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1 MULHERES EDUCADORAS ENTRE O SÉCULO XIX E XX NO RIO GRANDE DO NORTE Rossana Kess Brito de Souza Pinheiro Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN Resumo Neste trabalho configuramos uma identidade para a educadora, no Rio Grande do Norte no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Nos orientamos pela abordagem da História Cultural nos ancorando no paradigma indiciário para perceber um perfil de mulher educadora no universo da educação feminina no período pós- republicano. Numa pesquisa do tipo bibliográfica nos utilizamos, como fonte para análise, de pesquisas que privilegiam as categorias gênero, professora e educação feminina. Constatamos que conduta social era tão ou mais importante que o saber do conteúdo programado. O que contava no perfil da professora, além do conjunto de saberes que ela devia dominar era a decência, a moral a fidelidade aos costumes e a boa educação, as normas, regras e rituais da sociedade e da Igreja Católica. Para além do espaço escolar, este traço religioso católico é comum à maioria das educadoras privilegiadas. Maria, mãe de Jesus de Nazaré, é tomada pelas senhoras da sociedade como exemplo a ser seguido em todas as virtudes. Este modelo Bíblico espraia-se para além da formação social dessas das mulheres colaborando para a formação daquelas que exerciam a profissão de professora, também nas suas condutas pedagógicas. Introdução Há em mim marcas de vidas antepassadas; meus sonhos passeiam por alamedas e casarias distantes. Nesses passeios busco perder-me e, no profundo da alma, encontrar-me: mãe e esposa, mulher e professora (PINHEIRO, 2003, p. 120). Era março de 2008 quando sentimos a necessidade de garimpar as concepções de mundo das mulheres que contribuíram para a educação norte-rio-

19 MULHERES EDUCADORAS ENTRE O - ROSSANA · abordagem da História Cultural nos ancorando no paradigma indiciário para perceber um perfil de mulher educadora no universo da educação

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MULHERES EDUCADORAS ENTRE O SÉCULO XIX E XX NO RIO GRANDE

DO NORTE

Rossana Kess Brito de Souza Pinheiro Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN

Resumo Neste trabalho configuramos uma identidade para a educadora, no Rio Grande do Norte no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Nos orientamos pela abordagem da História Cultural nos ancorando no paradigma indiciário para perceber um perfil de mulher educadora no universo da educação feminina no período pós-republicano. Numa pesquisa do tipo bibliográfica nos utilizamos, como fonte para análise, de pesquisas que privilegiam as categorias gênero, professora e educação feminina. Constatamos que conduta social era tão ou mais importante que o saber do conteúdo programado. O que contava no perfil da professora, além do conjunto de saberes que ela devia dominar era a decência, a moral a fidelidade aos costumes e a boa educação, as normas, regras e rituais da sociedade e da Igreja Católica. Para além do espaço escolar, este traço religioso católico é comum à maioria das educadoras privilegiadas. Maria, mãe de Jesus de Nazaré, é tomada pelas senhoras da sociedade como exemplo a ser seguido em todas as virtudes. Este modelo Bíblico espraia-se para além da formação social dessas das mulheres colaborando para a formação daquelas que exerciam a profissão de professora, também nas suas condutas pedagógicas.

Introdução

Há em mim marcas de vidas antepassadas; meus sonhos passeiam por alamedas e casarias distantes. Nesses passeios busco perder-me e, no profundo da alma, encontrar-me: mãe e esposa, mulher e professora (PINHEIRO, 2003, p. 120).

Era março de 2008 quando sentimos a necessidade de garimpar as

concepções de mundo das mulheres que contribuíram para a educação norte-rio-

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grandense nas pesquisas que envolvem gênero e práticas culturais. Na esteira de uma

sociedade que se constituía republicana, moderna e civilizada, uma representação de

mulher e o seu papel social também eram forjados. Um modelo profissional feminino

era construído no calor das transformações políticas que mudaram a face administrativa

deste país. Mas que modelo se organizava? Em que direção apontava este modelo

docente? Fomos buscá-las na revisão de uma literatura específica sobre o Rio Grande do

Norte. Este corpus bibliográfico nos solicitou um guia, e as perguntas de Silva (2004, p.

