como veremos mais adiante, para Queiruga esses graus e verdade no significam mritos, mas referem-se tematizao histrica das religies ante o Absoluto. Referir-nos-emos a Andrs Torres Queiruga apenas como Queiruga. 2 Essa nova concepo parte da relao entre Revelao e Histria. Queiruga atento a esta relao,

    procura compreend-la a partir da dialtica existente na experincia religiosa e na sua comunicao na histria dos homens. A revelao que a autocomunicao de Deus humanidade, acontece na histria do prprio homem. Em seu livro A revelao de Deus na realizao humana, Queiruga magistralmente desenvolve sua reflexo, enriquecendo a teologia e possibilitando uma melhor abertura ao encontro e dilogo inter-religioso. 3 Conceito da filosofia moderna, parte ativa da dialtica de Scrates. Cf. REALE, Histria da

    Filosofia Antiga. So Paulo: Paulus, 1990. v. 1. pp. 307-315. A maiutica foi definida por Scrates como a arte de observar psyche (alma). E Queiruga se utilizar deste termo na teologia da revelao, como veremos mais adiante, realizando uma alterao, sem negar sua intuio primeira, pois o concede a qualificao de histrica, ressaltando a liberdade de Deus e a novidade da histria humana. Sem, claro, deixar de reforar sua dimenso histrica. 4 Como veremos mais adiante, Queiruga se utilizar da expresso estratgia de amor ao termo

    eleio, para evitar que se entenda como favoritismo divino, ou se utiliza do termo usando-o entre aspas.

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    medida com que cada uma capta a seu modo, em sua histria e cultura, esta Presena.

    O caminho, ento, trilhado por Queiruga para chegar a esta afirmao foi obtido por causa da nova situao histrica, que exigia, diante dos novos

    problemas enfrentados pela teologia com avano do pluralismo religioso, uma resposta capaz de possibilitar uma melhor abertura entre as tradies religiosas. E

    diante da ineficincia das categorias existentes, foi forado a buscar novos meios, propondo trs novas categorias.

    Universalismo assimtrico5 a primeira. Esse adquirido como possibilidade porque tem como pressuposto a afirmao da Presena universal da

    salvao, que torna possvel o respeito ao valor intrnseco de todas as religies, e o reconhecimento de sua existncia e desenvolvimento na histria, pois possvel

    tanto em no ceder ao relativismo do tudo igual diante do realismo histrico e antropolgico, quanto ao achatamento na busca pela universalidade, como tambm na troca da lgica da concorrncia pela lgica da gratuidade, abrindo-se para a troca de experincias, por reconhecer que no lhe pertence como algo

    absoluto, mas que para todos. A segunda, exigindo uma reviso da cristologia, procura ser mais

    teocntrica, partindo da prpria relao de Jesus de Nazar com Deus. Queiruga, assim, denomina esta categoria de teocentrismo jesunico6. Essa demanda um grande equilbrio, pois enquanto procura acentuar a centralidade de Deus, no pode diminuir o papel nico e irrenuncivel de Jesus de Nazar.

    E como ltima de suas propostas como nova categoria, Queiruga apresenta-nos a irreligionao7. Nessa categoria, ele reafirma o avano da inculturao e prope um passo a mais na tentativa de evitar suprimir a presena real de Deus no mundo, passando a respeitar a cultura e a experincia religiosa de cada tradio.

    Assim, partindo da nova concepo da revelao que acontece

    maieuticamente na histria, procurando resguardar a liberdade de Deus sem perder a sua novidade na histria humana, por estar j sempre a; como tambm a comprovao de que a revelao a mais alta expresso do amor de Deus humanidade e a possibilidade da mais autntica realizao humana. Saberemos

    5 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, pp. 93-110.

    6 Cf. Ibid., pp.111-122.

    7 Cf. Ibid., pp. 167-193.

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    como essa descoberta provocou a mudana na relao com as demais tradies religiosas, chegando afirmao de que todas as religies so verdadeiras.

    5.1 A Revelao como maiutica histrica

    Queiruga nos fornece uma compreenso da estrutura da revelao que pode ser aplicada tambm s outras religies e permite identificar, j do ponto de vista fenomenolgico, um dado prvio que d suporte s diferenas e especificidades constitutivas das religies, permitindo um esquema de interpretao para

    compreender-se as religies em sua singularidade. Isso porque a revelao faz parte da autoconscincia de todas as religies,

    uma vez que essa venha a ser a tomada de conscincia da presena do divino no indivduo, na sociedade e no mundo. Essa afirmativa toca no constitutivo da autocompreenso do cristianismo, na convico de que em Jesus Cristo se deu a plenitude da revelao, isto , na pretenso de possuir a revelao absoluta.

    No entanto, essa pretenso se choca com o fato de que outras religies tambm se apresentam como religies reveladas e com o fato do pluralismo

    religioso em si mesmo. As reflexes sobre essa questo se do em duas direes: uma aquela suscitada pela teoria de K. Barth, depois abandonada por ele, que negava qualquer possibilidade de revelao fora da revelao bblica, no admitindo a religio como lugar da revelao de Deus8. Ao contrrio, para ele a

    revelao era a supresso da religio. E a outra a fenomenologia da religio, que em uma linha oposta rompe com esta viso restrita da revelao. Ali, por certo

    tempo, alguns estudos faziam uma distino entre religio natural e religio revelada. Mas, na medida em que as cincias da religio foram demonstrando a existncia de traos fundamentais comuns a todas as religies, esta distino foi se

    tornando irrelevante9. O dado mais fundamental comum s diversas religies que todas

    compartilham da convico de terem sua origem numa revelao divina, qualquer que seja o nome atribudo a esta realidade divina, de modo que a revelao um dado constitutivo da estrutura mesma da religio10.

    8 Cf. LATOURELLE, R. Revelao. In: Dicionrio de Teologia Fundamental. Petrpolis: Vozes;

    So Paulo: Santurio, 1994, p. 816; QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 20s. 9 Cf. Ibid., p. 20.

    10 QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 20.

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    Diante dessa questo, Queiruga assume em sua reflexo o ponto de partida fornecido pela fenomenologia e enriquece-o com o dado antropolgico da experincia humana da revelao. Para ele, o homem um ser emergente, no qual se supe toda uma evoluo que alcana o seu extremo11. O ser humano,

    diferente do animal, possui em si a pergunta que lhe arde, a pergunta sobre Deus. E diante dessa interrogao, existente independente de sua permisso, se tem a

    partir de sua acolhida um

    significado fundamental da revelao como fundamento: essa receptividade radical na qual o homem acolhendo a presena salvadora de Deus, vai entrando em sua plena realizao, enquanto determinado e entregue a si mesmo pelo Deus que a ele se comunica12.

    A revelao de Deus ao homem implica para este em um intenso encontro

    consigo mesmo, em uma maior percepo sobre a vida e uma melhor contribuio na construo da histria rica em significado para si e para a sociedade. E, para

    isso, ele apresenta-nos a partir da revelao acontecendo maieuticamente na histria, a possibilidade da realizao do homem na revelao de Deus, pois, na resposta revelao, o homem est se realizando a si mesmo: est construindo, desde a ltima radicalidade, a histria de seu ser13.

    E a partir desta reflexo sobre a revelao de Deus humanidade, que temos de Queiruga sua grande contribuio, com especial particularidade aquilo que o faz distinguir-se de outras reflexes teolgicas. Contribuies essas que permitem abrir caminho para a comunicao entre as diferentes tradies religiosas e uma maior tematizao da autocomunicao divina, porque ele acredita que Deus insiste em querer revelar-se a todos e de modos sempre novos,

    pois Deus livre para revelar-se quando e como quer14.

    11 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 173. Um extremo

    ainda aberto e dinmico, que continua, por outros caminhos, processos. Um extremo consciente, que se levanta sobre o horizonte do mundo, descobrindo, ao olhar para trs, o processo evolutivo que se perde na noite dos tempos, e se encontra adiante no aberto (Rilke), movido por um dinamismo infinito, intrinsecamente insatisfazvel, aberto a uma plenitude que lhe chegue a partir de fora e a partir de cima (Blondel), e at mesmo escuta da palavra que ilumine seu mistrio (Rahner). 12

    Ibid.,, pp. 177-178. 13

    Ibid., p. 200. Tendo como ttulo de seu livro A revelao de Deus na realizao humana Queiruga, apresenta o ser humano como lugar prprio para a revelao de Deus, acontecendo maieuticamente na histria. 14

    QUEIRUGA, A. Torres. Qu significa afirmar que Dios habla? Selecciones de Teologia, v. 34, n. 134, p. 102-108, 1995. p. 102.

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    Suas grandes contribuies que, no entanto, j acompanhavam a histria humana, mas cuja tematizao na teologia foi ele que proporcionou, foram a maiutica histrica, como categoria mediadora e a hermenutica do amor15.

    Para podermos compreender a funo desse mtodo maiutico na teologia,

    teremos que adentrar no campo da filosofia, precisamente em Scrates que fazia uso desse mtodo em sua dialtica.

    Scrates, que era filho de uma parteira, diz ter herdado o mesmo ofcio de sua me, afirmando em um dilogo com Teeteto:

    Ora, a minha arte de obstetra assemelha-se em todo o resto das parteiras, mas difere delas no fato de agir sobre homens e no sobre mulheres, e cuidar das almas grvidas e no dos corpos. E o faz tanto pela verdade de que est grvido o homem como pela no verdade ... Se, depois, examinando as tuas respostas, eu encontrar que algumas so quimeras ou no verdades, arranco-as de ti e lano-as fora, e no te zangues.... no na verdade, por maldade que eu fao isso, mas s porque no considero lcito aceitar a falsidade ou obscurecer a verdade16.

