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MULHERES EDUCADORAS ENTRE O SÉCULO XIX E XX NO RIO GRANDE
DO NORTE
Rossana Kess Brito de Souza Pinheiro Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN
Resumo Neste trabalho configuramos uma identidade para a educadora, no Rio Grande do Norte no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Nos orientamos pela abordagem da História Cultural nos ancorando no paradigma indiciário para perceber um perfil de mulher educadora no universo da educação feminina no período pós-republicano. Numa pesquisa do tipo bibliográfica nos utilizamos, como fonte para análise, de pesquisas que privilegiam as categorias gênero, professora e educação feminina. Constatamos que conduta social era tão ou mais importante que o saber do conteúdo programado. O que contava no perfil da professora, além do conjunto de saberes que ela devia dominar era a decência, a moral a fidelidade aos costumes e a boa educação, as normas, regras e rituais da sociedade e da Igreja Católica. Para além do espaço escolar, este traço religioso católico é comum à maioria das educadoras privilegiadas. Maria, mãe de Jesus de Nazaré, é tomada pelas senhoras da sociedade como exemplo a ser seguido em todas as virtudes. Este modelo Bíblico espraia-se para além da formação social dessas das mulheres colaborando para a formação daquelas que exerciam a profissão de professora, também nas suas condutas pedagógicas.
Introdução
Há em mim marcas de vidas antepassadas; meus sonhos passeiam por alamedas e casarias distantes. Nesses passeios busco perder-me e, no profundo da alma, encontrar-me: mãe e esposa, mulher e professora (PINHEIRO, 2003, p. 120).
Era março de 2008 quando sentimos a necessidade de garimpar as
concepções de mundo das mulheres que contribuíram para a educação norte-rio-
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grandense nas pesquisas que envolvem gênero e práticas culturais. Na esteira de uma
sociedade que se constituía republicana, moderna e civilizada, uma representação de
mulher e o seu papel social também eram forjados. Um modelo profissional feminino
era construído no calor das transformações políticas que mudaram a face administrativa
deste país. Mas que modelo se organizava? Em que direção apontava este modelo
docente? Fomos buscá-las na revisão de uma literatura específica sobre o Rio Grande do
Norte. Este corpus bibliográfico nos solicitou um guia, e as perguntas de Silva (2004, p.
27) tornaram-se este guia por sobre a própria bibliografia pesquisada: “O que sabemos
sobre a educação nas primeiras décadas do século XX? Que práticas adotaram? Como
era a organização escolar?”. Em uma proposição anterior, Morais (1998, p.71) se
perguntava: “o que se sabe acerca das leituras femininas no Brasil da segunda metade
do século XIX?”. Em dez anos – 1998-2008 – foi possível identificar o quanto esta
pergunta pôde desmembrar-se em várias outras, na tentativa de capturar as dimensões
existenciais da mulher em sua constituição histórica.
Estas perguntas deslizaram por nossa alma como ecos de uma história sobre
mulher, educação e profissão feminina. A partir deste movimento intelectual, outras
perguntas se organizaram para buscar o perfil ou os perfis de educadoras que estas
pesquisas apontavam: o que já se sabe sobre essas mulheres professoras, esposas, mães,
escritoras? Podemos descortinar seus desejos, suas necessidades, seus anseios,
utilizando estas pesquisas como fonte histórica? Acreditamos que se pode vislumbrá-los
através dos discursos sobre o feminino produzidos por homens e mulheres em várias
configurações. E por meio dos trabalhos de pesquisa que trazem professoras, relações de
gênero e educação feminina, tentamos estabelecer um perfil das educadoras no Rio
Grande do Norte no final do século XIX.
Assim, chegamos ao nosso recorte. O ponto de partida foram as dissertações
e teses apresentadas ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, pela linha Cultura e História da Educação, assim
como as monografias de Graduação em Pedagogia da última década. Escolhemos os
trabalhos que traziam perfis de mulheres que nasceram ou viveram entre a última
década do século XIX até segunda do século XX. Considerando o período de análise
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deste trabalho – entre 1889 até 1914 –, estas mulheres estariam imersas no mesmo jogo
de representação cultural e territorial.
