239
CYNTHIA SARTI LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE organizadores Antropologia e ética: desafios para a regulamentação

1747_1230_Antropologia.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • Cynthia Sarti Luiz Fernando diaS duarteorganizadores

    Antropologia e tica: desafios para a regulamentao

  • 2COMISSO DE PROJETO EDITORIAL

    Coordenador

    Antnio Motta (UFPE)

    Cornelia Eckert (UFRGS);

    Peter Fry (UFRJ) e

    Igor Jos Ren Machado (UFSCAR)

    Coordenador da coleo de e-books

    Igor Jos de Ren Machado

    Conselho Editorial

    Alfredo Wagner B. de Almeida (UFAM)

    Antonio Augusto Arantes (UNICAMP)

    Bela Feldman-Bianco (UNICAMP)

    Carmen Rial (UFSC)

    Cristiana Bastos (ICS/Universidade de Lisboa)

    Cynthia Sarti (UNIFESP)

    Gilberto Velho (UFRJ) - in memoriam

    Gilton Mendes (UFAM)

    Joo Pacheco de Oliveira (Museu Nacional/UFRJ)

    Julie Cavignac (UFRN)

    Laura Graziela Gomes (UFF)

    Llian Schwarcz (USP)

    Luiz Fernando Dias Duarte (UFRJ)

    Ruben Oliven (UFRGS)

    Wilson Trajano (UNB)

    ASSOCIAO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA

    Diretoria

    Presidente

    Carmen Silvia Rial (UFSC)

    Vice-Presidente

    Ellen Fensterseifer Woortmann (UnB)

    Secretrio Geral

    Renato Monteiro Athias (UFPE)

    Secretrio Adjunto

    Manuel Ferreira Lima Filho (UFG)

    Tesoureira Geral

    Maria Amlia S. Dickie (UFSC)

    Tesoureira Adjunta

    Andrea de Souza Lobo (UNB)

    Diretor

    Antonio Carlos de Souza Lima (MN/UFRJ)

    Diretora

    Marcia Regina Calderipe Farias Rufino (UFAM)

    Diretora

    Heloisa Buarque de Almeida (USP)

    Diretor

    Carlos Alberto Steil (UFRGS

    www.abant.org.br

    Universidade de Braslia. Campus Universitrio Darcy Ribeiro - Asa Norte. Prdio Multiuso II (Instituto de Cincias Sociais) Trreo - Sala BT-61/8.

    Braslia/DF Cep: 70910-900. Caixa Postal no: 04491. Braslia DF Cep: 70.904-970. Telefax: 61 3307-3754.

    Diagramao e produo de e-book

    Mauro Roberto Fernandes

    RevisoAbner Santos

  • 3Antropologia e tica: desafios para a regulamentao Cynthia SartiLuiz Fernando diaS duarte organizadores

  • 5SumrioPrefcio .............................................................................. 6 Bela Feldman Bianco

    Introduo ........................................................................ 9 Cynthia Sarti Luiz Fernando Dias Duarte

    A vida social ativa da tica na Antropologia (e algumas notas do campo para o debate)...................... 31 Patrice Schuch

    Desafios Antropologia: dilogos interculturais entre os outros de ontem, os protagonistas de hoje e os antroplogos situados ............................................ 86 Jane Felipe Beltro

    O tico e o legal nos processos de apropriao profissional da experincia social ...................................... 106 Ceres Vctora

    Etnografia entre ticas: tica e pesquisa com populaes indgenas ................................................ 131 Marina Cardoso

    tica y antropologa de la violencia .................................... 172 Mariana Tello

    Sobre os(as) autores(as) .................................................... 230

    Anexos

    1. Moo da ABA de 2011. ................................................. 234

    2. Cdigo de tica da ABA. ................................................ 238

  • 6Prefcio

    Tenho o maior prazer de oferecer Antropologia e tica

    comunidade antropolgica e ao pblico em geral. Em seu

    conjunto, essa coletnea rene reflexes terico-metodo-

    lgicas e manifestaes pblicas realizadas no mbito da

    Associao Brasileira de Antropologia sob minha presidncia

    (2011-2012), sobre os paradoxos existentes entre a especifi-

    cidade da produo do conhecimento antropolgico e a regu-

    lao da tica de pesquisa vigente no Brasil atravs da resolu-

    o 196/96 do Conselho Nacional de Sade. Expe, assim, as

    complexidades e os dilemas inerentes ao fazer antropolgico

    numa conjuntura marcada, de um lado, pela expanso e re-

    configurao da antropologia e, de outro, pelo reducionismo

    tcnico-cientfico que rege as deliberaes sobre os projetos

    de pesquisa de carter etnogrfico a partir de critrios bio-

    mdicos da Comisso Nacional de tica de Pesquisa (CONEP)

    do Ministrio da Sade. Contrapondo-se a essa situao in-

    slita, essa publicao tem o mrito de trazer subsdios que

    visam, em ltima anlise, contemplar as gestes da ABA para

    que as pesquisas em antropologia, assim como nas demais

    cincias sociais e humanas, sejam aferidas por critrios con-

    dizentes s investigaes sobre seres humanos no mbito do

    Ministrio de Cincia, Tecnologia e Inovao.

  • 7A ABA, enquanto sociedade cientfica, tem historicamente

    promovido discusses, reflexes propositivas e aes polti-

    cas sobre temticas que esto na ordem do dia. Com esse

    intuito, no binio 2011-2012, sob a chancela Desafios Antro-

    polgicos no Sculo XXI, procuramos mapear e confrontar,

    atravs de anlises crticas e propositivas, os dilemas, desa-

    fios e perspectivas que ocorrem no contexto de processos de

    expanso e transformao da antropologia no Brasil seja em

    relao s transformaes e reconfiguraes da antropolo-

    gia como disciplina acadmica per se; s relaes entre essas

    transformaes e as polticas cientficas; seja ainda entre for-

    mao de antroplogos e o mercado de trabalho, assim como

    entre pesquisa antropolgica e ao poltica e nesse contexto

    a poltica da antropologia, inclusive no que concerne cres-

    cente relao entre a antropologia e as polticas pblicas, a

    crescente relao entre a antropologia e polticas pblicas, e,

    nesse mbito, o papel dos antroplogos a antroplogas na in-

    termediao poltica no contexto brasileiro contemporneo.

    Questes referentes tica na antropologia constituram

    parte central de nossa plataforma de gesto. Tendo em vis-

    ta a crescente demanda por antroplogos e antroplogas no

    mercado de trabalho cada vez mais diversificado, o Comit

    de tica decidiu revisar e atualizar o cdigo de tica da ABA.

    Ao mesmo tempo, os organizadores desta coletnea, Luiz

    Fernando Duarte e Cynthia Sarti, enquanto respectivamente

    vice-presidente e tesoureira geral da ABA (2011-2012), assu-

  • 8miram o desafio de levantar subsdios e atuar politicamente

    em prol de mudanas na forma de avaliar a tica na pesquisa

    antropolgica e, por extenso em outras cincias humanas.

    Alm de levarem em conta as reflexes propositivas e inter-

    venes que vem sendo realizadas no mbito da nossa as-

    sociao pelo menos desde 2002 e organizarem discusses

    sobre a temtica nas principais reunies antropolgicas do

    pas, ambos tiveram atuao estratgica no mbito do CONEP

    e da ANPOCS, bem como nos dilogos com colegas de ou-

    tros campos das cincias humanas. Vale notar a importncia

    da moo sobre tica na pesquisa, apresentada e aprovada

    pelo conselho cientfico da ABA em outubro de 2011 e subs-

    crita pela Associao Nacional de Ps-Graduao em Cincias

    Sociais (ANPOCS) e Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS),

    nas negociaes na esfera da CONEP. Ambos documentos in-

    tegram essa publicao.

    Essa coletnea retrata as reflexes crticas e intervenes

    polticas realizadas durante o binio 2011-2012. Desde ento,

    esto ocorrendo novos desdobramentos para os quais esse

    conjunto de textos e documentos so de extrema valia.

    Bela Feldman-Bianco

    Presidente da ABA (2011-2012)

  • 9Introduo Cynthia Sarti

    Luiz Fernando Dias Duarte

    Sob distintas formas, tanto no debate acadmico como em

    intervenes sociais, a questo tica tem sido uma preocupa-

    o constante da Associao Brasileira de Antropologia (ABA).

    Durante a gesto 1986-1988 foi criado o Cdigo de tica da

    associao e foi igualmente instituda uma Comisso de tica.

    O respeito diversidade no exerccio intelectual, a responsa-

    bilidade e o compromisso perante as populaes com as quais

    trabalhamos e interagimos, por meio da pesquisa e das diver-

    sas atividades profissionais envolvidas no ofcio de antroplo-

    go, sempre pautaram a atuao da ABA e de seus associados.1

    Dando continuidade a essa perspectiva, a gesto 2011-

    2012 da ABA teve como um dos pontos centrais de sua plata-

    forma discutir a atualizao de seu Cdigo de tica e a pecu-

    liaridade da presente regulamentao da tica em pesquisa

    no pas pela Resoluo 196, de 1996, sob a gide do Conselho

    Nacional da Sade, rgo do Ministrio da Sade.

    Essa discusso tornou-se premente no Brasil em face das

    novas questes e dos desafios enfrentados pelos antroplogos

    que intensificaram e diversificaram significativamente suas ati-

    1 O atual Cdigo de tica da ABA encontra-se anexo.

  • 10

    vidades, em particular, a partir da Constituio de 1988. Esta

    reconfigurou a questo dos direitos no pas ao sancionar o ca-

    rter multicultural da identidade brasileira, modificando lugares

    e possibilidades de agncia na luta por reconhecimento dentro

    do quadro das marcadas hierarquias da sociedade brasileira.

    Abriram-se novas frentes de atuao acadmicas e no-aca-

    dmicas, em instituies pblicas e privadas, para um campo do

    saber e uma atividade profissional cujos contornos se modificam

    na medida das mudanas nos destinos de seus objetos de es-

    tudo e de interveno, em relao aos quais os antroplogos se

    situam fundamentalmente como interlocutores.

    Nessa interlocuo constitutiva do trabalho antropolgico e

    da produo do conhecimento nesse campo, as questes ti-

    cas emergem necessariamente e so postas em movimento,

    resultado de negociaes constantes entre os distintos agentes

    sociais envolvidos, observadores e observados, fazendo de sua

    regulamentao, por definio, um campo de tenses que, uma

    vez configurado, clama por sair do lugar, em permanentes revi-

    ses. De outro modo, corre-se o risco da burocratizao da ti-

    ca como apontou Patrice Schuch em seu texto nesta coletnea.

    Diz a autora:

    trata-se de investir na ideia de que a tica diferencial-mente produzida em mltiplos domnios da prtica antro-polgica em sua vida social ativa - o que requer delicadeza na sua discusso e considerao, assim como compreenso da diversidade e situacionalidade dos espaos de sua realizao.

    Se os antroplogos no Brasil, atravs de sua associao,

    no se furtam responsabilidade de regulamentar seus pro-

  • 11

    cedimentos diante de seus interlocutores sociais, fazem-no

    de acordo com seu modo prprio de produzir conhecimento.