    Para ele, a maiutica era a arte de obstetra da alma. Assim, como em um momento de dar luz a uma criana, as mulheres sofriam a dor e a aflio, ele

    tambm ajudava os seus discpulos, em meio dor e aflio, a darem luz as verdades presentes em seus espritos, que podia acontecer se j estivessem grvidos. Esse mtodo consiste em levar o interlocutor ao descobrimento da verdade mediante uma srie de perguntas... e chega, por fim, a engendrar a

    verdade, descobrindo-a por si e em si mesmo17. Isso nos permite concluir que, para Scrates, a maiutica a arte de

    ajudar a gerar, a dar--luz as novas idias presentes nas almas de seus interlocutores. E at mesmo o parto do no verdadeiro benfico para a alma, pois essa liberta-se de um conhecimento vo, e d lugar verdade. Ento, ajudando a gerar, a maiutica socrtica contribui apenas para que seu interlocutor descubra a verdade que traz em si mesmo e a externe18.

    Queiruga, no entanto, fazendo uso desse termo, que se aproxima primeira vista da revelao, o faz a partir de duas distines bem precisas, sem se desfazer de sua intuio primeira: no uso da palavra externa do mediador e no envio do

    15 Teremos a oportunidade no decorrer deste captulo de aprofundarmos sobre essas tematizaes

    apresentadas por Queiruga. 16

    PLATO. Teeteto, 150b-15d. Apud. PANASIEWICZ, Roberlei. Dilogo e revelao: rumo ao encontro inter-religioso. Belo Horizonte: C/Arte, 1999. pp. 86-87. 17

    MORA, Ferrater. Mayutica. Diccionrio de Filosofia. Madrid: Alianza, 1981. 18

    Cf. PANASIEWICZ, Roberlei. Dilogo e revelao, p. 88.

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    interlocutor sua prpria realidade. Para ele, ns descobrimos a revelao porque algum no-la anuncia; mas a aceitamos porque, despertados pelo anncio, vemos por ns mesmos que essa a nossa resposta certa 19. Aqui, a palavra do mediador contribui para que o interlocutor seja remetido para dentro de si mesmo, em um processo de reconhecimento e a-propriao20.

    Por descobrir uma nova realidade, que j estava presente e ao mesmo tempo desconhecida, pela presena que j o acompanhava, e pela verdade vinda de Deus que j era e est sendo. E, assim desvendando, ou seja, permitindo o nascer de uma realidade nova, o homem descobre a Deus que o est fazendo ser e determinando de uma maneira nova e inesperada 21.

    Aqui, descobrimos que Queiruga procura ir mais alm: primeiro, por apresentar a essa categoria socrtica uma modificao em sua perspectiva

    gnoseolgica22. Pois permite transparecer nessas suas distines que o homem sempre homem-no-mundo de maneira que no pode haver desvelamento prprio sem desvelamento da situao, e que todo desvelamento da situao tambm desvelamento do homem23. E depois a partir do que Schillebeeckx diz: assim

    poderamos definir o ser humano: um ser-com-Deus-neste-mundo-de-homens-e-de-coisas24. Para ele, o homem ser um ser-desde-Deus-no-mundo25,

    permitindo a esta categoria maiutica sua incluso no contexto atual. E, assim, apresentada a maiutica revelao adentrando na teologia, lugar

    em que lhe ser inserido, a qualificao de histrica, ressaltando a liberdade de Deus e a novidade da histria humana; a alterao de maneira radical do conceito socrtico. Ser a partir destas duas dimenses que Queiruga, por meio da Teologia da Revelao, ir reler a categoria socrtica. Sobre o mtodo socrtico, como pudemos observar a partir do que j nos foi apresentado, esse no gera nada de novo. A ele, como tambm s parteiras, no cabe criar nada. Apenas controlam o vir--luz das verdades inerentes ao

    homem, pois esses a encontram e do luz por si mesmos. Esse mtodo encerra-

    19 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 18. Grifo do autor.

    20 Cf. Id.,, A revelao de Deus na realizao humana, p. 113.

    21QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 113. 22

    Cf. Ibid., p. 113. 23

    Ibid., p. 113-114. 24

    SCHILLEBEECKX, E. Intelligence de la foi er interprtation de soi. In: Thologie daujourdhui et de demain. Paris, 1967. p. 125. Apud. QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 114. 25

    Ibid., p. 114.

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    se na mais pura imanncia26, onde qualquer um pode dar luz por si mesmo ao que j estava desde sempre presente.

    Poderemos perceber com a perspectiva da revelao que o caminho se torna diferente. Pois este se apoia na novidade da origem histrica e na livre iniciativa

    divina. Segundo Queiruga, na revelao no se manifesta o que o homem por si mesmo, e sim o que comea a ser por livre iniciativa divina. No se trata de um

    desdobrar imanente de sua essncia, mas de uma determinao realizada por Deus na histria 27.

    Isso a faz ser sempre experimentada de maneira nova e gratuita. Chega mesmo a ser entendida como novo nascimento28, como inovao essencial 29,

    quando vivida em sua plena intensidade. Aqui, a palavra passa a ser necessria para que a comunidade chegue

    conscincia da nova realidade. Queiruga no nega a intuio primeira de Scrates do dar--luz, que permite ao seu interlocutor trazer realidade um outro conhecimento de que, at ento, no se havia dado conta, como tambm resguardar a importncia do mediador (maieuta = parteiro), para com a sua comunidade. Mas a sustenta nessa nova aplicao histrica. Para ele, o mediador, com sua palavra e seu gesto, faz os demais descobrirem a realidade em que j esto colocados, a presena que j os estava acompanhando, a verdade que, vinda de Deus, j era ou est sendo30.

    Afirma ainda Queiruga, que esse no faz mais que iluminar, na conscincia, a experincia transcendental da prpria realidade j agraciada pelo Esprito 31.

    Assim o que podemos ver em Moiss, um homem que vive e promove os acontecimentos a partir de uma profunda experincia religiosa, interpreta-os luz dessa experincia, e consegue que, pouco a pouco, tambm outros a experimentem e a interpretem da mesma maneira. Ele , assim, o mediador que possibilitou aos israelitas darem--luz a presena atuante de Deus em seu meio.

    Deus que estava desde sempre presente32, de maneira oculta, embora real.

    26 QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, pp. 114-115.

    27 Ibid., p. 115.

    28 Jo 3,3-8.

    29 cf. Rm 6, 2; 7,6; Gl 6,15; 2Cor 5,17; Ef 2,15; 4,24; Cl 3,10.

    30QUEIRUGA, A. Torres. Op.cit., p. 113. 31

    Ibid., p. 1224 . 32

    Cf. Gn 1,1; Pr 8,22; Jr 1,5; Ex 3,18.

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    E assim, Israel descobriu a Deus na histria e, ao faz-lo, foi-se descobrindo a si mesmo33. Com essa tomada de conscincia, os israelitas passam a servir como ponto referencial e possibilidade sempre nova de se aperceber de algo de novo e de gratuito nessa revelao divina na Histria da Humanidade.

    Pois a revelao, a partir dessa conscincia patrimnio universal e no consegue ser apenas para a experincia de alguns, mas, para todos, pois seu lugar

    na comunidade34. o que nos afirma Queiruga quando diz que O iniciador do processo vive sua experincia como dada por Deus, como iniciativa divina.... E ao mesmo tempo, essa revelao que vem de Deus reenvia histria: circunstncia concreta ... e no se isola nunca em si mesma nem se considera propriedade privada do iniciador; ao contrrio, dirige-se sempre aos demais: para todos35.

    Por isso, o ouvinte, ao se deixar interpelar pelo mediador, apreende a profundidade de sua realidade, abre-se a uma experincia singular da revelao e descobre-se no prprio-ser-desde-Deus-no-mundo, sendo necessrio apenas que reconhea e aceite a revelao. E nesta resposta revelao, o homem est-se

    realizando a si mesmo, e entra em construo em profundidade com a histria de seu ser. Esse prprio-ser torna-se novo (ao contrrio da preexistncia de Scrates), pois, j o tendo reconhecido e aceito, j idntico a ele, e o percebe como estando j ai. a articulao do novo e do j a no prprio crente.

    Explica-nos Queiruga, diante desta relao do crente com a palavra, que ajud-lo a descobri-lo constitui precisamente a tarefa da palavra inspirada, que, por isso, para ele maiutica36. Assim recupera-se a maiutica na Histria

    tornando-se necessria para a apreenso da autocomunicao de Deus.

    Para concluirmos, como maiutica histrica, a revelao, afirma-nos Queiruga, no consiste num esttico sempre a, seno num sempre a dinmico, que se atualiza constantemente no novo de sua realizao mediante a liberdade do homem e de sua histria37. Ela que tem seu aspecto maiutico na funo da palavra, que possibilita o novo, traz luz. No leva para fora de si, nem fala de coisas estranhas, mas devolve o homem sua mais radical autenticidade.

    33 QUEIRUGA, A. Torres. Revelao de Deus na realizao humana, p. 103.

    34 Cf. PANASIEWICA, Roberlei. Dilogo e revelao, p. 91.

    35 QUEIRUGA, A. Torres. Op.cit., p. 107.

    36 Ibid., p. 116.

    37 Ibid., p. 195.

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    A palavra age assim, com toda propriedade, como parteira que traz luz a conscincia do novo ser, tornando clara sua nova situao, a nova criatura que agora . Seu aspecto histrico encontra-se no mediador, que surge na histria e responde a uma misso, a uma livre iniciativa de Deus.

    Ela , assim, sempre um ato por parte de Deus, que se realiza na liberdade histrica do homem, e torna-se realidade concreta to-somente com sua acolhida.

    E esse processo de revelao acaba se identificando com a histria do homem. Acentua Queiruga que a realidade mesma o gesto de Deus que nela se expressa. E quanto mais densa essa realidade, melhor manifesta a inteno reveladora nela incorporada: quanto mais pleno o significante humano, mais plena

    a significao divina38. Assim, inegvel que somente na experincia humana, se encontre lugar

    para que Deus se revele ao homem.

