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GT 3 - LITERATURA INFANTIL E FORMAÇÃO DE LEITORES A MORTE EM A MENININHA DOS FÓSFOROS, DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN Jaine de Sousa Barbosa (UFCG) Márcia Tavares Silva (UFCG) 1. INTRODUÇÃO Falar sobre contos de fadas é tratar de um gênero textual que está presente na vida de crianças, jovens e adultos. Muitos de nós já ouvimos sobre princesas, príncipes, madrastas, bruxas e inúmeras outras personagens dessas histórias que, embora tenham surgido por volta do século XIX, ainda fazem parte das nossas vidas. Foi pensando em compreender mais acerca de narrativas como essas que este trabalho surgiu. De cunho interpretativo, a pesquisa tem por objetivo analisar o conto A menininha dos fósforos, do livro Contos de Hans Christian Andersen (2011), do mesmo autor, levando em consideração o modo como a morte é descrita no texto. Para tanto, observarmos alguns aspectos estruturais da narrativa, como as personagens e o espaço em que a trama acontece, atentando para a influência que o narrador exerce na construção do texto. Embora o morrer esteja presente nos mitos, nas parábolas, fábulas e contos de fadas como um todo, não são muitas as

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GT 3 - LITERATURA INFANTIL E FORMAÇÃO DE LEITORES

A MORTE EM A MENININHA DOS FÓSFOROS, DE HANS CHRISTIAN ANDERSEN

Jaine de Sousa Barbosa (UFCG)

Márcia Tavares Silva (UFCG)

1. INTRODUÇÃO

Falar sobre contos de fadas é tratar de um gênero textual que está presente na vida de

crianças, jovens e adultos. Muitos de nós já ouvimos sobre princesas, príncipes, madrastas,

bruxas e inúmeras outras personagens dessas histórias que, embora tenham surgido por volta

do século XIX, ainda fazem parte das nossas vidas. Foi pensando em compreender mais

acerca de narrativas como essas que este trabalho surgiu. De cunho interpretativo, a pesquisa

tem por objetivo analisar o conto A menininha dos fósforos, do livro Contos de Hans

Christian Andersen (2011), do mesmo autor, levando em consideração o modo como a morte

é descrita no texto. Para tanto, observarmos alguns aspectos estruturais da narrativa, como as

personagens e o espaço em que a trama acontece, atentando para a influência que o narrador

exerce na construção do texto.

Embora o morrer esteja presente nos mitos, nas parábolas, fábulas e contos de fadas

como um todo, não são muitas as narrativas destinadas ao leitor infantil e juvenil que trazem

cenas de morte descritas com detalhes, que podem variar entre o olhar simbólico ou realista

para o fato. Há textos em que o evento aparece de modo superficial, outros cruéis, metafóricos

ou ainda repletos de eufemismo, atuando assim como centro do texto, protagonista.

Para a construção da nossa pesquisa, realizamos a leitura interpretativa do corpus

escolhido, bem como a dos aportes teóricos acerca dos contos de fadas e de como a morte

pode aparecer neles. Para abordarmos acerca de como esta é retratada na sociedade ocidental

e do ocorreu o processo de aceitação e repulsa ao evento, realizamos a leitura de Ariès (2012)

e Sengik e Ramos (2013); e com Lottermann (2009) e Muniz (2006) vimos como o assunto

pode estar presente em textos destinados às crianças e jovens e quais são as representações

socioculturais, simbólicas e espaciais do evento. No que se refere aos contos de fadas,

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utilizamos Coelho (2012) e Tatar (2013), a fim de compreendermos como seu deu o surgimento

desse gênero e sua importância para os leitores infantis e juvenis. Por último, tratamos da

importância da obra de Hans Christian Andersen e de suas principais características, atentando

para o seu modo peculiar de escrita.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Quando o assunto é morte, o medo, a rejeição e a esquiva são sensações comuns para a

sociedade ocidental. Somos habituados a rejeitar o evento e a acreditar que, embora ele exista

para todos, deve ser escamoteado, uma vez que não se pensa em falar do morrer tanto quanto

se fala em muitos outros assuntos, embora saibamos que este é inevitável, conforme afirmam

