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pau pedra

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  • pau, pedra, o fim de um caminho

    Csar Benjamin

    Revista Piau n. 103, Abril de 2015

    Um dos estilos mais tpicos da oratria antiga eram os chamados discursos epidcticos,

    nos quais o tribuno apenas enfatizava aquilo que as plateias esperavam ouvir. Tratava-

    se, principalmente, de elogiar o elogivel, exaltando as qualidades de um homem

    ilustre recm-falecido, enaltecendo uma cidade diante de seus habitantes, louvando

    qualidades abstratas, como a bondade e a justia, e assim por diante.

    Com o tempo, os grandes tribunos perceberam que no havia verdadeiro

    mrito nisso. Dedicaram-se, ento, a buscar a perfeio da oratria na prtica oposta,

    a de elogiar o feio, o ridculo ou at mesmo o abominvel.

    Luciano e Leo Baptista Alberto descreveram as virtudes da mosca. Polcrates

    louvou os ratos. Luz Uviqulio enalteceu os gafanhotos. Clitrio escolheu o caruncho.

    Favnio, as febres. Betubo, os mosquitos. Miguel Psellos, as pulgas. Sinsio, a careca. E

    Andr Amnio fez um antolgico discurso em que descreveu as belezas do nada.

    Tivesse eu esse talento, faria o elogio de Dilma Rousseff, o elogio da nulidade.

    * * *

    Nunca se viu coisa igual: um governo que toma posse e no comea, que j no

    primeiro trimestre se desmoraliza e se arrasta de derrota em derrota, e cuja maior

    esperana conseguir agonizar em praa pblica por quatro anos, sem nada propor ao

    pas. No dar certo, claro, embora ainda no saibamos como.

  • H poucos meses, falar em crise era coisa de gente ranzinza, como eu. Hoje,

    chover no molhado. Mas acho que as pessoas ainda no perceberam o tamanho e a

    complexidade da confuso em que nos metemos. Estamos diante de diversas crises,

    superpostas e combinadas, que apenas iniciam. coisa de grandes propores. Dadas

    as caractersticas da sociedade brasileira atual, talvez venha a ser a mais grave crise da

    nossa histria.

    Sua dimenso mais evidente o esgotamento da poltica econmica que

    prevaleceu nos doze ltimos anos. Desde 2003 ouvimos a promessa de combinar

    desenvolvimento e justia social, tendo o mercado interno, pela primeira vez, como o

    principal elemento dinmico.

    Depositrios da memria desse meritrio projeto, longamente amadurecido,

    os governos do PT anunciaram a novidade, mas no souberam lev-la adiante:

    abandonaram a agenda de reformas estruturais, entre as quais a agrria e a tributria;

    descuidaram da expanso dos bens e servios de uso coletivo; no conseguiram

    coordenar e executar os investimentos necessrios em infraestrutura; praticamente s

    criaram empregos em setores de baixa produtividade; assistiram, sem reagir,

    reprimarizao da nossa pauta de exportaes e desindustrializao do pas,

    fenmenos associados a uma insero declinante no sistema internacional. Em vez de

    tratar desses assuntos difceis e decisivos , a poltica econmica concentrou-se, cada

    vez mais, em artifcios voltados para aquecer a demanda no curto prazo.

    A promessa de um ciclo longo de desenvolvimento centrado na expanso do

    mercado interno degenerou em uma bolha de consumo.

    * * *

    Essa experimentao econmica acabou. Como o peso das tentativas de distribuio

    de renda foi jogado sobre os gastos fiscais do Estado, o qual no se libertou da

    condio de refm da acumulao rentista, as finanas pblicas foram para o buraco.

    E, como o sistema produtivo brasileiro no acompanhou a demanda em grande

  • parte, por uma poltica cambial irresponsvel , nossas contas externas tambm

    desandaram.

    Com a economia estagnada, temos um dficit pblico de mais de 6% do PIB e

    outro dficit de mais de 4% do PIB nas contas externas. Isso quer dizer que Estado e

    sociedade esto em uma espiral de endividamento, com o pas parado. Foi preciso

    pisar fundo no freio. O crescimento, que era baixo nos ltimos anos, ser negativo em

    2015, enquanto 2016 j parece longo prazo. Estamos entrando em uma recesso cuja

    durao e profundidade ainda desconhecemos.

    Isso foi escondido at as eleies. Logo em seguida, o mesmo governo que,

    at ontem, se legitimava por meio da apologia do consumo passou a adotar sem

    aviso, sem negociaes e sem explicaes um conjunto de polticas que visam, antes

    de tudo, contrair bruscamente esse mesmo consumo, na mais pura ortodoxia

    econmica. No podia dar certo.

    * * *

    A segunda dimenso da crise, menos visvel, o esgotamento simultneo dos quatro

    mecanismos usados na ltima dcada para promover alguma distribuio de renda.

