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Humanística e Teologia. 39:1 (2018) 149-168 }2.1. * Faculdade de Teologia – Porto. O conceito de justiça em Antígona de Sófocles e no livro de Job MARIA MANUELA BRITO MARTINS* Resumo: O objetivo deste estudo é efetuar uma leitura comparativa a partir do conceito de justiça em Antígona de Sófocles e no livro de Job. Em primeiro lugar, justificamos a comparação que se faz, tomando como ponto de partida o género literário do livro de Job em relação à tragédia grega, de forma a mostrar o carácter sugestivo desta comparação. Em segundo lugar, fazemos um pequeno traçado do conceito de justiça na tradição grega e mostramos como ela mantém uma linha de continuidade na tradi- ção bíblica, embora se registem alguns aspetos específicos que lhe são próprios. Por último, tentamos ver de que modo há uma analogia entre as personagens principais das duas obras, relativamente à noção de justiça. Palavras-chave: justiça, lei, drama, inocência, Deus. Abstract: The aim of this paper is to make a comparative reading from the concept of justice in Antigone of Sophocles and in the book of Job. In the first place we justify the comparison that is made, taking as a starting point the literary genre of the book of Job in relation to the Greek tragedy, in order to show the suggestive character of this compar- ison. Secondly, a brief outline of the concept of justice in the Greek tradition is drawing

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149O CONCEITO DE JUSTIÇA EM DE SÓFOCLES E NO LIVRO DE JOB

Humanística e Teologia. 39:1 (2018) 149-168

}2.1.

*FaculdadedeTeologia–Porto.

O conceito de justiça em Antígona de Sófocles e no livro de JobMARIA MANUELA BRITO MARTINS*

Resumo:OobjetivodesteestudoéefetuarumaleituracomparativaapartirdoconceitodejustiçaemAntígonadeSófoclesenolivrodeJob.Emprimeirolugar,justificamosacomparaçãoquesefaz,tomandocomopontodepartidaogéneroliteráriodolivrode Jobem relação à tragédiagrega, de formaamostrar o carácter sugestivodestacomparação.Emsegundolugar,fazemosumpequenotraçadodoconceitodejustiçanatradiçãogregaemostramoscomoelamantémumalinhadecontinuidadenatradi-çãobíblica,emboraseregistemalgunsaspetosespecíficosquelhesãopróprios.Porúltimo, tentamosverdequemodoháumaanalogiaentreaspersonagensprincipaisdasduasobras,relativamenteànoçãodejustiça.

Palavras-chave: justiça,lei,drama,inocência,Deus.

Abstract: Theaimofthispaperistomakeacomparativereadingfromtheconceptofjustice in AntigoneofSophoclesandinthebook of Job.Inthefirstplacewejustifythecomparisonthatismade,takingasastartingpointtheliterarygenreofthebookofJobinrelationtotheGreektragedy,inordertoshowthesuggestivecharacterofthiscompar-ison.Secondly,abriefoutlineoftheconceptofjusticeintheGreektraditionisdrawing

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anditshowshowitmaintainsacontinuityinthebiblicaltradition,althoughitdoesreg-istersomespecificaspectsthatarepropertoit.Finally,wetrytoseehowthereisananalogybetweenthemaincharactersofthetwoworks,inrelationtothenotionofjustice.

Keywords: Justice,law,drama,innocence,God.

Introdução

Oestudoqueapresentamosvisaexplorareentenderapartirdeumarefle-xão filosóficaa ideiade justiçaemdois textosquepertencemaduas tradi-çõesdiferentes:atradiçãogrega,nodramadeSófoclesAntígona,eatradiçãobíblica,nolivrodeJobdoAntigoTestamento.Arazãoquenoslevouafazerumaleituraquecomparaosdoistextosapartirdeumdenominadorcomum–oconceitodejustiça–foiprincipalmenteocaráctersugestivoesingularquecadaumadaspersonagensaportaaestaquestão.Ambososprotagonistas,AntígonaeJob,encarnamumavozquereclamaumajustiçaquenãoseiden-tificacomaideiatradicionalevulgarpropostapelasociedadeemquevivem.Osmotivosquelevamestasduaspersonagensaproclamarumajustiçaqueorasedistinguepelanobrezaedignidadedasuaconceção,orasedirecionaparaumacompreensãoemfunçãododivinoedo transcendente, requeremqueelasejaentendidaemfunçãodoserdivino,quenãocoincidenecessaria-mentecomoscritériosdajustiçahumana.

O nosso objetivo consiste, portanto, em efetuar uma interpretação queaproximaambosostextosdeumaconceçãodejustiçacolocadasobosignododivinoedotranscendente.Naverdade,oheróibíblicoJobreclama-aeaheroínaAntígonatambém.Estacomparaçãonãotemaparentementenadadeinvulgar,poisháquemsustentea teoriadequeo livrode Jobseapresentasobaformadeumatragédiagrega.Independentementedeaceitarmosestaideiaounão,oqueécertoéqueolivrodeJobrepresenta“ocumedaliteraturauniversal.ComoÉdipo,Hamlet,DomQuixoteouFausto,oseuprotagonistatornou-senumpontodereferência,protótipodeumaatitudeperanteavida”1.

PorestarazãoéquecertosbiblistasconsideramqueolivrodeJobseins-crevenogéneroliteráriodatragédiagrega.Defacto,estaideianãoénovidade,vistoquejáTeodorodeMopsuesta,escritordelínguagregadoséculoIV2,foi

1 ALONSO;SCHÖKEL,L.;SICREDÍAZ,J.L.– Comentario teológico y litterario.2.ªed.Madrid:EdicionesCristianidad,2002,25.2 THEODORUSDEMOPSUESTA– In Iobum(PG66,col.697-98).Otextoencontra-seemestadomuitofragmentárioeestáescritoemlatim,oquepressupõeafaltadaversãogregaououtra,porexemplo,asiríaca.

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umdosprimeirosautoresainterpretarolivrodeJobàmaneiradeumatra-gédiagrega.Posteriormente,JeanMercier(JohannesMercerus),umbiblistahebraístafrancêsdoséculoXVI,considerouqueadivisãodaobrapoderiaseguir o género trágico3.Os escritoresmedievais de língua latina fizeramumcomentáriodeteologiabíblicafilosóficaaolivrodeJob–porexemplo,SantoAgostinho,nassuasAdnotationes in Job liber,São Jerónimo,noseucélebreComentário,GregórioMagno,nosseusMoralia in Job;e,noperíodoescolástico,oComentário deTomásdeAquino–;masaintençãodetodoselesdiferedadeTeodorodeMopsuesta,poisoestilocomentaristamedievalfixou-senumainterpretaçãointernaàculturajudaico-cristã.Posteriormente,ocalvinistafrancêsTheodoredeBeza(1519-1605)discutequalacategorialiteráriaquemaisseadequaaolivrodeJob,seaépica,seatrágica4.MasénoséculoXVIIIquesurgemestudos,comoodeA.H.H.Lichtenstein,quereforçamainterpretaçãodequeolivrodeJobpodesercomparadocomospoemas homéricos5. Já o bispo anglicano Robert Lowth (1753) sustenta aideiadequeJobpodeserentendidocomoumpoemadramáticosofocliano,aindaquenãosejapropriamenteuma tragédia.NoséculoXXéaobradeHoraceM.Kallenque apresenta a teoriamais audaciosa sobre o livrodeJob,considerandoqueteriasidoescritacomoimitaçãodeumatragédiadeEurípedes6. JáOskarHoltzamm considera a possibilidade de se conside-rar esta obra como uma certa imitação hebraica dos diálogos de Platão7. Maisrecentemente,o livrodeJobpresta-se tambémaumaleituracompa-rativa com autores gregos, comoHesíodo, Píndaro8 e sobretudo Sófocles9,

