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Saúde

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  • artigo originaL / research report / artcuLo

    150 O MundO da Sade So Paulo: 2009;33(2):150-160.

    * Artigo derivado da Tese de Doutorado intitulada Tecendo a Teia do Cuidado Criana na Ateno Bsica de Sade: dos seus contornos ao encontro com a integralidade defendida ao Programa de Ps-Graduao em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC.

    ** Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Programa de Ps-Graduao da UFSC. Pesquisadora 1 A do CNPq, Orientadora da Tese. E-mail: [email protected]

    *** Enfermeira. Doutora em Enfermagem. Docente do Departamento de Enfermagem e do Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva da Universidade Federal do Maranho.

    Cuidando da criana na Ateno Bsica de Sade: atitudes dos profissionais da sade*

    Caring for children in Basic Health Care (BHC): attitudes of health professionalsEl cuidado de nios en el Cuidado Mdico Bsico (CMB):

    actitudes de los profesionales de salud

    Alacoque Lorenzini Erdmann**Francisca Georgina Macdo de Sousa***

    RESuMo: Na Ateno Sade da Criana a atual proposta dirige-se para o contexto da integralidade do cuidado revestindo-se como impor-tante estratgia para o reconhecimento da criana como sujeito de direitos. Resume-se, portanto, no desafio de possibilitar criana crescer e desenvolver-se com todo o seu potencial. A partir desta perspectiva questionou-se: Que significados os profissionais atribuem s atitudes necessrias para cuidar da criana na ABS? Foi definido como objetivo compreender o cuidado a partir dos significados que profissionais atri-buem s atitudes que tm assumido para cuidar da criana na ABS. Utilizou-se da Grounded Theory como recurso metodolgico para a coleta e anlise dos dados. Gestores, enfermeiros, mdicos do PSF e mes de crianas em um total de 29 foram os sujeitos do estudo organizados a partir da amostragem terica em cinco grupos amostrais. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semi-estruturadas realizadas em encontros individuais com os participantes. Apresenta-se como resultado a categoria Incorporando Atitudes Mediadoras para Cuidar da Criana delimitada pelas subcategorias: Lidando com a Dimenso Subjetiva, Valorizando a Escuta e o Dilogo, Construindo Laos de Confiana, Estabelecendo Vnculo com a Famlia e a Criana, Responsabilizando-se pelo Outro, Exercendo Alteridade, Utilizando a Criatividade no Cuidado. uma categoria que se caracteriza pela forma como os profissionais se relacionam com os outros e com o contexto, pelos valores nos quais acreditam e pela capacidade de articular conhecimento, sensibilidade e criatividade. Configurando-se como dimenso ampliada do cuidado e das necessidades da criana.

    PAlAvRAS-CHAvE: Sade da criana. Ateno primria sade. Atitude do pessoal de sade.ABStRACt: The perspective for Children Health Care is currently aimed at the context of completeness of care as an important strategy for the recognition of children as subjects having rights. It is therefore summed up as a challenge to make children grow and to develop in all with their potential. From this perspective, we asked: What meanings do professionals assign to the attitudes necessary for children care in Basic Health Care? The objective was understanding care from the meanings professionals assign to the attitudes they have when they care for children in BHC. We used the Grounded Theory as a methodological resource for collecting and analyzing data. Managers, nurses, doctors of BHC and mothers of children, in a total of 29 subjects, were research subjects, organized for the study, from the theoretical sampling, in five groups. Data were collected by means of semi-structured interviews carried through in individual meetings with the participants. As a result, we obtained the category Incorporating Mediating Attitudes To Care for Children, delimited by the subcategories: Dealing with the Subjective Dimension, Valuing Listening and Dialog, Constructing Reliance Bonds, Establishing Bonds with the Family and Children, Being Responsible for the Other, Practicing Alterity, Using Creativity in Care. It is a category characterized by the way professionals relate to others and with the context, by the values in which they believe and the capacity to articulate knowledge, sensitivity and creativity, configured as an extended dimension of care and childrens necessities.

    KEywoRdS: Child health (public health). Primary health care. Attitude of health personnel.RESuMEn: La perspectiva del cuidado mdico de los nios actualmente se dirige al contexto del cuidado integral como estrategia importante para el reconocimiento de los nios como sujetos de derechos. Eso se traduce en un desafo para hacer que los nios crezcan y de desarrollen en todo su potencial. De esta perspectiva, preguntamos: Qu significados los profesionales asignan a las actitudes necesarias para el cuidado de los nios en el cuidado mdico bsico? El objetivo fue comprender el cuidado a partir de los significados que los profesionales asignan a las actitudes que tienen cuando cuidan de los nios en el CMB. Utilizamos la Grounded Theory como recurso metodolgico para recoger y analizar datos. Los encargados, las enfermeras, los doctores del CMB y las madres de nios, en un total de 29 sujetos, fueran los sujetos de investigacin, organizados para el estudio, segn los principios tericos, en cinco grupos. Los datos fueron recogidos por medio de entrevistas semiestructuradas ejecutadas en reuniones individuales con los participantes. Como resultados, se obtuvo la categora Incorporacin de actitudes de mediacin respecto al cuidado para los nios, delimitada por las subcategoras: Se Ocupar de la dimensin subjetiva, Valorar el escuchar y el dilogo, Cons-truye relaciones de confianza, Establecer relaciones con la familia y los nios, Ser responsable del otro, Practicar la alteridad, Usar creatividad en el cuidado. Es una categora caracterizada por la manera de los profesionales se relacionaren con los otros y con el contexto, por los valores en los cuales creen y la capacidad de articular conocimiento, sensibilidad y creatividad, configurados como dimensin extendida del cuidado y de las necesidades de los nios.

    PAlABRAS llAvE: Salud del nio. Atencin primaria de salud. Actitud del Personal de Salud.