Sengik e Ramos (2013, p. 1):

Falar da morte é uma tarefa difícil na nossa cultura. O termo causa inquietações, medos e ansiedades. Entretanto, a morte faz parte da vida, faz parte do desenvolvimento humano desde a mais tenra idade. A consciência que se tem sobre a finitude ao mesmo tempo em que é uma característica que diferencia o ser humano dos outros seres, também propicia o questionamento sobre a vida. O discurso popular assegura que a única certeza que se tem na vida é de que algum dia se morre, porém, às vezes, evita-se o assunto.

A acepção dada a isto, no entanto, nem sempre foi a mesma que se tem hoje. Antes de

haver o sentimento de estranhamento para com a morte, era bastante presente a consciência do

fato como parte da vida do homem, como “uma forma de aceitação da ordem da natureza, ao

mesmo tempo ingênua na vida quotidiana e sábia nas especulações astrológicas (ARIÈS, 2012,

p.49)”. Não havia tabu ao trata do morrer e a sociedade do século XVII “se sujeitava a uma das

grandes leis da espécie e não cogitava em evitá-la. Simplesmente a aceitava, apenas com a

solenidade necessária para marcar a importância das grandes etapas que cada vida devia sempre

transpor (ARIÈS, 2012, p.50)”. As crianças, que hoje são afastadas tanto do falar sobre a morte

quanto do presenciar cenas em que ela acontece, estavam inseridas no mesmo mundo do adulto,

que cultuava o corpo dos falecidos e fazia oferendas para homenageá-los em diversas regiões.

Com o passar dos anos, porém, isto foi sendo transformado, e aqueles que aceitavam e

enxergavam a morte como um estágio da vida passaram a maquiá-la, sublimá-la e escamoteá-la.

Já não se falava ou tratava o cadáver com a normalidade anterior, e o que era tão presente e

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doméstico no passado, se torna vergonhoso e objeto de interdição, saindo da posição de aceitação

da ordem natural da vida, para causadora de fuga e rejeição constante. Segundo Ariès (2012),

Durante o longo período que percorremos, desde a Alta Idade Média até a metade do século XIX, a atitude diante da morte mudou, porém de forma tão lenta que os contemporâneos não se deram conta. Ora, há mais ou menos um terço do século, assistimos a uma revolução brutal das ideias e dos sentimentos; tão brutal, que não deixou de chocar os observadores sociais. Na realidade, trata-se de um fenômeno absolutamente inaudito. A morte, tão presente no passado, de tão familiar, vai se apagar e desaparecer. Tornar-se vergonhosa e objeto de interdição (ARIÈS, 2012, p. 84).

O que se percebe é que primeiramente encontrávamos um sentimento muito antigo,

duradouro e intenso de familiaridade com a morte, sem medo ou desespero, mas um meio-

termo entre a resignação passiva e a confiança mística, como pontua Ariès (2012), no entanto,

com todas as mudanças sociais, isso foi completamente transformado e atingiu não só as

concepções do homem, mas os meios que ele utilizava para falar do que o rodeava e a

literatura era um deles.

Há muitos caminhos para falar da morte, e quando sai do plano real para o ficcional a

literatura é o veículo mais comum para conduzir ideias sobre o tema. Através da literatura ele é

capaz de representar as respostas de inúmeras interrogações que lhes são suscitadas, e é por meio

dessa representação que o indivíduo consegue transpor o que é próprio da vida real para as

páginas dos livros ou para a oralidade. É compreendendo como se dá esse processo que podemos

perceber como a temática aqui abordada é funcionalizada e apresentada nos textos. O modo com o

qual isso ocorre diz muito sobre o contexto em que a obra está inserida, o estilo de escrita do autor

e o público a ser destinada. Segundo Lotterman (2009)

Na literatura infantil e juvenil brasileira, há maior incidência de obras em que a morte é tratada como efeméride, como um acontecimento que, a despeito das consequências que acarreta, não provoca mudança de valores ou conceitos. Nesses casos, a morte é banalizada, não incita reflexões sobre a vida. E mesmo que haja dor, ela rapidamente se esvai: às vezes nem se faz menção ao sofrimento e ao luto. A morte deixa sua marca, mas tal impressão nunca é uma cicatriz: apaga-se com facilidade. Em algumas obras nas quais assassinatos funcionam como elementos desencadeadores da ação e da narrativa, pode-se dizer que a morte tem apenas uma função técnica: serve como elemento propulsor, mas não é importante do ponto de vista do discurso (LOTTERMAN, 2009, p. 8).