Ao final, optamos por oito trabalhos acadêmicos entre monografias,
dissertações e teses, que se caracterizaram pela focalização na história de mulheres que
estiveram presentes na organização e consolidação do projeto educacional republicano
no Rio Grande do Norte. Os perfis foram construídos a partir desses trabalhos que
destacam práticas de professoras, de escritoras e de jornalistas neste Estado e que se
unem ao nosso próprio trabalho em suas vertentes teóricas, metodológicas e temáticas,
ligados à base de pesquisa Gênero e Práticas Culturais: abordagens históricas,
educativas e literárias.
Este trabalho ruma na direção de uma história das mulheres-professoras
adultas e de sua educação, atenta às tensões, ambiguidades, relações de poder e de
gênero e a constituição das identidades docentes para além dos quadros da educação
formal nos limites que unem mulher e docência. Em certa medida, pesquisamos,
escrevemos, falamos de nós. Por isso a ideia de Morais (2003a, p.17) nos parece tão
cara: pesquisa e história de vida caminham juntas. Talvez estejamos procurando o
unicórnio dourado quando a realidade é mais simples: as pesquisas privilegiam as
mulheres porque são feitas por mulheres. Se cruzarmos as informações referentes a
temas de pesquisas e gênero de pesquisadores, isto vai ficar muito claro.
Nietzsche (2000) nos lembra que somos nosso rebanho. Nossa verdade é a
do nosso grupo. Bem ou mal, verdade ou mentira é apenas uma forma de inclusão ou
exclusão dos indivíduos em cada formação social. Por isso, buscamos os discursos no
interior deste universo social, ou seja, nas relações sociais e de gênero no Rio Grande do
Norte do final do século XIX e nas pesquisas (nosso “rebanho”, afinal) que oferecem
perfis de educadoras deste Estado.
O que temos nestas pesquisas é a representação dos modos de existência das
mulheres natalenses do fim do século XIX. Estas representações foram percebidas nos
diversos estudos e ajudam a entender esta constituição do ser professora, do ser esposa,
do ser mulher, a partir também dos perfis traçados pelas pesquisas em história da
educação norte-rio-grandense.
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Ao enfocar as práticas educativas de professoras do início do século XX,
Silva (2004) sugere um modelo de mulher discreta, destituída de vaidades e dedicada ao
trabalho docente e à religião católica. Guiomar de Vasconcelos é lembrada por ex-
alunos seus. Era uma moça solteira, de vida reservada e dedicada ao ensino, à família e à igreja. Encontrava-se sempre em companhia da irmã Georgina, e principalmente das amigas Iná e Agá Calafange. De aparência severa, vestida de cores e modelos discretos, essa imagem ainda é lembrada por pessoas que a conheceram. Maria Alves Pessoa, ex-aluna e afilhada, fala a respeito da mestra: “Guiomar era uma moça fina e educada, de modos sérios e discretos. Respeito e admiração ela tinha bastante. Muito discreta com os vestidos e penteados, ela era menos vaidosa que as Calafanges” (SILVA, 2004, p.34).
Essas características da professora são tão lembradas por esses ex-alunos quanto as
informações acerca dos seus métodos de ensino e os materiais utilizados em sala de aula. Isso
demonstra que as práticas sociais (e morais) estavam interligadas com as práticas pedagógicas.
A representação de boa professora era condicionada tanto ao conteúdo programático e à didática
de sala de aula, como a um modo de vestir e de portar-se.
Guiomar de Vasconcelos nasceu em Recife, em 1888, e fez o ensino primário no
Colégio Americano1, em Natal/RN. Permaneceu nesta escola durante quatro anos e teve acesso
a um modelo de educação alicerçado em princípios norte-americanos como cientificidade,
pragmatismo e moral cristã protestante. Privilegiava os processos intuitivos de ensino, a co-
educação dos sexos e disciplinas que elevavam a educação escolar para além do aspecto
instrucional.