    5.2 A hermenutica do amor

    A partir do que nos foi apresentado sobre a revelao que se realiza

    maieuticamente na histria, podemos, ento, reafirmar que a mais alta expresso do amor de Deus humanidade, encontra-se no seu desejo de tornar-se conhecido. Como assim, nos diz Queiruga, dado que essncia mesma da revelao pertence o ser ao atual e livre de Deus.... porque Deus quer manifestar-se39.

    Essa uma ao que parte sempre de Deus em direo ao homem, pressionando a conscincia humana para que cada pessoa, em cada circunstncia,

    possa descobri-lo40. O homem quando acolhe a presena reveladora de Deus, que estava desde sempre j a, possibilita atravs deste seu ato uma abertura ao seu prprio crescimento, sua realizao humana. A Deus vem a seu encontro para

    potencializ-lo e orient-lo, de maneira que todo o restante fique finalizado nessa experincia, que o envolve como um todo41.

    Essa articulao entre Deus e o homem ento afirmada por Queiruga como simultaneamente ao de Deus e realizao do homem42 pois,

    38 QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 200.

    39 Ibid., p. 211.

    40 Ibid., p 197.

    41 Ibid., p. 211.

    42 Ibid., p. 202.

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    descobrir-se desde Deus maturar o prprio ser, ir dando e ele a substncia de seu ltimo e mais autntico crescimento; ao mesmo tempo em que esse crescimento vai possibilitando, em dialtica progressiva, novas capacidade de acolher a ao de Deus43.

    Essa articulao se d por meio das liberdades humana e divina. Deus convida o homem realizao como ser humano e essa sua ao um dar-se

    liberdade humana. Uma ao livre de Deus a uma resposta humana no uso de sua plena liberdade.

    E, no face-a-face do encontro, que Queiruga vai nos dizer que,

    aperceber-se da presena de Deus no descobrir um espao neutro que o homem explora por sua iniciativa; ao contrrio, sentir-se chamado, interpelado, levado sempre mais alm de si mesmo por caminhos nunca antes suspeitados, que o amor livre e gratuito vai traando e assinalando44.

    Assim, Deus entra na histria dos homens por meio dessa liberdade humana. Para Queiruga, Deus transforma o mundo no base de milagres e intervencionismos, e sim mediante sua presena reveladora na liberdade do homem45. E, como exemplo, lembremos que muitos estavam no Egito, mas que apenas Moiss acolheu a nova e libertadora presena de Deus com relao ao seu povo. Que muitos viveram a crise do exlio babilnico, mas s pessoas como Jeremias, Ezequiel ou o Dutero-Isaas vivenciaram e explicitaram as inditas profundezas da intimidade divina que se abriram nova circunstncia.

    Logo, esta a experincia do profeta, aquele que se abre novidade divina e acolhe a misso de voltar realidade e despertar outras liberdades para Deus46. O

    profeta capta a presena que est tentando chegar a todos e que no esprito de todos se insinua, mas que nem todos percebem, devido obscuridade estrutural inerente manifestao reveladora47.

    Queiruga entende que a obscuridade existe, no por vontade divina, mas da prpria condio de criatura inerente ao ser humano.

    Retomando a funo da maiutica, podemos constatar que, diante deste

    limite humano, sua necessidade est no fazer vir--luz essa presena do sempre a de Deus na histria humana. Ou seja, ela permite elucidar a presena obscura

    43 QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 202.

    44 Ibid., p. 211.

    45 Ibid., p. 205.

    46 Cf. PANASIEWICZ, Roberlei. Dilogo e revelao, p. 93.

    47 QUEIRUGA, A. Torres. Op. cit. p. 210.

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    e ambgua de Deus perante a liberdade humana. A generosidade irrestrita de Deus, que amor sempre em ato, e que se quer dar plenamente, tem seu limite no em si mesmo, mas na impossibilidade da criatura48.

    Para Queiruga, Deus quer e deseja tornar-se conhecido por todos os homens de forma igual. Por isso, seu amor no cessa de procurar meios para fazer-se sentir o mais rpido e intensamente possvel pelo maior nmero de homens; que

    desejaria dar tudo numa luta amorosa para romper a incompreenso do homem e abrirem-se os olhos ao dom desde sempre disposto para ele49.

    Compreender, ento, este amor de Deus somente possvel atravs de sua autocomunicao aos homens, j que sua presena um j sempre a na histria humana. Uma presena que quer simplesmente autocomunicar-se por condio de possibilidade de libertao e de construo da felicidade do homem.

    Assim, o conceito de revelao em Queiruga encontra-se na hermenutica do amor, e na maiutica histrica, como possibilidade de tornar sempre atual a revelao, como ltima e autntica realizao do homem50. O que pode ento, dizer-nos Queiruga, sobre a universalidade de Deus com a eleio de um povo?

    5.3 A eleio e a universalidade de Deus

    Queiruga continua a nos surpreender com sua maestria de pesquisador no campo do dilogo inter-religioso. Sua preocupao em contribuir para uma das

    questes que assombram a teologia tem possibilitado um pensar e um agir teolgico complemente diferentes. Sua pesquisa tem apontado um novo caminho

    com ricas possibilidades de abertura para uma melhor compreenso e convivncia com uma realidade religiosa que se constata cada vez mais plural.

    Perceberemos, neste tpico, a partir da nova compreenso adquirida sobre a

    revelao como maiutica histrica que para Queiruga possvel afirmar que a revelao histrica particular tenha pretenso universal, desde que seja apresentada sem exclusivismos elitistas ou estreitezas provinciais 51. Para ele, o problema encontra-se no na limitao que a revelao possa apresentar por se situar na histria, mas se essa tem condies de se apresentar como universal52.

    48 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 286.

    49 Ibid., p. 288.

    50Ibid., p. 220. 51

    Ibid., p. 278. 52

    Cf. Ibid., p. 279.

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    Como entender, ento, a gratuidade do amor de Deus em sua universalidade, quando escolhe um povo em eleio histrica, onde biblicamente se diz que para amar Jac tem que odiar Esa53?

    Para essa questo, Queiruga se apoia absolutamente na revelao histrica e nessa eleio, no como restrio do amor, mas como sua mxima manifestao. O particular, para ele, no significa exclusivismo, mas generosa estratgia do

    amor que deseja atingir a todos. Deus revela-se sem reservas, com toda a fora de sua sabedoria e de seu poder; e revela-se a todos na mxima medida possvel54. E mais uma vez afirma que o limite, se aparece, deve vir de um outro lugar: da incapacidade da criatura para captar com maior clareza sua revelao 55,

    pois, insistindo em querer amar, Deus continua pressionando a conscincia da humanidade, para emergir dela, fazendo sentir sua presena 56.

    No entanto, encontram-se no homem, na incomensurabilidade estrutural entre o Criador e a criatura57 os limites para a revelao de Deus. E esses, impostos na relao entre Deus e o homem, enquanto impossibilitam a total revelao de Deus, demonstrando, assim, sua distncia infinita, causam-nos

    espanto, pois mesmo diante de tamanha impossibilidade, o homem ainda tem condies de aperceber-se dessa presena e traz-la palavra. O que acontece no

    por sua prpria fora, mas porque Deus desejaria dar tudo numa luta amorosa para romper a incompreenso do homem e abrir-lhe os olhos ao dom sempre disposto para ele58.

    Esse mistrio que perpassa a relao entre Deus e a criatura, a qual, mesmo

    diante de tamanha fragilidade e ambiguidade que comporta o ser humano, ainda consegue deixar-se tocar pelo Criador e, indo alm, consegue em limitadas palavras descrever sua experincia, encontra um caminho de explicao na teologia negativa. Em toda teologia, essa questo torna-se mais provocante nas experincias msticas.

    53 QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 280; Cf. Ml 1,2-3.

    54 Ibid., p. 280.

    55 Ibid., p. 283.

    56 Ibid., p. 288.

    57 Ibid., p. 280. Para Queiruga, a incomensurabilidade estrutural que o homem carrega, indica sua

    condio historicamente insupervel e para situar nela o lugar radical das incomensurabilidades concretas, que se lhe acrescentam e a densificam. 58

    Ibib., p. 288.

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    No entanto, como nos diz Queiruga, Deus revela-se a todos enquanto esteja ao seu alcance59. A dificuldade, como j vimos, encontra-se na prpria criatura. Ele ressalta que no poderia ser diferente, visto que irrenuncivel aceitar a historicidade do homem. Esta consiste em realizar-se na histria

    mediante o exerccio da prpria liberdade60, pois ser no exerccio de sua autonomia que o homem poder estar aberto revelao real, que brota na

    liberdade e vai-se aproximando pelos caminhos da histria61. A revelao, ao redor de seu mistrio, tem ento, na histria prpria do

    homem, na sua realizao humana, o lugar de sua manifestao. Diferente do que se possa pensar, esse Deus um Deus cujo amor urgente, que busca por todos os meios fazer-se sentir o mais rpida e intensamente possvel pelo maior nmero de homens 62.

    Queiruga no nos deixa passar despercebido que este desejo de Deus em querer tornar-se conhecido pura gratuidade de seu amor, porque se Deus no quisesse revelar-se, nada o homem poderia alcanar de sua intimidade....e que todo homem como tal, com todas as suas faculdades, puro dom de Deus criador 63

    . Com essa gratuidade, Deus apresenta-se como amor total e universal, que quer atingir a todos os homens.

    E a partir dessa compreenso que se tem da revelao, que no tem nada mais que toda a fora do desejo de Deus em querer amar o ser humano, que Queiruga fala da eleio no como um favoritismo, pois para todos nem como um mero acidente, porque Deus est total e pessoalmente em relao concreta com cada homem64.