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    Contextualizando o cuidado criana na Ateno Bsica de Sade: algumas consideraes

    No sistema de sade brasilei-ro, a Poltica de Ateno Criana sempre esteve interligada sade materna, definida como poltica de Sade Materno-Infantil. A percep-o mais difundida da criana como ser em permanente desenvolvi-mento foi resultado de um longo processo que envolveu transforma-es na organizao social, desde o ponto de vista da esfera privada das famlias, alcanando as pol-ticas pblicas, que permitiram a adoo de prticas e condutas para esse processo de mudanas. Essas prticas referiram-se assistncia, sade e educao, ao validarem, como opo ao enfrentamento da questo social da criana, a adoo de um carter universal, obrigat-rio e de responsabilidade do Estado com a populao infantil. A aten-o sade da criana representa, para Samico et al, um campo prio-ritrio dentro dos cuidados sade da populao. Nesse contexto, as autoras enfatizam que os cuidados bsicos em sade apresentam rele-vncia como possibilidade para o enfrentamento dos problemas de morbidade, mortalidade e quali-dade de vida da populao infantil.

    Na dcada de 80, em uma ao coordenada entre o governo fede-ral, as secretarias estaduais e mu-nicipais de Sade e o Ministrio da Sade, foi elaborado o Programa de Ateno Integral a Sade da Criana (PAISC), por meio de cinco aes bsicas: Aleitamento Mater-no e Orientao Alimentar para o desmame, Imunizao e o Acom-panhamento do Crescimento e do Desenvolvimento. Com esse pro-grama, o Ministrio da Sade (MS) marcou uma diretriz poltica para expanso e consolidao da rede

    de servios bsicos, utilizando a estratgia da assistncia integral. O acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento foi o eixo in-tegrador das prticas assistenciais criana por meio da sistematizao de retornos ao servio de sade4.

    Em 1986, ampliaram-se inves-timentos na sade para promover a organizao da ateno primria nos municpios brasileiros. Para tanto, o MS definiu o PACS e o PSF como potencializadores para a vigi-lncia da sade infantil, com desta-que para a disseminao do Carto da Criana, como instrumento do monitoramento do crescimento e do desenvolvimento. As polti-cas de sade, na rea da criana, a partir das dcadas de 80 e 90, de-senvolveram programas buscando oferecer atendimento mais quali-tativo e efetivo criana. Dentre eles, destacam-se o PAISC, o PSF, a Norma de Ateno Humanizada ao Recm-Nascido de Baixo Peso (Mtodo Canguru), o Projeto Aco-lhimento me e beb, o Programa de Incentivo ao Aleitamento Ma-terno e mais recentemente a estra-tgia AIDPI.

    Apesar dos esforos e avanos alcanados, alguns indicadores de sade da criana, como, por exem-plo, mortalidade infantil, ainda apontam para problemas que pre-cisam de aes/prticas/interven-es na tentativa de revert-los e/ou melhor-los. Com o objetivo de modificar essa realidade, o Minist-rio da Sade3 lanou e divulgou, em julho de 2004, a Agenda de Com-promisso para a Sade Integral da Criana e Reduo da Mortalidade Infantil, definindo aes profissio-nais, tendo como foco a criana nos vrios espaos de ateno (unidade de sade, domiclio, creches, esco-las, hospitais). Nessa perspectiva, a criana poder ser beneficiada inte-gralmente por uma equipe interdis-ciplinar que compreenda todas as suas necessidades e direitos como

    indivduo5. marcada uma diretriz poltica para consolidao da rede de servios bsicos, utilizando para isso a estratgia da assistncia inte-gral por meio de atividades de baixa complexidade e de baixos custos.

    Atualmente, a Organizao Mundial de Sade OMS5, na pers-pectiva da Ateno Integral Sade da Criana, e para a organizao da assistncia, aponta como estratgia as Linhas de Cuidado. Coloca-se, assim, como possibilidade para a superao da desarticulao entre os diversos nveis de ateno em sade e a possibilidade para o cui-dado integral.

    Nessa perspectiva, a Ateno Integral Sade da Criana orga-niza-se em trs principais eixos, que compreendem aes que vo da anticoncepo concepo, ateno ao parto e ao puerprio, passando pelos cuidados com o recm-nascido (acompanhamento do crescimento e desenvolvimen-to, triagem neonatal, aleitamento materno, doenas prevalentes da infncia e sade coletiva em ins-tituies de educao infantil). As linhas estratgicas de interveno da Ateno Sade da Criana ex-plicitam o conceito de integralidade por meio da oferta de aes educa-tivas, promocionais, preventivas, de diagnstico e de recuperao da sade. , portanto, uma impor-tante contribuio, como poltica pblica inovadora e abrangente, tanto em suas concepes como nas aes propostas, em virtude de defender a integralidade com gran-de mobilizao social de agentes e de instituies diversas5. Desse mo-do, a Ateno Sade da Criana representa um marco, ao propor o atendimento sade infantil no contexto da integralidade do cuida-do, e a sua adoo mostra-se como um passo importante para o reco-nhecimento dos direitos da criana. So condies que convergem para a integralidade do cuidado, com-

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    preendendo o desenvolvimento das aes de preveno e assistn-cia a agravos como objetivos que, para alm da reduo da mortali-dade infantil, apontam para o com-promisso de se prover qualidade de vida para a criana. Resume-se, portanto, no desafio de possibilitar criana crescer e desenvolver-se com todo o seu potencial.

    Sob esta perspectiva questiona-se: Que significados os profissionais atribuem s atitudes necessrias para cuidar da criana na ABS?

    Objetiva-se, assim, compreen-der o cuidado a partir dos signifi-cados que profissionais atribuem s atitudes que tm assumido para cuidar da criana na ABS.

    Para responder ao questiona-mento e objetivo do estudo, selecio-namos os pressupostos da pesquisa qualitativa e da Grounded Theory ou Teoria Fundamentada nos Dados (TFD) como caminho metodol-gico. Compreende-se que a TFD um mtodo de anlise qualitativa de dados, particularmente sensvel a contextos e capaz de permitir a compreenso de situaes ou fe-nmenos sociais. A TFD baseia-se na premissa da compreenso do fenmeno social, desenvolvida em ntima relao com os dados, sendo o prprio pesquisador um instrumento para o desenvolvi-mento do trabalho terico6. A TFD caracteriza-se como um processo de anlise comparativa constante, em que o investigador, ao comparar incidente com incidente nos dados, estabelece categorias conceituais que servem para compreender o evento estudado6,7,8,9,10,11. As etapas ou o processo de anlise na TDF desenvolvem-se a partir da codifi-cao aberta, axial e seletiva, tendo como recursos para apoiar a anlise os diagramas e memorandos.