3 JOANNESMERCERUS(JeanMercier)– In Librum Job,praefatio:“Potestinuniversumhicliberintrespartesseuactusveluttragoediaquaedamdividi”.4 GENUG,J.F.–The Hebrew Literature of Wisdom in the Light of To-day:BostonandNewYork:Houghton,MifflinandCompany,1996..5 LICHTENSTEIN,A.H.H.–Num liber Jobi cum Odysseia Homeri comparari possit?, 1773.PosteriormenteestainterpretaçãoéretomadaporJ.NEYRANDnoseuestudo“LelivredeJobetlespoèmesd’Homère”. Études59(1922),129-151.6 KALLEN, HoraceM. – The Book of Job as a Greek Tragedy. New York:Moffat, Yard andCompany,1918.7 FRIES, K. –Das philosophisches Gespräch von Hiob bis Plato.Tubingen: J. C.Mohr, PaulSiebeck,1904;HOLTZMANN,O.–Geschichte des Volkes Israel II.Berlin:G.Grote,1888.8 LÉVÊQUE,Jean–Job et son Dieu. Tome I. Essai d’exégèse et de théologie biblique.Paris:J.Gabalda,1970,95-114.9 SIMON,U.– JobandSophocles. In JASPERD.,ed., Images of Belief in Literature.London:Macmillan, 1984, 42-51.Veja-seainda:WEISER,A. –Das Problem der stttlichen Weltordnung im Buche Hiob: Unter Bereicksichting seiner Entwicklung beiden Griechen und in der israelitis-chen Religion. In Alten Testament und andere ausgewählte Schriften.Göttingen:Vanderhoeck&Ruprecht,1961,9-19.

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aproximando-o de uma leitura dramática, sem contudo o classificar numadadacategorialiterária10.

Mas,apesardashipótesesqueinscrevemolivrodeJobnumaconfluênciacomatradiçãogrega,nãoénossaintençãoseguirespecificamenteestaideia,namedidaemquequeroseugénero literário,queroseudesenvolvimentotemáticonosparecembastantemaiscomplexosnasuaformaredatorialedecomposição literáriaparao inscrevermosnumdadogénero literário, epor-que,sobretudo,éumaobramuitosingularnoconjuntodos livrosdoAntigoTestamentoenatradiçãosapiencialhebraica11.Contudo,há,defacto,elemen-tosnacomposiçãodolivrodeJobquepossuemressonânciascomatragédiagrega,namedidaemqueestegéneroliterárioéuniversaletransversalaváriasculturas.Por isso,aproximamo-nosdaposiçãoteóricadeJeanMercier,quedivideaobrasegundoomodelodatragédia.Eemboraonossoestudonãose focalizesobreestaquestãode formaaprofundada,nãopodíamosdeixardeoconsiderar.Poroutrolado,sendoonossointeresseestabeleceralgunsparalelismosentreaspersonagensheroicasJobeAntígona,apartirdaideiadejustiça,poderemostambémjustificardecertaformaaperspetivadeumainterpretaçãoqueaproximaatradiçãobíblicadatradiçãogrega.

1. A tragédia grega

Comecemosprimeiropela ideiaque temossobrea tragédianomundogrego.Apalavratragédiacompõe-sededoismorfemas–traγ e dο–esigni-fica,literalmente,“ocantodobode”.Aorigemdapalavrasuscita,deimediato,ocontextopragmáticodasuasignificação,maisdoqueasuainscriçãonumdadoestiloliterárioepoético.Porém,apalavratraγο,podeteraindaoutrosignifi-cadoque,usadoporanalogia,temosentidodepuberdadeouoquemanifestaosprimeirosdesejosdossentidos.Nesteúltimosignificado,háumaaproxima-çãocomadesignaçãodossentimentosedasemoções.Atragédiatomaentão

10 ALONSOSCHÖKEL,L.–TowardaDramaticReadingoftheBookofJob. Semeia7(1977),45-61.Vejam-se aindaos seguintes estudos:URBROCK,W. J. – JobasDrama:TragedyorComedy?Currents inTheology and Mission 8 (1981), 35-40; ROWLEY,H.H. – The Book of Job and itsMeaning.Bulletin of the John Rylands Library41(1958),167-207;SARNA,N.M.–EpicsubstratumintheProseofJob.Journal of Biblical Literature76(1957),13-2511 SLOTKI,JudahJ.–TheOriginoftheBookofJob.The Expository Times,39,issue3(1927-28),131:“FromthemassofcontroversialliteratureontheoriginoftheBookofJob,apointofagreementthatemergesmostclearlyisthat,whenreadingthebook,weseemtosoarintoanatmospherequiteforeigntothegeneralityofOldTestamentbooks.‘InteromnessacricodicismonumentaexstarequodummodomihivideturLiberJobi,quasisingularequoddamatqueunicarum”,cf.LOWTH,R.De Sacri Poesi Hebraeorum.

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osentidodepôremcenaasaçõesdaspersonagens.Otraγοdidskalο étodoaquelequeinstruiosatoresdeumatragédiaarepresentaroseupapel.Esta forma de expressão literária, talvez uma das formasmais elevadas darealizaçãoestéticadaculturagregaantiga,atingeoseuaugenoséculoV,notempodePéricles,quandoaexpressão líricaestavanoseumáximoesplen-dor.Determinarosurgimentohistóricodatragédiacomabsolutacertezanãoétarefafácilesabemosquenãopodemosterhojeumcompletoconhecimentohistóricodassuasorigenseformasmaisarcaicas,poisatragédiagregapas-souporformasdeevoluçãodistintas12.Defacto,temospoucosdadose,sobre-tudo,poucadocumentaçãohistórica sobre as formasprimitivasda tragédia.Sabemos,noentanto,queumadasexpressõespoéticasmaissignificativasdaGréciaantigafoiaepopeiaeque,sujeitaaumprocessodedesenvolvimentoede“decantaçãoprogressivadasforçashistóricas”13,evoluiuparaaformalírica,acabandoporseultimarnumaformadecriaçãodramática.Defacto,conhe-cemosatualmenteasformasestilísticaseacabadasdatragédianoseuúltimoestadodedesenvolvimento,oqualobedeceuacritériosdeordempolítica,cul-turaleestética.Mas,comorefereWernerJaeger,“infelizmentenãotemosqual-querideiaprecisadasmaisantigasformasdatragédia,eportantosópodemosjulgarasformassuperioresdasuaevolução”14.