    Assim, continua Queiruga dizendo que Deus encontra a possibilidade de ir potencializando um caminho rumo manifestao total 65, quando a partir da realidade histrica do ser humano, acontecer sua manifestao humanidade,

    um grupo iniciar um tipo de peculiar experincia. Por diversas circunstncias, entre as quais a providencial sada do Egito exerce um papel determinante, nesse

    59 QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 283.

    60 Ibid., p. 287.

    61 Ibid., p. 287.

    62 Ibid., p. 288.

    63 Ibid., p. 288.

    64 Ibid., p. 289.

    65 Ibid., p. 290.

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    grupo desenvolve-se uma especial sensibilidade para captar a presso religiosa de Deus sobre a conscincia da humanidade 66.

    O que no significa que Deus esteja preferindo este grupo e negando a outro, mas que

    essa eleio tambm para os demais o caminho mais rpido do amor, que enquanto prossegue com eles, levando-os o mais adiante possvel em sua prpria circunstncia, antecipa-lhes pelo atalho do oferecimento histrico o que o povo eleito alcanou por sua conta 67.

    Isso o que Queiruga chama de estratgia do amor. E esta estratgia usada por Deus nesta particularidade da revelao bblica permite transparecer desde suas entranhas a universalidade da revelao. Pois, no cabe na histria

    outra universalidade real 68. Ele elimina o pr-conceito de uma universalidade abstrata, que se apoia numa representao esttica e isomrfica da realidade. Reconhecendo que a realidade do mundo, e, sobretudo, a do homem, emergente,

    ou seja, histrica69, e que a revelao d-se no prprio ir-se fazendo do homem, porque o que se quer universalizar tem de ser antes alcanado.

    Afirma Queiruga, que unicamente aquela revelao na qual se alcana a plenitude do homem pode ser, com justia, universalizvel, ou seja, apresentar-se como oferecimento a todos os homens70. E porque alcana em Jesus o limite insupervel, rompe-se toda particularidade71, Deus encontra em Jesus uma

    oportunidade para entregar-se totalmente a toda a humanidade. No entanto, como possvel que esta particularidade crist possa ser

    universal? Para Queiruga apenas na prxis do cristo que se pode veri-ficar como universal a pretenso do cristianismo72. Porque a universalidade de Cristo encontra-se a partir de baixo, na sua kensis, na nica universalidade possvel dentro da histria: a do sofrimento73. O amor marca o dinamismo da revelao,

    tornando-a universal, na entrega que Deus faz do seu Filho.

    66 QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 290.

    67 Ibid., p. 292.

    68 Ibid., p. 292.

    69 Cf. Ibid., p. 173.

    70 Ibid., p. 294.

    71 Cf. Ibid., Cap. VI. A definitividade de Cristo como mediador comporta a definitividade da

    revelao. 72

    Ibid., p. 295. 73

    Cf. Ibid., pp. 295-296.

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    Logo, a universalidade do cristianismo est na prxis do cristo, a partir de uma f que se proclama universal, e que o faz a partir da experincia da Cruz. Tem que buscar necessariamente o universal humano atravs do esforo de uma maior justia e de uma melhor vida para todos os homens 74.

    Essa universalidade consiste no prprio ato de Deus, por sua presso amorosa sobre a conscincia da humanidade, no desejo de fazer sentir sua presena e em acelerar o tempo pelo atalho de uma tradio particular, para fazer chegar o quanto antes a todos a oferta de amor que para todos foi pensada e posta em andamento desde o princpio nos caminhos da Histria75.

    E atingindo toda a sua plenitude em Jesus, torna o cristianismo uma religio

    portadora de uma experincia destinada a todos, porque parte da mesma experincia de todos, e nunca sai dela: o que faz captar mais clara e

    intensamente o comum76. E assim, o cristianismo traduz, sem diferenciao nem distncia, a gratuita paternidade divina horizontal e a irrestrita fraternidade humana77.

    Queiruga destaca que a essncia dessa experincia crist consiste na conscincia de que o que ela descobre no est separado do que descobrem as demais pois sabe que o mesmo Deus que a salva o que est trabalhando com

    sua graa a inteira massa da humanidade para traz-la a idntica salvao 78. A partir dessa conscincia, aberta verdadeira universalidade de sua

    experincia, o cristianismo no tem como usar de sua particularidade histrica, privilegiando o particular numa espcie de conquista79, em seu trabalho missionrio, pois deve ser claro que ela chega sempre a uma casa j habitada por seu Senhor 80. E que assim, rompendo todo imperialismo missionrio, ao de quem impe algo que lhe externo, torna possvel o dilogo entre as religies em uma rica possibilidade de compreenso universal.

    O dilogo torna-se ento possvel porque consiste em avanar no seio de uma mesma experincia. No h imposio, porque se trata de ajudar a reconhecer a um

    74 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 296.

    75 Id., Cristianismo y religiones, p. 4.

    76 Id., A revelao de Deus na realizao humana, p.300.

    77 Ibid., p. 9.

    78 Ibid., p. 300.

    79 Ibid., p. 297. Grifo do autor.

    80 Ibid., p. 300.

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    Deus que de todos: de nenhum modo mais prprio daquele que prega do que daquele que escuta 81.

    Essa apresentao que Queiruga nos faz no deve ser entendida como um nivelamento da experincia crist com outras experincias. A revelao em Jesus , pois, real, como progresso ontolgico do que o peculiar cristo, e de que o ltimo e derradeiro na realidade, que consiste na descoberta de uma relao viva e pessoal com Deus.

    O que ele afirma longe de qualquer tentativa de etnocentrismo ou do

    imperialismo, por causa de Cristo, que este

    emerge solidariamente da comum e universal experincia religiosa humana, fazendo-a avanar em si mesma desde dentro at situ-la diante da gratuidade, misteriosa e total abertura pessoal de Deus: ao faz-lo...o faz para todos, abrindo e expandindo para a frente a universalidade radical da qual partia82.

    Queiruga ainda destaca que a particularidade humana de Jesus, situada num pas, num tempo e numa cultura, oferece-se a partir de ento, na presena universal sem limite algum de espao e de tempo do Ressuscitado 83, o que

    faz a universalidade crist no impor nenhum particularismo cultural, mas estar sempre disposta a encarnar-se em cada cultura, a inculturar-se84. Mais frente, ele nos falar em inreligionar-se.

    5.4 O cristianismo e outras religies

    No item anterior, abordamos a universalidade da revelao crist, destacando que sua essncia consiste na conscincia de que o que ela descobre no est separado do que descobrem as demais. Agora teremos a oportunidade de

    analis-la em ato, em sua extenso e contato efetivo com as demais religies. Para Queiruga, o tema cristianismo e religies um tema de maior

    importncia em toda a reflexo teolgica. Tema que deixou de ser apenas terico para fazer-se contato vivo, conhecimento imediato e dilogo inadivel, a partir da prpria realidade, longe de quaisquer esquemas ou idias prefixadas, com homens concretos em sua vida religiosa e sua relao ativa com Deus.

    81 QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 300.

    82 Ibid., p. 303.

    83 Ibid., p. 304.

    84 Cf. Id., Inculturacin de la f. In: FLORISTAN, C. (org.). Conceptos fundamentales de pastoral.

    Madrid: Cristiandad. 1983. pp. 471-480.

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    Queiruga tem duas idias, j apresentadas no decorrer de nossa reflexo, como base para a mesma. Retomaremos porque so essncias para este item.

    Na primeira, ele destaca a presena real salvadora e libertadora de Deus no centro de toda a realidade e no corao mesmo de toda a histria dos

    homens 85, j que esta presena realiza-se no processo da realizao do homem. Deus s pode dizer-se a ns em nossa realidade, em nosso mundo. Porque Deus

    se revela a todos os homens, e se revela a eles realmente, revela-se a eles, sobretudo, nas experincias mediadas por suas tradies religiosas 86.

    Assim, Queiruga procura eliminar todo esquema subconsciente que mantm a relao cristianismo/religies=revelao/no-revelao. Assim como tambm

    rompe o esquema de ns verdadeiros e os outros falsos, quando na sua segunda idia nos diz que a eleio uma necessidade histrica que no consiste em privilegiar para separar, e sim em chamar uns para chegar melhor a todos 87. Para ele, est claro que Deus est realmente presente em todos os homens; esses em sua experincia religiosa captam essa presena como revelao ativa e salvadora 88

    .

    Assim, Queiruga entende que esse romper de esquemas a nica possibilidade para um autntico dilogo entre as religies. Afirmando com toda

    clareza que todo homem est em constitutiva relao sobrenatural com Deus e, portanto, em contato vivo com ele, e que as religies so justamente a tematizao dessa relao e desse contato, todas as religies so verdadeiras89.

    Essa afirmao que Queiruga nos apresenta tem como fundamental a compreenso que se tem do grau de verdade de que cada religio utiliza-se pra captar esta presena amorosa de Deus. E para isso se utiliza de uma nica dialtica a de verdadeiro/mais verdadeiro, reconhecendo a limitao histrica de cada comunidade religiosa, sem assumir em nenhuma experincia o sentido de absoluto. Porque no existe religio sem alguma verdade nem religio perfeita,

    pois nenhuma pode esgotar em sua traduo humana a riqueza infinita do mistrio divino90.

    85 QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 341.

    86 Ibid., p. 150.

    87 Ibid., p. 341; Id., O dilogo das religies, p. 60.

    88 Id., A revelao de Deus na realizao humana, p. 151.

    89 Ibid., p. 341. Grifo do autor.

    90 Id., Um Dios para hoy. Santander, Sal Trrea, 1997. p. 22.

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    O que para ele no se trata de aqui renunciar experincia da revelao crist como manifestao plena, definitiva e universal de Deus em Cristo 91, mas de deix-la expandir-se conforme seu dinamismo, visto que a experincia crist no posse dos cristos; dom que emerge na comunidade religiosa humana e

    que a toda ela est destinada 92. Retomemos a estratgia de amor que Queiruga mais uma vez utiliza para

    reafirmar que na experincia reveladora no cristianismo constitui um elemento na estratgia histrica do amor divino, que assim quer chegar mais rpida e eficazmente humanidade inteira 93.