    Os dilemas ticos na pesquisa, que expressam as formas de

    a sociedade lidar com danos eventuais impingidos pela cons-

    truo do saber valendo-se do uso instrumental do outro

    seus corpos, suas falas, suas ideias , tornam a regulamenta-

    o tica da pesquisa, em qualquer campo do conhecimento,

    objeto da reflexo antropolgica. Por isso, simplesmente

    aceitar, de antemo, as regulamentaes, sem a anlise de

    seus pressupostos e das prticas que ensejam, contraria

    aquilo que define o fazer etnogrfico, como bem ressaltou

    Claudia Fonseca (2010).

    No demais reafirmar que a preocupao com a tica,

    intrnseca pesquisa antropolgica, tributria da especifici-

    dade, relativamente tradio cientfica ocidental, da relao

    que se estabelece entre pesquisador e pesquisados. Nesta

    no esto supostos distanciamento, iseno e objetividade, a

    partir de uma concepo de neutralidade do conhecimento,

    mas sim a interlocuo, a proximidade, o deixar-se afetar

    e a participao do pesquisador em seu campo de pesquisa.

    Diferentemente de outros campos do conhecimento, mesmo

    nas cincias humanas, essa perspectiva subjaz a toda discus-

    so sobre antropologia e tica.

    Essa postura implica lidar com os complexos problemas

    advindos do fato de que, em grande parte das situaes em-

    pricas, o pesquisador se encontra numa posio desigual em

    relao a seus interlocutores, no que se refere a poder e le-

  • 12

    gitimidade social, fato que pode demandar atitudes e posi-

    cionamentos que transcendem o campo estrito da pesquisa

    acadmica, envolvendo frequentemente o campo poltico ou

    jurdico, o que vem ocorrendo com frequncia cada vez maior

    na pesquisa antropolgica.

    Por outro lado, a diversificao das questes enfrentadas

    pela pesquisa antropolgica na atualidade leva igualmente,

    tambm com frequncia cada vez maior, ao estudo de obje-

    tos produtores de saber e investidos de poder na sociedade,

    com os quais no temos afinidades ideolgicas, o que re-

    coloca os termos da relao entre observador e observado.

    So outros os dilemas ticos enfrentados pelo antroplogo

    quando a pesquisa se desenvolve nesses contextos, como

    mostra a experincia de pesquisa analisada por Patrice

    Schuch nesta coletnea. A necessidade, intrnseca a nossos

    procedimentos, de um olhar distanciado, e que permita, ao

    mesmo tempo, a aproximao necessria para a atividade

    investigativa, implica um enfrentamento distinto daquele

    no qual habitualmente se move o antroplogo, identificado

    com grupos que pesquisa, situados fora da arena hegem-

    nica do poder.2

    Desde fins dos anos 1990, os problemas ticos na pesquisa

    2 Alm do artigo de Patrice Schuch nesta coletnea, ver as reflexes

    de Guita Grin Debert (2004) na coletnea da ABA e os artigos de

    Lcia Helena Alves Mller, Denise Jardim, Elizabeth Zambrano e

    Patrice Schuch na coletnea organizada por Schuch, Vieira e Pe-

    ters (2010).

  • 13

    antropolgica tm sido objeto de inmeros debates e publica-

    es que giram em torno da necessidade de se pensar, e repen-

    sar, os termos da relao entre o antroplogo e aqueles com

    quem interagimos, seja na pesquisa ou em outras atividades

    profissionais (Leite, 1998; Diniz 2002 e 2005; Sarti, 2003; Ma-

    chado 2007; Schuch, Vieira e Peters, 2010; Fleischer e Schuch,

    2010). Em 2004, a ABA publicou sua primeira coletnea sobre

    Antropologia e tica (Vctora Org., 2004) produto de um inten-

    so trabalho de discusso e interveno da associao, durante

    a gesto 2001/2002 que culminou em um simpsio sobre o

    tema na 23a Reunio Brasileira de Antropologia, realizada em

    Gramado (RS), em junho de 2002. A abrangncia e a pertinncia

    das questes colocadas fizeram dessa publicao, amplamente

    citada, uma referncia para o debate atual no pas.3

    O livro, organizado por Ceres Vctora, Ruben Oliven, Maria

    Eunice Maciel e Ari Pedro Oro, tem entre seus principais eixos

    de crtica e reflexo o fato de que, embora a discusso tica

    seja intrnseca pesquisa etnogrfica, como j foi dito, o pro-

    blema adquire contornos surpreendentes, embora no exclu-

    sivos, no Brasil, pela exigncia de que essas pesquisas sejam

    reguladas pela Resoluo no 196/96 e suas complementares,

    aprovadas pelo Conselho Nacional de Sade (CNS), do Minist-

    rio da Sade. O resultado so os inmeros constrangimentos

    enfrentados atualmente por pesquisadores que fundamentam

    3 Essa publicao ser comentada adiante, na reviso da reflexo

    sobre Antropologia e tica no Brasil feita por Patrice Schuch nesta

    coletnea.

  • 14

    seu trabalho de investigao na metodologia etnogrfica, em

    face da regulamentao biocntrica da tica em pesquisa.

    Essas resolues tomaram como referncia documentos

    internacionais sobre o tema, como o Cdigo de Nuremberg, a

    Declarao de Helsinki e as diretrizes propostas pelo Council

    for International Organizations of Medical Sciences (CIOMS),

    elaborados por associaes mdicas e dirigidos a pesquisas

    biomdicas, comportamentais ou epidemiolgicas (Guerriero

    e Dallari, 2008). So tributrias, portanto, das questes ticas

    suscitadas pela pesquisa clnica e experimental. Tais resolu-

    es foram implementadas pela Comisso Nacional de tica

    em Pesquisa (CONEP), vinculada ao Ministrio da Sade, e pe-

    los Comits de tica em Pesquisa (CEPs) a ela subordinados e

    obrigatrios em todas as universidades e instituies de pes-

    quisa para todas as reas do conhecimento.

    Frente aos problemas advindos dessa forma de regula-

    mentao marcada pelas exigncias da pesquisa biomdica,

    publicao da ABA antes referida soma-se uma significativa

    produo crtica, no prprio campo da sade, sobre a tica em

    pesquisa com seres humanos conhecida contraposio

    pesquisa em seres humanos (Oliveira, 2004). Esta foca-

    liza os dilemas ticos nas pesquisas empricas nesse campo a

    partir do que se denomina pesquisa qualitativa em sade, ou

    seja, aquela que, dentro da rea da sade coletiva, se pau-

    ta pela metodologia das cincias humanas e no pelos mto-

    dos experimentais da biomedicina (Guerriero, 2006; Guerriero

    e Dallari, 2008; Diniz e Guerriero, 2008; Guerriero, Schmidt e

  • 15

    Zicker, 2008). Essa perspectiva crtica, desenvolvida por pes-

    quisadores das cincias humanas que trabalham no campo

    da sade, particularmente relevante diante da constatao

    de que, frequentemente, as radicais diferenas epistemolgi-

    cas entre Antropologia e Biomedicina (Duarte, 1998a e 1998b;

    Sarti, 2010) so reduzidas a diferenas de mtodos. Isto leva

    ao problema j apontado por Canesqui (1994) e por Carrara

    (1994), nas primeiras revises dos estudos antropolgicos na

    rea da sade no Brasil do uso de ferramentas tericas e me-

    todolgicas da Antropologia mal assimiladas, por no se con-

    siderarem todas suas implicaes. As pesquisas qualitativas

    em sade nem sempre levam em conta seu campo episte-

    molgico de origem, confuso que se expressa na delimitao

    compartimentada e segmentada, moda das cincias posi-

    tivas dessa metodologia como prpria das cincias humanas,

    sem que sejam apreendidas na anlise as diferenas na forma

    de olhar, apreender, compreender e interpretar a realidade em

    relao aos pressupostos de objetividade do conhecimento das

    cincias biomdicas (Knauth, 2010). Opera-se uma espcie de

    traduo do mtodo nos termos empiricistas dessas cincias.4

    Se a evidncia do carter qualitativo do conhecimento an-

    tropolgico dispensa a demarcao dessa especificidade do

    4 Em resposta a esses desacertos, as implicaes do uso de ferra-

    mentas tericas e metodolgicas da Antropologia no campo da

    sade foram objeto de reflexo em manuais de pesquisa elabora-

    dos por antroplogas que trabalham nesse campo (Vctora, Knau-

    th e Hassen, 2000; Knauth, 2010).

  • 16

    mtodo no interior da disciplina, trata-se, nessa literatura cr-

    tica que se desenvolve no interior do campo multidisciplinar da

    sade, de uma definio contrastiva, que visa demarcar que h

    uma incontornvel diferena metodolgica e epistemolgica

    nas pesquisas na rea das cincias humanas e sociais em rela-

    o aos mtodos experimentais da biologia, nos quais se baseia

    a regulamentao tica da pesquisa no pas (Duarte 1998a e

    1998 b; Sarti, 2003 e 2010). Assim, as reas do conhecimen-

    to vinculadas aos mtodos qualitativos, como a psicologia e as

    chamadas cincias sociais em sade, reivindicam o respeito

    s suas especificidades no mbito da Resoluo 196, uma vez

    que esta no leva em conta os dilemas ticos envolvidos nas

    pesquisas que se desenvolvem por referncias epistemolgicas

    alheias ao campo biomdico (Guerriero e Dallari, 2008).

    Os desdobramentos dessa discusso, quando circunscrita

    ao mbito da CONEP, diante das dificuldades de dilogo com

    o Conselho Nacional de Sade, por longo tempo relutante em

    dar ouvidos s questes levantadas pelos pesquisadores das

    chamadas reas das cincias humanas e sociais, levaram a

    ABA, em sua gesto de 2011-2012, a deslocar o foco da dis-

    cusso predominante na crtica Resoluo 196. At ento,

    esta focalizava a necessidade de se considerar, no interior

    desta Resoluo, a especificidade da metodologia qualitativa,

    terreno comum onde trafegam as cincias humanas e sociais,

    por oposio s cincias biolgicas, e de se voltar a ateno

    para outros mbitos possveis de regulamentao da tica em

    pesquisa, fora do Ministrio da Sade.

  • 17

    Nessa perspectiva, foi elaborada pela ABA uma moo5, apro-

    vada na Assembleia Geral do 35 Encontro Nacional da ANPOCS

    (Associao Nacional de Ps-Graduao e Pesquisa em Cincias

    Sociais) em outubro de 2011, e subscrita pela ANPOCS e pela SBS

    (Sociedade Brasileira de Sociologia), na qual se afirma a im-

    prescindibilidade do controle tico de quaisquer pesquisas cien-

    tficas, com ou sem seres humanos, ao mesmo tempo em que

    se reconhece o enorme avano representado pela existncia de

    uma Resoluo de mbito nacional para a regulamentao das

    pesquisas biomdicas que envolvem seres humanos, diante do

    necessrio controle da pesquisa experimental em seres huma-

    nos, caracterstica das cincias biolgicas e mdicas.

    Manifestando-se, assim, a favor da manuteno da Reso-

    luo n 196/96 do Conselho Nacional de Sade, a moo in-

    siste na urgncia da delimitao de sua abrangncia, que deve

    ser restrita s pesquisas no campo biomdico. Denunciamos,

    assim, a situao anmala, injustificvel e insustentvel da

    subordinao das pesquisas de cincias sociais e humanas

    referida Resoluo. Prope-se, ao lado da reviso urgente

    da Resoluo 196, a discusso da elaborao de outra Regula-

    mentao, especfica para as cincias sociais e humanas, com

    a participao de pesquisadores dessas reas, possivelmente

    no mbito do Ministrio da Cincia e Tecnologia.