27) tornaram-se este guia por sobre a própria bibliografia pesquisada: “O que sabemos

sobre a educação nas primeiras décadas do século XX? Que práticas adotaram? Como

era a organização escolar?”. Em uma proposição anterior, Morais (1998, p.71) se

perguntava: “o que se sabe acerca das leituras femininas no Brasil da segunda metade

do século XIX?”. Em dez anos – 1998-2008 – foi possível identificar o quanto esta

pergunta pôde desmembrar-se em várias outras, na tentativa de capturar as dimensões

existenciais da mulher em sua constituição histórica.

Estas perguntas deslizaram por nossa alma como ecos de uma história sobre

mulher, educação e profissão feminina. A partir deste movimento intelectual, outras

perguntas se organizaram para buscar o perfil ou os perfis de educadoras que estas

pesquisas apontavam: o que já se sabe sobre essas mulheres professoras, esposas, mães,

escritoras? Podemos descortinar seus desejos, suas necessidades, seus anseios,

utilizando estas pesquisas como fonte histórica? Acreditamos que se pode vislumbrá-los

através dos discursos sobre o feminino produzidos por homens e mulheres em várias

configurações. E por meio dos trabalhos de pesquisa que trazem professoras, relações de

gênero e educação feminina, tentamos estabelecer um perfil das educadoras no Rio

Grande do Norte no final do século XIX.

Assim, chegamos ao nosso recorte. O ponto de partida foram as dissertações

e teses apresentadas ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte, pela linha Cultura e História da Educação, assim

como as monografias de Graduação em Pedagogia da última década. Escolhemos os

trabalhos que traziam perfis de mulheres que nasceram ou viveram entre a última

década do século XIX até segunda do século XX. Considerando o período de análise

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deste trabalho – entre 1889 até 1914 –, estas mulheres estariam imersas no mesmo jogo

de representação cultural e territorial.

Ao final, optamos por oito trabalhos acadêmicos entre monografias,

dissertações e teses, que se caracterizaram pela focalização na história de mulheres que

estiveram presentes na organização e consolidação do projeto educacional republicano

no Rio Grande do Norte. Os perfis foram construídos a partir desses trabalhos que

destacam práticas de professoras, de escritoras e de jornalistas neste Estado e que se

unem ao nosso próprio trabalho em suas vertentes teóricas, metodológicas e temáticas,

ligados à base de pesquisa Gênero e Práticas Culturais: abordagens históricas,

educativas e literárias.

Este trabalho ruma na direção de uma história das mulheres-professoras

adultas e de sua educação, atenta às tensões, ambiguidades, relações de poder e de

gênero e a constituição das identidades docentes para além dos quadros da educação

formal nos limites que unem mulher e docência. Em certa medida, pesquisamos,

escrevemos, falamos de nós. Por isso a ideia de Morais (2003a, p.17) nos parece tão

cara: pesquisa e história de vida caminham juntas. Talvez estejamos procurando o

unicórnio dourado quando a realidade é mais simples: as pesquisas privilegiam as

mulheres porque são feitas por mulheres. Se cruzarmos as informações referentes a

temas de pesquisas e gênero de pesquisadores, isto vai ficar muito claro.

Nietzsche (2000) nos lembra que somos nosso rebanho. Nossa verdade é a

do nosso grupo. Bem ou mal, verdade ou mentira é apenas uma forma de inclusão ou

exclusão dos indivíduos em cada formação social. Por isso, buscamos os discursos no

interior deste universo social, ou seja, nas relações sociais e de gênero no Rio Grande do

Norte do final do século XIX e nas pesquisas (nosso “rebanho”, afinal) que oferecem

perfis de educadoras deste Estado.

O que temos nestas pesquisas é a representação dos modos de existência das

mulheres natalenses do fim do século XIX. Estas representações foram percebidas nos

diversos estudos e ajudam a entender esta constituição do ser professora, do ser esposa,

do ser mulher, a partir também dos perfis traçados pelas pesquisas em história da

educação norte-rio-grandense.