Paraocidadãogregodaqueletempo,atragédiaétãoimportantecomoforamoutrora ospoemasépicosdeHomero.Ela representa uma formadeexpressãocultural edidática, integrandooconjuntodemanifestaçõesedeartesquecaracterizamaPaideia.Aparcomospoemashoméricos,a‘tragédia’ea‘poesia’constituemafonte(Bildung)deformaçãoparaopovogrego.Naverdade,atragédiaéoresultadodeumamaturaçãoestética,éticaeretórica,sendotambémportadoradeumcertoconteúdofilosófico,porvezespróximodosofístico.Porissomesmoatragédiaéigualmenteportadoradeumlogos queseexpressadeformapoética,artísticaesacral.AtragédialíricaéaformamaisantigadetragédiaeestáassociadaàsfestasemhonradodeusDiónisosqueeramacompanhadasdedanças,quasesempreemritmoiâmbico,reali-zadasemprocissões.Porisso,afirmaAristótelesque“atragédianasceudos

12 KITTO,H.D.–A tragédia grega. Estudo literário (I volume).Traduçãoeprefáciode J.M.CoutinhoeCastro.Coimbra:ArménioAndrade,1972,50.Podeler-seaindaemFREIRE,A.–A tra-gédia grega. Porto:CentrodeEstudosHumanísticos, 53: “‘AGrécia, escreveuP.SaintVictor,inventouoteatro’.Este,porém,nãobrotoudegeraçãoespontânea,poislongamaturaçãoliteráriaeartísticalhepreparouoberço”.13 JAEGER,W.–Paideia. A formação do homem grego.[Paideia,Die Formung des griechischen Menschen.Berlin:WalterdeGruyter,1936].TraduçãodeArturM.Parreira.SãoPaulo:MartinsFontes,1994,287.14 JAEGER,W.–Paideia,291.

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quepreludiavamoditirambo[diqrambον]”15.Todavia,paraalémdoqueelarepresenta,dopontodevistaculturalecomoexpressãolíricaepoética,atra-gédiaétambémresultantedeumaconceçãopolítica.Naverdade,oestado,ouseja,apolis,vianatragédiaumaformadeincutirnosindivíduosaculturaparaqueesta fosseadquiridadeacordocomas leisdessemesmoestado.Nosentidodemanterestaprática,apoliscriaconcursosemqueseapresen-tamtragédiasemespaçospúblicos,permitindoquesetornempopulareseseintegremnavidadaprópriacomunidade.Destemodo,atragédiatorna-seoespaçocomunitáriodeinterpelaçãoedequestionamentoexistencial.

2. O drama trágico: temas e divisão

Os temas abordados nas tragédias gregas eram extraídos da ‘históriasacra’.Omuthoséumdoselementosmaissignificativosdatragédiaetemointuitodeserdescodificado,pormeiodeumaracionalidadequeacompanhaahistórianarrada,recuandonotempo,querdizer,numtempoprimordialoudopassado.Porissomesmo,os“temasescolhidoseramdahistóriasacra.Querdizer,umdoselementosconstitutivosdatragédiaeraomuthosouahistóriatiradadeumpassadogeralmentedistante”16.

Atragédiacompõe-sedecincopartesprincipais:prólogo,párodo,epi-sódios,estásimoseêxodo.Noprólogo,aoritmodeumadançaiâmbica,dãoentrada os elementos do coro, de onde se destaca a personagemCorifeu.O párodo (prοdο) e o estásimo (stsima) estão diretamente ligados àfunçãodocoro,naentradaenolugarcénico,ondesecantamosprincipaistrechoslíricosquemarcamadivisãodaação.Osepisódios(pieisdia)apre-sentamasucessãodosatose,porfim,oêxodo(xοdο)odesfechodetodaaaçãotrágica17.Avisualizaçãoestéticadadança,quealternacomosdiferen-tesmomentoscénicos,dálugaràexpressãodologosdemodoaqueomitoseja revelado,aprofundadoeespiritualizado.Se, inicialmente,omitosurgiucomoumatentativadeexplicação,tendocomopontodepartidaosdeusesearelaçãodosseresimortaiscomosmortais,natragédia,aocontrário,omitoé‘antropologizado’apontodetudoserexplicadoemfunçãododramahumanoecósmico.Jánãosãosomenteosdeusesquepossuemalgodeinexplicável,oprópriohomemtambém.Diversasquestõessãopostasemcena:osofrimento,

15 ARISTÓTELES– Poética,4,1449a10.Paris:LesBellesLettres,1979,33.16 PEREIRA,M.HelenaR.–Estudos de História da Cultura Clássica,vol. I.Lisboa:FundaçãoCalousteGulbenkian,1979,338.17AdivisãodatragédiaempartesestáfeitanaPoéticadeAristóteles:12,1452b15.

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ainjustiçaversusajustiça,ainsolência,adesmedida(bri),ainfelicidadeversusafelicidade,odestino.Paraalémdisso,atragédiarepresentatambémolugarondesepensaocosmos,oqual,comassuasleiseoseunecessá-rioequilíbrio,manifesta-secomoum indivíduosingular,masamplo.O frag-mentodeAnaximandro, filósofopré-socráticodo séculoVII a.C., expressaistomesmo.Anaximandrointroduzaideiadejustiça,conceitoprovenientedomundosociale legaldoshomens,para justificara lei imanenteaocosmos.Éestanoçãodejustiçaque,tendoorigemnaordemsocialecivilhumana,éoprincípioqueregulaasleisdanatureza18.Paralelamente,vamosassistir,nodecursodosséculosVIeV,aumaideiadejustiçaqueimpõeumcastigoàque-lesquenãocumpremoqueosdeusesditamouquenãoatuamdeacordocomasleisimpostaspelamoira.Estásubjacenteaestajustiçaorestabelecimentodoequilíbrio,que,naordemsocialemoral, implicaa leideretribuição.Nomundobíblicotambémencontramosestamesmaconceção,queéaindafontede indagaçãono livrode Job.NoAntigoTestamentoa ideiadeuma justiçaretributivaapareceemvárioscontextos.No livrodoÊxodo (21,23-35)a jus-tiçaretributivaéentendidasegundoodireitohumanoqueimpõeareparaçãodeumdano.No textogregoaexpressãot dikawma,em21,32,expressaa leiquese impõepararepararodanocausado:“Seoboi ferirumfilhoouuma filha, aplicar-se-á amesma lei”.Mas é no Levítico (24,20-22) que estajustiçaretributivaéexpressadeformaclaraeevidenteetidacomoumanorma(dikawsi)quedeverápresidiratodaacomunidade:“Seumhomemferiroseupróximo,assimcomoofez,assimlheseráfeito.Sóhaveráumaleientrevós,tantoparaoestrangeirocomoparaonatural”.NolivrodeJobestápatenteumaideiasimilar,queseaplicatantoàsrelaçõeshumanas,comoàrelaçãodohomemcomDeus.Deacordocomestaideia,oqueéjustoetementeaDeussóreceberádelebênçãoseproveito.Defacto,osamigosdeJobrepresentamestavisãoqueconcebeumajustiçadivinaquesópodefavoreceroinocente;portanto,Deuscompensaoinocenteeoquepraticaajustiça.

3. O livro de Job: drama trágico?

Sumariamente,devemosabordarquatroaspetosfundamentaisnolivrodeJob:i)otema;ii)oseuautor;iii)oseugéneroliterário;efinalmenteiv)asuadatação.Estespontossãocentraisparapodermosefetuardepoisa relação

18 ANAXIMANDRO,DK12A9:SIMPLÍCIO, Physica24,17.“Eafontedageraçãodascoisasqueexisteméaquelaemquesedátambémadestruição‘segundoanecessidade;poispagamcastigoeretribuiçãounsaosoutros,pelasuainjustiça,deacordocomodecretodoTempo’”.