    A moo foi encaminhada como reivindicao da ABA

    consulta pblica com vistas reviso da Resoluo 196, que

    ocorreu de 12 de setembro a 10 de novembro de 2011, por

    5 Apresentada em Anexo.

  • 18

    meio do preenchimento de um formulrio individual para en-

    caminhamento das propostas de reviso no stio eletrnico

    do Conselho Nacional de Sade (CNS).6

    Os efeitos dessa demanda surgiram quando a ABA foi con-

    vidada a participar do Seminrio Temtico Pesquisas em Cin-

    cias Sociais e Humanas: Reviso da Res. CNS 196/96, realizado

    a partir das respostas consulta pblica, em Braslia, no dia

    01/08/2012. Posteriormente, foi realizado na cidade de So

    Paulo, de 20-22/09/2012, o I Encontro Extraordinrio dos

    Comits de tica em Pesquisa do Sistema CEP-CONEP, cujo

    subttulo sintomaticamente era: Reviso da Resoluo CNS

    196/96: Atualizar para Fortalecer onde foi votado o novo tex-

    to da Resoluo 196 que buscou incorporar as contribuies

    da referida consulta pblica.7 Nesse encontro dos CEPs (ENCEP

    2012) foi decidida a elaborao, dentro da Resoluo 196, de

    uma Resoluo Complementar especfica para as pesquisas em

    cincias humanas e sociais e a ABA, junto a outras entidades

    e pesquisadores individuais, foi convidada a integrar o Grupo

    de Trabalho da CONEP responsvel por elaborar a proposta de

    redao de seu texto.

    6 Para informaes sobre a consulta pblica da Resoluo 196/96

    ver o stio eletrnico do CNS: http://conselho.saude.gov.br/web_

    comissoes/conep/index.htmlvv. Acesso em 14/01/2013.

    7 Ver o novo texto da Resoluo 196, a ser ainda submetido ao

    CNS, ver: http://conselho.saude.gov.br/web_comissoes/conep/

    aquivos/resolucoes/23_out_versao_final_196_ENCEP2012.pdf.

    Acesso em 14/01/2013.

  • 19

    Assim, a proposta da ABA de retirar da CONEP a regula-

    mentao da pesquisa antropolgica no encontrou, ainda,

    ressonncia, pelo menos nesse mbito. Atualizar para for-

    talecer uma insgnia que fala da disposio de afirmar a

    Resoluo 196, inclusive para regulamentar as pesquisas na

    rea das cincias humanas e sociais, apontando para a ne-

    cessidade de que a proposta da ABA busque outras frentes

    para levar adiante sua proposio.

    Buscando dar continuidade problematizao dos termos

    em que est colocada a regulamentao da tica em pesquisa

    atualmente no Brasil, esta publicao visa levantar questes

    que contribuam para aprofundar a anlise das implicaes

    ticas do trabalho antropolgico e subsidiar a formulao de

    propostas concretas que permitam regular procedimentos

    ticos considerando os marcos da prtica etnogrfica.

    A organizao da coletnea d sequncia a outro instru-

    mento utilizado pela ABA para a divulgao de problemas en-

    frentados por antroplogos e antroplogas, como parte do

    processo de resistncia e oposio forma como a tica em

    pesquisa antropolgica vem sendo examinada e julgada pelo

    sistema CONEP/CEPs. Trata-se de um espao no stio ele-

    trnico da associao, que se intitula CONSULTA: tica em

    pesquisa antropolgica, por meio do qual se colhem infor-

    maes sobre o modo e as condies de funcionamento dos

    CEPs locais e do eventual trnsito de processos de autorizao

    junto CONEP (como no caso da pesquisa com populaes

    indgenas), que se referem tanto experincia de quem teve

  • 20

    que submeter seus projetos ao sistema CEP/CONEP, quanto

    de quem participou de Comits locais.8

    Em face da inadequao da atual regulamentao da tica

    em pesquisa no pas, com relao pesquisa antropolgica e

    diante das inmeras publicaes j existentes sobre o tema,

    o atual debate que envolve a regulamentao da tica na an-

    tropologia ser certamente beneficiado pela discusso a partir

    de casos concretos e problemas enfrentados no atual sistema.

    Com vistas a contribuir para enfrentar esses novos desafios, a

    presente publicao tem, como principal objetivo, subsidiar a

    discusso sobre o tema de forma a permitir levar adiante a rei-

    vindicao postulada pela ABA na referida moo de 2011.

    Os cinco artigos que compem este volume permitem

    precisamente trazer luz discusso tica ao analisarem, sob

    distintos prismas, problemas que emergiram em situaes

    concretas vividas durante a pesquisa etnogrfica, revelando

    questes cuja discusso no se pode eludir, quando se leva a

    srio a proposta dialgica e compromissada da antropologia, e

    que no esto adequadamente contempladas na atual regu-

    lamentao da tica em pesquisa. Foram originalmente apre-

    sentados nas atividades relativas tica nas quais a gesto da

    ABA 2011-2012 esteve envolvida, a saber: a Mesa-Redonda

    tica em pesquisas antropolgicas, na III Reunio Equatorial

    de Antropologia/XII ABANNE, realizada na Universidade Federal

    8 Consultar a esse respeito o stio eletrnico da ABA: www.abant.

    org.br.

  • 21

    de Roraima, Boa Vista (RR), 14-17 de agosto de 2011; o Simpsio

    Antropologia e tica, na IX Reunio de Antropologia do Mer-

    cosul, na Universidade Federal do Paran, Curitiba (PR), 10-13

    de julho de 2011; e o Simpsio tica e Antropologia: desafios

    para a regulamentao, na 28 Reunio Brasileira de Antro-

    pologia, na Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, na

    cidade de So Paulo (SP), 02-05 de julho de 2012.

    Reiteradamente, aparece nos artigos aqui apresentados o

    que vem sendo apontado desde fins dos anos 1990, em toda

    a bibliografia sobre o tema, (Braz , 1999; Sarti, 2003; Duar-

    te 2004, Vctora et al., 2004, Heilborn, 2004; Goldim, 2004;

    Guerriero e Dallari, 2008; Diniz e Guerriero 2008; Minayo,

    2008; Knauth, 2010), em todo debate, qual mantra, como um

    dos pontos mais problemticos da regulamentao da tica

    em pesquisa no Brasil: a inadequao do Termo de Consen-

    timento Livre e Esclarecido (TCLE). Este deve ser estabeleci-

    do por escrito e previamente pesquisa emprica, para dar

    conta do consentimento do pesquisado identificado com

    a concepo ocidental de indivduo, que fundamenta a no-

    o de direito em pauta nos termos de um modelo a ser

    adotado diante de qualquer mtodo ou situao de pesquisa.

    Destaca-se essa inadequao, em particular, quando se tra-

    balha com populaes grafas ou iletradas ou em situaes

    que envolvem transgresso a regras institudas ou prticas

    consideradas criminosas. No entanto, a crtica estende-se

    cada vez mais a toda e qualquer pesquisa etnogrfica (Fleis-

    cher e Schuch, 2010), pelas dificuldades incontornveis de se

  • estabelecer o suposto consentimento como um ato nico,

    ainda que no firmado por escrito, na pesquisa etnogrfica,

    dada sua dinmica e os imponderveis implcitos em seu de-

    senrolar.9 No se trata apenas da inoperncia para solucio-

    nar questes ticas, mas das amarras que o consentimento

    prvio pesquisa cria para o trabalho de campo etnogrfico.

    Se o objetivo do antroplogo justamente chegar na l-gica implcita dos fatos, falar dos no ditos do local, aden-trar de certa forma no inconsciente das prticas culturais, como podemos imaginar que os informantes preveem todas as consequncias de seu consentimento informado? (Fonse-ca, 2010: 214)

    Como sintetiza Marina Cardoso em seu texto nesta cole-

    tnea,

    (...) no caso da pesquisa etnogrfica, este consentimen-to no um documento formal (quase sempre incuo), mas produto das relaes que se estabelecem no campo (eventual-mente, para alm dele), e de acordo com uma lgica relacio-nal e propriamente tica, mas que aquela da comunidade em que nos inserimos, e que determina tambm que material coletamos e sob quais condies, exerccio bsico de qualquer etnografia para ser reconhecida como tal.

    A partir de suas experincias de pesquisa sobre a violncia

    durante a ditadura militar argentina nos anos 1970, Mariana

    Tello mostra, em seu texto nesta coletnea, como o consen-

    9 Ver o artigo de Patrice Schuch nesta coletnea para a discusso

    sobre o TCLE.

  • 23

    timento informado foi, durante o trabalho de campo, um pro-

    cesso de negociaes permanentes que dependeu de fatores

    imprevistos que iam se revelando nas diferentes fases de ela-

    borao do trabalho, no podendo estar definido de antemo.

    Em seu texto aparece, assim como no de Ceres Vctora, a

    questo do uso de imagens como instrumento de pesquisa

    e meio de divulgao dos dados, outro ponto importante da

    negociao tica: quais os limites ticos pelos quais se expe

    a experincia do sofrimento, como apontou Boltanski (1993)?

    Quais as implicaes de torn-la pblica? Como definir a au-

    toria no registro da experincia pela imagem?10 No caso ana-

    lisado por Mariana Tello, a autora evidencia como, diante de

    uma represso, assim como de uma militncia, clandestina,

    durante os anos 1970 na Argentina, a investigao sobre esse

    perodo e seus acontecimentos traz uma aura de revelao,

    de ruptura com silncios estrategicamente guardados11, le-

    vantando a necessidade de acertos ticos em relao a cada

    informao desvelada.

    Lo que es necesario recalcar es que esa posibilidad de eleccin sobre como asumir una experiencia pblicamente y como parte del contrato tico, explicitado de antemano (), constituy un fuerte elemento de establecimiento de la con-fianza y, en trminos generales, un posibilitador de la inves-tigacin misma.

    10 A questo da tica no uso da imagem foi abordada por Carlos Ca-

    roso (2004), na coletnea anterior da ABA (Vctora et al., 2004).

    11 Traduo nossa.

  • 24

    Ceres Vctora analisa a reao dos Charruas, grupo indge-

    na que teve reconhecimento oficial da FUNAI (Fundao Na-

    cional do ndio) em 2007, a um documentrio sobre sua vida, a

    partir no apenas do que os prprios Charruas apontam como

    inapropriado, mas tambm da anlise de uma ao movida

    pelo Ministrio Pblico contra os produtores e a diretora do

    filme e da deciso judicial sobre o processo. Mostrando os li-

    mites ticos da soluo jurdica pela qual foi resolvida a ques-

    to em pauta, a autora questiona a transformao inesperada

    provocada pela interveno de profissionais da comunicao

    sobre o grupo indgena, filmado, fotografado, visibilizado pelo

    olhar do outro, imagens nas quais os Charruas alegam no

    se reconhecer. A autora mostra, a partir de sua experincia

    etnogrfica, o que Marina Cardoso chama de tica indgena,

    que no foi considerada no processo judicial.