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Ao enfocar as práticas educativas de professoras do início do século XX,

Silva (2004) sugere um modelo de mulher discreta, destituída de vaidades e dedicada ao

trabalho docente e à religião católica. Guiomar de Vasconcelos é lembrada por ex-

alunos seus. Era uma moça solteira, de vida reservada e dedicada ao ensino, à família e à igreja. Encontrava-se sempre em companhia da irmã Georgina, e principalmente das amigas Iná e Agá Calafange. De aparência severa, vestida de cores e modelos discretos, essa imagem ainda é lembrada por pessoas que a conheceram. Maria Alves Pessoa, ex-aluna e afilhada, fala a respeito da mestra: “Guiomar era uma moça fina e educada, de modos sérios e discretos. Respeito e admiração ela tinha bastante. Muito discreta com os vestidos e penteados, ela era menos vaidosa que as Calafanges” (SILVA, 2004, p.34).

Essas características da professora são tão lembradas por esses ex-alunos quanto as

informações acerca dos seus métodos de ensino e os materiais utilizados em sala de aula. Isso

demonstra que as práticas sociais (e morais) estavam interligadas com as práticas pedagógicas.

A representação de boa professora era condicionada tanto ao conteúdo programático e à didática

de sala de aula, como a um modo de vestir e de portar-se.

Guiomar de Vasconcelos nasceu em Recife, em 1888, e fez o ensino primário no

Colégio Americano1, em Natal/RN. Permaneceu nesta escola durante quatro anos e teve acesso

a um modelo de educação alicerçado em princípios norte-americanos como cientificidade,

pragmatismo e moral cristã protestante. Privilegiava os processos intuitivos de ensino, a co-

educação dos sexos e disciplinas que elevavam a educação escolar para além do aspecto

instrucional.

A formação da mulher estava embasada em um modelo idealizado de filha, mãe,

esposa, moralmente digna, com condições intelectuais para contribuir de modo efetivo na

ordenação social, a partir do cuidado em princípios de liberdade, individualismo, ordem e

1 Esta primeira escola evangélica do nordeste localizava-se no bairro da Cidade Alta e foi fundada por Katherine Porter, esposa do Rev. Willian Calvin Porter, em 1895 (MATOS, 2008). Segundo Costa (1995), coube naquele período à professora Rebecca Morrisette assumir a condução do Colégio, auxiliada pela brasileira Sidrônia Carvalho, membro da Igreja Presbiteriana de Natal.

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superação. Além das disciplinas notadamente escolares, os preceitos morais e cristãos, as

prendas domésticas, as línguas valorizavam o papel do sexo feminino na família e na sociedade.

Silva (2004, p.94) destaca que, ao ler e reler as entrevistas de seus informantes, as

imagens mais vívidas sobre esta professora eram o traje desprovido de excessos de vaidade, o

porte reservado e a moral destacável. Um exemplo de mulher e de professora. “Vestida de

vestido tubinho, bem acinturado e de mangas longas, ela lia alto com toda a turma, diz Maria

Alves Pessoa, ex-aluna de Guiomar”. O gosto pelas roupas escuras, como o azul, o preto e o

marrom, era um sinal de luto pela morte dos parentes e de seu noivo. Este modo de vestir que

em Guiomar é atribuído ao luto e à tradição que este estado acarreta, podemos verificar em

outras professoras do final do século XIX e início do século XX. Uma predisposição a este tipo

de vestuário.

No trabalho que discute a atuação de Dolores Cavalcanti na sociedade ceará-

mirinense, Melo (2002) provoca uma discussão entre os fazeres profissionais de uma mulher da

elite ceará-mirinense. Suas práticas deixam perceber uma mulher intelectualizada, que acredita

no trabalho e na religião católica como a força motriz para a felicidade terrena.Como escritora,

utiliza o jornal como meio educacional para defender a instrução como mecanismo de

independência e valorização feminina; como religiosa, acredita no trabalho paroquial e no

serviço a exemplo de Maria, mãe de Jesus, e no seu exemplo de virtude; como professora,

condensa na execução das práticas docentes preceitos de mulher cristã-católica e cidadã norte-

rio-grandense.

