9
1ª aula de doenças em ACII Apontamentos da aluna Rita Antão, revistos pelo professor da cadeira. A disciplina de ACII divide-se em 2 ramos principais: o primeiro ramo dedica-se ao estudo de novas formas de abordagem da acupuntura (pontos gatilho, selecção de pontos de acordo com grupos musculares, etc…) e de alguns microsistemas (craneopunctura e auriculopunctura). A lógica consiste em providenciar ao aluno um conjunto de ferramentas extra que lhe permita actuar com maior garantia de sucesso numa série de problemas de saúde desde dor a hemiplegias ou outros problemas motores. Uma segunda parte da cadeira consiste no estudo de doenças. O estudo inicia-se pelo diagnóstico e segue até à formulação do protocolo de acupunctura. A lógica consiste em fortalecer o aluno com objectividade e conhecimentos clínicos de forma a conseguir ter uma direcção lógica desde o interrogatório até à aplicação do tratamento. Também serve para rever algumas matérias de Acupuntura Clinica I e aprofundar outras. O texto que se segue foi a primeira aula do ano lectivo de 2008/2009 sobre o estudo de doenças e consequente aplicação de acupuntura. 1º PASSO: DIAGNÓSTICO Queixa principal: 1 – caracteristicas da queixa: devemos sempre iniciar pela queixa principal do paciente. Antes de se abordar outras questões devemos garantir que temos bem analisadas as características próprias de cada queixa e a sua história clínica. Por exemplo, a tosse caracteriza-se por som e presença ou não de expectoração, a urina caracteriza-se pela quantidade, cor, etc…

1ª aula de Acupuntura Clinica II

  • Upload
    nuno

  • View
    93

  • Download
    3

Embed Size (px)

DESCRIPTION

apontamentos da 1ª aula de acupuntura clinica II dada na ESMTC (Escola de Medicina Tradicional Chinesa).

Citation preview

Page 1: 1ª aula de Acupuntura Clinica II

1ª aula de doenças em ACII

Apontamentos da aluna Rita Antão, revistos pelo professor da cadeira.

A disciplina de ACII divide-se em 2 ramos principais: o primeiro ramo dedica-se ao estudo de novas formas de abordagem da acupuntura (pontos gatilho, selecção de pontos de acordo com grupos musculares, etc…) e de alguns microsistemas (craneopunctura e auriculopunctura). A lógica consiste em providenciar ao aluno um conjunto de ferramentas extra que lhe permita actuar com maior garantia de sucesso numa série de problemas de saúde desde dor a hemiplegias ou outros problemas motores.

Uma segunda parte da cadeira consiste no estudo de doenças. O estudo inicia-se pelo diagnóstico e segue até à formulação do protocolo de acupunctura. A lógica consiste em fortalecer o aluno com objectividade e conhecimentos clínicos de forma a conseguir ter uma direcção lógica desde o interrogatório até à aplicação do tratamento. Também serve para rever algumas matérias de Acupuntura Clinica I e aprofundar outras.

O texto que se segue foi a primeira aula do ano lectivo de 2008/2009 sobre o estudo de doenças e consequente aplicação de acupuntura.

1º PASSO: DIAGNÓSTICO

Queixa principal:

1 – caracteristicas da queixa: devemos sempre iniciar pela queixa principal do paciente. Antes de se abordar outras questões devemos garantir que temos bem analisadas as características próprias de cada queixa e a sua história clínica. Por exemplo, a tosse caracteriza-se por som e presença ou não de expectoração, a urina caracteriza-se pela quantidade, cor, etc…

2 – manifestação dos padrões gerais nos sintomas de órgão: não baste ter sintomas de órgão e sintomas de padrões clínicos gerais para se fazer um diagnóstico. Por exemplo, supondo que um paciente apresenta palpitações, frio e astenia física. Neste caso, erradamente, poderíamos diagnosticar uma padrão de vazio de Qi/Yang do Coração.

Digo erradamente porque nos faltam um conjunto de factores relacionais entre sintomas que são cruciais para a justificação do diagnóstico. As palpitações agravam com esforço físico? Agravam com exposição ao frio e melhoram com calor?

Os factores acompanhantes, os factores agravantes/desencadeantes e os factores atenuantes dos sintomas são aqueles que denunciam a relação entre um sintoma de um padrão clínico geral e um sintoma de órgão.