    As regras estabelecidas pela 4 Conferncia Nacional de

    Sade Indgena, em 2006, evidenciando as formas como as

    populaes indgenas se apropriam dos instrumentos de ga-

    rantias de direitos, estabelecidos pela Constituio de 1988,

    mencionadas no artigo de Marina Cardoso, contribuem para

    entender a atitude dos Charruas e suas demandas frente ao

    uso de imagens suas que consideram inapropriadas. Trata-se

    de uma gramtica que passam a dominar e das quais fazem

    uso em sua relao com o mundo dos brancos.

    A tica discutida nos textos apresentados a partir de uma

    concepo dialgica da antropologia. Isso significa dizer que

    no se trabalha sobre o outro, mas com o outro na pro-

  • 25

    duo do conhecimento e no estabelecimento do que ti-

    co na pesquisa, quando esta pensada, em suas implicaes

    profundas, como uma relao entre pesquisador e pesquisado.

    Jane Beltro ressalta que os antroplogos foram treinados

    (e continuam a ser) para compreender a diversidade, mas o

    treinamento ainda se limita a explicar o outro e no a traba-

    lhar em conjunto com o outro. Para ela, os estudos amaz-

    nicos, em particular, mostram que a Etnologia no uma dis-

    ciplina em si, mas a construo de uma sociedade em moldes

    novos, abrigando os invisveis de ontem como protagonistas.

    Seu texto, como o de Marina Cardoso, insere-se na busca, que

    marca a antropologia brasileira contempornea, de colocar a

    discusso tica como parte de uma elaborao conjunta de

    reflexes feitas pelos antroplogos com os indgenas. Fala da

    experincia de escrever com pessoas indgenas como escritas

    interculturais, levadas adiante, segundo a autora, como de-

    safios da incluso social. Marina Cardoso, a partir de seu campo

    de pesquisa, trata do sentido prprio do que seria uma ti-

    ca indgena, que se formula sob formas alheias quelas que

    regulamentam nossos procedimentos ticos, mas que esto

    necessariamente implicadas na tica do trabalho etnogrfico,

    configurando o que a autora chama de paradoxos da tica.

    Dentro da mesma perspectiva de pensar com as pessoas

    envolvidas na pesquisa os termos ticos dessa relao, Ma-

    riana Tello analisa sua experincia de pesquisa com as vti-

    mas da ditadura militar argentina delicada interlocuo que

    envolve lidar com um tipo de sofrimento fortemente silen-

  • 26

    ciado nas sociedades que justamente o provocaram (como

    prprio de todo sofrimento social, na expresso de Arthur

    Kleinman, Veena Das e Margareth Lock). Os parmetros ticos

    frente a seus interlocutores envolvem uma escuta particular

    diante dos dilemas ticos de tornar pblicas experincias de

    sofrimento associadas violncia.

    Diante de uma posio de alteridade mnima12, Mariana

    Tello parte, sobretudo, da preocupao com o distanciamen-

    to necessrio anlise do tema da violncia, dado seu carter

    extremo e suas implicaes ticas e polticas, em qualquer cir-

    cunstncia em que se aborde tema to eivado de conotaes

    morais. Seu trabalho, realizado na e sobre a Argentina, remete

    a questes ainda no enfrentadas pela antropologia brasileira,

    como a da experincia das vtimas da ditadura brasileira (1964-

    1985), afirmando o importante campo de interlocuo sobre as

    experincias de violncia na Amrica do Sul que tem se aberto

    nos ltimos tempos no mbito da antropologia no continente.

    Sob olhares distintos, os textos falam da politizao da

    antropologia, uns com mais, outros com menos restries,

    a partir de experincias concretas de pesquisa. Para Patri-

    ce Schuch, trata-se de admitir que a antropologia no tem,

    necessariamente, que se identificar, mimetizar ou defender o

    ponto de vista nativo; o que se necessita , exatamente, o es-

    tabelecimento de uma relao com tal ponto de vista, aquilo

    12 Ela mesma sofreu a experincia de represso poltica em sua fa-

    mlia. Sua me foi assassinada pelas Foras Armadas e Policiais

    em Tucumn, na Argentina, quando ela tinha 10 meses de idade,

    conforme relata em seu texto.

  • 27

    que, para alguns, seria a sua prpria condio epistemolgica.

    O texto de Patrice Schuch, que mapeia a discusso recente

    sobre tica e antropologia no Brasil, sintetiza as preocupaes

    que norteiam a atual reflexo sobre o tema e animam esta co-

    letnea. A autora, contrapondo-se suposio de que exis-

    ta alguma espcie de centro de enunciao tico-normativa

    aos quais outros domnios seriam subordinados, ressalta a

    importncia de se compreender em quais domnios e debates

    a relao entre antropologia e tica est em jogo e como ela

    configurada nos mltiplos mundos sociais nos quais opera.

    Essas mltiplas possibilidades de negociao da tica nas

    relaes entre os atores implicados no trabalho de investigao

    antropolgica, tal como surgem nas diferentes situaes de pes-

    quisa, em diferentes contextos, e as solues encontradas ou os

    intrincados desencontros de perspectivas, so o objeto das refle-

    xes aqui apresentadas, com base em experincias diversas de

    pesquisa e pontos de vista no necessariamente coincidentes.

    As formas que adquire a discusso tica, o contexto no qual

    emerge, seus agentes e modos de agncia tornam-se proble-

    mas permanentes de reflexo do antroplogo junto aos sujei-

    tos envolvidos na pesquisa. Trata-se de manter a delicada ten-

    so entre proximidade e distanciamento que marca o trabalho

    antropolgico que, contra toda fixidez, faz da prpria definio

    do que se configura, ou no, como tico algo em movimento,

    deslocamentos nos quais se move e se pe em questo o pr-

    prio antroplogo junto a seus interlocutores na pesquisa.

    Dezembro 2012

  • 28

    Referncias bibliogrficas

    BOLTANSKI, Luc. La souffrance distance : morale humanitaire, mdias et po-

    litique. Paris: Metaili, 1993.

    BRAZ, Marlene. Autonomia: onde mora a vontade livre. In: CARNEIRO, F. (Org.)

    A moralidade dos atos cientficos: questes emergentes da experincia dos

    Comits de tica em Pesquisa envolvendo seres humanos. Braslia: Ministrio

    da Sade/FIOCRUZ, 1999. p. 91-100.

    CANESQUI, Ana Maria. Notas sobre a produo acadmica de antropologia e

    sade na dcada de 80. In: ALVES, P. C.; MINAYO, M. C. de S. (Org.). Sade e

    doena: um olhar antropolgico. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 1994. p. 13-32. (Co-

    leo Antropologia & Sade.)

    CARNEIRO, Fernanda (Org.) A moralidade dos atos cientficos: questes emer-

    gentes da experincia dos Comits de tica em Pesquisa envolvendo seres hu-

    manos. Braslia: Ministrio da Sade/FIOCRUZ, 1999.

    CAROSO, Carlos. A imagem e a tica na encruzilhada das cincias. In: VCTORA, C.

    et al. (Org.). Antropologia e tica: o debate atual. Niteri: EdUFF, 2004. p. 137-150.

    CARRARA, Sergio. (1994), Entre cientistas e bruxos: ensaios sobre dilemas e

    perspectivas da anlise antropolgica da doena. In: ALVES, P. C.; MINAYO, M. C.

    de S. (Org.). Sade e doena: um olhar antropolgico. Rio de Janeiro: FIOCRUZ,

    1994. p. 33-45. (Coleo Antropologia & Sade.)

    DEBERT, Guita Grin. tica e as novas perspectivas da pesquisa antropolgica.

    In: VCTORA, C. et al. (Org.). Antropologia e tica: o debate atual. Niteri: EdUFF,

    2004. p. 45-54.

    DINIZ, Dbora. Conflitos morais e biotica. Braslia: Letras Livres, 2002.

    . (Org.) tica na Pesquisa. Braslia: Editora da UnB/Letras Livres, 2005.

    DINIZ, Dbora; GUERRIERO, Iara Coelho Zito. A tica na pesquisa social: desafios

    ao modelo biomdico. Reciis: Revista Eletrnica de Comunicao, Informao

    e Inovao em Sade (2): 78-90, Supl. 1., 2008. Suplemento 1. Disponvel em:

    .

    DUARTE, Luiz Fernando Dias. Investigao antropolgica sobre doena, sofri-

    mento e perturbao: uma introduo. In: DUARTE, L. F. D.; LEAL, O. F. (Org.).

    Doena, sofrimento, perturbao: perspectivas etnogrficas. Rio de Janeiro:

    FIOCRUZ, 1998a. (Coleo Antropologia & Sade).

    . Pessoa e dor no Ocidente. Horizontes antropolgicos. ano 9, n. 4, p.

    13-28, 1998b.

  • 29

    . tica de pesquisa e correo poltica em Antropologia. In: VCTORA,

    C. et al. (Org.). Antropologia e tica: o debate atual. Niteri: EdUFF, 2004. p.

    125-130.

    FLEISCHER, Soraya; SCHUCH, Patrice (Org.) tica e regulamentao na pesquisa

    antropoolgica; Braslia: LetrasLivres / Editora da UnB, 2010.

    FONSECA, Claudia. O anonimato e o texto antropolgico: dilemas ticos e po-

    lticos da etnografia em casa. In: SCHUCH, P.; VIEIRA, M. S.; PETERS, R. (Org.).

    Experincias, dilemas e desafios do fazer etnogrfico contemporneo. Porto

    Alegre: UFRGS, 2010. p. 205-227.

    GOLDIM, Jos Roberto. tica e pesquisa em antropologia. In: VCTORA, C. G et al.

    (Org.). Antropologia e tica: o debate atual. Niteri: EdUFF, 2004. p. 163-167.

    GUERRIERO, Iara Coelho Zito. Aspectos ticos das pesquisas qualitativas em

    sade. Faculdade de Sade Pblica- USP. 2006. [Tese de Doutorado].

    GUERRIERO, Iara Coelho Zito; DALLARI, Sueli Gandolfi. A necessidade de dire-

    trizes ticas adequadas s pesquisas qualitativas em sade. Cincia e Sade

    Coletiva, v. 13, ano 2, p. 303-311, 2008.

    GUERRIERO, Iara Coelho Zito; SCHMIDT, Maria Luisa Sandoval; ZICKER, Fabio

    (Orgs.). tica nas Pesquisas em Cincias Humanas e Sociais na Sade. So

    Paulo: Aderaldo & Rothschild/HUCITEC, 2008.

    GUILHEM, Dirce; ZICKER, Fabio (Orgs.). tica na pesquisa em sade: avanos e

    desafios. Braslia: Letras Livres/Editora da UnB, 2007.

    HEILBORN, Maria Luiza. Antropologia e Sade: consideraes ticas e concilia-

    o multidisciplinar. In: VCTORA, C. et al. (Org.). Antropologia e tica: o debate

    atual. Niteri: EdUFF, 2004. p. 57-63.

    JARDIM, Denise Fagundes. Antropologia em campos up. In: SCHUCH, P.; VIEIRA,

    M.S.; PETERS, R. (Org.) Experincias, dilemas e desafios do fazer etnogrfico

    contemporneo. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2010. p. 23-28.

    KNAUTH, Daniela. A etnografia na sade coletiva: desafios e perspectivas. In:

    SCHUCH, P.; VIEIRA, M. S.; PETERS, R. (Org.). Experincias, dilemas e desafios

    do fazer etnogrfico contemporneo. Porto Alegre: UFRGS, 2010. p. 109-114.