Embora apareça em inúmeros gêneros textuais destinados às crianças, “quando citada,

a morte é uma mera coadjuvante, nunca a protagonista. É negada ou mascarada, justificada

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pelo estigma do progresso (MUNIZ, 2006, p.5)”. Essas negações nada mais são do que

reflexos da higienização pela qual passam os textos antes de serem destinados ao público

infantil. O processo de adaptação perpassa muitas histórias acabada por adequar o texto ao

destinatário esperado, por isso há, por vezes, modos diferentes de retratar cenas de morte. A

metáfora, o simbolismo, as alegorias e outros mecanismos são sempre utilizados para atenuar

as partes em que ela aparecem nas obras.

Contudo, nem toda narrativa ocupa-se em afastar da criança, ou até mesmo proibir, a

ideia do morrer. Existem muitas delas em que o tema ocupa um grande espaço na trama e

acaba por atingir a existência do próprio texto, tratando do assunto de modo enfático e

permitindo que o leitor reflita sobre os acontecimentos tanto nos limites da narrativa quanto

no que é externo a ele, bem como vemos na afirmação de Lotterman (2009):

Tais obras permitem que o leitor reflita sobre o evento e sobre a superação da perda provocada não apenas pela morte física, mas também por pequenas mortes – separações, perdas emocionais – que marcam a trajetória de todos os seres humanos. Nesses casos, a ela ultrapassa seu caráter de efeméride e se alça a um nível mais elevado: de evento isolado, passa a ser o cerne da vida das personagens e, em algumas obras, da própria narrativa (LOTTERMAN, 2009, p. 8).

Um dos gêneros em que isso é bastante presente é o conto de fadas. Desde muito é

nele que o maravilhoso se destaca, a fantasia ocupa grande espaço na narrativa e os heróis e

vilões enfrentam inúmeras desventuras. São obras que os séculos não conseguem destruir e

que, a cada geração, são constantemente redescobertas e encantam leitores ou ouvintes de

todas as idades. Segundo Tatar (2013, p. 9),

Os contos de fadas são íntimos e pessoais, contando-nos sobre a busca de romance e riquezas, de poder e privilégio e, o mais importante, sobre um caminho para sair da floresta e voltar à proteção e segurança de casa. Dando um caráter terreno aos mitos e pensando-os em termos humanos em vez de heroicos, os contos de fadas imprimem um efeito familiar às histórias no arquivo de nossa imaginação coletiva.

Estes textos não têm uma origem exata, mas é certo que muitas delas são provenientes

das narrativas orais que eram contadas e colhidas no decorrer dos anos. Elas, muitas vezes,

atuavam como moralizantes, ou seja, eram usadas para ensinar boas condutas aos ouvintes e

tentar alertá-los acerca dos perigos da vida. Elas estavam presentes no cotidiano repleto de

enfado e cansaço dos camponeses e se tornaram o escape para espantar o tédio dos afazeres

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domésticos dos mesmos. Não foram destinadas à criança, inicialmente, porque não havia uma

concepção formada para a infância, no entanto, elas ouviam os textos e eram atraídas por eles.

A primeira coletânea de contos de fadas registrada foi escrita por Charles Perrault, no

século XVII, na França, e tinha por título Contos da mamãe Gansa. Foi a partir dos estudos de

Perrault que, cem anos depois, na Alemanha do século XVII, as narrativas de contos de fadas

foram consideradas como literatura infantil e destinada a esse público de fato, e se expandiram

pela Europa e Américas, graças aos estudos linguísticos realizados por Jacob e Wilhelm Grimm,

outros dois nomes indispensáveis ao gênero. Além deles, e o que será aqui observado de modo

mais aprofundado, Hans Christian Andersen, no século XIX, foi autor de narrativas que também

extrapolaram os limites do tempo.