Dolores Cavalcanti nunca casou. Perante a condição de celibato assumiu uma vida

de dedicação à Igreja Católica e ao trabalho de educadora. Na Igreja Matriz de sua cidade, fazia

parte de um grupo de senhoras denominadas Filhas de Maria, devotas de Nossa Senhora da

Conceição, padroeira da cidade. Entre seus manuscritos, ela deixou um caderno intitulado Mês

de Nossa Senhora das Dores. Nele escreveu a história de Nossa Senhora junto a seu filho Jesus

e passagens da Bíblia. Este caderno possui uma seqüência a ser seguida e é composto de

ladainhas e de exemplos de boa conduta. Seus escritos refletem sua aliança com Maria Nossa

Senhora, tomada pelas senhoras da sociedade como exemplo a ser seguido em todas as virtudes.

Dolores Cavalcanti nasceu em 1885 e entrou para o Colégio Interno Nossa Senhora

das Neves, em João Pessoa/PB, em 1892. No ano de 1896 foi para o Colégio São Vicente de

Paula, em Recife/PE. Em 1902 assumiu como professora no Grupo Escolar Pedro de Oliveira

Correia e, depois, no Grupo Escolar Felipe Camarão. Lecionou também no Colégio Santa

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Águeda, uma escola de orientação católica dirigida pelas freiras da Congregação Irmãs

Franciscanas de Nossa Senhora do Bom Conselho. Todas em Ceará-Mirim/RN. Iniciou-se

como docente em 1902 em Ceará-Mirim, onde ministrou aulas até 1951, e se aposentou em

Natal em 1960. Como outras professoras no início do século, Dolores estava preocupada em

formar as crianças para serem os homens do amanhã. “Procurava garantir, através da

transmissão de bens culturais e de um conjunto de normas e valores, a prática de todas as

virtudes, a obediência às leis, a sujeição e a honra aos poderes constituídos, à dedicação ao país”

(MELO, 2002, p.75).

Conforme Almeida (1998, p.118), a submissão à doutrina religiosa, representada

principalmente pela Igreja Católica e a figura da Virgem Maria, ressaltada e tomada como

exemplo, instalou o mito da mãe que redimia e perdoava, da mulher redentora, que possuiria a

mais absoluta pureza e espírito de sacrifício por ser isenta de qualquer pecado, e a quem caberia

a reprodução das raças. Segundo Lima (1937, p. 346) além desse grupo, existiam vários outros

semelhantes na igreja de Ceará-Mirim. Este fato ocorria em muitas paróquias espalhadas pelo

Rio Grande do Norte, como é possível percebermos, tanto nos jornais do final do século XIX

como nos relatos de professoras do início do século XX.

Esses valores faziam parte de um universo simbólico que formava almas, no dizer

de Carvalho (2001). A versão positivista da República encontrou no Brasil um solo fértil. A lei

de três estados, evidenciada pelo sistema filosófico comteano, previa a superação da Monarquia,

enquanto um sistema político relacionado à fase teológico-militar, pela República, melhor

encarnação da fase positiva de um projeto governamental. O progresso e o desenvolvimento da

Nação são atrelados ao sentido da República como a verdadeira democracia. E esta só seria

possível através de um esforço coletivo de uma educação balizada em um conjunto de normas e

valores legítimos. Este conjunto de valores encontrava nas professoras e na educação ofertada

por elas este mecanismo de difusão. Mas uma difusão que, longe de ser laica como pretendia a

educação constitucional, associava normas pátrias a valores religiosos.

Dolores, tal qual Guiomar, é lembrada por seus ex-alunos a partir de uma formação

que unia a instrução e a religiosidade: uma professora séria2 e exemplar. Inácio Sena,

entrevistado por Melo (2002, p.36), acrescenta a este perfil a amabilidade, a docilidade, a

simplicidade e a elegância no vestir.

2 Pelo que pudemos depreender dos trechos a que tivemos ter acesso através do trabalho lido, esta seriedade era sinônimo de sisudez.

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O mesmo cuidado com o vestir pode ser percebida na documentação acessada por

Rocha Neto (2005, p. 112) e que traz a professora caicoense Júlia Medeiros. Ambas trazem a

moda de seu tempo, as preferências de seus modelos e a relação destas com o meio social a que

estavam expostas.

Duas décadas as separavam, assim como uma grande distância territorial e

formativa. Dolores não cursou Escola Normal como Júlia Medeiros, mas ambas estavam unidas

por serem mulheres professoras, jornalistas, religiosas e celibatárias. Do litoral ao sertão, do

final dos oitocentos até muito além da década de 1920, encontramos permanências nos modos

de fazer e ser docente no Rio Grande do Norte.

