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Langdon era bem versado na obra dantesca e sua fama como historiador da arte especializado em iconografia fazia com que fosse frequentemente chamado para interpretar a enorme variedade de símbolos que compunha a paisagem concebida pelo autor. Por coincidência, ou talvez nem tanto, ele dera uma palestra sobre o Inferno de Dante uns dois anos antes. "Divino Dante: Símbolos do Inferno." Dante Alighieri havia se transformado em um dos verdadeiros objetos de culto da história, o que fizera surgir no mundo todo sociedades dedicadas à sua memória. Seu mais antigo ramo americano fora fundado em 1881, em Cambridge, Massachusetts, por Henry Wadsworth Longfellow. O famoso poeta da Nova Inglaterra, integrante do grupo conhecido como Fireside Poets - for- mado por poetas que, de tão populares, eram lidos pelas famílias em frente à lareira -, fora também o primeiro americano a traduzir A Divina Comédia. Sua consagrada tradução para o inglês continua sendo uma das mais lidas até hoje. Como notório estudioso da obra de Dante, Langdon fora convidado a pales- trar em um evento organizado pela Sociedade Dante Alighieri de Viena, uma das mais antigas do mundo, agendado para acontecer na Academia de Ciências de Viena. Seu principal patrocinador - um cientista de grande fortuna e mem- bro da sociedade - havia conseguido reservar o salão de conferências de dois mil lugares da academia. Quando Langdon chegou ao evento, foi recebido pelo diretor da conferência. Enquanto atravessavam o saguão da Academia, não pôde deixar de notar as cinco palavras pintadas em letras gigantescas na parede dos fundos: E SE DEUS ESTAVA ERRADO? - É de Lukas Troberg - sussurrou o diretor. - Nossa mais recente instalação de arte. O que o senhor acha? Langdon fitou o texto descomunal, sem saber ao certo o que responder. - Hum... ele não poupa tinta, mas seu domínio do subjuntivo deixa a desejar. O diretor o encarou com uma expressão confusa. Langdon torceu para sua química com a plateia ser melhor. Quando enfim subiu ao palco, recebeu uma vigorosa salva de palmas._ O auditório estava lotado e só havia lugar em pé. - M eine Damen und Herren - começou ele, fazendo a voz retumbar pelos alto-falantes. - Willkommen, bienvenue, bem-vindos. A famosa frase do musical Cabaret arrancou risadas bem-humoradas do público. - Fui informado de que esta noite nossa plateia inclui não só membros da Sociedade Dante Alighieri como também diversos cientistas e estudantes que talvez estejam explorando o universo do poeta pela primeira vez. Então, para aqueles que têm andado ocupados demais estudando, sem tempo para ler épi- cos medievais italianos, achei que seria interessante começar com um breve resumo sobre Dante: sua vida, sua obra e por que ele é considerado uma das' figuras mais influentes da história. Mais aplausos. Usando o pequeno controle remoto em sua mão, Langdon fez surgir uma série de imagens de Dante. A primeira delas foi o retrato de corpo inteiro pinta- do por Andrea del Castagno, que mostrava o poeta parado diante de um portal segurando um livro de filosofia. - Dante Alighieri, escritor e filósofo florentino, viveu entre os anos 1265 e 1321. Neste retrato, como em quase todos os demais, está usando na cabeça um cappuccio vermelho, um gorro justo, trançado, com abas nas orelhas, junto com a túnica vermelha Lucca. Essa é a imagem mais amplamente divulgada de Dante. Langdon avançou os slides até o retrato pintado por Botticelli e exposto na Galleria degli Uffizi que frisava os traços mais salientes do poeta: seu queixo destacado e o nariz adunco. -- Aqui, o rosto inconfundível de Dante encontra-se mais uma vez emoldu- rado pelo cappuccio vermelho, mas, nessa representação, Botticelli acrescentou uma coroa de louros por sua expertise em artes poéticas. Um símbolo tradicio- nal emprestado da Grécia Antiga e até hoje usado em cerimônias de premiação de poetas laureados e ganhadores do Prêmio Nobel.

