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2061: uma Odisséia no Espaço III - Arthur C. Clarke

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Em '2061: Uma Odisséia no Espaço III', estão de volta os misteriosos monolitos e o cosmonauta Heywood Floyd, novamente enfrentando seus adversários de sempre: Dave Bowman (ou o que quer que Bowman tenha se transformado), e HAL (o computador que comandou a astronave Discovery em sua missão rumo a Iapetus - uma das luas de Saturno - e assassinou quase todos os seus tripulantes). Desta vez, porém, seu principal adversário é o poder de uma raça alienígena que decidiu que a Humanidade terá, forçosamente, de desempenhar um papel na evolução da Galáxia.

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2061: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO III

Arthur C. Clarke

Título original: 2061: Odyssey ThreeTradução de Waltensir Dutra

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Ao lado de Stanley Kubrick, Arthur C. Clarke é o responsável pela obra de ficção científica maispopular desde Júlio Verne: o filme 2001: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO, baseado num contoescrito por Clarke no início da década de 60 e posteriormente transformado em um romance.Pressionado pelas incontáveis cartas dos fãs e os insistentes pedidos de seus editores, escreveu2010: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO II, que vem responder àquelas perguntas formuladas em2001, as quais inquietaram e marcaram toda uma geração.

Em 2061: UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO estão de volta os misteriosos monolitos e o cosmonautaHeywood Floyd, novamente enfrentando seus adversários de sempre: Dave Bowman (ou o que querque Bowman tenha se transformado) e HAL (o computador que comandou a astronave Discoveryem sua missão rumo a Iapetus — uma das luas de Saturno — e assassinou quase todos os seustripulantes). Desta vez, porém, seu principal adversário é o poder de uma raça alienígena quedecidiu que a Humanidade terá, forçosamente, de desempenhar um papel na evolução da Galáxia.

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NOTADOAUTOR

Assim como 2010 - uma odisséia no espaço II não foi uma continuação direta de 2001; umaodisséia no espaço, este livro também não é uma seqüência linear de 2070. Todos esses volumesdevem ser considerados como variações sobre o mesmo tema, envolvendo muitos dos mesmospersonagens e situações, mas não tendo como cenário necessariamente o mesmo universo.

Os acontecimentos transcorridos desde 1964, quando Stanley Kubrick sugeriu (cinco anos antes dodesembarque do homem na Lua) que devíamos tentar "o proverbial bom filme de ficção científica",tornam impossível a coerência total, já que as histórias posteriores incluem descobertas eacontecimentos que não tinham sequer ocorrido quando os livros anteriores foram escritos. 2010tornou-se possível com o brilhante sucesso das viagens do Voyager a Júpiter em 1979, e eu nãopretendia voltar àquele território até que chegassem os resultados da Missão Galileu, ainda maisambiciosa.

Galileu deveria ter lançado uma sonda na atmosfera de Júpiter e passar quase dois anos visitandotodos os seus satélites principais. Deveria ter sido lançado em maio de 1986 e ter alcançado seuobjetivo em dezembro de 1988. Assim, eu esperava poder aproveitar a onda de novas informaçõesde Júpiter e suas luas em torno de 1990...

Infelizmente, a tragédia da Challenger eliminou essa possibilidade; Galileu—que hoje repousa emsua sala anti-séptica no Laboratório de Propulsão a Jato—terá de encontrar outro veículo delançamento. Será uma sorte se chegar a Júpiter com apenas sete anos de atraso.

Resolvi não esperar.

Arthur C. Clarice.

Colombo, Sri Lanka,

Abril de 1987.

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I-AMONTANHAMÁGICA

1. OS ANOS CONGELADOS— Para um homem de 70 anos, você está em excelente forma — observou o Dr. Lazunov, levantando os olhos dos resultados finaisimpressos pelo Medcom. — Eu não lhe teria dado mais de 65.

— Fico muito satisfeito com isso, Oleg. Especialmente porque tenho 103 anos, como você sabeperfeitamente bem.

— Lá vamos nós outra vez! Parece até que você nunca leu o livro da professora Rudenko.

— A querida e velha Katerina! Tínhamos planejado uma reunião para o seu centésimo aniversário.Fiquei tão triste quando ela não conseguiu completá-lo — é o que dá passar tempo demais naTerra.

— Uma ironia, pois foi ela quem criou a famosa frase "A gravidade é a responsável pela velhice".

O Dr. Heywood Floyd olhou pensativamente para o panorama sempre mutável do belo planeta, aapenas seis mil quilômetros de distância, no qual jamais poderia voltar a caminhar. Era ainda maisirônico que, graças ao mais estúpido acidente de sua vida, ainda estivesse com excelente saúdequando praticamente todos os velhos amigos já estavam mortos.

Havia apenas uma semana que estava de volta à Terra quando, apesar de todas as advertências e desua própria decisão de que nada daquilo jamais aconteceria com ele, tinha caído daquela varandado segundo andar. (Sim, estava comemorando, mas com razão: era um herói no novo mundo do quala Leonov tinha voltado.) As fraturas múltiplas resultaram em complicações que poderiam ser maisbem tratadas no Hospital Espacial Pasteur.

Isso tinha acontecido em 2015. E agora — não podia acreditar realmente, mas o calendário naparede assim dizia — estavam no ano de 2061.

Para Heywood Floyd, o relógio biológico não só tinha sido atrasado pela gravidade do hospital,que era de um sexto da gravidade terrestre, como também tinha sido realmente invertido duas vezesem sua vida. Acreditava-se agora, em geral — embora certas autoridades duvidassem — que ahibernação ia além de deter o processo de envelhecimento: ela estimulava o rejuvenescimento.Floyd se tornara na realidade mais jovem em sua viagem de ida e volta a Júpiter.

— Então você realmente acha que posso ir com segurança?

— Nada neste universo tem segurança, Heywood. Só posso dizer que não há objeções fisiológicas.Afinal de contas, seu meio ambiente será, a bordo da Universe, praticamente o mesmo daqui. A

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nave pode não ter exatamente o padrão de... ah... especialização médica que oferecemos aqui noPasteur, mas o Dr. Mahindran é bom. Se houver algum problema que ele não saiba enfrentar,poderá colocar você em hibernação outra vez e mandá-lo de volta para nós, pagamento contraentrega.

Era o resultado pelo qual Floyd tinha esperado, mas de certa forma sua satisfação misturou-se comtristeza. Estaria longe, durante semanas, de seu lar de há quase meio século e de seus novos amigosdos últimos anos. Embora a Universe fosse uma nave de luxo, em comparação com a primitivaLeonov (que agora pairava lá no alto acima de Farside como uma das peças principais do MuseuLagrange), ainda havia um elemento de risco em qualquer viagem espacial prolongada.Especialmente uma viagem pioneira como a que ele se preparava agora para iniciar...

Mas talvez fosse exatamente isso o que buscava — mesmo com 103 anos (ou, segundo a complexacontagem geriátrica da falecida professora Katerina Rudenko, uns saudáveis 65 anos). Na últimadécada tinha tomado consciência de uma crescente inquietação e um vago descontentamento comuma vida que era confortável e bem organizada demais.

Apesar de todos os entusiasmantes projetos em execução no Sistema Solar — A Renovação deMarte, o estabelecimento da Base em Mercúrio, o Projeto Verde de Ganimedes — não havia umobjetivo no qual pudesse realmente focalizar seu interesse e suas energias ainda consideráveis. Hádois séculos, um dos primeiros poetas da Era Científica tinha resumido com perfeição os seussentimentos ao falar pelos lábios de Odisseu/Ulysses:

Vidas que se acumulam, somos muito pequenos,

e de mim pouco ainda resta;

mas cada hora que fica salva-se do silêncio eterno,

é como portadora de coisas sempre novas.

E foi mau por três sóis alienar-me

se do desejo o espírito vibrava de seguir a idéia,

ígnea estrela, até o limite final do pensamento.

Três sóis, realmente! Tinham sido mais de quarenta: Ulysses se teria envergonhado dele. Mas aestrofe seguinte, que conhecia tão bem, era ainda mais adequada:

Podem tragar-nos os abismos,

poderemos talvez chegar às Ilhas

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Felizes e ver o grande Aquiles.

Muito nos foi tomado, mas resta algo

embora sem da força o antigo ardor

capaz de mover céus, somos o que somos:

da mesma tempera de heróis,

já gasta pelo tempo e destino,

mas que é forte na ânsia de chegar, buscar,

achar sem nunca desistir.

Buscar, achar... Bem, agora ele sabia o que ia buscar e achar — porque sabia exatamente ondeestaria. Exceto por algum acidente catastrófico, era impossível que lhe escapasse.

Não era uma meta que alguma vez tivesse imaginado conscientemente, e mesmo naquele momentonão tinha muita certeza da razão pela qual ela se tornara tão subitamente dominante. Julgava-seimune à febre que, mais uma vez, contaminava a humanidade — pela segunda vez em sua vida! —mas talvez estivesse enganado. Ou é possível que o inesperado convite para participar da reduzidalista de convidados ilustres para a Universe tivesse incendiado sua imaginação, despertando umentusiasmo que nunca soubera possuir.

Havia outra possibilidade. Depois de todos aqueles anos, ainda podia lembrar-se do anticlímaxque fora o encontro 1985-86 para o público em geral. Agora havia uma possibilidade — a últimapara ele, e a primeira para a humanidade — de compensar, de sobra, qualquer decepção anterior.

No século XX, apenas aproximações tinham sido possíveis. Desta vez, porém, haveria umdesembarque real, tão pioneiro quanto tinham sido os primeiros passos de Armstrong e Aldrin naLua.

O Dr. Heywood Floyd, veterano da missão a Júpiter de 2010-15, deixou sua imaginação voar parao fantasmagórico visitante que mais uma vez voltava das profundezas do espaço, ganhandovelocidade segundo a segundo, preparando-se para dar a volta ao Sol. E entre as órbitas da Terra eVênus o mais famoso de todos os cometas encontraria a ainda incompleta nave espacial Universeem sua viagem inaugural.

O ponto exato do encontro ainda não tinha sido determinado, mas sua decisão já estava tomada.

— Halley, lá vou eu... — murmurou Heywood Floyd.

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2. PRIMEIRA VISÃO

Não é verdade que se tenha de deixar a terra para apreciar todo o esplendor dos céus. Nem mesmono espaço o céu estrelado é mais glorioso do que visto de uma alta montanha, numa noiteperfeitamente clara, longe de qualquer iluminação artificial. Embora as estrelas pareçam maisbrilhantes além da atmosfera, o olho não pode apreciar realmente a diferença: e o espetáculoesmagador de metade da esfera celeste apreciada em conjunto é algo que nenhuma janela deobservação pode oferecer.

Mas Heywood Floyd estava mais do que satisfeito com sua visão particular do universo, emespecial durante os momentos em que a zona residencial estava no lado escuro do hospitalespacial, que girava lentamente. Nessa ocasião, em seu campo de visão retangular viam-se apenasestrelas, planetas, nebulosas — e, ocasionalmente, obscurecendo tudo o mais, o brilho ininterruptode Lúcifer, novo rival do Sol.

Cerca de dez minutos antes do início de sua noite artificial, ele desligaria todas as luzes da cabine— até mesmo a luz vermelha de emergência — para adaptar-se perfeitamente ao escuro. Com umcerto atraso de vida, para um engenheiro espacial, tinha aprendido os prazeres da astronomia aolho nu, e agora podia identificar praticamente qualquer constelação, mesmo que dela só vissepequena parte.

Em quase todas as “noites”'', daquele mês de maio, quando o cometa estava entrando na órbita deMarte, tinha verificado sua localização nas cartas estelares. Embora fosse fácil encontrá-lo comuns bons binóculos, Floyd resistiu teimosamente à ajuda destes; estava fazendo um pequeno jogo,vendo até que ponto seus olhos idosos correspondiam ao desafio. Embora dois astrônomos emMauna Kea já tivessem afirmado ter observado o cometa visualmente, ninguém acreditou neles, eafirmações semelhantes de outros residentes do Hospital Pasteur tinham sido recebidas comceticismo ainda maior.

Naquela noite, porém, previa-se pelo menos uma magnitude de seis, e ele poderia ter sorte. Traçoua linha de gama a épsilon e concentrou a atenção no ápice de um imaginário eqüilátero colocadosobre ela — quase como se pudesse focalizar sua visão através do Sistema Solar pela simplesforça de vontade.

E lá estava ele! Exatamente como o vira da primeira vez, 76 anos antes, impreciso masinconfundível. Se não soubesse exatamente para onde olhar, nem sequer o teria notado, ou teriaachado que se tratava de alguma nebulosa distante.

Para seu olho nu era apenas uma bolha de névoa pequena, perfeitamente circular. Por mais que seesforçasse, não pôde perceber nenhum traço da cauda. Mas a pequena flotilha de sondas quevinham acompanhando o cometa há meses já tinham registrado as primeiras explosões de poeira egás que dentro em pouco criariam uma crescente plumagem em meio às estrelas, apontandodiretamente no sentido oposto ao de seu criador, o Sol.

Como todos, Heywood Floyd tinha observado a transformação do núcleo frio, escuro — não, quase

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negro — que entrava no Sistema Solar. Depois de 70 anos de profundo congelamento, a complexamistura de água, amônia e outros gelos estava começando a dissolver-se e a ferver. Uma montanhavoadora mais ou menos da forma — e do tamanho — da ilha de Manhattan estava dando umacusparada cósmica a cada 53 horas: à medida que o calor do Sol penetrava a crosta isolante, gasesvaporizadores faziam o cometa de Halley comportar-se como uma caldeira que vazasse. Jatos devapor d'água, misturados com pós e uma combinação infernal de compostos químicos orgânicos,projetavam-se de meia dúzia de pequenas crateras; a maior delas, aproximadamente do tamanho deum campo de futebol, soltava sua cusparada regularmente cerca de duas horas depois da madrugadalocal. Parecia-se exatamente com um gêiser, e fora batizado logo de "Old Faithful" ("Velho Fiel''),em homenagem ao famoso gêiser do Parque Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos.

Ele já se imaginava na borda daquela cratera, esperando que o sol se erguesse acima da escura econtorcida paisagem que já conhecia tão bem pelas imagens enviadas do espaço. É certo que ocontrato nada dizia sobre a saída de passageiros — ao contrário da tripulação e do pessoalcientífico — fora da nave, quando esta descesse no Halley.

Por outro lado também nada havia, nas cláusulas em letras menores, que o proibisse expressamente.

Vão ter trabalho para me segurar, pensou Heywood Floyd. Tenho certeza de que ainda sei usar umtraje espacial. E se estiver errado...

Lembrou-se de ter lido que um visitante do Taj Manai dissera, certa vez: "Eu morreria amanhã,para ter um monumento como este.”

Ele preferiria com satisfação o cometa de Halley.

3. REGRESSO À TERRA

Mesmo sem aquele constrangedor acidente, a volta à Terra não tinha sido fácil.

O primeiro choque ocorreu pouco depois da reanimação, quando a Dra. Rudenko o tinha acordadode seu prolongado sono. Walter Cumow estava junto dela, e mesmo no seu estado desemiconsciência, Floyd percebeu que alguma coisa estava errada: o prazer que demonstraram aovê-lo acordar era um pouco exagerado demais, e não conseguia disfarçar uma certa tensão. Sódepois que se recuperou plenamente disseram-lhe que o Dr. Chandra já não estava entre eles.

Em algum ponto além de Marte, de maneira tão imperceptível que os monitores não podiamregistrar a hora, ele tinha simplesmente deixado de viver. Seu corpo, à matroca no espaço,continuara livremente a acompanhar a órbita da Leonov e tinha sido há muito consumido pelo fogodo Sol.

A causa da morte era totalmente desconhecida, mas Max Brailovsky manifestou uma opinião que,

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embora muito pouco científica, nem o Comandante-Médico Katerina Rudenko procurou refutar:

— Ele não podia viver sem o Hal.

Walter Curnow, logo ele, acrescentou outra reflexão:

— Não sei como Hal reagirá a isso. Alguma coisa lá fora deve estar monitorando todas as nossasemissões. Mais cedo ou mais tarde, ele saberá.

Agora Curnov também se fora — e todos os outros, exceto a pequena Zenia. Não a via há vinteanos, mas seu cartão chegava pontualmente a cada Natal. O último ainda estava espetado no painelacima de sua mesa: mostrava uma tróica cheia de presentes, correndo nas neves de um invernorusso, vigiada por lobos que pareciam muito famintos.

Quarenta e cinco anos! Por vezes parecia ter sido apenas ontem que a Leonov voltara à órbita daTerra, aplaudida por toda a humanidade. Não obstante, tinha sido um aplauso curiosamentecomedido, respeitoso, mas sem entusiasmo autêntico. A missão a Júpiter fora um sucessodemasiado grande. Abrira a Caixa de Pandora, cujo conteúdo ainda não havia sido revelado.

Quando o monolito negro conhecido como Anomalia Magnética Tycho Um (AMT-1) foi escavadona Lua, apenas um punhado de homens sabia de sua existência. Só depois da fatídica viagem daDiscovery a Júpiter, o mundo ficou sabendo que, quatro milhões de anos antes, outra inteligênciatinha passado pelo Sistema Solar e deixado o seu cartão de visitas. A notícia foi uma revelação,mas não uma surpresa: há décadas esperava-se alguma coisa nesse sentido.

E tudo isso aconteceu muito antes da existência da raça humana. Embora um misterioso acidentetivesse ocorrido com a Discovery lá fora em volta de Júpiter, não havia nenhuma prova real de quefosse alguma coisa mais do que um defeito a bordo. Embora as conseqüências filosóficas da AMT-1 fossem profundas, para todas as finalidades práticas a Humanidade continuava sozinha noUniverso.

Isso já não era mais verdade. A apenas alguns minutos-luz de distância — o que no Cosmos eramuito perto — estava uma inteligência que podia criar uma estrela e, com objetivos inescrutáveis,destruir um planeta mil vezes maior do que a Terra. E muito mais pressago era o fato de que essainteligência mostrara conhecer a Humanidade, numa última mensagem que a Discovery mandaradas luas de Júpiter, pouco antes que o brilho intenso de Lúcifer o destruísse:

TODOS ESSES MUNDOS SÃO SEUS — EXCETO EUROPA. NÃO TENTEMDESEMBARCAR ALI.

A nova e brilhante estrela, que tinha acabado com a noite, exceto nos poucos meses em que, a cadaano, passava atrás do Sol, trouxera ao mesmo tempo esperança e medo para a Humanidade. Medo— porque o desconhecido, em especial quando parecia ligado à onipotência, não podia deixar deprovocar essas emoções primevas. Esperança — devido à transformação que provocou na políticaglobal.

Dizia-se com freqüência que a única coisa capaz de unir a Humanidade era uma ameaça do espaço.Se Lúcifer era uma ameaça, ninguém sabia; mas era certamente um desafio. E isso bastava, como se

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viu.

Heywood Floyd tinha acompanhado as transformações geopolíticas da perspectiva do HospitalPasteur, quase como se fosse um observador estranho. A princípio, não tinha a intenção de ficar noespaço depois de completar sua recuperação. Para o intrigado aborrecimento de seus médicos, essarecuperação levou um tempo inesperado.

Analisando esse fato retrospectivamente, na tranqüilidade de seus últimos anos, Floyd sabiaexatamente por que seus ossos se recusavam a soldar-se: simplesmente não queria voltar para aTerra — não havia nada para ele lá embaixo naquele globo ofuscante, azul e branco, que enchia oseu céu. Havia momentos em que podia compreender que Chandra tivesse perdido a vontade deviver.

Foi por mero acaso que não estava com a sua primeira mulher naquele vôo à Europa. Agora Marionestava morta, sua memória parecia parte de uma outra vida que poderia ter pertencido a outrapessoa, e as duas filhas que tiveram eram como desconhecidas amáveis, e tinham suas própriasfamílias.

Tinham, porém, perdido Caroline por sua própria culpa, embora não houvesse escolha, no caso.Ela nunca compreendeu (teria ele realmente feito isso?) por que Floyd deixou a bela casa quetinham feito juntos para exilar-se, durante anos, nos frios desertos distantes do Sol.

Embora soubesse, antes mesmo que a missão chegasse ao meio, que Caroline não esperaria,alimentara esperanças desesperadas de que Chris o perdoasse. Mas até mesmo esse consolo lhefora negado: o filho passara demasiado tempo sem um pai. Quando Floyd voltou, Chris tinhaencontrado outro, no homem que o substituíra na vida de Caroline. O distanciamento foi total. Floydachou que jamais se recuperaria, mas é claro que se recuperou — de certo modo.

Seu corpo tinha espertamente conspirado com os seus desejos inconscientes. Quando por fim voltouà Terra, depois de uma demorada convalescência no Pasteur, evidenciou logo sintomas tãoalarmantes — inclusive algo suspeitamente parecido como necrose óssea — que foi mandado àspressas de volta para a órbita. E ali tinha ficado, com exceção de umas poucas viagens à Lua,completamente adaptado à vida na gravidade de zero a um sexto do hospital espacial que giravalentamente.

Não era um recluso — longe disso. Embora convalescente, ditava relatórios, fazia depoimentosante intermináveis comissões, era entrevistado por representantes dos meios de comunicação. Eraum homem famoso e gostava disso — enquanto durou. Ajudava a compensar as feridas interiores.

A primeira década completa — 2020 a 2030 — parecia ter passado tão depressa que ele tinhaagora dificuldades em focalizá-la. Houve as crises, escândalos, crimes e catástrofes habituais —notadamente o Grande Terremoto da Califórnia, cujas conseqüências tinha observado, com umhorror fascinado, pelas telas dos monitores da estação. Na ampliação máxima, em condiçõesfavoráveis, podiam mostrar seres humanos individualmente. Com sua visão de Deus, porém, foiimpossível sentir-se identificado com aqueles pontinhos que fugiam correndo das cidades emchamas. Só as câmeras locais mostraram o verdadeiro horror.

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Durante aquela década, embora os resultados só se tornassem evidentes mais tarde, as placastectônicas políticas moveram-se tão inexoravelmente quanto as geológicas — mas no sentidooposto, como se o tempo estivesse correndo para trás. Pois no início a Terra possuía o únicosupercontinente de Pangea, que com os eões se dividiu. O mesmo aconteceu com a espécie humana,dividida em numerosas tribos e nações; agora fundia-se, quando as velhas separações lingüísticas eculturas começavam a tornar-se imprecisas.

Embora Lúcifer tivesse acelerado o processo, este começara décadas antes, quando o advento daera do jato provocou uma explosão de turismo global. Quase ao mesmo tempo — não era,certamente, coincidência — os satélites e as fibras óticas revolucionaram as comunicações. Com ahistórica abolição das taxas para chamadas a longa distância, a 31 de dezembro do ano 2000, todotelefonema tornou-se local, e a raça humana saudou o novo milênio transformando-se numa única eenorme família conversadeira.

Como a maioria das famílias, nem sempre era pacífica, mas suas brigas já não eram uma ameaça atodo o planeta. A segunda — e última — guerra nuclear viu o uso em combate do mesmo númerode bombas que a primeira — precisamente duas. E embora a quilotonagem fosse maior, as baixasforam muito menores, pois ambas foram usadas contra instalações petrolíferas em áreas poucopovoadas. Àquela altura, os Três Grandes — China, Estados Unidos e União Soviética — agiramcom elogiável rapidez, isolando a zona de batalha até que os combatentes que sobreviveramvoltassem a ter bom senso.

Na década de 2020-30 uma guerra entre as Grandes Potências era tão inimaginável quanto umaguerra entre o Canadá e os Estados Unidos no século anterior. Isso não era conseqüência denenhuma grande melhoria na natureza humana, nem mesmo de nenhum fato isolado, exceto apreferência normal pela vida, e não pela morte. Grande parte do mecanismo da paz não fora nemmesmo planejado de maneira consciente: antes que os políticos percebessem o que tinhaacontecido, descobriram que estava montado, e funcionava bem...

Nenhum estadista, nenhum idealista de qualquer ideologia inventou o movimento dos "Reféns daPaz": esse nome só foi criado bem depois que alguém percebeu que havia sempre cem mil turistasrussos nos Estados Unidos — e meio milhão de americanos na União Soviética, a maioriadedicando-se ao passatempo tradicional de queixar-se das instalações hidráulicas. E talvez maispertinente, ambos os grupos tinham um número desproporcionalmente grande de pessoasimportantes — os filhos e filhas da riqueza, do privilégio e do poder político.

E mesmo que se desejasse, já não era possível planejar uma guerra em grande escala. A Idade daTransparência alvoreceu na década de 1990, quando os meios de comunicação mais arrojados emmassa começaram a lançar satélites fotográficos com resoluções comparáveis às que os militarestiveram por três décadas. O Pentágono e o Kremlin ficaram furiosos, mas não podiam competir coma Reuters, a Associated Press e com as câmeras vigilantes 24 horas por dia do Orbital NewsService.

Em 2060, embora o mundo não estivesse totalmente desarmado, estava efetivamente pacificado, eas 50 armas nucleares que restavam estavam todas sob controle internacional. Houve umaresistência surpreendentemente pequena quando o popular monarca Edward VIII foi eleito primeiro

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Presidente Planetário, com a discordância de apenas doze estados, cujo tamanho e importância iamda Suíça — que ainda teimava em ser neutra (mas cujos restaurantes e hotéis saudaram a novaburocracia com braços abertos) — até as Malvinas, estas ainda mais fanaticamente independentes,que resistiram a todas as tentativas dos exasperados ingleses e argentinos de impingi-las uns aosoutros.

O desmantelamento da enorme indústria de armamentos, totalmente parasitária, deu um impulso —por vezes até mesmo pouco saudável — à economia mundial. Matérias-primas vitais e brilhantestalentos de engenharia deixaram de ser engolidos por um virtual buraco negro — ou, pior ainda,dirigidos para a destruição. Puderam ser usados, em lugar disso, na reparação da devastação enegligência de séculos, reconstruindo o mundo.

E construindo outros, novos. Agora, realmente, a Humanidade tinha encontrado, “o equivalentemoral da guerra'', e um desafio que podia absorver as energias excedentes da raça — por tantosmilênios futuros quanto se ousasse sonhar.

4. MAGNATA

Quando nasceu, William Tsung foi chamado de "o bebê mais caro do mundo'', título que mantevepor dois anos apenas, até que fosse reivindicado por sua irmã. Ela ainda o conservava, e agora queas Leis de Família tinham sido revogadas, não seria questionado nunca.

Seu pai, o lendário Sir Lawrence, nasceu quando a China restabeleceu a rigorosa regra de "UmFilho, Uma Família"; sua geração proporcionou a psicólogos e cientistas sociais interminávelmaterial de estudo. Não tendo irmãos ou irmãs — e em muitos casos, nem tios ou tias —, ela foisingular na história humana. Se o crédito disso cabia à flexibilidade da espécie ou ao mérito dosistema chinês de família ampliada, provavelmente nunca se saberá. A verdade é que as criançasdaquele estranho período foram notavelmente livres de problemas; mas certamente não deixaram deser afetadas, e Sir Lawrence tinha feito o máximo, e de maneira espetacular, para compensar oisolamento de sua infância.

Quando seu segundo filho nasceu em 2022, o sistema de licenciamento se havia transformado emlei. Era possível ter quantos filhos se quisesse, desde que fosse paga a taxa adequada. (Oscomunistas sobreviventes da Velha Guarda não foram os únicos a considerar o plano aterrador,mas foram vencidos pelos seus colegas mais pragmáticos do novo Congresso da RepúblicaDemocrática Popular.)

Os números 1 e 2 estavam livres de taxas. O número 3 custava um milhão de sois. O número 4, doismilhões. O número 5, quatro milhões, e assim por diante. O fato de que, teoricamente, não haviacapitalistas na República Popular, foi alegremente ignorado.

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O jovem Sr. Tsung (isso aconteceu anos antes, é claro, que o rei Edward o fizesse CavaleiroComandante da Ordem do Império Britânico) nunca revelou se tinha algum objetivo em mente; eraainda um milionário razoavelmente pobre quando seu quinto filho nasceu. Mas tinha apenas 40anos, e quando a compra de Hong Kong não consumiu uma parcela tão grande de seu capital quantotinha receado, descobriu que dispunha ainda de uns consideráveis trocados.

E o que diz a lenda — mas, como tantas outras histórias sobre Sir Lawrence, era difícil distinguirentre fato e mitologia. Não havia certamente verdade no persistente rumor de que ele tinha ganho asua primeira fortuna com a famosa edição pirata do tamanho de uma caixa de sapatos da Bibliotecado Congresso. Toda a quadrilha do Módulo da Memória Molecular era uma operação fora daTerra, possibilitada pelo fato de os Estados Unidos não terem assinado o Tratado Lunar.

Embora Sir Lawrence não fosse um multimilionário, o complexo de empresas por ele construídotransformou-se na maior potência financeira da Terra — um feito nada desprezível para o filho deum humilde vendedor de vídeo-cassete no que era ainda conhecido como os Novos Territórios. Eleprovavelmente nunca notou os oito milhões para o filho Número Seis, ou mesmo os 32 para oNúmero Oito. Os 64 milhões que teve de pagar pelo Número Nove atraíram publicidade mundial, edepois do Número Dez as apostas sobre seus futuros planos bem podem ter excedido os 256milhões que o próximo filho lhe teria custado. Mas àquela altura, Lady Jasmine, que combinava asmelhores propriedades do aço e da seda em requintada proporção, decidiu que a dinastia Tsungestava adequadamente estabelecida.

Foi por acaso (se existe acaso) que Sir Lawrence envolveu-se pessoalmente nos negócios doespaço. Ele tinha, decerto, grandes interesses marítimos e aeronáuticos, mas estes eram dirigidospelos seus cinco filhos e seus sócios. O verdadeiro amor de Sir Lawrence eram as comunicações— jornais (os poucos que restavam), livros, revistas (de papel e eletrônicas) e, acima de tudo, asredes globais de televisão.

Foi então que ele comprou o velho e majestoso Hotel Peninsular, que para um menino chinês pobretinha parecido outrora o símbolo da riqueza e do poder, e transformou-o em sua residência eprincipal escritório. Cercou-o de um belo parque, com o expediente simples de colocar os enormescentros comerciais debaixo da terra (sua recém-formada Companhia Laser de Escavações ganhounesse processo uma fortuna e abriu o precedente para muitas outras cidades).

Um dia, quando admirava a silhueta sem par da cidade, do outro lado da baía, achou que um novomelhoramento era necessário. A vista dos andares mais baixos do Peninsular estava bloqueada hádécadas por um grande edifício que parecia uma bola de golfe amassada. Sir Lawrence resolveuque ele teria de desaparecer.

O diretor do Planetário de Hong Kong — considerado em geral como um dos cinco melhores domundo — tinha outra opinião, e dentro em pouco Sir Lawrence teve o prazer de descobrir alguémque não podia comprar por dinheiro nenhum. Os dois tornaram-se amigos; mas quando o Dr.Hessenstein promoveu uma sessão especial para o 60° aniversário de Sir Lawrence, não sabia queestava ajudando a mudar a história do Sistema Solar.

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5. FORA DO GELO

Mais de cem anos depois que Zeiss construiu o primeiro protótipo em Jena, em 1924, ainda haviauns poucos projetores de planetário óticos em uso, pairando dramaticamente sobre o seu público.Mas Hong Kong tinha aposentado seu instrumento de terceira geração há algumas décadas, emfavor do sistema eletrônico, muito mais versátil. Toda a grande cúpula era, essencialmente, umagigantesca tela de televisão, feita de milhares de painéis separados, nos quais qualquer imagemconcebível podia ser mostrada.

O programa tinha começado — inevitavelmente — com um tributo ao inventor desconhecido dofoguete, em algum ponto da China durante o século XIII. Os primeiros cinco minutos foram umarápida recapitulação histórica, dando talvez um crédito menor do que o devido aos pioneirosrussos, alemães e americanos, para concentrar-se na carreira do Dr. Hsue-Shen Tsien. Seuscompatriotas podiam ser desculpados, naquele momento e lugar, se o fizeram parecer tãoimportante na história do aperfeiçoamento dos foguetes quanto Goddard, von Braun ou Korolyev. Eeles certamente tinham razões para indignar-se pela sua detenção, sob acusações forjadas nosEstados Unidos quando, depois de ajudar a criar o famoso Laboratório de Propulsão a Jato e sernomeado o primeiro professor da cátedra Goddard no Instituto de Tecnologia da Califórnia,resolveu voltar para seu país.

O lançamento do primeiro satélite chinês pelo foguete Long March 1, em 1970, mal foimencionado, talvez porque naquela época os americanos já estavam caminhando na Lua. Naverdade, o resto do século XX foi liquidado em poucos minutos, para levar a história até 2007 e aconstrução secreta da nave espacial Tsien — à vista de lodo <i mundo.

O narrador não glosou indevidamente a consternação das outras potências exploradoras do espaçoquando uma estação espacial, presumivelmente chinesa, deixou subitamente a órbita e dirigiu-se nJúpiter, alcançando a missão russo-americana a bordo do Cosmonauta Mexei Leonov. A históriaera suficientemente dramática—e trágica — para não precisar de embelezamentos.

Infelizmente, havia muito pouco material visual autêntico para ilustrá-la: o programa teve derecorrer em grande parte a efeitos especiais e à reconstituição inteligente, a partir de levantamentosfotográficos posteriores, de longo alcance. Durante sua breve permanência na gelada superfície deEuropa, a tripulação da Tsien esteve ocupada demais para fazer documentários de televisão, oumesmo instalar uma câmera automática.

Não obstante, as palavras ditas na ocasião transmitiam muito do drama daquela primeira descidanas luas de Júpiter. O comentário transmitido por Heywood Floyd, da Leonov que se aproximava,serviu admiravelmente para estabelecer o clima, e havia muitas tomadas de Europa colhidas embibliotecas, para ilustrá-lo:

'' Neste exato momento estou a observá-la pelo mais poderoso dos telescópios da nave: com esseaumento, é dez vezes maior do que a Lua tal como é vista da Terra a olho nu. E é realmente uma

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visão estranha.

"A superfície é de um róseo uniforme, com umas poucas faixas marrons. Está coberta com umacomplicada rede de linhas estreitas que se curvam e recurvam em todas as direções. Na verdade,ela se parece muito com uma foto de um manual de medicina, mostrando o desenho das veias eartérias.

"Algumas dessas linhas têm centenas — milhares, mesmo—de quilômetros de extensão, e parecem-se muito com os canais ilusórios que Percival Lowell e outros astrônomos do início do século XXimaginavam ter visto em Marte.

“Mas os canais de Europa não são uma ilusão, embora decerto não sejam artificiais. E o que é maissurpreendente, realmente contêm água — ou pelo menos, gelo. Pois o satélite é quase totalmentecoberto pelo oceano, com a média de 50 quilômetros de profundidade.

"Por estar tão distante do Sol, a temperatura da superfície de Europa é extremamente baixa —cerca de 150 graus negativos. Portanto, poderíamos esperar que seu único oceano seja um sólidobloco de gelo.

"Surpreendentemente, porém, isso não ocorre porque há muito calor gerado no interior de Europapelas forças da maré—as mesmas forças que impulsionam os grandes vulcões do satélite vizinho,Io.

"Portanto, o gelo está continuamente em fusão, rompendo-se, e congelando-se, formando grandesfrestas e aberturas como nos lençóis de gelo flutuantes em nossas regiões polares. É esse intricadotraçado de rachaduras que estou vendo agora; a maioria delas é escura e muito antiga — talvez commilhões de anos. Outras, porém, são de um branco quase puro: são as mais recentes que têm umacrosta de apenas alguns centímetros de espessura.

"A Tsien desceu bem ao lado de uma dessas rachaduras brancas — a de 1.500 quilômetros e quefoi batizada de Grande Canal. Provavelmente os chineses pretendem bombear sua água para seustanques propulsores, para que possam explorar o sistema de satélites de Júpiter, e em seguidavoltar à Terra. Isso pode não ser fácil, mas eles certamente estudaram o local de descida comgrande cuidado, e devem saber o que estão fazendo.