    KLEINMAN, Arthur; DAS, Veena; LOCK, Margareth (Org.). Social suffering. Berke-

    ley/Los Angeles/London: University of California Press, 1997.

    LEITE, Ilka Boaventura (Org.). tica e esttica na antropologia. Florianpolis:

    PPGAS da UFSC/CNPq, 1998.

  • 30

    MACHADO, Lia Zanotta. tica em pesquisa biomdica e antropolgica: se-

    melhanas, contradies, complementaridade. In: GUILHEM, D.; ZICKER, F.

    (Org.). tica na pesquisa em sade. Braslia: Letras Livres/ UnB, 2007. p.

    119-142.

    MINAYO, Maria Ceclia de S. Apresentao. In: GUERRIERO, Iara Coelho Zito;

    SCHMIDT, Maria Luisa Sandoval; ZICKER, Fabio (Orgs.). tica nas Pesquisas em

    Cincias Humanas e Sociais na Sade. So Paulo: Aderaldo & Rothschild/HU-

    CITEC, 2008.

    MLLER, Lcia Helena A. Antropologia em contextos empresariais. In: SCHUCH,

    P.; VIEIRA, M. S.; PETERS, R. (Org.). Experincias, dilemas e desafios do fazer

    etnogrfico contemporneo. Porto Alegre: UFRGS, 2010. p. 49-57.

    OLIVEIRA, Lus Roberto Cardoso de. Pesquisa em versus Pesquisas com seres

    humanos. In: VCTORA, C. G. et al. (Org.). Antropologia e tica: o debate atual.

    Niteri: EdUFF, 2004. p. 33-44.

    SARTI, Cynthia Andersen. tica, antropologia e pesquisa com seres humanos.

    In: SARTI, C.A.. O reconhecimento do outro: uma busca de dilogo entre cin-

    cias humanas e cincias da sade. [tese de Livre-Docncia]. So Paulo: Depar-

    tamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de So Paulo/Escola

    Paulista de Medicina, 2003.

    . Sade e sofrimento. In: MARTINS, C.B. (coord. geral); DUARTE, L.F.D.

    (coord. de rea). Horizontes das Cincias Sociais brasileiras: Antropologia. So

    Paulo: ANPOCS/Barcarolla/Discurso Editorial, 2010. p. 197-223.

    SCHUCH, Patrice. Antropologia com grupos up, tica e pesquisa. In: SCHUCH, P.;

    VIEIRA, M. S.; PETERS, R. (Org.). Experincias, dilemas e desafios do fazer etno-

    grfico contemporneo. Porto Alegre: UFRGS, 2010. p. 29-48.

    SCHUCH, Patrice; VIEIRA, Miriam Steffen; PETERS, Roberta (Org.) Experincias,

    dilemas e desafios do fazer etnogrfico contemporneo. Porto Alegre: Editora

    da UFRGS, 2010.

    VCTORA, Ceres; KNAUTH, Daniela; HASSEN, Maria de Nazareth A. (Org.). Pesqui-

    sa qualitativa em sade: uma introduo ao tema. Porto Alegre: Tomo, 2000.

    VCTORA, Ceres; OLIVEN, Ruben George; MACIEL, Maria Eunice; ORO, Ari Pedro

    (Org.). Antropologia e tica. Niteri: Editora da UFF/ABA, 2004.

    ZAMBRANO, Elizabeth. A experincia etnogrfica no campo mdico e mdico-

    -jurdico. In: SCHUCH, P.; VIEIRA, M.S.; PETERS, R. (Org.) Experincias, dilemas e

    desafios do fazer etnogrfico contemporneo. Porto Alegre: Editora da UFRGS,

    2010. p. 59-69.

  • 31

    A vida social ativa da tica na

    Antropologia (e algumas notas do

    campo para o debate) Patrice Schuch

    Introduo

    O ttulo deste texto inspirado no artigo escrito por Lila

    Abu-Lughod, publicado no Journal of Middle East Womens

    Studies, em 2010, chamado: The Active Social Life of Mus-

    lim Womens Rights: A Plea for Ethnography, Not Polemic,

    with Cases from Egypt and Palestine. Nesse texto, Abu-Lu-

    ghod (2010) argumenta em favor de um deslocamento do

    debate muito polmico e, segundo ela, pouco produtivo

    sobre a existncia ou no de direitos das mulheres muul-

    manas para a premissa de que esta questo tem hoje uma

    vida social ativa, que deve ser estudada etnograficamente.

    Nessa etnografia, importam interrogaes como: quais tipos

    de debates e de instituies os direitos das mulheres mu-

    ulmanas partilham? Como eles so mediados? Que tipo de

    trabalho essa noo e as prticas organizadas nesses termos

    fazem em vrios lugares, para diversos tipos de mulheres?

  • 32

    Abu-Lughod (2010) opta por estudar alguns desses espaos

    ONGs de mulheres palestinas e egpcias e comunidades rurais

    onde mulheres e crianas vivem suas vidas na interseo com

    instituies locais e mdias nacionais mostrando o quanto

    a questo sobre os direitos das mulheres muulmanas est

    diferencialmente colocada nesses mltiplos mbitos, o que

    requer ateno para suas mediaes e transformaes.

    Acredito que a perspectiva analtica sugerida por Abu-Lu-

    ghod (2010) possa ser interessante para o debate da relao

    entre tica e Antropologia. Isso porque a discusso sobre ti-

    ca, tal como o domnio dos direitos humanos, preza-se muito

    facilmente uma espcie de normatizao empobrecedora

    que reduz a dimenso tica e os mbitos diferenciados de

    prtica antropolgica ao carter de domnios ontolgicos e

    estticos. Sabemos que o iderio tico, enquanto uma con-

    dio de possibilidade para o trabalho antropolgico, sempre

    esteve no horizonte epistemolgico disciplinar da Antropolo-

    gia. No entanto, a prpria diversificao das prticas antro-

    polgicas (Ribeiro, 2004), conjugada com as crescentes de-

    mandas de regulamentao dos procedimentos de pesquisa

    (Fleischer e Schuch, 2010) dinamizam esse debate, expan-

    dindo-o em outras direes. Neste contexto de discusses,

    talvez mais do que posies apressadas ou fceis generali-

    zaes, importa compreender em quais domnios e debates

    a relao entre tica e Antropologia est em jogo e como ela

    configurada nos mltiplos mundos sociais nos quais ope-

  • 33

    ra, isto , compreender a sua vida social ativa, nos termos de

    Abu-Lughod (2010).

    Meu interesse neste artigo exatamente arguir nessa

    direo e defender que qualquer discusso sobre tica em

    pesquisa antropolgica tem que levar em conta a multipli-

    cidade de domnios em que a tica existe na Antropologia,

    isto , a complexidade de sua vida social ativa. Refiro-me

    a esse termo em sentido semelhante quele empregado por

    Abu-Lughod (2010). A autora usa o termo vida social para

    sugerir que os direitos das mulheres muulmanas s podem

    ser compreendidos a partir do seu jogo social, o que dife-

    rente de dizer que podem ser achados na circulao social

    desse conceito como em Appadurai (1986), para o caso da

    circulao de mercadorias ou nos contextos sociais de sua

    reproduo, transplante ou vernacularizao, como na su-

    gesto de Engle Merry (2006) para o estudo acerca dos enun-

    ciados de direitos humanos. Abu-Lughod (2010) refere-se a

    vida social dos direitos das mulheres muulmanas como a

    sua mediao diferencial atravs de vrias redes sociais e ins-

    trumentos tcnicos, inspirando-se nas sugestes de Latour

    (1999) em seus estudos sobre a cincia.

    Destaco a importncia desse tipo de perspectiva analtica

    porque ela rompe com a suposio de que exista alguma es-

    pcie de centro de enunciao tico-normativa aos quais

    outros domnios seriam subordinados, ao mesmo tempo em

    que opta por uma definio performativa dos domnios em

  • 34

    questo. Em meu entender, tomado como um todo, e en-

    tendido a partir de sua parcialidade, o argumento em torno

    de uma vida social ativa da tica na Antropologia conduz no

    apenas ao combate a formulaes sobre as possibilidades de

    uma tica universal ou meta-disciplinar, mas tambm a re-

    jeio da noo de que se trata de procurar a adaptao de

    uma tica geral a situaes particulares. Sob meu ponto de

    vista, no disso que se trata. Trata-se de investir na ideia de

    que a tica diferencialmente produzida em mltiplos dom-

    nios da prtica antropolgica em sua vida social ativa o

    que requer delicadeza na sua discusso e considerao, as-

    sim como compreenso da diversidade e situacionalidade dos

    espaos de sua realizao.

    luz dessa inspirao, meu objetivo examinar alguns

    domnios em que a relao entre tica e Antropologia ganha

    vida social ativa, atravs da anlise de certa bibliografia bra-

    sileira relativamente recente sobre esse assunto. No Brasil,

    h uma produo crescente de artigos, captulos de livros e

    coletneas temticas sobre tica e pesquisa antropolgica1.

    No entanto, tomarei como ponto de partida os debates pre-

    sentes em dois livros sobre o assunto: Antropologia e tica. O

    debate atual no Brasil, organizado por Ceres Vctora, Ruben

    Oliven, Maria Eunice Maciel e Ari Oro, publicado em 2004, a

    partir de uma srie de simpsios homnimos realizados pela

    1 Veja-se, por exemplo, Machado (2007), Schuch, Vieira e Peters

    (2010), Diniz, (2005) e Lagdon, Maluf e Tornquist (2008).

  • 35

    ABA em 2002 (Vctora et al, 2004); e o livro publicado em

    2010, chamado tica e Regulamentao na Pesquisa Antro-

    polgica, organizado por mim e por Soraya Fleischer, produto

    de um seminrio de mbito nacional realizado na Universida-

    de de Braslia, com o apoio do Departamento de Antropologia

    (Fleischer e Schuch, 2010). Eu me concentrei nessas publi-

    caes embora fazendo associaes com outras literatu-

    ras porque em ambas h uma espcie de preocupao em

    sistematizar certas discusses sobre o tema e reunir algu-

    mas das principais problemticas em torno do assunto, sem

    se circunscrever em algum mbito especializado da atuao

    antropolgica. Atravs desse recorte, espero deixar evidente

    que no meu interesse generalizar os argumentos aqui es-

    boados para o que seria uma Antropologia brasileira, nem

    totalizar o estado da arte atual das discusses sobre o as-

    sunto. Atravs da singularidade das produes em questo,

    procurarei explicitar alguns domnios de problematizao nos

    quais a tica na Antropologia se configura. Nesses termos, os

    textos analisados permitem pensar na relao entre certos

    domnios de fatos e prticas e o que est sendo formulado

    como um problema tico na Antropologia.

    Expandindo os debates sobre tica e Antropologia para

    alm de qualquer apressada enunciao normativa e incen-

    tivando as reflexes sobre os diferentes mbitos de constru-

    o da tica antropolgica, meu objetivo inicial neste texto

    compreender, nos livros selecionados, as configuraes do

  • 36

    que percebi e classifiquei como trs domnios em que a tica

    aparece como espao de problematizaes: 1) o pesquisar/

    atuar: autorreflexo, responsabilidade e prtica poltica; 2)

    Antropologia e multidisciplinaridade: cincia e sua insero

    social; 3) a tica como campo de regulamentaes: quando

    dizer no, no basta. Minha segunda tarefa nesse artigo resi-

    de na explorao de uma situao ocorrida em meu prprio

    campo de pesquisa, que acredito ensejar discusses sobre o

    que acontece quando algum desses domnios parece estar

    em contradio com outro. Em especial, a problematizao

    dessa situao de campo coloca em evidncia o que implici-

    tamente aparece tambm nos demais domnios estudados: o

    debate sobre tica em Antropologia inescapvel s reflexes

    sobre qual a tarefa ou vocao da prpria Antropologia.