    A coleta de dados foi iniciada aps encaminhamento e obedi-ncia a todos os aparatos ticos e

    institucionais que envolvem a pes-quisa com seres humanos. Nesse sentido, o projeto de pesquisa foi encaminhado ao Comit de tica do HU-UFMA e aprovado sob o re-gistro no CEP de nmero 254/06 e processo n. 33104-850/2006. A coleta dos dados foi posterior aos esclarecimentos sobre os objetivos do estudo pela pesquisadora, e da leitura e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido por todos os participantes.

    A pesquisa foi desenvolvida no municpio de So Lus, capital do Estado do Maranho, envolvendo profissionais da Ateno Bsica de Sade, os quais desenvolviam su-as atividades no Programa Sade da Famlia (PSF), gestores munici-pais e estaduais e mes de crianas atendidas pelo PSF. De acordo com as caractersticas metodolgicas da TFD, no h definio prvia do nmero de sujeitos. O processo de coleta e anlise dos dados foi guia-do pela amostragem terica, que consistiu em decidir quais dados coletar e onde encontr-los. Sig-nificou escolher locais e pessoas, o que nos permitiu desenvolver os conceitos na proporo que estes iam sendo construdos. Dessa ma-neira, a amostragem consolidou-se a partir da combinao de conceitos aliados sensibilidade da investiga-dora para perceber as lacunas que ainda necessitavam ser considera-das para compreenso do objeto in-vestigado. Participaram do estudo 29 sujeitos, organizados em cinco grupos amostrais. Para manter o critrio tico do sigilo, foram atri-budos codinomes aos participantes do estudo. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semi-estru-turadas, realizadas em encontros individuais com os participantes. As entrevistas foram gravadas em meio digital e transcritas pela pr-pria investigadora logo aps terem sido realizadas.

    Apresentando a categoria: Incorporando atitudes Mediadoras para Cuidar da Criana

    A compreenso do cuidado criana na ABS foi construda a partir das experincias vivenciadas pelos profissionais, gestores e mes e dos significados por eles atribu-dos s atitudes necessrias para cuidar da criana na perspectiva da integralidade. As vivncias e sig-nificados permitiram desenvolver conceitos em categorias e subca-tegorias dinamicamente interliga-das. Para este artigo, foi realizado um recorte a partir dos resultados da Tese de Doutoramento do Pro-grama de Ps-Graduao em En-fermagem da Universidade Federal de Santa Catarina. Portanto, ser apresentada e discutida uma nica categoria (conceito) - Incorporando Atitudes Mediadoras para Cuidar da Criana - do total de seis constru-das na referida investigao. In-corporando Atitudes Mediadoras para Cuidar da Criana um conceito que envolve domnio do aparato tcnico-cientfico associado quilo que Merhy12 denomina de tecno-logias leves construdas nos modos relacionais de agir na produo dos atos de sade, nas relaes entre o profissional, a criana, a famlia e a comunidade, entre profissional, equipe e profissional, equipe e ins-tituio. Significa aliar ao processo de cuidar o conhecimento cient-fico e tecnolgico e o conhecimen-to de natureza humanstica e social, capazes de desenvolver projetos teraputicos singulares, o que per-mite afirmar que o cuidar envolve o contato com o outro e as relaes entre as pessoas.

    Incorporando Atitudes Mediadoras para Cuidar da Criana foi delimitada pelas seguintes subcategorias: Li-dando com a Dimenso Subjetiva, Valorizando a Escuta e o Dilogo,

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    Construindo Laos de Confiana, Estabelecendo Vnculo com a Fa-mlia e a Criana, Responsabili-zando-se pelo Outro, Exercendo Alteridade, Utilizando a Criativi-dade no Cuidado. uma categoria que se caracteriza pela forma como os profissionais se relacionam com os outros e com o contexto, pelos valores nos quais acreditam e pela capacidade de articular conheci-mento, sensibilidade e criatividade. Configura-se como dimenso am-pliada do cuidado e das necessida-des da criana; significa lidar com o saber, com a ao instrumental e as ferramentas leves no cuidado em sade reconhecendo que, s vezes, uma e outra prevalecem de-pendendo das necessidades que se colocam no cuidar; colocar-se do lado do outro Lidando com a dimen-so subjetiva no cuidado criana. Essa dimenso subjetiva do cuida-do caracteriza-se pela produo de novos saberes que se define pela arte de exercitar a sensibilidade e a valorizao da condio huma-na. Lidando com a dimenso subjetiva no cuidado criana reconhecer que o cuidado subjetivo, intuiti-vo, sensvel e se materializa no es-pao das relaes entre os sujeitos envolvidos13. Os participantes da investigao falaram que: Cuidar da criana exige que

    ns, enfermeiros, mdicos, au-xiliares, os agentes de sade e todos os outros (...) pensar em um cuidado mais relacionado com as coisas mais subjetivas. (Clia).

    O cuidado criana a soma da capacidade, do conhecimento cientfico e mais ainda dos va-lores pessoais e de respeito com o ser humano. (...) uma coisa de amor, de sentimentos inter-nos, de respeito, de responsabi-lidade. (Claudia).

    Na medicina, quando era estu-dante, era comum aquele alu-no mais sensvel, gentil, essas

    coisas do pessoal, ter sua vida profissional definida como bom pediatra. Ento isso significa que para trabalhar com criana exige essas coisas, que s vezes pode no ser caractersticas de outras especialidades. (Darci).