"É evidente, agora, por que correram tal risco — e por que reivindicam Europa. Como ponto dereabastecimento. Ela poderia ser a chave de todo o Sistema Solar.

Mas as coisas não se tinham passado assim, pensou Sir Lawrence, reclinando-se em sua luxuosapoltrona sob o disco riscado e sarapintado que enchia seu céu artificial. Os oceanos de Europaainda eram inacessíveis à Humanidade, por motivos que ainda constituíam um mistério. E não sóinacessíveis, mas invisíveis; desde que Júpiter se tornara um sol, seus dois satélites interiorestinham desaparecido sob nuvens de vapor provenientes de seu interior em ebulição. Estava olhandopara Europa como havia sido em 2010, e não como era hoje.

Naquela época ele era pouco mais do que um menino, mas ainda se lembrava do orgulho que sentiuao saber que seus compatriotas — por mais que discordasse de sua política—estavam na iminência

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de realizar o primeiro desembarque num mundo virgem.

Não havia uma câmera lá, é claro, para registrar aquela descida, mas a reconstituição era muitobem-feita. Ele podia realmente acreditar que aquela era a fatídica nave espacial descendosilenciosamente do céu escuro em direção à paisagem gélida de Europa e repousando ao lado dafaixa desbotada de água recém-congelada que tinha sido batizada de Grande Canal.

Todos sabiam o que acontecera em seguida; e talvez, prudentemente, não tivesse havido nenhumatentativa de reproduzir visualmente esse fato. Em lugar disso, a imagem de Europadesapareceu, sendo substituída por um retrato tão conhecido dos chineses quanto o de Yuri Gagarinpara todos os russos.

A primeira fotografia mostrava Rupert Chang quando de sua formatura em 1989 — o jovemestudioso e interessado, igual a um milhão de outros, totalmente inconsciente de seu encontromarcado com a História, duas décadas no futuro.

Rapidamente, sobre um fundo musical em surdina, o comentarista resumiu os pontos maisimportantes da carreira do Dr. Chang, até sua nomeação como Oficial Cientista a bordo da Tsien.Superpostas no tempo, as fotos se foram tornando mais velhas, até a última tirada imediatamenteantes da missão.

Sir Lawrence estava satisfeito com a escuridão do planetário, pois tanto seus amigos comoinimigos se surpreenderiam vendo a umidade de seus olhos ao ouvir a mensagem que o Dr. Changtinha dirigido para a Leonov que se aproximava, sem saber se seria recebida:

"... sei que estão a bordo da Leonov... talvez não tenha muito tempo... dirigindo minha antena paraonde acho...”

O sinal desaparecia por alguns agoniantes segundos, depois voltava mais claro, embora não muitomais alto.

"... transmitam essa informação para a Terra. A Tsien foi destruída há três horas. Sou o únicosobrevivente. Uso o rádio de minha roupa espacial — não sei se tem alcance bastante, mas é aúnica possibilidade. Por favor, ouçam cuidadosamente. HÁ VIDA EM EUROPA. Repito: HÁVIDA EM EUROPA...”

O sinal desaparecia de novo...

"... logo depois da meia-noite local. Estávamos bombeando continuamente e os tanques estavamquase pela metade. O Dr. Lee e eu saímos para verificar o isolamento dos canos. A Tsien está—estava— a trinta metros da beirada do Grande Canal. Os canos saem diretamente da nave eatravessam o gelo. Muito fino—não é seguro caminhar sobre ele. O afloramento das águasprofundas quentes...”

De novo um longo silêncio.

"... nenhum problema — cinco quilowatts de luzes estendidas num fio na nave. Como uma árvore deNatal — bonito, brilhando no gelo. Cores gloriosas. Lee o viu primeiro: uma enorme massa escura

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erguendo-se das profundezas. A princípio, pensamos que fosse um cardume de peixes — grandedemais para um único organismo —, depois ela começou a romper o gelo...

"... como enormes pedaços de algas marinhas molhadas, arrastando-se pelo chão. Lee correu para anave para apanhar a câmera — eu fiquei observando e informando pelo rádio. A coisa movia-setão lentamente que eu poderia tê-la ultrapassado facilmente. Estava muito mais agitado do quealarmado. Achei que sabia que tipo de criatura era —vi fotos das florestas de algas da Califórnia—, mas estava enganado.

"... percebi que a coisa estava em dificuldades. Não poderia sobreviver a uma temperatura de 150graus abaixo de seu ambiente normal. Congelava-se à medida que avançava — pedaços rompiam-se como gelo—mas mesmo assim avançava em direção à nave, uma onda negra, cada vez maislenta.

"Eu continuava tão surpreso que não pude pensar direito e não pude imaginar o que ela estavatentando fazer...

"... subindo em direção à nave, construindo uma espécie de túnel de gelo enquanto avançava.Talvez isso a isolasse do frio — da mesma forma que os cupins se protegem da luz solar com seuspequenos corredores de barro.

"... toneladas de gelo sobre a nave. As antenas de rádio romperam-se primeiro. Depois pude ver aspernas de sustentação da nave oscilarem — tudo em câmara lenta, como num sonho.

"Só quando a nave começou a tombar compreendi o que a coisa estava tentando fazer, e já era tardedemais. Poderíamos ter-nos salvo — se apenas tivéssemos desligado aquelas luzes.

"Talvez fosse um fotótropo, com o ciclo biológico ativado pela luz solar que se filtra através dogelo. Ou poderia ter sido atraída como a mariposa pela vela. Nossas luzes devem ter sido maisbrilhantes do que qualquer coisa jamais vista em Europa...

"E então a nave desabou. Vi o casco romper-se, uma nuvem de flocos de gelos formar-se comoumidade condensada. Todas as luzes se apagaram, exceto uma, que ficou oscilando de um fioalguns metros acima do chão.

"Não sei o que aconteceu imediatamente depois disso. Quando dei por mim, estava de pé sob a luz,ao lado dos restos da nave, com a poeira fina da neve fresca à minha volta. Podia ver claramenteminhas pegadas nela. Devo ter corrido para lá; talvez apenas um ou dois minutos tivessemtranscorrido.

“A planta — continuo a pensar nela como uma planta — estava imóvel. Indaguei-me se teria sidoatingida pelo impacto; pedaços grandes—da grossura do braço de um homem—se tinham partidodela, como lascas quebradas.

"E então o tronco principal começou a mover-se outra vez. Afastou-se do casco e começou aarrastar-se na minha direção. Foi então que tive certeza de que a coisa era sensível à luz: eu estavade pé exatamente sob a lâmpada de mil watts, que já então parará de oscilar.

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"Imaginem um carvalho — melhor ainda, uma figueira da Bengala com seus múltiplos troncos eraízes — achatada pela gravidade e tentando arrastar-se pelo chão. Chegou a cinco metros da luz,depois começou u espalhar-se até formar um círculo perfeito à minha volta. Presumivelmente eraesse o limite de sua tolerância — o ponto em que a fotoatração se transformava em repulsão.Depois disso, nada aconteceu por, vários minutos. Indaguei-me se estaria morta — totalmentecongelada, por fim.

"Foi então que vi que grandes brotos se estavam formando em muitos dos ramos. Era como ver umfilme em que as flores se abrem. Na verdade, eram flores — cada uma do tamanho da cabeça de umhomem.

"Membranas delicadas, de belas cores, começaram a abrir-se. Mesmo então, ocorreu-me queninguém — nada — poderia jamais ter visto aquelas cores antes; elas não existiam até quetrouxemos nossas luzes — nossas fatais luzes — para este mundo.

"Tendões, estames, agitando-se debilmente... Dirigi-me à parede viva que me cercava, para verexatamente o que estava acontecendo. Nem então, nem em qualquer outro momento, tive qualquermedo da criatura. Tinha certeza de que não era maligna — se é que chegava a ter algumaconsciência.

"Havia dezenas dessas flores grandes, em várias fases de abertura. Lembravam-me agora asborboletas emergindo das crisálidas — asas amassadas, ainda frágeis —, eu estava meaproximando cada vez mais da verdade.

"Mas elas se estavam congelando, morrendo tão logo se formavam. E então, uma após a outra,caíam dos ramos de onde vinham. Por um momento saltavam à volta como peixes perdidos na terraseca — e finalmente percebi com exatidão o que eram. Aquelas membranas não eram pétalas —eram nadadeiras, ou seu equivalente. Era a fase larval da criatura que nadava livremente.Provavelmente ela passava grande parte de sua vida presa ao leito do mar; depois, mandava essesrebentos móveis em busca de novo território. Exatamente como os corais dos oceanos da Terra.

"Ajoelhei-me para ver mais de perto uma das pequenas criaturas. As belas cores estavam agoraapagando-se, transformando-se num marrom opaco. Algumas das nadadeiras-pétalas se tinhamquebrado, transformando-se em pequenos cacos ao se congelarem. Mas ela ainda se movia de leve,e quando me aproximei procurou evitar-me. Não sei como percebeu minha presença.

"Notei então que os estames, como os chamei, tinham todos manchas de um azul brilhante em suaspontas. Pareciam pequenas safiras estreladas — ou os olhos azuis do manto de um vestido —conscientes da luz, mais incapazes de formar imagens verdadeiras. Enquanto eu observava, o azulvivo apagou-se, as safiras tornaram-se opacas, como pedras ordinárias...

"Dr. Floyd, ou quem estiver ouvindo, eu não tenho muito tempo mais. Júpiter bloqueará meu sinaldentro em pouco. Mas estou acabando.

"Eu sabia então o que tinha de fazer. O fio daquela lâmpada de mil watts estava quase no chão.Dei-lhe uns puxões, e a luz desapareceu num chuveiro de fagulhas.

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"Fiquei pensando se teria sido tarde demais. Durante uns poucos minutos, nada aconteceu. Por isso,caminhei até a parede de ramos entrelaçados à minha volta e dei-lhe um pontapé.

"Lentamente a criatura começou a desemaranhar-se e a retirar-se de volta para o canal. Haviabastante luz — eu podia ver tudo perfeitamente. Ganimedes e Calisto estavam no céu — Júpiter eraum enorme e fino crescente — e havia uma grande aurora no lado noturno, no extremo jupiterianodo tubo de fluxo de Io. Não havia necessidade de usar a luz de meu capacete.

"Acompanhei a criatura até a água, estimulando-a com novos pontapés quando andava maisdevagar, sentindo os fragmentos de gelo esmagados sob minhas botas... Ao aproximar-se do canal,a coisa pareceu ganhar força e energia, como se soubesse que se aproximava de seu lar natural.Não sei se poderia sobreviver, florescer novamente.

'' Desapareceu sob a superfície, deixando algumas larvas mortas na terra estranha. A água livre,exposta, borbulhou por alguns minutos até que uma camada de gelo protetor selou-a do vácuoacima. Depois, fui até a nave para ver se havia alguma coisa a salvar — não quero falar sobre isso.

"Tenho apenas dois pedidos a fazer, doutor. Quando os taxonomistas classificarem essa criatura,espero que lhe dêem o meu nome.

"E quando a próxima nave regressar, peçam-lhes que levem nossos ossos de volta para a China.

"Júpiter se interporá dentro de poucos minutos. Gostaria de saber se alguém está me recebendo. Dequalquer modo, repetirei esta mensagem quando estivermos novamente em linha reta, se o sistemade manutenção de vida de minha roupa espacial durar até lá.

"Fala o professor Chang, em Europa, informando a destruição da nave espacial Tsien. Descemos aolado do Grande Canal e instalamos nossas bombas na orla do gelo...”

O sinal desapareceu abruptamente, voltou por um momento, depois desapareceu totalmente sob oruído. Não haveria outra mensagem do professor Chang, mas ela já tinha desviado as ambições deLawrence Tsung para o espaço.

6. O PROJETO VERDE DE GANIMEDES

Rolf Van der Berg era o homem certo no lugar certo no momento certo: nenhuma outra combinaçãoteria funcionado. Grande parte da História se faz assim, é claro.

* Era o homem certo porque era um refugiado africânder de segunda geração e um geólogoformado, dois fatores de igual importância. Estava no lugar certo porque esse lugar tinha de ser amaior das luas de Júpiter—a terceira de dentro para fora, na seqüência Io, Europa, Ganimedes,Calisto.

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O momento não era tão crítico, pois a informação vinha sendo guardada, como uma bomba de açãoretardada, nos Trancos de dados pelo menos há uma década. Van der Berg só a encontrou em 2057;mesmo assim foi necessário mais um ano para convencer-se de que não estava louco — e foi em2059 que seqüestrou discretamente os registros originais para que ninguém pudesse fazer a mesmadescoberta. Só então pôde dedicar, com segurança, toda a sua atenção ao principal problema: o quefazer em seguida.

Tudo começou, como acontece tantas vezes, com uma observação aparentemente trivial num campoque nem mesmo era do interesse direto de Van der Berg. Seu trabalho, como membro da Força-Tarefa de Engenharia Planetária, era levantar e catalogar os recursos naturais de Ganimedes. Nãose devia ocupar do satélite proibido que lhe ficava vizinho.

Mas Europa era um enigma que ninguém — e muito menos os seus vizinhos imediatos — podiadesconhecer por muito tempo. A cada sete dias ela passava entre Ganimedes e o brilhante minissolque tinha sido Júpiter, produzindo eclipses que podiam durar até 12 minutos. No seu ponto maispróximo, parecia um pouco menor do que a Lua vista da Terra, mas reduzia-se a apenas um quartodesse tamanho quando estava no outro lado de sua órbita.

Os eclipses eram, com freqüência, espetaculares. Pouco antes de deslizar entre Ganimedes eLúcifer, Europa transformava-se num pressago disco negro delineado por um anel de fogo,vermelho como a luz do novo sol refratada pela atmosfera que tinha ajudado a criar.

Em menos da metade do tempo de uma vida humana, Europa se tinha transformado. A crosta degelo no hemisfério sempre voltado para Lúcifer se dissolvera para formar o segundo oceano doSistema Solar. Durante uma década, ele tinha espumado e borbulhado no vácuo acima, até que seestabelecesse um equilíbrio. Agora, Europa tinha uma tênue atmosfera — que podia ser usada, masnão por seres humanos — de vapor d'água, sulfeto de hidrogênio, carbono e dióxidos de enxofre,nitrogênio e uma mistura de gases rarefeitos. Embora o lado do satélite erroneamente batizado deNoite ainda estivesse permanentemente congelado, uma área grande como a África dispunha agorade um clima temperado, água líquida e umas poucas ilhas esparsas.

Tudo isso, e não muito mais, tinha sido observado pelos telescópios na órbita da Terra. Na épocaem que a primeira expedição em grande escala foi mandada às luas de Galileu, em 2028, Europa játinha sido envolvida por um manto permanente de nuvens. Cautelosas sondagens de radar poucorevelaram além de um oceano liso, num lado, e gelo quase que igualmente liso, no outro; Europaainda mantinha sua reputação como a coisa menos acidentada do Sistema Solar.

Dez anos depois, isso já não era verdade; alguma coisa drástica tinha acontecido com Europa.Tinha agora uma montanha solitária, quase tão grande quanto o Everest, rompendo o gelo da zonaobscura. Presumidamente, alguma atividade vulcânica — como a que acontece incessantemente navizinha Io — tinha empurrado essa massa de material na direção do céu. O enorme aumento dofluxo de calor de Lúcifer poderia ter provocado isso.

Havia, porém, problemas com essa explicação óbvia. O monte Zeus era uma pirâmide irregular, enão o cone vulcânico habitual, e sondagens com o radar não revelaram nenhuma das correntes delava características. Algumas fotografias de má qualidade, conseguidas Com telescópios em

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Ganimedes, durante uma abertura temporária nas nuvens, sugeria ser a montanha feita de gelo, comoa paisagem congelada à sua volta. Qualquer que fosse a resposta, a criação do monte Zeus tinhasido uma experiência traumática para o mundo que ele do- minava, pois toda a configuração malucade massas de gelo fraturadas do lado Noite tinha mudado totalmente.

Um cientista meio doido sugeriu a teoria de que o monte Zeus era um "iceberg cósmico" — umfragmento de cometa caído do espaço sobre Europa; a bombardeada Calisto apresenta provasamplas de que tais bombardeiros tinham acontecido no passado remoto. Essa teoria era muito malacolhida em Ganimedes, onde os supostos colonos já tinham problemas suficientes. Ficaram muitoaliviados quando Van der Berg refutou essa teoria de maneira convincente: qualquer massa de gelodaquele tamanho se teria partido com o impacto — e mesmo que não tivesse, a gravidade deEuropa, por mais modesta que fosse, teria provocado rapidamente o seu colapso. Medidas feitascom radar mostravam que embora o monte Zeus estivesse na verdade afundando continuamente, suaforma geral continuava inalterada. O gelo não era a resposta.

O problema poderia ter sido resolvido, é claro, mandando-se uma única sonda através das nuvensde Europa. Infelizmente, o que estava atrás daquela névoa não estimulava a curiosidade.

TODOS ESSES MUNDOS SÃO SEUS — EXCETO EUROPA. NÃO TENTEM DESEMBARCARALI.

A última mensagem transmitida da nave Discovery, pouco antes de sua destruição, não foraesquecida, mas houve discussões intermináveis sobre a sua interpretação. A palavra "desembarcar"referia-se também a sondas robóticas, ou apenas a veículos tripulados pelo homem? E quanto àsaproximações, tripuladas ou não? Ou ao envio de balões à atmosfera superior?

Os cientistas estavam ansiosos para descobrir, mas o público em geral evidenciava claronervosismo. Uma potência capaz de detonar o mais vigoroso planeta do Sistema Solar não podiaser desafiada. E seriam necessários séculos para explorar e colonizar Io, Ganimedes, Calisto e asdezenas de satélites menores; Europa podia esperar.

Mais uma vez, portanto, disseram a Van der Berg para não desperdiçar seu valioso tempo compesquisas sem importância prática, quando havia tanta coisa a fazer em Ganimedes. ("Ondepodemos encontrar carbono — fósforo — nitratos para as fazendas hidropônicas? Qual aestabilidade da escarpa Barnard? Haverá perigo de mais deslizamentos de lama em Frígia?" Eassim por diante...) Ele, porém, herdara de seus ancestrais boêres a bem merecida fama deteimosia; mesmo ao trabalhar em seus numerosos projetos, continuava a olhar para Europa, porcima do ombro.

E um dia, apenas por algumas horas, uma ventania limpou o céu à volta do monte Zeus.

7. TRÂNSITO

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"Também eu me despeço de tudo o que tive.”

De que profundezas da memória tinha aquele verso aflorado? Heywood Floyd fechou os olhos etentou focalizar sua atenção no passado. Era sem dúvida de um poema — e poucos versos teria lidodesde que deixara o colégio. E mesmo no colégio foram poucos, exceto durante um breveSeminário de Apreciação de Inglês.

Sem outras indicações, talvez fosse necessário ao computador da estação algum tempo — atémesmo uns dez minutos — para localizar o verso em toda a literatura inglesa. Mas isso seria umafraude (para não falar no ônus), e Floyd preferia aceitar o desafio intelectual.

Um poema de guerra, claro — mas qual? Havia tantos, no século XX...

Ainda estava buscando entre a névoa mental quando seus convidados chegaram, movendo-se com agraça fácil, em câmara lenta, dos que vivem há muito com uma gravidade de um sexto. A sociedadedo Hospital Pasteur era fortemente influenciada pelo que tinha sido batizado de "estratificaçãocentrífuga": algumas pessoas nunca deixavam o setor de gravidade zero, enquanto outras, queesperavam voltar algum dia para a Terra, preferiam o regime de peso quase normal, lá fora, naborda do enorme disco que girava lentamente.

George e Jerry eram agora os mais antigos e íntimos amigos de Floyd — o que era surpreendente,pois tinham poucas coisas em comum. Olhando retrospectivamente para sua carreira emocional umtanto variegada — dois casamentos, três contratos formais, dois informais, três filhos —, ele porvezes invejava a estabilidade da relação daqueles dois, aparentemente pouco afetados pelos"sobrinhos" da Terra ou da Lua que os visitavam de tempos em tempos.

— Vocês nunca pensaram em se divorciar? — perguntou provocadoramente, certa vez.

Como sempre, George — cuja técnica como maestro, um tanto acrobática mas profundamente séria,tinha sido em grande parte responsável pelo retorno da orquestra clássica — não perdeu o humor.

— Divorciar, nunca — foi sua resposta rápida. — Matar, sim, freqüentemente.

— E claro, ele nunca conseguiria fugir — replicou Jerry. — Sebastian entornaria o caldo.

Sebastian era o belo e falador papagaio que o casal importara depois de uma longa batalha com asautoridades do hospital. Não só sabia falar como reproduzia os compassos iniciais do concertopara violino de Sibelius, com o qual Jerry — muito ajudado por Antônio Stradivari — granjearafama, há meio século.

Tinha chegado o momento de despedir-se de George, Jerry e Sebastian — talvez apenas poralgumas semanas, talvez para sempre. Floyd já tinha feito todas as outras despedidas, numa série defestas que provocaram sérias baixas na adega de vinhos da estação, e tinha a certeza de ter feitotudo o que devia.

Archie, sua secretária eletrônica antiga mas ainda em perfeito uso, tinha sido programada paraatender todas as chamadas, dando as respostas adequadas ou encaminhando as coisas urgentes epessoais para ele, a bordo da Universe. Seria estranho, depois de todos aqueles anos, não poder

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falar com alguém que desejasse — embora, em compensação, pudesse também evitar ostelefonemas indesejados. Depois de alguns dias de viagem, a nave estaria bastante longe da Terrapara tornar impossível a conversação em tempo real, e todas as comunicações teriam de ser porvoz gravada ou teletexto.

— Pensávamos que você fosse nosso amigo — queixou-se George. — Foi um golpe sujo fazer denós seus testamenteiros, especialmente porque não vai deixar nada para nós.

— Vocês podem ter algumas surpresas — sorriu Floyd. — De qualquer modo, Archie seencarregará de todos os detalhes. Gostaria apenas que vocês dessem uma olhada na minhacorrespondência, caso surja alguma coisa que ela não compreenda.

— Se ela não compreender, nenhum de nós compreenderá. O que sabemos nós de todas as suassociedades científicas e outras tolices iguais?

— Elas podem tomar conta de si mesmas. Por favor, façam com o que o pessoal da limpeza nãodesorganize as coisas demais enquanto eu estiver fora. E se eu não voltar, aqui estão algumascoisas pessoais que eu gostaria que fossem entregues, principalmente à família.

Família! Havia sofrimentos, bem como prazeres, em viver tanto quanto tinha vivido.

Tinham transcorrido 63 anos — 63! — desde a morte de Marion naquele acidente aéreo. Agora elesentia uma ponta de culpa por não poder sequer lembrar-se da dor que devia ter sentido. Ou sepodia, era uma reconstituição sintética, não uma lembrança autêntica.

O que teriam significado um para o outro, se ela ainda estivesse viva? Teria agora cem anos deidade...

E agora as duas garotinhas que ele outrora tanto tinha amado eram estranhas gentis, grisalhas, comquase 70 anos, com filhos — e netos! Da última vez que contou, tinha nove, naquele ramo dafamília. Sem a ajuda de Archie, jamais poderia se lembrar de seus nomes. Mas pelo menos todos selembravam dele no Natal, por dever, quando não por afeição.

Seu segundo casamento tinha, decerto, apagado as recordações do primeiro, como a escrita maisrecente sobre um palimpsesto medieval. Este também terminou, 50 anos antes, em algum pontoentre a Terra e Júpiter. Embora tivesse esperado uma reconciliação com a mulher e o filho, tinhahavido tempo apenas para um breve encontro, entre todas as cerimônias de boas-vindas, antes queseu acidente o exilasse para Pasteur.

O encontro não foi bem-sucedido, nem o segundo, organizado com muitas despesas e dificuldades abordo do próprio hospital espacial — na verdade, naquele mesmo quarto. Chris tinha então 20anos, e acabava de casar-se; e se alguma coisa unia Floyd e Caroline era a desaprovação de suaescolha.

Não obstante, Helena se saíra notavelmente bem: tinha sido boa mãe para Chris II, nascido poucomais de um mês depois do casamento. E quando, como tantas outras esposas jovens, enviuvou noDesastre de Copérnico, não perdeu a cabeça.

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Havia uma ironia curiosa no fato de que tanto Chris I como Chris II tivessem perdido seus pais parao Espaço, embora de maneiras muito diferentes. Floyd tinha voltado rapidamente para o filho deoito anos como um estranho total; Chris II pelo menos conhecera um pai durante a primeira décadade sua vida, antes de perdê-lo para sempre.

E onde estava Chris atualmente? Nem Caroline, nem Helena — que eram agora excelentes amigas— pareciam saber se estava na Terra ou no espaço. Mas isso era típico: apenas cartões-postaiscom uma data carimbada em BASE CLAVIUS tinham informado sua família de sua primeira visitaà Lua.

' O cartão enviado a Floyd estava ainda pregado, com destaque, no painel acima de sua mesa. ChrisII tinha um bom senso de humor, e de História. Mandara para o avô aquela famosa fotografia domonolito dominando as figuras de roupas espaciais reunidas à sua volta, na escavação em Tycho,há mais de um século. Todos os outros do grupo estavam agora mortos, e o próprio monolito já nãose encontrava na Lua. Em 2006, depois de muita controvérsia, tinha sido levado para a Terra ecolocado — um eco estranho do edifício principal — na praça fronteira às Nações Unidas.Pretendia constituir-se num lembrete à raça humana de que já não estava mais sozinha: cinco anosdepois, com Lúcifer brilhando no céu, esse lembrete não era necessário.

Os dedos de Floyd não estavam muito firmes — por vezes sua mão direita parecia ter vontadeprópria — quando ele soltou o cartão-postal e o guardou no bolso. Seria quase que a única coisapessoal que levaria para a Universe.

— Vinte e cinco dias... Você estará de volta antes de darmos pela sua falta — disse Jerry. — E porfalar nisso, é verdade que você terá Dimitri a bordo?

— Aquele cossaquinho! — rosnou George. — Regi a sua Segunda Sinfonia em 2022.

— Não foi quando o primeiro violino vomitou durante o Largo?

— Não, aquilo foi com Mahler, não Mihailovich. E foi o trombone, de modo que ninguém notou,exceto o infeliz tocador de tuba, que teve de vender seu instrumento no dia seguinte.

— Você está inventando isso!

— E claro. Mas dê lembranças ao velho canalha, e pergunte-lhe se ele se lembra da noite quepassamos em Viena. Quem mais estará a bordo?

— Ouvi boatos horríveis sobre a escolha dos passageiros — disse Jerry, preocupado.

— Muito exagerados, posso assegurar-lhe. Fomos todos escolhidos pessoalmente por Sir Lawrencepor nossa inteligência, bom senso, beleza, carisma ou outra virtude redentora qualquer.

— E pela coragem, não?

— Bem, já que você falou nisso, tivemos todos que assinar um deprimente documento jurídicoisentando as Linhas Espaciais Tsung de qualquer responsabilidade concebível. Aliás, minha cópiaestá naquela pasta.

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— Há alguma possibilidade de que possamos receber um seguro, com ela? — perguntou George,esperançoso.

— Não, meus advogados disseram que ela é perfeita. Tsung concorda em me levar ao Halley e metrazer de volta, em dar-me comida, água, ar e um quarto com vista.

— E em troca?

— Quando eu voltar, farei todo o possível para promover as futuras viagens, aparecerei em vídeos,escreverei alguns artigos — tudo muito razoável, por essa grande oportunidade. Ah, sim, tambémprocurarei distrair meus colegas passageiros, e vice-versa.

— Como? Cantando e dançando?

— Bem, espero poder infligir partes de minhas memórias a um público cativo. Mas não creio quepoderei competir com os profissionais. Vocês sabiam que Yva Merlin estará a bordo?

— O quê? Como conseguiram arrancá-la daquela cela da Park Avenue?

— Ela deve ter cento e poucos... epa, desculpe, Hey.

— Ela tem 70 anos, pouco mais ou menos.

— Esqueça o menos. Eu era criança quando Napoleão foi feito.

Houve uma longa pausa, durante a qual cada um dos três focalizou suas recordações daquele filme.Embora alguns críticos considerassem o papel de Scarlett 0'Hara como seu melhor desempenho,para o público em geral Yva Merlin (nascida Evelyn Miles, em Cardiff, Gales do Sul) ainda seidentificava com Josephine. Há quase meio século, o controverso épico de David Griffin tinhadeliciado os franceses e enfurecido os ingleses — embora ambos agora concordassem que ele tinhapermitido, ocasionalmente, que seus impulsos artísticos brincassem com a verdade histórica,notadamente na cena final e espetacular da coroação do imperador na Abadia de Westminster.

— Isso foi um feito de Sir Lawrence — disse George, pensativo.

— Creio que contribuí para ele. O pai dela era astrônomo — e trabalhou para mim certa vez. Yvasempre se interessou pela ciência. Por isso, fiz algumas chamadas de vídeo.

Heywood Floyd não achou necessário acrescentar que, como uma substancial fração da raçahumana, tinha se enamorado de Yva desde o aparecimento do GWTW Mark II.

— É claro — continuou ele —, Sir Lawrence ficou muito satisfeito, mas foi preciso convencê-lo deque Yva tinha pela astronomia um interesse mais do que casual. Sem isso, a viagem poderia ser umdesastre social.

— O que me faz lembrar — disse George, mostrando um embrulho que vinha escondendo, semmuito êxito, às costas. — Temos um presentinho para você.

— Posso abrir agora?

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— Você acha que ele deve? — perguntou Jerry, ansioso.

— Nesse caso, vou abrir — disse Floyd, desamarrando a brilhante fita verde e retirando o papel.

Lá dentro estava um quadro bem emoldurado. Embora Floyd pouco conhecesse de arte, já o tinhavisto antes; na verdade, quem poderia esquecê-lo.

A improvisada jangada sacudida pelas ondas estava cheia de náufragos seminus, alguns jámoribundos, outros acenando desesperadamente para um navio no horizonte. Embaixo, a legenda: ABALSA DA MEDUSA (Théodore Géricault, 1791-1824)

E embaixo dela, a mensagem assinada por George e Jerry. "Chegar lá é metade do prazer.”

— Vocês são um par de canalhas, e gosto muito de vocês — disse Floyd, abraçando-os. A luz deATENÇÃO no teclado de Archie estava piscando vivamente. Estava na hora de ir.

Seus amigos partiram num silêncio mais eloqüente do que as palavras. Pela última vez, HeywoodFloyd olhou para o pequeno quarto que tinha sido seu universo durante quase metade de sua vida.

E de repente lembrou-se como o poeta terminava:

"Fui feliz aqui; feliz agora parto.”

8. A FROTA ESTELAR

Sir Lawrence Tsung não era um homem sentimental e era demasiado cosmopolita para levar opatriotismo a sério — embora quando estudante tivesse usado, durante breve período, os rabos-de-cavalo artificiais em moda durante a Terceira Revolução Cultural. Mesmo assim, a reconstituição,no planetário, do desastre da Tsien comoveu-o profundamente e o levou a concentrar grande partede sua enorme influência e energia no espaço.

Pouco depois, ele fazia viagens de fim de semana à Lua, e tinha nomeado um de seus filhos maisjovens, Charles (ode 32 milhões de sois), como vice-presidente da Tsung Astrofreight. A novaempresa tinha apenas dois foguetes simples alimentados a hidrogênio, de uma massa vazia demenos de mil toneladas; estariam obsoletos dentro em breve, mas podiam proporcionar a Charles aexperiência que, como Sir Lawrence acreditava, seria necessária nas próximas décadas. Poisfinalmente a Era Espacial estava realmente começando.

Pouco mais de meio século tinha separado os irmãos Wright do advento do transporte aéreo barato,em massa; foi necessário o dobro do tempo para enfrentar o desafio muito maior do Sistema Solar.

Não obstante, quando Luis Alvarez e sua equipe descobriram a fusão catalisada a múon, na décadade 1950, ela parecia apenas uma curiosidade de laboratório, de interesse apenas teórico. Assim

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como Lord Rutherford não dera importância às perspectivas da energia atômica, também o próprioAlvarez tivera dúvidas de que a "fusão nuclear fria" pudesse algum dia ter importância prática. Naverdade, só em 2040 a manufatura inesperada e acidental de "compostos" estáveis de mirón ehidrogênio tinha inaugurado um novo capítulo na história humana — exatamente como a descobertado nêutron tinha iniciado a Era Atômica.

Agora, pequenas usinas nucleares portáteis podiam ser construídas com um mínimo de proteção. Játinham sido feitos investimentos tão grandes na fusão convencional que os aparelhos elétricos domundo não foram — a princípio — afetados, mas o impacto sobre as viagens espaciais foiimediato, e só pode ser comparado com a revolução do jato no transporte aéreo, cem anos antes.

Sem ter mais limitações de energia, as naves espaciais podiam conseguir velocidades muitomaiores. Os tempos de vôo no Sistema Solar podiam agora ser medidos em semanas, e não emmeses ou mesmo anos. Mas a propulsão a múon ainda era um mecanismo de reação — um foguetesofisticado, em princípio não diferente de seus ancestrais alimentados quimicamente; era precisoum fluido para dar-lhe impulso. E o mais barato, limpo e cômodo de todos os fluidos era — a águapura.

O Porto Espacial do Pacífico não corria o risco de ficar sem essa substância útil. O problema eradiferente no porto de escala seguinte — a Lua. Nenhum vestígio de água foi descoberto pelasmissões Surveyor, Apoio e Luna. Se a Lua alguma vez teve água nativa, eões de bombardeiometeórico a tinham feito ferver e projetado no espaço.

Ou assim pensavam os senólogos: não obstante, indícios em contrário eram visíveis desde queGalileu focalizou o seu primeiro telescópio na Lua. Certas montanhas lunares, algumas horas apóso amanhecer, brilham como se estivessem com os picos cobertos de neve. O exemplo mais famosoé a borda da magnífica cratera Aristarco, que William Herschel, pai da astronomia moderna, tinhaobservado brilhar de tal modo na noite lunar que lhe pareceu ser um vulcão ativo. Estava errado: oque viu foi a luz da Terra refletida de uma fina e transitória camada de geada, condensada durante300 horas de escuridão gelada.

A descoberta dos grandes depósitos de gelo sob o vale Schroter, o sinuoso cânion que começavaem Aristarco, foi o último fator na equação que transformaria a economia das viagens espaciais. ALua podia oferecer uma estação abastecedora exatamente onde ela era necessária, no alto das maisextremas encostas do campo gravitacional da Terra, no início da longa viagem para os planetas.

Cosmos, a primeira nave da frota de Tsung, tinha sido construída para levar carga e passageiros notrajeto Terra-Lua-Marte, e como um veículo de provas, graças a complexos acordos com dezenasde organizações e governos, da propulsão a múon, ainda experimental.

Construída nos estaleiros de Imbrium, tinha um empuxo suficiente apenas para levantar vôo da Luacom uma carga zero; operando de órbita a órbita, nunca mais voltaria a tocar a superfície de mundoalgum. Com seu gosto habitual pela publicidade, Sir Lawrence fez com que sua viagem inauguralcomeçasse no centésimo aniversário do Dia do Sputnik, 4 de outubro de 2057.

Dois anos depois, juntou-se à Cosmos uma nave irmã, Galaxy, destinada ao percurso Terra-Júpiter,com empuxo suficiente para operar diretamente para qualquer das luas de Júpiter, embora com

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considerável sacrifício da carga útil. Se necessário, podia até mesmo voltar ao seu ancoradourolunar para reabastecimento. Era, de longe, o veículo mais rápido já construído pelo homem: sequeimasse toda a sua massa propulsora num orgasmo de aceleração, podia alcançar umavelocidade de mil quilômetros por segundo — o que a levaria da Terra a Júpiter numa semana, e àestrela mais próxima em pouco mais de dez mil anos.