1º Texto Reverbera Dante

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1º Texto Reverbera Dante

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  • Langdon era bem versado na obra dantesca e sua fama como historiador da arte especializado em iconografia fazia com que fosse frequentemente chamado para interpretar a enorme variedade de smbolos que compunha a paisagem concebida pelo autor. Por coincidncia, ou talvez nem tanto, ele dera uma palestra sobre o Inferno de Dante uns dois anos antes.

    "Divino Dante: Smbolos do Inferno." Dante Alighieri havia se transformado em um dos verdadeiros objetos de

    culto da histria, o que fizera surgir no mundo todo sociedades dedicadas sua memria. Seu mais antigo ramo americano fora fundado em 1881, em Cambridge, Massachusetts, por Henry Wadsworth Longfellow. O famoso poeta da Nova Inglaterra, integrante do grupo conhecido como Fireside Poets - for-mado por poetas que, de to populares, eram lidos pelas famlias em frente lareira -, fora tambm o primeiro americano a traduzir A Divina Comdia. Sua

    consagrada traduo para o ingls continua sendo uma das mais lidas at hoje. Como notrio estudioso da obra de Dante, Langdon fora convidado a pales-

    trar em um evento organizado pela Sociedade Dante Alighieri de Viena, uma das mais antigas do mundo, agendado para acontecer na Academia de Cincias de Viena. Seu principal patrocinador - um cientista de grande fortuna e mem-bro da sociedade - havia conseguido reservar o salo de conferncias de dois

    mil lugares da academia.

    Quando Langdon chegou ao evento, foi recebido pelo diretor da conferncia. Enquanto atravessavam o saguo da Academia, no pde deixar de notar as cinco palavras pintadas em letras gigantescas na parede dos fundos: E SE DEUS ESTAVA ERRADO?

    - de Lukas Troberg - sussurrou o diretor. - Nossa mais recente instalao de arte. O que o senhor acha?

    Langdon fitou o texto descomunal, sem saber ao certo o que responder. - Hum... ele no poupa tinta, mas seu domnio do subjuntivo deixa a desejar. O diretor o encarou com uma expresso confusa. Langdon torceu para sua

    qumica com a plateia ser melhor.

    Quando enfim subiu ao palco, recebeu uma vigorosa salva de palmas._ O auditrio estava lotado e s havia lugar em p.

    - M eine Damen und Herren - comeou ele, fazendo a voz retumbar pelos alto-falantes. - Willkommen, bienvenue, bem-vindos.

    A famosa frase do musical Cabaret arrancou risadas bem-humoradas do pblico.

    - Fui informado de que esta noite nossa plateia inclui no s membros da Sociedade Dante Alighieri como tambm diversos cientistas e estudantes que talvez estejam explorando o universo do poeta pela primeira vez. Ento, para aqueles que tm andado ocupados demais estudando, sem tempo para ler pi-cos medievais italianos, achei que seria interessante comear com um breve resumo sobre Dante: sua vida, sua obra e por que ele considerado uma das' figuras mais influentes da histria.

    Mais aplausos.

    Usando o pequeno controle remoto em sua mo, Langdon fez surgir uma srie de imagens de Dante. A primeira delas foi o retrato de corpo inteiro pinta-do por Andrea del Castagno, que mostrava o poeta parado diante de um portal segurando um livro de filosofia.

    - Dante Alighieri, escritor e filsofo florentino, viveu entre os anos 1265 e 1321. Neste retrato, como em quase todos os demais, est usando na cabea um cappuccio vermelho, um gorro justo, tranado, com abas nas orelhas, junto com a tnica vermelha Lucca. Essa a imagem mais amplamente divulgada de Dante.

    Langdon avanou os slides at o retrato pintado por Botticelli e exposto na Galleria degli Uffizi que frisava os traos mais salientes do poeta: seu queixo destacado e o nariz adunco.

    -- Aqui, o rosto inconfundvel de Dante encontra-se mais uma vez emoldu-rado pelo cappuccio vermelho, mas, nessa representao, Botticelli acrescentou uma coroa de louros por sua expertise em artes poticas. Um smbolo tradicio-nal emprestado da Grcia Antiga e at hoje usado em cerimnias de premiao de poetas laureados e ganhadores do Prmio Nobel.