    Isso permite ao cristianismo quando em misso, nunca visitar um lugar sem

    que este j esteja sob a presena de Deus. O que faz aproximar de um outro rosto de Deus presente em uma outra cultura e religio.

    Esta ao impulsionada pela prpria fora da plenitude experimentada, como nos diz Queiruga, pelo cristianismo, permite-lhe tornar-se sensvel s diversas deformaes encontradas fora, porque o rosto entrevisto desde a insupervel irradiao na vida de Jesus suscita o desejo irreprimvel de faz-lo brilhar tambm nas outras religies 94.

    E, assim agindo, no faz nada mais do que assumir sua misso, pois no

    anuncia a si mesmo, no dono da semente que lana, e nem mesmo ele quem a faz crescer95. D gratuitamente o que de graa recebeu96, porque o Senhor no de ningum, e por isso de todos.

    5.5 O no absolutismo do cristianismo

    E, assim como vimos, a f crist afirma sem cessar, ao longo de toda a histria do cristianismo, que em Jesus se deu a salvao e a revelao definitiva

    de Deus. Entretanto, para Queiruga, a reconstruo da confisso cristolgica neotestamentria possibilitou teologia compreender irreversivelmente que a divindade de Jesus se realiza em sua autntica humanidade 97. Logo toda a sua vida assume o corao da confisso neotestamentria, e toda a tradio

    91 QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 341.

    92 Ibid., p. 342.

    93 Ibid., p. 342.

    94 Ibid., p. 342.

    95 Cf. 1Cor 3,6-7.

    96 Cf. Mt 10,8.

    97 QUEIRUGA, A. Torres. Op. cit., p. 71.

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    existencialmente vivida que da provm a experincia salvfica vivida por algumas pessoas no encontro com Jesus, a qual graas ao seu testemunho, torna-se

    acessvel a todas as pessoas98. Na reflexo de Queiruga, esta interpretao do cristianismo enquanto

    vinculada a uma experincia salvfica forma base tanto para a afirmao da unicidade e da singularidade crist quanto para o reconhecimento de seu carter

    contingente e limitado. Com efeito, todas as afirmaes neotestamentrias que apresentam Jesus

    como salvao e revelao divina definitiva e situam-no numa relao constitutiva e essencial com a vinda do Reino de Deus so afirmaes que nascem da

    experincia de f que, como tal, tm um carter autoimplicativo, isto , engajam existencialmente quem as emprega99. Trata-se de uma linguagem relacional, que

    articula uma dimenso subjetiva, na medida em que expressa algo do horizonte interpretativo e da atitude das pessoas que a usam, com uma dimenso objetiva, enquanto afirma algo de real a respeito de Jesus mesmo.

    Entretanto, essas declaraes neotestamentrias so afirmaes portadoras

    de um carter absoluto, que no pode ser ignorado quando se trata de interpretar o Novo Testamento. Trata-se de uma linguagem cuja fonte encontra-se numa experincia que mediatiza algo de mais profundo. Assim, para Queiruga, a base da confisso de f no Novo Testamento o que se manifestou em Jesus de Nazar. Por isso, o fundamento ltimo da unicidade de Jesus afirmada no Novo Testamento est na convico de f de que NEle habita a plenitude de Deus100.

    De acordo com Queiruga, a afirmao crist da unicidade e universalidade salvfica de Jesus Cristo uma afirmao vlida para ns que cremos em Jesus, dado que ela tem por base uma experincia de salvao de Deus.

    No entanto, isso no implica que o acesso a Deus e salvao no se possa

    dar atravs de outros caminhos de salvao, j que para ele, a universalidade crist parte da mesma experincia de todos, procurando captar o que comum no longo processo de tradio que Deus est tentando manifestar a todos. Porque

    98 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, pp. 67-73.

    99 Cf. Ibid., p. 70.

    100 Cl 1,19.

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    acredita que o centro ltimo e decisivo para todos como tambm sucedia para o mesmo Jesus est em Deus101.

    E mesmo estando sob uma nova concepo da revelao, percebe-se a necessidade de novos meios que possibilitem uma melhor clareza diante das

    questes internas e externas que envolvem cada tradio religiosa no encontro e dilogo entre si. Veremos o que Queiruga nos prope diante dessa questo no item seguinte.

    5.6 A necessidade de novas categorias

    Por toda compreenso adquirida com a nova concepo da revelao, e

    ainda que no se tenha condies de medir suas consequncias, Queiruga ainda ousa, rompendo com velhos moldes, reconfigurar em um novo contexto a experincia de sempre, fazendo uso de novas categorias.

    a) Universalismo assimtrico A nova compreenso da revelao e da plenitude crist encontra-se no

    dilema. Queiruga reconhece que o exclusivismo se torna evidentemente insustentvel. Para ele, a sada poderia estar no inclusivismo, que apresenta grandes vantagens, entretanto, no d conta das exigncias legtimas do pluralismo102. Surge, ento, para no recorrer a categorias j superadas pela nova situao e pela busca de um possvel equilbrio, uma nova categoria, denominada

    universalismo assimtrico103. Para ele trata-se de universalismo, porque tem como base todas as religies

    desde seu nascimento e desenvolvimento histrico, que so em si mesmas caminhos reais de revelao e de salvao porque expressam da parte de Deus sua presena universal e irrestrita, sem favoritismo, nem discriminao, posto que,

    desde a criao do mundo, Deus quer que todos sejam salvos104. E assimtrico, porque para ele, est claro que impossvel ignorar o fato das diferenas reais nas conquistas das diferentes religies105.

    101 QUEIRUGA, A. Torres. Cristianismo y religiones, p. 18.

    102 Id., Autocompreenso crist, p. 94.

    103 Cf. Id., A revelao de Deus na realizao humana, p. 13; Id., Autocompreenso crist, p. 95.

    104 1Tm 2,4; Cf. Ibid., p. 95.

    105 Ibid., p. 96.

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    J que por parte do ser humano inevitvel a desigualdade, mais uma vez Queiruga destaca que as diferenas existem no porque se trata de um desgnio de Deus, que escolheria e privilegiaria algumas pessoas, culturas ou naes em detrimento de outras; mas porque isso imposto pela constitutiva desigualdade de

    finitude criatural106. E continua Queiruga, afirmando que Deus age por gratuidade enquanto

    amor irrestrito e sem acepo de pessoas, forosamente, de maneira e sem graus distintos, segundo o momento histrico, a circunstncia cultural ou a deciso da liberdade107. Isso percebe-se quando, individualmente, procura-se amadurecer e aprofundar a relao com Deus, como tambm na histria de cada

    religio. Pois, assim como o cristianismo diz que uma religio semper reformanda, no pode ser diferente no relacionamento das religies entre elas; sendo todas verdadeiras, nem todas tm a mesma profundidade108.

    Com isto, torna-se intolervel, nos diz Queiruga, pretender aambarcar como privilgio prprio o que pertence a todos109. Isso o leva, diante do carter absoluto que se mantm no cristianismo, percebendo que trata-se de uma grande

    pretenso, a renunciar palavra absoluto, substituindo-a por plenitude110. Para Queiruga, realizar esta confisso significa possibilitar a visibilidade do

    seu significado autntico, rompendo com qualquer pretenso de domnio e de conquista porque no campo do religioso toda descoberta, mesmo que acontea em um determinado lugar, tem um destino universal. Pois dom que busca realizar-se identicamente na acolhida prpria e no oferecimento aos demais, que deixando de ser possesso passa a ser percebida como responsabilidade e encargo. Partilhada no como bem particular, mas como herana comum na promessa de um futuro pleno111.

    Queiruga explica o significado da palavra plenitude neste novo contexto. Para ele, no pode significar nada semelhante onicompreenso, como se uma

    religio determinada, por mais elevada que fosse, pudesse abarcar o Mistrio 112. Como tambm, no pode significar um fechamento, que contribua para que

    106QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 96. 107

    Ibid., p. 96; Cf. Rm 2,11. 108

    QUEIRUGA, A. Torres. Op.cit., p. 97. 109

    Ibid., p. 99. 110

    Cf. Ibid., p. 100. 111

    Cf. Ibid., p. 100. 112

    Ibid., p. 101.

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    paralise a histria e acabe com o futuro. Para ele, ao contrrio, remete a uma Plenitude dinmica, onde todo o processo anterior chega realmente a si mesmo e abre-se s mximas possibilidades de sua vivncia113.

    No entanto, nada pode impedir aos cristos que confessem a plenitude e

    definitividade da revelao em Jesus Cristo114, o que para ele exige um longo e difcil caminho para novas categorias que melhor ajudem sua compreenso.

    E para tal desafio, ele acredita que deve-se elaborar uma dialtica, que por um lado evidencie a imprescindibilidade de Jesus de Nazar como pessoa histrica, e por outro, reconhea que no fim das contas, o centro ltimo sempre Deus115. E assim, surge como proposta sua a categoria teocentrismo jesunico.

    b) Teocentrismo jesunico A importncia desta categoria parte de uma questo crucial: a

    particularidade, que no caso de Jesus confessada como definitiva, atingindo precisamente o seu cume: o cristocentrismo, que para Queiruga, quando mal-interpretado um obstculo insupervel para o dilogo com outras religies116. Para ele, a cristologia deve ter como tarefa fundamental mostrar como na vida

    terrena de Jesus, deixa-se transparecer o mistrio nico de sua filiao divina117. Logo, deve-se ter uma ateno cuidadosa nova viso crtica do processo da

    revelao na Bblia, unida a uma considerao realista do dilogo atual entre as religies118.

    Queiruga, fazendo uma reflexo sem aprofundar, nas solues que se apoiam no recurso ao Cristo Csmico ou ao Logos Universal, sem negar sua

    legitimidade na reflexo teolgica, e mesmo podendo tornar menos traumtica a passagem para um paradigma, nos diz que no fazem justia densidade histrica e transcendncia ontolgica do corrido em Jesus de Nazar, nem

    preservam o universal carter absoluto de Deus, tal como o vivia o prprio Jesus119.