A terceira nave da frota — orgulho e alegria de Sir Lawrence — materializava tudo o que se tinhaaprendido na construção de suas duas irmãs. Mas a Universe não se destinava principalmente àcarga. Foi planejada, desde o início, para ser a primeira nave de passageiros a cruzar as estradasespaciais — até Saturno, a jóia do Sistema Solar.

Sir Lawrence tinha planejado alguma coisa ainda mais espetacular para a sua viagem inaugural,mas os atrasos na construção, provocados por uma disputa com o Capítulo Lunar do SindicatoReformado dos Condutores, perturbaram seu organograma. Havia apenas o tempo necessário àsprovas iniciais de vôo e o certificado do Loyds, nos últimos meses de 2060, antes que a Universedeixasse a órbita da Terra para o seu encontro. O tempo era escasso: o cometa de Halley nãoesperava, nem mesmo por Sir Lawrence Tsung.

9. MONTE ZEUS

O satélite de reconhecimento Europa VI estava em órbita há quase 15 anos e tinha ultrapassado demuito a sua vida prevista; sua provável substituição era motivo de considerável debate na pequenacomunidade científica de Ganimedes.

Ele levava a coleção habitual de instrumentos coletores de dados, bem como um sistema detransmissão de imagens agora praticamente inútil. Embora ainda em perfeito funcionamento, tudo oque mostrava normalmente de Europa era uma paisagem ininterrupta de nuvens. A equipe decientistas de Ganimedes, sobrecarregada de trabalho, examinava os registros mandados pelosatélite uma vez por semana, e remetia os dados, em bruto, para a Terra. No conjunto, essescientistas se sentiriam bastante aliviados quando o Europa VI expirasse, e sua torrente de gigabytesdesinteressantes finalmente acabasse.

Agora, pela primeira vez em anos, ele tinha produzido alguma coisa emocionante.

— Órbita 71934 — disse o astrônomo subchefe, que chamara Van der Berg logo que os últimosdados recebidos tinham sido avaliados. — Vindo do lado noturno, dirigindo-se diretamente para omonte Zeus. Mas não se verá nada ainda por mais dez segundos.

A tela estava totalmente às escuras, mas ainda assim Van der Berg podia imaginar a paisagemcongelada passando sob sua coberta de nuvens, mil quilômetros abaixo. Dentro de poucas horas oSol distante estaria brilhando ali, pois Europa girava em seu eixo uma vez em cada sete dias da

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Terra. O "lado noturno" deveria ser realmente chamado de "Crepúsculo", pois metade do tempotinha muita luz — mas nenhum calor. Não obstante, o nome inadequado tinha pegado, pela suavalidade emocional: A Europa conhecia o levantar do Sol, mas nunca o levantar de Lúcifer.

E o Sol ia aparecer agora, apressado mil vezes pela sonda que corria. Uma faixa levementeluminosa dividiu a tela quando o horizonte saiu da escuridão.

A explosão de luz foi tão súbita que Van der Berg quase podia imaginar que estava olhando, aluminosidade de uma bomba atômica. Numa fração de segundo, ela percorreu todas as cores doarco-íris, depois tornou-se de um branco puro, quando o Sol apareceu acima da montanha —depois desapareceu, quando os filtros automáticos cortaram o circuito.

— Isso é tudo; pena que houvesse um operador de plantão na ocasião. Ele poderia ter movido acâmera para baixo, e teríamos uma boa visão da montanha ao passarmos sobre ela. Mas eu sabiaque você gostaria de ver isso, embora desminta a sua teoria.

— Como? — perguntou Van der Berg, mais intrigado do que aborrecido.

— Quando você passar isso em câmara lenta, entenderá o que quero dizer. Esses belos efeitos dearco-íris não são atmosféricos; são causados pela própria montanha. Só o gelo poderia fazer isso.Ou o vidro, o que não parece muito provável.

— Mas não impossível. Os vulcões podem produzir gás natural, mas é habitualmente preto... Eobvio!

— O quê?

— Ahn... Não quero dizer, enquanto não tiver examinado os dados. Mas acho que deve ser cristalde rocha — quartzo transparente. Pode-se fazer belos prismas e lentes com ele. Algumapossibilidade de mais observações?

— Receio que não. Isso foi pura sorte. Sol, montanha, câmera, tudo em posição certa no momentoexato. Não acontecerá novamente em mil anos.

— Obrigado, de qualquer modo. Pode mandar-me uma cópia? Não há pressa, estou partindo parauma viagem de campo a Perrine e só poderei examiná-la quando voltar.

Van der Berg deu um sorriso rápido, apologético.

— Você sabe, se aquilo for realmente cristal de rocha, valeria uma fortuna. Talvez até ajudasse aresolver nosso problema da balança de pagarnentos...

Mas isso era, certamente, pura fantasia. Quaisquer que fossem as maravilhas — ou tesouros —encerradas em Europa, a raça humana tinha o acesso a eles proibido por aquela última mensagemda Discovery. Cinqüenta anos depois, não havia indícios de que a proibição seria algum diarevogada.

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10. A NAU DOS INSENSATOS

Nas primeiras 48 horas da viagem, Heywood Floyd não conseguia acreditar no conforto, amplidão— no esbanjamento das instalações da Universe. Não obstante, a maioria de seus companheiros deviagem não se impressionava. Os que nunca tinham deixado a Terra achavam que todas as navesespaciais deviam ser assim.

Ele teve de reexaminar a história da aeronáutica para colocar as coisas na devida perspectiva.Durante a sua vida, tinha testemunhado — na verdade, tinha experimentado — a revolução ocorridanos céus do planeta que cada vez se tornava menor, atrás deles. Entre a desajeitada e velha Leonove a sofisticada Universe havia exatamente 50 anos. (Emocionalmente, não conseguia acreditar nisso— mas era inútil discutir com a aritmética.)

E apenas 50 anos tinham separado os irmãos Wright dos primeiros aviões de passageiros a jato. Noinício desse meio século, aviadores intrépidos de óculos tinham saltado de campo para campo,varridos pelo vento em carlingas abertas; no fim, avós dormiam tranqüilamente entre continentes, amil quilômetros por hora.

Assim, ele talvez não devesse surpreender-se com o luxo e a elegância de sua cabina, e nem mesmocom o fato de que tinha uma arrumadeira para mantê-la em ordem. A janela, de proporçõesgenerosas, era o aspecto mais espantoso de sua cabina, e a princípio sentiu-se bastantedesconfortável, pensando nas toneladas de pressão do ar que ela estava contendo contra oimplacável vácuo do espaço, que não cessava por um momento sequer.

A maior surpresa, para a qual os folhetos sobre a nave o deviam ter preparado, era a presença dagravidade. A Universe era a primeira nave a ser construída para viajar sob aceleração contínua,exceto durante umas poucas horas de giro em meio do curso. Quando seus enormes tanques depropelente estavam totalmente cheios, com suas cinco mil toneladas de água, ela conseguia umdécimo de gravidade — não muito, mas o bastante para impedir que objetos soltos ficassemflutuando no ar. Isso era particularmente cômodo na hora das refeições, embora fossem necessáriosalguns dias para que os passageiros aprendessem a não mexer a sopa com muita força.

Quarenta e oito horas depois de deixar a Terra, a população da Universe já se tinha estratificadoem quatro classes distintas.

A aristocracia era formada pelo Comandante Smith e seus oficiais. Vinham em seguida ospassageiros; depois a tripulação em vários níveis, e, por fim, a terceira...

Era essa última classificação que os cinco jovens cientistas tinham adotado, primeiro como piada,depois com um certo ressentimento. Quando Floyd comparou suas cabinas acanhadas e deinstalações improvisadas com as luxuosas instalações de que dispunha, pôde entender o ponto devista deles, e tornou-se sem demora o intermediário de suas queixas ao comandante.

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Mas levando todas as coisas em conta, eles não tinham muita razão de queixa: na pressa deaprontar a nave, não havia muita certeza se haveria acomodações para eles e seu equipamento.Agora, poderiam colocar seus instrumentos à volta do cometa e nele próprio — durante os diascríticos antes que contornasse o Sol e partisse mais uma vez para as regiões distantes do SistemaSolar. Os membros do grupo de cientistas firmariam suas reputações com essa viagem, e sabiamdisso. Só nos momentos de exaustão, de fúria com as falhas dos instrumentos, eles começavam aqueixar-se sobre o barulhento sistema de ventilação, as cabinas claustrofóbicas e ocasionaischeiros estranhos de origem desconhecida.

Mas nunca da comida, que, como todos concordavam, era excelente.

— Muito melhor — assegurava o Comandante Smith — do que a de Darwin a bordo do Beagle.

Ao que Victor Willis tinha respondido prontamente:

— Como ele pode saber? A propósito, o comandante do Beagle cortou a garganta quando voltoupara a Inglaterra.

Isso era típico de Victor, talvez o mais conhecido divulgador científico do planeta (para os seusfãs) ou cientista pop (para seus detratores, igualmente numerosos. Seria injusto chamá-los deinimigos, pois a admiração pelos talentos de Victor era universal, embora ocasionalmenterelutante). Seu sotaque macio e seus gestos expansivos frente às câmeras eram parodiados pormuitos, e cabia-lhe o crédito (ou a culpa) da volta das barbas grandes. — Um homem que deixacrescer tanto cabelo — gostavam de dizer os seus críticos —, deve ter muita coisa para esconder.

Ele era certamente a mais reconhecível das seis pessoas muito importantes — VIPS —, emboraFloyd, que já não se considerava mais uma celebridade, sempre se referisse a elas ironicamentecomo "Os Cinco Famosos". Yva Merlin podia, com freqüência, andar sem ser reconhecida pelaPark Avenue, nas raras ocasiões em que deixava seu apartamento. Dimitri Mihailovich, para grandepesar seu, tinha uns bons dez centímetros a menos do que a altura média, o que poderia explicar seugosto pelas orquestras de mil instrumentos — reais ou sintéticos — mas não melhorava a suaimagem pública.

Clifford Greenberg e Margaret M'Bala também se enquadravam na categoria dos "desconhecidosfamosos" —embora isso fosse certamente mudar quando voltassem à Terra. O primeiro homem adesembarcar em Mercúrio tinha um desses rostos agradáveis, comuns, difíceis de serem lembrados.Além disso, os dias em que tinha dominado os noticiários eram parte de um passado de 30 anos. Ecomo a maioria dos autores que não gostam de fazer conferências nem de noites de autógrafos, aSrta. M'Bala não seria reconhecida pela grande maioria de seus milhões de leitores.

Sua fama literária tinha sido uma das sensações da década de 2040. Um estudo erudito do panteãogrego não era geralmente candidato às listas de livros mais vendidos, mas a Srta. M'Bala tinhacolocado seus mitos eternamente inexauríveis dentro da era espacial contemporânea. Nomes que háum século teriam sido conhecidos apenas de astrônomos e estudiosos das letras clássicas eramagora parte do quadro que toda pessoa culta fazia do mundo. Quase todos os dias havia notícias deGanimedes, Calisto, Io, Titã, Iapeto — ou até mesmo de mundos mais obscuros, como Carme,Pasífae, Hipérion, Febo...

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No entanto, seu livro teria obtido um sucesso apenas modesto não tivesse ela focalizado acomplicada vida familiar de Júpiter-Zeus, pai de todos os Deuses (bem como de muitas outrascoisas). E por um golpe da sorte, um editor genial tinha mudado o título original, A visão doOlimpo, para As paixões dos deuses. Acadêmicos invejosos geralmente a ele se referiam como"Luxúrias olímpicas'', mas invariavelmente gostariam de tê-lo escrito.

Não é de surpreender que tenha sido Maggie M — como logo a batizaram os companheiros deviagem — quem primeiro usou a expressão "nau dos insensatos". Victor Willis a adotou de bomgrado, e logo descobriu a sua intrigante ressonância histórica. Quase um século antes, KatherineAnne Porter tinha partido com um grupo de cientistas e escritores num navio para observar olançamento da Apoio 17, to fim da primeira fase de exploração lunar.

— Vou pensar nisso — tinha observado pressagamente a Srta. M'Bala, quando isso lhe foi contado.— Talvez seja o momento de uma terceira versão. Mas eu só saberei, é claro, quando voltarmospara a Terra...

11. A MENTIRA

Passaram-se muitos meses antes que Rolf Van der Berg pudesse voltar novamente seu pensamentopara o monte Zeus. A conquista de Ganimedes ocupava todo o tempo e ele ausentava-se por vezesde seu escritório principal na Base Dardano durante semanas a fio, examinando a rota domonotrilho a ser construído entre Gilgamesh e Osíris.

A geografia da terceira e maior das luas galileanas se tinha modificado drasticamente desde adetonação de Júpiter — e continuava a modificar-se. O novo sol que derretera o gelo de Europanão era muito forte ali, a 400 mil quilômetros mais distante, embora fosse bastante quente paraproduzir um clima temperado no centro da face que estava sempre voltada para ele. Havia marespequenos e rasos — alguns tão grandes quanto o Mediterrâneo, da Terra — até latitudes de 40Norte e Sul. Não restavam muitas das características assinaladas nos mapas produzidos pelasmissões da Voyager, no século XX. Permafrost em fusão e movimentos tectônicos ocasionaisprovocados pelas mesmas forças da maré que operavam nas duas luas interiores fizeram do novoGanimedes o pesadelo dos cartógrafos.

Esses mesmos fatores, porém, o transformaram no paraíso dos engenheiros planetários. Era o únicomundo em que, com exceção do árido e muito menos hospitaleiro Marte, os homens poderiamalgum dia andar sem qualquer proteção a céu aberto. Ganimedes tinha, bastante água, todos oselementos químicos da vida e — pelo menos enquanto Lúcifer brilhava — um clima mais quente doque grande parte da Terra.

E melhor ainda, as roupas espaciais de corpo inteiro já não eram necessárias: a atmosfera, emboraainda irrespirável, tinha densidade suficiente para permitir o uso de simples máscaras de rosto e

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cilindros de oxigênio. Dentro de poucas décadas — era o que prometiam os microbiólogos, emborafossem vagos quanto a datas específicas — até mesmo essas máscaras poderiam ser abandonadas.Variedades de bactérias geradoras de oxigênio já tinham sido espalhadas pela face de Ganimedes;a maioria morreu, mas algumas floresceram, e a curva, lentamente ascendente, do gráfico da análiseatmosférica era a primeira coisa que se exibia orgulhosamente a todos os visitantes em Dardano.

Por muito tempo Van der Berg ficou observando os dados que vinham do Europa VI, esperando queum dia as nuvens voltassem a se abrir quando ele estivesse sobre o monte Zeus. Sabia que asprobabilidades eram contra isso, mas enquanto houvesse a menor possibilidade, não procuravaexplorar nenhum outro caminho de pesquisa. Não havia pressa, tinha um trabalho muito maisimportante nas mãos — e de qualquer modo, a explicação poderia ser alguma coisa trivial edesinteressante.

E então o Europa VI expirou de súbito, quase que certamente em conseqüência de um impactometeórico imprevisto. Lá na Terra, Victor Willis tinha feito um papel de tolo — na opinião demuitos — entrevistando os "Euroloucos", que agora preenchiam, mais do que adequadamente, alacuna deixada pelos entusiastas dos OVNIs do século anterior. Alguns argumentavam que odesaparecimento da sonda devia-se a uma ação hostil do mundo que estava lá embaixo: o fato deque o satélite funcionara sem interferência durante 15 anos — quase duas vezes a sua vida prevista— não lhes parecia importante. Para a honra de Victor, esse ponto foi por ele ressaltado,demolindo assim a maioria dos outros argumentos dos "Euroloucos". Mas todos achavam que elenão lhes devia ter dado publicidade, para começo de conversa.

Para Van der Berg, que gostava de ser o "holandês teimoso" que os colegas o consideravam e faziao melhor para corresponder a essa denominação, o fim do Europa VI foi um desafio irresistível.Não havia a menor esperança de ser colocado um substituto, pois o desaparecimento do prolixosatélite, cuja vida se prolongara demais, foi recebido com considerável sensação de alívio.

Qual a alternativa, então? Van der Berg pôs-se a examinar suas opções. Como era geólogo, e nãoastrofísico, vários dias transcorreram antes que compreendesse de súbito que a resposta estava àsua frente, desde que havia desembarcado em Ganimedes.

O africâner é um dos melhores idiomas do mundo para se praguejar. Mesmo quando faladocortesmente, ele pode arranhar os ouvidos inocentes. Van der Berg praguejou durante algunsminutos, depois fez uma ligação com o observatório de Tiamat — localizado precisamente noequador, com o pequeno e ofuscante disco de Lúcifer sempre verticalmente acima dele.

Os astrofísicos, ocupados com os objetos mais espetaculares do Universo, tendem a adotar um arsuperior com os simples geólogos, que dedicam suas vidas a coisas pequenas e feias como osplanetas. Mas ali, na fronteira do avanço do ser humano no espaço, todos procuravam ajudar-semutuamente, e o Dr. Wilkins não só se mostrou interessado como também foi simpático.

O observatório de Tiamat foi construído com um único objetivo, que era também uma dasprincipais razões para a criação de uma base em Ganimedes. O estudo de Lúcifer era de enormeimportância não só para a ciência pura como também para engenheiros nucleares, meteorologistas,oceanógrafos — e, o que não era menos importante, para estadistas e filósofos. O fato de haver

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entidades capazes de transformar um planeta num sol era espantoso, e tinha feito muita gente perdero sono à noite. A Humanidade devia procurar saber tudo o que fosse possível sobre o processo —algum dia poderia ser necessário imitá-lo — ou impedi-lo...

Por isso, há mais de uma década Tiamat vinha observando Lúcifer com todos os tipos deinstrumentos possíveis, registrando continuamente seu espectro por toda a faixa eletromagnética etambém sonhando-o de maneira ativa com o radar, com um modesto disco de cem metros, colocadonuma pequena cratera de impacto.

— Sim — disse o Dr. Wilkins —, temos observado com freqüência Europa e Io. Mas nosso focoestá fixado em Lúcifer, de modo que só os podemos ver por alguns minutos, enquanto estão depassagem. E o seu monte Zeus fica do lado diurno — portanto, está sempre oculto nesse momento.

— Eu sei disso — respondeu Van der Berg, com alguma impaciência. — Mas não seria possíveldesviar o foco um pouquinho, de modo a dar uma olhada em Europa antes que ela desapareça? Dezou vinte graus seriam suficientes para penetrar bem no lado diurno.

— Um grau seria o bastante para perdermos Lúcifer e termos Europa de frente, no outro lado de suaórbita. Mas então ela estaria a uma distância três vezes maior, portanto só teríamos um centésimodo poder de reflexão. Mas poderia dar certo, vamos fazer uma tentativa. Diga-me as especificaçõesde freqüências, envelopes de onda, polarização e qualquer coisa que vocês achem que possaajudar. Não será preciso muito tempo para desviar o foco alguns graus. Mais do que isso, não sei— é um problema que nunca examinamos, embora talvez devêssemos tê-lo feito. De qualquermodo, o que espera encontrar em Europa, exceto gelo e água?

— Se eu soubesse — respondeu Van der Berg, alegremente, — não estaria pedindo ajuda, não é?

— E eu não pediria créditos quando você publicasse as suas descobertas. E pena que meu nomeesteja no fim do alfabeto; você estará à minha frente por uma letra apenas.

Isso tinha sido há um ano. As sondagens de radar de longo alcance não tinham sido boas, e o desviodo foco para examinar o lado diurno de Europa momentos antes da conjunção mostrou-se maisdifícil do que se previa. Mas, por fim, os resultados chegaram; os computadores os tinhamdigerido, e Van der Berg foi o primeiro ser humano a examinar um mapa mineralógico de Europadepois de Lúcifer.

Era, como disse o Dr. Wilkins, principalmente gelo e água, com afloramentos de basaltointermeados de jazidas de enxofre. Havia, porém, duas anomalias.

Uma delas parecia resultado do processo das imagens; havia uma faixa absolutamente reta, de doisquilômetros de extensão, que não registrava praticamente nenhum eco do radar. Van der Bergdeixou que o Dr. Wilkins se ocupasse desse enigma; interessava-se apenas pelo monte Zeus.

Foi-lhe necessário um longo tempo para fazer a identificação, porque só um louco — ou umcientista realmente desesperado — teria sonhado com tal possibilidade. Mesmo agora, com todosos parâmetros verificados aos limites da precisão, ainda não podia acreditar realmente. E aindanem tinha pensado no que faria agora.

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Quando o Dr. Wilkins ligou, interessado em ver seu nome e sua reputação espalhados pelos bancosde dados, ele disse que ainda estava analisando os resultados. Mas finalmente não pôde adiar pormais tempo a resposta.

— Nada muito entusiasmante — disse ao seu colega, que de nada suspeitava. — Apenas uma formarara de quartzo, que ainda estou tentando comparar com amostras da Terra.

Foi a primeira vez que mentiu a um colega cientista, e sentiu-se mal por isso.

Mas que alternativa tinha?

12. OOM PAUL

Rolf Van der Berg não via o seu tio Paul há uma década, e era improvável que eles voltassem aencontrar-se outra vez em carne e osso. Mesmo assim, ele se sentia muito próximo do velhocientista — o último de sua geração, e o único que podia se lembrar (quando queria, o queraramente acontecia) do modo de vida de seus antepassados.

O Dr. Paul Kreuger— "Oom Paul" para toda a sua família e a maioria dos seus amigos — estavasempre às ordens quando dele precisavam, com informações e conselhos, pessoalmente ou do outrolado de uma ligação de rádio de meio bilhão de quilômetros. Corria o boato de que só uma grandepressão política tinha forçado a comissão do Prêmio Nobel a ignorar suas contribuições para afísica da partícula, agora novamente em desesperada confusão, depois da arrumação geral em finsdo século XX.

Se isso era verdade, o Dr. Kreuger não tinha ressentimentos. Modesto e discreto, não tinha inimigospessoais, mesmo entre as impertinentes facções de seus companheiros de exílio. Na verdade, eleera tão universalmente respeitado que tinha recebido vários convites para visitar novamente osEstados Unidos da África do Sul, mas sempre recusara polidamente — não porque julgasse quecorria qualquer perigo físico nos E.U. A.S, apressava-se a explicar, mas por temer que osentimento de nostalgia fosse esmagador.

Mesmo usando a segurança de um idioma hoje entendido por menos de um milhão de pessoas, Vander Berg foi muito discreto, com circunlóquios e referências que só teriam sentido para um parentepróximo. Mas Paul não teve dificuldades em compreender a mensagem do sobrinho, embora não apudesse levar a sério. Tinha medo que o jovem Rolf estivesse fazendo papel de bobo, e procurariadesestimulá-lo da maneira mais delicada possível. Era bom que ele não tivesse apressado empublicar suas constatações: pelo menos teve o bom senso de ficar calado.

Mas suponhamos — apenas suponhamos — que fosse verdade? Os poucos cabelos da cabeça dePaul puseram-se de pé. Toda uma gama de possibilidades — científicas, financeiras, políticas —

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abriu-se de repente ante seus olhos, e quanto mais pensava nelas, mais assustadoras lhe pareciam.

Ao contrário de seus ancestrais religiosos, o Dr. Kreuger não tinha Deus a quem se dirigir nosmomentos de crise ou perplexidade. Agora, quase desejava que tivesse: mesmo que pudesse rezar,porém, isso de nada adiantaria. Ao sentar-se ao seu computador e começar a consultar os bancos dedados, não sabia se devia desejar que o sobrinho tivesse feito uma estupenda descoberta — ou queestivesse dizendo um absurdo. Poderia Deus realmente fazer uma brincadeira tão incrível com aHumanidade? Paul lembrou-se do famoso comentário de Einstein, de que embora ele fosse sutil,não era nunca malicioso.

Pare de devanear, disse o Dr. Paul Kreuger a si mesmo. Seus gostos e aversões, suas esperanças etemores, não têm absolutamente nada com o assunto...

Um desafio lhe fora feito através da metade da extensão do sistema solar: não teria paz enquantonão descobrisse a verdade.

13. "NINGUÉM DISSE PARA TRAZERMOS ROUPADE BANHO...”

O Comandante Smith guardou a sua pequena surpresa até o Dia 5, poucas horas antes do Ponto deReversão. Sua comunicação foi recebida, como esperava, com incredulidade e espanto.

Victor Willis foi o primeiro a recuperar-se.

— Uma piscina! Numa nave espacial! Você deve estar brincando!

O comandante recostou-se na cadeira e preparou-se para um momento de satisfação. Sorriu paraHeywood Floyd, que já conhecia o segredo.

— Bem, suponho que Colombo se teria espantado com algumas das comodidades dos navios quevieram depois dele.

— Há um trampolim? — perguntou Greenberg, com ar saudoso. — Eu era campeão, no colégio.

— Na verdade, tem sim. E de apenas cinco metros, mas isso lhe dará três segundos de queda livreà nossa gravidade nominal de um décimo. E se quiser mais tempo, tenho a certeza de que o Sr.Curtis terá prazer em reduzir o empuxo.

— Realmente? — disse o engenheiro-chefe, secamente. — E prejudicar todos os meus cálculosorbitais? Sem falarmos do risco de a água projetar-se para fora. Tensão de superfície, como sabe...

— Não houve uma estação espacial que tinha uma piscina esférica? — perguntou alguém.

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— Tentaram-na em Pasteur,';antes que começassem a girar — respondeu Floyd. — Não era prática.Numa gravidade zero, tinha de ser totalmente fechada. E pode-se afogar facilmente dentro de umagrande esfera d'água, se houver pânico.

— Seria uma maneira de entrar no livro dos recordes: a primeira pessoa a afogar-se no espaço...

— Ninguém nos disse para trazermos roupa de banho — queixou-se Maggie M'Bala.

— Quem precisa de uma, provavelmente devia ter trazido — murmurou Mihailovich para Floyd.

O Comandante Smith bateu na mesa para restabelecer a ordem.

— Isso é mais importante, atenção por favor. Como sabem, à meia-noite atingiremos a velocidademáxima e temos de começar a frear. Assim, o propulsor será fechado às 23h e a nave serárevertida. Teremos duas horas de total ausência de peso, antes de recomeçarmos com o propulsor àlh.

— Como podem imaginar, a tripulação estará muito ocupada. Usaremos a oportunidade para umaverificação do motor e inspeção do casco, que não podem ser feitos quando estamos usandoenergia. Aconselho a todos, enfaticamente, que estejam dormindo, nesse momento, com os cintos desegurança passados em suas camas. Os atendentes verificarão se há objetos soltos que possam criarproblema quando o peso começar a voltar. Alguma pergunta?

Houve um silêncio profundo, como se os passageiros ali reunidos ainda estivessem um tantoespantados pela revelação, sem saber o que fazer.

— Eu esperava que vocês me perguntassem como era possível esse luxo, mas como não o fizeram,vou dizer-lhes assim mesmo. Não é absolutamente um luxo — não custa nada, mas esperamos queseja um aspecto muito valioso para as futuras viagens.

— Temos que levar cinco mil toneladas de água como massa reativa, portanto devemos aproveitá-la ao máximo. O tanque número um tem agora apenas um quarto de água; vamos mantê-lo assim atéo fim da viagem. Portanto, depois do café da manhã, nos veremos na praia, amanhã...

Considerando-se a pressa em aprontar a Universe para a viagem, era surpreendente que se tivessefeito um trabalho tão bom em alguma coisa tão espetacularmente não-essencial.

A "praia" era uma plataforma de metal de cerca de cinco metros de largura, curvando-se em voltade um terço da circunferência do grande tanque. Embora a parede distante estivesse apenas aoutros 20 metros de distância, o uso inteligente de imagens projetadas dava a impressão de que seencontrava no infinito. Levados pelas ondas, à meia distância, surfistas rumavam para uma praiaque nunca alcançariam. Para além deles, um belo navio de passageiros, que qualquer agente deviagens reconheceria imediatamente como o Tai-Pan da Empresa Tsung de Mar e Espaço, corriapelo horizonte a toda velocidade.

Completando a ilusão, havia areia (levemente magnetizada, para que não se desviasse muito dolugar indicado) e a pequena praia terminava num bosquezinho de palmeiras bastante convincentes,se não fossem examinadas de muito perto. Lá no alto, um quente sol tropical completava o quadro

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idílico; era difícil acreditar que do outro lado daquelas paredes o verdadeiro Sol brilhava, agoraduas vezes mais forte do que em qualquer praia terrestre.

O planejador tinha realmente feito um trabalho maravilhoso no limitado espaço de que dispunha.Parecia um pouco injusta a reclamação de Greenberg:

— Pena que não tenhamos surfe.

14. BUSCA

É um bom princípio científico não acreditar em nenhum "fato"— por mais comprovado que esteja— enquanto ele não se enquadrar em algum esquema referencial conhecido. Ocasionalmente, éclaro, uma observação pode destruir o esquema referencial e forçar a criação de outro, novo, masisso é extremamente raro. Galileus e Einsteins não aparecem mais de uma vez por século, o que ébom para o equilíbrio da Humanidade.

O Dr. Kreuger aceitava integralmente esse princípio: não acreditaria na descoberta de seu sobrinhoenquanto não pudesse explicá-la e, ao que lhe parecia, isso exigiria nada menos do que um atodireto de Deus. Usando o princípio ainda muito útil de Occam, ele achou um pouco mais provávelque Rolf tivesse cometido um erro; se assim fosse, seria fácil encontrá-lo.

Para grande surpresa de tio Paul, foi realmente muito difícil encontrá-lo. A análise das observaçõesde radar por sensor remoto era então uma arte já bem consolidada, e os peritos consultados porPaul deram todos a mesma resposta, depois de considerável demora. Também perguntaram:

— Onde você conseguiu esses dados?

— Sinto muito, mas não tenho autorização para dizer — foi a sua resposta.

O passo seguinte era supor que o impossível estava certo, e começar uma busca na literatura sobreo assunto. Isso podia significar um trabalho enorme, pois nem mesmo sabia onde começar. Umacoisa era bastante certa: um ataque frontal, à força bruta, estaria fadado ao fracasso. Seria como seRoentgen, no dia seguinte à descoberta dos raios X, tivesse começado a buscar a sua explicaçãonas revistas de física da época. A informação de que ele precisava ainda estava anos no futuro.

Mas havia pelo menos uma vaga possibilidade de que a informação que procurava estivesseescondida no imenso corpo do conhecimento científico existente. Lenta e cuidadosamente, PaulKreuger preparou um programa de busca automático planejado tanto para o que excluiria comopara o que incluiria. Deveria eliminar todas as referências relacionadas com a Terra — quecertamente estariam na casa dos milhões — para concentrar-se totalmente nas citaçõesextraterrestres.

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Uma das vantagens da fama do Dr. Kreuger era um orçamento ilimitado para uso do computador:era parte dos emolumentos que exigia das várias organizações que precisavam da sua sabedoria.Embora a busca pudesse ser cara, ele não tinha de preocupar-se com a conta.

Na verdade, ela foi surpreendentemente pequena. Teve sorte: a busca terminou depois de apenasduas horas e 37 minutos, na 21.456a. referência.

O título foi suficiente. Paul ficou tão agitado que o seu computador pessoal não reconheceu sua voz,e teve de repetir a ordem de uma impressão total.

A Nature tinha publicado o artigo em 1981 — quase cinco anos antes do seu nascimento! — equando seus olhos percorreram rapidamente sua página única, compreendeu que não só o seusobrinho estava certo mas também — o que era igualmente importante — como tal milagre podiaocorrer.

O editor daquela revista de 80 anos devia ter sido dotado de bom senso de humor. Um artigo sobreos núcleos dos planetas mais distantes não era algo capaz de atrair o leitor ocasional: este, porém,tinha um título excepcionalmente atraente. Seu computador lhe poderia ter informado rapidamenteque ele tinha sido outrora parte de uma canção famosa, mas isso certamente era irrelevante.

De qualquer modo, Paul Kreuger jamais ouvira falar dos Beatles e de suas fantasias psicodélicas.

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II-OVALEDANEVENEGRA

15. ENCONTRO

E agora Halley estava perto demais para ser visto; ironicamente, os observadores na Terra teriamuma vista muito melhor da cauda, que já se estendia por 50 milhões de quilômetros em ângulo retocom a órbita do cometa, como um penacho flutuando ao invisível vento solar.

Na manhã do encontro, Heywood Floyd acordou cedo, depois de um sono intranqüilo. Era raro quesonhasse — ou pelo menos que se lembrasse de seus sonhos —, e sem dúvida a expectativa quantoàs próximas horas foi a responsável. Estava também levemente preocupado com uma mensagem deCaroline, perguntando se tivera notícias de Chris ultimamente. Radiografou em resposta, dizendoum pouco secamente que Chris nunca se dera ao trabalho de dizer "muito obrigado" quando oajudou a conseguir seu atual posto na Cosmos, a nave irmã da Universe; talvez ele já estivesseaborrecido com o trajeto Terra-Lua e estivesse procurando emoções em outro lugar. "Comosempre", acrescentou Floyd, "teremos notícias quando ele quiser.”

Imediatamente depois do café da manhã, os passageiros e a equipe de cientistas reuniram-se paraouvir as informações finais do Comandante Smith. Os cientistas certamente não precisavam delas,mas se estavam irritados, essa emoção tão infantil teria sido logo superada pelo fantásticoespetáculo na tela principal.

Era mais fácil imaginar que a Universe estava entrando numa nebulosa do que num cometa. Todo océu à frente era agora uma névoa branca — não-uniforme, mas respingada de condensações maisescuras e riscada de faixas luminosas e jatos brilhantes, tudo isso irradiando de um ponto central.Com essa ampliação o núcleo mal era visível como uma pequena mancha negra, embora fosseclaramente a fonte de todos os fenômenos à sua volta.

"Cortaremos a propulsão dentro de três horas — disse o comandante. — Estaremos então a apenasmil quilômetros do núcleo, praticamente a uma velocidade zero. Faremos algumas observaçõesfinais, e confirmaremos o local de desembarque.

"Portanto, perderemos o peso exatamente às 12h. Antes disso, os atendentes das cabinas verificarãose tudo foi guardado corretamente. Será exatamente como no Ponto de Reversão, exceto que destavez será por três dias, e não duas horas, antes que voltemos a ter peso.

"A gravidade de Halley? Esqueçam-na. Menos de um centímetro por segundo, ou cerca de ummilionésimo da gravidade da Terra. Poderão percebê-la se esperarem o bastante; são necessários15 segundos para alguma coisa cair um metro.

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"Por uma questão de segurança, gostaria que todos permanecessem aqui na sala de observação,com os cintos devidamente colocados, durante o encontro e a descida. Terão daqui a melhor vista,e toda a operação não levará mais de uma hora. Usaremos apenas pequenos impulsos corretivos,mas podem vir de qualquer ângulo e provocar perturbações sensoriais menores.”

O que o comandante queria dizer era, naturalmente, enjôo — mas tal palavra era tabu a bordo daUniverse, por um acordo geral. Pôde notar-se, porém, que muitas mãos percorreram oscompartimentos sob as poltronas, como se verificassem se os conhecidos saquinhos plásticosestavam ali para qualquer necessidade urgente.

A imagem na tela expandiu-se, quando a ampliação foi aumentada. Por um momento pareceu aFloyd que estava num avião, descendo entre nuvens leves, e não numa nave espacial que seaproximava do mais famoso de todos os cometas. O núcleo tornava-se maior e mais claro; já nãoera um ponto preto, mas uma eclipse irregular — ora uma pequena ilha perdida no oceano cósmico,subitamente um mundo completo em si.

Ainda não havia nenhuma sensação de escala. Embora Floyd soubesse que todo o panorama abertoà sua frente tinha menos de dez quilômetros de largura, poderia imaginar facilmente que estavaolhando para um corpo do tamanho da Lua. Mas esta não tinha névoa nas beiradas, nem pequenosjatos de vapor — e dois grandes —jorrando de sua superfície.

— Meu Deus, o que é aquilo? — exclamou Mihailovich.