    Preocupaes ticas, Tradies Nacionais e a

    Antropologia Brasileira

    Didier Fassin publicou um artigo provocador, intitulado: The

    end of ethnography as collateral damage of ethical regula-

    tion?, em 2006, na revista American Ethnologist, no qual sa-

    lienta a sua prpria experincia como pesquisador, ao estudar

    polticas de interveno e instituies pblicas nos contextos

    francs e sul africano (Fassin, 2006). O autor contrasta tais

    espaos no que diz respeito aos esforos de regulamentao

    dos procedimentos de pesquisa. Afirma que, na Frana, sur-

    preendente o que chama de falta de preocupao com os as-

  • 37

    suntos da tica nas Cincias Sociais: apenas no ano de 2005

    que a Escola de Altos Estudos em Cincias Sociais comeou a

    se engajar nessa problemtica. At recentemente, conta ele, as

    propostas de pesquisa no apresentavam nenhuma conside-

    rao especfica sobre tica, a menos que o pesquisador can-

    didatasse seu projeto de pesquisa ao financiamento de algu-

    ma instituio mdica, tal como o Instituto Nacional de Sade

    (INSERM) ou a Agncia Nacional de Pesquisa sobre Aids (ANRS).

    Nesse caso, a questo tica era reduzida ao preenchimento de

    alguns formulrios sobre a proteo dos sujeitos da pesquisa,

    para os quais os cientistas sociais, afirma ele, sempre tinham

    a mesma resposta: no se aplica. Essa situao teria come-

    ado a modificar-se tanto pelas novas realidades da Unio Eu-

    ropeia, quanto pela presso dos prprios pases chamados do

    terceiro mundo sobre o assunto.

    J a sua experincia na frica do Sul contrasta fortemente

    com o contexto francs: a partir da dcada de 2000, perce-

    be-se um incremento substantivo no conjunto de regula-

    es ticas, regras e constrangimentos severos delimitando o

    campo das possibilidades de pesquisa, atrasos na implemen-

    tao de programas produzidos pela demora das avaliaes

    nos Comits de tica e obstculos crescentes colocados

    medida da progresso da pesquisa, mesmo aps a permisso

    para sua realizao ter sido dada. Fassin (2006) estranha as

    duas experincias: na Frana, onde diz se surpreender com o

    fato de qualquer pesquisador poder ser muito crtico em rela-

  • 38

    o aos procedimentos mdicos, sem, no entanto, jamais ter

    apresentado suas prprias formulaes de pesquisa para ne-

    nhum Comit de tica, e na frica do Sul, onde, no obstante

    a forma precria de tratamento dos pacientes, a exposio

    dos corpos e a negligncia da dor, a presena antropolgica

    que parecia causar problemas ticos.

    Esses dois extremos so representativos, segundo ele, de

    culturas nacionais distintas no que diz respeito tica nas Ci-

    ncias Sociais: enquanto os cientistas sociais franceses pa-

    recem se colocar acima ou do pouca ateno aos domnios

    ticos oficiais exteriores s suas disciplinas, considerando a

    tica autodefinida, no-escrita e no-certificada como

    um atributo incorporado figura do antroplogo ou soci-

    logo, na frica do Sul a preocupao com a soberania nacio-

    nal teria sido um grande incentivo para a preocupao com a

    regulamentao tica (Fassin, 2006). Para o autor, tais fatos

    tambm so relevantes para mostrar que no apenas as in-

    tervenes provenientes da biomedicina importam na defi-

    nio das presses para regulamentao tica, mas tambm

    nacionalismos e a geopoltica mundial.

    As sugestes de Fassin (2006) fazem sentido e so inte-

    ressantes porque associam as problematizaes sobre tica

    no apenas aos procedimentos regulamentadores biomdi-

    cos que podem funcionar, s vezes, como bodes expia-

    trios da prpria discusso sobre o assunto mas tambm

    levantam questes sobre a prpria relao entre tica e os

  • 39

    estilos antropolgicos e configuraes socioculturais das

    quais emergem. Gostaria de seguir essa direo, detendo-

    -me nos seus efeitos para a configurao do debate acerca da

    tica na Antropologia brasileira e sua vida social ativa. Como

    sabemos, a relao entre estilos antropolgicos e contextos

    culturais nos quais emergem j foi trabalhada eficientemente

    por Cardoso de Oliveira (1998) e Peirano (1992), entre outros.

    No caso brasileiro, Peirano (1992) mostrou que incorporamos

    a Antropologia como uma Cincia Social numa figurao que

    une conhecimento e comprometimento poltico, estudando

    temas e grupos prprios da sociedade brasileira e, de certa

    forma, praticando uma Antropologia endgena. Esta reali-

    dade est em transformao, a partir dos processos de inter-

    nacionalizao da pesquisa antropolgica brasileira realizada

    com flego a partir do ano 2000.

    No entanto, em que pese tais mudanas recentes, a leitura

    dos artigos dos livros selecionados como base para minha in-

    vestigao mostra que um dos pontos mais recorrentes dos de-

    bates , justamente, qual a tarefa, funo ou vocao de uma

    Antropologia que nos termos de Roberto Cardoso de Oliveira

    (2004), no artigo de abertura do livro Antropologia e tica: o de-

    bate atual no Brasil (Vctora et al, 2004) vai alm da constru-

    o de conhecimentos e se v enleada em demandas da ao.

    Qual de ns (pergunta o autor) especialmente os etnlogos,

    no se viu um dia pressionado a agir simultaneamente ao seu

    esforo de conhecer? (Cardoso de Oliveira, R., 2004:22).

  • 40

    A Vida Social Ativa da tica Antropolgica:

    trs espaos de problematizao

    O pesquisar/atuar: autorreflexo, responsabilidade

    e prtica poltica

    exatamente em torno da complexidade do pesquisar/

    atuar dilema bem representativo de nosso estilo disciplinar

    que marca-se uma forte vertente em que a tica antropol-

    gica ganha vida social ativa nos textos selecionados. Destaco

    que a tica aparece, nessa configurao de interrogaes em

    torno do binmio pesquisar/atuar, como associada defini-

    o de modos de relacionamento do antroplogo com grupos

    em interlocuo no caso de Roberto Cardoso de Oliveira,

    na situao de contato intertnico e na reflexo sobre o

    que constitui a tarefa antropolgica e suas responsabilidades.

    No artigo em questo, Cardoso de Oliveira (2004) conta sua

    experincia de ter sido contratado pela FUNAI, no ano de 1975,

    para estudar a situao dos Tkna diante do Movimento da

    Cruz e diz com clareza:

    Meu problema tico de ento era de como manter minha independncia de pesquisador em relao agncia indigenis-ta que me contratara, ainda que jamais tenha recebido dela qualquer recomendao para intervir em seu nome na situa-o intertnica (Cardoso de oliveira, 2004:22).

    Nessa experincia, o autor explica que no houve nenhum

    conflito evidente entre os grupos estudados e, portanto, no

  • 41

    teve que interceder por nenhuma das partes. No entanto,

    utiliza tal situao para evidenciar onde reside o que chama

    de mal estar tico na Antropologia prtica, aquela envol-

    vida com as dimenses morais da ao, mas no prescinde

    da autorreflexo, a qual, por sinal, estaria crescentemente

    marcando a realidade dos antroplogos brasileiros2. Tal mal

    estar tico residiria na condio antropolgica brasileira de

    mediar culturas e pessoas de carne e osso em confronto e

    2 Nota-se, no texto de Roberto Cardoso de Oliveira (2004), uma

    preocupao em distinguir uma Antropologia aplicada de uma

    Antropologia da ao: enquanto a primeira se caracterizaria

    pela vinculao com o colonialismo e praticismo inaceitvel, a

    ltima estaria relacionada aos sentidos que Sol Tax deu ao ter-

    mo em 1952, para evocar o carter da atuao antropolgica na

    prtica social. No entanto, o autor prefere o termo Antropologia

    prtica, pois segundo ele a Antropologia da ao tambm te-

    ria um dficit reflexivo importante, inaceitvel para a Antropologia

    contempornea. Evidencia-se uma espcie de tenso em torno

    dos limites e responsabilidades do antroplogo, em suas diversas

    modalidades de atuao na vida pblica, o que se evidencia nos

    prprios debates em torno da nominao das atividades antropo-

    lgicas. Pode-se dizer que tais debates se renovaram na dcada

    de 2000, a partir da elaborao de laudos periciais antropolgi-

    cos. O ttulo do texto de Eliane Cantarino ODwyer (2005), publi-

    cado na parte tica e Interveno de um livro sobre a produo

    de laudos antropolgicos, intitulado: Laudos Antropolgicos:

    pesquisa aplicada ou exerccio profissional da disciplina? muito

    representativo dessa tenso. A autora defende a posio de que

    os laudos antropolgicos no so pesquisa aplicada, uma vez que

    no prescindem de dois aspectos fundamentais: a reflexo terica

    e o trabalho de campo antropolgico.

  • 42

    na sua complexa tarefa de traduzir sistemas culturais, den-

    tro da sociedade nacional3. Como uma sugesto de supera-

    o de tal mal estar tico, Cardoso de Oliveira (2004) evoca

    a capacidade crtica e reflexiva da Antropologia, a abertura

    tica discursiva e, para o que me interessa aqui destacar,

    um abandono do que chama de um relativismo absentesta,

    responsvel por uma neutralidade equvoca. Somente a par-

    tir desse abandono a conciliao entre tica e Antropologia

    poderia ser realizada4.

    Na interseo do debate pesquisar/atuar colocam-se

    tambm as dimenses ticas no trabalho de formulao de

    laudos antropolgicos, o necessrio dilogo com o campo ju-

    rdico e as tenses desse dilogo. Ilka Boaventura Leite, no

    3 Joo Pacheco de Oliveira (2004), discutindo as possibilidades de

    uma Antropologia participativa tambm refere a existncia de

    um mal estar na Antropologia brasileira, ao qual o autor atribui

    uma espcie de cultural lag dado pelo fato de que as represen-

    taes hegemnicas da disciplina esto em desacordo com sua

    prtica cotidiana, onde se problematiza, entre outros fatores, a

    externalidade do olhar antropolgico, a participao dos nativos

    na formulao do problema de pesquisa e a apropriao do traba-

    lho antropolgico com possibilidades de luta poltica.

    4 Nesse sentido, tal posio poderia ser aproximada de Otvio Ve-

    lho (1995), para quem o relativismo, j em 1995, era tomado como

    uma espcie de arrombador de portas abertas. Ver tambm Ve-

    lho (2008), texto em que o autor incita ao desenvolvimento de

    outras formas de justificao do trabalho antropolgico brasileiro,

    para alm da posio de antroplogos como mentores da demo-

    cracia.