    113QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 101. 114

    Cf. Ibid., p. 102. 115

    Ibid., p. 102. 116

    Cf. Ibid., p. 103. 117

    Id., Confesar hoy a Jess como el Cristo. Santander: Sal Terrea, 1994. p. 31. 118

    Id., Autocompreenso crist, p. 103. 119Ibid., p.104. Queiruga apresenta, em nota, para uma melhor exposio dos diversos posicionamentos as obras: MIRANDA, M. de Frana. O cristianismo em face das religies, pp. 26-30; 46-51 e DUPUIS, J. Rumo a uma teologia crist do pluralismo religioso, pp. 251-294;

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    Ele assim, procurando tornar claro o carter teocntrico da nova categoria, comea acentuando a importncia decisiva da pessoa histrica de Jesus. Porque para ele

    embora no se faa de Jesus o centro absoluto, o teocentrismo est to intimamente unido a ele que para a confisso crist no h lugar para uma possvel separao, nem para uma realizao equivalentemente paralela em nenhum outro indivduo passado, presente ou futuro da humanidade120.

    Diante do fenmeno do pluralismo religioso, que muito provoca a uma melhor compreenso de toda essa nova situao, se faz importante esclarecer o sentido desse jesuanismo para que no haja m interpretao em seu entendimento, mesmo que sua compreenso no possa privar-se da densidade histrica de Jesus.

    E aqui, encontra-se a contribuio dessa nova categoria: trata-se de uma nova manifestao do problema da particularidade121. Esclarecendo que no se

    trata de um favoritismo, ou mesmo de privilgio divino, mas de uma resposta a uma necessidade estrutural, visto que no pode existir outra possibilidade para sua realizao na histria.

    Assim, esclarece tambm que a revelao de Cristo no se situa margem

    das demais revelaes. Que por causa da emergncia e de sua intensificao procede ao lugar comum que a presena reveladora de Deus em todas as

    religies122, o que significa dizer que a referncia Deus mesmo, e Ele est diante de todas as religies123.

    E partindo sempre da experincia religiosa e nunca de fora dela, realiza, ento, de modo especfico sua captao levando-a sua culminao. Por isso,

    Jesus se conecta e s assim ele prprio historicamente possvel com a tradio de Israel e, atravs dela, com a de toda a humanidade124. Logo, na

    misso crist deve-se reconhecer que o que ela faz oferecer seu modo, novo e pleno, de compreender o Deus nico, comum a todos125.

    A particularidade, por causa da intrnseca historicidade do humano, s pode realizar-se numa nica pessoa. Isso acaba por afetar a raiz mais profunda do

    120 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 104.

    121 Ibid., p. 105.

    122 Cf. Ibid., p. 106.

    123 Id., Cristianismo y religions, p. 19.

    124 Id., Autocompreenso crist, p. 106.

    125 Ibid., p. 106.

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    humano, sua realizao ltima, como assim se faz no descobrimento de sua relao viva com Deus. E sua realizao ltima equivale a realiz-la na abertura da prpria existncia, que consiste em tomar conscincia da mesma126.

    Queiruga, neste sentido, cita, Mrio de Frana Miranda que adverte para o perigo de reduzir a revelao a uma simples manifestao da salvao127. Isso o leva a insistir na identidade ontolgica da revelao128.

    Para Queiruga, no cabe aqui a categoria de representao porque o problema est no descobrimento originrio, pois tratando-se da ultimidade humana, no h lugar para descobrimento nem, por isso mesmo, de smbolo sem realizao, pois, no processo de chegar ao extremo de si mesmo a partir da

    relao com Deus, o ser humano s pode ver aquilo que vive129. Encontra, ento, na realizao a nica possibilidade para avanar realmente

    no descobrimento e na comunho, nico modo possvel de ser, depois, representao130.

    Queiruga afirma diante dessa questo que interessa-lhe reforar o realismo da aposta e sua necessidade histrica, que no se encontra na lgica do

    privilgio, mas em uma estratgia de amor. O desejo de Deus em querer entregar-se humanidade d-se no concreto da histria, que a torna real e no

    aparncia . E deve ser vista como dom para todos e que a todos oferecida como sua possvel realizao131.

    Assim dito, Queiruga confessa:

    minha convico de que em Cristo a relao viva com Deus atingiu o intransponvel e o insupervel, de tal modo que nele se tornam patentes para mim as chaves definitivas da atitude de Deus em relao ao mundo e da conseqente conduta de nossa parte132.

    E mais adiante conclui: para mim, no existe um teocentrismo pleno que no inclua aquilo que foi revelado em Jesus de Nazar, isto , que no seja tambm jesunico, e assim, reconhecer a verdade presente em outros

    126 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 106.

    127 Cf. MIRANDA, M. de Frana. O cristianismo em face das religies, pp. 49-51 e 60-62 apud.

    QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 107. 128

    Cf. QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana. Nessa obra, tambm descarta a categoria de representao quando de fala da revelao. 129

    QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, pp. 107-108. 130

    Ibid., p. 108. Grifo do autor. 131

    Ibid., p. 108. Grifo do autor. 132

    Ibid., p. 108. Grifo do autor.

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    teocentrismo e inclusive de aprender deles determinados aspectos que enriquecem o meu particular teocentrismo133.

    Sua confisso consiste em duas condies: primeiro, porque deixar tudo o que possui134 e at a prpria vida, requer respeito por todos aqueles que

    acreditam ter feito, em sua religio, uma descoberta igual ou semelhante; segundo, pela mesma razo, a convico de que cada um precisa ser apresentado

    com uma proposta aberta ao dilogo, ao contraste e verificao135. Enquanto dom, a experincia vivida no pode ter outro interesse, seno o de

    favorecer o seu possvel destinatrio, o que acontecer se, e somente se, ele a perceber capaz de plenificar sua viso e abrir-lhe um novo horizonte de

    definitividade136. Assumidas essas condies, Queiruga no nega que lhe seja exigido uma

    atitude complexa e cheia de matizes. Considerando como certo por um lado, uma clara e confivel afirmao da prpria identidade.... e por outro, a humildade de quem no se remete a si mesmo nem sequer insiste demasiadamente no modo de compreender a verdade descoberta137. Isso implica em que deve estar aberto para

    possveis correes e aperfeioamentos. Como novas nuances, sem impor limites a questionamentos externos.

    O especfico nesta categoria est na preeminncia do teocentrismo, que se encontra profundamente presente em Jesus de Nazar. Logo nos remeter, nos diz Queiruga, a toda a sua problematicidade histrica. No entanto, para o dilogo, a nfase prioritria deve estar no em sua figura individual, mas em sua proposta reveladora e salvfica138.

    em vista desta proposta apresentada por Jesus a partir de uma experincia de Deus, como Abb, que os cristos apoiam sua convico e a tm como proposta crist139. Confiando em sua prpria fora de convico a proposta crist, sem imposio arbitrria, nem soberba, assumindo-se como fruto do que prope,

    133 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 109. Queiruga, em seu livro, O dilogo

    das religies, sobre o cristocentrismo diz que o sentido primeiro e facilmente acessvel; com a mesma razo, h tambm um budacentrismo e um maomecentrismo... Mas Jesus como Buda e Maom no pregou a si mesmo; ele remeteu sempre ao Pai, a Deus. Jesus foi, sem dvidas, teocntrico. p. 68. 134

    Cf. Mt 13,44-46. 135

    QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 110. 136

    Ibid., 110. 137

    Ibid., pp. 110-111. 138

    Ibid., p. 111. 139

    Cf. Ibid., p.111.

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    sente-se autorizada a abrigar a humilde esperana de que possa produzir o mesmo efeito nos demais140.

    Pois, continua Queiruga:

    aquele que atravs de Jesus, descobriu que Deus amor (1Jo4,8.16), isto , que consiste em amar e em suscitar amor, tem motivos para pensar que, mesmo dentro dos limites da sua apresentao histrica, oferece algo no qual todos podem encontrar uma plenificao no necessariamente uma refutao de sua busca religiosa141.

    Para Queiruga, a partir desse encontro com Deus, que por amor procura se achegar a todos e a todas sem distino, inclusive dos maus e dos injustos142, que perdoa sem condies e sem impor penas143, que incapaz de julgar e condenar144, que ama e perdoa145; diante de um Deus que s sabe amar, e o faz de

    forma gratuita, que suscita entre todos este amor, em que toda sua ao e inteno salvfica146; resta apenas confess-lo e fazer o possvel para que o mundo seja invadido e transformado por seu amor147.

    No entanto, diante do que nos foi apresentado evidencia por si mesmo que j no se pode falar, sem matizes ou reservas de simples cristocentrismo148. Frases como no existe conhecimento de Deus a no ser em Jesus Cristo, so

    para Queiruga entendidas apenas como uma linguagem interna de natureza confessional, que no deve ter pretenso de ser uma definio objetiva. Para ele, a linguagem deve ser a do amor149. Pois o centro ltimo e decisivo para todos como de resto, acontecia com o prximo Jesus - radica-se em Deus, o nico absoluto150.

    Entretanto, diante desta nova perspectiva, no se pode esquecer de uma

    outra questo, a plenitude da revelao em Cristo, que de uma forma mais sutil atinge o dilogo. E para tal questo, Queiruga pede-nos para lembrarmos que esta revelao remete-nos a Cristo tambm na qualidade de Ressuscitado, isto ,

    140 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 112.

    141 Ibid., p. 112.

    142 Cf. Mt 5,45.

    143 Cf. Lc 15,22-24.

    144 Cf. Rm 8,31-34.

    145 Cf. 1Jo 3,20.

    146 Cf. Mt 7,12; Lc10, 27-28.

    147 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Op. cit., pp. 112-113.

    148 Ibid., p. 113.

    149 Cf. Ibid., p. 114.

    150 Ibid., p. 114.

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    alm de sua particularidade histrica151, pois ao destino pleno de Jesus e sua revelao pertencem tambm sua morte e sua ressurreio152.