Apontou para a beirada inferior do núcleo, num ponto que mal ficava dentro do terminadouro.Inequívoca e impossível, uma luz piscava ali, no lado noturno do cometa, com um ritmoperfeitamente regular: acendia, apagava, acendia, apagava, a cada dois ou três segundos.

O Dr. Willis deu a sua clássica tosse que significava "Posso explicar isso depressa", mas oComandante Smith falou primeiro.

— Sinto decepcioná-lo, Sr. Mihailovich. E apenas o farol da Sonda de Amostragem Dois. Está alihá um mês, esperando que a apanhemos.

— Que pena! Pensei que podia ser alguém, ou alguma coisa, à nossa espera para dar as boas-vindas.

— Não teremos essa sorte, receio. Estamos sozinhos aqui. Aquele farol é o lugar em quepretendemos descer — é perto do pólo sul de Halley, e está em obscuridade constante. Issofacilitará o trabalho de nossos sistemas de manutenção de vida. A temperatura é de 120 graus nolado iluminado, ou seja, muito acima do ponto de ebulição.

— Não é de espantar que o cometa esteja borbulhando — disse o impassível Dimitri. — Aquelesjatos não me parecem muito saudáveis. Tem certeza de que podemos descer?

— Essa é outra razão pela qual estamos descendo no lado escuro: não há atividade ali. Agora, seme dão licença, tenho de voltar para a ponte. É a minha primeira oportunidade de descer nummundo novo — e duvido que venha a ter outra.

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O público do Comandante Smith dispersou-se lentamente, e num silêncio pouco comum. A imagemda tela voltou ao normal e o núcleo reduziu-se novamente a um ponto que mal se via. Não obstante,mesmo naqueles poucos minutos parecia ter-se tornado um pouquinho maior, e talvez isso não fosseilusão. Menos de quatro horas antes do encontro, a nave ainda continuava a aproximar-se docometa a 50 mil quilômetros por hora.

Ela abriria uma cratera muito maior do que todas as existentes em Halley se acontecesse algumacoisa com a propulsão principal, àquela altura.

16. A DESCIDA

A descida foi tão pouco emocionante quanto o Comandante Smith tinha esperado. Era impossíveldizer o momento em que a Uni-verse estabeleceu contato; passou-se todo um minuto antes que ospassageiros percebessem que a manobra se completara, e rompessem numa aclamação tardia.

A nave estava num extremo de um vale pouco profundo, cercado de morros de pouco menos de cemmetros de altura. Quem esperasse ver uma paisagem lunar teria ficado muito surpreso; aquelasformações não tinham nenhuma semelhança com as encostas suaves da Lua, desgastadas por umbombardeio constante de micrometeoritos durante bilhões de anos.

Nada ali tinha mais de mil anos; as pirâmides eram muito mais antigas do que aquela paisagem. Acada volta do Sol, o Halley era remodelado, e reduzido, pelos fogos solares. Desde a passagem doperiélio de 1986, a forma do núcleo modificara-se levemente. Manuseando descaradamente asmetáforas, Victor Willis tinha, porém, expressado isso muito bem, ao dizer aos seustelespectadores: "Ü amendoim ganhou uma cintura de vespa!" Realmente, havia indícios de que,depois de mais algumas revoluções em torno do Sol, o Halley poderia dividir-se em doisfragmentos mais ou menos iguais, como tinha acontecido com o cometa de Biela, para o espantodos astrônomos de 1846.

A gravidade praticamente inexistente também contribuía para a estranheza da paisagem. A todavolta havia formações araneiformes semelhantes às fantasias de um artista surrealista e montes depedras de um corte improvável que não teriam sobrevivido mais do que alguns minutos, mesmo naLua.

Embora o Comandante Smith tivesse preferido descer com a Universe nas profundezas da noitesolar — a cinco quilômetros do calor fervilhante do Sol —, havia muita claridade. O enormeenvoltório de gás e poeira que cercava o cometa formava uma auréola brilhante que pareciaadequada a essa região; era fácil imaginar que era uma aurora, por cima do gelo antártico. E se issonão bastasse, Lúcifer fornecia a sua cota de várias centenas de luas cheias.

Embora prevista, a ausência total de cor foi uma decepção: a Universe parecia estar pousada numa

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mina aberta de carvão. Essa analogia, na verdade, não era má, pois grande parte da escuridão que aenvolvia devia-se ao carbono ou seus compostos, intimamente misturados à neve e ao gelo.

O Comandante Smith, como lhe competia, foi o primeiro a deixar a nave, saindo da principalcâmara de descompressão da nave com um pequeno empurrão. Pareceu levar muito tempo parachegar ao chão, dois metros abaixo; em seguida, apanhou um punhado da superfície poeirenta e aexaminou em sua mão enluvada.

A bordo da nave todos esperavam pelas palavras que entrariam para as páginas da História.

— Parece erva-doce — disse o comandante. — Se descongelada, podia dar uma boa colheita.

O plano da missão compreendia um "dia" completo em Halley de 55 horas no pólo sul, depois —se não houvesse problemas — uma excursão de 10 quilômetros até o mal-definido Equador, paraestudar um dos gêiseres durante um ciclo completo de dia e noite.

O cientista-chefe Pendrill não perdeu tempo. Quase imediatamente, partiu com um colega num trenóa jato de dois lugares em direção ao farol da sonda. Voltaram dentro de uma hora, trazendoamostras já ensacadas do cometa que orgulhosamente guardaram no congelador.

Enquanto isso, outras equipes estabeleciam uma teia de cabos ao longo do vale, suspensos empostes fincados na crosta que se partia facilmente. Eles seriam apenas para ligar os numerososinstrumentos à nave, mas também tornavam o movimento, lá fora, muito mais fácil. Podia-seexplorar aquela parte do Halley sem usar as incômodas Unidades de Manobra Externa; eranecessário apenas prender uma corda ao cabo e caminhar, segurando-a. Isso também era muito maisdivertido do que operar as UMEs, que eram praticamente naves espaciais individuais, com todas ascomplicações que isso implicava.

Os passageiros viam tudo isso fascinados, ouvindo as conversas transmitidas pelo rádio e tentandoparticipar da agitação da descoberta. Cerca de 12 horas depois — consideravelmente menos nocaso do ex-astronauta Clifford Greenberg — o prazer de ser uma audiência cativa começou adiminuir. Em pouco tempo começou-se a falar muito em "ir lá fora'' — exceto Victor Willis, queestava numa moderação muito pouco característica.

— Acho que ele está com medo — disse Dimitri, com desprezo. Não gostava de Victor desde quedescobrira ser o cientista completamente surdo às diferenças de tonalidade. Embora isso fosse umainjustiça com Victor (que se tinha prestado a ser usado como cobaia para estudos sobre a suacuriosa doença), Dimitri gostava de dizer: — O homem que não tem música dentro de si, é capazde traições, estratagemas e saques.

Floyd já tinha tomado sua decisão antes mesmo de deixar a órbita da Terra. Maggie M era bastanteesperta para tentar qualquer coisa e não precisava de estímulo (seu lema, "Um escritor não deverejeitar nunca a oportunidade de uma nova experiência", tinha influenciado notoriamente a sua vidaemocional).

Yva Merlin, como sempre, mantinha todos na expectativa, mas Floyd estava disposto a levá-lanuma excursão pessoal pelo planeta. Era o mínimo que podia fazer para manter sua reputação;

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todos sabiam que tinha sido parcialmente responsável pela inclusão da famosa reclusa na lista depassageiros, e agora corria a piada de que tinham um caso. Suas observações mais inocentes eramalegremente mal interpretadas por Dimitri e pelo médico da nave, Dr. Mahindran, que dizia vê-loscom um respeito invejoso.

Depois de algum aborrecimento inicial — pois isso lhe lembrava com demasiada precisão asemoções de sua juventude —, Floyd resolveu compactuar com a brincadeira. Não sabia, porém,como Yva reagia a ela, e até então não tivera coragem de perguntar-lhe. Mesmo agora, ali naquelapequena e compacta sociedade onde poucos segredos resistiam mais de seis horas, ela mantinhamuito de sua famosa reserva — aquela aura de mistério que fascinara audiências durante trêsgerações.

Quanto a Victor Willis, acabara de descobrir um desses devastadores detalhes que podem destruiros mais bem preparados planos de camundongos e astronautas.

A Universe estava equipada com as mais recentes roupas espaciais Mark XX, com visores que nãose embaçavam nem refletiam, e que garantiam uma vista sem paralelo do espaço. E embora oscapacetes fossem oferecidos em vários tamanhos, Victor Willis não poderia entrar em nenhumdeles sem sofrer uma cirurgia importante.

Tinham sido necessários 15 anos para que ele aperfeiçoasse a sua marca pessoal. ("Um triunfo daarte da topiaria", disse certa vez um crítico, talvez com admiração.)

Agora, apenas a sua barba se interpunha entre Victor Willis e o cometa de Halley. Ele teria defazer, sem demora, uma escolha entre ambos.

17. O VALE DA NEVE NEGRA

O Comandante Smith não fez, surpreendentemente, maiores objeções às Atividades Extraveicularesdos passageiros. Concordou que fazer toda aquela viagem e não pôr os pés no cometa seriaabsurdo.

— Não haverá problemas, se seguirem as instruções — disse ele, na inevitável reunião. — Mesmoque não tenham usado nunca as roupas espaciais antes — e acredito que só o ComandanteGreenberg e o Dr. Floyd têm essa experiência —, elas lhes parecerão bastantes confortáveis etotalmente automatizadas. Não há necessidade de se preocuparem com nenhum controle ou ajuste,depois da verificação na câmara de descompressão. Uma regra absoluta, porém: apenas dois decada vez podem praticar Atividades Extraveiculares. Terão um acompanhante, é claro, ligado avocês por cinco metros de um cordão de segurança, que pode ser estendido até vinte metros, senecessário. Além disso, os dois serão ligados aos dois cabos-guia que estendemos por toda aextensão do vale. A regra da estrada é a mesma da Terra: mantenha-se à direita! Se quiser

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ultrapassar alguém, basta soltar a fivela — mas um de vocês tem que permanecer sempre preso àlinha. Assim, não há o perigo de sair flutuando pelo espaço. Perguntas?

— Quanto tempo se pode permanecer lá fora?

— Quanto tempo quiser, Sita. M'Bala. Recomendo, porém, que retornem logo que sentirem algumdesconforto. Talvez uma hora seja o melhor, na primeira saída — embora possa parecer como sefosse apenas dez minutos...

O Comandante Smith tinha razão. Quando Heywood Floyd olhou para o seu marcador do tempo,parecia incrível que já se tivessem passado 40 minutos. Não se deveria ter surpreendido, pois anave já estava a um bom quilômetro de distância.

Como passageiro mais velho, e mais categorizado, ele teve o privilégio de fazer a primeira AEV. Erealmente não poderia ter escolhido outro companheiro.

— Sair com Yva! — exclamou Mihailovich. —- Como você poderia resistir? Muito embora —acrescentou com um sorriso malicioso — aquelas horríveis roupas espaciais não lhe permitamexperimentar todas as atividades extraveiculares que poderiam querer.

Yva aceitara, sem hesitação, mas também sem qualquer entusiasmo. Isso era típico, pensou Floyd,com amargura. Não seria exato dizer que ele estava desiludido — na sua idade, restavam-lhepoucas ilusões —, mas estava decepcionado. E mais consigo mesmo do que com Yva: ela estavaacima da crítica ou do louvor, como a Mona Lisa — com quem tinha sido freqüentementecomparada.

Era uma comparação ridícula, decerto — La Gioconda era misteriosa, mas certamente não erótica.O poder de Yva estava em sua singular combinação das duas coisas — e mais uma boa medida deinocência. Meio século depois, traços de todos esses três ingredientes ainda eram visíveis, pelomenos aos olhos dos fiéis.

O que faltava — como Floyd tinha sido tristemente obrigado a reconhecer — era qualquerpersonalidade real. Quando ele tentava focalizar sua atenção nela, tudo o que podia visualizar eramos papéis que Yva tinha desempenhado. Teria concordado, embora com relutância, com o críticoque disse: "Yva Merlin é o reflexo do desejo de todos os homens; mas um espelho não temcaráter.”

Agora, aquela criatura singular e misteriosa flutuava ao seu lado na superfície do cometa de Halley,enquanto eles e seu guia movimentavam-se ao longo dos cabos gêmeos que percorriam o vale daNeve Negra. O nome fora dado por ele, que se sentia infantilmente orgulhoso por isso, embora nãoviesse a aparecer em nenhum mapa. Não podia haver mapas de um mundo onde a geografia era tãoefêmera como o tempo na Terra. Saboreou a consciência de que nenhum olho humano tinha vistoantes a cena à sua volta — ou a veria depois.

Em Marte, ou na Lua, podia-se por vezes — com um pequeno esforço de imaginação, e se nãolevássemos em conta o céu estranho — pensar que se estivesse na Terra. Isso era impossível ali,porque altas esculturas de neve — por vezes sobre a cabeça de quem passasse — mostravam

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apenas um mínimo de concessão à gravidade. Era preciso olhar cuidadosamente as coisas à voltapara saber qual era o lado de cima.

O vale da Neve Negra era excepcional, por ser uma estrutura bastante sólida — uma linha derochas mergulhadas em blocos voláteis de gelo feito de água e hidrocarbono. Os geólogos aindadiscutiam as suas origens, e alguns achavam que se tratava realmente de parte de um asteróide quese encontrara com o cometa há muito tempo. A perfuração mostrara misturas complexas decompostos orgânicos, como alcatrão de hulha congelado — embora fosse certo que a vida nuncativera qualquer papel em sua formação.

A "neve" que atapetava o chão do pequeno vale não era completamente negra; quando Floyd ailuminava com o foco de sua lanterna, ela brilhava e faiscava como se estivesse misturada amilhões de diamantes microscópicos. Ficou pensando se haveria realmente diamantes em Halley:havia, certamente, carbono suficiente. Mas era quase igualmente certo que as temperaturas epressões necessárias à criação do diamante nunca existiriam ali.

Num súbito impulso, Floyd abaixou-se e apanhou dois punhados de neve: ao empurrar com os pés alinha de segurança, teve uma visão cômica de si mesmo como um trapezista andando numa cordabamba — mas de cabeça para baixo. A frágil crosta não oferecia praticamente resistência,enquanto ele afundava cabeça e ombros nela; depois puxou suavemente sua corda de segurança esaiu com um punhado de Halley na mão.

Ao comprimir a massa de neve cristalina numa bola que cabia na palma de sua mão, desejou quepudesse senti-la através do isolamento de suas luvas. Ali estava ela, de um negro ebúrneo, mas comfugidios reflexos de luz quando a girava de um lado para outro.

E de repente, em sua imaginação, a neve se tornou do mais puro branco — e ele voltava a sernovamente uma criança, no inverno de sua meninice, cercado dos fantasmas de sua infância. Podiaaté mesmo ouvir os gritos dos companheiros, zombando dele e ameaçando-o com seus projéteis deneve imaculada...

A recordação foi rápida, mas violenta, pois provocou uma esmagadora sensação de tristeza.Depois de um século de tempo, já não podia lembrar-se de nenhum daqueles fantasmas de amigosque estavam à sua volta. Não obstante, sabia que tinha amado alguns deles.

Seus olhos encheram-se de lágrimas, e seus dedos cerraram-se em volta da bola de estranha neve.E então a visão desapareceu: viu-se novamente. Não era um momento de tristeza, mas de triunfo.

— Meu Deus! — exclamou Heywood Floyd, as palavras ecoando no pequeno universoreverberante de seu traje espacial. — Estou no cometa de Halley! Que mais posso querer! Se ummeteoro me atingisse agora, não me queixaria!

Levantou os braços e jogou sua bola de neve para as estrelas. Era tão pequena, e tão escura, quedesapareceu quase imediatamente, mas Floyd continuou a olhar para o céu.

E então, de repente — inesperadamente —, ela surgiu numa súbita explosão de luz, ao erguer-se atéos raios do sol oculto. Apesar de negra como o carvão, refletiu o suficiente daquele brilho

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ofuscante para ser claramente visível contra o céu levemente luminoso.

Floyd ficou a olhá-la até que finalmente desapareceu — talvez por evaporação, talvez diminuindona distância. Não duraria muito tempo na violenta torrente de radiação lá em cima. Mas quantoshomens poderiam dizer que criaram um cometa seu?

18. O "VELHO FIEL”

A cautelosa exploração do cometa já tinha começado enquanto a Universe ainda permanecia nasombra polar. Primeiro, unidades eletromagnéticas de um homem percorreram a jato os ladosdiurno e noturno, registrando tudo o que era de interesse. Completado o levantamento preliminar,grupos de até cinco cientistas saíram no veículo de transporte local da nave, colocandoequipamentos e instrumentos em pontos estratégicos.

A Lady Jasmine estava muito distante das primitivas cápsulas espaciais da era da Discovery,capazes de operar apenas em ambientes livres de gravidade. Era praticamente uma pequena naveespacial, destinada a transportar pessoal e cargas leves entre a Universe em órbita e as superfíciesde Marte, Lua ou dos satélites de Júpiter. Seu primeiro piloto, que a tratava como a grande damaque era, queixava-se com fingida irritação de que voar em volta de um miserável cometazinhoestava muito abaixo da dignidade de sua nave em miniatura.

Quando o Comandante Smith teve certeza de que o Halley não oferecia surpresas — pelo menos nasuperfície —, deixou o pólo. A transferência, de menos de 12 quilômetros, levou a Universe paraum mundo diferente, de um crepúsculo suave que duraria meses para um setor que conhecia o ciclodo dia e da noite. E com o amanhecer, o cometa despertou lentamente para a vida.

Quando o Sol se elevava acima do horizonte recortado e absurdamente próximo, seus raiospenetravam nas incontáveis pequenas crateras que marcavam a crosta. A maioria delas permaneciainativa, suas estreitas gargantas seladas pelas incrustações de sais minerais. Em nenhuma outraparte do Halley havia uma manifestação tão viva de cores: elas tinham levado os biólogos a pensar,erradamente, que ali a vida estava começando, como tinha começado na Terra, na forma de algas.Muitos ainda não tinham abandonado tal esperança, embora relutassem em admiti-lo.

De outras crateras, tufos de vapor flutuavam em direção ao céu em trajetórias estranhamente retas,pois não havia vento para movimentá-los. Em geral, nada mais acontecia durante uma hora ou duas;depois, como o calor do Sol ia penetrando no interior congelado, Halley começava a lançar seusjatos "como um grupo de baleias", no dizer de Victor Willis.

Embora pitorescas, não foi de suas metáforas mais exatas. Os jatos lançados pelo lado diurno.doHalley não eram intermitentes, mas sim constantes, durante horas por vezes. E não se curvavam ecaíam de volta à superfície, mas continuavam subindo para o céu, até perderem-se na névoa

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brilhante que ajudavam a criar.

A princípio, a equipe de cientistas tratou os gêiseres cautelosamente, como fariam vulcanólogosque se aproximassem do Etna ou do Vesúvio quando de uma de suas manifestações imprevisíveis.Mas verificaram logo que as erupções do Halley, embora de aparência ameaçadora, eramestranhamente dóceis e bem-comportadas. A água saía com a velocidade aproximada de umamangueira de incêndio comum, e era apenas morna. Segundos depois de escapar de seureservatório subterrâneo, ela se projetava numa mistura de vapor e cristais de gelo; o Halley estavaenvolvido numa permanente tempestade de neve, caindo para cima. Mesmo àquela modestavelocidade de ejeção, nenhuma parte daquela água voltaria jamais à sua origem. A cada volta quedava ao redor do Sol, mais sangue do cometa sairia numa hemorragia em direção ao vácuoinsaciável do espaço.

Depois de considerável argumentação, o Comandante Smith concordou em aproximar a Universe auma centena de metros do "Velho Fiel", o maior gêiser no lado diurno. Era uma visãoimpressionante — uma coluna de névoa, de um branco acinzentado, crescendo como uma árvoregigantesca saída de um orifício surpreendentemente pequeno numa cratera de 300 metros de larguraque parecia ser uma das mais antigas formações do cometa. Dali a pouco, os cientistas estavam semovimentando por toda a cratera, recolhendo espécimes de seus minerais (totalmente estéreis,infelizmente) multicoloridos e enfiando despreocupadamente os seus termômetros e tubos de coletade amostras na própria coluna de água-gelo-névoa. — Se ela jogar algum de vocês no espaço —advertiu o comandante —, não esperem socorro imediato. Na verdade, podemos até mesmo esperarque volte.

— O que ele quer dizer com isso? — perguntou intrigado Dimitri Mihailovich. Como sempreVictor Willis respondeu prontamente:

— As coisas nem sempre acontecem da maneira que esperamos, em mecânica celeste. Qualquercoisa lançada de Halley a uma velocidade razoável ainda continuará a mover-se essencialmente namesma órbita — é preciso uma enorme velocidade para ter alguma influência. Assim, uma voltadepois, as duas órbitas cruzam-se outra vez — e você estará exatamente no lugar de onde partiu,apenas 76 anos mais velho, é claro.

Não muito distante do "Velho Fiel" estava outro fenômeno que ninguém poderia esperar. Quando oobservaram pela primeira vez, os cientistas mal podiam acreditar no que viram. Espalhado porvários hectares do Halley, exposto ao vácuo do espaço, estava o que parecia ser um lagoperfeitamente comum, notável apenas pela sua cor extremamente negra.

Evidentemente, não podia ser água; os únicos líquidos que permaneciam estáveis naquele ambienteeram os óleos ou alcatrões orgânicos pesados. De fato, o lago Tuonela parecia-se mais com piche,bastante sólido com exceção de uma camada superficial pegajosa de menos de um milímetro deespessura. Naquela gravidade praticamente nula, teriam sido necessários anos — talvez váriasviagens completas em volta das chamas aquecedoras do Sol — para que o lago tivesse chegado àsua presente lisura de espelho.

Até que o comandante acabasse com aquilo, o lago tornou-se uma das principais atrações turísticas

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do cometa de Halley. Alguém (ninguém reivindicou a dúbia honra) descobriu ser possível caminharde maneira perfeitamente normal por cima dele, quase como na Terra; a fina camada superficialtinha adesão suficiente para segurar o pé. Dentro em) pouco, a maior parte da tripulação já se tinhafeito filmar em vídeo, aparentemente caminhando sobre a água.

Foi então que o Comandante Smith examinou a câmara de descompressão, descobriu as paredestodas manchadas de alcatrão, e teve a coisa mais parecida com um acesso de raiva que já se tinhavisto.

— Já não chega — disse ele, com os dentes cerrados — ter o lado de fora da nave impregnado defuligem. O cometa de Halley é um dos lugares mais sujos que já vi.

Depois disso, não houve mais caminhadas pelo lago Tuonela.

19. NO FIM DO TÚNEL

Num universo pequeno, fechado em si mesmo, onde todos se conhecem, não pode haver maiorchoque do que o encontro de um estranho total.

Heywood Floyd estava flutuando suavemente pelo corredor em direção à sala principal quandoteve essa perturbadora experiência. Olhou espantado para o intruso, pensando como um clandestinoconseguira escapar por tanto tempo à descoberta. O outro homem olhou-o com uma mistura deconstrangimento e ousadia, evidentemente esperando que Floyd fosse o primeiro a falar.

— Bem, Victor! —disse Floyd, por fim. —Desculpe se não o reconheci. Então você fez o supremosacrifício pela causa da ciência, ou devo dizer, pelo seu público?

— Sim — respondeu Willis, resmungando. — Eu consegui me enfiar num capacete, mas a barbaarranhava tanto, fazendo barulho, que ninguém podia ouvir uma palavra do que eu dizia.

— Quando você vai sair?

— Logo que Cliff voltar. Ele foi visitar cavernas com Bill Chant.

As primeiras aproximações do cometa, em 1986, tinham mostrado ser ele consideravelmente menosdenso do que a água — o que só podia significar ser feito de material muito poroso ou estar cheiode cavidades. As duas explicações estavam corretas.

A princípio, o sempre cauteloso Comandante Smith proibiu terminantemente qualquer exploraçãodas cavernas. Por fim cedeu quando o Dr. Pendrill lembrou-lhe que o seu principal assistente, Dr.

Chant, era um espeleólogo de grande experiência — na verdade, esta tinha sido uma das razões desua escolha para a missão.

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— Desmoronamentos são impossíveis com esta baixa gravidade — disse Pendrill ao relutantecomandante. — Portanto, não há perigo de ficar preso.

— E não há perigo de perder-se?

— Chant consideraria essa sugestão como um insulto profissional. Ele penetrou 20 quilômetros nacaverna Mamute. De qualquer modo, ele usará um fio condutor.

— E as comunicações?

— Esse fio condutor tem fibras óticas. E o rádio da roupa espacial provavelmente funcionará namaior parte do caminho.

— Hum. Por onde ele quer entrar?

— O melhor lugar é o gêiser extinto na base do Etna Júnior, que encerrou suas atividades pelomenos há mil anos.

— Sendo, portanto, provável que continuará parado por mais alguns dias. Muito bem. Alguém maisquer ir?

— Cliff Greenberg apresentou-se como voluntário. Ele explorou muitas cavernas submarinas, nasBahamas.

— Eu tentei isso uma vez, e bastou. Diga a Cliff que ele é valioso demais. Pode entrar na cavernaenquanto estiver vendo a entrada, e não mais além. E se perder contato com Chant, não pode iratrás dele sem minha autorização.

Que eu teria, disse o comandante para si mesmo, muita relutância em conceder.

O Dr. Chant conhecia todas as velhas anedotas sobre o desejo dos espeleólogos de retornar aoventre materno e tinha a certeza de que podia refutá-las.

— O ventre deve ser um lugar muito barulhento, com todos aqueles movimentos, batidas eregurgitamentos — argumentava ele. — Gosto das cavernas por serem tão tranqüilas e intemporais.Vocês sabem que nada se modificou por cem mil anos, exceto os estalactites que engrossaram umpouco.

Mas agora, enquanto ia penetrando no Halley, manobrando o cabo fino, mas praticamenteinquebrável, que o ligava a Clifford Greenberg, compreendeu que isso não era mais verdade. Atéaquele momento não tinha prova científica, mas seus instintos de geólogo lhe diziam que essemundo subterrâneo tinha nascido apenas ontem, na escala de tempo do Universo. Era mais novo doque algumas das cidades do Homem.

O túnel pelo qual deslizava com saltos longos e baixos tinha cerca de quatro metros de diâmetro, ea quase total falta de peso provocava lembranças nítidas das cavernas submarinas na Terra. Abaixa gravidade contribuía para essa ilusão: era exatamente como se estivesse levando um poucode peso demais, e por isso tendia a cair sempre suavemente. Apenas a ausência de qualquerresistência lembrava-lhe que se estava movimentando pelo vácuo, e não na água.

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— Você está desaparecendo — disse Greenberg, a 50 metros da entrada. — A ligação pelo rádiocontinua boa. Que tal a paisagem aí?

— Difícil dizer. Não posso identificar nenhuma formação, por isso não tenho vocabulário paradescrevê-las. Não é nenhuma espécie de rocha, pois desmorona ao ser tocada. Tenho a sensação deestar explorando um gigantesco queijo Gruyère...

— Quer dizer que é orgânico?

— Sim. Não tem nada a ver com a vida, claro, mas é uma matéria-prima perfeita para ela. Todos ostipos de hidrocarbonos. Você ainda pode me ver?

— Apenas o brilho de sua lanterna, e mesmo este está desaparecendo rapidamente.

— Ah, temos aqui uma rocha autêntica. Não parece pertencer a este ambiente, é provavelmente umaintrusão. Ah, descobri ouro!

— Está brincando!

— Enganou muita gente no velho oeste americano: pirita. É comum nos satélites externos, claro,mas não me pergunte o que está fazendo aqui...

— Perdido o contato visual. Você já penetrou 200 metros.

— Estou atravessando uma camada diferente, parece restos de meteoro. Alguma coisa excitantedeve ter acontecido aqui há muito tempo. Espero que possamos fixar a data. Opa!

— Não me dê esses sustos!

— Desculpe, mas fiquei espantado. Há uma câmara grande ali na frente. A última coisa queesperava encontrar. Deixe-me percorrê-la com a lanterna... E quase esférica, tem uns trinta,quarenta metros de largura. E, não acredito, o Halley está cheio de surpresas — tem estalactites eestalagmites.

— O que há de surpreendente nisso?

— Aqui não tem água corrente, nem calcário, é claro, e a gravidade é muito baixa. Parece umacera. Espere um minuto enquanto faço uma boa cobertura com o vídeo. Formas fantásticas... comoas feitas pelo gotejar de uma vela. É estranho...

— O que foi, agora?

A voz do Dr. Chant revelou uma súbita alteração de tom, que Greenberg percebeuinstantaneamente.

— Algumas das colunas foram quebradas. Estão caídas no chão. É quase como se...

— Continue!

—... como se alguma coisa... se tivesse chocado... com elas.

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— Isso é uma loucura. Poderiam ter sido quebradas por um terremoto?

— Não há terremotos aqui, apenas microssismos provocados pelos gêiseres. Talvez tenha havidouma grande ejeção em algum momento. De qualquer modo, isso foi há séculos. Há uma películadessa matéria cerosa sobre as colunas caídas — com vários milímetros de espessura.

O Dr. Chant recuperava lentamente a calma. Não era um homem de muita imaginação — aespeleologia afastava logo os imaginosos —, mas aquele lugar lhe tinha provocado algumarecordação perturbadora. E as colunas caídas pareciam-se muito com as barras de uma jaula,rompidas por um monstro numa tentativa de fuga...

Isso era totalmente absurdo, claro — mas o Dr. Chant aprendera a não rejeitar as intuições,qualquer sinal de perigo, enquanto não tivesse localizado sua origem. Essa cautela salvara-lhe avida mais de uma vez; não iria além daquela câmara enquanto não identificasse a razão de seumedo. E era bastante sincero para reconhecer que medo era a palavra correta.

— Bill, você está bem? O que está acontecendo?

— Continuo filmando. Algumas dessas formas me lembram as esculturas dos templos indianos.Quase eróticas.

Estava afastando deliberadamente o pensamento do confronto direto com os seus medos, esperandocom isso apanhá-los desprevenidos, por uma espécie de visão mental indireta. Enquanto isso, osatos puramente mecânicos de filmar e recolher amostras ocupavam quase toda a sua atenção.

Não havia nada de errado, lembrou a si mesmo, com o medo saudável; só quando ele crescia etransformava-se em pânico é que podia ser mortal. Duas vezes em sua vida conhecera o pânico(uma, numa encosta de montanha, a outra, debaixo d'água), e ainda estremecia à lembrança de seutoque pegajoso. Felizmente, porém, estava longe dele agora, e por uma razão que, embora nãocompreendesse, parecia-lhe curiosamente tranqüilizadora.Havia um elemento de comédia nasituação.

E ele acabou dando uma gargalhada — não de histeria, mas de alívio.

— Você viu algum daqueles velhos filmes da Guerra nas Estrelas? — perguntou a Greenberg.

— Claro, uma meia dúzia de vezes.

— Bem, agora sei o que me estava preocupando. Havia uma seqüência na qual a nave espacial deLuke mergulha num asteróide e encontra uma gigantesca criatura parecida com uma cobra que vivedentro de suas cavernas.

— Não foi a nave de Luke, mas a Millennium Falcon de Hans Solo. E eu sempre me pergunteicomo o pobre animal conseguia viver. Deve ter ficado com muita fome, esperando uma migalhaocasional do espaço. E a princesa Leia não teria sido mais do que um hors d'oeuvres, de qualquermodo.

— Eu certamente não pretendo ser alimento de monstros — disse o Dr. Chant, agora totalmente

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relaxado. — Mesmo se houvesse vida aqui, o que seria maravilhoso, a cadeia alimentar seria muitocurta. Por isso eu me surpreenderia se encontrasse alguma coisa maior do que um camundongo. Ouo que seria mais provável, um cogumelo... Vamos ver. Para onde vamos, daqui? Há duas saídaspara o outro lado da câmara. A da direita é maior. Vou por ela.

— Quanto cabo ainda lhe resta?

— Ah, por volta de meio quilômetro. Lá vamos nós. Estou no meio da câmara... Diabo, bati naparede. Agora consegui me segurar. Estou entrando. Paredes lisas, rocha autêntica, agora. E umapena...

— Qual o problema?

— Não posso avançar mais. Mais estalactites... Muito juntas, não posso passar... E demasiadogrossas para quebrar sem explosivos. E isso seria uma pena. As cores são belas — os primeirosverdes e azuis que vejo no Halley. Um minuto, enquanto eu as registro no vídeo.

— O Dr. Chant apoiou-se na parede do estreito túnel e focalizou a câmera. Com os dedosenluvados procurou o controle de alta intensidade, mas em lugar dele acabou desligando totalmenteas luzes principais.

— Péssimo desenho — resmungou. — E a terceira vez que isso me acontece.

Não corrigiu imediatamente seu erro, porque sempre gostou do silêncio e da escuridão total que sóse encontram nas cavernas profundas. Os leves ruídos dê fundo do seu equipamento de manutençãoda vida privavam-no do silêncio, mas pelo menos...

... mas o que era aquilo! Para além das estalactites que impediam seu avanço, viu um leve brilho,como as primeiras luzes do amanhecer. Quando seus olhos se adaptaram à escuridão, o brilhopareceu aumentar, e pôde perceber uma leve tonalidade verde. Agora podia ver até mesmo ocontorno da barreira à sua frente...

— O que está acontecendo? — perguntou Greenberg, ansiosamente.

— Nada. Apenas observando.

E pensando, poderia ter acrescentado. Havia quatro explicações possíveis.

A luz do sol poderia estar sendo filtrada através de algum condutor natural de luz — gelo, cristal,qualquer coisa assim. Mas naquela profundidade? Improvável...

Radioatividade? Não se dera ao trabalho de trazer um contador; não havia praticamente elementospesados ali. Mas valia a pena voltar para conferir.

Algum mineral fosforescente — era o que lhe parecia mais provável. Mas havia uma quartapossibilidade, a mais improvável e a mais excitante de todas.

O Dr. Chant nunca se esqueceu de uma noite sem Lua e sem Lúcifer, nas praias do Oceano Índico,em que caminhou sob as estrelas brilhantes, ao longo de uma praia arenosa. O mar estava muito

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calmo, mas de tempos em tempos uma lânguida onda quebrava a seus pés — e detonava umaexplosão de luz.

Ele começou a caminhar (e ainda se lembrava da sensação da água em volta dos tornozelos, comoum banho morno), e a cada passo havia uma nova explosão de luz, que podia ser provocada atémesmo batendo as mãos junto da superfície da água.

Poderiam ter surgido organismos bioluminosos ali, no coração do cometa de Halley? Gostaria queassim fosse. Parecia uma pena destruir algo tão requintado como essa obra de arte natural — com obrilho por trás, a barreira lhe parecia agora a grade de um altar visto nalguma catedral —, masteria de voltar e trazer explosivos. Enquanto isso, havia o outro corredor...

— Não posso continuar por aqui — disse a Greenberg. — Portanto, vou tentar o outro. Estouvoltando para a junção, enrolando de novo o cabo.

Não mencionou o brilho misterioso, que desapareceu ao acender novamente as suas luzes.Greenberg não respondeu imediatamente, o que era estranho. Provavelmente estava falando com anave. Chant não se preocupou: repetiria a mensagem logo que começasse a caminhar novamente.

Não foi necessário, pois houve uma rápida resposta de Green-berg.

— Muito bem, Cliff, pensei que tínhamos perdido contato por um instante. Estou de volta àprimeira câmara e agora vou entrar no outro túnel. Espero que ali não haja nada impedindo apassagem.

Desta vez, Greenberg respondeu imediatamente:

— Desculpe, Bill. Vamos voltar para a nave. Há uma emergência. Não, não é aqui, tudo está bemna Universe. Mas talvez tenhamos de voltar à Terra imediatamente.