Os ideais de fé que norteavam a vida de Andersen estavam presentes em seus escritos

e em seus textos era visível que eles continham elementos que exaltavam a fé cristã, a

sensibilidade, o amor, a fraternidade e capacidade do homem de poder tornar-se generoso. O

escritor representava para crianças, através do texto, com a linguagem do coração e da

simplicidade, podendo transmitir o ideal religioso em que acreditava, enxergando a vida como

um conjunto de dificuldades que cada um de nós precisa atravessar para chegar ao céu.

Coelho (2012, p. 31/32) afirma que há inúmeros valores ideológicos consagrados pelo

Romantismo e que podem ser facilmente identificáveis nas histórias desse tão importante

autor. Dentre os tais podemos destacar:

A defesa dos direitos iguais, pela anulação das diferenças de classe; valorização do indivíduo por suas qualidades próprias e não por seus privilégios ou atributos sociais; ânsia de expansão do Eu, pela necessidade de conhecimento de novos horizontes e da aceitação de seu Eu pelo outro; consciência da precariedade da vida, da contingência dos seres e das situações; crença na superioridade das coisas naturais em relação às artificiais; incentivo à fraternidade e à caridade cristãs, a resignação e à paciência com as duras provas da vida; sátira às burlas e às mentiras usadas pelos homens para enganarem uns aos outros; condenação da arrogância, do orgulho, da maldade contra os fracos e os animais e, principalmente, contra a ambição de riqueza e poder e a valorização da obediência, da pureza, da modéstia, da paciência etc.

A obra da qual recolhemos o conto que será aqui analisado apresenta alguns textos de

Nelly Novaes Coelho e outro de Erik Dal. A primeira afirma que “dentro desse universo

imaginário, é notório que os contos de Andersen ocupem um lugar privilegiado, não só pelo

gênio inventivo do autor, mas pelo húmus humanístico que energiza sua criação novelesca

(COELHO, 2011, p.6)”. É este caráter humanitário que envolve toda a sua obra, que é,

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conforme ainda pontua a autora, “uma das mais notáveis formas de escrita, por retratar o

universo fabuloso, criado há quase dois séculos por um genial dinamarquês que teve como

matéria-prima uma herança multimilenar, encantando leitores de todas as idades (COELHO,

2011, p. 1)”.

Segundo Erik Dal, autor de um capítulo em Contos de Andersen (2011), uma das

maiores referências internacionais no estudo da obra de Hans e estudioso concentrado na

investigação da literatura dinamarquesa do século XVII,

Andersen trata da mais rica variação de sentimentos e disposições de espírito: da dor mais profunda à felicidade conquistada, com sátira e compaixão, com um espectro de humor grotesco, verdadeiro ou deformado, e com um olhar seguro e muitas vezes crítico para o grande e o pequeno. Sucede isto com uma variação linguística sem igual, da ênfase comovente às pequenas bizarrias de todos os dias; e de modo extraordinário mantém a arte num pequeno impulso para o uso comum da palavra, que dá nova vida à linguagem e aos seus contextos (DAL, 2011, p. 21 in ANDERSEN, 2011).

É visível que há uma grande preocupação com a permanência de valores humanos.

Andersen, em seus textos, buscava demonstrar sua visão de fé cristã por meio da sensibilidade e

da delicadeza de narrativas que tinham caráter, por vezes, melancólico, mas que causavam

encantamento e é isto que será observado na análise do corpus escolhido, uma vez que a morte

nele é apresentada de modo bastante particular e de grande beleza.