  • Langdon passou depressa por vrias outras imagens, todas mostrando Dante com seu nariz proeminente, sua coroa de louros e seu gorro e tnica vermelhos.

    - E aqui, para fixar melhor a imagem de Dante, est a esttua que se pode ver na Piazza di Santa Croce.... E, como no poderia faltar, o famoso afresco atribudo a Giotto, na capela do palcio Bargello.

    Langdon deixou o slide do afresco de Giotto na tela e foi at o centro do palco.

    - Como vocs j sabem, Dante mais conhecido por sua monumental obra--prima literria, A Divina Comdia, um relato vvido e brutal de sua descida ao Inferno, de sua jornada pelo Purgatrio e, por fim, de sua ascenso ao Para-so para entrar em comunho com Deus. Pelos padres modernos, A Divina Comdia no tem nada de cmico. chamada de comdia por um motivo bem diferente. No sculo XIV, a literatura italiana ra obrigatoriamente dividida em duas categorias. A primeira, a tragdia, representava a alta literatura e era escri-ta em italiana formal. A outra, a comdia, representava a baixa literatura, era *escrita em vernculo e destinada a ser lida pela populao em geral.

    Langdon avanou os slides at a famosa pintura de Michelino, que mostrava Dante em p diante dos portes de Florena segurando um exemplar do seu poema pico. Ao fundo, a montanha dividida em terraos do Purgatrio se erguia bem alto acima dos portes do Inferno. A pintura ficava em Florena, na catedral de Santa Maria del Fiore, mais conhecida como II Duomo.

    - Como vocs j devem ter adivinhado pelo ttulo - prosseguiu Langdon - A Divina Comdia foi escrita em vernculo, ou seja, na lngua do povo. Mesmo assim, mesclava de forma brilhante religio, histria, poltica, filosofia e anlise social em uma tapearia ficcional que, embora erudita, no deixava de ser ple-namente acessvel s massas. A obra se tornou de tal forma um pilar da cultura italiana que o estilo literrio de Dante foi considerado responsvel pela prpria codificao da lngua italiana moderna.

    Langdon fez uma breve pausa dramtica e ento sussurrou:

    - Amigos, impossvel superestimar a influncia da obra de Dante. Ao longo de toda a histria, com exceo apenas das Escrituras Sagradas talvez, nenhu-

    ma obra de arte visual, musical ou literria inspirou tantos tributos, imitaes, variaes comentrios quanto A Divina Comdia.

    Depois de listar um extenso rol de compositores, artistas e escritores que haviam criado obras com base no poema pico de Dante, Langdon correu os olhos pela plateia.

    - Temos algUm escritor aqui esta noite? - perguntou.

    Quase um tero da plateia levantou a mo. Langdon ficou chocado. ficai! Ou esta a plateia mais bem-sucedida do mundo, ou esse tal mercado de livros digitais est mesmo comeando a decolar.

    - Bem, como todos os escritores presentes esto cansados de saber, no h nada que deixe um autor mais feliz do que um elogio de capa: aquela linhazinha de aval de algum figuro que faz as pessoas quererem comprar o seu livro. Na Idade Mdia, no s os elogios de capa j existiam como Dante ganhou vrios deles.

    Langdon trocou os slides na tela. - O que vocs achariam disso na capa do seu livro?

    O maior dos homens que j pisou nesta Terra.

    - Michelangelo

    Um burburinho de surpresa correu pela plateia.

    - Sim - falou Langdon -, o mesmo Michelangelo que todos vocs conhe-cem por conta da Capela Sistina e do Davi. Alm de ser um mestre da pintura e da escultura, Michelangelo era um exmio poeta e publicou quase trezentos poemas, entre eles um intitulado "Dante", dedicado ao homem cujas vises desoladoras inspiraram o seu Juzo final. Se no acreditam em mim, basta que leiam o Canto III do Inferno de Dante e depois visitem a Capela Sistina; logo acima do altar, vero esta imagem familiar.