    Os aumentos reais do salrio mnimo, iniciados em 1994 e mantidos sem

    interrupo at 2014, ficaro doravante comprometidos pelo pfio desempenho do PIB

    e pelo aperto nas contas da Previdncia Social.

    As polticas de transferncia de renda, centradas no programa Bolsa Famlia,

    atingiram seu teto de expanso, tanto em nmero de famlias beneficiadas quanto no

    valor dos benefcios. A precria situao fiscal do Estado no permite novos aumentos

    significativos.

    Dado o nvel de endividamento da populao, o crdito se contrai pela

    primeira vez em doze anos.

  • O aumento da formalizao do trabalho arrefece e d lugar a um novo ciclo de

    desemprego ascendente, principalmente na indstria.

    O distributivismo sem reformas atingiu seu limite. A recesso se encarregar

    de anular boa parte dos ganhos que o povo brasileiro obteve na ltima dcada, o que

    prenuncia uma crise social importante. As populaes que aumentaram sua

    capacidade de consumo e viram nisso uma expresso acabada de ascenso tero

    muitos motivos para reagir s perdas que se avizinham. No temos instituies que

    acolham e canalizem sua provvel rebeldia, que ainda no se expressou (elas no

    estiveram significativamente presentes nas manifestaes dos dias 13 e 15 de maro).

    * * *

    A terceira dimenso da crise especificamente poltica. O loteamento do Estado, com

    o consequente rebaixamento do Congresso Nacional e da prpria ideia de poltica,

    tornou-se o principal mecanismo de construo da chamada governabilidade. Levado

    ao extremo, ele eliminou a capacidade desse mesmo Estado conduzir

    empreendimentos complexos e de longa maturao, que so os mais importantes. A

    poltica afastou-se das grandes questes nacionais.

    A governabilidade assim obtida no curto prazo a contraface de uma

    tendncia ingovernabilidade no longo prazo, pelo acmulo de desafios relevantes

    no enfrentados.

    Como escrevi aqui em 2013, o longo prazo chegou: as disfuncionalidades

    desse tipo de poltica j superam, de longe, qualquer contribuio que ela possa nos

    dar. No obstante, ela prossegue, pois o sistema funciona no piloto automtico.

    Construmos um Estado gil para premiar amigos e punir adversrios, mas inoperante

    para liderar um projeto nacional.

    Nosso sistema poltico gira em falso. Governa a si mesmo, em vez de governar

    o Brasil. Presos nessa armadilha, nos tornamos uma sociedade de vontade fraca, que

  • no consegue canalizar sua energia para o que verdadeiramente importa. Sociedades

    assim perdem a capacidade de se desenvolver, ainda mais em um contexto

    internacional, como o atual, em que as disputas se acirram.

    * * *

    A esse quadro preocupante somam-se trs crises especficas, mas muito relevantes.

    A crise no abastecimento de gua, principalmente em So Paulo, onde est

    nossa maior metrpole, nossa agricultura mais forte e nossa maior concentrao

    industrial.

    A crise do setor eltrico, que j se expressa na disparada das tarifas e em

    apages sucessivos, e provavelmente exigir novo racionamento de energia ao longo

    do ano.

    A crise da Petrobras e da engenharia pesada, que somadas sua extensa

    cadeia de fornecedores representam em torno de 10% do PIB. Ainda desconhecemos

    os efeitos da contrao desses investimentos sobre o conjunto da indstria e o

    impacto da perda patrimonial desses setores sobre a higidez do sistema financeiro, dos

    fundos de penso e de outros investidores institucionais, como o prprio FAT. Esse

    impacto especificamente financeiro, que permanece incubado e despercebido, poder

    vir a causar, adiante, um dramtico agravamento da crise que est comeando.

    * * *

    Esgotaram-se, simultaneamente, a poltica econmica, a poltica social e a maneira de

    fazer poltica adotadas pelos governos do PT. A rigor, no estamos assistindo apenas

    ao fim de um ciclo, mas de dois. No olhar de curto prazo, desfaz-se a hegemonia que

  • prevaleceu na poltica brasileira na ltima dcada e, com ela, comea a se desfazer a

    polarizao do pas em dois blocos, um liderado pelo PT, outro pelo PSDB, com o

    PMDB como fora pendular.

    Em um olhar mais abrangente, estendido no tempo, tambm chega ao fim o

    impulso ideolgico e institucional que a sociedade brasileira ganhou na dcada de

    1980. A maioria do nosso povo j no se reconhece nos partidos, nas organizaes da

    sociedade civil e nos movimentos sociais nascidos ou reestruturados no fim do regime

    militar, h mais de trinta anos. A sociedade mudou, e eles envelheceram.

    Um ciclo longo da poltica brasileira est terminando. Entramos em voo cego.

    Ser preciso reconstruir referncias, o que no fcil.