Transcorreram semanas antes que o Dr. Chant descobrisse uma explicação plausível para ascolunas quebradas. Sempre que o cometa lançava sua substância no espaço a cada passagem doperiélio, a distribuição da sua massa alterava-se continuamente. Assim, a cada poucos milhares deanos, sua rotação se tornava instável e mudava a direção do seu eixo — violentamente, como umpião que cai ao perder energia. Quando isso ocorria, o cometemoto resultante poderia atingir unsrespeitáveis 5 na escala Richter.

Mas nunca solucionou o mistério do brilho luminoso. Embora o problema fosse rapidamenteobscurecido pelo drama que se estava desenrolando, o senso da oportunidade perdida continuaria apersegui-lo pelo resto de sua vida.

Embora sentisse ocasionalmente tentação de fazê-lo, ele nunca mencionou o caso a nenhum doscolegas. Mas deixou uma nota selada para a próxima expedição, a ser aberta em 2133.

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20. A CHAMADA

— Você viu o Victor? — perguntou Mihailovich alegremente, enquanto Floyd se apressava aatender a convocação do comandante.

— Está arrasado.

— A barba lhe crescerá novamente na viagem de volta — retrucou Floyd, que não tinha tempo paratais frivolidades, no momento.

— Estou querendo saber o que aconteceu.

O Comandante Smith continuava sentado, quase em estado de choque, quando Floyd chegou. Sefosse uma emergência relacionada com a sua nave, ele se teria transformado num verdadeiroturbilhão de energia controlada, dando ordens para todos os lados. Mas não havia nada quepudesse fazer naquela situação, exceto esperar a próxima mensagem da Terra.

O Comandante Laplace era um velho amigo seu, como podia ter-se envolvido em tal situação? Nãohavia nenhum acidente concebível, nenhum erro de navegação ou falha de equipamento que pudesseexplicar a sua sorte. Nem havia, pelo que Smith podia ver, nenhuma maneira pela qual a Universe opudesse ajudar a sair dela. O Centro de Operações estava dando voltas em círculos; parecia seruma daquelas emergências, muito comuns no espaço, em que nada se podia fazer, exceto transmitirpêsames e gravar últimas mensagens. Mas Smith não demonstrou suas dúvidas e reservas quandotransmitiu as notícias a Floyd.

— Houve um acidente — disse ele. — Recebemos ordens de voltar à Terra imediatamente, a fimde sermos preparados para uma missão de salvamento.

— Que tipo de acidente?

— Foi com nossa nave irmã, a Galaxy. Estava fazendo um levantamento dos satélites de Júpiter efez uma descida forçada.

Viu o ar de espantada incredulidade no rosto de Floyd.

— Sim, eu sei que isso é impossível. Mas tem mais: ela está imobilizada — em Europa.

— Europa!

— Receio que sim. Foi danificada, mas ao que tudo indica não houve baixas. Ainda estamosesperando detalhes.

— Quando foi isso?

— Há 12 horas. Houve uma demora até que ela pudesse comunicar-se com Ganimedes.

— Mas o que nós podemos fazer? Estamos do outro lado do Sistema Solar. Voltar à órbita lunarpara reabastecimento, depois tomar a órbita mais rápida até Júpiter, isso levaria, ah, pelo menos

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uns dois meses! (E antigamente, na época da Leonov, disse Floyd consigo mesmo, seriam uns doisanos...)

— Eu sei. Mas não há nenhuma outra nave que possa fazer alguma coisa.

— E as naves intersatélites de Ganimedes?

— São feitas apenas para operações de órbita.

— Elas desceram em Calisto.

— Uma missão que requer muito menos energia. Ah, elas poderiam chegai' a Europa, mas com umacarga útil insignificante. A possibilidade foi examinada, é claro.

Floyd mal ouvia as palavras do comandante: ainda estava tentando assimilar as notíciassurpreendentes. Pela primeira vez em meio século — e apenas pela segunda, em toda a história! —uma nave descera no satélite proibido. E isso o levou a uma reflexão pressaga.

— Você acha — perguntou — que... quem... ou o que quer que seja que está em Europa seriaresponsável?

— Eu estava pensando nisso — respondeu o comandante, sombriamente. — Mas há anos queobservamos o satélite sem que nada tenha acontecido.

— O que é ainda mais pertinente: o que aconteceria conosco se tentássemos uma operação desalvamento?

— Foi a primeira coisa que me ocorreu. Mas tudo isso é especulação. Teremos de esperar atéconhecer melhor os fatos. Enquanto isso — foi essa a razão pela qual o chamei — recebi a lista datripulação da Galaxy e estava pensando...

Hesitando, ele empurrou a relação impressa para o outro lado da mesa. Mas antes mesmo deexaminá-la, Heywood Floyd sabia o que iria encontrar.

— Meu neto — disse com voz triste.

E acrescentou para si mesmo, a única pessoa que pode dar continuidade ao meu nome.

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III-AROLETAEUROPANA

21. A POLÍTICA DO EXÍLIO

Apesar de todas as previsões mais sombrias, a Revolução Sul-Africana foi relativamente exangue— para uma revolução. A televisão, que tem sido responsabilizada por muitos males, mereceucerto crédito por isso. Um precedente havia sido estabelecido uma geração antes nas Filipinas;quando sabem que todo o mundo está vendo, a grande maioria dos homens e mulheres tendem acomportar-se de maneira responsável. Embora tenha havido exceções vergonhosas, poucosmassacres ocorrem ante a câmera.

A maioria dos africânderes, ao reconhecerem o inevitável, deixaram o país muito antes da tomadado poder. E, como a nova administração queixou-se amargamente, não tinham partido de mãosvazias. Bilhões de rands foram transferidos para os bancos suíços e holandeses; no final, houvemisteriosos vôos quase que de hora em hora da Cidade do Cabo e Johanesburgo para Zurique eAmsterdam. Dizia-se que o Dia da Liberdade não encontraria sequer uma onça de ouro ou umquilate de diamante na antiga República da África do Sul — e as instalações das minas tinham sidobem sabotadas. Um destacado refugiado orgulhava-se em seu luxuoso apartamento em Haia: —Serão necessários cinco anos antes que os cafres possam colocar Kimberley novamente emfuncionamento, se é que o conseguirão. — Para grande surpresa sua, De Beers voltou a funcionar,sob novo nome e direção, em menos de cinco semanas, e os diamantes constituíam o elementoisolado mais importante da economia do país.

Dentro de uma geração, os refugiados mais novos tinham sido absorvidos — apesar dasdesesperadas ações de retaguarda das gerações mais velhas — pela cultura sem raízes do séculoXXI. Lembravam- se, com orgulho mas sem pretensão, da coragem e disposição de seus ancestrais,e se distanciavam de seus defeitos. Praticamente nenhum deles falava o africâner, nem mesmo emcasa.

Não obstante, e exatamente como no caso da Revolução Russa um século antes, muitos sonhavamem fazer voltar o passado — ou, pelo menos, em sabotar os esforços daqueles que lhes tinhamusurpado o poder e o privilégio. Habitualmente, canalizavam sua frustração e amargura para apropaganda, manifestações, boicotes e petições ao Conselho Mundial — e, raramente, para obrasde arte. The Voor-trekkers, de Wilhelm Smut, era considerado uma obra-prima da (ironicamente)literatura inglesa, até mesmo pelos que discordavam radicalmente do autor.

Mas havia também grupos que acreditavam que a ação política era inútil e que apenas a violênciarestabeleceria o desejado status quo. Embora não pudesse haver muitos que realmente imaginassem

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ser possível reescrever as páginas da História, não eram poucos os que, se a vitória eraimpossível, se satisfariam perfeitamente com a vingança.

Entre os dois extremos dos totalmente assimilados e os completamente intransigentes havia todauma gama de grupos políticos e apolíticos. Der Bund não era o maior, mas era o mais poderoso, ecertamente o mais rico, já que controlava grande parte da riqueza contrabandeada da Repúblicaperdida, por uma rede de empresas e holdings, em operações perfeitamente legais e, na verdade, deuma respeitabilidade total.

Havia meio bilhão do dinheiro do Bund na Tsung Aeroespacial, devidamente relacionado nobalanço anual. Em 2059, Sir Lawrence teve o prazer de receber outro meio bilhão, o que lhepermitiu acelerar o preparo de sua pequena frota.

Mas nem mesmo seu excelente serviço de espionagem conseguiu estabelecer qualquer relação entreo Bund e a última missão que a Tsung Aeroespacial confiou a Galaxy. De qualquer modo, o cometade Halley aproximava-se então de Marte, e Sir Lawrence estava tão ocupado com o preparo daUniverse para que partisse na data prevista que não deu grande atenção às operações de rotina desuas naves irmãs.

Embora o Lloyds de Londres tivesse certas dúvidas sobre a rota proposta da Galaxy, essasobjeções foram solucionadas rapidamente. O Bund tinha gente em posições-chave por toda parte, oque era ruim para os corretores de seguros, mas bom para os advogados especializados emquestões espaciais.

22. CARGA PERIGOSA

Não é fácil dirigir uma empresa de transportes entre destinos que não só mudam de posição emmilhões de quilômetros a cada poucos dias, como também o fazem a velocidades que oscilam naescala das dezenas de quilômetros por segundo. Qualquer coisa parecida com um esquemarotineiro é impossível; há momentos em que se tem de esquecer qualquer coisa parecida com isso eficar no porto — ou pelo menos em órbita — esperando que o Sistema Solar se reorganize paramaior comodidade da Humanidade.

Felizmente esses períodos são conhecidos antecipadamente, de modo que é possível utilizá-los damelhor maneira para revisões, reparos e folga planetária para a tripulação. E ocasionalmente, comsorte e uma comercialização agressiva, consegue-se arrendar a nave para uma excursão, mesmo queseja apenas o equivalente à antiga excursão do tipo "Uma volta pela baía".

O Comandante Eric Laplace estava satisfeito porque a permanência de três meses sobre Ganimedesnão seria totalmente perdida. Uma doação anônima e inesperada à Fundação de Ciência Planetáriafinanciaria um reconhecimento do sistema de satélites jupiterianos (até agora, ninguém o chamava

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de luciferiano), com particular atenção para uma dúzia das luas menores e menos estudadas.Algumas não tinham sido nem mesmo devidamente levantadas, e muito menos visitadas.

Tão logo soube da missão, Rolf Van der Berg procurou o agente da Tsung e fez algumas perguntasdiscretas.

— Sim, primeiro iremos a Io, depois daremos uma volta ao redor de Europa...

— Só uma volta? A que proximidade?

— Um momento... E estranho, o plano de vôo não dá detalhes. Mas é claro que a nave nãopenetrará na Zona Proibida.

— Que era de dez mil quilômetros, quando da última vez que foi fixada... há 15 anos. De qualquermodo, eu gostaria de seroplanetólogo da missão. Mandarei meu currículo...

— Não é preciso, Dr. Van der Berg. Já mandaram procurar o senhor.

É sempre fácil perceber as coisas depois que acontecem, e quando passou em revista os fatos (tevemuito tempo para isso, depois) o Comandante Laplace lembrou-se de vários aspectos curiososdaquele arrendamento da nave. Dois membros da tripulação adoeceram de repente e tiveram de sersubstituídos à última hora; ele ficou tão satisfeito ao conseguir os substitutos que não conferiu seuspapéis com a minúcia que deveria ter tido. (E mesmo que conferisse, teria descoberto que essespapéis estavam perfeitamente em ordem.)

Depois, houve o problema com a carga. Como comandante, tinha o direito de inspecionar tudo oque era posto na nave. E claro que seria impossível fazê-lo para cada artigo, mas nunca hesitavaem investigar, se tinha boa razão para isso. As tripulações espaciais eram, em geral, constituídas depessoas altamente responsáveis; mas as longas missões podiam ser monótonas, e havia produtosquímicos que aliviavam o tédio e que — embora perfeitamente legais na Terra — não eramaconselháveis fora dela.

Quando o segundo-oficial Chris Floyd comunicou suas suspeitas, o comandante supôs que o sensorcromatográfico da nave tivesse detectado outra partida de ópio de alta qualidade, usadoocasionalmente pelo grande número de chineses de sua tripulação. Dessa vez, porém, a questão eraséria — muito séria.

— Porão de carga três, item 2/456, comandante. O manifesto diz "aparelhos científicos". Mascontém explosivos.

— O quê!

— Sem dúvida, senhor. Eis o eletrograma.

— Nem preciso ver, Sr. Floyd. O senhor examinou o item?

— Não, senhor. Está numa caixa selada, de meio metro de altura por um de largura e cinco decomprimento, aproximadamente. Uma das maiores caixas que a equipe de cientistas trouxe. Estárotulada "FRÁGIL — MOVA COM CUIDADO". Mas tudo é frágil, é claro.

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O Comandante Laplace bateu pensativamente com os dedos na "madeira" de plástico granulado desua mesa. (Odiava o desenho, e pretendia trocá-lo na próxima revisão.) Até mesmo esse pequenogesto o fez começar a levantar-se da cadeira, e automaticamente firmou-se nela, prendendo o pénuma de suas pernas.

Embora nem por um instante tivesse dúvidas quanto à informação de Floyd — seu novo segundo-oficial era muito competente, e o comandante estava satisfeito por ele jamais ter mencionado o seufamoso avô —, podia haver uma explicação inocente. O sensor poderia ter sido enganado poroutros produtos químicos de estrutura molecular parecida.

Podiam ir até o porão e abrir a caixa — não, isso poderia ser perigoso e criar problemas jurídicostambém. O melhor era ir direto à cúpula — teria de fazer isso de qualquer maneira, mais cedo oumais tarde.

— Por favor, traga o Dr. Anderson aqui, e não comente o assunto com ninguém.

— Muito bem, senhor — Chris Floyd fez uma continência respeitosa, mas perfeitamentedesnecessária, e deixou a sala deslizando suavemente, e sem esforço.

O líder da equipe de cientistas não estava habituado à gravidade zero, e sua entrada foi muitodesajeitada. Sua evidente indignação não ajudava, e teve de agarrar-se à mesa do comandantevárias vezes, de uma maneira pouco digna.

— Explosivos! Claro que não! Deixe-me ver o manifesto... 2/456...

O Dr. Anderson dedilhou a referência no seu teclado portátil e leu lentamente o resultado:"Penetrômetros Mark V, quantidade três." E claro. Não há problema.

— E o que é — perguntou o comandante — um penetrômetro?

Apesar de sua preocupação, teve dificuldades em conter um sorriso, pois a palavra lhe parecia umpouco obscena.

— Equipamento padrão de amostragem planetária. É lançado, e com sorte colhe uma amostra de atédez metros de comprimento — mesmo que seja de rocha dura. Depois nos envia uma análisequímica completa. A única maneira segura de estudar lugares como Mercúrio Diurno — ou Io,onde lançaremos o primeiro.

— Dr. Anderson — disse o comandante procurando conter-se —, o senhor pode ser um excelentegeólogo, mas não conhece mui- to da mecânica celeste. Não se lança simplesmente alguma coisa deórbita...

A acusação de ignorância era evidentemente infundada, como a reação do cientista mostrou.

— Os idiotas! — disse ele. — É claro, o senhor deveria ter sido avisado.

— Exatamente. Foguetes de combustível sólido são classificados como carga perigosa. Eu queroautorização dos proprietários e a sua garantia pessoal de que os sistemas de segurança sãoadequados. Sem isso, eles serão retirados. Bem, há outras pequenas surpresas? Estão planejando

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levantamentos sísmicos? Acho que para estes são necessários, habitualmente, explosivos...

Algumas horas depois, o cientista, um pouco constrangido, teve de admitir que havia encontradotambém dois bujões de fluorina elementar, usado para mover os lasers que podiam alcançarqualquer corpo celeste a distâncias de milhares de quilômetros para obter uma amostraespectrográfica. Como fluorina pura era provavelmente a substância mais perigosa conhecida pelohomem, ocupava lugar de destaque na lista de materiais proibidos, mas assim como os foguetes quelevavam os penetrômetros aos seus alvos, era essencial à missão.

Quando se certificou de que todas as precauções necessárias tinham sido tomadas, o ComandanteLaplace aceitou as desculpas do cientista e sua garantia de que a omissão era conseqüência apenasda pressa com que a expedição fora organizada.

Tinha certeza de que o Dr. Anderson estava dizendo a verdade, mas já sentia que havia algumacoisa estranha naquela missão.

Jamais poderia ter pensado que seria tão estranha.

23. INFERNO

Antes da detonação de Júpiter, Io ficava atrás apenas de Vênus como a coisa mais parecida com oInferno que existia no Sistema Solar. Agora que Lúcifer tinha elevado sua temperatura superficialem mais umas duas centenas de graus, nem mesmo Vênus podia competir com ele.

Os vulcões de enxofre e os gêiseres tinham multiplicado a sua atividade, refazendo agora em anosem lugar de décadas o aspecto do tormentoso satélite. Os planetólogos tinham abandonado a idéiade qualquer tentativa de fazer mapas, e se contentavam com fotografias orbitais a cada poucos dias.Com estas, construíram verdadeiros filmes aterrorizantes do inferno em ação.

A Lloyds de Londres tinha cobrado um alto prêmio pelo seguro daquela etapa da missão, mas Ionão representava nenhum perigo maior para uma nave que fazia uma aproximação a um alcancemínimo de dez mil quilômetros — e do lado relativamente tranqüilo da Noite.

Ao observar o globo amarelo e laranja que se aproximava — o objeto mais incrivelmente berrantede todo Sistema Solar —, o segundo-oficial Chris Floyd não pôde deixar de lembrar a ocasião, hámeio século, em que seu avô passara por ali. Naquele ponto a Leonov estabelecera contato com aDiscovery abandonada, e ali o Dr. Chandra despertara o adormecido computador HAL. Depois asduas naves tinham ido examinar o enorme monolito negro que pairava sobre LI, o Ponto InternoLagrange, entre Io e Júpiter.

Agora o monolito tinha desaparecido — e Júpiter também. O minissol que surgira como a fênix daimplosão do gigantesco planeta transformara- seus satélites no que era praticamente um outro

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Sistema Solar, embora apenas Ganimedes e Europa tivessem regiões com temperaturas semelhantesàs da Terra. Quanto tempo isso continuaria assim, ninguém sabia. As estimativas da vida provávelde Lúcifer variavam de mil a um milhão de anos.

O grupo de cientistas da Galaxy olhava pensativamente para o Ponto LI, mas este era agorademasiado perigoso para uma aproximação. Sempre houve um rio de energia elétrica — o "tubo defluxo" de Io — entre Júpiter e seus satélites interiores, e a criação de Lúcifer aumentara de váriascentenas a sua força. Por vezes o rio de energia podia ser visto até a olho nu, brilhante e amarelocom a luz característica do sódio ionizado. Alguns engenheiros de Ganimedes tinham falado sobreum aproveitamento dos gigawatts que se perdiam ali, mas ninguém conseguiu imaginar uma maneirade aproveitá-los.

O primeiro penetrômetro foi lançado, com comentários vulgares da tripulação, e duas horas depoispenetrou, como uma agulha hipodérmica, no satélite em ebulição. Continuou operando durantequase cinco segundos — dez vezes a sua vida prevista — enviando milhares de medidas químicas,físicas e reológicas, antes de ser destruído por Io.

Os cientistas ficaram radiantes; Van der Berg, apenas satisfeito. Tinha esperado que a sondafuncionasse; Io era um alvo absurdamente fácil. Mas se tinha razão quanto a Europa, o segundopenetrômetro certamente falharia.

Isso, porém, nada provaria; podia falhar por uma dúzia de boas razões. E se falhasse, a únicaalternativa seria um desembarque.

Que, naturalmente, era proibido — não só pelas leis do Homem.

24. SHAKA, O GRANDE

A Astropol — que apesar de seu título grandioso, tinha decepcionantemente pouco o que fazer forada Terra — não admitia que Shaka realmente existisse. Os E.U.A.S. tinham exatamente a mesmaposição, e os seus diplomatas ficavam constrangidos ou indignados quando alguém tinha a falta detato de mencionar tal nome.

Mas a Terceira Lei de Newton aplica-se na política, como em tudo o mais. O Bund tinha seusextremistas — embora tentasse, por vezes sem muito empenho, renegá-los — que conspiravamconstantemente contra os E.U.A.S. Em geral limitavam-se a tentativas de sabotagem comercial, mashavia explosões, desaparecimentos e até mesmo assassinatos ocasionais.

Não era preciso dizer que os sul-africanos não viam isso sem preocupações. Reagiram, criando seupróprio serviço de contra-espionagem, que também tinha uma gama de operações bastante ampla—e também afirmava nada saber quanto ao Shaka. Talvez estivessem usando a útil invenção da CIA,

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da "negabilidade plausível". É até mesmo possível que estivessem dizendo a verdade.

De acordo com uma teoria, o Shaka começou como um codinome, e depois — como o "TenenteKije" de Prokofieff— adquiriu vida própria, porque era útil a várias burocracias clandestinas. Issocertamente explicava o fato de que nenhum de seus membros jamais desertara, ou mesmo forapreso.

Mas havia outra explicação, muito rebuscada, segundo os que acreditavam realmente na existênciado Shaka. Todos os seus agentes tinham sido condicionados psicologicamente à autodestruição,antes de haver qualquer possibilidade de interrogatório.

Qualquer que fosse a verdade, ninguém podia imaginar que, mais de dois séculos depois de suamorte, a lenda do grande tirano zulu lançaria sua sombra por mundos que ele nunca conheceu.

25. O MUNDO VELADO

Na década posterior à ignição de Júpiter e à difusão do Grande Degelo por todo o seu sistema desatélites, Europa foi deixada rigorosamente em paz. Depois os chineses fizeram uma rápidaaproximação, sondando as nuvens com radar numa tentativa de localizar os restos da Tsien. Nãotiveram êxito, mas seus mapas do lado diurno foram os primeiros a mostrar os novos continentesque estavam aparecendo com a fusão do gelo.

Também descobriram uma construção perfeitamente reta de dois quilômetros que parecia tãoartificial que foi batizada de A Grande Muralha. Devido à sua forma e tamanho, supôs-se que fosseo monolito — ou um monolito, já que milhões tinham sido reproduzidos nas horas anteriores àcriação de Lúcifer.

Mas não houve nenhuma reação, nem qualquer indício de um sinal inteligente, por sob as nuvenscada vez mais densas. Assim, alguns anos mais tarde, os satélites de pesquisa foram colocados emórbita permanente e balões de grande altitude foram lançados na atmosfera para estudar o seusistema de ventos. Os meteorologistas terrestres mostraram-se fascinados por ele, pois Europa —com um oceano central e um sol que nunca se punha — apresentava um modelo belamentesimplificado para seus livros didáticos.

Assim começou o jogo da ' 'Roleta Européia", como os administradores gostavam de dizer, sempreque os cientistas propunham uma maior aproximação do satélite. Depois de 50 anos semacontecimentos, ele se estava tornando um pouco monótono. O Comandante Laplace esperava quecontinuasse assim, e tinha exigido consideráveis garantias do Dr. Anderson.

— Pessoalmente — disse ele ao cientista —, eu consideraria um ato levemente hostil ter umatonelada de equipamento penetrante lançada em cima de mim, a mil quilômetros por hora. Estou

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muito surpreso que o Conselho Mundial tenha dado autorização.

O Dr. Anderson também ficou um pouco surpreso, embora talvez não ficasse se soubesse que oprojeto era o último item de uma extensa agenda de um Subcomitê de Ciência, já no fim de umatarde de sexta-feira. A História é feita desses detalhes.

— Concordo, comandante. Mas estamos operando dentro de limitações muito rigorosas, nãohavendo possibilidade de interferência com os... ah... os europanos, quem quer que sejam. Estamosvisando um alvo a cinco quilômetros acima do nível do mar.

— E o que entendo. O que há de tão interessante no monte Zeus?

— É um mistério total. Ele simplesmente nem existia há alguns anos. O senhor pode compreenderpor que o fenômeno deixa os geólogos doidos.

— E o seu instrumento o analisará, quando penetrar nele.

— Exatamente. E... realmente eu não devia dizer-lhe isto — mas pediram-me que mantivesse osresultados como confidenciais e os mandasse de volta para a Terra em código. Evidentemente,alguém está na pista de uma grande descoberta e quer ter a certeza de que será o primeiro apublicar suas descobertas. O senhor acreditaria que os cientistas podem ser tão mesquinhos?

O Comandante Laplace bem podia acreditar, mas não queria desiludir o seu passageiro. O Dr.Anderson parecia comovedoramente ingênuo; alguma coisa estava acontecendo — e o comandantetinha agora a certeza de que havia muita coisa por trás da fachada daquela missão — mas ele nadasabia sobre isso.

— Só posso ter esperanças, doutor, de que os europanos não sejam amantes do alpinismo. Eu nãogostaria de interromper qualquer tentativa deles de colocarem uma bandeira no seu Everest.

Houve um sentimento de excepcional excitação a bordo da Galaxy quando o penetrômetro foilançado — e até mesmo as inevitáveis piadas desapareceram. Durante as duas horas da demoradaqueda da sonda em direção a Europa, praticamente todos os membros da tripulação encontraramuma desculpa legítima para visitar a ponte e observar a operação. Quinze minutos antes do impacto,o Comandante Laplace declarou a entrada na ponte proibida a todos os visitantes, exceto à novaatendente da nave, Rosie; sem o seu interminável abasteci- mento de tubos cheios de excelente café,a operação não poderia continuar.

Tudo correu à perfeição. Logo depois de entrar na atmosfera, os freios a ar funcionaram, reduzindoo penetrômetro a uma velocidade de impacto aceitável. A imagem do alvo no radar — semqualquer indicação de escala — cresceu gradativamente na tela. A menos um segundo, todos osgravadores passaram automaticamente a alta velocidade...

... Mas não houve nada para gravar.

— Agora eu sei — disse o Dr. Anderson, com tristeza — exatamente como se sentiram noLaboratório de Propulsão a Jato, quando os primeiros Rangers chocaram-se contra a Lua, sem quesuas câmeras funcionassem.

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26. VIGÍLIA NOTURNA

Só o tempo é universal; o dia e a noite são apenas costumes locais peculiares encontrados nosplanetas cujas forças das marés ainda não lhes interromperam a rotação. Mas por mais longe queviajem de seu mundo nativo, os seres humanos não podem nunca escapar ao ritmo diurno, fixado hámuitas eras pelo seu ciclo de luz e de trevas.

Assim, à lh 05min, Hora Universal, o segundo-oficial Chang estava sozinho na ponte, enquanto anave dormia à sua volta. Não havia nenhuma necessidade real de que ele estivesse acordado, já queos sensores eletrônicos da Galaxy registrariam qualquer mau funcionamento muito antes do que ele.Mas um século de cibernética tinha provado que os seres humanos eram ligeiramente melhores doque as máquinas para enfrentar o inesperado. E mais cedo ou mais tarde, o inesperado sempreacontecia.

“Onde está o meu café?” pensou Chang, com mau humor. Rosie não costuma se atrasar. Ficoupensando se a atendente teria sido atingida pelo mesmo mal-estar que havia dominado tanto oscientistas quanto a tripulação, depois dos desastres das últimas 24 horas.

Depois do fracasso do primeiro penetrômetro, houve uma apressada conferência para decidir o quefazer em seguida. Restava uma unidade, que se destinava a Calisto, mas que podia ser usada ali.

— De qualquer modo — argumentou o Dr. Anderson, — desembarcamos em Calisto. Não há alinada exceto variedades distintas de gelo rachado.

Não houve discordância. Depois de uma demora de 12 horas para modificações e provas, openetrômetro número 3 foi lançado em direção às nuvens de Europa, seguindo a trilha invisível deseu precursor.

Desta vez, o gravador da nave recebeu alguns dados — durante cerca de meio milissegundo. Oacelerômetro na sonda, que era calibrado para operar até 20.000 gees, deu uma breve pulsão antesde perder a escala. Tudo deve ter sido destruído em muito menos tempo do que o necessário a umpiscar de olhos.

Depois de uma segunda conferência, ainda mais sombria, decidiu-se informar à Terra e esperar pornovas instruções numa órbita elevada em torno de Europa, antes de seguir para Calisto e as luasexteriores.

— Desculpe o atraso, senhor — disse Rose McCullen (nunca se imaginaria, pelo seu nome, que elaera um pouco mais escura do que o café que trazia), — mas eu devo ter regulado errado odespertador.

— Sorte a nossa — disse o oficial de serviço com um riso, — que você não esteja dirigindo a

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nave.

— Não sei como alguém pode dirigi-la — respondeu Rose. — Parece tão complicado.

— Ora, não tanto quanto parece — disse Chang. — E não lhe ensinaram a teoria espacial básica,em seu treinamento?

— Ah... sim. Mas nunca entendi muito bem. Órbitas e todas aquelas coisas sem sentido.

O segundo-oficial Chang estava entediado e achou que seria bondade esclarecer os seus ouvintes. Eembora Rose não fosse exatamente seu tipo, era sem dúvida atraente. Um pequeno esforço agorapoderia ser um bom investimento. Nunca lhe ocorreu que, tendo cumprido sua obrigação, Rosepudesse desejar voltar a dormir.

Vinte minutos depois, o segundo-oficial Chang apontou para a mesa de navegação e concluiu,eufórico:

— Como você vê, é realmente quase automático. Basta dedilhar alguns números e a nave cuida doresto.

Rose parecia estar cansada; olhava seguidamente para o relógio.

— Desculpe — disse Chang, subitamente arrependido. — Eu não devia ter-lhe tomado o tempo.

— Oh, não, é muito interessante. Por favor, continue.

— Claro que não. Talvez alguma outra hora. Boa-noite, Rose, e obrigado pelo café.

— Boa-noite, senhor.

A atendente de terceira classe Rose McCullen planou (sem muita habilidade) em direção à portaainda aberta. Chang não se deu ao trabalho de olhar para trás quando a ouviu ser fechada.

Foi por isso um susto considerável quando, segundos depois, ouviu uma voz feminina totalmentedesconhecida dirigir-lhe a palavra.

— Sr. Chang, não se dê ao trabalho de tocar o alarme. Está desligado. Aqui estão as coordenadaspara descer. Leve a nave para baixo.

Lentamente, imaginando se teria adormecido e estava sofrendo um pesadelo, Chang fez girar suacadeira.

A pessoa que tinha sido Rose McCullen estava flutuando ao lado da entrada oval, usando aalavanca de fechamento da porta para firmar-se. Tudo nela parecia ter mudado; num instante, ospapéis se tinham invertido. A tímida atendente — que antes nunca o olhara de frente, agora o fitavacom uma expressão fria e impiedosa, que o fazia sentir-se como um coelho hipnotizado por umacobra. O revólver pequeno, mas de aparência mortal, que Rose segurava na mão livre parecia umadorno desnecessário: Chang não tinha a menor dúvida de que ela poderia matá-lo com toda aeficiência sem a arma.

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Não obstante, tanto o seu respeito próprio como sua honra profissional exigiam que não se rendessesem alguma forma de luta. No mínimo, poderia ganhar tempo.

— Rosie — disse ele, e seus lábios tiveram dificuldade em formar um nome que de repente setornara inadequado, — isso é totalmente absurdo. O que eu lhe disse ainda há pouco simplesmentenão é verdade. Eu não poderia fazer descer a nave sozinho. O computador levaria horas paracalcular a órbita correta, e eu precisaria de alguém para me ajudar. Um co-piloto, pelo menos.

O revólver não se moveu.

— Não sou boba, Sr. Chang. Esta nave não tem limite de energia, como os antigos foguetesquímicos. A velocidade de escape de Europa é de apenas três quilômetros por segundo. Parte doseu treinamento referia-se a uma descida de emergência sem a ajuda do computador principal.Agora, pode colocá-lo em prática: o tempo para uma descida ótima com as coordenadas que lhedei começa dentro de cinco minutos.

— Esse tipo de descida forçada — disse Chang, agora suando profusamente — tem uma taxa defalha de cerca de 25%... — O número certo seria 10%, mas ele achou que nas circunstâncias umpouco de exagero se justificava. — E há anos não a pratico.

— Nesse caso — disse Rose McCullen, — terei de eliminá-lo e pedir ao comandante que memande alguém mais qualificado. É pena, pois perderemos esse momento favorável e teremos deesperar algumas horas pelo próximo. Restam-lhe quatro minutos.

O segundo-oficial Chang sabia quando estava vencido. Mas pelo menos tinha tentado.

— Dê-me essas coordenadas — disse ele.

27. ROSIE

O Comandante Laplace acordou imediatamente à primeira batida leve, como um pica-pau distante,dos jatos de controle de altitude. Por um instante ficou pensando se estaria sonhando: não, a naveestava evidentemente girando no espaço.

Talvez estivesse ficando quente demais de um lado, e o sistema de controle térmico estivessefazendo pequenos ajustes. Isso acontecia ocasionalmente, e constituía um ponto negativo para ooficial de serviço, que deveria ter notado que o limite de temperatura estava sendo atingido.

Estendeu o braço para o botão de intercomunicação para chamar — quem era? — o Sr. Chang naponte. Sua mão não chegou a completar o movimento.

Depois de dias sem peso, até mesmo um décimo da gravidade é um choque. Para o comandante

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foram como minutos, embora devam ter sido apenas segundos, antes que ele pudesse desatar ascorreias e deixar o seu beliche. Dessa vez encontrou o botão e o apertou violentamente. Não houveresposta.

Tentou ignorar as batidas e sacudidas dos objetos que tinham sido colhidos inesperadamente peloinício da gravidade. As coisas pareciam estar caindo por um longo tempo, mas por fim o único somanormal foi o grito abafado e distante da propulsão a toda força.

O comandante arrancou a cortina da pequena vigia da cabina e olhou para as estrelas lá fora. Sabiaaproximadamente para onde o eixo da nave devia estar apontando; mesmo que só pudesse julgá-lodentro de 30 ou 40 graus, isso lhe teria permitido distinguir entre duas possibilidades.

A Galaxy poderia ter mudado de direção para ganhar, ou perder, velocidade de órbita. Estavaperdendo e, portanto, preparando-se para baixar em direção a Europa.

Houve uma batida insistente na porta, e o comandante compreendeu que pouco mais de um minutopoderia ter transcorrido. O segundo-oficial Floyd e dois outros membros da tripulação estavamagrupados no estreito corredor.

— A ponte está trancada, senhor — informou Floyd, ofegante. — Não podemos entrar, e Chang nãoresponde. Não sabemos o que aconteceu.

— Acho que sei — respondeu o Comandante Laplace, enfiando os calções. — Algum louco iatentar, mais cedo ou mais tarde. Fomos seqüestrados, e sei para onde. Mas não tenho a menor idéiada razão.

Olhou o relógio e fez um rápido cálculo mental.

— A esse nível de impulso, sairemos de órbita dentro de 15 minutos, digamos dez, por uma questãode segurança. De qualquer modo, será que podemos cortar a energia sem colocar a nave em perigo?

O segundo-oficial Yu, da Engenharia, parecia muito infeliz, mas arriscou uma resposta relutante:

— Poderíamos introduzir os interruptores de circuito nas linhas de bombeamento do motor e cortaro suprimento de propelente.

— Podemos ter acesso a eles?

— Sim, estão no convés três.

— Então, vamos.

— Ah, mas nesse caso o sistema independente de apoio entraria em atividade. Por uma questão desegurança, ele está numa caixa selada no convés cinco. Teríamos de abrir um caminho... Não, nãohaveria tempo.

O Comandante Laplace temia isso. Os homens de gênio que tinham planejado a Galaxy tentaramproteger a nave de todos os acidentes plausíveis. Não havia como a pudessem protegê-la contra osintentos malignos do homem.

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— Alternativas?

— Não com o tempo disponível, receio.

— Então vamos para a ponte e ver se podemos falar com Chang e quem estiver com ele.

E quem poderia ser, pensou o comandante. Recusava-se a acreditar que pudesse ser alguém de suatripulação regular. Restava, portanto — era claro, ali estava a resposta! Pôde ver tudo. Pesquisadormonomaníaco tenta provar teorias; experiências frustradas; resolve que a busca de conhecimentotem precedência sobre tudo o mais...