    Langdon avanou os slides at o detalhe assustador de uma montanha de msculos que brandia um remo gigante contra um grupo de pessoas encolhidas.

    - Este Caronte, o barqueiro infernal de Dante, espancando com um remo um grupo de passageiros que havia se dispersado.

  • FaJOIJI4 Fala ti JIJU-G JCV.11111.C, ULULO detalhe do Juzo final de Miche- langelo, que mostrava um homem sendo crucificado.

    - E este Ham, o agagita, que, segundo as Escrituras, foi condenado forca. No poema de Dante, porm, ele crucificado. Como podem ver neste detalhe da Capela Sistina, Michelangelo preferiu a verso dantesca bblica. - Langdon sorriu e baixou a voz at um sussurro: - No contem ao papa.

    A plateia riu. - O Inferno de Dante criou um mundo de dor e sofrimento nunca antes

    imaginado pelo homem e definiu nossas vises modernas do Inferno. - Ele fez uma pausa. - Podem acreditar: a Igreja Catlica tem muito a agradecer a Dante. Seu Inferno aterrorizou fiis por sculos a fio e triplicou o nmero de frequentadores da Igreja.

    Langdon trocou o slide.

    - O que nos leva ao motivo que nos trouxe aqui esta noite.

    Ento o ttulo de sua palestra apareceu na tela: DIVINO DANTE: SMBOLOS DO INFERNO.

    - O Inferno de Dante to rico de simbolismos e iconografia que costumo lhe dedicar um curso de um semestre inteiro. Hoje, achei que no haveria melhor maneira de desvendar seus smbolos do que caminhar lado a lado com

    o seu autor, atravs dos portes do Inferno. Langdon foi at a beira do palco e correu os olhos pela plateia.

    - Se pretendemos dar um passeio pelo Inferno, recomendo enfaticamente que usemos um mapa. E no existe nenhum mapa do Inferno dantesco mais completo e preciso do que aquele pintado por Sandro Botticelli.

    Ele apertou um boto no controle remoto e o pavoroso Mappa dell'Inferno de Botticelli surgiu diante da plateia. Ouviram-se vrios arquejos medida que as pessoas assimilavam os diversos horrores que ocorriam na caverna subterrnea em formato de funil.

    - Ao contrrio de alguns artistas, Botticelli foi extremamente fiel em sua interpretao do texto de Dante. Na verdade, ele passou tanto tempo lendo o autor que o grande historiador da arte Giorgio Vasari afirmou que a obsesso de Botticelli Ror Dante causou "graves distrbios em sua vida". De fato, Botti-celli criou mais de duas dzias de outras obras relacionadas ao poeta florentino, mas esse mapa a mais famosa de todas.

    Ento Langdon se virou, apontando o canto superior esquerdo da pintura.

    - Nossa jornada comear aqui, na superfcie, onde vocs podem ver Dante, vestido de vermelho, junto de seu guia, Virglio, em p diante dos portes do Inferno. A partir desse ponto, desceremos pelos nove crculos infernais de Dante at enfim ficarmos cara a cara com...

    Langdon logo passou para um novo slide - uma ampliao gigante de Sata-ns conforme retratado por Botticelli naquele mesmo quadro: um Lcifer hor-ripilante de trs cabeas devorando trs homens diferentes, um em cada boca.

    Um sussurro de espanto ecoou pela plateia. - Apenas uma prvia das prximas atraes - anunciou Langdon. - Esse

    personagem assustador marca o fim da nossa jornada de hoje noite. Esse o nono crculo do Inferno, onde mora o prprio Satans. Porm... - Langdon fez

    uma pausa. - Metade da graa est no caminho at l, ento vamos retroceder um pouco... de volta aos portes do Inferno, onde nossa viagem comea.

    Ele passou para o slide seguinte: uma litogravura de Gustave Dor que

    mostrava uma entrada escura em forma de tnel escavada na encosta de um

    penhasco de aspecto lgubre. A inscrio sobre a porta dizia: ABANDONAI

    TODA A ESPERANA, VS QUE AQUI ENTRAIS. _ _

    - Ento... - falou com um sorriso. - Vamos entrar?

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