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entreosdois textos.Quantoao temapropriamentedito,é reconhecidoqueodrama de Job tem os seus antecedentes em textos de escritores doOrienteantigo.EssasformasliteráriasantigastratamdetemaspróximosdodolivrodeJob:aexperiênciadohomemdiantedadoredosofrimento,ouseja,ado‘justosofredor’19.Mastodaselassãoformasarcaicasderetratarolamentodohomemoudaalmahumanaperanteavidaeamorte.Nocaso,porexemplo,do Jobsumério,opoemaretrataalamentaçãodeumhomemaoseudeus20.Natradiçãooriental,encontram-seanalogiascomtextosoriundosdoEgito,daBabilóniaedaMesopotâmia.E,comojávimos,háquemseinteressepreferencialmentepelaanalogiaentreotextodeJobeaculturagrega.Contudo,aoriginalidadedotextobíblicopermaneceinalterávelnasuaglobalidadeesingularidade.Jáquantoaoproblemadasuaautoria,nãosabemosaocertoqualé,eparecequeaobrasofreuaolongodotemposucessivasetapasredatoriais.Sobreesteaspetohátambémdiversashipóteses21.Aopiniãogeneralizada,faceàcoerênciainternadasdiversassecçõesquecompõemo livrode Job,édequenão tenhasidoobradeapenasumautor,oquenãosignificaquepercamosdevistaaideiadeumacriaçãoliteráriaadscritaaumautorqueteriaescritoumprimeirodiálogoprimitivo.Apartirdestenúcleoprimitivo,otextofoiposteriormenteaumentadoeretocado,adquirindoaformaquehojeconhecemos.Paraalémdisso,háaindaindíciosdeumatradiçãooralqueprecedeaformaescrita,pois,quandosepro-cedeaumaanálise linguística, verifica-seapresençadearamaísmos.Oseugéneroliterárioéaquelequemaisdiscussãotemsuscitado,eissodeve-seaofactodeolivrodeJobconternasuaestruturanarrativaumaconjugaçãoentreapoesiaeaprosa,paraalémdeserescritaemdiálogo.Aparteescritaemprosaencontra-se,quernaintrodução,quernoepílogo,mastodoodesenvolvimentonarrativoéfeitoemverso.Daíquesetorneverdadeiramentedifícilincluiraobranumdadogéneroespecífico.ComoéexpressoporAlonsoSchökel:

Todas as classificações são injustas coma abundância transbordantedassuas formas,atitudesepensamentos:nãoéexclusivamente lírica,nemépica,nemdramática,nemdidáticaouintelectual,anãoserqueseadesmem-breparaafazerencaixarnumacategoriaconcreta(comofazemBaumgärtele Kraeling). Nem sequer apresentações tão amplas como a de FriedrichDelitzsch (‘umpoemacommovimentodramáticoe tendênciadidática’)ou,

19 OsbiblistascomparamcertostextosantigosprecursoresdolivrodeJobdeorigemegípcia,daMesopotâmia,daSumériaedaBabilónia.20 KRAMER,N.S.–ManandhisGod,aSumerianVariationonthe“Job”Motif,Supplements to Vetus TestamentumIII(1955),170-182.EstepoemafoireconstruídoporKramerapartirdecincofragmentos.21 ALONSOSCHÖKEL,L.;SICREDÍAZ,J.L.–Job Comentario teológico y bíblico,45-47,50esgs.

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melhoraindaadeJ.G.Herder(‘umaepopeiadohomem,umateodiceiadeDeus’)fazemjustiçaàfinalidadedaobra.22

Por último, quanto à sua datação, também ela é hipotética. Há váriashipóteses.O largo espectro cronológico varia entre os séculos X e IV a.C.Algunsconsideram-naumaobracom traçosdeum judaísmohelenizante, játardio. Outros, porém, inserem-na na época de Jeremias, sensivelmente noséculoVIIa.C.,nofimdoperíodopersa.Contudo,segundoAlonsoSchökel,aopiniãomaisdifundidaatualmenteentreoscomentaristaséadequesejaumaobradoséculoV23.Porisso,podemosconcluirquehásemelhançasedissonân-ciasentreatragédiagregaeolivrodeJob.AmaiordissonânciaestánofactodeoautordolivrodeJobnãoserconhecidoedeasuacomposição,alémdetersidosujeitaareajustamentosredacionaisaolongodotempo,tersidoprecedidadeumanarrativaoral,muitoprovavelmenteumafontepopularemítica.Amaiorsemelhançaencontra-senaformadramáticadasuacomposiçãoenoprópriotemaqueseprestaaalgumascomparações.AdivisãodaestruturanarrativadeJobedatragédia,nestecaso,aAntígonadeSófocles,presta-setambémaumaanalogiaentreasduasobras.Damosdeseguidaumquadrosinóticocompara-tivoquefazadivisãodasduasobras,atítuloexemplificativo:

ANTÍGONA LIVRO DE JOB

Prólogo. Abertura Prólogo.Exposiçãopré-temporaldeJob

Cena I. 1.ºdiálogo:AntígonaeIsmena. Parte I. Episódio 1. Heróiétestado.

Melodrama1 Prólogonaterra

Diálogo:Coro/Corifeueguarda. Prólogonocéu

Cena II. Episódio 1. Diálogo:Creonte,Corifeueguarda.

Episódio 2. Heróitestadonovamente.

Melodrama2 Parte II. Episódio 1.HeróidesafiaDeus–conflito.

1.ºestásimo:exaltaçãodascapacidadesdohomem.

Disputadoheróicomosseusamigos.

Conflito/diálogoentreJobeseusamigos:repúdio/acusação/litígio.

22 ALONSOSCHÖKEL,L.;SICREDÍAZ,J.L.–Job comentario teológivo y literário,100.23 ALONSOSCHÖKEL,L.;SICREDÍAZ,J.L.–Job comentario teológivo y literário,91.

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ANTÍGONA LIVRO DE JOB

Cena III. Episódio 2 Episódio 2. Desafio–respostadeJob.

Melodrama3 Herói fazo juramentodasua inocênciaeintegridade.

GuardaeAntígona;estaéapanhadaemflagrantedelito.

Herói pede um árbitro para advogar asua causa.

2.º estásimo:Coro aflora asmaldiçõesdacasadosLabdácidas.

DiálogodeCreontecomHémon.

Cena IV. Episódio 3. Defesa deAntígonaporpartedeHémon.

Parte III. RespostadeDeusaJob.

Melodrama4 1.ªtentativaderesoluçãodoconflito.

Coroentoao3.ºestásimo,sobreaforçainvencíveldeEros.

Episódio 4. LamentosdeAntígonaedespedida.

Episódio 1.AdvogadoEliú.

Cororeconheceovalordaheroína,mascriticaasuainflexibilidade.

EliúouveoslamentosdeJobepronun-cia-seafavordoseuCriador.

4.ºestásimo:nomeaçãodeheróismito-lógicosquetiveramamesmasorte.

Episódio 2.Adventodoadversário.

Cena V. Episódio 5.Tirésias,emnomedosdeuses,adverteCreonte.

Adversárioaparecenumredemoinho.

Melodrama5 Desafio do adversário ao herói paratestaropoderdomaledocaos.