Era incomodamente parecido com um daqueles melodramas baratos do cientista louco, mas estavade acordo com os fatos. Ficou pensando se o Dr. Anderson teria decidido ser aquele o único paraum Prêmio Nobel.

Essa teoria desmoronou imediatamente quando o ofegante e despenteado geólogo chegou, de bocaaberta.

— Pelo amor de Deus, comandante, o que está acontecendo? Estamos com toda a propulsão!Estamos subindo — ou descendo?

— Descendo — respondeu o Comandante Laplace. — Dentro de cerca de dez minutos estaremosnuma órbita que nos levará a Europa. Só posso esperar que a pessoa que assumiu o controle saiba oque está fazendo.

Estavam agora na ponte, em frente à porta fechada. Nenhum ruído do outro lado.

Laplace bateu com toda força possível sem machucar os nós dos dedos.

— Aqui é o comandante! Deixe-nos entrar!

Sentiu-se bastante idiota, dando uma ordem que certamente não seria ouvida, mas esperava pelomenos alguma reação. Para sua surpresa, obteve-a.

O alto-falante do lado de fora assoviou, e uma voz disse:

— Não tente nada precipitado, comandante. Tenho um revólver e o Sr. Chang está obedecendominhas ordens.

— Quem está falando? — murmurou um dos oficiais. — Parece uma mulher!

— Você tem razão — disse o comandante sombriamente. Isso sem dúvida reduzia aspossibilidades, mas não ajudava em nada.

— O que está querendo fazer? Você sabe que não ficará impune! — gritou ele, tentando antes umtom de mando do que de queixa.

— Estamos descendo em Europa. E se quiser sair de lá, não tente me impedir.

— O quarto dela está totalmente limpo — informou o segundo-oficial Chris Floyd, 30 minutos

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depois, quando a propulsão tinha sido cortada para zero e a Galaxy estava entrando na elipse que alevaria sem demora à atmosfera da Europa. A sorte estava traçada: embora fosse possível agoraimobilizar os motores, seria suicídio fazê-lo, pois seriam necessários para o pouso — embora estetalvez fosse apenas uma forma mais prolongada de suicídio.

— Rosie McCullen! Quem teria imaginado! Acha que ela está drogada?

— Não — disse Floyd. — Isso foi cuidadosamente planejado. Ela deve ter um rádio escondido emalgum lugar da nave. Vamos procurá-lo.

— Você parece um detetive.

— Isso basta, senhores — disse o comandante. Os nervos estavam à flor da pele, em grande partepela frustração e pela total incapacidade de estabelecer qualquer outro contato com a pontefechada. Ele olhou o relógio.

— Menos de duas horas para entrarmos na atmosfera, ou o que existe de atmosfera. Estarei emminha cabina. É possível que tentem comunicar-se comigo ali. Sr. Yu, por favor permaneça naponte e informe imediatamente se alguma coisa ocorrer.

Nunca se sentira tão impotente em sua vida, mas havia momentos em que não fazer nada era a únicacoisa a fazer. Ao deixar a sala dos oficiais, ouviu alguém dizer, tristemente:

— Eu bem queria um tubo de café. Rosie fazia o melhor café que já tomei.

Sim, pensou o comandante, ela, sem dúvida, é eficiente. Toda tarefa que realiza, realiza bem.

28. DIÁLOGO

Havia apenas um homem a bordo da Galaxy que não considerava a situação como um desastre total.Talvez eu venha a morrer, disse Rolf Van der Berg para si mesmo, mas pelo menos talvez possaalcançar a imortalidade científica. Embora isso fosse um pobre consolo, era mais do que qualqueroutra pessoa na nave podia esperar.

Que a Galaxy estava rumando para o monte Zeus, ele não tinha duvidado por um instante sequer:não havia nada mais que tivesse alguma significação em Europa. Na verdade, não havia nada nemde longe comparável em qualquer outro planeta.

Portanto a sua teoria — e tinha de admitir que era ainda uma teoria — já não era segredo. Comopodia ter transpirado?

Confiava plenamente no tio Paul, mas ele poderia ter sido indiscreto. Era mais provável, porém,que alguém tivesse monitorado os seus computadores, talvez de forma rotineira. Se assim fosse, o

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velho cientista podia estar correndo perigo; Rolf ficou pensando se poderia — ou se deveria —dar-lhe um aviso. Sabia que o oficial de comunicações estava tentando contatar Ganimedes por umdos transmissores de emergência. Um farol automático já tinha sido enviado, a notícia estariachegando à Terra a qualquer minuto. Estava a caminho havia mais de uma hora.

— Entre — disse, em resposta a uma batida suave na porta de sua cabina. — Ah, alô, Chris. Emque lhe posso ser útil?

Estava surpreso de ver o segundo-oficial Chris Floyd, a quem conhecia tão pouco quanto qualquerde seus outros colegas. Se descessem a salvo em Europa, pensou sombriamente, poderiam vir aconhecer-se muito melhor do que desejavam.

— Alô, doutor. Você é a única pessoa que mora por aqui. Estava pensando se poderia me ajudar.

— Não sei se alguém pode ajudar alguém neste momento. Quais as últimas da ponte?

— Nada de novo. Acabei de deixar Yu e Gillings lá em cima, tentando prender um microfone naporta. Mas ninguém lá dentro parece estar falando. Isso não é de surpreender, Chang deve estarmuito ocupado.

— Será que ele pode nos fazer descer com segurança?

— Ele é o melhor. Se alguém pode, é ele. Estou mais preocupado é com a possibilidade de subirnovamente.

— Meu Deus, eu não tinha pensado nessa questão. Achei que não era problema.

— Pode ser um problema secundário. Lembre-se, esta nave é planejada para operações orbitais.Não tínhamos planejado descer em nenhuma lua importante — embora esperássemos um encontrocom Ananke e Carme. Portanto, poderíamos ficar presos em Europa — especialmente se Changtiver de gastar propelente procurando um bom local de descida.

— E sabemos onde ele está tentando descer? — perguntou Rolf, procurando não se mostrar maisinteressado do que seria de esperar. Não deve ter conseguido, porque Chris olhou-o fixamente.

— Não se pode dizer, a essa altura, embora venhamos a ter uma idéia melhor quando ele começar afrear. Mas você conhece estes satélites. O que lhe parece?

— Há apenas um lugar interessante: o monte Zeus.

— Por que haveria alguém de querer descer ali?

— Essa era uma das coisas que esperávamos descobrir — disse Rolf, dando de ombros. —Custou-nos dois caros penetrômetros.

— E parece que vai custar muito mais. Você não tem nenhuma idéia?

— Você parece um detetive — disse Van der Berg, com um sorriso forçado, sem falar a sério.

— Engraçado, é a segunda vez que me dizem isso na última hora.

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Imediatamente houve uma sutil modificação na atmosfera da cabina, quase como se o sistema deapoio à vida se tivesse reajustado.

— Ah, eu estava apenas brincando. Mas você é um detetive?

— Se fosse, não diria, não é mesmo?

Não era uma resposta, pensou Van der Berg, mas, pensando melhor, talvez fosse.

Olhou firmemente para o jovem oficial, notando — não pela primeira vez — que se parecia muitocom seu famoso avô. Alguém tinha dito que Chris Floyd só tinha ingressado na Galaxy naquelamissão, vindo de outra nave da frota Tsung — e acrescentara sarcasticamente que era bom terligações em qualquer setor. Mas não houve críticas à sua capacidade: era um excelente oficialespacial. Aquelas habilitações poderiam qualificá-lo também para outras funções de tempo parcial.Veja-se o caso de Rosie McCullen — que também tinha ingressado na Galaxy pouco antes daquelamissão, lembrou-se ele.

Rolf Van der Berg sentiu que se tinha envolvido numa vasta e tênue teia de intriga interplanetária.Como cientista, habituado a ter — geralmente — respostas diretas a perguntas feitas à Natureza,não gostava da situação.

Mas dificilmente poderia pretender ser uma vítima inocente. Tentara esconder a verdade — oupelo menos, o que acreditava ser a verdade. E agora as conseqüências dessa dissimulação setinham multiplicado como nêutrons numa reação em cadeia, com resultados que poderiam serigualmente desastrosos.

De que lado estava Chris Floyd? Quantos lados haveria? O Bund certamente estaria envolvido, se osegredo transpirara. Mas havia grupos dissidentes dentro do próprio Bund, e grupos que seopunham a eles. Era como uma sala de espelhos.

Num ponto, porém, sentia-se razoavelmente seguro. Podia confiar em Chris Floyd, ainda que fosseapenas pelas suas ligações. Aposto que ele está trabalhando para a ASTROPOL durante estamissão — por mais longa ou curta que ela venha a ser agora...

— Gostaria de ajudá-lo, Chris — disse devagar. — Como você provavelmente desconfia, eu tenhoalgumas teorias. Mas elas podem ser uma completa tolice...

— Em menos de meia hora, podemos conhecer a verdade. Até lá, prefiro não dizer nada.

E isso não é, disse para consigo mesmo, apenas a arraigada teimosia dos bôeres. Se estivesseenganado, preferia não morrer entre homens que soubessem ter sido ele o idiota que provocara asua desgraça.

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29. DESCIDA

O segundo-oficial Chang estava lutando com o problema desde que a Galaxy se tinha injetado comêxito — tanto para sua surpresa como para seu alívio — na órbita de transferência. Nas próximashoras ela estaria nas mãos de Deus, ou pelo menos, de Sir Isaac Newton; não havia nada a fazersenão esperar até a manobra final de freagem e descida.

Tinha pensado rapidamente em enganar Rose, dando à nave um vetor de reversão na aproximaçãomáxima, levando-a assim de novo para o espaço. Ficaria, então, de volta numa órbita estável, euma operação de salvamento poderia ser organizada a partir de Ganimedes. Mas havia umaobjeção fundamental a esse plano: ele certamente não estaria vivo para ser salvo. Embora nãofosse covarde, Chang preferia não ser um herói póstumo do espaço.

De qualquer modo, suas possibilidades de sobreviver na próxima hora pareciam remotas. Recebeuordens de fazer descer, sozinho, uma nave de três mil toneladas, num território totalmentedesconhecido. Não era um feito que gostaria de tentar nem mesmo na conhecida Lua.

— Quantos minutos para começar a frear? — perguntou Rosie. Talvez fosse mais uma ordem doque uma pergunta; era evidente que ela sabia os fundamentos da astronáutica, e Chang deixou delado suas últimas fantasias de ser capaz de enganá-la.

— Cinco — disse com relutância. — Posso avisar o resto da nave para que fique alerta?

— Eu faço isso. Dê-me o microfone... AQUI É A PONTE. COMEÇAREMOS A FREAR DENTRODE CINCO MINUTOS, REPITO, CINCO MINUTOS. CÂMBIO, ENCERRANDO.

Para os cientistas e oficiais reunidos na sala dos oficiais, a mensagem estava sendo esperada.Havia tido sorte: os monitores externos de vídeo não tinham sido desligados. Talvez Rose setivesse esquecido deles; o mais provável é que não se tivesse preocupado. Portanto, agora, comoespectadores impotentes — literalmente, um público cativo — podiam ver sua sorte desdobrar-se àsua frente.

O crescente enevoado de Europa enchia agora todo o campo da câmara traseira. Não havianenhuma abertura na sólida nebulosidade de vapor d'água recondensado de volta ao lado noturno.Isso não era importante, já que a descida seria controlada pelo radar até o último momento.Serviria, porém, para prolongar a agonia dos observadores, que tinham de confiar na luz visível.

Ninguém olhava com mais intensidade para o mundo que se aproximava do que o homem que otinha estudado com tanta frustração durante quase uma década. Rolf Van der Berg, sentado numadas frágeis cadeiras de baixa gravidade com o cinto de contenção ligeiramente apertado, mal notouo início do peso quando a freagem começou.

Em cinco segundos estavam a todo empuxe. Todos os oficiais faziam cálculos rápidos em seuscomputadores pessoais; sem acesso à Navegação, haveria muita suposição, e o ComandanteLaplace esperava que surgisse um consenso.

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— Onze minutos — anunciou ele, — supondo-se que o nível do empuxe não seja reduzido, e agoraestá no máximo. E supondo-se que ele vá ficar pairando a dez quilômetros, bem acima da camadade névoa, para depois descer direto. Isso poderia exigir mais cinco minutos.

Não precisava acrescentar que o último segundo desses cinco minutos seria o mais crítico.

Europa parecia disposta a guardar seus segredos até o último momento. Enquanto a Galaxy pairava,imóvel, acima da camada de névoa, ainda não se via a terra — ou mar — lá embaixo. Depois,durante uns poucos segundos de agonia, as telas ficaram totalmente brancas — exceto por umarápida visão do trem de aterrissagem, agora distendido, e muito raramente usado. O barulho de seudeslocamento, alguns minutos antes, tinham provocado um rápido movimento de alarme entre ospassageiros; agora podiam apenas ter esperanças de que ele cumprisse sua função.

Que espessura terá essa maldita nuvem?, perguntou-se Van der Berg. Irá até lá embaixo...

Não, estava esgarçando-se, formando tufos e novelos — e ali estava a Nova Europa, espalhada, aoque parecia, a apenas alguns milhares de metros abaixo.

Era realmente novo; não era preciso ser geólogo para perceber isso. Há quatro bilhões de anos,talvez, a jovem Terra parecia-se com isso, quando a terra e o mar se separavam para começar o seuinterminável conflito.

Ali, até 50 anos atrás, não havia terra nem mar, apenas gelo. Mas agora o gelo tinha derretido nohemisfério voltado para Lúcifer, a água resultante tinha fervido para o alto — sendo depositada nocongelamento permanente do lado noturno. A transferência de bilhões de toneladas de líquido deum hemisfério para o outro tinha, com isso, exposto antigos leitos marítimos que nunca tinhamconhecido antes a pálida luz do sol muito distante.

Algum dia, talvez, aquelas paisagens retorcidas seriam suavizadas e domadas pelo aparecimento deuma coberta de vegetação; agora eram estéreis correntes de lava e baixadas de lama quefumegavam, interrompidas ocasionalmente por massas de rochas que afloravam com camadasestranhamente inclinadas. Essa tinha sido, evidentemente, uma área de grandes perturbaçõestectônicas, o que não era de surpreender, já que tinha visto o nascimento recente de uma montanhado tamanho do Everest.

E lá estava ele — dominando o horizonte estranhamente próximo. Rolf Van der Berg sentiu umaperto no peito e um calafrio na nuca. Não mais por meio dos sentidos impessoais dosinstrumentos, mas. com seus próprios olhos, estava vendo a montanha de seus sonhos.

Como bem sabia, tinha a forma aproximada de um tetraedro inclinado, de modo que uma faceestava quase vertical. (Ela seria um belo desafio aos escaladores, mesmo nesta gravidade —especialmente porque não poderiam enfiar ferros nele...) O cume está escondido nas nuvens, egrande parte da encosta de inclinação suave que se voltava para eles estava coberta de neve.

— É isso que provocou tanta confusão? — resmungou alguém com raiva. — Parece-me umamontanha perfeitamente comum. Acho que quando já se viu uma... — Foi silenciado irritadamentecom vários "psiu".

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A Galaxy estava agora dirigindo-se lentamente para o monte Zeus, enquanto Chang buscava um bomlocal para pousar. A nave tinha pouco controle lateral, pois 90% do empuxe principal tinham deser usados apenas como suporte. Havia propelente suficiente para pairar por cerca de cincominutos, talvez; depois disso, ele ainda poderia ser capaz de baixar com segurança — mas nãopoderia partir novamente.

Neil Armstrong tinha enfrentado o mesmo dilema, quase cem anos antes. Mas não estava pilotandocom um revólver apontado para a sua cabeça.

Não obstante, nos últimos minutos Chang tinha esquecido totalmente tanto o revólver quanto Rosie.Todos os seus sentidos estavam concentrados na tarefa à sua frente; era virtualmente parte dagrande máquina que estava controlando. A única emoção humana que lhe restava não era o medo,mas a animação. Era a tarefa para a qual tinha sido treinado; era o ponto máximo de sua carreiraprofissional — embora também pudesse ser o final.

E era isso que parecia ser. O pé da montanha estava agora a menos de um quilômetro de distância— e ele ainda não tinha encontrado um local de pouso. O terreno era incrivelmente irregular,rasgado de gargantas, cheio de rochas gigantescas. Não tinha visto uma única área horizontal maiordo que uma quadra de tênis — e a linha vermelha do medidor de propelente marcava apenas trintasegundos.

Mas ali, por fim, estava uma superfície lisa — a mais lisa que tinha visto. Era sua únicaoportunidade, com o tempo disponível.

Delicadamente dirigiu o gigantesco e instável cilindro em direção à faixa de chão horizontal — queparecia estar coberta de neve, sim, estava — o jato estava soprando para longe a neve — , mas oque haveria debaixo dela? Parecia gelo — deve ser um lago congelado —, de que espessura — DEQUE ESPESSURA...

O golpe de 500 toneladas dos jatos principais da Galaxy atingiu a superfície traiçoeiramenteconvidativa. Um desenho de linhas radiantes espalhou-se rapidamente por ela; o gelo estalou egrandes pedaços começaram a se revolver. Ondas concêntricas de água fervente foram lançadaspara fora enquanto a fúria do jato penetrava no lago subitamente descoberto.

Como oficial bem treinado que era, Chang reagiu automaticamente, sem as hesitações fatais dopensamento. Sua mão esquerda abriu a barra da fechadura de segurança; a direita agarrou aalavanca vermelha por ela protegida e a puxou, colocando-a na posição de aberta.

O programa ABORTO, que dormia pacificamente desde que a Galaxy fora lançada, assumiu ocontrole e lançou a nave de volta para o espaço.

30. A GALAXY POUSA

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Na sala dos oficiais, o súbito impulso do empuxe total foi como uma suspensão de execução àúltima hora. Os oficiais horrorizados tinham visto o desmoronamento do local de pouso escolhido esabiam que só havia uma saída. Agora que Chang a tinha posto em prática, permitiram-se mais umavez o luxo de respirar.

Por quanto tempo, porém, poderiam continuar respirando, ninguém podia prever. Só Chang sabia sea nave tinha propelente suficiente para atingir uma órbita estável; e mesmo que tivesse, pensou,com pessimismo, o Comandante Laplace, a lunática com o revólver poderia mandá-lo descernovamente. Embora ele não acreditasse por um minuto que ela fosse realmente lunática: sabiaexatamente o que estava fazendo.

Subitamente, houve uma modificação no empuxe.

— O motor n" 4 foi cortado — disse um oficial engenheiro.

— Não me surpreende, provavelmente por superaquecimento. Não tem capacidade para esseesforço, neste nível.

Não houve, claro, nenhuma sensação de mudança direcional — o menor empuxe se fazia ainda aolongo do eixo da nave —, mas as imagens nas telas dos monitores se inclinaram loucamente. AGalaxy continuava a subir, mas não mais verticalmente. Tornara-se um míssil balístico, visandoalgum alvo desconhecido em Europa.

Mais uma vez, o empuxe caiu abruptamente; nos vídeo-monitores, o horizonte nivelou-se outra vez.

— Ele cortou o motor oposto, a única maneira de evitar uma trajetória de lado — mas será quepode manter a altitude? Bom piloto!

Os cientistas que olhavam atentamente não sabiam o que motivara esta última observação. Asimagens dos monitores tinham desaparecido completamente, obscurecidas por uma ofuscantecerração branca.

— Ele está descarregando propelente excedente, aliviando a nave...

A propulsão reduziu-se a zero; a nave estava numa queda livre. Em poucos segundos, passou pelaenorme nuvem de cristais de gelo criada quando o propelente despejado explodiu no espaço. E láembaixo, aproximando-se lentamente a um oitavo de aceleração gravitacional, estava o mar centralde Europa. Pelo menos Chang não teria de escolher um local de pouso: de agora em diante, seria amanobra-padrão, tão conhecida quanto um jogo de vídeo a milhões de pessoas que nunca foram aoespaço e nunca iriam.

Bastava apenas equilibrar a propulsão contra a gravidade, de modo que a nave em descidachegasse à velocidade zero ao atingir a altitude zero. Havia uma margem de erro, mas pequena,mesmo para os pousos aquáticos preferidos pelos primeiros astronautas americanos e que Changestava agora copiando com relutância. Se cometesse um erro — e depois das últimas horasdificilmente poderia ser criticado por isso — nenhum computador lhe diria: "Desculpe, vocêcolidiu. Quer tentar outra vez? Responda SIM/NÃO...”

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O segundo-oficial Yu e seus dois companheiros, esperando com suas armas improvisadas do ladode fora da ponte, talvez fossem os responsáveis pela mais dura de todas as tarefas. Não tinhammonitores para dizer-lhes o que estava acontecendo e dependiam das mensagens vindas da sala dosoficiais. Tampouco colheram qualquer informação pelo microfone espião, o que não era surpresa.Chang e McCullen tinham pouquíssimo tempo para conversar, ou necessidade de fazê-lo.

O pouso foi soberbo, praticamente sem nenhum tranco. A Galaxy afundou mais alguns metros,depois subiu novamente, flutuando na vertical e — graças ao peso dos monitores — na posiçãocerta.

Foi então que os ouvintes tiveram os primeiros sons inteligíveis pelo microfone espião.

— Você é louca, Rosie — disse a voz de Chang, mais numa resignação de cansaço do que comraiva. — Espero que esteja satisfeita. Você nos matou a todos.

Houve um tiro de revólver, depois um longo silêncio.

Yu e seus colegas esperaram, pacientes, sabendo que alguma coisa teria de acontecer logo.Ouviram então os ferrolhos sendo abertos e agarraram com mais firmeza as barras de metal quetinham nas mãos. Rosie poderia atingir um deles, mas não todos.

A porta abriu-se muito lentamente.

— Desculpem — disse o segundo-oficial Chang. — Devo ter desmaiado por um minuto.

Depois, como um homem comum, ele desmaiou outra vez.

31. O MAR DA GALILÉIA

Não consigo compreender como um homem pode ser médico — disse o Comandante Laplaceconsigo mesmo. Ou papa-defuntos. Eles têm certas tarefas desagradáveis a fazer...

— Bem, encontrou alguma coisa?

— Não, comandante. E claro que não tenho o equipamento adequado. Há certos implantes que sópodem ser localizados com microscópio — ou pelo menos, assim dizem. Mas só se forem depequena extensão.

— Talvez com um transmissor relê em algum lugar da nave. Floyd sugeriu que déssemos umabusca. Você tirou as impressões digitais e... outras identificações?

— Sim. Quando contatarmos Ganimedes, vamos transmiti-las junto com os documentos dela. Masduvido que venhamos a saber quem era Rosie, ou para quem trabalhava. Ou por quê.

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— Pelo menos ela demonstrou certo instinto humano — disse Laplace, pensativamente. — Deviater sabido que falhara quando Chang puxou a alavanca de emergência. Poderia tê-lo matado emlugar de deixá-lo pousar.

— O que de nada nos adianta, creio. Vou dizer-lhe o que aconteceu quando Jenkins e eu jogamos ocadáver pelo escoadouro do lixo.

O doutor apertou os lábios numa careta de desagrado.

— Você estava certo, é claro. Era a única coisa a fazer. Bem, não nos demos ao trabalho de atar-lhe nenhum peso; ele flutuou durante alguns minutos. Ficamos a ver se se afastaria da nave, eentão...

O doutor parecia procurar as palavras.

— Então o quê?

— Alguma coisa saiu da água. Como um bico de papagaio, mas cem vezes maior. Pegou... Rosie...com uma bicada, e desapareceu. Temos companhia impressionante aqui; mesmo que pudéssemosrespirar lá fora, eu certamente não recomendaria a natação.

— Da ponte para o comandante — disse o oficial de serviço. — Uma grande agitação na água.Câmera três... passo-lhe a imagem.

— Foi a coisa que vi! — gritou o doutor. Sentiu um estremecimento súbito ao ter o pensamentoinevitável: Espero que não tenha vindo buscar mais.

De repente, uma vasta massa rompeu a superfície do oceano e arqueou-se em direção ao céu. Porum momento, toda a forma monstruosa ficou suspensa entre a água e o ar.

O familiar pode ser tão chocante quanto o estranho — quando está no lugar errado. Tanto o médicoquanto o comandante exclamaram simultaneamente:

— É um tubarão!

Houve tempo apenas para notar algumas diferenças sutis — além do monstruoso bico de papagaio— antes que o gigante caísse de volta no mar. Havia mais um par de nadadeiras — e parecia nãoter guelras. Também não tinha olhos, mas de cada lado do bico havia curiosas protuberâncias quepoderiam ser outros tipos de órgãos sensórios.

— Evolução convergente, é claro — disse o médico. — Mesmos problemas, mesmas soluções, emqualquer planeta. Veja a Terra: tubarões, golfinhos, ictiossauros, todos os predadores oceânicosdevem ter as mesmas formas básicas. Aquele bico, porém, me intriga...

— O que ele está fazendo agora?

A criatura tinha aparecido de novo, mas agora movia-se muito lentamente, como se estivesseesgotada depois daquele salto gigantesco. De fato, parecia estar com um problema, até mesmo emagonia. Batia a cauda no mar, sem procurar mover-se em nenhuma direção precisa.

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De repente, ela vomitou a sua última refeição, voltou-se de barriga para cima e ficou inerteflutuando na onda suave.

— Ah, meu Deus — disse o comandante, com a voz cheia de nojo. — Acho que sei o queaconteceu.

— Bioquímica totalmente estranha — disse o médico, que também parecia abalado peloespetáculo. — Rosie acabou fazendo uma vítima, afinal de contas.

O mar da Galiléia tinha sido assim chamado em homenagem ao descobridor de Europa, que por suavez recebera esse nome segundo um mar muito menor, em outro mundo.

Era um mar muito novo, com menos de 50 anos. E como a maioria dos recém-nascidos, podia sermuito barulhento. Embora a atmosfera de Europa ainda fosse muito rarefeita para provocar venda-vais de verdade, uma brisa constante soprava da terra que o envolvia em direção à zona tropical,no ponto acima do qual Lúcifer ficava estacionário. Ali, no meio-dia perpétuo, a água ferviacontinuamente, embora a uma temperatura, naquela atmosfera rarefeita, que mal seria suficientepara fazer uma boa xícara de chá.

Felizmente, a região vaporenta e turbulenta imediatamente sob Lúcifer ficava a dois milquilômetros de distância. A Galaxy tinha pousado numa área relativamente calma, a menos de cemquilômetros da terra mais próxima. Na velocidade máxima, poderia cobrir essa distância numafração de segundo; mas agora, enquanto vagava sob as nuvens baixas do céu permanentementefechado de Europa, a terra parecia tão distante quanto o mais remoto quasar. Para tornar as coisasainda piores, se possível, o eterno vento vindo da terra estava empurrando a nave mais para o meiodo mar. E mesmo que ela conseguisse prender-se a alguma praia virgem desse novo mundo,poderia não estar em melhor situação do que agora.

Estaria, porém, mais confortável; as naves espaciais, embora admiravelmente à prova d'água,raramente são boas para o mar. A Galaxy flutuava em posição vertical, subindo e descendosuavemente mas de maneira perturbadora; metade da tripulação já estava enjoada.

A primeira decisão do Comandante Laplace, depois de examinar os relatórios dos danos, foi fazerum apelo a todos os que tinham experiência com barcos — de qualquer tamanho ou forma. Pareciarazoável supor que entre trinta engenheiros astronáuticos e cientistas espaciais houvesse um númeroconsiderável de talentos de navegadores marítimos, e ele localizou imediatamente cincomarinheiros amadores e mesmo um profissional — o comissário de bordo Frank Lee, que começarasua carreira com os navios Tsung, passando depois para o espaço.

Embora os comissários de bordo estejam mais habituados a manejar máquinas de contabilidade(com freqüência, no caso de Frank Lee, um ábaco de marfim, de 200 anos) do que instrumentos denavegação, ainda assim tinham de passar num exame de navegação básica. Lee nunca tiveraoportunidade de testar suas habilidades marítimas;

agora, a quase um bilhão de quilômetros do mar do Sul da China, essa oportunidade chegara.

— Deveríamos encher os tanques de propelente — disse ele ao comandante. — Com isso

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baixaremos, e não ficaremos jogando tanto.

Parecia tolice deixar entrar mais água na nave, e o comandante hesitou.

— E se encalharmos?

Ninguém fez o comentário óbvio, "Que diferença faz?". Sem qualquer discussão séria, admitia-seque estariam melhor em terra — se pudessem alcançá-la.

— Sempre podemos esvaziar os tanques novamente. Teremos de fazer isso, de qualquer modo,quando chegarmos à Terra para colocar a nave em posição horizontal. Graças a Deus temosenergia...

Sua voz foi baixando, e todos sabiam o que ele queria dizer. Sem o reator auxiliar, que mantinha ossistemas de apoio à vida, estariam todos mortos em questão de horas. Agora — se não houvesse umcolapso — a nave poderia mantê-los vivos indefinidamente.

Por fim, é claro, morreriam de fome; já haviam tido uma prova dramática de que não haviaalimento, mas apenas veneno, nos mares de Europa.

Pelo menos estabeleceram contato com Ganimedes, de modo que toda a raça humana sabia de suasorte. Os melhores cérebros do Sistema Solar estariam agora tentando salvá-los. Se falhassem, ospassageiros e a tripulação da Galaxy teriam o consolo de morrer com todas as luzes dapublicidade.

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IV-ÀBEIRADACRATERA

32. DIVERSÃO

"A última notícia — disse o Comandante Smith aos seus companheiros reunidos — é de que aGalaxy está flutuando e em condições razoavelmente boas. Um dos membros da tripulação, umaatendente, foi morta. Não sabemos os detalhes. Mas todos os demais estão bem.

"Os sistemas da nave estão todos em funcionamento; há poucos vazamentos, mas foram controlados.O Comandante Laplace diz que não correm perigo imediato, mas o vento os está afastando da terra,na direção do centro do lado diurno. Isso não é um problema sério, há várias ilhas grandes que elesestão praticamente certos de alcançar antes. No momento, estão a 90 quilômetros da terra maispróxima. Viram alguns animais marinhos grandes, mas esses demonstraram nenhuma hostilidade.

"Se não houver outros acidentes, eles devem ser capazes de sobreviver durante vários meses, atéacabar a comida — que está sendo agora rigorosamente racionada, é claro. Mas de acordo com oComandante Laplace, o moral ainda é alto.

"Bem, agora é que vem a nossa parte, Se voltarmos à Terra imediatamente, para reabastecimento erevisão, podemos alcançar Europa em órbita retropropulsionada em 85 dias. A Universe é a únicanave atualmente comissionada que pode descer ali e partir novamente com uma razoável carga útil.As naves auxiliares de Ganimedes talvez possam lançar abastecimentos, mas apenas isso —embora tal medida possa representar a diferença entre a vida e a morte.

"Lamento, senhoras e senhores, que a nossa visita tenha sido reduzida, mas creio que concordarãoque lhes mostramos tudo o que prometemos. E tenho certeza de que aprovarão a nossa nova missão— embora as possibilidades de êxito sejam, francamente, bastante pequenas. Isso é tudo, nomomento." —Dr. Floyd, posso falar consigo? — perguntou.

Enquanto os outros deixavam lenta e tristemente a sala principal — cenário de reuniões muitomenos pressagas — o comandante examinou uma prancheta cheia de mensagens. Havia aindaocasiões em que as palavras impressas em pedaços de papel eram o meio de comunicação maisconveniente, mas até mesmo aí a tecnologia deixara a sua marca. As folhas que o comandanteestava lendo eram feitas do material multifax reutilizável indefinidamente, que tanto contribuiu parareduzir a carga da humilde cesta de papéis.

— Heywood — disse ele, quando as formalidades terminaram. — Como você pode imaginar, estáhavendo uma grande agitação. E há muita coisa acontecendo que não entendo.

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— Eu também — respondeu Floyd. — Alguma coisa de Chris?

— Ainda não, mas Ganimedes retransmitiu sua mensagem, que ele já deve ter recebido. Ascomunicações particulares não são prioritárias, como pode imaginar. Mas é claro que o seu nomeabriu caminho.

— Obrigado, comandante. Posso ser-lhe útil em alguma coisa?

— Não, realmente não. Se puder, eu aviso.

Foi praticamente a última vez, durante bastante tempo, em que se falaram cordialmente. Dentro depoucas horas o Dr. Heywood Floyd passaria ser “Aquele velho doido!'', e o “Motim da Universo”,de curta duração, teria começado — liderado pelo comandante.

Não foi, na realidade, idéia de Heywood Floyd, mas ele gostaria que tivesse sido...

O segundo-oficial Roy Jolson era conhecido como "Estrelas", o oficial navegador. Floyd mal oconhecia de vista, e nunca teve oportunidade de dizer mais do que "Bom-dia" para ele. Floyd ficou,portanto, muito surpreso quando o navegador bateu timidamente à porta de sua cabina.

Ele levava uma série de mapas e parecia pouco à vontade. Não podia estar constrangido napresença de Floyd, com a qual todos a bordo já se tinham acostumado. Portanto, devia haver outrarazão.

— Dr. Floyd — começou ele, num tom de tal preocupação e premência que lembrava o vendedorcujo futuro depende totalmente de realizar o negócio que tem nas mãos. — Gostaria de ter suaopinião e sua ajuda.

— Sem dúvida, mas de que se trata?

Jolson desdobrou o mapa mostrando a posição de todos os planetas dentro da órbita de Lúcifer.

— Seu velho truque de juntar a Leonov e a Discovery, para sair de Júpiter antes que explodisse,deu-me esta idéia.

— Não foi meu o truque. Walter Curnow é quem pensou nele.

— Ah, eu não sabia. É claro que não temos outra nave aqui para nos impulsionar. Mas temos algomuito melhor.

— O que quer dizer? — perguntou Floyd, espantado.

— Não ria. Por que voltar à Terra para carregar propelente, quando o "Velho Fiel" está lançandotoneladas dele a cada segundo, a poucas centenas de metros de distância? Se aproveitássemos essafonte, poderíamos alcançar Europa não em três meses, mas em três semanas.

O conceito era tão óbvio, e ao mesmo tempo tão ousado, que Floyd quase perdeu o fôlego. Pôdever imediatamente meia dúzia de objeções, mas nenhuma delas parecia definitiva.

— O que o comandante acha da idéia?

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— Ainda não falei com ele; é por isso que preciso de sua ajuda. Gostaria que conferisse os meuscálculos, e em seguida apresentasse a ele a idéia. Ele me rejeitaria, tenho certeza, e não o culpo. Seeu fosse o comandante, acho que faria a mesma coisa...

Houve um longo silêncio na pequena cabina. Depois, Heywood Floyd disse lentamente:

— Deixe-me dizer-lhe todas as razões por que isso é impossível, e depois você me dirá por queestou errado.

O segundo-oficial Jolson conhecia o seu comandante: Smith nunca tinha ouvido sugestão maisdoida em toda a sua vida...

Suas objeções eram todas bem fundamentadas e não pareciam ter nenhum vestígio da síndrome do"Não foi inventado aqui".

— Ah, sim, poderia funcionar, teoricamente — admitiu ele. — Mas pense nos problemas práticos,homem! Como colocar o material nos tanques?

— Conversei com os engenheiros. Levaríamos a nave até a beira da cratera — é perfeitamenteseguro ficar a uns 50 metros dela. Há encanamentos na área inacabada que podem ser retirados —construiríamos uma ligação com o "Velho Fiel" e esperaríamos até que ele funcionasse. Sabe comoele é pontual e bem comportado.

— Mas nossas bombas não podem operar num quase vácuo!

— Não precisamos delas, podemos confiar em que a velocidade do jato do gêiser nos proporcioneum influxo de pelo menos cem quilos por segundo. O "Velho Fiel" fará todo o trabalho.