3. METODOLOGIA

Este trabalho é de cunho interpretativo e bibliográfico e a metodologia escolhida para a

leitura interpretativa da narrativa foi dividida em etapas. A primeira consistiu na leitura do

texto selecionado para nossos estudos e, a partir dele, a escolha do objeto que seria observado

dentro das histórias. A segunda etapa consistiu em selecionar as obras que podiam atuar como

aportes teóricos sobre a temática. Ao observamos o corpus escolhido, a fim de compreendê-lo

para além do que estava exposto no texto, traçamos um apanhado histórico acerca da morte e

suas representações sociais, de como esse tema aparece na literatura infantil e dos contos de

fadas, mais especificamente acerca da obra de Hans Christian Andersen. A terceira e última

etapa consistiu na interpretação do conto lido. Para compreendê-lo, fizemos a associação com

os aportes teóricos, observando como a teoria dialogou com o objeto em questão. Dentro

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dessa etapa de interpretação, incluímos o estudo de categorias, que envolvem as noções de

espaço, personagens, linguagem utilizada pelo narrador para a construção do texto e imagens

criadas a partir das descrições que os contos trazem.

4. ANÁLISE DE RESULTADOS

A menininha dos fósforos é um dos mais traduzidos e divulgados contos de Hans

Christian Andersen para leitores infantis e também um dos mais ternos e dolorosos textos,

porque denuncia a indiferença do mundo em relação com os pobres e desvalidos entregues à

própria sorte e às desventuras que a vida pode oferecer. Esta narrativa nos faz refletir questões

importantes como o abandono, a miséria, a fome, a indiferença, a inveja, a exclusão, mas não

deteremos nosso olhar as mesmas, mas somente ao modo como a morte é representado no

texto.

O conto traz a história de uma personagem que não possui nome, é somente

caracterizada por uma menininha pobre, com longos cabelos loiros que se encaracolavam

graciosamente em volta do pescoço. Esta criança está em uma cidade, também não nomeada,

em que o frio era terrível e a noite começava a ficar escura. O narrador descreve a garota

estando com a cabeça descoberta e pés descalços, caminhando pela escuridão com somente

um chinelo, porque o outro pé foi levado por um menininho que dizia servir de berço quando

tivesse filhos. Usando um avental velho, a criança carregava consigo uma quantidade de

fósforos que não foi comprada por ninguém o dia todo. Por causa do frio, procurou se

proteger em um canto afastado entre duas casas. Puxava as perninhas para perto do corpo na

tentativa de aquecer-se, mas ainda era insuportável o frio que sentia. Foi aí que teve a ideia de

acender um fósforo para se aquecer: “Como irradiou, como ardeu! Era uma chama clara,

quente, como uma pequena vela, quando lhe pôs a mão ao redor. Era uma luz maravilhosa!

(ANDERSERN, 2011, p. 277)”.

É significativo observarmos que assim que o primeiro fósforo é aceso, a garotinha

começa a ter suaves devaneios. O primeiro pode ser observado no trecho: “Pareceu à

menininha que estava sentada diante de um grande fogão de ferro com esferas brilhantes de

bronze e com rolos também de bronze (...). A pequena já estendia os pés para também os

aquecer. Quando a chama se apagou, o fogão desapareceu (ANDERSEN, 2011, p.277). À

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medida que a menina vai acendendo novos fósforos para manter-se aquecida, novas imagens

vão sendo criadas. A segunda chama torna transparente as paredes da casa em que se protegia,

e lá dentro ela vê uma mesa de jantar com um delicioso ganso assado, recheado de ameixas

secas e maças. Em seguida, o fósforo apaga novamente, e ao acender outro, vê-se sentada sob

a mais bela árvore de natal, na qual brilhavam velas e figuras que deixavam o lugar ainda

mais belo:

“Acendeu outro. Estava sentada sob a mais bela árvore de Natal. Era ainda maior e mais ornamentada do que aquela que vira pela porta envidraçada na casa do comerciante rico no último Natal. Milhares de velas brilhavam nos ramos verdes e figuras variadas como aquelas que decoravam as vitrines das lojas olhavam para baixo, para ela. A pequena vendedora estendeu ambas as mãos no ar... logo o fósforo apagou. As muitas luzes do Natal subiram mais e mais alto. Viu, então, que eram as estrelas brilhantes. Uma delas caiu e fez um longo risco de fogo no céu. – Alguém está morrendo! – disse a pequena. A velha avó, a única pessoa que tinha sido boa para ela, mas agora estava morta, dissera: “quando uma estrela cai, uma alma sobe para Deus. (ANDERSEN, 2011, p. 277)