CoroconvenceCreontealibertarAntígona easepultarPolinices.

Resolução e concessão por parte doherói.

5.ºestásimo:Coro invocaDionisoparavirpurificaracidade.

Desfecho.Estatutodoheróiérestaurado;saúdeemeiosocialefamiliar.

Êxodo.1.ºmensageironarraamortedeAntígonaedeHémon.2.ºmensageiro:mortedarainhaEurídice,esposadeCreonte.

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159O CONCEITO DE JUSTIÇA EM DE SÓFOCLES E NO LIVRO DE JOB

4. Do conceito de justiça na Grécia ao conceito de justiça na Bíblia

Voltemo-nos agora para o conceito de justiça, em primeiro lugar, naGrécia.Desdeosprimórdiosdopensamentogregoqueajustiça(dkη)eraconcebidacomoumaentidadeimanenteaoprópriocosmos,quepermitiaoequilíbriodaordemestabelecida.Háum léxicovariadoe ricoquesepodeentenderemtornodeumgrupodepalavrasquesãousadascomfrequêncianaGréciaantiga,comosejamossubstantivosdkη e dikaiοsνη,oadjetivodkaiο,asformasnegativasdika e dikο e overbodikaiw.Apalavradkηpossuiváriossignificadosnohelenismoclássico:justiça,veredito,tradi-çãooucostume.Quantoàsuaetimologia, pensa-sequeelaprovémdoverbodeikνumi,quesignificamostrareindicar.Istoquerdizerqueadkimplicaprecisamenteovalordaquiloquevemindicado.Estáassociadoàraizdestapalavraosemadeik,quetemcomosignificado:indicar,mostrareestabelecer;porisso,adktomaovalordeum‘direitoposto’,istoé,deumtiqνai,dondeqesm,daqualseoriginamostermoslatinosstatuere e statum.Adkηpodeaindarivalizarcomoutrapalavra–qmi–,quederivadetiqeνai equenoperíodogregoantigosignificavadireito,leidivinaoumoral,destino,decretoeregraoucostume24.

NaIlíada,deHomero,ajustiçaéentendidacomooqueéestabelecidopelalei,querdizer,concerneaodireito25.Noentanto,naobradopoetaajustiçatemumalcancelimitado,porquesetrataessencialmentedeacompreendersegundonormassociais.PorissomesmoapalavraquemaisfrequentementeHomeroutilizaéqmi,queexprimeaquiloqueé referenteà legalidadedequalquerato26.

ÉemHesíodoqueoconceitodejustiçareaparece,numcontextodeordemsocialederegradasociedadehumana.NaTeogonia,Hesíodoproclamaumajustiçaqueconsistenodireitodeosoprimidosreclamaremosseusdireitos27,eemTrabalhos e diaselaéapresentadacomosendoodireitodosoprimidosedosfragilizados28.Naverdade,opoetapastordeHéliconimprimeàpalavradkηaideiadeumajustiçahumana,ampliando-aedesenvolvendo-anumsen-tidoqueaintegra,sobretudo,naexistênciahumanaenomeiosocialemqueoshumanosvivemeinteragem.Hesíodoperspetiva,portanto,ajustiça(dkη) emfunçãodasatitudespessoais,procurandoexporclaramenteumaconceção

24 SCHRENK.G.–“kη”. InKITTEL,G.– Grande Lessico del Nuovo Testamento..EdizioneitalianaacuradiP.Montagnii;G.Scarpat;OSoffriti,vol.II.Brescia,Paideia,1977,1206.25 HOMERO– Ilíada,16,388.26 JAEGER,W.–Paideia,134.27 HESÍODO–Teogonia,v.901.28 HESÍODO– Trabalhos e dias,vv.219,279e283.

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didáticade justiçaque assente na retidão e na consciência humanas. Paraalémdisso,Hesíodonãotentajustificarunicamenteajustiçaemfunçãodaleiedasnormaslegais,masprocurapreferencialmenteumajustiçacomofontedeeticidadeevirtude29.Jáadikaiοsνηcorresponde,emHesíodo,aumaneces-sidadedesubstantivaçãodosatosquesepraticam,eporissoéemfunçãodadikaiοsνηqueoshumanosserãojulgadospelasaçõespraticadas.Hesíododáumsentidointensoàpalavradikaiοsνηparaexprimirosatosdejustiçaquedemonstramovalormaisaltodavirtudehumana.Portanto,adikaiοsνη expressaadiferençaquetransitadoconceitojurídicoparaoconceitoaxioló-gicoeuniversal30.ÉapartirdaconfluênciadestalongatradiçãoqueoconceitodejustiçareaparecenatragédiadeSófocles.

Natradiçãobíblica,emparticular,notextogregodoAntigoTestamento,encontramososmesmosconceitos:dkη,dkaiοsνη,dkaiο,dikawma,dikawsi e dikaiοkrisa, todos expressandoa ideiade justiça ede atosjustos praticados31. Porém, os três últimos termos, dikawma, dikawsi e dikaiοkrisa, sãomuitomais específicos da tradição bíblica do que pro-priamentedopensamentogrego–emparticularaexpressãodikaiwsi,queadquireumsignificadobemespecíficoemSãoPaulo,1Rom5,16,comaideiadejustificação.

SónolivrodeJobencontramoscercade60ocorrênciasdostermosqueseatêmàjustiçaeàinjustiça,sendooadjetivodkaiο otermomaisfrequentemente

29 HESÍODO– Trabalhos e dias,v.213.30 ARISTÓTELESna Retórica,I,9,1366sgs.estabeleceumarelaçãoentreaconceçãojurídicadadikaiοsuνη easuaconceçãocomopartedavirtude.31 Relativamente ao vocabulário grego utilizado no AntigoTestamento e por correspondênciacomousolinguísticohebraico,quantoàideiadejustiça,teremos:dikη,quetraduz,porentreostermoshebraicosmaissignificativos,mispat e sedeq.Porseulado,otermodikaiοsuνηtraduznoAntigoTestamento81vezesotermohebraicosedeqetraduzotermosedaqah134vezes.Jáquantoaovocábulogregodikaiο,eletraduzotermohebraicosadiq189vezes,comumalocuçãomaislivre.Naverdade,ocamposemânticohebraicoébastanteamploquantoaoconceitodejustiçanomundobíblico.Cf.QUELL,G.–kη, dkaiο[...].L’ideadidirittonellA. T. In KITTEL,G.,Grande Lessico del Nuovo Testamento,1192.Veja-setambémoestudodeArmindoVAZ:OespecíficodajustiçanaBíbliahebraica.Cultura,30(2015)1:“NaBíbliahebraicaoconceitodejustiçadizia-seessencialmentecomossubstantivosmispat,sedeq e sedaquah. Mispatsignificajuízo,sentençajudicial,lei,enquantodireitoobjetivo,veredicto,decreto,ordem.Ossubstantivossedeq e sedaqahtêmamesmaraiz.Parecendosinóni-mos,poderiamconsiderar-sedistintosentresi:sedeqrefere-seàjustiçaenquantoordemcriada,num todobem integradoeharmoniosonas suas váriascomponentes, ordenadordas relaçõesentreoshomens;sedaqahdizjustiça,rectidãoenquantocomportamentojustoerectoconformeaessaordem,enquantoacçãosalvadora.Autoresrecentespensamquesedeq e sedaqahtêmsubs-tancialmenteomesmosentido:tantoumcomooutropoderiamsignificar‘ordem,rectidão,justiça,comportamentojusto,açãosalvadora’”.