De notar que, apesar de vir na sequência lógica da análise das características próprias do sintomas não é a mesma coisa. Neste caso não falamos das características do sintomas de órgão mas sim de factores que o podem agravar, acompanhar ou atenuar.

Page 2: 1ª aula de Acupuntura Clinica II

Consideremos a seguinte queixa de lombalgia:

1 - Agrava com pressão

2 - Melhora com calor

3 - Quando a dor se encontra mais forte provoca fraqueza dos membros inferiores.

Podemos notar que nestas 4 informações não temos características próprias do sintoma de dor (dor tipo moinha? Tipo facada? Irradia? Sensação de peso? Inicio abrupto ou de longa duração?, etc…)

Temos um factor agravante (pressão), um factor atenuante (calor), um factor acompanhante (fraqueza dos membros inferiores). Associando estes dados à características próprias do sintomas temos tudo o que é necessário para fazer o diagnóstico.

O leitor mais atento também deve ter reparado que, quando segui este procedimento, não fiz mais que aplicar os 8 princípios de diagnóstico (Yin/yang; interno/externo, etc…) de forma lógica conseguindo desta forma fazer um diagnóstico mais conciso, correcto e rápido.

– padrão clínico geral: esta é a última etapa e consiste, unicamente em perceber que mais sintomas de padrões gerais poderão existir. Obviamente, que se assume, neste caso, a existência de uma queixa e um padrão clínico (em casos reais poderão existir outros padrões clínicos e as queixas mais importantes poderão ser várias).

Uma vez que se analisou os procedimentos base iremos aplicá-los de forma a estudar um exemplo clínico.

Sendo a queixa principal tosse com expectoração:

1 – Características dos sintomas: tosse de som fraco, tosse produtiva, expectoração transparente e fluida.

De notar que a tosse pode ser analisada pelo seu inicio (abrupto ou não e que não analisámos neste caso mas será analisado em aulas posteriores), pelo som (forte ou fraco) e pela presença de expectoração (produtiva ou não).

O som forte indica plenitude e o som fraco vazio. A ausência de expectoração pode ser devido a secura ou calor. A sua presença exige uma análise do próprio sintoma.

A expectoração pode ser analisada pela quantidade, espessura, cor, etc… Pouca quantidade indica mucosidade ou calor; muita quantidade indica humidade e/ou frio ou deficiência, cor amarela é típica de calor, cor branca de vento-frio, etc…

Neste caso a expectoração seria transparente (vazio) e fluida (deficiência com aumento dos líquidos orgânicos). Estas características são típicas do vazio de qi.

2 – manifestação dos padrões gerais nos sintomas de órgão: dispneia agrava com astenia, tosse quando se encontra mais cansado ou quando faz esforço físico.

Page 3: 1ª aula de Acupuntura Clinica II

3 – padrão clínico geral: astenia, suor espontâneo, dispneia.

Estes sintomas denunciam um padrão de Vazio de Qi do Pulmão.

Após o diagnóstico devemos considerar a possibilidade de tratar a manifestação ou a raiz. Qual das 2 devemos dar mais importância?

Regra geral, tratam-se as duas. Se a manifestação for muito severa, então, trata-se somente esta. Se não for muito severa pode dar-se mais atenção à tonificação da causa.

Devemos dar atenção a um aspecto: a queixa principal pode estar associada a hábitos de vida. No entanto, no tratamento de Acupunctura, os hábitos de vida não são relevantes mas sim a relação da queixa principal com o padrão clínico. Os hábitos de vida são relevantes para o diagnóstico e para o aconselhamento seja dietético, fitoterápico ou ao aconselhamento relativo a formas de estar, necessárias para melhorar a condição clínica do paciente. Para a acupunctura não são necessários.

2ºPASSO – PRINCÍPIOS TERAPÊUTICOS

Após definirmos o diagnóstico e antes de entrarmos directamente na selecção de pontos de acupuntura é obrigatório saber definir os princípios terapêuticos. Sem princípios terapêuticos a objectividade pela qual se luta na fase de diagnóstico pode-se perder.

Consideremos o paciente que sofria de palpitações por vazio de qi do coração.

Os seus sintomas serão: palpitações que agravam com astenia, suores espontâneos que agravam com esforço fisíco, pré-cordialgias, dor tipo moinha, insónia, astenia.