  • 43

    seu artigo presente no livro de 2004, salienta que um dos

    principais dilemas vivenciados nesse tipo de trabalho a ex-

    ternalidade da demanda pelo laudo e a atuao antropolgica

    em situaes que, de antemo, se apresentam como confli-

    tuosas5. O que parece estar em jogo aqui so questes que

    relacionam a tica com autorreflexes sobre os domnios da

    autoridade e posicionalidade do antroplogo, num contexto

    onde as suas responsabilidades sociais so imensas, na me-

    dida em que o seu trabalho pode ter muitos desdobramentos

    polticos e sociais para a vida das comunidades em questo.

    Isso requer, diz a autora, uma reflexo sobre esse lugar de

    responsabilidade social do antroplogo:

    no momento em que depositei o laudo sobre a comu-nidade do Casca no Ministrio Pblico, na verdade o traba-lho estava apenas comeando. o procurador me disse: agora voc vai comear a ser chamada para responder pelo que est escrito no laudo. Compreendi que s ento o processo estava comeando porque novas questes seriam colocadas, todas as pessoas identificadas seriam chamadas a depor e a coisa tomaria o rumo de embate decisrio. estando a, o antrop-logo parte envolvida porque escreveu o documento. hoje, o tema de pesquisa e o campo no so mais aleatrios (Leite, 2004:72).

    5 Outra grande dificuldade nesse tipo de trabalho , para Lei-

    te (2004), uma expectativa errnea que confunde o trabalho do

    antroplogo com o do prprio juiz um juiz sobre a verdade do

    grupo pesquisado e demandante de direitos e no o colaborador

    na traduo de tal verdade dos grupos demandantes e suas con-

    cepes de direito.

  • 44

    Como se v, tanto na posio de Cardoso de Oliveira

    (2004) quanto na de Leite (2004), a questo da produo de

    um conhecimento com responsabilidade, j que constitu-

    do em associao com problemticas centrais na forma de

    existncia de diferentes grupos sociais e tnicos, parece ser

    o prprio sentido da tica nesse espao ativo de sua vida so-

    cial. H aqui uma espcie de relao da atividade profissional

    do antroplogo com a sua condio de cidado, numa esfera

    onde se conciliam os interesses do Estado e diferentes gru-

    pos sociais e tnicos, seja para a construo da nao (como

    tais textos mostraram) ou mesmo sua exploso, como su-

    gere Otvio Velho num artigo de 2008, que retomado por

    mim, num artigo-comentrio presente no livro: tica e Regu-

    lamentao da Pesquisa Antropolgica (Fleischer e Schuch,

    2010). Em meu comentrio, saliento o quanto a proposta de

    Otvio Velho clama para o redirecionamento de uma Antro-

    pologia que no se defina como mentora da democracia

    cujo foco seria a valorizao e a tolerncia diversidade

    cultural mas que se faa a partir de interlocues negocia-

    das e prtica poltica, o que exige uma participao pblica

    antropolgica para alm, inclusive, dos limites de nossa cor-

    porao, como a chama Otvio Velho (2008). As implicaes

    ticas desse chamado ainda esto para ser problematizadas,

    mas, sem dvida, sugerem a renovao das relaes entre a

    Antropologia e outros saberes.

  • 45

    Antropologia e multidisciplinaridade:

    cincia e sua insero social

    exatamente essa expanso da prtica antropolgica que

    marca outro conjunto de questes em que possvel com-

    preender uma vida social ativa da tica na Antropologia, que

    so as interrogaes acerca da multidisciplinaridade. Nesse

    domnio, a tica aparece relacionada uma tenso produti-

    va entre um conjunto de comportamentos e procedimentos

    dirigidos definio sobre o que pesquisa antropolgica e

    suas particularidades, e s concepes em torno da cincia

    e sua insero social. Isto , o debate aqui se dirige para as

    interrogaes sobre como praticar uma Antropologia a par-

    tir de certos procedimentos de pesquisa especficos e/ou seu

    englobamento por demandas mais amplas de engajamento e

    responsabilidade social, as quais podem colocar em suspenso

    ticas particularistas ou mesmo a dimenso da autonomia da

    cincia.

    Debates do campo de uma Antropologia da sade, as te-

    matizaes sobre a produo de laudos antropolgicos e

    acerca de pesquisas sobre polticas diversas de interveno

    social e as relaes do antroplogo com mediadores diver-

    sos lderes comunitrios, assistentes sociais, enfermeiros,

    mdicos, professores, etc. so, nesse caso, preponderantes

    nas discusses. H uma percepo, bem explcita nos escritos

    de Maria Luiza Heilborn (2004) no livro Antropologia tica:

    o debate atual no Brasil, de que a interdisciplinaridade veio a

  • 46

    redefinir a tradio de pesquisas antropolgicas no pas e os

    estudos em equipe passaram a ser cada vez mais frequen-

    tes. Para Heilborn (2004), antroploga com vasta experincia

    nos estudos sobre sade, gnero e sexualidade, as condies

    dessa passagem teriam que ser pensadas tambm relativa-

    mente questo tica: como conciliar uma tica pessoal,

    disciplinar e multidisciplinar? Nota-se que o enfrentamento

    dessa questo pode reformular outras dimenses do trabalho

    antropolgico, como as dimenses da autoria e autoridade,

    tambm levantadas no texto de Leite (2004) sobre a prtica

    de laudos antropolgicos em que se tem que lidar com equi-

    pes mais amplas de profissionais e engajamentos ativos dos

    prprios pesquisados.

    Os relatos de Vctora (2004), Knauth (2004) e Scott (2004),

    todos pesquisadores que contam suas experincias de pesquisas

    multidisciplinares no campo da sade, seguem a mesma preo-

    cupao em relacionar a tica a um conjunto de procedimentos

    vlidos de pesquisa, em colaborao com outros saberes. Vcto-

    ra (2004), a partir de sua experincia de pesquisa sobre sade e

    sexualidade em grupos populares, tematiza os perigos de usos

    de materiais produzidos em contextos disciplinares especficos

    por outras disciplinas (como, por exemplo, o uso etnogrfico

    de pronturios mdicos sem o consentimento do paciente) e,

    tambm, aborda as altas expectativas dos outros profissionais

    para a resoluo de problemas imediatos a partir da indicao

    de caminhos objetivos para a ao. De modo semelhante, as ex-

  • 47

    pectativas em torno de uma urgncia na ao, as quais colo-

    cam em discusso as diferentes temporalidades de produo do

    trabalho antropolgico, aparecem como uma preocupao no

    texto escrito pelo etnlogo Silvio Coelho dos Santos (2004) que,

    ao falar da crescente insero de antroplogos em ONGs, rgos

    estatais, projetos de educao e assistncia sade, lembra os

    desafios de tal disposio6:

    Se, por um lado, temos profcuas experincias com a aproximao com advogados, por exemplo, de outro estamos recebendo demandas que no temos condies de responder satisfatoriamente, especialmente porque essas demandas pre-tendem exigir respostas prontas e acabadas. (Santos, 2004:99).

    Mais uma vez, assim como no dilema pesquisar/atuar que

    abordei anteriormente, a problemtica de como responder

    satisfatoriamente demandas sociais diversas aparece con-

    figurada como uma questo tica. O que se coloca em ques-

    to, nesse caso, so exatamente os procedimentos para sua

    efetivao, o que, por vezes, implica considerar certo des-

    6 A questo do tempo e a sua importante problematizao num

    contexto em que as nossas etnografias esto feitas em perodos

    temporais bem circunscritos e progressivamente menores no

    apenas na prtica de pesquisas feitas por demandas externas, de

    assessorias e consultorias, mas tambm na pesquisa acadmica

    dos cursos de mestrado e doutorado um tema premente de

    maiores produes, uma vez que tal diminuio pode acarretar

    configuraes importantes na formao de conhecimento em An-

    tropologia e, consequentemente, nas dimenses ticas do trabalho

    antropolgico. Sobre isso, sugiro ver Schuch, Vieira e Peters (2010).

  • 48

    compasso entre as formas de pesquisa antropolgica e outras

    formas disciplinares.

    J na proposta de Scott (2004), que escreve um texto

    contando suas vivncias no trabalho de promoo da sade

    em comunidades perifricas de Recife, v-se uma subordi-

    nao dessas problemticas acerca das particularidades da

    Antropologia ao que ele chama de objetivo tico maior, co-

    mum tanto aos antroplogos quanto a outros profissionais e

    agentes envolvidos com as polticas de interveno, que seria

    a prpria promoo da sade. Nesse caso, a tica ganha uma

    vida social ativa no apenas na sua associao com proce-

    dimentos disciplinares de pesquisa em contextos de prticas

    inter/multidisciplinares, mas na configurao do prprio ob-

    jetivo da pesquisa. Para Scott (2004), a sensibilidade poltica

    necessria nesses tipos de empreendimentos de colaborao

    estaria justamente na efetivao de linguagens e prticas de

    comunicao entre os envolvidos que possibilitem a valori-

    zao dos mltiplos caminhos de buscar a sade, sem tentar

    isolar uma voz privilegiando-a como mais ou menos correta

    em relao s demais: Eticamente, este papel cabe ao cien-

    tista tanto quanto a qualquer outro agente social (Scott,

    2004:151).

    A perspectiva sobre tica trazida pela prtica de Scott

    (2004) assemelha-se quela trazida por Fonseca (2010a), a

    qual recupera uma pesquisa da etngrafa da cincia Sheila

    Jasanoff (2005). Esta autora, ao realizar uma anlise antro-

  • 49

    polgica comparativa dos comits nacionais de biotica na

    Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, mostrou como, na

    prtica, a tica era entendida em tais domnios de ao. Seus

    resultados mostraram o quanto havia um reconhecimen-

    to crescente da tica como um frum de comunicao e de

    deliberao democrtica, em oposio ao entendimento da

    tica como um ramo disciplinar, particularizado, dos espe-

    cialistas na anlise da moral. Noto que tal construo sobre

    tica abre a participao de atores diversos inclusive lei-

    gos nas discusses acerca de princpios e procedimentos de

    pesquisa e traz para o centro do debate a dimenso poltica,

    muito mais do que tcnica, envolvida na produo de conhe-

    cimento cientfico. Nesse sentido, a dimenso da prpria au-

    tonomia da cincia coloca-se na berlinda.

    A tica como campo de regulamentaes:

    quando dizer no, no basta

    No entanto, vale evidenciar que progressiva construo

    da tica como um domnio poltico por excelncia, se asso-

    cia o movimento de incremento de procedimentos e arte-

    fatos tcnicos para sua regulamentao e controle, ou seja,

    a considerao da tica como tpico de regulamentao.

    Parece haver, portanto, dois movimentos correlatos: de um

    lado, a crescente considerao da tica como um domnio

    poltico por excelncia; de outro lado, uma espcie de seu

    encapsulamento prtico em artefatos tcnico-burocrticos

  • 50

    prprios de rgos para sua regulamentao e controle, no

    raro forjados como um domnio de tcnico-especialistas.

    Como expem as antroplogas Marie-Andre Jacob e Anne-

    lise Riles (2007), em um texto de introduo a um dossi da

    Revista PoLAR sobre o assunto, publicado em 2007 e provo-

    cativamente chamado The New Bureaucracies of Virtue: an

    introduction (Jacob e Riles, 2007), um dos mais evidentes

    produtos da tica moderna que esse domnio tem que ser

    constantemente explicitado e burocraticamente evidencia-

    do. Todo esse trabalho apresentado como um bem auto-

    evidente, sempre carregado do sentido de tornar as coisas

    melhores (Jacob e Riles, 2007). A primeira questo suscitada

    nessa configurao , sem dvida: melhores para quem; ao

    que se acompanha da interrogao sobre como, afinal de

    contas, produzir esse melhor e tambm de que forma esse

    bem autoevidente chega a ser burocratizado e instituciona-

    lizado nas rotinas das prticas disciplinares. Da o clamor por

    etnografias dos Comits de tica, dessas burocracias da

    virtude, como as autoras os chamam (Jacob e Riles, 2007)7.