A formação da mulher estava embasada em um modelo idealizado de filha, mãe,
esposa, moralmente digna, com condições intelectuais para contribuir de modo efetivo na
ordenação social, a partir do cuidado em princípios de liberdade, individualismo, ordem e
1 Esta primeira escola evangélica do nordeste localizava-se no bairro da Cidade Alta e foi fundada por Katherine Porter, esposa do Rev. Willian Calvin Porter, em 1895 (MATOS, 2008). Segundo Costa (1995), coube naquele período à professora Rebecca Morrisette assumir a condução do Colégio, auxiliada pela brasileira Sidrônia Carvalho, membro da Igreja Presbiteriana de Natal.
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superação. Além das disciplinas notadamente escolares, os preceitos morais e cristãos, as
prendas domésticas, as línguas valorizavam o papel do sexo feminino na família e na sociedade.
Silva (2004, p.94) destaca que, ao ler e reler as entrevistas de seus informantes, as
imagens mais vívidas sobre esta professora eram o traje desprovido de excessos de vaidade, o
porte reservado e a moral destacável. Um exemplo de mulher e de professora. “Vestida de
vestido tubinho, bem acinturado e de mangas longas, ela lia alto com toda a turma, diz Maria
Alves Pessoa, ex-aluna de Guiomar”. O gosto pelas roupas escuras, como o azul, o preto e o
marrom, era um sinal de luto pela morte dos parentes e de seu noivo. Este modo de vestir que
em Guiomar é atribuído ao luto e à tradição que este estado acarreta, podemos verificar em
outras professoras do final do século XIX e início do século XX. Uma predisposição a este tipo
de vestuário.
No trabalho que discute a atuação de Dolores Cavalcanti na sociedade ceará-
mirinense, Melo (2002) provoca uma discussão entre os fazeres profissionais de uma mulher da
elite ceará-mirinense. Suas práticas deixam perceber uma mulher intelectualizada, que acredita
no trabalho e na religião católica como a força motriz para a felicidade terrena.Como escritora,
utiliza o jornal como meio educacional para defender a instrução como mecanismo de
independência e valorização feminina; como religiosa, acredita no trabalho paroquial e no
serviço a exemplo de Maria, mãe de Jesus, e no seu exemplo de virtude; como professora,
condensa na execução das práticas docentes preceitos de mulher cristã-católica e cidadã norte-
rio-grandense.
Dolores Cavalcanti nunca casou. Perante a condição de celibato assumiu uma vida
de dedicação à Igreja Católica e ao trabalho de educadora. Na Igreja Matriz de sua cidade, fazia
parte de um grupo de senhoras denominadas Filhas de Maria, devotas de Nossa Senhora da
Conceição, padroeira da cidade. Entre seus manuscritos, ela deixou um caderno intitulado Mês
de Nossa Senhora das Dores. Nele escreveu a história de Nossa Senhora junto a seu filho Jesus
e passagens da Bíblia. Este caderno possui uma seqüência a ser seguida e é composto de
ladainhas e de exemplos de boa conduta. Seus escritos refletem sua aliança com Maria Nossa
Senhora, tomada pelas senhoras da sociedade como exemplo a ser seguido em todas as virtudes.
Dolores Cavalcanti nasceu em 1885 e entrou para o Colégio Interno Nossa Senhora
das Neves, em João Pessoa/PB, em 1892. No ano de 1896 foi para o Colégio São Vicente de
Paula, em Recife/PE. Em 1902 assumiu como professora no Grupo Escolar Pedro de Oliveira
Correia e, depois, no Grupo Escolar Felipe Camarão. Lecionou também no Colégio Santa
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Águeda, uma escola de orientação católica dirigida pelas freiras da Congregação Irmãs
Franciscanas de Nossa Senhora do Bom Conselho. Todas em Ceará-Mirim/RN. Iniciou-se
como docente em 1902 em Ceará-Mirim, onde ministrou aulas até 1951, e se aposentou em
Natal em 1960. Como outras professoras no início do século, Dolores estava preocupada em
formar as crianças para serem os homens do amanhã. “Procurava garantir, através da
transmissão de bens culturais e de um conjunto de normas e valores, a prática de todas as
virtudes, a obediência às leis, a sujeição e a honra aos poderes constituídos, à dedicação ao país”
(MELO, 2002, p.75).