    Lidando com a dimenso subjetiva deve orientar para ouvir, compre-ender e cuidar com sensibilidade, desdobrando o modo de fazer/agir/atuar/intervir na perspectiva de diminuir as relaes de domi-nao que, na maioria das vezes, se estabelecem entre profissionais, mes e famlias. colocar-se do la-do Valorizando a escuta e o dilogo. Os modos de encontro entre profissio-nal, criana e famlia, e a dimenso cuidadora e relacional determinam a escuta como atitude desejada e buscada tanto pelos profissionais como pelas mes investigadas: Quando estou com a me ou

    outro cuidador, com a criana, eu procuro saber ouvir... ouvir uma habilidade que deve ser trabalhada. Saber observar, es-tar atento para alm daquilo que visvel e pra isso eu preci-so observar a fala, os gestos, os aspectos da linguagem no ver-bal que muitas vezes so mais importantes do que aquilo que falado, que dito. (Camila).

    (...) sinto necessidade de fazer diferente associando ao meu conhecimento mdico outras coisas como o respeito pelo ou-tro, a escuta... sabe? um fazer diferente. Procurar estar mais atento quilo que os pacientes falam, principalmente quando criana. Prestar ateno ao que a me diz, (...) saber perguntar, porque ns trabalhamos com a intimidade das pessoas (...) e isso muito difcil. (Diana).

    O que mais me agrada chegar na sala do mdico e ele deixar eu falar o que meu filho sente e no ir chegando e ele ir logo

    passando o remdio. Porque tem mdico que vai logo pas-sando o remdio e no deixa a gente falar (...) fica assim de ca-bea baixa, no olha pra gente. Tem vez que eu acho que eles no escutam o que a gente diz. A gente fala uma coisa e eles no dizem nada. Eu gosto de falar tudo o que eu estou sen-tindo pra ele escutar, pra depois passar o remdio. (Emlia).

    (...) uma das prticas mais difcil ouvir, saber ouvir. Para mim tambm foi e continua sendo, mas tenho tentado, tenho me esforado. Hoje j sou capaz de no interromper uma conversa quando estou com a me para atender o celular, sou capaz de ficar mais ligada ali no que est minha frente. Isso no fcil, isso tem sido uma conquista diria, minuto a minuto, de 3 anos para c. (Claudia).

    (...) na consulta o doutor devia perguntar: e a como vai? E vo-c me como vai? Eu acho isso importante no ? s vezes o filho da gente t bem, mas a gente que me no. Tem dias que eu s cuido mesmo da ca-sa e dos filhos porque o jeito. Ento quando eles perguntam tambm da gente bom no ? Eles se interessam assim (...) saber como que a gente vai. (Eliana).

    Valorizando a escuta e o dilogo atributo que se coloca na mesma ordem das competncias tcnicas e representa manifestao de inte-resse do profissional capaz de esti-mular a narrativa materna das suas dificuldades e fortalezas no cuida-do criana. Pressupe atitude de interesse e de disponibilidade per-meado pelo olhar e pelo observar para ver o outro na sua singularida-de. Valorizando a escuta e o dilogo so atitudes que revelam a disposio de perceber, conhecer e compreen-

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    der o outro nas suas necessidades e sofrimentos, nas suas alegrias, nas suas fragilidades, mas, sobretudo naquilo que ele traz de melhor e de maior, que so as fortalezas enten-didas aqui como habilidades para o cuidar e para o cuidado da criana. Esse aspecto reveste-se como fun-damental no cuidado, pois com-preendemos que cuidar da criana sempre uma ao cooperativa e articulada entre profissional, me e famlia. Valorizando a escuta e o dilogo pode ser traduzido como atitude de respeito enquanto que o contrrio representa atitude de arrogncia, ignor-la, no dese-jar conhec-la, desconsider-la14. A ausncia do olhar, da escuta e do dilogo implica a qualidade do en-contro e a continuidade do atendi-mento como verbalizado por uma das mes: (...) um mdico ou uma en-

    fermeira tratando a gente bem toda vez que a gente precisar a primeira pessoa que a gente pensa em procurar so essas pessoas, no ? Mas se ele tra-ta mal ou no fala direito, no presta ateno o que a gente fala no d pra voltar n, a gen-te vai procurar outro. Eu sou assim... (Emlia).

    Ainda sob esta perspectiva, queremos destacar que a lgica do modelo biomdico dirige a escuta para o biolgico, para a queixa, para a doena, excluindo a escuta, o dilogo, a palavra. Excluindo a palavra, estamos excluindo a con-dio de sujeito, de humano e de singular. Baptista15 chama ateno para o que ele denomina de escu-ta surda. Atribui essa nomeao s prticas que ouvem sem escutar, que produz uma enfermagem da evidncia, uma medicina da evi-dncia que pouco consegue captar das singularidades que permeiam o humano. uma escuta simplificada que se reduz a uma tcnica de co-letar dados. A escuta surda se situa

    no campo da escuta moral, pres-critora de modos de vida, julgado-ra de prticas16. Pela escuta surda degrada-se a condio humana e beira a humilhao e o desrespeito pelo outro. As mes revelaram essa escuta quando disseram: (...) s vezes a gente fala e eles

    viram pro outro lado, faz de conta que a gente no t falan-do ou quando responde do umas respostas assim sabe... como se estivesse zangada. Eu queria que eles dessem mais ateno. Ento aquilo doa por-que ele no dava resposta que eu queria (...) no custa nada. (Emlia).

    (...) tem uns que escutam a gen-te, outros no querem nem sa-ber. Nem todos compreendem no ? Elas no param pra es-cutar a gente. A gente pergunta e elas nem respondem. Eu acho que isso importante porque quando uma me ou qualquer pessoa vem aqui porque pre-cisa e a gente escuta o que elas dizem pra gente. Ento quando a pessoa no responde direito eu acho que mau atendimen-to. (Eliana)

    Eu agora j sei antes de con-sultar eu pergunto logo como o doutor. Eu j tenho medo (...) alguns, nem olha na cara da gente e vai logo dizendo que se o menino estiver com febre, tem que levar no sei pra onde. A ele nem olhou pro menino, no olhou a garganta nem na-da e passou um remdio. A eu no comprei o remdio, sei l se o remdio era bom, no ? Nem olhou na minha cara, ta-va zangado, brigando com todo mundo. (Elisabete).