Júlia Lopes Medeiros nasceu em Caicó, sertão do Rio Grande do Norte, em 1896.

Numa região conhecida como Seridó e vinda de uma família abastada, foi lhe permitida uma

educação mais completa, que incluía línguas, piano, canto, dança. Típica instrução oitocentista

para as meninas da elite brasileira.Veio para Natal na intenção de ampliar seus estudos.

Manteve-se financeiramente amparada pela herança material da mãe. Este pecúlio lhe fora

destinado por ser a única dentre as cinco irmãs que não tinha pretendentes ao casamento. Às

irmãs estava garantida a sobrevivência pelo matrimônio.Estudou inicialmente no Colégio da

Imaculada da Conceição, fundado em 1902, pela Congregação de Santa Dorotéia de Paula

Frassineti. Este colégio foi a primeira escola religiosa particular de Natal. Rocha Neto (2005)

deixa entrever que a educação primária de Júlia Medeiros foi completada neste colégio religioso

de orientação católica. No ano de 1921, com 25 anos de idade, ingressou na Escola Normal de

Natal, onde se formou docente em 1925, voltando em seguida para Caicó/RN. Os ex-alunos de

Júlia se referem a ela como inteligente, mas desligada. Maneirosa, mas com personalidade forte

e firme. Vaidosa e preocupada com a aparência, estava sempre atenta aos catálogos das

modistas e atendia aos ditames da moda, particularmente durante os dias da Festa de Santana3.

Sua reconhecida intelectualidade a chamava a ser representante dos colegas nas festividades do

Grupo Escolar Senador Guerra, onde lecionou durante muitos anos (FÉLIX, 1997).

Estes atributos a levaram a assumir diversos cargos na cidade, incluindo dois

mandatos como vereadora. No processo de expansão e feminização do magistério, normalistas

como Guiomar, Júlia e Myrtilla Lobo contribuíram na interiorização maciça da educação

primária no Estado. A contribuição destas normalistas foi inegável.

3 Esta festa é a mais importante da região sendo objeto de devoção particular de duas cidades: Caicó e Currais Novos. Sobre a tradição e a relação de pertencimento dos seridoenses a esta festa, ver ARAÚJO; MEDEIROS (2003)

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Myrtilla Moura Lima Lobo foi estudante de escolas públicas elementares até entrar

na Escola Normal de Natal. Sua história como mulher e docente na região do Seridó, das

primeiras décadas do século XX, é contada em uma narrativa auto-biográfica e dada a conhecer

por Morais (2004). Este trabalho apresenta depoimentos transcritos de entrevistas coletadas,

entre os anos de 2001 e 2003, e reflete sobre o ensino e a atuação de professoras primárias no

século XX, na Região do Seridó/RN. Através das narrativas de professoras que figuraram como

alunas ou docentes nessa região do Estado, estes depoimentos reconstituem o modelo

educacional utilizado na região em diversos momentos da nossa historia educacional. A autora

trabalha com três gerações de mulheres, alocando-as como alunas ou docentes em três períodos

históricos, compondo o mosaico de todo o século XX.

A valorização da escolaridade, os castigos corporais, os rituais cívicos no interior

das escolas, são aspectos ressaltados pela autora em relação à primeira metade do século XX.

As memórias das professoras descortinam o cotidiano de uma escola baseada nos princípios da

escola tradicional, preocupada em disciplinar e ordenar uma população de alunos que se

destinavam a ocupar funções sociais compatíveis com o ideal republicano de ordem e progresso.

Myrtilla Lobo nasceu em Natal, em 1914. Fez o primário no Grupo Escolar

Augusto Severo entre, 1922 e 1927. Em 1928, aos 14 anos, ingressou na Escola Normal. Ela

lembra que sua turma no Normal iniciou com 34 alunos e terminou com 05. Sobre essa evasão,

Aquino (2007) deixa pistas: os anos na Escola Normal requeriam disponibilidade e persistência.