Conforme Almeida (1998, p.118), a submissão à doutrina religiosa, representada
principalmente pela Igreja Católica e a figura da Virgem Maria, ressaltada e tomada como
exemplo, instalou o mito da mãe que redimia e perdoava, da mulher redentora, que possuiria a
mais absoluta pureza e espírito de sacrifício por ser isenta de qualquer pecado, e a quem caberia
a reprodução das raças. Segundo Lima (1937, p. 346) além desse grupo, existiam vários outros
semelhantes na igreja de Ceará-Mirim. Este fato ocorria em muitas paróquias espalhadas pelo
Rio Grande do Norte, como é possível percebermos, tanto nos jornais do final do século XIX
como nos relatos de professoras do início do século XX.
Esses valores faziam parte de um universo simbólico que formava almas, no dizer
de Carvalho (2001). A versão positivista da República encontrou no Brasil um solo fértil. A lei
de três estados, evidenciada pelo sistema filosófico comteano, previa a superação da Monarquia,
enquanto um sistema político relacionado à fase teológico-militar, pela República, melhor
encarnação da fase positiva de um projeto governamental. O progresso e o desenvolvimento da
Nação são atrelados ao sentido da República como a verdadeira democracia. E esta só seria
possível através de um esforço coletivo de uma educação balizada em um conjunto de normas e
valores legítimos. Este conjunto de valores encontrava nas professoras e na educação ofertada
por elas este mecanismo de difusão. Mas uma difusão que, longe de ser laica como pretendia a
educação constitucional, associava normas pátrias a valores religiosos.
Dolores, tal qual Guiomar, é lembrada por seus ex-alunos a partir de uma formação
que unia a instrução e a religiosidade: uma professora séria2 e exemplar. Inácio Sena,
entrevistado por Melo (2002, p.36), acrescenta a este perfil a amabilidade, a docilidade, a
simplicidade e a elegância no vestir.
2 Pelo que pudemos depreender dos trechos a que tivemos ter acesso através do trabalho lido, esta seriedade era sinônimo de sisudez.
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O mesmo cuidado com o vestir pode ser percebida na documentação acessada por
Rocha Neto (2005, p. 112) e que traz a professora caicoense Júlia Medeiros. Ambas trazem a
moda de seu tempo, as preferências de seus modelos e a relação destas com o meio social a que
estavam expostas.
Duas décadas as separavam, assim como uma grande distância territorial e
formativa. Dolores não cursou Escola Normal como Júlia Medeiros, mas ambas estavam unidas
por serem mulheres professoras, jornalistas, religiosas e celibatárias. Do litoral ao sertão, do
final dos oitocentos até muito além da década de 1920, encontramos permanências nos modos
de fazer e ser docente no Rio Grande do Norte.
Júlia Lopes Medeiros nasceu em Caicó, sertão do Rio Grande do Norte, em 1896.
Numa região conhecida como Seridó e vinda de uma família abastada, foi lhe permitida uma
educação mais completa, que incluía línguas, piano, canto, dança. Típica instrução oitocentista
para as meninas da elite brasileira.Veio para Natal na intenção de ampliar seus estudos.