— Ele dará apenas cristais de gelo e vapor, não água líquida.

— Ela se condensará quando chegar a bordo.

— Você realmente pensou em tudo, não? — disse o comandante, com relutante admiração. — Masnão acredito que funcione. Entre outras coisas, será a água bastante pura? E os contaminantes,principalmente partículas de carbono?

Floyd não podia deixar de sorrir. O Comandante Smith estava ficando obsessivo com a sujeira.

— Podemos filtrar as grandes. O resto, não afetará a reação. Ah, sim — a proporção de isótoposde hidrogênio aqui parece melhor do que na Terra. Podemos até mesmo conseguir um impulsoextra.

— O que seus colegas acham da idéia? Se rumarmos diretamente para Lúcifer, poderão passarmeses antes que eles cheguem em casa...

— Não falei com eles. Mas que importa isso, quando tantas vidas estão em jogo? Podemos atingir aGalaxy 70 dias antes do prazo! Setenta dias! Pense no que pode acontecer em Europa durante essetempo!

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— Estou perfeitamente ciente do fator tempo — respondeu imediatamente o comandante. — Ele seaplica também a nós. Podemos não ter provisões para uma viagem tão extensa.

Ele agora está catando pulgas, pensou Floyd, e deve saber que eu sei disso. Melhor termos tato...

— Para umas duas semanas? Não posso acreditar que tenhamos uma reserva tão pequena. Dequalquer modo, não iremos comer muito. Para alguns de nós fará bem um racionamento por algumtempo.

O comandante conseguiu dar um sorriso gelado:

— Você pode dizer isso para Willis e Mihailovich. Mas acho que a idéia é louca.

— Pelo menos podia nos deixar apresentá-la aos proprietários da nave. Gostaria de falar com SirLawrence.

— Não posso impedi-lo, é claro — disse o Comandante Smith, num tom sugestivo de que desejariapoder. — Mas sei exatamente o que ele dirá.

Estava completamente errado.

Sir Lawrence Tsung não fazia uma aposta há trinta anos. Isso já não estava de acordo com suaaugusta posição no mundo do comércio. Mas quando jovem, tinha, com freqüência, passadomomentos de comedida emoção no hipódromo de Hong Kong, antes que um governo puritano ofechasse num acesso de moral pública. Era típico da vida, pensava Sir Lawrence por vezestristemente, que quando podia apostar, não tinha dinheiro, e agora não podia, pois o homem maisrico do mundo tinha de dar o bom exemplo.

Não obstante, como ninguém sabia melhor do que ele, toda a sua carreira empresarial tinha sidoapenas um longo jogo. Tinha feito o máximo para controlar as possibilidades negativas, recolhendoas melhores informações e ouvindo os especialistas que, na sua intuição, seriam os mais capazes dedar o melhor conselho. Em geral, conseguiria safar-se em tempo quando eles estavam errados, mashavia sempre um elemento de risco.

Agora, ao ler o memorando de Heywood Floyd, sentiu novamente a velha emoção que não conheciadesde que via os cavalos fazendo a curva a galope para entrar na reta final. Ali estava realmenteum jogo — talvez o último e o maior de sua carreira — embora ele não ousasse dizer nunca à suaJunta de Diretores. E menos ainda a Lady Jasmine.

— Bill, o que acha? — perguntou.

Seu filho (comedido e confiável, mas sem aquela centelha vital que talvez já não fosse necessáriaem sua geração) deu-lhe a resposta que esperava.

— A teoria é bastante lógica. A Universe pode fazê-lo — no papel. Mas já perdemos uma nave.Estaremos colocando a outra em risco.

— De qualquer modo ela irá a Júpiter — Lúcifer.

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— Sim, mas depois de uma revisão completa em órbita da Terra. E você compreende o que essamissão direta sugerida exigirá? Ela terá de quebrar todos os recordes, fazendo mais de milquilômetros por segundo!

Era a pior coisa que ele poderia ter dito: mais uma vez, o estrépito dos cascos soou nos ouvidos deseu pai. Mas Sir Lawrence disse apenas:

— Não haverá nenhum risco em deixá-los fazer alguns testes, embora o Comandante Smith sejatotalmente contra. Ameaça até mesmo demitir-se. Enquanto isso, veja com o Lloyds a situação —talvez tenhamos de desistir de nossa apólice da Galaxy.

Especialmente, poderia ter acrescentado, se vamos lançar a Universe no pano verde como umaficha ainda maior.

E estava preocupado com o Comandante Smith. Agora que Laplace estava perdido em Europa,Smith era o melhor comandante que tinha.

33. PARADA DE REABASTECIMENTO

— Pior trabalho que já vi desde que deixei a universidade — resmungou o engenheiro-chefe. —Mas é o melhor que podemos fazer no momento.

O encanamento improvisado estendia-se por 50 metros de rocha ofuscante, incrustada de elementosquímicos, até o buraco, então, tranqüilo, do "Velho Fiel", onde terminava num funil retangular coma ponta voltada par baixo. O Sol acabara de aparecer sobre os morros e já o chão começava atremer levemente, quando os reservatórios subterrâneos — ou subhaleianos — do gêiser sentiramos primeiros calores.

Olhando da sala de observação, Heywood Floyd quase não podia crer que tanta coisa tivesseacontecido em apenas 24 horas. Em primeiro lugar, a nave se tinha dividido em duas facções rivais— uma chefiada pelo comandante, e a outra liderada forçosamente por ele mesmo. Os dois gruposvinham sendo mutuamente corteses, e não chegaram às vias de fato, mas Floyd tinha descoberto queem certos círculos tinha ganho o apelido de "Suicida". Não era uma honra que lhe agradasseespecialmente.

E no entanto, ninguém podia apontar nada fundamentalmente errado na Manobra Floyd-Jolson.(Esse nome também era injusto: tinha insistido para que Jolson recebesse todo o crédito sozinho,mas ninguém lhe dera atenção. E Mihailovich tinha perguntado: "Você não está disposto a partilhardas responsabilidades?")

O primeiro teste seria realizado dentro de 20 minutos, quando o "Velho Fiel" saudasse, com algumatraso, a aurora. Mas mesmo que tivesse êxito, e os tanques de propelente começassem a encher-

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se de água pura e cintilante, em lugar do líquido grosso e lamacento previsto pelo ComandanteSmith, o caminho para Europa ainda não estava aberto.

Um fator menor, mas não destituído de importância, eram os desejos dos ilustres passageiros. Elesesperavam estar em casa dentro de duas semanas; agora, para sua surpresa e em certos casos,consternação, enfrentavam a perspectiva de uma perigosa missão a meio caminho do outro extremodo Sistema Solar — e, mesmo que tivesse êxito, sem uma data fixa para voltar à Terra.

Willis ficou desolado; toda a sua programação estaria totalmente comprometida. Andava de umlado para o outro resmungando sobre processos judiciais, mas ninguém se solidarizava com ele.

Greenberg, por outro lado, estava muito satisfeito: agora voltaria realmente à atividade espacial! EMihailovich — que passava muito tempo compondo barulhentamente em sua cabina — que não eraà prova de som — estava igualmente satisfeito. Tinha certeza de que a mudança de planosestimularia sua criatividade a novos feitos.

Maggie M adotou uma atitude filosófica: — Se isso pode salvar muitas vidas, como alguém podefazer objeções? — disse ela, olhando significativamente para Willis.

Quanto a Yva Merlin, Floyd empenhou-se em explicar-lhe a questão, e descobriu que elacompreendia a situação notavelmente bem. E foi Yva, para grande espanto seu, quem fez a perguntade que ninguém mais parecia ter-se lembrado: "E suponhamos que os europanos não nos deixempousar — nem mesmo para salvar nossos amigos?”

Floyd olhou para ela francamente espantado; ainda tinha dificuldades de aceitá-la como um serhumano real, e nunca sabia quando Yva se sairia com uma observação brilhante ou uma tolicecompleta.

— É uma pergunta muito boa, Yva. Pode ter a certeza de que estou refletindo sobre ela.

Dizia a verdade, pois nunca poderia mentir para Yva Merlin: seria, de alguma forma, um ato desacrilégio.

Os primeiros fiapos de vapor estavam surgindo agora na boca do gêiser. Subia em estranhastrajetórias no vácuo, evaporando-se à forte luz do sol.

O "Velho Fiel" tossiu novamente e limpou a garganta. Uma Coluna de uma brancura de neve — esurpreendentemente compacta — de cristais de gelo e gotículas d'água subiu rapidamente para océu. Todos os instintos terrestres esperavam que ela se inclinasse e caísse, mas é claro que issonão acontecia: continuava sempre para cima, abrindo-se um pouco apenas, até fundir-se no vasto ebrilhante envelope da cabeleira do cometa, ainda em expansão. Floyd notou, com satisfação, que oencanamento começava a vibrar com a entrada do fluido.

Dez minutos depois, houve um conselho de guerra na ponte. O Comandante Smith, ainda irritado,cumprimentou Floyd com um leve aceno de cabeça; seu Número Dois, um pouco constrangido, foiquem fez a exposição.

— Bem, funciona surpreendentemente bem. Neste ritmo, podemos encher os tanques em vinte horas,

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embora talvez tenhamos de firmar melhor o encanamento.

— E a sujeira? — perguntou alguém.

O segundo-oficial mostrou um tubo transparente cheio de um líquido incolor.

— Os filtros eliminaram tudo, ficando apenas uns poucos mícrons. Para estarmos perfeitamenteseguros, filtraremos duas vezes, passando de um tanque para outro. Não teremos piscina, receio, atéque passemos Marte.

Isso provocou a risada tão necessária, e até mesmo o comandante relaxou um pouco.

— Faremos funcionar os motores com a propulsão mínima, para verificar se não há anomaliasoperacionais com a H20 de Halley. Se houver, deixaremos de lado todo o plano e voltaremos paraa Terra usando a boa água da Lua, F.O.B. Aristarco.

Houve um daqueles silêncios nos quais todos esperam ao mesmo tempo que alguém fale. OComandante Smith foi quem rompeu o hiato embaraçoso.

— Como todos sabem — disse ele, — não estou satisfeito com esse plano. Na verdade...

Mudou abruptamente de rumo. Todos sabiam que ele tinha pensado em enviar a Sir Lawrence seupedido de demissão, embora nas circunstâncias isso fosse um gesto um tanto sem sentido.

— Algumas coisas, porém, aconteceram nas últimas horas. O proprietário concorda com o projeto,se não surgir nenhuma objeção fundamental em nossos testes. E — eis a grande surpresa, sobre aqual sei tanto quanto vocês — o Conselho Espacial Mundial não só aprovou, como pediu quefizéssemos a viagem, assumindo todas as despesas decorrentes dela. A razão disso os senhorespodem supor tanto quanto eu.

— Mas tenho ainda uma preocupação...

Olhou com ar de dúvida para a pequena bisnaga d'água que Heywood Floyd estava agora olhandocontra a luz, e sacudindo levemente.

— Sou um navegador, e não um químico. Este material parece limpo, mas o que fará nosrevestimentos dos tanques?

Floyd nunca compreendeu por que agiu daquela maneira: tal precipitação nada tinha a ver com suamaneira de ser. Talvez estivesse simplesmente impaciente com todo aquele debate e quisessecontinuar com o trabalho. Ou talvez achasse que o comandante precisava melhorar um pouco a fibramoral.

Com um rápido movimento, destampou o tubo e engoliu aproximadamente 20 centímetros cúbicosdo cometa de Halley.

— Aí está a sua resposta, comandante — disse, quando acabou.

— Essa foi uma das atitudes mais idiotas que já vi — disse o médico de bordo, meia hora depois.

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— Você sabe que há cianidos e cianógenos e Deus sabe o que mais nesse material?

— Claro que sei — riu Floyd. — Vi as análises. Apenas umas poucas partes por milhão. Não hámotivo para preocupação. Mas eu tive uma surpresa — acrescentou com pesar.

— E qual foi?

— Se pudéssemos transportar esse material para a Terra, ganharíamos uma fortuna vendendo-ocomo Purgante Natural Halley.

34. LAVAGEM DE CARRO

Agora que a decisão estava tomada, toda a atmosfera a bordo da Universe modificou-se. Não houvemais discussões; todos cooperavam ao máximo, e poucas pessoas puderam dormir muito durante asduas rotações seguintes do núcleo — cem horas do tempo da Terra.

O primeiro dia de Halley foi dedicado a uma coleta ainda cautelosa do "Velho Fiel", mas quando ogêiser cessou sua atividade ao cair da noite, a técnica tinha sido totalmente dominada. Mais de miltoneladas de água haviam sido armazenadas a bordo; o próximo período de dia daria de sobra parao restante.

Heywood Floyd procurou não interferir com o comandante, pois não desejava levar longe demais asua sorte. De qualquer modo, Smith tinha mil detalhes para fiscalizar. Mas o cálculo da nova órbitanão estava com eles: tinha sido verificado duas vezes na Terra.

Não havia dúvida, agora, de que a idéia era brilhante, e a economia ainda maior do que Jolsonprevira. Reabastecendo no Halley, a Universe eliminou as duas principais mudanças de órbitanecessárias ao encontro com a Terra; a nave podia agora ir diretamente ao seu objetivo, sobaceleração máxima, poupando muitas semanas. Apesar dos possíveis riscos, todos agora aplaudiamo plano.

Bem, quase todos.

Na Terra, a sociedade "Fora do Halley!", rapidamente organizada, ficou indignada. Seus membros(apenas 236, mas que sabiam fazer publicidade) não consideravam justificado o uso de um corpoceleste, nem mesmo para salvar vidas. Recusaram-se a se acalmar até mesmo quando lhesobservaram que a Universe estava apenas recolhendo material que seria perdido pelo cometa dequalquer maneira.

Argumentavam que defendiam um princípio. Seus irados comunicados proporcionaram a bordo daUniverse momentos de riso que eram muito necessários.

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Cauteloso como sempre, o Comandante Smith realizou os primeiros testes a baixa potência com umdos propulsores do controle de atitude. Se ficasse inutilizável, a nave poderia passar sem ele. Nãohouve anomalias: o motor comportou-se exatamente como se estivesse funcionando com a melhorágua destilada das minas lunares.

Depois, testou o motor central principal, o Número Um: se fosse danificado, não haveria perda dacapacidade de manobrar — apenas de propulsão total. A nave ainda seria totalmente controlável,mas apenas com os quatro motores restantes a aceleração máxima diminuiria em 20%.

Mais uma vez não houve problemas, e até mesmo os céticos começaram a ser corteses comHeywood Floyd e o segundo-oficial Jolson deixou de ser um pária social.

A partida foi marcada para o fim da tarde, pouco antes do momento em que o "Velho Fiel" cessavaa sua atividade. (Estaria ele ali para saudar os próximos visitantes, dentro de 76 anos?, perguntou-se Floyd. Talvez: havia indícios de sua existência já nas fotografias de 1910.)

Não houve contagem regressiva, ao estilo dramático e antigo de Cabo Canaveral. Quando se deupor satisfeito de que tudo estava pronto, o Comandante Smith aplicou apenas uma propulsão decinco toneladas ao Número Um, e a Universe subiu lentamente, afastando-se do centro do cometa.

A aceleração foi modesta, mas o espetáculo pirotécnico foi espantoso — e para a maioria dosobservadores, totalmente inesperado. Até então, os jatos dos motores principais tinham sido quaseinvisíveis, sendo inteiramente constituídos de oxigênio e hidrogênio altamente ionizados. Mesmoquando — a centenas de quilômetros de distância — os gases se tinham resfriado o suficiente paracombinações químicas, mesmo assim nada se via, porque a reação não provocava luz no espectrovisível.

Mas agora a Universe estava subindo e afastando-se do Halley numa coluna de incandescênciademasiado brilhante para ser vista a olho nu; parecia quase como uma sólida pilastra de chamas.Onde a chama atingia o chão, rochas explodiam para cima e para os lados; ao afastar-se parasempre, a Universe deixava sua assinatura, como um grafite cósmico, no núcleo do cometa deHalley.

A maioria dos passageiros, habituados a subir para o espaço sem meio de apoio visível, reagiucom considerável susto. Floyd esperou a explicação inevitável; um de seus prazeres menores eraver Willis cometer algum erro científico, mas isso era raro. E quando acontecia, ele tinha sempreuma desculpa razoável.

— Carbono — disse ele. — Carbono incandescente, tal como na chama de uma vela, mas um poucomais quente.

— Um pouco — murmurou Floyd.

— Já não estamos queimando, se me permite a expressão — Floyd deu de ombros —, água pura.Embora tenha sido cuidadosamente filtrada, há nela muito carbono coloidal. Bem como compostosque só poderiam ser eliminados pela destilação.

— É impressionante, mas estou um pouco preocupado — disse Greenberg. — Toda essa radiação

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não poderá afetar os motores e aquecer demais a nave?

Era uma boa pergunta, e provocou certa ansiedade. Floyd esperou que Willis a respondesse, mas oesperto repórter passou a bola diretamente para ele:

— Preferiria que o Dr. Floyd falasse sobre isso, pois afinal de contas a idéia foi dele.

— Foi de Jolson, por favor. Mas é uma boa observação. Não há, porém, nenhum problema. Quandoestivermos em propulsão total, todos esses fogos de artifício estarão milhares de quilômetros paratrás. Não teremos de nos preocupar com eles.

A nave estava agora pairando a cerca de dois quilômetros acima do núcleo; se não fosse o brilhodo escapamento, toda a face iluminada do pequeno mundo estaria visível lá embaixo. Naquelaaltitude — ou distância — a coluna do "Velho Fiel" alargara-se ligeiramente. Parecia, percebeuFloyd de repente, um dos chafarizes gigantescos que ornamentam o lago Genebra. Não os via há 50anos, e ficou pensando se ainda existiriam.

O comandante Smith estava testando os controles, girando lentamente a nave sobre seus eixoslateral e vertical. Tudo parecia funcionar perfeitamente.

— Missão Tempo Zero em dez minutos — anunciou. — Gravidade ponto um por 50 horas; depois,ponto dois até a Virada — a 150 horas deste momento.

Fez uma pausa para que suas palavras fossem bem assimiladas: nenhuma outra nave tentara jamaismanter uma aceleração contínua tão alta por tanto tempo. Se a Universe não pudesse frearadequadamente, também ela entraria nos livros de história como a primeira nave interestelartripulada.

A nave estava agora voltando-se para a horizontal — se tal palavra podia ser usada naqueleambiente quase sem gravidade — e apontava diretamente para a coluna branca de névoa e cristaisde gelo que ainda se projetava do cometa. A Universe começou a aproximar-se dela.

— O que ele está fazendo? — perguntou Mihailovich, preocupado.

Prevendo obviamente tais perguntas, o comandante falou novamente. Parecia ter recuperadototalmente seu bom humor, e havia um tom divertido em sua voz.

— Apenas um servicinho antes de partirmos. Não se preocupem, sei exatamente o que estoufazendo. E o Número Dois concorda comigo, não é?

— Sim, senhor; embora, a princípio, pensasse ser brincadeira.

— O que está acontecendo lá em cima na ponte? — perguntou Willis, pela primeira vezdesorientado.

Agora a nave girava lentamente, embora ainda se movesse apenas à velocidade de caminhada emdireção ao gêiser. Dessa distância, então menos de cem metros, ele lembrava a Floyd ainda maisaqueles distantes chafarizes de Genebra.

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Ele não há de estar nos levando para dentro do...

... mas estava. A Universe vibrou suavemente ao penetrar na coluna de espuma que subia. Aindarolava muito lentamente, como se estivesse perfurando seu caminho pelo gigantesco gêiser. Osvídeo-monitores e as janelas de observação mostravam apenas uma brancura leitosa.

Toda a operação não poderia ter durado mais de dez segundos, e já saíam do outro lado. Houveuma explosão rápida de aplauso espontâneo dos oficiais na ponte. Os passageiros, porém —incluindo Floyd —, ainda se sentiam ludibriados.

— Agora estamos prontos para partir — disse o comandante, com grande satisfação. — Temos umabela nave limpa, outra vez.

Durante a meia hora que se seguiu, mais de dez mil observadores amadores na Terra e na Luainformaram que o brilho do cometa tinha duplicado. A Rede de Observação do Cometa entrou emcolapso com grande satisfação. — Temos uma bela nave limpa, outra vez.

O público, porém, gostou muito, e alguns dias depois a Universe proporcionou um espetáculo aindamelhor, algumas horas antes do amanhecer.

Ganhando velocidade em mais de dez mil quilômetros por hora, a cada hora, a nave estava agorabem dentro da órbita de Vênus. Iria aproximar-se ainda mais do Sol antes que ele fizesse a suapassagem do periélio — muito mais depressa do que qualquer corpo celeste natural — e sedirigisse para Lúcifer.

Ao passar entre a Terra e o Sol, sua cauda de mil quilômetros de carbono incandescente foi tãovisível quanto uma estrela da quarta magnitude, mostrando um perceptível movimento em contrastecom as constelações do céu do amanhecer, no curso de uma única hora. No início de sua missão desalvamento, a Universe seria vista por mais seres humanos, ao mesmo tempo, do que qualquerartefato na história do mundo.

35. À MATROCA

A inesperada notícia de que a nave irmã Universe estava a caminho e poderia chegar muito antesdo que alguém teria ousado sonhar teve um efeito sobre o moral da tripulação da Galaxy que só sepode chamar de eufórico. O simples fato de que estavam à matroca, impotentes, num mar estranho,cercados de monstros desconhecidos, pareceu de repente coisa de menor importância.

Quanto aos monstros, embora aparecessem ocasionalmente, pareciam realmente ter poucaimportância. Os "tubarões" gigantescos eram vistos algumas vezes, mas nunca se aproximavam danave, nem mesmo quando o lixo era jogado fora. Isso era surpreendente, e sugeria que os grandesanimais — ao contrário dos tubarões terrestres — tinham um bom sistema de comunicações. Talvez

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estivessem mais próximos dos golfinhos do que dos tubarões.

Havia muitos cardumes de peixes menores, que ninguém teria comprado num mercado da Terra.Depois de várias tentativas, um dos oficiais — um bom pescador — conseguiu pegar um deles comum anzol sem isca. Não o levou para dentro da nave — o comandante não teria consentido —através da escotilha, mas mediu-o e fotografou-o cuidadosamente antes de devolvê-lo ao mar.

O orgulhoso pescador teve, porém, de pagar certo preço por esse troféu. O traje espacial depressão parcial que usou durante a pescaria tinha o cheiro característico de ovo podre do sulfeto dehidrogênio quando o levou de volta para a nave, e seu usuário tornou-se objeto de numerosaspiadas. Era mais um lembrete de uma bioquímica estranha, e implacavelmente hostil.

Apesar dos pedidos dos cientistas, não foi permitida nova pescaria. Eles podiam estudar eregistrar, mas não recolher. E de qualquer forma, como se observou, eram geólogos planetários, enão naturalistas. Ninguém tinha pensado em trazer formalina — que provavelmente não teriafuncionado ali, de qualquer modo.

Certa ocasião a nave flutuou por várias horas entre placas de um material verde e brilhante, deforma ovalada, com cerca de dez metros de largura, todas aproximadamente do mesmo tamanho. AGalaxy as atravessou sem resistência e elas se fechavam rapidamente, outra vez, depois de suapassagem. Supôs-se que fossem algum tipo de organismos coloniais.

Certa manhã, o oficial de serviço assustou-se quando um periscópio saiu da água e ele se viu frentea um suave olho azul que, disse ao recuperar-se do susto, parecia o de uma vaca doente. Olhou-ocom tristeza por alguns momentos, sem aparentar maior interesse, depois voltou lentamente aooceano.

Nada parecia mover-se com rapidez ali, e por uma razão óbvia. Era ainda um mundo de baixaenergia — não havia o oxigênio livre que permitia aos animais da Terra viver numa série deexplosões contínuas, desde o momento em que começavam a respirar ao nascer. Só o "tubarão" doprimeiro encontro tinha dado mostras de uma atividade violenta — em seu último e mortalespasmo.

Talvez essa informação fosse boa para os homens. Mesmo com os movimentos tolhidos pelasroupas espaciais, não havia provavelmente nada em Europa que os pudesse alcançar — ainda quequisesse.

O Comandante Laplace encontrou uma amarga diversão ao entregar a operação de sua nave aocomissário de bordo; e ficou pensando se essa situação seria singular nos anais do espaço e domar.

Não que o Sr. Lee pudesse fazer muita coisa. A Galaxy flutuava verticalmente, um terço forad'água, inclinando-se de leve ante um vento que a impulsionava a uma velocidade constante decinco nós. Havia apenas uns poucos vazamentos abaixo da linha d'água, controlados comfacilidade. E o que era importante, o casco continuava estanque.

Embora a maior parte do equipamento de navegação estivesse imprestável, eles sabiam exatamente

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onde estavam. Ganimedes dava-lhes uma orientação constante com seu farol de emergência a cadahora e se a Galaxy mantivesse o atual curso, chegaria à Terra, uma grande ilha, dentro de três dias.Se passasse ao largo, seguiria em direção ao mar aberto e acabaria chegando à zona fervente,imediatamente sob Lúcifer. Embora não necessariamente catastrófica, era uma perspectiva poucoatraente. O comandante interino Lee passou grande parte do tempo pensando num meio de evitá-la.

As velas — mesmo que tivesse material adequado para montá-las — pouca diferença fariam ao seucurso. Tinham feito baixar âncoras improvisadas até 500 metros, buscando correntes que pudessemser úteis, mas não encontrou nenhuma. Também não tocou o fundo que ficava muito abaixo, a umaprofundidade desconhecida.

E isso talvez fosse bom, pois protegia-os dos abalos sísmicos submarinos que agitavamconstantemente o novo oceano. Por vezes a Galaxy sacudia-se como se tivesse sido atingida por umgigantesco martelo, enquanto as ondas provocadas pelo sismo passavam rapidamente. Dentro depoucas horas uma onda de dezenas de metros de altura desabaria nalguma costa de Europa; mas ali,nas águas profundas, as ondas mortais pouco mais eram do que um leve encrespamento.

Várias vezes foram vistos vórtices súbitos a distância; pareciam perigosos — torvelinhos quepoderiam até mesmo sugar a Galaxy a profundidades desconhecidas — mas felizmente estavammuito distantes e apenas faziam com que a nave girasse algumas vezes sobre a água.

Apenas uma vez uma grande bolha de gás elevou-se e explodiu a apenas cem metros. Foiimpressionante, e todos concordaram com o comentário sincero do doutor: — Graças a Deus quenão podemos sentir o cheiro.

É surpreendente como a situação mais estranha pode tornar-se, rapidamente, uma rotina. Em poucosdias a vida a bordo da Galaxy se normalizara numa rotina fixa, e o principal problema doComandante Laplace era manter a tripulação ocupada. Não havia nada pior para o moral do que aociosidade, e ele ficava pensando como os comandantes dos antigos veleiros mantinham seushomens ocupados durante aquelas viagens intermináveis. Não podiam ter passado todo o temposubindo pelo cordame ou lavando o convés.

Ele tinha um problema oposto com os cientistas — estes estavam propondo testes e experiênciasque deviam ser examinados cuidadosamente antes de aprovados. E se deixasse, eles teriammonopolizado os canais de comunicação da nave, agora muito limitados.

O complexo da antena principal estava agora sendo destroçado na linha d'água, e a Galaxy já nãopodia falar diretamente com a Terra. Tudo tinha de ser transmitido através de Ganimedes, numafaixa de onda de alguns miseráveis megahertz. Um único canal de vídeo ao vivo só podia ser usadopara isso, e ele tinha de resistir ao clamor das redes terrestres. Não que elas tivessem muita coisa amostrar ao seu público, exceto o mar aberto, acanhados interiores da nave e uma tripulação que,embora com bom moral, estava se tornando cada vez mais hirsuta.

Um volume excepcional de comunicações estava sendo dirigido ao segundo-oficial Floyd, cujasrespostas codificadas eram tão breves que não podiam conter muita informação. Laplace finalmenteresolveu ter uma conversa com o jovem.

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— Sr. Floyd — disse ele, na privacidade de sua cabina —, gostaria que me esclarecesse sobre asua ocupação nas horas vagas.

Floyd parecia constrangido, e agarrou-se à mesa quando a nave oscilou levemente, com um ventorepentino.

— Gostaria muito, senhor, mas não tenho permissão para isso.

— De quem, posso saber?

— Francamente, não sei.

Isso era verdade. Ele desconfiava que se tratava da ASTRO-POL, mas os dois cavalheirostranqüilos e seguros que o tinham entrevistado em Ganimedes haviam, inexplicavelmente, deixadode dar-lhe tal informação.

— Como comandante da nave, e especialmente nas atuais circunstâncias, eu gostaria de saber o queestá acontecendo aqui. Se nos livrarmos desta, vou passar os próximos anos de minha vida emcomissões de investigação. E o senhor provavelmente também.

— Quase que não vale a pena sermos salvos, não é? — disse Floyd, com um sorriso triste. — Tudoo que sei é que alguma repartição de alto nível previa problemas para esta missão, mas não sabiade que tipo. Receio não ter sido muito eficiente, mas creio que era a única pessoa qualificada queconseguiram naquele momento.

— Acho que o senhor não se pode culpar. Quem poderia ter imaginado que Rosie...

O comandante fez uma pausa, pois ocorrera-lhe outro pensamento, de súbito:

— Desconfia de mais alguém?

Pensou em acrescentar "De mim, por exemplo?", mas a situação já era suficientemente paranóica.

Floyd pareceu pensar e chegar a uma decisão:

— Talvez eu devesse ter falado com o senhor antes, comandante, mas sei que tem estado muitoocupado. Tenho certeza de que o Dr. Van der Berg está envolvido de alguma forma. Ele é deGanimedes, gente estranha que eu realmente não compreendo.

E não gosto, poderia ter acrescentado. Era gente demasiado apegada ao clã, que não simpatizavacom estrangeiros. Mesmo assim, seria difícil culpá-los: todos os pioneiros que tentavam desbravaruma terra provavelmente eram assim.

— Van der Berg... Hum. E os outros cientistas?

— Foram investigados, é claro. Todos perfeitamente autênticos, e nada de errado com nenhumdeles.

Isso não era totalmente verdade. O Dr. Simpson tinha mais mulheres do que era estritamente legal,pelo menos teve em dado momento, e o Dr. Higgins tinha uma grande coleção de livros muito

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curiosos. O segundo-oficial Floyd não tinha muita certeza por que lhe haviam dito isso — talvezseus mentores quisessem apenas impressioná-lo com sua onisciência. Achou que trabalhar para aASTROPOL (ou quem quer que fosse) tinha algumas vantagens marginais muito interessantes.

— Muito bem — disse o comandante, despedindo o detetive amador. — Mas, por favor,mantenham-me informado se descobrir qualquer coisa — qualquer coisa mesmo — que possaafetar a segurança da nave.

Nas circunstâncias atuais, era difícil imaginar o que poderia ser. Quaisquer outros riscos pareciamum tanto desnecessários.

36. A PRAIA ESTRANGEIRA

Até mesmo 24 horas antes de avistarem a ilha, não havia certeza se a Galaxy a alcançaria ou seriasoprada pelo vento para o vazio do oceano central. A posição da nave, observada pelo radar deGanimedes, estava marcada num grande mapa que todos a bordo examinavam ansiosamente váriasvezes por dia.

Mesmo que a nave alcançasse a terra, seus problemas estariam começando. Poderia ser feita empedaços num litoral rochoso, em lugar de ser depositada suavemente numa praia comodamenteprotegida.

O comandante interino Lee tinha perfeita consciência de todas essas possibilidades. Sofrera, certavez, um naufrágio num barco de recreio cujos motores falharam num momento crítico ao largo dailha de Bali. O perigo foi pequeno, embora o drama tivesse sido grande, e não desejava repetir aexperiência — especialmente porque não havia ali a guarda costeira para correr em sua ajuda.

Havia uma ironia realmente cósmica na sorte deles. Ali estavam, a bordo de um dos maisavançados meios de transporte já criados pelo homem — capaz de atravessar o Sistema Solar! —mas agora não podiam sequer desviá-lo alguns metros do curso que seguia. Não obstante, nãoestavam totalmente impotentes; Lee ainda tinha alguns trunfos a jogar.

Naquele mundo de uma acentuada curvatura, a ilha estava apenas a cinco quilômetros quando aavistaram. Para grande alívio de Lee, não havia nenhum dos rochedos que havia temido; mastambém não havia sinais da praia com que sonhara. Os geólogos haviam advertido que a areia sóaparecia ali em milhões de anos: os moinhos de Europa, funcionando lentamente, ainda não tinhamtido tempo de realizar seu trabalho.

Logo que tiveram certeza de que chegariam à ilha, Lee deu ordens para que os principais tanquesda Galaxy fossem esvaziados, e que tinham sido deliberadamente enchidos logo depois do pouso.Seguiram-se algumas horas muito desconfortáveis, durante as quais pelo menos um quarto da

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tripulação perdeu o interesse pelo que acontecia.

A Galaxy erguia-se cada vez mais na água, oscilando mais acentuadamente — depois caiu com umforte ruído e ficou flutuando na superfície como o corpo de uma baleia, nos tempos antigos e cruéisem que as baleeiras as enchiam de ar para impedir que afundassem. Quando viu como estava anave, Lee ajustou novamente a sua flutuação até ficar com a popa levemente afundada e a pontedianteira pouco acima da água.

Como esperava, a Galaxy adernou para o vento. O resto da tripulação passou mal, mas Lee teveainda ajudantes suficientes para usar a âncora que tinha preparado para o ato final. Era apenas umajangada improvisada, feita de caixas vazias amarradas, mas seu peso fez com que a nave apontasseem direção à ilha que se aproximava.

Podiam ver agora que se dirigiam — com agonizante lentidão — para a estreita faixa de praiacoberta de pequenas pedras soltas. Se não podiam ter areia, aquela era a melhor alternativa...

A ponte já estava sobre a praia quando a Galaxy encalhou e Lee jogou sua última cartada. Fezapenas um teste, não ousando mais com receio de que as máquinas sobrecarregadas falhassem.

Pela última vez, a Galaxy estendeu seu trem de pouso. Ela rangeu e tremeu quando as pinçaslaterais abriram caminho na superfície estranha. Agora estava seguramente ancorada contra osventos e ondas daquele oceano sem marés.

Não havia dúvidas de que a Galaxy tinha encontrado o lugar de seu descanso final — e, com todapossibilidade, o de sua tripulação também.

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V-ATRAVÉSDOSASTEROIDES

37. ESTRELA

E agora a Universe movia-se com tal rapidez que sua órbita já não se parecia sequer remotamentecom a de qualquer objeto natural no Sistema Solar. Mercúrio, mais próximo do Sol, mal ultrapassa50 quilômetros por segundo no periélio; a Universe atingira o dobro dessa velocidade no primeirodia — e apenas com a metade da aceleração que conseguiria quando tivesse perdido váriastoneladas de água de peso.

Durante algumas horas, enquanto passavam dentro de sua órbita, Vênus foi o mais brilhante detodos os corpos celestes, com exceção do Sol e de Lúcifer. Seu pequeno disco era apenas visível aolho nu, e nem mesmo os mais poderosos telescópios da nave mostravam qualquer detalhe; Vênusguardava seus segredos tão ciosamente quanto Europa.

Aproximando-se ainda mais do Sol — bem dentro da órbita de Mercúrio — a Universe não sóestava tomando um atalho mas também aproveitando o campo gravitacional do Sol para aumentarseu impulso. Como a Natureza sempre se equilibra, o Sol perdia alguma velocidade nessatransação, mas o efeito só seria mensurável dentro de alguns milhares de anos.

O Comandante Smith usou a passagem do periélio pela nave para recuperar parte do prestígioperdido com sua hesitação.

— Agora todos podem ver — disse ele — exatamente por que passei a nave pelo "Velho Fiel". Senão tivéssemos lavado toda aquela sujeira do casco, a esta altura estaríamos comsuperaquecimento. Na verdade, tenho dúvidas se os controles térmicos poderiam ter enfrentadoessa carga — que já é dez vezes superior ao nível da Terra.