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usado.Porentreessas60ocorrências,hácercadenovedotermodikaiοsνη,todaselascolocadasemsecçõesdaobradeextremaimportância.Registamosemparticulardoiscontextosemqueadikaiοsνη édescritaemsimbologiarealeconcretacomo“amoradadajustiça”.ÉditonodiscursodeBildad:“Seforespuroereto,elevelaráportierestauraráatualegítimamorada[pοkatastsei d sοi daitaν dikaiοsνη]”(Jb8,6);enodiscursodeElifaz:“Eelerestauraráparatiatualegítimamorada[pοkatastsei d sοi daitaν dikaiοsνη]ealuzbrilharánosteuscaminhos”(Jb22,28)32.Emambasaspassagensocorreamesmalocuçãoemgrego.NestesdoiscontextososamigosdeJobexpõemumaconceçãotradicionaldejustiça.Arestauraçãoouorestabelecimentodajustiçaaquefazemalusãoconcerneorestabelecimentodaperspetivatradicio-naldejustiça,emqueDeuscastigaosinjustoseabençoaosjustos.MasJobnãoaceitaestaideiaerespondedizendo:“Vestia-meerevestia-medajustiça,eaequidadeeraparamimcomoummantoeumturbante[diakaiοsuη d νededkeiν mfiasmeν d krma sa diplοdi]”(Jb29,14)33.Nestecontextoajustiçaédadaaentendercomoalgoconcretoereal.EladefineocarácterdeJobnasuanaturezaeessência.“Jobexclamaqueajustiçaeaequidadesãoumasegundanatureza.Eleutilizaaimagemdeser‘vestido’paraexprimirofactodeterassumidoa‘camisola’dajustiça,maisparticularmenteporterassumidoa ‘roupa’da integridade”34.Háum terceirocontextoqueescolhe-mosparaprecisaradistinçãoentreoconceitode justiçaentendidopor Jobeoconceitodejustiçaqueosseusamigosreclamam.Nestecontexto,EliúéquemacusaJobdeacreditarnumajustiçaquesóprejudicaohomemporqueé humana: “A tuamaldade sóprejudica o homem, o teu semelhante; a tuajustiça[dikaiοsνη]sódizrespeitoaumhumano”(Jb35,8).Eliúcontrapõea Jobumargumentoessencialqueconsisteemdizerquea transcendênciadivina impedequeDeuspossa respondera Job,namedidaemqueaexis-tência humana,que vive nodecursoda vidamortal, nada tema ver comaordemdaexistênciadivina.Portanto,DeusnãopodedarumarespostaaJob,porqueanaturezadivinanadatemavercomanaturezahumanaecomoseu

32 Consultando os comentários espanhol e inglês, ao livro de Job, não encontramos nenhumcomentárioexplicativosobreohemistíquiode8,6e22,28,queserepeteemambasaspassa-gens.Poroutrolado,atraduçãodohemistíquioem22,28édiferentedaquelequeseapresentanotextogrego.Cf.ALONSOSCHÖKEL;SICREDÍAZ– Job. Comentário teológico e literário,410:“Loquetudecidassehará/ybrillarálaluzentuscaminos”;cf.HABEL,NormanC.–The Book of Job. A Commentary.Pennsylvania:TheWestminsterPressPhiladelphia,1985,332:“Youwillmakeadecisionandsucceed;/Lightwillshineonyourways”.33 NocomentáriofilológicodeALONSOSCHÖKELdiz-se:“‘mevestíayrevestia’.Literal:‘mevestílajusticiayellamerevestió’”.34 HABEL,NormanC.–The Book of Job,410.

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mododeexistência.Aesteargumento,nãoéagoraJoborespondente,masDeus.ÉDeusquemagoraointerrogadizendo:“Querestuperverteraminhajustiça[krma]?Querestuprovarqueestouerrado,paraquetuestejascorreto[dikaiο]?”(Jb40,8).

4. Da Antígona ao livro de Job

Ao contrário do livro de Job, sabemos que a tragédia Antígona, deSófocles, foiescritaentre439e440a.C.O temaprincipaldapeçanarraoconflitoentreAntígonaeoseutio,oreiCreonte,queregeacidadedeTebas.Odrama nasce, portanto, a partir de um facto pessoal e familiar,mas queultrapassalargamenteesteregisto.OsdoisirmãosdeAntígonacombateramemladosopostoseforammortosemcombate.Otemacentralquepercorretodoodramaéoconflitoentreasduaspersonagensprincipais:Creonte,oreidacidadedeTebas,eAntígona,quereclamaodireitodesepultaroirmãoquecombateuno ladoadversário.Naverdade,CreonteordenouatravésdeuméditoqueninguémdeveriadarsepulturanemchorarPolinices,irmãodeAntígonaedeIsmena,porqueeletinhatraídoacidadeecombatidodoladoadversário.JáquantoaEtéocles,oirmãodeAntígonaeIsmenaquecombateudefendendoacidade,esseterátodasashonras.Todoodramaestáconstruídonabasedestasduaspersonagenscentrais,tendoaterceira,Ismena,umlugardemenordestaque.

Antígona – Pois não distinguiuCreonte, na sepultura, um dos nossosirmãos,edesonrouooutro?AEtéocles,segundosediz,tratando-odeacordocoma justiça [dike]ea lei [nomos],ocultou-osoba terradeumamaneirahonrosaaosolhosdosmortosdoalém.QuantoaocadáverdePolinices,pere-cidomiseravelmente,diz-sequefoiproclamadoaoscidadãosqueninguémorecolhessenumsepulcro,nemolamentasse.35

Antígonarealçadeimediatoque,emnomedajustiçaedalei,umirmãofoihonradoeoutronão.OconflitoquevaioporAntígonaaCreonteéumcon-flitosobreajustiça.Asduaspersonagensnãopartilhamamesmaconceçãodejustiça.OmesmoacontececomJobeosseusamigos.

35 SÓFOCLES–Antígona,vv.20-25. Introdução,versãodogregoenotasdeMariaHelenadaRochaPEREIRA.5.ªed.Lisboa:FundaçãoCalousteGulbenkian,1992,40.Utilizaremostambémaediçãofrancesabilingue,bemcomoaediçãoinglesaquecontémotextoemgrego.Sophocle–Ajax, Antigone, Oedipe-Roi, Électre.TomeI.TexteétabliettraduitparP.MASQUERAY.Paris:LesBellesLettres,1922.

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ParaAntígonaseconfrontarcomCreonte,terádeserousadaearrojadaface às leisda cidadeedopróprio reiCreonte.A sua atitude revela a sua‘estatura’edignidade,quenãopactuacomumaordempolíticaqueseimpõecomonormamoral.OdramadeAntígonaéoconflitoentrealeidacidade,quefoiimpostapeloreiCreonte,euma‘lei’nãoescritaenãoditadapelaordempolítica.Antígonaapelaauma‘lei’nãoescritamasqueésuperioraumaleihumanaepositiva,aleidivina.