Manteve-se financeiramente amparada pela herança material da mãe. Este pecúlio lhe fora
destinado por ser a única dentre as cinco irmãs que não tinha pretendentes ao casamento. Às
irmãs estava garantida a sobrevivência pelo matrimônio.Estudou inicialmente no Colégio da
Imaculada da Conceição, fundado em 1902, pela Congregação de Santa Dorotéia de Paula
Frassineti. Este colégio foi a primeira escola religiosa particular de Natal. Rocha Neto (2005)
deixa entrever que a educação primária de Júlia Medeiros foi completada neste colégio religioso
de orientação católica. No ano de 1921, com 25 anos de idade, ingressou na Escola Normal de
Natal, onde se formou docente em 1925, voltando em seguida para Caicó/RN. Os ex-alunos de
Júlia se referem a ela como inteligente, mas desligada. Maneirosa, mas com personalidade forte
e firme. Vaidosa e preocupada com a aparência, estava sempre atenta aos catálogos das
modistas e atendia aos ditames da moda, particularmente durante os dias da Festa de Santana3.
Sua reconhecida intelectualidade a chamava a ser representante dos colegas nas festividades do
Grupo Escolar Senador Guerra, onde lecionou durante muitos anos (FÉLIX, 1997).
Estes atributos a levaram a assumir diversos cargos na cidade, incluindo dois
mandatos como vereadora. No processo de expansão e feminização do magistério, normalistas
como Guiomar, Júlia e Myrtilla Lobo contribuíram na interiorização maciça da educação
primária no Estado. A contribuição destas normalistas foi inegável.
3 Esta festa é a mais importante da região sendo objeto de devoção particular de duas cidades: Caicó e Currais Novos. Sobre a tradição e a relação de pertencimento dos seridoenses a esta festa, ver ARAÚJO; MEDEIROS (2003)
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Myrtilla Moura Lima Lobo foi estudante de escolas públicas elementares até entrar
na Escola Normal de Natal. Sua história como mulher e docente na região do Seridó, das
primeiras décadas do século XX, é contada em uma narrativa auto-biográfica e dada a conhecer
por Morais (2004). Este trabalho apresenta depoimentos transcritos de entrevistas coletadas,
entre os anos de 2001 e 2003, e reflete sobre o ensino e a atuação de professoras primárias no
século XX, na Região do Seridó/RN. Através das narrativas de professoras que figuraram como
alunas ou docentes nessa região do Estado, estes depoimentos reconstituem o modelo
educacional utilizado na região em diversos momentos da nossa historia educacional. A autora
trabalha com três gerações de mulheres, alocando-as como alunas ou docentes em três períodos
históricos, compondo o mosaico de todo o século XX.
A valorização da escolaridade, os castigos corporais, os rituais cívicos no interior
das escolas, são aspectos ressaltados pela autora em relação à primeira metade do século XX.
As memórias das professoras descortinam o cotidiano de uma escola baseada nos princípios da
escola tradicional, preocupada em disciplinar e ordenar uma população de alunos que se
destinavam a ocupar funções sociais compatíveis com o ideal republicano de ordem e progresso.
Myrtilla Lobo nasceu em Natal, em 1914. Fez o primário no Grupo Escolar
Augusto Severo entre, 1922 e 1927. Em 1928, aos 14 anos, ingressou na Escola Normal. Ela
lembra que sua turma no Normal iniciou com 34 alunos e terminou com 05. Sobre essa evasão,
Aquino (2007) deixa pistas: os anos na Escola Normal requeriam disponibilidade e persistência.
Os exames escolares tornavam difícil a ascensão das alunas e dos alunos. Segundo o relato de
Myrtilla Lobo, “os professores tinham energia e moral, dirigiam bem a classe, os alunos
obedeciam” (MORAIS, 2004, p.125). Acreditamos que esta forma de tratamento pedagógico, ao
mesmo tempo em que cuidavam dos aspectos próprios de suas salas de aula, estabeleciam um
padrão para as práticas pedagógicas das futuras e dos futuros professores: trabalhariam com
energia e moral para que seus alunos os obedecessem e, dessa forma, adquirissem o saber
escolar.