    Conscientes de tal cenrio e dos mltiplos planos em que

    7 No Brasil, ainda temos poucas etnografias dos Comits de tica,

    mas destaco a dissertao de mestrado de Harayama (2011), a

    qual manifesta um visvel entusiasmo pelas polticas de regula-

    mentao, embora tambm sofra de uma espcie de lacuna et-

    nogrfica advinda de uma preocupao com o sigilo dos dados,

    perigo j apontado em Fonseca (2010b) na realizao de etnogra-

    fias de instituies modernas.

  • 51

    a tica aparece na pesquisa antropolgica em sua vida so-

    cial ativa, como eu prefiro chamar antroplogos que fazem

    pesquisa no Brasil tm visto com suspeita o incremento dos

    procedimentos de regulamentao tica. Sobretudo, por

    conta de uma crtica ao modo como tais regulamentaes

    foram introduzidas no Brasil, no to diferente do cenrio in-

    ternacional, isto , com forte influncia disciplinar biomdica

    (Diniz, 2005). Como fica evidente na leitura dos artigos dos

    dois livros analisados aqui, na sua construo como polti-

    ca de regulamentao, a tica na Antropologia um campo

    aberto de debates, no obstante a consensual rejeio da ge-

    neralizao do modelo biomdico, motivada por justificativas

    diversas nesse caso nem to consensuais entre os arti-

    gos estudados. Tais justificativas diferenciariam as pesquisas

    antropolgicas dos estudos biomdicos segundo fatores: as

    diferentes formas contextuais e situacionais de produo da

    verdade (Kant de Lima, 2004); as particularidades das pes-

    quisas in situ e pesquisas ex situ (Ramos, 2004); as dificul-

    dades de conciliao entre uma tica universal, fundada na

    representao da pessoa livre, igual e autnoma (intrnseca

    ideologia individualista ocidental) e outras de construo da

    pessoa, possveis de serem encontradas atravs das investi-

    gaes antropolgicas (Duarte, 2004); e a diferena proposta

    por Luis Roberto Cardoso de Oliveira (2004), que especifica as

    pesquisas com seres humanos, nas quais o chamado objeto

    de pesquisa um interlocutor ativo, e as pesquisas em seres

  • 52

    humanos, que envolvem situaes em que os seres humanos

    so objetos de interveno semelhana de cobaias.

    Somam-se a isso os relatos de confrontos concretos de

    pesquisadores com os Comits de tica em Pesquisa, como

    aqueles apresentados por Porto (2010), Vieira (2010), Ferreira

    (2010) e Lima (2010), presentes num dos livros aqui anali-

    sados: tica e Regulamentao da Pesquisa Antropolgica

    (Fleischer e Schuch, 2010), mas que foram constatados por

    outros pesquisadores brasileiros, principalmente concentra-

    dos no campo da sade (Luna, 2007 e Nascimento, 2010, en-

    tre outros). Tais experincias revelam as dificuldades de com-

    preenso das tcnicas de pesquisa da Antropologia, como a

    observao participante, a precedncia da metodologia qua-

    litativa, as complexidades de aplicao de um consentimento

    livre e esclarecido em pesquisas em que o trabalho de campo

    uma modalidade de interao social que no est dada a

    priori sobretudo em populaes de tradio oral (Ferreira,

    2010 e Heilborn, 2004). No caso relatado por Porto (2010),

    que apresentou seu projeto de pesquisa a um Comit de tica

    da Faculdade das Cincias da Sade da UnB e teve seu projeto

    recusado, em funo de inmeros fatores, uma das objees

    foi, inusitadamente, o ttulo do projeto: Qualidade de vida,

    qualidade da sade e qualidade de ateno sade: as bases

    da pirmide social no corao do Brasil. Segundo o CEP, as

    mulheres negras grupo de seu interesse no estavam na

    base da pirmide social e o Distrito Federal local de seu es-

  • 53

    tudo no era o corao do pas, mas sim So Paulo, estado

    mais rico da federao (!).

    Por conta desses fatores e, no obstante o reconheci-

    mento de alguns textos presentes nas coletneas analisadas

    de que pesquisas antropolgicas no podem menosprezar o

    alto poder simblico envolvido nas suas produes (Caroso,

    2004) e da sugesto de que seus efeitos no sejam inclumes

    para as populaes alvo das pesquisas (Fonseca, 2010a), so

    claros os argumentos de que existem profundas diferenas

    entre os modos de produo de pesquisa nas reas sociais e

    biomdicas. Este fato expe a extrema dificuldade em nor-

    matizar procedimentos a partir de uma nica tradio disci-

    plinar. Como em meu prprio comentrio, presente no livro

    tica e Regulamentao da Pesquisa Antropolgica (Fleischer

    e Schuch, 2010), as orientaes biomdicas, ao focarem na

    noo de risco e vulnerabilidade dos sujeitos pesquisados,

    ainda produzem estruturalmente dois tipos de agncia: a de

    um pesquisador ativo e todo poderoso e a de um pesquisa-

    do passivo e vulnervel, que necessita ser protegido (Schuch,

    2010a).

    Noto que essa agncia dos pesquisados sendo configurada

    a partir da noo de vulnerabilidade to ou mais parado-

    xal num contexto onde a prpria percepo da politizao do

    campo de trabalho antropolgico (Velho, 2008) associa-se

    politizao dos grupos por ns pesquisados, tornando difcil

    a sua estrutural subordinao posio de objeto de pes-

  • 54

    quisa. As autoetnografias descritas por Ramos (2007) so

    realidades inescapveis de reflexo. O quadro de crescen-

    te expanso do ensino superior brasileiro, que vem trazen-

    do perfis renovados de estudantes de Antropologia, tambm

    apresenta um cenrio de grande complexidade no que se

    refere produo de conhecimentos (por exemplo, Freitas e

    Harder, 2011). Cabem perguntas aqui sobre a prpria agncia

    de regulamentaes ticas que trabalham estruturalmente

    com uma noo de vulnerabilidade e os possveis efeitos

    dessa estruturao das relaes de pesquisa entre pesquisa-

    dor-pesquisado nos estudos antropolgicos.

    Nesse contexto, o desconforto frente ao quadro de he-

    gemonia disciplinar biomdica vem produzindo uma srie

    de outras inquietaes, num domnio em que cada vez mais

    chegamos concluso de que, simplesmente dizer no, no

    basta. A julgar pela produo antropolgica sobre o assun-

    to em que aqui estou me detendo, pode-se dizer que h um

    esforo duplo. De um lado, o investimento na participao

    de antroplogos e cientistas sociais em Comits de tica em

    Pesquisa e a tentativa de adaptao das orientaes legais

    existentes s especificidades prprias das Cincias Sociais

    (Diniz, 2010; Fleischer, 2010; Heilborn, 2004; Vctora, 2004),

    assim como uma luta para ampliao dos termos legais para

    abarcar especificidades da pesquisa nas humanidades. De

    outro lado, h o esforo para uma recusa reflexiva, como

    incitou Duarte (2004), que se prope a combater orientaes

  • 55

    meta-disciplinares, simultaneamente a debater seriamente

    as principais tenses em torno do assunto.

    Do ponto de vista de pesquisadores que se engajam pratica-

    mente nas atividades relacionadas aos Comits de tica, visvel

    uma espcie de aposta de que tais artefatos ticos-polticos

    possam ser usados como oportunidades para ensejar novos re-

    lacionamentos em pesquisa, aproximando-se da noo de uma

    tica incorporada, no exterior aos procedimentos de pesqui-

    sa, defendida na introduo da coletnea americana organizada

    por Meskell e Pels (2005). A partir desse ponto de vista, Fleischer

    (2010) salienta a importncia da nossa prpria autotraduo e

    autorrepresentao para pblicos mais amplos, em consonn-

    cia ao j escrito por Scott (2004) sobre pesquisas multidiscipli-

    nares. Esse trabalho se torna mais importante se considerarmos

    as observaes de Dora Porto (2010) que, refletindo sobre a re-

    ferida solicitao de modificao do ttulo de seu projeto de pes-

    quisa pelo Comit de tica de sua universidade, tambm sugere

    um extremo desconhecimento, por parte dos membros desse

    comit, dos termos e modos de pesquisa em Cincias Sociais.

    A autora sugere que essa situao pode no ter sido causada

    apenas pela postura de tal comit, mas por uma dificuldade dos

    antroplogos em comunicar claramente as formas de pesquisa

    especficas dessa rea disciplinar.

    Pode-se dizer que a criao de Comits de tica em Pes-

    quisa dedicados avaliao de estudos da rea de pesquisa

    social, em clara oposio pesquisa biomdica, faz parte

  • 56

    desses esforos em direo a uma apropriao de procedi-

    mentos de regulamentao ticos condizentes com as par-

    ticularidades das pesquisas em Cincias Humanas. Como

    exemplo, temos a criao do Comit de tica em Pesquisa do

    Instituto de Cincias Sociais da Universidade de Braslia (CEP/

    IH), mencionado por Diniz (2010). A autora nos informa que

    o CEP/IH foi o primeiro Comit de tica no Brasil especiali-

    zado em pesquisas das Cincias Sociais e Humanas, tendo

    sido oficializado pelo sistema CEP/Conep em 2008, aps ter

    funcionado por dois anos como um comit independente,

    semelhana da experincia argentina (Diniz, 2010).

    A partir do texto de Diniz (2010) possvel verificar os

    imensos esforos para viabilizar procedimentos ticos con-

    dizentes com as particularidades das pesquisas na rea. No

    obstante, tambm possvel verificar que a noo de risco,

    prpria da racionalidade biomdica associada s polticas

    de regulamentao tica, ainda marca significativamente o

    campo de interveno sobre tica, mesmo em tal comit es-

    pecializado em pesquisa social. Isso porque definio de

    pesquisa social, como aquela que utiliza tcnicas qualitati-

    vas de investigao e/ou adota a perspectiva analtica das Ci-

    ncias Sociais e Humanas (Diniz, 2010:184), se adiciona, para

    afirmar a particularidade das pesquisas dessa rea, a tese

    do risco mnimo em que estas, pela definio adotada no

    CEP/IH, envolveriam riscos semelhantes aos existentes nas

    relaes sociais cotidianas. Em que pese tal interpelao, a

  • 57

    tese do risco mnimo das pesquisas sociais se contrape

    s especificidades das pesquisas da rea biomdica e nesse

    sentido que tal noo empregada pelo CEP/IH para proble-

    matizar o uso do Consentimento Livre e Esclarecido nas pes-

    quisas sociais:

    a tese do risco mnimo exige, portanto, uma reconfigu-rao do modelo contratual do tCLe para ser sensvel s par-ticularidades da pesquisa social (Gordon, 2003). no apenas porque a participao no estudo no acarreta danos vida, mas tambm porque o encontro de pesquisa parte de outros fundamentos morais, que recusam a lgica contratual,