Os exames escolares tornavam difícil a ascensão das alunas e dos alunos. Segundo o relato de

Myrtilla Lobo, “os professores tinham energia e moral, dirigiam bem a classe, os alunos

obedeciam” (MORAIS, 2004, p.125). Acreditamos que esta forma de tratamento pedagógico, ao

mesmo tempo em que cuidavam dos aspectos próprios de suas salas de aula, estabeleciam um

padrão para as práticas pedagógicas das futuras e dos futuros professores: trabalhariam com

energia e moral para que seus alunos os obedecessem e, dessa forma, adquirissem o saber

escolar.

Depois de diplomada ela, foi trabalhar em São João do Sabugi. Era uma cidade

pequena e, apenas uma vez por mês um padre, vinha celebrar missa. Segundo a professora, o

padre era muito intransigente; para ele, fora do catolicismo, só existia pecado e maldição.

Myrtilla Lobo era protestante. Com uma formação toda em escolas estatais, esta professora não

teve “ensino religioso nem no primário” (Ibid, p.126). Sua formação religiosa advinha da casa

materna. Ela atribui o preconceito ao fato dela ser da capital. Mas se bem nos lembramos, no

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início da nossa travessia rumo aos perfis das educadoras, vimos que a professora Guiomar de

Vasconcellos tinha uma boa relação com os moradores da também pequena Canguaretama. As

pessoas talvez tivessem medo era de quem não seguisse a religião tradicional do Brasil, a

doutrina católica. Myrtilla se configura em uma exceção do ponto de vista doutrinário religioso

em nossas educadoras aqui caracterizadas.

Uma tradição escolar sob o domínio dos jesuítas impregnou os fazeres educativos

dos preceitos e da moral cristã tomasina (Tomás de AQUINO, 2004). Estes preceitos

atravessam a Reforma Pombalina (SILVA, 2006), os projetos laicos republicanos e encontram

terreno fértil nos recônditos do sertão norte-rio-grandense. Mesmo depois da expulsão dos

jesuítas, mais um século foi vivenciado na escola brasileira sob a doutrina do catolicismo

conservador de inspiração jesuítica. O traço religioso católico exerceu forte influência na

educação e no sistema organizacional escolar brasileiro.

Outras ainda como a professora e escritora Isabel Gondim (MORAIS, 2003b), a

escritora Madalena Antunes (NOGUEIRA, 1999) ou a jornalista Palmyra Wanderley

(CARVALHO, 2004) referendam um modelo de mulher que se espraiava pelas funções sociais

de ser mãe, esposa e professora. As histórias dessas mulheres, os perfis que seus pesquisadores

trazem, a configuração em que viveram provocaram reflexões sobre seus modos de ser e de

fazer como educadoras no Rio Grande do Norte.

Mesmo aquelas que não tiveram uma instrução religiosa católica formal, como as

que estudaram em escolas católicas ou evangélicas, tinham sua orientação religiosa vinda de

outra instituição: a Igreja. A “uma escola verdadeira: o cristianismo” para a educação moral,

retomando aqui a fala de Ângela Marialva ou Palmyra Wanderley (DUARTE; MACÊDO, 2003,

p.23).

E esta Igreja cristã era, em sua maioria, de orientação Católica Apóstolica Romana.

Fomentadora de normas, hábitos e valores, ditava, particularmente nas cidades pequenas, o teor

instrutivo (e prescritivo) das escolas. E quem não se adequasse não encontraria nela lugar, como

no caso da professora Myrtila Lobo, vítima da animosidade da cidade de São João do Sabugi,

por ser protestante. De acordo com o padre local, como ela ministrava aulas de catecismo,

qualquer um que a recebesse estaria vivendo em pecado. No entanto, ela não o sabia, porque

nunca havia estudado em escola religiosa e nem seguia a doutrina católica. Ensinar o catecismo

era premissa para todas as professoras poderem lecionar, mesmo sendo o Estado laico e

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republicano. Não bastava ser cristã, tinha que ser católica para corresponder ao perfil

estabelecido para uma educadora naquele momento histórico.

Dolores, Guiomar, Madalena e tantas outras difundiam os valores republicanos e

católicos apostólicos romanos em instituições educacionais, como as escolas femininas, a

imprensa ou a Igreja. Nos jornais e revistas femininos, manuscritos ou não, as poesias e os

artigos de jornal educavam outras mulheres no sentido de ampliar seu universo intelectual e

suas funções nesta sociedade.