    Guizardi, Pinheiro17 alertam que os usurios do sistema de sade, ao analisarem o tema da in-tegralidade da ateno no o abor-dam pelas condies estruturais

    do sistema de sade ou do acesso a tecnologias e medicamentos, muito embora introduzam estas questes. Pelo contrrio, os usu-rrios revelam indignao acerca da forma como se efetiva a rela-o. Nessa medida, o cuidado s possvel se h condies concretas para o dilogo, para a escuta, para o vnculo e para a solidariedade. O cuidado existe na medida em que supe uma ao mtua, marcada no apenas pelo estabelecimento, mas pela manuteno da relao social17. Portanto, as aes e prti-cas em sade so determinadas pe-la especificidade das relaes, que se configuram como uma relao entre sujeitos e ampliam as vises sobre sade, incluindo a percepo da integralidade do cuidado. Valori-zando a escuta e o dilogo , portanto, atitude interativa e uma dimenso da integralidade do cuidado. Ain-da que de maneira insuficiente, muito j tem sido feito. Nesse sen-tido, podemos encontrar prticas que valorizam o papel do outro (criana e famlia) no processo de cuidar por meio de uma relao dialgica e construtiva. Nada mais natural, visto que o cuidado se d por relaes sociais. Pelo dilogo, profissionais da sade se desfazem do seu saber tcnico e se tornam conjuntamente responsveis pelo processo sade-doena e, mais es-pecificamente, pelo crescimento e desenvolvimento da criana. Com isso todos crescem: profissionais, famlia, crianas, instituies e ser-vios de sade. Em uma relao dialgica, o dilogo desempenha um papel preponderante como pode ser evidenciado nas falas: O fato no se resume em es-

    cutar por escutar, mas escutar prestando ateno. O resultado a satisfao da famlia, que se sente valorizada e encontra no profissional aquilo que eles esto procurando, que s vezes no remdio, mas apoio. (Camila).

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    Me colocando do lado da me e da famlia, me coloco como profissional, mas um profissio-nal que permite que a me fale das suas dificuldades. Quando eu digo me colocar do lado sa-ber ouvir sem recriminar, sem culpar ningum; saber apoiar naquilo que a me ou a famlia ainda no capaz de fazer sozi-nha. (Diana).

    No nosso trabalho dirio, o es-foro para conciliar o nosso conhecimento de ser mdica, enfermeira, dentista... com as necessidades da criana e da fa-mlia. Isso s acontece, na mi-nha opinio, se somos capazes de uma conversa aberta, sem julgamentos, no dilogo mes-mo. O que eu percebo que quando isso acontece h um crescimento tanto do conheci-mento do problema ou da ne-cessidade como do meu prprio conhecimento. Assim eu me conheo mais quando sou ca-paz de abrir para o que a me e a famlia traz para a minha sala (...) (Denise).

    Valorizando a escuta e o dilogo situa-se no campo da arte pela in-terseco do conhecimento com habilidades de saber-ser e saber colocar-se em uma situao sin-gular; valor que se inscreve na verdadeira perspectiva de cuidar. Parece envolver um tom de voz, um ouvido atento; tornar calo-roso o cuidado18; revela um olhar e um escutar dirigido ao outro. dar sentido ao encontro pelo mo-vimento que convida os profissio-nais a dialogar Construindo laos de confiana. dimenso que necessita da conjugao de pelo menos oito elementos: o calor (que inclui a pa-lavra, o sorriso e o olhar adequado e personalizado); a escuta (que per-mite acolher a palavra do outro); a disponibilidade (que revela uma ateno particular e permite escu-

    tar serenamente)18; a simplicidade (comportamento e linguagem aces-svel); a humildade (que revela os limites profissionais sem a preten-so do tudo); a autenticidade (ser autntico, verdadeiro); o humor (para tornar leve o momento do encontro sem a rispidez que carac-teriza o conhecimento tcnico); e a compaixo (que permite partilhar o sofrimento do outro)18. Construindo laos de confiana tem relao com os detalhes, com as pequenas coisas, com o encontro do tcnico, da arte e da subjetividade: Quando o PSF comeou aqui,

    eu assim, no gostava muito de trazer meus filhos aqui. Porque eu no conhecia os mdicos, as enfermeiras, as pessoas. Depois eu fui conhecendo, fui vendo as coisas (...). No comeo eu ficava desconfiada, no gostava mui-to. Agora no, eu confio neles, confio mesmo, sei que quando eles falam uma coisa porque certo mesmo. (Elisabete).

    No cuidado criana ns preci-samos estabelecer uma relao de confiana com as mes. Isso no muito fcil, demorado, mas depois que conseguimos tudo fica mais fcil. Pra isso lanamos mo de uma srie de habilidades, ser criativo, saber valorizar um bom dia, um sorri-so, um cumprimento. (Carla).

    Construindo laos de confiana per-meia uma relao capaz de produ-zir vnculo: Mas se eu pudesse eu s marca-

    va pra ela (enfermeira). Ela con-versa com a gente, brinca com a gente, eu gosto mais. Eu no tenho vergonha de falar nada pra ela. Eu acho que ela sabe de tudo da minha vida. E quando ela me passa umas rasteiras eu nem fico zangada. Porque ela diz assim com jeito. Eu sei que ela gosta da gente. Ah eu no sei direito, mas tem coisa da gen-

    te que a gente no diz pra todo mundo no ? Eu digo pra ela. (Elisa).

    Portanto, Estabelecendo vnculo com a famlia e a criana processo construdo nos encontros entre pro-fissional, me, famlia e comunida-de. O estabelecimento do vnculo proposta de destaque do Ministrio da Sade19 para o PSF, que o elege como ponto central e estratgico do trabalho no PSF. pelo vnculo que so construdos laos de com-promisso e de corresponsabilidades entre os profissionais de sade e a comunidade. Desse modo, o vncu-lo consequn cia de uma relao mais prxima da comunidade com a equipe de sade. Contribuem, para isso, as visitas domiciliares e os modos de interao nos atendi-mentos individuais e de equipe. As falas demonstram que, pelo vncu-lo, os profissionais orientam a in-terveno e, como consequncia, as mes sentem-se melhor cuida-das e apoiadas: Essas possibilidades que o PSF

    oferece de manter a equipe mais prxima da comunidade, das fa-mlias fortalece o vnculo. Isso, na minha opinio, se traduz em duas situaes: a primeira que facilita a interveno da equi-pe e ajuda, orienta a conduta do profissional, por outro lado aumenta a responsabilidade da equipe. Somos mais exigidos. Tem tambm a confiana. As famlias passam a confiar mais na equipe. (Claudia).