Depois de diplomada ela, foi trabalhar em São João do Sabugi. Era uma cidade
pequena e, apenas uma vez por mês um padre, vinha celebrar missa. Segundo a professora, o
padre era muito intransigente; para ele, fora do catolicismo, só existia pecado e maldição.
Myrtilla Lobo era protestante. Com uma formação toda em escolas estatais, esta professora não
teve “ensino religioso nem no primário” (Ibid, p.126). Sua formação religiosa advinha da casa
materna. Ela atribui o preconceito ao fato dela ser da capital. Mas se bem nos lembramos, no
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início da nossa travessia rumo aos perfis das educadoras, vimos que a professora Guiomar de
Vasconcellos tinha uma boa relação com os moradores da também pequena Canguaretama. As
pessoas talvez tivessem medo era de quem não seguisse a religião tradicional do Brasil, a
doutrina católica. Myrtilla se configura em uma exceção do ponto de vista doutrinário religioso
em nossas educadoras aqui caracterizadas.
Uma tradição escolar sob o domínio dos jesuítas impregnou os fazeres educativos
dos preceitos e da moral cristã tomasina (Tomás de AQUINO, 2004). Estes preceitos
atravessam a Reforma Pombalina (SILVA, 2006), os projetos laicos republicanos e encontram
terreno fértil nos recônditos do sertão norte-rio-grandense. Mesmo depois da expulsão dos
jesuítas, mais um século foi vivenciado na escola brasileira sob a doutrina do catolicismo
conservador de inspiração jesuítica. O traço religioso católico exerceu forte influência na
educação e no sistema organizacional escolar brasileiro.
Outras ainda como a professora e escritora Isabel Gondim (MORAIS, 2003b), a
escritora Madalena Antunes (NOGUEIRA, 1999) ou a jornalista Palmyra Wanderley
(CARVALHO, 2004) referendam um modelo de mulher que se espraiava pelas funções sociais
de ser mãe, esposa e professora. As histórias dessas mulheres, os perfis que seus pesquisadores
trazem, a configuração em que viveram provocaram reflexões sobre seus modos de ser e de
fazer como educadoras no Rio Grande do Norte.
Mesmo aquelas que não tiveram uma instrução religiosa católica formal, como as
que estudaram em escolas católicas ou evangélicas, tinham sua orientação religiosa vinda de
outra instituição: a Igreja. A “uma escola verdadeira: o cristianismo” para a educação moral,
retomando aqui a fala de Ângela Marialva ou Palmyra Wanderley (DUARTE; MACÊDO, 2003,
p.23).
E esta Igreja cristã era, em sua maioria, de orientação Católica Apóstolica Romana.
Fomentadora de normas, hábitos e valores, ditava, particularmente nas cidades pequenas, o teor
instrutivo (e prescritivo) das escolas. E quem não se adequasse não encontraria nela lugar, como
no caso da professora Myrtila Lobo, vítima da animosidade da cidade de São João do Sabugi,
por ser protestante. De acordo com o padre local, como ela ministrava aulas de catecismo,
qualquer um que a recebesse estaria vivendo em pecado. No entanto, ela não o sabia, porque
nunca havia estudado em escola religiosa e nem seguia a doutrina católica. Ensinar o catecismo
era premissa para todas as professoras poderem lecionar, mesmo sendo o Estado laico e
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republicano. Não bastava ser cristã, tinha que ser católica para corresponder ao perfil
estabelecido para uma educadora naquele momento histórico.
Dolores, Guiomar, Madalena e tantas outras difundiam os valores republicanos e
católicos apostólicos romanos em instituições educacionais, como as escolas femininas, a
imprensa ou a Igreja. Nos jornais e revistas femininos, manuscritos ou não, as poesias e os
artigos de jornal educavam outras mulheres no sentido de ampliar seu universo intelectual e
suas funções nesta sociedade.