Fazendo uma leitura dos perfis das educadoras, encontramos a tradição católica

como uma marca constante à vida pessoal das mulheres privilegiadas neste capitulo. À exceção

de Myrtilla Lobo, que era protestante, e de Guiomar, que estudou em uma escola evangélica,

todas tiveram uma formação doutrinária católica. Ainda assim, todas assumiam o ideal de

mulher cristã, católica ou não.

A submissão à doutrina religiosa, representada principalmente pela Igreja Católica,

e a figura da Virgem Maria, ressaltada e tomada como exemplo, instalou o mito da mãe que

redimia e perdoava. A mulher redentora, possuidora de pureza e espírito de sacrifício, isenta de

qualquer pecado (ALMEIDA, 1998, p.118). Maria, mãe de Jesus, é exemplo de uma grande

mulher. Ela se dispôs a dar de si mesma para servir humildemente a Deus. De acordo com o

Evangelho de Mateus, Maria recebeu a visita de um anjo portador de uma mensagem divina.

Esta mensagem enviada pelo Deus de Abraão anunciava que ela seria a mãe do filho deste

Deus. (BÍBLIA, 1999, p.1.344).

O caráter servil de Maria é respaldado por outros atributos na relação com as outras

imagens femininas, se não mais fortes que a mãe de Jesus Cristo, tão eloqüentes na sua forma de

representação como nas atitudes sobre elas narradas. A funcionalidade feminina no texto

católico4 também incluía o cuidado do marido e do lar, na figura dos filhos ou da descendência

do marido.

Os preceitos cristãos tornavam claro o papel da mulher na família e na sociedade. E

estavam presentes em todos os meios de educação deste período: na igreja, na escola, nos

jornais, no lar. A confluência entre a constituição do ser mulher educadora de futuros cidadãos

encontra uma relação direta com um perfil feminino que correspondia a este modelo mítico-

religioso presente no cotidiano das mulheres norte-rio-grandenses. No caso da educação e da

4 As relações religiosas serão feitas sempre a partir do texto sagrado da Igreja Católica Apostólica Romana por entender que as educadoras aqui elencadas seguiam estes preceitos, freqüentavam as missas dominicais católicas e ensinavam o catecismo a partir desta doutrina.

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docência, esse modelo ligava-se à construção deste trabalho como sagrado, feminino, mediante

um ideal mariano defendido pela Igreja Católica.

As leituras que fizemos foram orientadas por uma pergunta: o que já se sabe sobre

essas mulheres professoras, esposas, mães, escritoras? Buscávamos perfis de educadoras no Rio

Grande do Norte. E identificamos mulheres que passaram uma vida dedicada à Igreja e à

educação, e que a isto as atividades jornalísticas, literárias , religiosas e maternas, relacionando,

ainda, de educadoras na escola ao de educadoras do lar, tornando-se, além de professoras, mães-

esposas.

O que estas pesquisas evidenciam é uma diversidade considerável de perfis para as

mulheres que educavam na transição do século XIX para o XX. Mas em todas elas, há o traço

religioso cristão, o culto à figura de Maria, o modelo mariano de virtude, a moral católica e uma

tendência a implantar estes princípios no seio das suas práticas educativas. A relação entre a

vida pessoal e o trabalho que desenvolviam é forte no campo religioso, mas esse traço religioso,

essa devoção a Maria ainda confluía para um rumo: o cuidado materno com aquelas e aqueles

que usufruíam de sua educação.

Este cuidado materno irá permear toda representação em torno do ensino escolar

como extensão do trabalho da mulher celibatária, ou não, fora do ambiente doméstico. As

virtudes feminis, a função divina da maternidade, os zelos da dona-de-casa seriam

institucionalizados em uma profissão que gradativamente se tornara feminina: a profissão

docente.

Estes perfis de educadoras – professoras, mães-esposas, jornalistas, escritoras –

indiciam mais do que ideais republicanos, de modernidade ou civilização. O fim do século XIX,

grávido de um modelo de virtude e moralidade trazia no seu cerne a castidade de corpo e de

alma, tal e qual Maria, mãe de Jesus.

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