    Aqui a gente sabe que pode con-tar com o pessoal da unidade; eles esto aqui perto da gente. Hoje eu venho muito mais no mdico do que uns anos atrs. Eu vejo eles sempre andando por aqui, vindo na casa das pes-soas, conversando. A gente se sente assim valorizada. A gente conhece eles e eles conhecem a gente tambm. A gente sente

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    que diferente do hospital. Pa-rece que eles gostam da gente. (Eliana).

    O PSF favorece esse jeito de ficarmos mais perto, estreitar mais o vnculo com as famlias, com as crianas. (...) isso apro-xima ainda mais o profissional da me. Elas se sentem valo-rizadas, ficam felizes com essa aproximao. Isso importante para o cuidado porque aumen-ta a confiana da me no profis-sional. Elas passam a conhecer tambm a nossa famlia. Elas perguntam pelas minhas filhas, pela minha me. Tem uma coi-sa de afeto e de carinho. Essa aproximao traz essa coisa. (Darci).

    Estabelecendo vnculo com a fam-lia e a criana , portanto, circulao de afetos e responsabilidades. Pelo vnculo, a equipe acolhe as deman-das trazidas tanto pelas mes como pelas crianas, e as mes, apoiadas, so capazes de superar condies adversas, de mudar o contexto em que se situam e de descobrir no-vas maneiras de enfrentar velhos problemas20. Cabe destacar que, na perspectiva da integralidade do cuidado, a construo do vncu-lo relaciona-se com a capacidade da equipe e dos profissionais se responsabilizarem pela sade das crianas e famlias. Nas falas dos profissionais investigados, o fato da criana ser atendida pelo mesmo profissional um fator que favore-ce o vnculo e a responsabilizao pelo cuidado: Eu acho que medida que a

    gente vai apoiando, se apro-ximando das famlias, das crianas, aumenta a nossa res-ponsabilidade. E o fato delas serem atendidas pelo mesmo profissional ou por profissionais da mesma equipe muito bom, porque facilita essa aproxima-o, o vnculo fica mais forte,

    e a gente fica mais segura tam-bm para intervir. (Darci).

    Responsabilizando-se pelo outro resulta na condio da equipe e/ou do profissional ser referncia para as mes, abrindo um leque de possibilidades para um cuidado mais abrangente. A fala a seguir representativa dessa condio: Outro dia eu trouxe meu filho

    aqui no posto porque ele estava com umas feridinhas na cabea. Eu trouxe mesmo porque era o jeito, porque a consulta j es-tava marcada e eu no queria perder a vez. Eu estava com fe-bre, calafrio mesmo, dor de gar-ganta, sem coragem para nada, nem para falar. A quando eu cheguei, a doutora (...) exa-minou a cabea dele, fez umas perguntas e tal. A eu acho que ela notou que eu estava, assim, calada e ela perguntou o que eu estava sentindo, se tinha al-guma coisa. Eu disse o que eu estava sentindo, ento ela me examinou, passou logo um an-tibitico, disse que eu tava com uma infeco mesmo. Eu fiquei contente pelo jeito dela, porque eu no tinha nem marcado con-sulta, eu s tinha marcado mes-mo para o meu filho. Como ela me conhece, ela viu logo que eu no estava bem. Se eu tivesse ido para outro hospital era di-ferente. (Emlia).

    Responsabilizando-se pelo outro tem aqui o sentido de interesse, que se expressa pelo vnculo e pela ateno. So atitudes que geram satisfao e valorizao da con-dio de estar atento ao outro. produto das relaes estabelecidas por meio da escuta, do dilogo e do vnculo. Tem tambm o sentido de compromisso com a comunidade, com as famlias, sendo resolutivo, cumprindo os horrios e no fal-tando ao trabalho: (...) coisa que fao tentar re-

    solver os problemas das crian-

    as que chegam aqui, pois sei o quanto difcil para as mes esse vai-e-vem de um lugar para o outro. A outra coisa que considero importante a res-ponsabilidade com a comu-nidade, ento fao tudo para no faltar, atendo o mximo de crianas possveis, procuro no deixar voltar ningum sem atendimento. (Diogo).

    Ns temos aqui na equipe o compromisso da equipe de tentar resolver os problemas da criana aqui mesmo na unida-de. Eu saio de sala em sala para tentar resolver e digo brincan-do: j cheguei com a minha tigela. uma coisa nossa. (Ca-mila).

    A integralidade do cuidado se afirma na tarefa do profissional marcar encontro com o outro em sua diferena, Exercitando Alterida-de. Significa ir ao encontro do ou-tro. Tem a ver com a presena do outro, mas tambm em reconhecer a diferena do outro, pois a dife-rena que faz com que cada pessoa seja singular18. Nas entrelinhas das falas possvel perceber que: O que diferencia nosso trabalho,

    o trabalho na sade, de outros trabalhos a necessidade do en-contro com o outro, de um en-contro apesar das pessoas serem diferentes, h encontro. (...) as diferenas faz compreender que precisamos nos posicionar diferente com cada me, com cada criana, porque as mes so diferentes, as crianas so diferentes. E eu digo tambm para as mes que cada um de ns profissionais diferente. E que natural que elas no en-contrem em um de ns tudo que elas desejam. Ento as-sim, eu dou um pouquinho, a enfermeira outro tanto, o agen-te outro e assim ns vamos nos entendendo. (Brbara).

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    Para cuidar importante reco-nhecer que somos diferentes, que temos caractersticas que so nossas, individuais. As mes tambm so diferentes, tm ne-cessidades que, embora sejam semelhantes, se diferenciam. O cuidado essa capacidade que devemos ter de lidar com as di-ferenas. (Bianca).