Neste caso os nossos princípios terapêuticos são relativamente simples. Podem definir-se em 2 etapas:

1 – aliviar palpitações (tratamento direccionado para a manifestação principal);

2 – nutrir o Qi do Coração (princípio terapêutico tradicional e dirigido para o síndrome).

Page 4: 1ª aula de Acupuntura Clinica II

Só após um diagnóstico coeso e princípios terapêuticos bem definidos é que devemos seleccionar os pontos de acupuntura.

…………………………………………………………

3º PASSO

O último passo consiste em criar o protocolo de acupuntura. Este processo pode ser feito em 2 etapas.

Em primeiro lugar damos atenção à queixa principal. Esta é a lógica de tratar a manifestação. A queixa principal é o que preocupa o paciente e, como tal, deve ter particular atenção.

Em segundo lugar, devemos seleccionar os pontos para o padrão clínico. O tratamento do padrão clínico é essencial pois é através dele que tratamos todo o universo de sintomas relacionados (causais ou consequenciais) com a queixa principal. Devemos dar atenção que, a este nível, a formulação de protocolos se torna bastante complexa, uma vez que é necessário uma avaliação cuidadosa do estado clínico do paciente.

Nos livros de ensino da MTC, regra geral, não é possível apresentar estes protocolos, devido à grande diversidade de combinações possíveis. É feita uma apresentação sumária do caso e seleccionado um protocolo mais generalista. Em alguns casos ainda são apresentados pontos secundários para sintomas relevantes. Este é o modelo que uso quando publico artigos sobre doenças. Neste caso falamos de protocolos extremamente personalizados. Vamos ver como.

Uma vez que a queixa principal é arritmia/palpitações devemos seleccionar um conjunto de pontos que sejam específicos para este sintoma. Estes pontos são conhecidos como pontos sintomáticos.

Para palpitações seleccionamos: 14VC, 17VC, 14B, 15B e 6MC. Se o leitor é aluno avançado ou profissional reparou que usei pontos de órgão. Ou seja pontos um da frente do coração (14VC) e do mestre do coração (17VC) e pontos shu das costas (14B) e (15B). Estes pontos são vocacionados para o tratamento dos sintomas de órgão, independentemente do padrão clínico e, por isso, podem designar-se de sintomáticos. Além destes pontos dei ainda atenção ao ponto 6MC. Este é um ponto experimental muito famoso no tratamento de problemas cardíacos.

Além destes pontos eu ainda poderia usar, no protocolo base, o 7C, 4MC e 5MC, por exemplo. Devemos dar atenção à análise dos diferentes pontos do mesmo meridiano. Por exemplo, o ponto 6MC é sintomático para palpitações e ainda acalma a mente (neste caso seria útil devido à insónia), o 5MC também é útil para palpitações e problemas mentais mas está mais associado aos padrões de humidade e o 4MC é o ponto de emergência. Como ponto de emergência deve ser usado em problemas agudos. Se a intensidade da queixa principal fosse

Page 5: 1ª aula de Acupuntura Clinica II

muito severa, então, poder-se-ia associar 6MC com 4MC. Caso contrário não vale a pena estar a usar pontos em demasia.

Agora voltemo-nos para o padrão clínico. É quando entramos no padrão clínico que o problema se torna verdadeiramente complicado. Não é difícil seleccionar pontos para o Vazio de Qi. Existem imensos pontos que tonificam o Qi. Aqui ficam alguns exemplos: 4VC, 6VC, 12VC, 36E, 6BP, 4BP, 4IG, 3R, 3BP, etc…

O verdadeiro problema é saber qual destes pontos é o mais adequado para o paciente. Por outro lado não devemos esquecer que alguns pontos podem ser bons para tratar sintomas de vazio de qi sem serem tónicos de qi.

Relembremos que os sintomas eram: palpitações que agravam com astenia, suores espontâneos que agravam com esforço fisíco, pré-cordialgias, dor tipo moinha, insónia, astenia.

Podemos ter 5 pacientes com estes sintomas e fazer protocolos muito diferentes. Se num paciente a insónia for mais severa que a astenia o protocolo vai ser diferente de outro paciente onde a sudação e a astenia são mais graves que a insónia, por exemplo.