ÉqueessasnãofoiZeusqueaspromulgou,nemaJustiça[Dikê],quecoabitacomosdeusessubterrâneos,estabeleceu tais leisparaoshomens.Eeuentendiqueosteuséditosnãotinhamtalpoderqueummortalpudessesobrelevarospreceitos,nãoescritos,masimutáveisdosdeuses.36

PorissomesmoAntígonajulgaoseuatocomoumverdadeiroatodejus-tiça,domaisaltovalor.HegelinterpretaoconflitodeAntígonaeCreonteemfunçãodeumaoposiçãoentrea lei familiarea leipositiva,ouseja,a leidoEstado37.JáoteólogoBultmann,numartigodedicadoaestetema,defendeumoutropontodevista,considerandoque“oproblemadeAntígonaéaquestãodoverdadeirofundamentodapolise,aomesmotempo,umavezqueavidacomunitáriadoshomenssóganhaformanapolis,adaverdadeirafundamen-taçãodavidacomunitáriadoshomens”38.

Contudo, apesar da opinião quer do filósofo de Iena, quer do teólogoBultmann,consideramosquenãosãoessasasúnicasrazõesquejustificamoconflitoeaoposiçãoentreAntígonaeCreonte.Casooconflitofossedetermi-nadounicamenteemfunçãodacontradiçãoentreodireitodapolis e o direito familiar,oucomoconsequênciadafundamentaçãodacomunidadedadapelaformadapolis,apersonagemAntígonajamaispoderiaatingironíveldeper-sonagemprincipalqueexaltavaloressuperioresàpolis.Paraalémdisso,osargumentosdeAntígonaemdefesadaleifamiliarsãofrágeisnamedidaemque só uma única vez ela expressa o sentimento fraterno como argumentoparaseoporaCreonte,dizendoaIsmena,nosversos45:“Sim,aesseirmãoqueémeueteu,aindaquenãoqueiras.Nãomeacusarãodeoteratraiçoado”.Naverdade,oargumentomaioréaquelequeédadoempassosmaisàfrente,quandoAntígonaexpressaadignidadedoseusentimentoquealevaatalati-tude.DeclaraelaasuairmãIsmena:

36 SÓFOCLES–Antígona,v.450.37 HEGEL, Vorlesungen über Philosophie der ReligionII.2;II.3.a;AesthetikII.2.1.38 BULTMANN,R.–PolisundHadesinderAntigonedesSophokles.InTheologische Aufsätze Karl Barth zum. 50. Geburtstag.Munchen,1936,78-89.

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Procedecomoentenderes.Aeleeulhedareisepultura.Paramim,ébelomorrerparaexecutaresseato.Jazereiaopédele,sendo-lhecara,comoeleamim,depoisdeprevaricar,cumprindoumdeversagrado–jáqueémaislongootempoemquedevoagradaraosqueestãonoalémdoqueaosqueestãoaqui.É láque ficareiparasempre;e tu,seassim teparece,desonraaquiloqueparaosdeuseséhonroso.39

A lei divina é superior à lei positiva humana, e Antígona expressa cla-ramente a sua inflexibilidade perante a lei positiva, manifestando portantoumairredutibilidadeentreasduasleis.MasoconflitoqueseparaCreontedeAntígonaatingeasuamaior intensidadequandooprimeiro levantaaques-tãodaatuaçãodosdeusesemfacedaquelesqueprevaricam,eportanto,dosinjustos.Defacto,repugnaaCreontequeosdeusestenhamumajustiçaquefavoreçaosinjustos.Paraeleéinconcebívelumatalconceçãodejustiça:

Oujávisteosdeusesaprestarhonrariasaosmaus?Não!Maséquejáanteshaviahomensdestepaísque,tolerandomalasminhasordens,seagita-vamcontramim,meneandoacabeça.40

HáportantoumamesmanoçãodejustiçaqueépartilhadaporCreonteepelosamigosdeJob.Oprimeiroargumentoquedefineessasemelhançaconsisteno factodeque, tantoparaCreontecomoparaosamigosde Job(que,nocasododiscursodeElifaz,exemplificaessamesmaconceção),oinocenteéaquelequenãoé injustoe,por issonãosofrecastigo.Por issoafirmaElifaz: “Lembra-te: qual o inocentequepereceu?Ouquando foramdestruídosos justos?Tantoquantoeusaiba,osquepraticama iniquidadee osque semeiamo sofrimento tambémcolhemos seus frutos” (Jb 4,7-8).ParaElifazéimpossívelqueDeusbeneficieosinjustoseosinsensatos,assimcomoparaoreiCreonteétambémimpensávelqueosdeusesfavoreçamosinjustoseosquesãomaus.

Háumsegundoargumentoquefavoreceaidentificaçãodaideiadejus-tiçapartilhadaporCreonteeosamigosdeJob.Todoselestêmumacertaideiaautossuficientede justiça. ParaCreonte a suadecisão relativa aopoderdecastigarquemquerquesejaéjustificável,namedidaemqueeletemopoderdedecisãoquelhefoifacultadopeloexercíciodasleisedopoder.Creonteencarnaaleidacidade,ealeiestáaoserviçodacomunidadesocial.

39 SÓFOCLES–Antígona,vv.70-75.40 SÓFOCLES–Antígona,vv.287-288.

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Eu,pormim,entendoquetodoaqueleque,sendosupremosenhordeumEstado, senãomantiver firmenasmelhoresdecisões,maspormedomantiverasuabocacalada,éeserásempreummiserável.Equemquerque tenhamaisamoraoutremdoqueàsuaprópriapátria,poressenãotenhoamenorconsideração.Pelaminhaparte–saiba-oZeus–quesemprevigiatudo–nãomecalaria,seviessearuína,emvezdasalvação,aavançarsobreoscidadãos,nemteriaporamigopróprioumvarãoquequisessemalànossa terra. […]Taissãoas leiscomqueeucriareiaprosperidadedoEstado.41

Naverdade,Creonteéodetentoreodecisordaleieelatemdeserres-peitada.Aleidacidade(polis)nãoéparasertransgredidaequemquerqueofaçatorna-seinjusto.OseufilhoHémon,queiriadesposarAntígona,insurge--secontratalformadepensaredeagir,eporissolheresponde:

Meupai,dequantosbensosdeusesoutorgaramaoshomens,oracio-cínioéomaisexcelente.Nemeupoderianemsaberiaafirmarquenãotensrazãode falar assim.Contudo, tambémpodeexistir outra formadepensarcorreta. […]Não tenhas,pois, umsómodode ver: nemsóoque tudizesestácertoeo restonão.Porquequemjulgaqueéoúnicoquepensabem[frονeν mνο],ouquetempoderdodiscursoouinteligênciacomonenhumoutro,esse,quandopostoanu,vê-sequeéoco.Masnãoévergonhaqueumhomem,aindaquesejasábio,aprendamuitacoisa…42

Hémonexpõeoseuargumentodeformacautelosa,masbemurdida,ten-tandomostrarquea razãoqueacompanhaadecisãodeseupai,enquantogovernador da cidade, não é a única e exclusiva forma correta de pensar.Porém,paraCreonte,a leidapolis, feitapelodetentordopoder,nãopodeaceitaroutraformadepensarquenãoasua.