Fazendo uma leitura dos perfis das educadoras, encontramos a tradição católica
como uma marca constante à vida pessoal das mulheres privilegiadas neste capitulo. À exceção
de Myrtilla Lobo, que era protestante, e de Guiomar, que estudou em uma escola evangélica,
todas tiveram uma formação doutrinária católica. Ainda assim, todas assumiam o ideal de
mulher cristã, católica ou não.
A submissão à doutrina religiosa, representada principalmente pela Igreja Católica,
e a figura da Virgem Maria, ressaltada e tomada como exemplo, instalou o mito da mãe que
redimia e perdoava. A mulher redentora, possuidora de pureza e espírito de sacrifício, isenta de
qualquer pecado (ALMEIDA, 1998, p.118). Maria, mãe de Jesus, é exemplo de uma grande
mulher. Ela se dispôs a dar de si mesma para servir humildemente a Deus. De acordo com o
Evangelho de Mateus, Maria recebeu a visita de um anjo portador de uma mensagem divina.
Esta mensagem enviada pelo Deus de Abraão anunciava que ela seria a mãe do filho deste
Deus. (BÍBLIA, 1999, p.1.344).
O caráter servil de Maria é respaldado por outros atributos na relação com as outras
imagens femininas, se não mais fortes que a mãe de Jesus Cristo, tão eloqüentes na sua forma de
representação como nas atitudes sobre elas narradas. A funcionalidade feminina no texto
católico4 também incluía o cuidado do marido e do lar, na figura dos filhos ou da descendência
do marido.
Os preceitos cristãos tornavam claro o papel da mulher na família e na sociedade. E
estavam presentes em todos os meios de educação deste período: na igreja, na escola, nos
jornais, no lar. A confluência entre a constituição do ser mulher educadora de futuros cidadãos
encontra uma relação direta com um perfil feminino que correspondia a este modelo mítico-
religioso presente no cotidiano das mulheres norte-rio-grandenses. No caso da educação e da
4 As relações religiosas serão feitas sempre a partir do texto sagrado da Igreja Católica Apostólica Romana por entender que as educadoras aqui elencadas seguiam estes preceitos, freqüentavam as missas dominicais católicas e ensinavam o catecismo a partir desta doutrina.
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docência, esse modelo ligava-se à construção deste trabalho como sagrado, feminino, mediante
um ideal mariano defendido pela Igreja Católica.
As leituras que fizemos foram orientadas por uma pergunta: o que já se sabe sobre
essas mulheres professoras, esposas, mães, escritoras? Buscávamos perfis de educadoras no Rio
Grande do Norte. E identificamos mulheres que passaram uma vida dedicada à Igreja e à
educação, e que a isto as atividades jornalísticas, literárias , religiosas e maternas, relacionando,
ainda, de educadoras na escola ao de educadoras do lar, tornando-se, além de professoras, mães-
esposas.
O que estas pesquisas evidenciam é uma diversidade considerável de perfis para as
mulheres que educavam na transição do século XIX para o XX. Mas em todas elas, há o traço
religioso cristão, o culto à figura de Maria, o modelo mariano de virtude, a moral católica e uma
tendência a implantar estes princípios no seio das suas práticas educativas. A relação entre a
vida pessoal e o trabalho que desenvolviam é forte no campo religioso, mas esse traço religioso,
essa devoção a Maria ainda confluía para um rumo: o cuidado materno com aquelas e aqueles
que usufruíam de sua educação.
Este cuidado materno irá permear toda representação em torno do ensino escolar
como extensão do trabalho da mulher celibatária, ou não, fora do ambiente doméstico. As
virtudes feminis, a função divina da maternidade, os zelos da dona-de-casa seriam
institucionalizados em uma profissão que gradativamente se tornara feminina: a profissão
docente.
Estes perfis de educadoras – professoras, mães-esposas, jornalistas, escritoras –
indiciam mais do que ideais republicanos, de modernidade ou civilização. O fim do século XIX,
grávido de um modelo de virtude e moralidade trazia no seu cerne a castidade de corpo e de
alma, tal e qual Maria, mãe de Jesus.
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