É a partir desse trecho que percebemos como a voz narrativa conduz o leitor ao

desfecho da história e é nele que vemos aparecer indícios da morte no texto. Quando a

menininha afirma que alguém está morrendo, o leitor pode compreender como indício de

antecipação, prenúncio da morte da garota. Há uma riqueza de detalhes que perpassa toda a

trama. São nessas particularidades que percebemos quão singular e bela é a escrita de

Andersen. O modo como o autor escreve sobre a morte está embebido de todos os seus ideais

cristãos, por isso não há uma rejeição ao tratar da temática, mas ela é representada enquanto

redenção, sendo vista como a passagem de um estágio da vida para outro, nesse caso, para o

céu, lugar em que Deus habita, conforme veremos posteriormente.

Ao acender o último fósforo a avó, que já era falecida, aparece na trama e sua

presença é o que faz com que a garota siga para encontra-la. Esse pedido não é feito de forma

direta, mas bastante eufêmica. Ao reproduzir “leva-me contigo”, infere-se que isso só poderia

ser possível se a menina morresse.

Riscou na parede, outra vez, outro fósforo, que iluminou em redor, e no seu fulgor estava de pé a velha avó, tão clara, tão luminosa, tão doce e feliz. – Avó! – gritou a pequena. – Leva-me contigo! Sei que te irás quando se apagar o fósforo. Que te irás como o fogão quente, o belo assado e a grande e maravilhosa árvore de Natal! ( ANDERSEN, 2011, p. 278).

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Vemos, na observação, que o narrador divide as partes em que o evento aparece são

divididos em dois tipos: na primeira ele é vista de modo metafórico e simbólico, em se

tratando da descrição pelo viés da protagonista e na segunda, sem metáforas e de modo mais

realista, pelo viés das demais personagens que encontram, no dia seguinte, o corpo da menina

já falecido. O momento em que morre simbolicamente é marcado pela expressão “voaram em

esplendor e júbilo tão alto para um lugar em que não havia frio, fome ou medo”, e associamos

esse lugar ao paraíso, que existe para a tradição judaico-cristã:

Riscou apressadamente o resto dos fósforos que estavam no molho. Queria que a avó ficasse. Os fósforos arderam com tamanha intensidade que clareou mais do que o próprio dia. A avó nunca tinha sido tão bela, tão grande! Levantou a menininha nos braços e ambas voaram em esplendor e júbilo tão alto, tão alto! Lá não havia frio algum, fome alguma, medo algum. Estavam com Deus (ANDERSEN, 2011, p. 278).

Já o que é descrito de modo realista é demarcado pela expressão “morta, enregelada,

na última noite do ano velho. A manhã do Ano-Novo ergueu-se sobre o pequeno cadáver

sentado”, como veremos no trecho que segue. Já não há metáforas para descrever o corpo ou a

própria menina, agora ela é um cadáver gelado pela circunstância em que estava e pelo frio

que a tomava:

No canto da casa, sentada, na madrugada fria, a menininha, faces vermelhas e um sorriso nos lábios. Morta, enregelada, na última noite do ano velho. A manhã do Ano-Novo ergueu-se sobre o pequeno cadáver sentado com os seus fósforos, um punhado dos quais queimado. – Quis aquecer-se! – disseram. Ninguém jamais soube das belas coisas que viu, nem do esplendor e do júbilo com que ela e a velha avó tinham entrado no ano novo (COELHO, 2011, p. 278).