    Exercitando Alteridade no pro-cesso de cuidado reconhecer que haver sempre a relao consenso/conflito que se alterna dinamica-mente e, portanto, as diferenas, muitas vezes, geradoras de con-flitos no devem ser execradas, pois como parte das relaes e da expresso das diferenas haver sempre a possibilidade de convvio com o heterogneo21.

    Nessa relao comum exigir prticas inovadoras para atender s demandas do processo sade-doen-a da criana. O dilogo, o encontro com o outro e com suas necessida-des mobiliza a criatividade como instrumento de interlocuo que aproxima conhecimentos e afasta a racionalidade tcnica. Utilizando a criatividade no cuidado a expresso de um agir mais livre e mais leve construdo na dinmica de saberes e na preocupao do melhor inter-vir. A criatividade capacidade de seres humanos; processo de busca de solues para uma determinada questo. produo de ideias em qualidade, originalidade, flexibi-lidade e sensibilidade; mtodo e recurso nas prticas de cuidado criana: A todo o momento o nosso tra-

    balho exige que sejamos cria-tivos. Criativos para lidar com as limitaes de recursos, para lidar com os aspectos da edu-cao em sade, para ensinar. Procuramos desenvolver isso aqui na equipe. Quando preci-samos desenvolver algum tema optamos por fazer dinmicas com as mes, com as crianas,

    com os agentes de sade. Temos alguma coisa de jogo, de mate-rial para trabalhar, por exem-plo, com os hbitos de higiene, com escovao. Temos parceria com a escola, e l ns trabalha-mos com grupos de teatro, com peas, sempre abordando um aspecto da sade. (Clia).

    Um aspecto importante no cui-dado criana a criatividade. Eu percebo que quando utili-zamos uma estratgia criativa para trabalhar com as mes e com as crianas elas saem da-qui mais satisfeitas e tudo pare-ce mais leve. A gente deixa de lado a autoridade, a ordem, pra brincar, brincar educando. (Ca-mila).

    Utilizando a criatividade no cuidado predispe a ao, a mani-festao de potencialidades, asso-cia sensibilidade ao conhecimento e desperta formas de cuidar para alm dos muros da racionalidade tcnica biologicista.

    Construindo reflexes

    O direito sade se concretiza na quantidade de recursos e na sua adequada aplicao, mas, sobretu-do no gerenciamento das questes subjetivas. Esse fato se dirige para as aes, prticas e atitudes dos profis-sionais na dimenso relacional que tem como sentido o acolher, o res-peitar e o tratamento digno tanto criana com a sua famlia. Assim, ao avaliarem o modo de ser cuida-do, tendem a considerar as atitudes de compreenso, de acolhimento e de comunicao dos profissio-nais, alm do desempenho clnico, no sentido de que o problema de sade seja solucionado. H nesse processo dois elementos-chave: a efetividade clnica e a efetividade das relaes interpessoais. Aspectos como humanismo, sensibilidade e receptividade so essenciais aos

    profissionais para uma boa relao interpessoal22,23,24.

    A resposta ao sofrimento hu-mano indica algo para alm do va-lor da eficcia de um saber sobre as doenas. A aplicao de um saber sobre uma determinada condio de agravo estritamente no campo biolgico no suficiente apesar de importante. Nesse sentido, a inte-gralidade, como princpio organiza-dor das prticas de sade, objetiva no fomentar a dissociao sade/doena, doente/doena e criana/famlia, em que o conhecimento e os saberes que sustentam a com-petncia tcnica estejam aliados dimenso cuidadora e apoiada por valores humanos e ticos. Cuidar, para Watson25,requer elevada con-siderao e reverncia pela pessoa e pela vida humana, colo cando o cuidado no campo das compe-tncias. Por competncias, Alar-co, Rua26 compreendem como a capacidade de agir em ao o que implica (...) resposta articulada en-tre: o que fazer, a quem, por que, e para qu. (...). Implica conhecer os limites do seu saber, isto , seu no-saber. Especificamente para os en-fermeiros, os autores referem que a competncia profissional envolve trs sub-competncias: competn-cia tcnica, cognitiva e a comuni-cacional. A cognitiva relaciona-se capacidade do enfermeiro em identificar necessidades, analisar e interpretar as informaes recolhi-das, planejar atividades e avaliar. A competncia tcnica diz respeito capacidade do enfermeiro de reali-zar procedimentos corretamente e a destreza manual. A competncia comunicacional implica saber ou-vir, utilizar adequadamente os re-cursos comunicacionais, transmitir informaes corretas e pertinentes e estabelecer relao de ajuda. So competncias que do ao cuidado de enfermagem as suas especifi-cidades que se sustentam na con-fluncia da cincia e da arte. Nesse

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    sentido, Coelho, Fonseca27, refletin-do sobre o cuidado na relao dial-tica, o conceitua como produto da articulao entre conhecimento, habilidades manuais, intuio, ex-perincia, presena solidria e ajuda que se constitui em uma experin-cia significativa para os envolvidos. A integralidade do cuidado no somente escuta, dilogo e relaes afetivas, mas esses so instrumen-tos que potencializam e qualificam o cuidar e o cuidado. A integralida-de do cuidado atitude, e como tal um modo de ser que no se realiza fora do contexto multidimensional da criana, da famlia, do processo de crescer, desenvolver e adoecer e das subjetividades. interativo28, condio que exige repensar e mo-dificar o processo de cuidar, isto , a forma como se cuida e como se d o processo interativo entre quem cuida e quem cuidado29. A integralidade do cuidado, portan-to, fortemente marcada pela di-menso relacional. Neves-Arruda et al30 e Gonzaga, Neves-Arruda31, investigando o cuidado peditrico em contexto hospitalar, conclu-ram que cuidar da criana aliar cuidado emocional e psicolgico realizao de procedimentos tc-nicos. associar afetos e emoes. Gomes32 discorre sobre cuidar com afetividade como atitude constante de interesse e compromisso com o outro. Cuidar com afetividade en-volve o estar presente que no sig-nifica simplesmente presena fsica ou a realizao mecnica de tarefas. Estar presente, significa estar ali com o outro atentamente. Implica valorizar o outro e respeitar diver-sidades. Faz, ainda, distino entre procedimento tcnico e o verda-deiro cuidado. O primeiro atende ao bem-estar, o segundo vai muito alm, pois utiliza de subjetividades para alcanar o outro como pessoa plena.