    Para Queiruga, esta afirmao pertence s afirmaes teolgicas de segunda ordem, que no entram no primeiro momento do dilogo, e se forem introduzidas

    devem estar abertas reinterpretao153. Reinterpretao que mesmo sendo profunda, no significa reduzir pura

    metfora o mistrio da encarnao154. Mas em ir ao encontro da essncia do cristianismo para torn-lo melhor. Atitude provocada pelo dilogo com outras religies, que obriga a revisar com absoluta seriedade o cristocentrismo155.

    Esse, com toda certeza, levar ao teocentrismo e adquirir uma nova

    dimenso. Pois,

    no modo concreto, historicamente nico, da proposta crist induz uma certa bipolaridade, no porque nega a primazia absoluta de Deus, mas porque para o cristo essa primazia apresenta-se mediada de maneira indissolvel pela pessoa de Jesus de Nazar156.

    Por isso, fortemente significativo para Queiruga, diante dessa bipolaridade, falar de um teocentrismo jesunico. Assim, ele mesmo diz: Parece-me na realidade que essa expresso aponta melhor tanto para o mistrio do Pai, enquanto

    origem ultimamente fundante, quanto para sua em relao a ns irrenuncivel mediao no Evangelho de Jesus de Nazar157.

    Para ele, em relao aos outros, isto no prejudica em princpio seu direito de falar, se assim o creem, de um teocentrismo diferentemente qualificado158, porque est certo de que a expresso remete com certa clareza misteriosa estrutura qual se faz aluso, ao mesmo tempo em que uma resposta

    necessidade de nosso tempo em transio e em busca de novas categorias 159.

    151 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 115.

    152 Ibid., p. 118.

    153 Cf. Ibid., p. 115.

    154 Cf. Ibid., p. 115. Queiruga cita John Hick como o que mais tem buscado este caminho. HICK,

    John. The Myth of God Incarnate. London/Philadelphia, 1997; principalmente God Hs Many Names, pp. 8;19;27-28;58;74;125. Para ele, mais equilibrada e sugestiva a apresentao de HAIGHT, R. Jesus, smbolo de Deus. So Paulo, Paulinas, 2005. 155

    Em nota, Queiruga destaca este lugar como o ponto crtico da questo. E faz referncia a obra de DUPUIS, J. Rumo a uma teologia do pluralismo religioso, pp. 251-294. Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 115. 156

    Ibid., p. 116. 157

    Ibid., p. 116. 158

    Ibid., p. 117. 159

    Ibid., p. 117.

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    E aqui que est o ponto delicado para o dilogo, pois requer aceitar a unio da pessoa de Jesus de Nazar com Deus apenas no presente momento, numa cultura que atribui valor constitutivo histria160. O que torna possvel pensar, ento, que o fato de Jesus de Nazar ter alcanado essa viso objetivante insupervel de Deus, signifique tambm de direito, o indcio que permite reconhecer a unicidade de sua relao com Ele161.

    E j que a f crist teve sua origem numa experincia salvfica dentro de um contexto determinado, onde o encontro com Jesus de Nazar constituiu-se em resposta necessidade concreta de salvao e, naquele contexto, o testemunho dos primeiros cristos adquiriu seu significado. Podemos dizer que o significado da

    mensagem evanglica para ns, hoje, como o sentido de todo o discurso sobre Deus, s pode se manifestar em referncia situao atual concreta, em conexo

    com as interrogaes vitais que nos colocamos.

    Logo, nossas experincias atuais devem oferecer ocasio para falar de Deus de modo humano e sensato; caso contrrio, nos limitaramos mera repetio de esquemas tradicionais, perdendo a relevncia para a vida cotidiana. E assim,

    veremos que Queiruga vai alm, quando prope junto inculturao a inreligionao.

    c) A inreligionao Acentuando a importncia da inculturao na colaborao com o dilogo

    entre as religies, Queiruga questiona suas respostas diante dos desafios apontados com os avanos das reflexes atuais, pois reconhece a difcil tarefa que

    persiste na atualidade em permanecer com a distino entre cultura e religio162. Para ele, o perigo principal aponta, no fundo, para uma deficincia hermenutica, pois continua trabalhando com o pressuposto de um dualismo

    excessivo entre as religies e a cultura, de modo que ambas acabariam sendo claramente separveis163.

    O que se pode perceber nesta prtica a existncia das conseqncias de um paradigma anterior, sobretudo na compreenso acerca da revelao. Para Queiruga, esse fato uma oportunidade para avanar, pois, reconhece que toda

    160 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 117. Grifo do autor.

    161 Cf. Ibid., p. 117; Cf. Id., A revelao de Deus na realizao do homem. Cap. VI e VII.

    162 Id., Autocompreenso crist, p. 174.

    163 Cf. Ibid., p. 175.

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    religio possui por necessidade intrnseca, a interpretao de uma experincia originria164, e que para tornar-se compreensvel e poder ser vivida, deve encarnar-se nos elementos culturais das pessoas e comunidades. Queiruga se pergunta: Por que no deveria acontecer o mesmo com os elementos

    especificamente religiosos?165. E assim, ele prope, indo alm da inculturao, a inreligionao.

    Isso fazendo, tem clara a consequncia da impossibilidade de distinguir entre o cultural e o religioso em um mesmo fenmeno, pois a revelao sempre se

    d a partir de um conjunto de pressupostos, expectativas e ideologias geralmente aceitas e disponveis no contexto histrico e sociocultural de uma poca, que

    nunca se d em estado puro. Logo, certo que a revelao ser sempre interpretada, o que significa para Queiruga afirmar que no cabe religio a no ser inculturada166.

    E pelo fato desse contexto mediar a revelao, ser sempre por ela transformado. Assim, como o foi com a f crist que teve sua origem numa experincia salvfica dentro de um contexto determinado, onde o encontro com

    Jesus de Nazar se constituiu em resposta necessidade concreta de salvao, naquele contexto, o testemunho dos primeiros cristos adquiriu o seu significado.

    Como nos disse Joo Paulo II: uma f que no se faz cultura uma f que no foi plenamente recebida, nem inteiramente pensada, nem inteiramente vivida167.

    E com um avano terico-significativo da inculturao, temos consequncias importantssimas para o dilogo inter-religioso. Que alm de sua aceitao entre os telogos, recebeu-a tambm do magistrio da Igreja:

    Por meio da inculturao, a Igreja encarna o Evangelho nas diversas culturas e, ao mesmo tempo, introduz os povos com suas culturas em sua prpria comunidade; transmite s mesmas seus prprios valores, assumindo o que h de bom nelas e renovando-se a partir de dentro168.

    No entanto, no deixou de receber crticas. Queiruga destaca duas como principais: a) que pode levar ao imperialismo de uma cultura e b) que pressupe uma idia de universalismo. E ele sintetiza estas crticas fazendo um alerta para o

    164 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 176.

    165 Ibid., p. 176.

    166 Id., Repensar o pluralismo: da inculturao inreligionao. In: Concilium. Petrpolis: Vozes,

    n. 319, 2007. p. 114. 167

    Ibid., p. 115. Citao de Joo Paulo II, 1982. 168

    RM, 52.

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    seu perigo, indicando que a fora semntica dessa palavra pode sugerir que o encontro deve respeitar a cultura, mas suprimir (ou ignorar) a religio169. Pois conhecido que nos encontros entre as religies, quando foi possvel respeitar sua cultura, foi desconhecido seu valor religioso, favorecendo conseqncias

    arrasadoras: perseguies, destruies e o desejo de acabar com toda tradio170. Para Queiruga, mesmo diante dos riscos apresentados, a inculturao no

    deve ser substituda. No entanto, ele no descarta a necessidade de que ela seja corrigida e completada. Pois,

    reconhecendo revelao real em qualquer religio, torna-se evidente que no se pode tratar de suprimi-la: significaria suprimir ou negar a presena real de Deus. Para ele, certo que o encontro entre as religies s legtimo para dar e/ou receber uma melhora: oferecer aquilo que julgamos que pode ajudar o outro (e/ou receber do outro o que possa ajudar-nos)171.

    o outro que, para acolher a oferta de quem chega, vai julgar se possvel aceit-la. Assim, como na inculturao, isso no deve acontecer negando sua prpria cultura, na religio, acontece algo semelhante, pois quem ouve uma

    pessoa religiosa e que vai fazer uso de sua experincia religiosa para tambm acolher ou descartar o que se lhe anuncia.

    Para Queiruga, isso que a inreligionao quer insinuar. Ela promove tanto uma acolhida como um oferecimento. Acolhida que no significa recusar a

    prpria religio, mas aceitar a partir dela, tendo-a como base para a compreenso, a acolhida ou a recusa do que lhe anunciado. Ou seja, manter a prpria unidade religioso-cultural inculturar e inreligionar a partir dela tudo o que pode melhor-la172.

    E sobre o oferecimento, evitando todo tipo de discriminao e superioridade sobre a outra religio, assumindo a presena de Deus em todas as religies, e assim, adquirindo uma atitude de que minha religio verdadeira, mas tambm a

    tua; e, sendo Deus sempre maior do que a nossa compreenso, devemos complementar-nos, e Queiruga termina afirmando que contra rotinas excludentes e intolerantes, convm aprender de novo a grande verdade do amor: tudo de todos, j que de todos quer ser o mesmo e nico Deus173.

    169 QUEIRUGA, A. Torres. Repensar o pluralismo, p. 115.

    170 Cf. Ibid., p. 115; Id., Autocompreenso crist, p.175.

    171 Id., Repensar o pluralismo, p. 116.

    172 Id., Autocompreenso crist, p. 116.

    173 Ibid., p. 117.

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    Pois toda experincia religiosa genuna resposta universal e viva presena de Deus, e que nessa mesma medida revelada e verdadeira, constituindo um caminho real de salvao.