Percebemos que não há tantos trechos na obra que mostram a morte enfaticamente, no

entanto, nas partes em que ela é descrita ou anunciada, vemos quanta beleza há em retratar um

tema que causa tanto estranhamento e esquiva por parte dos leitores. Quando se fala em

morte, normalmente, não é comum que ela seja vista de forma positiva, porque estamos

tratando do término da vida de alguém e quase sempre não estamos preparados para isto, mas

é cumprindo a função de redentora que Andersen a descreve em seu texto e embora achemos

que a história não apresenta um final feliz, porque a criança morre vítima do abandono, da

fome, frio e solidão, se observarmos a realidade que ela enfrentava e a realização do desejo

que ela vive de reencontrar a avó, não há como acreditar que não houve um final feliz, afinal,

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a Menininha dos fósforos não precisaria sofrer mais com as dores do seu cotidiano e estava,

junto com sua avó, em um lugar especial, ao lado de Deus.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura é um dos caminhos mais utilizados pelo homem para ficcionalizar aquilo que

é da realidade e tornar real o que está para a ficção. É por meio dela que o leitor pode

vivenciar tramas que se utilizam da simbologia, das metáforas ou do ilogismo para tornar suas

histórias atraentes. Assim, a morte aparece na literatura infantil e percebe-se que, desde muito,

o tema faz parte dos mitos, fábulas e outros gêneros textuais, no entanto nem sempre a

menção é feita a colocando como tema central do texto e quando isso acontece há em versões

e adaptações uma adequação ao público que será destinado, por esse motivo grande parte dos

contos clássicos tem suas histórias modificadas para que o caráter grotesco possa ser

amenizado e não cause tanto impacto ao leitor infantil.

O conto A menininha dos fósforos trouxe a dor e sofrimento de uma criança pobre. A

morte da criança nos leva a pensar sobre a efemeridade da vida, as diferenças sociais que nos

cercam e como o morrer está construído no texto, uma vez que, na história, há um eufemismo

para tratar do tema, embora ele seja apresentado em uma circunstância bastante real de

pobreza, abandono e dor. Com a história de uma garota que se protege do frio com pequenos

fósforos, pudemos perceber um pouco da abordagem de Andersen sobre a morte e como as

imagens do texto tornam bela a trajetória da protagonista em todas as suas desventuras.

Por meio da voz narrativa, da ambientação em que o morrer acontece, destacamos

que Andersen aborda o evento em duas perspectivas. A primeira é uma morte metafórica, em

que a menina encontra-se com sua avó a voa pelos ares para junto de Deus, e a segunda é

realista, na qual as pessoas encontram um cadáver de uma criança que morreu por sentir frio.

O fato de o desfecho mostrar que a menina estava, agora, em uma condição melhor, nos leva a

compreensão de que esta morte foi representada em seu caráter de redenção, porque foi por

meio dela que a garotinha pôde ir para o paraíso viver de modo feliz e sem sofrimento,

concordando novamente com os ideais de fé que norteavam toda a vida e escrita do autor.

Em sua obra, Andersen trouxe a beleza da bondade e da misericórdia e mostrou aos

seus leitores a vida de meninos e meninas que, assim como a protagonista aqui vista,

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passavam por inúmeras desventuras, mas não perdiam o encantamento e a esperança de viver

dias melhores, sejam eles em família ou ao lado de Deus.

6. REFERÊNCIAS

ANDERSEN, Hans Christian. Contos de Hans Christian Andersen. Tradução de Silva

Duarte. – São Paulo : Paulinas, 2011.

ARIÉS, Philippe. Sobre a história da morte no Ocidente desde a Idade

COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: Editora Ática, 2012.

LOTTERMANN, Clarice. Representações da morte na literatura infantil e juvenil

brasileira.Anais do SILEL. Volume 1. Uberlândia: EDUFU, 2009.

MUNIZ, Paulo Henrique O estudo da morte e suas representações

socioculturais,simbólicas e espaciais. Revista Varia Scientia. v. 06, n. 12, p. 159-169, 2006.

Disponível em < file:///C:/Users/alan/Downloads/1520-5314-1-PB.pdf>. Acesso em 23 fev,

2016.

SENGIK. Aline Sberse. RAMOS, Flávia Brocchetto. Concepção de morte na infância.

Revista Psicol. Soc. vol. 25 n.2. Belo Horizonte, 2013. Disponível em

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822013000200015>.

Acesso em 25 nov, 2015.