    O cuidado a face subjetiva do agir cuidador. Cuidado subjetivo,

    intuitivo, sensvel e se concretiza no espao das relaes entre os sujei-tos envolvidos13. a manifestao zelosa daquilo que foi desejado. fenmeno abstrato e concreto que pode ser demonstrado por meio de expresses, aes e sentidos dife-rentes33. O lidar com a dimenso subjetiva se concretiza no encontro com o outro, criana e famlia, com suas necessidades e com as habili-dades profissionais e pessoais para acolher com sensibilidade, aten-o, carinho, amor e dedicao. um modo de encontro porque faz necessrio atualizar dentro de ns capacidades para qualificar o encon-tro, a relao e os modos de cuidar. buscar singularizar o encontro em um verdadeiro encontro, superando os atendimentos despersonalizados, simplistas, indiferentes, carac-terizados por distanciamentos e silenciamentos. Portanto, as aes e prticas em sade da criana so determinadas pela especificida-de das relaes. Isso se configura como uma relao entre sujeitos e subjetividades que ampliam as vi-ses sobre a sade, sobre a criana e sua famlia, mas, sobretudo sobre os modos de cuidar e de cuidado. O cuidado , portanto, atitude in-terativa e uma dimenso da inte-gralidade permeada pela escuta e pelo dilogo. Estes so processos em que as subjetividades so pro-duzidas, em que h envolvimento entre as partes e um trabalho mais implicado com o outro. Para Pe-restrello34, o principal instrumento da clnica no so os olhos, mas os ouvidos no sentido de saber escu-tar. silenciar, que como instru-mento do cuidar, s vezes, mais eloquente do que a palavra34. O autor fala do saber ouvir e do po-der ouvir, e afirma que s se sabe ouvir quando se pode, isto , ouvi-mos quando somos capazes de nos ocupar verdadeiramente do outro.

    A partir das afirmaes, pode-mos apontar quatro caractersticas

    da escuta e do dilogo falar, saber falar, escutar e saber calar. Escutar no ouvir respostas a um inter-rogatrio, mas estar com o outro efetivamente; permitir calar-se para que o outro se manifeste como seu verdadeiro outro; uti-lizar linguagem simples, evitando expresses tcnicas; singularizar a escuta, no simplesmente co-letar informaes para esclarecer um diagnstico, um problema; estabelecer significados; uma questo de qualidade no momento em que assumimos que o cuidado tem a ver com ateno e designa estar atento18 a algum ou alguma coisa, uma ateno particular; o momento em que respeitar o in-tuitivo e o subjetivo a maior fer-ramenta do encontro. O contrrio desvaloriza a essncia do humano, enfraquece vnculos e diminui res-ponsabilidades. O vnculo com a criana e a famlia se concretiza na relao, que, para Hesbeen18, no qualquer relao; trata-se de uma relao social que se funda na acei-tao do outro como um legtimo outro na convivncia. Essa aceita-o constitui uma conduta de res-peito e de exerccio da alteridade. Exercer a alteridade reconhecer o outro como algum diferente do profissional e diferente de qual-quer outro, mesmo que diante de um mesmo agravo de sade. Exer-citando a alteridade, o profissional de sade poder orientar o melhor caminho para a relao: profissio-nal/cuidado/criana/famlia/sade. Assim, o cuidado caracteriza-se como fenmeno social que ocorre diante da aceitao do outro, em interaes envolventes e amplas. Se no houver interao no h linguagem, emoo. Se no hou-ver interao, emoo e linguagem, haver separao, pois somos ani-mais que vivemos a sensualidade do encontro personalizado com o outro, o que se evidencia em nossa queixa quando isso no ocorre35.

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    Concluses

    A recuperao da dimenso cuidadora e a capacidade de ofe-recer ateno integral sade da criana so desafios postos para to-dos os tipos de servios de sade. Para tanto necessrio desenvolver novas tecnologias de cuidado, am-pliar a capacidade de acolhimento dos servios de sade, ampliar a capacidade de escuta, de respon-sabilizao dos trabalhadores de sade e da sua capacidade de lidar com a dor e com o sofrimento e de trabalhar pela autonomia das pes-soas sob seu cuidado. Incorporando atitudes mediadoras para cuidar da criana se constitui, nesta investi-

    gao, estratgia para a superao do modelo biomdico e disciplinar da ateno em sade e pela busca de prticas cuidadoras na ateno criana em um espao de relaes e interaes profissionais, com a famlia e com a comunidade. A re-cuperao da dimenso cuidadora e a capacidade de oferecer ateno integral sade da criana repre-sentam desafios postos para o cui-dado em sade e para o cuidado criana. Desse modo, as atitudes de cuidado no diz respeito so-mente s tecnologias e saberes li-mitados ao processo sade-doena. Amplia-se na perspectiva de uma dinmica construo de vnculos e de responsabilizao em um ver-

    dadeiro encontro de terreno frtil para exercitar o falar, o ouvir, o comunicar-se, o criar e o agir. Cabe lembrar que o Programa de Aten-o Criana deve ser capaz de atender s necessidades globais da sade infantil em que a perspectiva da integralidade concretiza-se por um processo horizontal e dialgico, acompanhado de uma compreen-so e abordagem criana como ser em crescimento e desenvolvimento. Incorporando atitudes mediadoras para cuidar da criana dirigem-se ao campo da micropoltica do trabalho em sade, suas articulaes, fluxos e aspectos da organizao do traba-lho, da gesto e do planejamento do cuidado.

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    Recebido em 2 de fevereiro de 2009 Verso atualizada em 27 de fevereiro de 2009

    Aprovado em 20 de maro de 2009