    No pode, no entanto, ficar fora da reflexo sobre o dilogo inter-religioso a

    relao entre f e cultura, e separar essa compreenso da histria do ser humano. Porque a revelao, como j vimos, em relao a Deus a sua autocomunicao aos homens174, e em relao aos homens a autoconscincia de toda a religio, como tomada de conscincia da presena do divino no indivduo, na sociedade e no mundo175.

    5.7 A verdade entre as religies

    Para Queiruga, o comportamento lingstico adquire aqui grande importncia. Pois, se a partir da contraposio entre religio verdadeira e religies falsas, ser difcil que ocorra o dilogo autntico, para ele, se partirmos da

    afirmao de que todas as religies enquanto modos especficos de acolhida e configurao comunitria da universal presena salvfica de Deus so

    verdadeiras, o dilogo brota por si mesmo176. Para isso, necessrio entender que tudo se resume ao modo e

    intensidade da verdade que cada religio alcana na difcil e sempre insatisfatria luta para captar e expressar em palavras, condutas e instituies a irradiao

    amorosa do Mistrio177. Porque reconhecendo que a recepo humana sempre frgil, desigual, a

    dialtica autntica jamais o zero e o infinito, mas o mais e o menos, ou como o bom e o melhor178. E se na histria, nenhuma realizao perfeita, todas as religies devem fazer a experincia dessa dialtica em seu interior, em dilogo

    consigo mesmas, para encontrar o que melhor, em um processo de converso contnua179.

    174 RAHNER, K. Curso fundamental da f: introduo ao conceito de cristianismo. So Paulo:

    Paulinas, 1989. p. 145. 175

    QUEIRUGA, A. Torres. A revelao de Deus na realizao humana, p. 100. 176

    Id., Autocompreenso crist, p. 139. 177

    Ibid., p. 140. 178

    Cf. Ibid., p. 140. 179

    Cf. Ibid., p. 140.

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    O que leva Queiruga a dizer que o dilogo entre as religies , por isso mesmo, decidida e sinceramente real, porque conecta-se com essa busca que cada uma delas realiza a partir de seu interior180.

    dessa experincia que cada religio faz do Mistrio impulsionando-a ao oferecimento gratuito, que se encontra a justa atitude religiosa diante de um Deus sempre maior e perenemente presente, que Queiruga avana em sua reflexo qualificando de intrnseca a verdade das religies, no sentido de que seria incorreto conceb-las com simples mediao em vista de uma verdade superior. Para ele, elas possuem valor em si mesmas181.

    As religies, nos diz Queiruga, por tratarem do destino definitivo de seus membros, so absolutas182. Entendendo que na

    perspectiva crist ns vemos sua abertura num momento posterior, ou seja, no fato de serem intimamente chamadas, tambm elas, completude com aqueles aspectos que no esto presentes nelas e que de acordo com a nossa confisso esto presentes na plenitude aberta por Cristo183.

    A autocompreenso crist, assumindo esta atitude, deixa uma prtica baseada em uma lgica de concorrncia, na qual as minhas razes e a minha religio so lanadas contra a religio dos outros, para assumir uma lgica da

    gratuidade, adquirindo a

    conscincia de estar apoiada numa transcendncia que tudo fundamenta e que, por isso mesmo, busca incansavelmente, desde sempre e em todos os lugares, dar-se a conhecer e entregar-se a todo homem e a toda mulher. Porque quer ser dom para todos, no pode ser possesso de ningum184.

    A prpria fenomenologia da religio diz-nos que toda experincia religiosa por causa de seu prprio dinamismo, tende a compartilhar, mesmo que ameaada

    por atitudes particularistas, sua orientao intrnseca sem fronteiras; no limite, rumo universalidade185.

    Porque a verdade que uma religio descobre, ela acredita que no s para si, por exclusividade, mas para que pertena a todos os outros. A verdade religiosa acaba sendo um reflexo da plenitude de Deus no esprito humano, plenitude

    180 Cf. QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 141. Grifo do autor.

    181 Ibid., p. 142. Grifo do autor.

    182 Cf. Ibid., p. 145.

    183 Ibid., p. 146.

    184 Ibid., p. 147.

    185 Cf. Ibid., p. 148.

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    qual, de nossa parte, s podemos responder com a busca conjunta, fraternal e compartilhada. Todos recolhendo os fragmentos de uma verdade que, refletida na finitude, destinada a todos186.

    Logo, o dilogo entre as religies (dilogo inter-religioso) uma condio intrnseca da verdade, pois est claro que ambos nunca foram fatos isolados, mas constituem um tecido denso de contatos e influncias187. O dilogo inter-religioso

    veio tona atravs de um grande salto qualitativo nos meios de comunicao, na constituio da aldeia global188.

    Esta realidade, no entanto, no obriga em nada a que os cristos renunciem a sua verdadeira experincia na revelao em Cristo189. Porque no sendo esta

    experincia propriedade dos cristos, deve ser assumida como dom de Deus comum, que foi emergindo e se configurando num ponto da comunidade religiosa

    humana190. Logo, negar sua experincia privar outros de uma possvel riqueza qual tm direito.

    Segundo Queiruga, a misso crist no sai nunca para o deserto da pura ausncia, mas para o encontro com outros rostos do Senhor, que impulsionados

    pela experincia da plenitude encontrada em Cristo, desejam fazer brilhar tambm para os outros o rosto que se entreviu a partir da insupervel irradiao da vida de

    Jesus191. Desta forma permite ao cristo corrigir seus prprios defeitos e descobrir novas riquezas no encontro com Deus nas outras religies.

    Queiruga prope a conscincia dos limites de toda autocompreenso, reconhecendo que este o melhor caminho para ir elaborando todos juntos e de passos bem marcados, uma compreenso mais decididamente universal192.

    E para isso, prefere utiliza-se da palavra encontro no lugar da palavra dilogo, pois entende que o dilogo pode implicar a conotao de uma verdade que j se possui plenamente e que vai ser negociada com o outro, que tambm j tem a sua, e que encontro, pelo contrrio, sugere muito mais um sair de si,

    unindo-se ao outro para ir em busca daquilo que est diante de todos193.

    186 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, pp.148-149.

    187 Cf. Ibid., p. 149.

    188 Cf. Ibid., p. 150.

    189 Cf. Ibid., p. 150.

    190 Ibid., p. 150.

    191 Ibid., p. 151.

    192 Ibid., p. 153.

    193 Ibid., pp. 153-154.

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    Esta sua resistncia em fazer uso da palavra dilogo tambm se reflete ao falar de inclusivismo, pois para ele, o que a palavra sugere que toda a verdade dos outros j est dentro (includa) da nossa. E isto justifica tambm para ele a postura pluralista, mesmo no cedendo s conotaes de nivelamento

    igualitrio ou de relativismo indiferenciado194. E mesmo utilizando-se de uma nova linguagem, no se est livre de ser mal

    interpretado, devendo-se, no entanto, evitar toda a tentao reducionista de que afirmar algo como verdade implica excluir a verdade do outro195.

    Para Queiruga, est claro que deve-se sempre ter como pressuposto que:

    o que foi revelado em Cristo h muito que tambm patrimnio de outras religies... e que inclusive, em diferente medida, tem sido trazido por estas, mas, alm disso, que essas religies tm aspectos e perspectivas ausentes no cristianismo e que podem ajud-lo e complet-los, em seu esforo em vista de uma melhor e mais completa realizao histrica196.

    Sobre as demais religies, o cristianismo deve entender que todas convergem cada vez mais entre si, pois esto habitadas pela presena do mesmo Senhor e todas chamadas mxima plenitude possvel197.

    Queiruga tem claro que considerar que essa plenitude alcanou em Cristo sua mxima realizao histrica, no significa que se pretenda ver nossa religio como realizao perfeita e acabada em todos os aspectos. Para ele, todas as

    religies apresentam-se em sua essncia mais ntima, necessitadas de um melhor conhecimento de si e de descentralizao, para poder melhor refletir o Mistrio que as envolve, e que comum a todos198.

    Por fim, conclumos que assim, reafirma-se a convico de que todas as

    religies so verdadeiras, na medida em que acolhem a presena salvfica de um mesmo Deus. Uma vez que estejam abertas a esta presena, todas so convocadas a somarem os seus reflexos, pois dando e recebendo tendem a crescer e a

    fortalecer a unio com as demais. Para Queiruga, o que est em jogo no o em si da comunicao de Deus, mas o precrio e relativo para ns da recepo199.

    194 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 154.

    195 Ibid., p. 155.

    196 Ibid., p. 155.

    197 Ibid., p. 156.

    198 Cf. Ibid., p. 155.

    199 Ibid., p. 156.

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    E de tal modo o cristianismo, em relao a outras religies, deve reconhecer que tem muito que aprender e que nele no se encontra a comunicao plena de Deus, pois, existem aspectos que s a partir de fora de sua configurao concreta podem chegar-lhe e que justamente pela fidelidade ao Deus seu e de todos, deve estar disposta a acolher200.

    Concluso

    Nesta parte de nossa dissertao, pudemos aprofundar um pouco mais sobre

    a mstica e a revelao. A mstica como realizao de todas as religies, e caminho para conhec-las, como tambm para o conhecimento do prprio

    homem. E sobre a revelao, que reinterpretada no cristianismo, deixa de ser concebida como um ditado divino, para ser vislumbrada como um dar-se conta da presena de Deus, que maieuticamente se revela na histria.

    Constatamos que a experincia mstica acontece porque Deus assim tem

    procurado o ser humano incessantemente. E esta experincia reafirma a identidade do religioso ao mesmo tempo em que o conduz ao encontro real com as demais

    tradies religiosas, pois o leva a ter um contato com Deus no mais intimo de si, na descoberta de si mesmo, e o conduz ao outro que, por vezes negado, aceito em sua alteridade.

    200 QUEIRUGA, A. Torres. Autocompreenso crist, p. 157. Grifo do autor.

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