Senosvoltarmosparao livrode Job,algodesemelhanteencontramosquando Job responde aos seus amigos: “Job tomou a palavra e disse: soismesmogentemuito hábil, e convoscomorrerá a sabedoria.Mas eu, comovós,tambémtenhointeligênciaenãosoumenosdoquevós.Quemnãosabetudo isso?Eusouescarnecidopelosamigoscomooque invocaDeusparaqueelelheresponda,eeleszombamdojustoedoinocente”(Jb12,1-4).TodoestecapítuloéconstruídonabasedaideiadoconflitoqueJobtemcomDeus.EletemdireitoaquestionareaobterumarespostadapartedeDeus.Nesta

41 SÓFOCLES–Antígona,vv.175-180.42 SÓFOCLES–Antígona,vv.685-687,705-710.

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contendaressaltaasabedoriadivinaqueseelevaacimadaqueépropostapelosamigos.PorissodizaindaJob:“Poisvósnãosoissenãocharlatães,nãosoissenãomédicosdementiras”(Jb13,4).

OtraçoquemaisaproximaJobdeAntígonaéaqueleemqueambosafir-mamasuainocência,afirmezadassuasconvicçõeseasuapiedade.Defacto,Antígonareclamadizendo:

E agora, Polinices, por ter dado sepultura ao teu corpo, obtenho estarecompensa. E contudo, eu soube honrar-te [tmηsa], aos olhos dos quepensambem[rονοsiν eu].Poisnemqueeufosseumamãecomfilhos,nemque tivesseummaridoqueapodrecessemorto,eu teriaempreendidoestatarefacontraopoderdacidade.Masematençãoaqueprincípio[tνο νmοu]équeeudigoisto?Sememorresseoesposo,outrohaveria,eteriaumfilhodeoutrohomem,sehouvesseperdidoum.Masestandopaiemãeocultos no Hades, não poderá germinar outro irmão. Por eu ter preferidohonrar-te,devidoaesteprincípio,équeeuaparecereiaosolhosdeCreontecomoculpadaeousada,ómeucaroirmão![…]Qualfoialeidivinaqueeutransgredi[pοaν parexelqοsa daimνwν dkην]?Porqueheideeu,aidemim,olharaindaparaosdeuses?Queminvocareiparamevaler,jáqueporatuarcompiedade,fiqueipossuídadeimpiedade[dussbeia]?Mas,seestapenaébelaaosolhosdosdeuses,sódepoisdeatermossofridopoderemosreconhecerqueerrámos;mas,sesãoosmeusinimigosqueerram,queelesnão soframmaioresmalesdoqueaquelesquemecausaram injustamente[kdkw].43

Atravésdaspalavrasdaheroína, vemosoargumentomaissignificativoque,segundoela, justificaasuaatitude.Nãose tratasimplesmentede res-peitarouhonraroslaçosdeconsanguinidadequealigamaoirmão,masdeesse‘respeito’estarsubordinadoaumprincípioqueselheapresentacomoumaconvicçãoreligiosaequeestáacimadela.Antígonacrêfirmemente,easua ‘piedade’(esbeia)aodeusouaosdeuses impede-adecumprira leiimpostaporCrente.Importamaisrespeitaraleidivinadoquealeipositiva,estabelecida porCreonte para a cidade. A sua interrogação final levanta esuscitaquestõesquantoàsconsequênciasdoseuatoperantea leipositivahumana,indagando-afaceaumaleidivina.Oseuclamoraproxima-sedocla-mordeJobquantoànecessidadequecadaumtemdeseinterrogarsobreosdesígniosdivinosqueoserhumanosuportanaterra.Há,defacto,umléxicoarespeitodajustiçaedojustoouinocente,queécomumaAntígonaeJob:

43 SÓFOCLES–Antígona,vv.900-915,920-925.

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justiça(dkη,dikaiο),sabedoria (rνηsi,sοfa)epiedade(esbeia,qeοsbeia).Ambososheróisargumentamsobreajustiçaeoserjustoouino-cente,numalinhamentoquearticulaváriosdestesconceitosquefazememer-giranaturezadeumajustiçaqueécolocadaemrelaçãoassimétricacomoserdivino.Nocapítulo27,5-6,Jobafirmadiantedosseusamigos:“Longedemimafirmarquevóssoisjustos.Atéaodiaemquemorrerdefendereiaminhainocência[akakiaν],mantereicomfirmezaaminharetidão[dikaiοsuνη]enãoaabandonarei”.

AjustiçaqueJobinsistentementereclama,quando,depoisdetersofridotantadesgraçaeaflição,seconfrontacomosentidodasuasituaçãonomundo,permanececomoumdosprincipaismotivosdo livro.A justiçaqueJobpro-clama e a inocência que tanto reclama diante daqueles que o acusam deterpecadooude ter feitomalnãosãonoções teóricasou intelectuais,masradicamnaexperiênciasentidaevividaporJob.Seatendermosbemaotextogrego,vemosquenasuamaioriaosvocábulosutilizadosparaexpressarema justiçasão,essencialmente,osadjetivos,as formasverbaisadjetivanteseaindaopróprioverbo.NocasodeAntígona,a justiçaobedeceaumprincí-piodeordemintelectualesentimentalqueacompanhaumaformacorretadepensaredeagir.Osvocábulosquesãomaisusadossãoossubstantivoseasformassubstantivadas,aindaqueocorramadjetivos,masemmenorescala.Quantoaovocábulodikaiοsνη, eleépraticamenteinexistenteaolongodetodoodrama.

Antígona não cede diante das infelicidades, e sobretudo, manifesta ocarácterimperativodoseuatoqueseimpõeporvontadeprópria,mastambémpelavontadenefastaprovenientedeumdestinofunesto.

Deigualmodo,Jobnãocedediantedasinfelicidadesedascatástrofesquelhesobrevieram.CertamentequeAntígonaéaltivaeinflexível.Creonteéinicialmentearroganteetodo-poderoso,porém,nofinaldodrama,cedeaosconselhosdeCorifeueaceitadarhonrasaPoliniceselibertarAntígona–masjáétardedemais,porqueAntígonapõetermoàvida.

NocasodeJob,osamigossãoporsuavezaltivose‘muitosabedores’,masdeumasabedoriaocaevã.Nofundo,elescolocam-senolugardeDeus,porqueseassumemcomoseusverdadeirosadvogados,quando,afinal,nãopossuem tal ‘lugar’ para se pronunciarem sobre os desígnios divinos. Porsua vez, aatitude inicialdeCreonte foi colocar-seno lugarda verdadedeumaleiqueeleimpôsàcidade,advogandoqueelaagradavaaosdeuses,namedidaemquea‘justiçalegítima’éaquelaquebeneficiaosbonsecastigaosmaus.Parece,portanto,quetambémCreontesepodecolocarnaperspe-tivadosamigosdeJob.Noentanto,amaiordiferençaentreAntígonaeolivrodeJob residenofactode,noprimeirocaso,aheroínamorrereoseudestino

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168 HUMANÍSTICA E TEOLOGIA

sertraçadodesdeomomentoqueescolhetransgrediraleidapolisimpostaporCreonte,aopassoqueoheróidolivrobíbliconofinalérecompensadoeasuaantigaformadevidaérestaurada.AjustiçadequenosfalaolivrodeJobtraz-nosumaoutranovidadequeAntígonadeSófoclesnãonosdáequeconsistenaideiadeumajustiçasalvadoraemisericordiosadeumDeusqueatendeaohomem.

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