Sendo a astenia mais severa devemos dar atenção a tónicos generalistas como 36E, 6VC ou 6BP. Estes pontos e o 4VC ainda vão ter grande capacidade de nutrir o qi do Baço que ajuda a dar mais força e vitalidade.

Se os suores forem mais severos, pontos como 36E, 4IG e 6C podem ser relevantes. De notar que o 6C é ponto de emergência do coração e como tal é ponto principal para tratar perda de líquidos orgânicos quando associado a meridianos yin. Não precisa ser um tónico do qi. Num vazio de yin do coração com suores nocturnos este ponto também deveria ser usado.

Na presença de frio, pontos termo reguladores como 14VG e 13VG (potencializa a acção do último) deveriam ser prioritários. É mais comum o uso destes pontos em padrões de vazio de yang onde o frio é mais marcado. Mas no vazio de qi também se podem usar.

Agora vamos supor que o frio e a astenia são os sintomas mais importantes. O protocolo final poderia ser: 14VC, 17VC, 14B, 15B, 6MC, 14VG, 36E, 7C, 6VC.

Page 6: 1ª aula de Acupuntura Clinica II

No caso de ser um vazio de qi caracterizado principalmente por suores espontâneos, insónia e astenia o protocolo mudaria para: 14VC, 17VC, 14B, 15B, 6MC, 6C, 36E, 4IG, anmian.

Nestes 2 casos de vazio de qi, pequenas alterações sintomáticas revelaram-se essenciais para se construir um protocolo diferente. Com excepção dos pontos para a queixa principal, que continua a mesma, só o ponto 36E se mantêm. Todos os outros foram alterados. Vamos analisar cada protocolo em separado:

14VC, 17VC, 14B, 15B, 6MC, 14VG, 36E, 7C, 6VC. Os pontos para a queixa principal já foram analisados. Vamos focar-nos nos pontos do padrão clínico. A presença do ponto 14VG vai indicar uma associação entre frio e os sintomas cardíacos. Os pontos 36E e 6VC também ajudam a aquecer o corpo e a aliviar essa associação sintomática. No entanto o seu uso conjunto indica a presença de astenia. São ambos generalistas. Finalmente temos o ponto 7C.

Este ponto ajuda a tonificar o qi. Da mesma forma que no diagnóstico tínhamos sintomas de órgão + sintoma geral + relação entre os 2 dois, no protocolo temos pontos de órgão (17VC, por exemplo) + pontos generalistas (36E) + pontos que servem de ponte (7C). Neste caso o 17VC trata as palpitações, o 36E trata a astenia e o 7C trata as palpitações que agravam com esforço físico, com astenia.

O segundo protocolo era constituído pelos pontos: 14VC, 17VC, 14B, 15B, 6MC, 6C, 36E, 4IG, anmian. Desta vez façamos a leitura a partir do protocolo. Olhando para o protocolo posso fazer várias afirmações:

1 – a queixa principal está associada ao coração, seja dor cardíaca ou palpitações. Sei isto devido à preponderância de pontos locais e sintomáticos para estes sintomas.

2 – O paciente apresenta astenia devido à presença de pontos tónicos do qi e muito usados no tratamento deste sintoma.

3 – existe presença de suores espontâneos devido aos pontos 36E e 4IG (pontos usados para tonificar o qi e eliminar suores) e, em particular, devido ao ponto 6C (ponto de emergência). De notar que neste caso não há ligação entre queixa principal e padrão clínico através do ponto do meridiano do coração. O 6C será útil para as palpitações e para os suores nocturnos. Mas não é necessariamente um tónico do qi.

4 – a presença de insónia enquanto sintoma relevante é denunciada pela presença de pontos como 6MC, 6C e anmian. Os pontos 6MC e 6C são úteis nas palpitações e insónia. Só por estes 2 pontos não consigo dizer se a insónia é mesmo relevante ou não. No entanto a presença do ponto extra anmian diz-me de imediato que a insónia é um sintoma a dar atenção.

Page 7: 1ª aula de Acupuntura Clinica II

O protocolo verdadeiramente personalizado é aquele que além de nos deixar perceber qual a queixa principal e o padrão clínico nos deixa compreender quais os sintomas relevantes no padrão clínico. Esta é a fase mais avançada a que um acupunctor pode chegar. Regra geral ela não é atingida no fim do curso nem no final de alguns anos de prática coesa e fundamentada. Vai sendo adquirida ao longo de toda a vida profissional.