    * * *

    Especialista em fazer o marketing do otimismo sem projeto, Lula foi uma espcie de

    Eike Batista da poltica. Tambm encantou multides e, com isso, arrastou grande

    parte da esquerda. Entre os atores polticos, ela ser a maior perdedora.

    Ao longo da histria, a esquerda resistiu a diversas tentativas de aniquilao,

    vindas de fora para dentro. Ao aderir ao lulismo que abria aos seus quadros

    generosas oportunidades de ascenso social, afluncia material e poder , ela se

    deixou sucumbir por um processo indito, profundamento corrosivo: a dissoluo de

    dentro para fora, pela perda de seus valores fundamentais.

    Embora abrigado em legendas de esquerda, s quais fez algumas concesses,

    o lulismo sempre foi, na essncia ou seja, na relao com o povo , um movimento

    conservador. Reduziu a ideia de justia social apenas dimenso do consumo

    individual e conquista de votos a ela associada. O fortalecimento da coisa pblica e

    das instituies republicanas, o desenvolvimento moral, intelectual e cultural das

    pessoas e o aperfeioamento do ambiente social em que se d a convivncia humana

  • que so essenciais em qualquer projeto progressista sempre estiveram fora de seu

    horizonte ideolgico. Em vez da batalha de ideias, preferiu os conchavos polticos.

    Compre mais e vote em mim, foi tudo o que Lula disse, durante anos, ao

    povo brasileiro. Na poltica, ele reorganizou e fortaleceu o antigo Centro, a

    articulao do fisiologismo e das oligarquias, que agora controla de novo, com folga, o

    Congresso Nacional e ameaa engolir de vez todo o poder, num retrocesso que chegou

    a ser inimaginvel depois do fim do regime militar.

    No me surpreende que o lulismo, ao fim e ao cabo, nos deixe como legado

    uma sociedade mais conservadora do que a que tnhamos doze anos atrs. Ao

    contrrio, parece-me ser a resultante da ao de foras polticas e sociais que ele

    mesmo fortaleceu.

    Ao mesmo tempo, nunca antes tivemos massas humanas to grandes, to

    concentradas e to carentes de participao, conscincia, organizao e

    representao. Essa despolitizao ampla, geral e irrestrita o pior legado da maneira

    como o PT conduziu a Nao na ltima dcada. Nesse contexto, em uma situao de

    crise aguda, tudo pode surgir.

    * * *

    Tempo de crise, tempo de cacofonia. Quem no tem o que propor logo prope criar

    novas regras e fazer novas leis, um debate vazio. Regras e leis so sempre burladas,

    quando no temos capacidade de definir nem mesmo meia dzia de objetivos comuns

    que constituam um consenso bsico em torno de si.

    Mais do que de novas regras, precisamos de novos fins e valores. Isso, as

    instituies polticas que a esto, maculadas pelo peso abusivo do poder econmico e

    pela disseminao do cinismo, no podem nos dar. O contedo da poltica que

    precisa mudar.

  • Nossos polticos tornaram-se camalees que a cada quatro anos se esforam

    para se adaptar ao que a sociedade , ou parece ser, conforme lhes ensinam as

    minuciosas pesquisas de opinio que encomendam. Sempre preocupados com os

    interesses da hora, so incapazes de despertar qualidades novas que estejam latentes.

    O futuro que resulta do somatrio de suas pequenas aes, fabricadas com

    sucessivas costuras de curto prazo, apenas o prolongamento do presente. No

    contm o carter novo de um verdadeiro futuro. Ficamos andando em crculos, sem

    sair do lugar.

    Precisamos encontrar gente nova, organizada de maneira nova, que, em vez

    de tentar se adaptar ao que a sociedade , ou parece ser, aceite correr os riscos de

    anunciar o que ela pode vir a ser, para impulsion-la.

    * * *

    de uma discusso de projeto que se trata, e ela exige que tenhamos capacidade de

    recolocar questes fundamentais. Esse pode ser o melhor legado da crise.

    Precisamos abandonar ninharias, como a polarizao PT versus PSDB, nos

    libertar de preconceitos, como os que nos mantm presos s organizaes da

    esquerda tradicional, e revisitar fundamentos, buscando atualizar uma ideia de Brasil,

    agora em um cenrio de grandes dificuldades.

    O tempo est contra ns. No vir nenhum golpe de Estado, pois ningum

    minimamente relevante o deseja, a comear pelas foras armadas. Mas, se no

    reagirmos, poderemos nos tornar um Estado falido e uma Nao invivel. Nem a

    nulidade de Dilma Rousseff, nem a esperteza de Lula, nem o oportunismo dos nossos

    polticos atuais feitas algumas excees de praxe nos salvaro.

    O que escrevi aqui, digo h muitos anos esquerda. S colhi isolamento e

    difamao. No fico feliz em constatar que tinha razo. pau, pedra, o fim de um

    caminho. Mos obra.