Olhando para o Sol tremendamente inchado, através de filtros quase negros, os passageirosacreditavam facilmente nele. E ficaram bem mais satisfeitos quando o Sol voltou ao seu tamanhonormal, continuando a diminuir à popa enquanto a Universe cortava a órbita de Marte, no trechofinal de sua missão.

Os Cinco Famosos já se tinham adaptado, cada qual à sua maneira, à inesperada mudança em suasvidas. Mihailovich estava compondo copiosa e barulhentamente, e quase não era visto, exceto nashoras das refeições quando aparecia para contar histórias escandalosas e provocar todas as vítimasdisponíveis, especialmente Willis. Green-berg se tinha eleito, sem protestos, membro honorário datripulação, e passava grande parte de seu tempo na ponte.

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Maggie M via a situação com um pesar divertido.

— Os escritores — comentou ela — estão sempre dizendo o que poderiam fazer se estivessemnalgum lugar sem interrupções, sem compromissos; faróis e prisões são os exemplos favoritos.Portanto, não me posso queixar, a não ser pelo fato de que meus pedidos de material sãoconstantemente retardados por mensagens de alta prioridade.

Até mesmo Victor Willis tinha chegado mais ou menos à mesma conclusão: também ele estavaocupado em vários projetos a longo prazo. E tinha motivos extras para ficar em sua cabina: seriamnecessárias ainda várias semanas antes que tivesse a aparência de quem esqueceu de barbear-se.

Yva Merlin passava horas, todos os dias, no centro de diversões, procurando rever, como disse,seus clássicos favoritos. Foi uma sorte que a biblioteca e as instalações de projeção da Universetivessem sido concluídas a tempo para aquela viagem. Embora a coleção ainda fosse relativamentepequena, havia o bastante para encher várias vidas.

Todas as obras famosas das artes visuais estavam ali, desde o remoto alvorecer do cinema. Yvaconhecia a maioria delas e tinha prazer em partilhar o seu conhecimento.

Floyd gostava de ouvi-la, claro, porque então ela se tornava viva — um ser humano comum, não umícone. Parecia-lhe ao mesmo tempo triste e fascinante o fato de que só por meio de um universoartificial de imagens de vídeo ela pudesse estabelecer contato com o mundo real.

Uma das mais estranhas experiências da vida bastante movimentada de Heywood Floyd foi ficarsentado na semi-obscuridade atrás da Yva, nalgum ponto ao largo da órbita de Marte, enquantoviam juntos o ... E o vento levou original. Havia momentos em que ele pôde ver o famoso perfil deYva silhuetado contra o de Vivien Leigh e comparar os dois — embora fosse impossível dizer qualatriz era melhor: ambas eram sui generis.

Quando as luzes se acenderam, ficou surpreso de ver que Yva estava chorando. Pegou-lhe a mão edisse carinhosamente:

— Eu também chorei quando Bonny morreu. Yva conseguiu sorrir de leve.

— Eu estava na realidade chorando por Vivien — disse. — Quando estávamos filmando ...E ovento levou II, li muita coisa a respeito dela — sua vida foi muito trágica. E falar sobre ela aqui noespaço, entre dois planetas, lembra-me alguma coisa que Larry disse quando a trouxe de volta doCeilão, depois de seu esgotamento nervoso. Ele disse aos amigos: "Casei-me com uma mulher doespaço sideral.”

Yva parou um momento e outra lágrima correu (muito teatralmente, não pôde deixar de pensarFloyd) pelo seu rosto.

— E há outra coisa ainda mais estranha. Ela fez seu último filme exatamente há cem anos. E vocêsabe qual foi?

— Não. Vamos, continue a me surpreender.

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— Espero que seja uma surpresa para Maggie, se estiver realmente escrevendo o livro que sempreameaça escrever. O último filme de Vivien foi “A nau dos insensatos”.

38. ICEBERGS DO ESPAÇO

Agora que dispunham de tanto tempo inesperado, o Comandante Smith finalmente concordou em dara Victor Willis a entrevista há muito prometida, e que era parte do seu contrato. O próprio Victor avinha adiando, devido ao que Mihailovich persistia em chamar de sua amputação. E como seriamnecessários muitos meses mais para que pudesse recompor sua imagem pública, ele tinhafinalmente decidido fazer a entrevista sem aparecer, usando a voz apenas. O estúdio na Terrapoderia introduzi-lo depois, com imagens guardadas nos arquivos.

Estavam sentados na cabina do comandante, ainda mobiliada parcialmente, saboreando um dosexcelentes vinhos que aparentemente constituíam grande parte da bagagem de Victor. Como aUniverse devia cortar a propulsão e começar a costear dentro das próximas horas, aquela era aúltima oportunidade por vários dias. Vinho sem peso, dizia Victor, era abominável; ele se recusa acolocar qualquer dos seus vinhos de safras preciosas em tubos plásticos.

— Fala Victor Willis a bordo da nave espacial Universe às 18:30h de sexta-feira, 15 de julho de2061. Embora ainda não tenhamos chegado à metade de nossa viagem, já estamos muito além daórbita de Marte e quase atingimos a velocidade máxima. Qual é essa velocidade, comandante?

— Mil e cinqüenta quilômetros por segundo.

— Mais de mil quilômetros por segundo, quase quatro milhões de quilômetros por hora!

A surpresa de Victor Willis parecia autêntica; ninguém poderia supor que ele conhecia osparâmetros orbitais quase tão bem quanto o comandante. Mas uma de suas qualidades era acapacidade de colocar-se no lugar de seus telespectadores, e não só prever o que perguntariam mastambém despertar-lhes o interesse.

— Certo — respondeu o comandante, com um moderado orgulho. — Estamos viajando com odobro da velocidade do que qualquer ser humano jamais atingiu, desde os mais remotos tempos.

Esta devia ser uma de minhas frases, pensou Victor, que não gostava que seus entrevistados seadiantassem a ele. Mas como bom profissional, adaptou-se rapidamente.

Fez uma pausa como se consultasse o seu famoso bloco de notas eletrônico, com uma telafortemente direcional que só ele conseguia ver.

— A cada 12 segundos estamos percorrendo o diâmetro da Terra. Ainda assim serão necessáriosmais dez dias para chegarmos a Júpiter ... ah!, Lúcifer! Isso nos dá uma idéia das escalas do

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Sistema Solar. Agora, comandante, vamos falar de um assunto delicado, mas ouvi muitas perguntassobre isso, na última semana.

Ah, não, pensou Smith. Não vai falar novamente das privadas na gravidade zero!

— Neste exato momento, estamos passando no centro da faixa de asteróides...

(Era melhor que fossem as privadas, pensou Smith.)

— ... e embora nenhuma nave espacial tenha sido seriamente danificada por uma colisão, nãoestaremos correndo um risco? Afinal de contas, há literalmente milhões de corpos, até do tamanhode bolas de praia, em órbita nesta área do espaço. E apenas alguns milhares foram mapeados.

— Mais do que isso: mais de dez mil.

— Mas há milhões que não conhecemos.

— E verdade, mas se os conhecêssemos, isso não adiantaria muito.

— O que quer dizer?

— Nada podemos fazer em relação a eles.

— Por que não?

O Comandante Smith fez uma pausa para pensar bem. Willis tinha razão, o assunto era delicado, e aempresa proprietária da astronave não gostaria que ele dissesse alguma coisa capaz dedesestimular os potenciais clientes.

— Em primeiro lugar, o espaço é tão grande que mesmo aqui — como você disse, no centro dafaixa de asteróides — a possibilidade de colisão é infinitesimal. Tínhamos esperanças de podermostrar-lhes um asteróide, mas o mais próximo é Hanuman, com apenas 300 metros de largura, edo qual passaremos a duzentos e cinqüenta mil quilômetros.

— Mas Hanuman é gigantesco se comparado com todos os fragmentos desconhecidos que flutuampor aqui. Isso não é motivo de preocupação?

— Tanto quanto você se preocupa com a possibilidade de ser atingido por um raio na Terra.

— Na verdade, certa vez escapei por pouco, em Pikes Peak, no Colorado. O relâmpago e o trovãoforam simultâneos. Mas o senhor admite que o perigo existe, e não estaremos aumentando o riscocom a enorme velocidade a que viajamos?

É claro que Willis conhecia perfeitamente a resposta; mais uma vez ele estava se colocando nolugar de suas legiões de telespectadores desconhecidos no planeta que se distanciava milquilômetros a cada segundo que passava.

— É difícil explicar sem usar a matemática — disse o comandante (quantas vezes tinha usado essafrase, mesmo não sendo verdade!) —, mas não existe uma relação simples entre velocidade e risco.Atingir qualquer coisa com a velocidade de naves espaciais seria uma catástrofe; para quem estiver

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junto de uma bomba atômica no momento da explosão, não faz diferença se for de quilotons oumegatons.

Não era uma afirmação que se pudesse considerar como tranqüilizadora, mas era a melhor que lheocorria. Antes que Willis insistisse, ele continuou apressadamente.

— E permita-me lembrar-lhe que qualquer... hum... risco extra que possamos estar correndo,justifica-se pela sua causa. Uma única hora pode salvar vidas.

— Sim, tenho certeza de que todos compreendemos isso.

Willis fez uma pausa e pensou em acrescentar: "E naturalmente estamos no mesmo barco", masdecidiu-se contra. Poderia parecer falta de modéstia, embora a modéstia não fosse o seu forte. E dequalquer modo, dificilmente ele poderia transformar a necessidade em virtude: não tinha alternativaagora, a menos que resolvesse voltar a pé para casa.

— Tudo isso — continuou ele — lembra-me uma outra coisa. O senhor sabe o que aconteceu há umséculo e meio no Atlântico Norte?

— Em 1911?

— Sim, na realidade 1912.

O Comandante Smith adivinhou o que estava para vir e recusou-se a cooperar, fingindodesconhecer.

— Suponho que esteja se referindo ao Titanic.

— Precisamente — respondeu Willis, disfarçando bem o seu desapontamento. Tive pelo menosvinte lembretes de pessoas que acham ter sido as únicas a estabelecer esse paralelo.

— Que paralelo? O Titanic estava correndo riscos inaceitáveis, simplesmente tentando bater umrecorde.

E quase acrescentou: "E não dispunha de botes salva-vidas em número suficiente", mas felizmenteconteve-se a tempo, ao lembrar-se de que o único veículo pequeno de que a nave dispunha, parauso em áreas limitadas, não podia levar mais de cinco passageiros. Se Willis tocasse nisso, seriamnecessárias muitas explicações.

— Bem, admito que a analogia é forçada. Mas há outro paralelo notável, que todos estabelecem. Osenhor se lembra do nome do primeiro e último comandante do Titanic? — Não tenho a menor... —começou o Comandante Smith. Então, ficou de boca aberta.

— Precisamente — disse Victor Willis, com um sorriso que seria uma gentileza chamar depresunçoso.

O Comandante Smith teria estrangulado de boa vontade todos aqueles pesquisadores amadores.Mas não podia culpar seus pais por lhe terem legado o mais comum dos nomes ingleses.

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39. A MESA DO COMANDANTE

Era uma pena que os espectadores na Terra (e fora dela) não pudessem ter acompanhado asdiscussões menos formais a bordo da Universe. A vida na nave se fixara numa rotina, marcada dealguns pontos regulares — dos quais o mais importante, e certamente o mais tradicional, era a mesado comandante.

Pontualmente às 18h, os seis passageiros e os cinco oficiais que não estavam de serviço jantavamcom o comandante. Não havia, era claro, a formalidade de indumentária que era de rigor nospalácios flutuantes do Atlântico Norte, mas havia geralmente algum esforço em apresentarnovidades da moda. Sempre se podia esperar que Yva aparecesse com um broche, um anel, umcolar, uma fita de cabelo ou um perfume novos de uma coleção aparentemente inesgotável.

Se a nave estava sendo impulsionada e havia alguma gravidade, a refeição começaria com a sopa;mas se estivesse costeando e sem peso, haveria uma seleção de hors d'oeuvres. De qualquer modo,antes do prato principal o Comandante Smith informava as notícias mais recentes — ou tentavadesmentir os últimos rumores, em geral alimentados por noticiários da Terra ou de Ganimedes.

Acusações e revides voavam em todas as direções, e as mais fantásticas teorias tinham sidoimaginadas para explicar o seqüestro da Galaxy. Todas as organizações secretas cuja existênciaera conhecida, e muitas que eram puramente imaginárias, foram apontadas. Todas as teorias,porém, tinham uma coisa em comum. Nenhuma podia sugerir um motivo plausível.

O mistério complicava-se pelo único fato até então conhecido. Um diligente trabalho deinvestigação da ASTROPOL tinha comprovado que a falecida "Rosie McCullen" era na realidadeRuth Mason, nascida no norte de Londres, recrutada pela Polícia Metropolitana — e que depois deum início promissor, foi afastada por atividades racistas. Tinha emigrado para a África edesaparecido. Evidentemente, envolvera-se na atividade política subterrânea daquele infelizcontinente. A Shaka era mencionada com freqüência, e com a mesma freqüência negada pelosE.U.A.S.

O que tudo isso podia ter com Europa era debatido de maneira interminável e infrutífera em voltada mesa — especialmente na ocasião em que Maggie M confessou ter pensado certa vez emescrever um romance sobre Shaka, do ponto de vista de uma das infelizes mulheres do déspota zulu.Mas quanto mais pesquisava para esse projeto, mais repelente ele lhe parecia:

— Quando deixei Shaka de lado — admitiu tristemente — eu sabia exatamente o que um alemãomoderno sente em relação a Hitler.

Essas revelações pessoais tornavam-se cada vez mais comuns à medida que a viagem sedesenrolava. Quando a refeição principal terminava, um dos componentes do grupo tinha a palavra

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por 30 minutos. As experiências de todo o grupo somadas dariam para encher dúzias de vidas, emoutros tantos corpos celestes. Portanto, teria sido difícil encontrar uma melhor fonte de histórias aserem contadas depois do jantar.

O orador menos interessante foi, um tanto surpreendentemente, Victor Willis. Ele teve a franquezade reconhecer isso, e de dar a razão:

— Estou tão acostumado — disse, como se fosse um pedido de desculpas, mas não exatamente — afalar para um público de milhões que tenho dificuldades em estabelecer comunicação com umpequeno grupo cordial como este.

— Você se sentiria melhor se o grupo não fosse cordial? — perguntou Mihailovich, semprequerendo ajudar. — Isso se pode conseguir facilmente.

Yva, por sua vez, mostrou-se melhor do que se esperava, embora suas recordações se limitassemtotalmente ao mundo do entretenimento. Foi particularmente boa nos comentários sobre diretoresfamosos — e infames — com os quais trabalhara, especialmente David Griffin.

— É verdade — perguntou Maggie M, sem dúvida pensando em Shaka — que ele odiava asmulheres?

— Absolutamente — respondeu Yva, sem hesitar. — Ele apenas odiava atores. Não osconsiderava como seres humanos.

As lembranças de Mihailovich cobriam também um território um tanto limitado: as grandesorquestras e companhias de balé, maestros e compositores famosos, e seus numerosos agregados.Mas ele sabia tantas histórias engraçadas de intrigas de bastidores e de casos amorosos, bem comohistórias de sabotagens em noites de estréia e rivalidades mortais entre prima-donas, que conseguiufazer rir até mesmo o ouvinte mais avesso à música, e lhe foi concedido prontamente um tempoextra.

A exposição natural e objetiva que o Coronel Greenberg fez de acontecimentos extraordináriosdificilmente poderia ter proporcionado maior contraste. O primeiro desembarque no pólo sul deMercúrio, relativamente temperado, tinha sido noticiado com tantos detalhes que não havia muitacoisa mais a dizer sobre isso. A pergunta que interessava a todos era: "Quando voltaremos",geralmente seguida de "Gostaria de voltar lá novamente?”

— Se me pedirem, é claro que irei — respondeu Greenberg. — Acho, porém, que Mercúrio serácomo a Lua. Lembrem-se: desembarcamos ali em 1969, e não voltamos durante toda uma geração.De qualquer modo, Mercúrio não é tão útil quanto a Lua, embora talvez venha a ser algum dia. Nãotem água; é claro que foi uma surpresa encontrar água na Lua. Embora não fosse tão fascinantequanto desembarcar em Mercúrio, eu realizei um trabalho mais importante abrindo a trilha demulas em Aristarco.

— Trilha de mulas?

— Sim. Antes da construção do grande lançador equatorial que permitiu o lançamento do gelodiretamente para a órbita, tínhamos de trazê-lo dos depósitos até o espaçoporto de Imbrium. Isso

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exigiu uma abertura de uma estrada em meio às planícies de lava e a colocação de pontes em váriasgargantas. A estrada do Gelo, foi o nome que lhe demos, tinha apenas 300 quilômetros, mas suaabertura custou várias vidas. As "mulas" eram tratores de oito rodas com enormes pneus esuspensão independente: arrastavam uma dúzia de reboques cada um com cem toneladas de gelo.Costumavam viajar à noite, pois então era preciso proteger a carga.

E continuou:

— Fiz a viagem com eles várias vezes. Levava cerca de seis horas — não estávamos lá paraquebrar recordes — e em seguida o gelo era descarregado em enormes tanques pressurizados àespera do nascer do sol. Logo que ele se derretia, era bombeado para as naves. A estrada do Geloainda existe, é claro, mas apenas os turistas a utilizam agora. Se forem sensíveis, percorrem-na ànoite, como fazíamos. Era pura magia, com a Terra cheia quase que por cima das nossas cabeças,tão brilhante que raramente tínhamos de usar lanternas. E embora pudéssemos conversar quandoquiséssemos, com freqüência desligávamos o rádio, deixando o atendimento automático mostrarque estávamos bem. Queríamos estar sozinhos naquele grande vazio luminoso — enquantoexistisse, pois sabíamos que não duraria. Agora estão construindo o triturador de quark emTeravolt, dando a volta ao equador, e estão surgindo cúpulas por todo Imbrium e Serenitatis. Masnós conhecemos o verdadeiro deserto lunar, exatamente como Armstrong e Aldrin o viram — antesque se pudesse comprar cartões dizendo "Gostaria que estivesses aqui" no correio da Base daTranqüilidade.

40. MONSTROS DA TERRA

"... sorte a sua não ter vindo no baile anual: acredite se quiser, foi tão chato quanto o do anopassado. E mais uma vez o nosso mastodonte residente, a querida Srta. Wilkinson, conseguiuesmagar os dedos dos pés do seu par, mesmo numa pista de dança de meio gee.

"Agora, os negócios. Como você não voltará tão cedo, em lugar das poucas semanas previstasimediatamente, a administração está lançando olhares cobiçosos para o seu apartamento — boavizinhança, perto do centro e sua área comercial, esplêndida vista da Terra em dias claros, etc. etc,e sugere uma sublocação até a sua volta. Parece bom negócio, e você poupará bastante dinheiro.Poderemos guardar as coisas pessoais que quiser...

"A questão do Shaka. Sabemos que você gosta de brincar conosco, mas francamente, Jerry e euficamos horrorizados! Posso compreender por que Maggie M o rejeitou — sim, é claro que lemos oLuxúrias olímpicas dela, muito interessante, mas demasiado feminista para nós...

"Que monstro... entendo por que deram o seu nome a um grupo terrorista africano. Imagine, executarseus guerreiros quando se casavam! E matar todas aquelas pobres vacas em seu desgraçadoimpério, apenas por serem fêmeas! E pior ainda, aquelas lanças horríveis que inventou. Péssimas

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maneiras, andar a enfiá-las em pessoas que não lhe tinham sido devidamente apresentadas.

"E que péssima publicidade para nós, bonecas. Quase o suficiente para fazer com que nosregeneremos. Sempre dissemos que somos delicadas e bondosas (bem como muito talentosas eartísticas, é claro), mas agora que você nos fez conhecer alguns dos chamados Grandes Guerreiros(como se houvesse alguma coisa de grande em matar gente!), estamos quase envergonhados dessacompanhia...

"Sim, sabíamos de Adriano e Alexandre, mas certamente não sabíamos de Ricardo Coração deLeão e Saladino. Ou Júlio César — mas este era tudo — pergunte a Antônio e a Cleópatra. OuFrederico, o Grande, que tem algumas características que o redimem, veja como tratou o velhoBach.

"Quando eu disse a Jerry que pelo menos Napoleão era uma exceção — não temos de incluí-lo emnossa lista —, sabe o que ele me respondeu? “Aposto que Josefina era um rapaz". Diga isso paraYva.

"Você arruinou o nosso moral, seu canalha, sujando-nos com aquele pincel sanguinolento (desculpea metáfora). Devia ter-nos deixado na feliz ignorância...

"Apesar disso, mandamos nosso amor, como também Sebastian. Lembranças aos europanos queencontrar. A julgar pelas notícias da Galaxy, alguns deles seriam ótimos pares para a Srta.Wilkinson.”

41. MEMÓRIAS DE UM CENTENÁRIO

O Dr. Heywood Floyd preferia não falar da primeira missão a Júpiter e da segunda a Lúcifer, dezanos depois. Tudo acontecera há tanto tempo — e não havia nada que ele já não tivesse dito cemvezes a comissões do Congresso, a juntas do Conselho Espacial e a representantes dascomunicações em massa, como Victor Willis.

Não obstante, tinha um dever para com seus companheiros de viagem, ao qual não podia faltar.Como o único homem vivo a ter testemunhado o nascimento de um novo sol — e de um novoSistema Solar — esperava-se que ele tivesse uma compreensão especial dos mundos de que seestavam aproximando tão rapidamente. Era uma suposição ingênua: podia falar-lhes muito menossobre os satélites galileanos do que os cientistas e engenheiros que neles haviam trabalhado hámais de uma geração. Quando lhe perguntavam: "Como é realmente Europa (ou Ganimedes, ou Io,ou Calisto...) ?", ele costumava remeter o interessado, de maneira bastante seca, à biblioteca danave.

Não obstante, sua experiência naquela área era singular. Meio século depois, ele costumava

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indagar-se se tudo aquilo tinha realmente acontecido, ou se ele tinha adormecido a bordo daDiscovery quando David Bowman lhe apareceu. Era quase mais fácil acreditar que uma naveespacial pudesse ser mal-assombrada...

Mas ele não podia estar sonhando quando a poeira flutuante congregou-se para formar a imagemfantasmagórica de um homem que devia estar morto há mais de dez anos. Sem a advertência que lhedera (lembrava-se claramente de que seus lábios ficaram imóveis e a voz vinha da caixa do alto-falante), a Leonov e todos a bordo dela se teriam vaporizado com a detonação de Júpiter.

— Por que ele fez isso? — Floyd deu a resposta durante uma das sessões de depois do jantar. —Durante 50 anos, perguntei-me por que. Não importa o que ele tenha se tornado depois que saiu noveículo espacial da Discovery para investigar o monolito, ele ainda devia ter algum laço com araça humana; não era totalmente estranho a ela. Sabemos que voltou à Terra, rapidamente, devidoàquele incidente da bomba em órbita. E há fortes indícios de que visitou tanto sua mãe quanto suaantiga namorada. Não são gestos de uma... uma entidade que tenha rejeitado todas as emoções.

— O que acha que ele é agora? — perguntou Willis. — Ou então, onde está?

— Talvez a segunda pergunta não tenha sentido, mesmo para os seres humanos. Você sabe ondefica a sua consciência?

— Não gosto de metafísica. Em alguma região de meu cérebro, de qualquer modo.

— Quando eu era jovem — disse Mihailovich, que tinha o talento de esvaziar a mais sériadiscussão —, a minha ficava mais ou menos um metro abaixo.

— Vamos supor que esteja em Europa. Sabemos que há um monolito ali, e Bowman estavacertamente ligado a ele de alguma maneira. Vejam como ele transmitiu aquele aviso.

— Você acha que ele transmitiu também o segundo, dizendo-nos para não nos aproximarmos?

— Advertência que agora vamos ignorar...

— ... por uma boa causa.

O Comandante Smith, que em geral deixava a discussão tomar o rumo que tomasse, fez uma de suasraras intervenções.

— Dr. Floyd — disse ele, pensativamente —, o senhor está numa posição excepcional, e devemosaproveitá-la. Bowman deu-se ao trabalho de ajudá-lo uma vez. Se ele ainda estiver por aqui, podedesejar fazer isso outra vez. Eu me preocupo muito com aquele "Não tentem desembarcar aqui". Seele nos pudesse assegurar que tal ordem estava... temporariamente suspensa, digamos, eu mesentiria muito melhor.

Houve várias exclamações de "atenção, atenção!" em volta da mesa, antes que Floyd respondesse:

— Sim, eu venho pensando mais ou menos assim também. Já disse à Galaxy para estar alerta paraqualquer... digamos, manifestação, caso ele tente estabelecer contato.

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— É claro — disse Yva — que ele pode estar morto, se é que fantasmas morrem.

Nem mesmo Mihailovich teve um comentário adequado para responder a isso, e Yva evidentementesentiu que ninguém deu muita importância à sua contribuição.

Sem se importar, ela tentou novamente:

— Woody, querido, por que você simplesmente não o chama pelo rádio? É para isso que o rádioserve, não é?

Essa idéia já tinha ocorrido a Floyd, mas parecera-lhe demasiado ingênua para ser levada a sério.

— Vou tentar — disse ele. — Acho que não haverá nenhum mal nisso.

42. MINILITO

Desta vez, Floyd tinha certeza de que estava sonhando...

Ele nunca fora capaz de dormir bem na gravidade zero, e a Universe estava agora costeando, sempropulsão, à velocidade máxima. Dentro de dois dias, a nave iniciaria quase uma semana dedesaceleração constante, cortando seu enorme excesso de velocidade até poder ir ao encontro deEuropa.

Por mais que ajustasse as correias de sua cama, elas sempre pareciam ou muito apertadas, ou muitofrouxas. Sentia dificuldade de respirar, ou então via-se flutuando no beliche.

Certa vez acordou em pleno ar, e flutuou por vários minutos até que, exausto, conseguiu nadar ospoucos metros até a parede mais próxima. Só então lembrou-se de que devia apenas ter esperado: osistema de ventilação do quarto o teria puxado sem demora até a grade do exaustor, sem qualqueresforço de sua parte. Como experimentado viajante espacial, sabia perfeitamente disso; sua únicadesculpa era, simplesmente, o pânico.

Aquela noite, porém, tinha conseguido ajeitar tudo bem; provavelmente quando o peso voltasse,teria dificuldade em reajustar-se a ele. Ficou acordado apenas por alguns minutos, recapitulando aconversa de depois do jantar, e adormeceu em seguida.

Em seus sonhos, continuava a palestra em volta da mesa. Houve algumas modificações pequenas,que aceitou sem surpresa. Willis, por exemplo, tinha deixado a barba crescer novamente — emboraapenas de um lado do rosto. Isso, pensou Floyd, era conseqüência de algum projeto de pesquisa,embora lhe fosse difícil imaginar seu objetivo.

De qualquer modo, ele tinha suas preocupações próprias. Estava defendendo-se das críticas doAdministrador Espacial Millson que, de maneira um tanto surpreendente, passara a fazer parte do

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grupo. Floyd ficou pensando como ele teria chegado à Universe (será que teria vindo comoclandestino?). O fato de Millson estar morto há pelo menos 40 anos parecia muito menosimportante.

— Heywood — dizia seu velho inimigo —, a Casa Branca está muito perturbada.

— Não posso imaginar por quê.

— Aquela mensagem de rádio que você mandou para Europa. Tinha autorização do Departamentode Estado?

— Não me pareceu que fosse necessária. Simplesmente pedi permissão para pousar.

— Ah, mas é exatamente isso. A quem você pediu? Reconhecemos o governo em questão? Receioque isso seja muito irregular.

Millson desapareceu, ainda falando. Ainda bem que isto é apenas um sonho, pensou Floyd. Eagora?

Bem, eu poderia ter esperado isso. Alô, velho amigo. Você vem em todos os tamanhos, não é? Eclaro, nem mesmo a AMT-1 poderia ter entrado na minha cabina — e seu Grande Irmão poderia terengolido a Universe inteira de uma só vez.

O monolito negro estava de pé — ou flutuando — a apenas dois metros de seu beliche. Com odesconfortável susto do reconhecimento, Floyd percebeu que não só era da mesma forma comotambém do mesmo tamanho de uma laje tumular comum. Embora essa semelhança já tivesse sidomencionada várias vezes a ele, até então a incongruência da escala tinha diminuído o impactopsicológico. Agora, pela primeira vez, sentiu que a semelhança era inquietante — até mesmosinistra. Eu sei que é apenas um sonho — mas na minha idade, não quero lembretes...

De qualquer modo, o que você está fazendo aqui? Traz uma mensagem de Dave Bowman? Você éDave Bowman?

Bem, eu não esperava realmente uma resposta; você nunca foi muito falador, não é? Mas as coisassempre aconteceram quando você aparecia. Em Tycho, há 60 anos, você mandou aquele sinal aJúpiter, para dizer aos seus criadores que o tínhamos desenterrado. E veja o que fez de Júpiterquando chegamos ali, doze anos depois!

O que está querendo agora?

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VI-PORTO

43. SALVAMENTO

A primeira tarefa enfrentada pelo Comandante Laplace e sua tripulação, quando se habituaram aestar em terra firme, foi reorientar-se. Tudo na Galaxy estava ao contrário.

As naves espaciais são planejadas para dois modos de operação — sem gravidade nenhuma, ou,quando os motores estão em funcionamento, numa direção vertical ao longo do eixo. Agora, porém,a Galaxy estava numa posição quase horizontal, e o que era chão se tinha transformado em parede.Era exatamente como se estivessem tentando viver num farol deitado de lado; todos os móveistinham de ser mudados e pelo menos 50% do equipamento não funcionavam adequadamente.

Não obstante, sob certos aspectos isso constituía uma bênção disfarçada, e o Comandante Laplaceaproveitou-a ao máximo. A tripulação ficou tão ocupada arrumando outra vez o interior da Galaxy— dando prioridade aos encanamentos — que ele teve poucas preocupações com o moral.Enquanto o casco continuasse estanque e os geradores a múon continuassem a fornecer energia, nãocorriam perigo imediato — tinham apenas de sobreviver por vinte dias e o salvamento apareceriados céus na forma da Universe. Ninguém mencionou jamais a possibilidade de que as potênciasdesconhecidas que governavam Europa pudessem fazer objeções a um segundo desembarque.Tinham, pelo que se podia saber, ignorado o primeiro; certamente não interfeririam com umamissão de salvamento...

Europa em si, porém, era agora menos cooperativo. Enquanto a Galaxy estava à matroca no maraberto, não fora praticamente afetada pelos abalos sísmicos que sacudiam constantemente opequeno mundo. Mas agora que a nave havia se tornado uma estrutura terrestre demasiado fixa, eraabalada de poucas em poucas horas pelas perturbações sísmicas. Se tivesse pousado na posiçãovertical normal, certamente teria sido derrubada.

Os abalos eram mais desagradáveis do que perigosos, mas provocavam pesadelos em quem tinhapresenciado o terremoto de Tóquio em 2033 ou o de Los Angeles em 2045. Não era de muitautilidade saber que seguiam um padrão perfeitamente previsível, atingindo o auge da violência efreqüência a cada três dias e meio quando Io passava em sua órbita interna. Nem era grandeconsolo saber que as marés gravitacionais de Europa estavam causando um dano pelo menos igualem Io.

Depois de seis dias de trabalho exaustivo, o Comandante Laplace ficou satisfeito ao ver que a

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Galaxy estava na melhor forma possível naquelas circunstâncias. Decretou um feriado — que amaior parte da tripulação passou dormindo — e depois preparou um esquema para a segundasemana no satélite.

Os cientistas, é claro, queriam explorar o novo mundo em que penetraram inesperadamente. Deacordo com mapas de radar que lhes foram transmitidos por Ganimedes, a ilha tinha 15 quilômetrosde extensão e cinco de largura; sua elevação máxima era de apenas cem metros — nãosuficientemente alto, pensou alguém sombriamente, para evitar uma onda realmente grande criadapelos abalos sísmicos ou vulcões submarinos.

Era difícil imaginar um lugar mais desolado e proibitivo; meio século de exposição aos fracosventos e chuvas de Europa em nada tinham desgastado a camada de lava que cobria metade de suasuperfície, ou amenizado os afloramentos de granito que saíam dos rios de rocha congelada. Masera agora o lugar onde estavam vivendo, e era preciso dar-lhe um nome.

Sugestões sombrias e depressivas como Hades, Inferno, Purgatório... foram firmemente vetadaspelo comandante, que desejava alguma coisa alegre. Um tributo surpreendente e quixotesco a umcorajoso inimigo foi examinado a sério, antes de ser rejeitado por 32 a 10, com cinco abstenções: ailha não seria chamada Roselândia...

No fim, "Porto" ganhou por unanimidade.

44. ENDURANCE

"A História nunca se repete, mas as situações históricas sim.”

Ao fazer seu relatório diário para Ganimedes, o Comandante Laplace pensava nessa frase. Tinhasido citada por Margareth M'Bala — que se aproximava agora a quase mil quilômetros porsegundo — numa mensagem de encorajamento vinda da Universe, que ele se sentira feliz emretransmitir aos seus companheiros de naufrágio.

"Favor dizer à Srta. M'Bala que sua pequena lição de historia foi muito boa para o moral; ela nãopoderia nos ter mandado nada melhor...

"Apesar do incômodo de termos nossas paredes e soalhos invertidos, estamos vivendoluxuosamente em comparação com os velhos exploradores polares. Alguns, entre nós, ouviram falarde Ernest Shackleton, mas não tínhamos idéia da história do Endurance. Ficar preso no gelo pormais de um ano — depois passar o inverno Ártico numa caverna — em seguida atravessar milquilômetros de mar num barco aberto e escalar uma cadeia de montanhas não mapeadas para chegarao aldeamento humano mais próximo!

"E isso foi apenas o começo. O que nos parece incrível — e estimulante — é que Shackleton voltou

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quatro vezes para salvar seus homens que estavam naquela pequena ilha, e salvou-os a todos!Podem imaginar o que essa história representou para nossos espíritos. Espero que nos possammandar o livro dele em sua próxima transmissão. Estamos todos ansiosos para lê-lo.

"E o que teria ele pensado disso! Sim, estamos infinitamente melhor do que qualquer daquelesexploradores de antigamente. É quase impossível acreditar que, até meados do século passado,estavam totalmente isolados do resto da raça humana depois que passavam o horizonte. Devíamosenvergonhar-nos de nossas queixas por não ser a luz bastante rápida e não podermos falar comnossos amigos no tempo real — ou por serem necessárias algumas horas para receber respostas daTerra... Eles não tinham contatos durante meses, quase anos! Mais uma vez, Srta. M’bala, nossossinceros agradecimentos.

"É claro que todos os exploradores da Terra tinham uma considerável vantagem em relação a nós:pelo menos podiam respirar o ar. Nossa equipe de cientistas vem clamando para sair, emodificamos nossas roupas espaciais para atividades extraveiculares de até seis horas. Nestapressão atmosférica eles não precisam de roupas inteiras — apenas para o tronco, e estouautorizando dois homens a saírem de cada vez, desde que permaneçam à vista da nave.

"Finalmente, eis o tempo de hoje. Pressão 250 bar, temperatura estável em 25, ventos do quadranteoeste soprando a 30 klicks, céu carregado como sempre, abalos sísmicos entre um e três na escalaaberta de Richter...

"Sabem que nunca me agradou esse 'escala aberta', especialmente agora que Io está voltandonovamente...”

45. MISSÃO

Quando as pessoas pediam para falar com ele em conjunto, isso em geral significava problemas, oupelo menos uma decisão difícil. O Comandante Laplace tinha observado que Floyd e Van der Bergpassavam muito tempo em acirradas discussões, muitas vezes com o segundo-oficial Chang, e erafácil supor do que falavam. Mesmo assim, sua proposta o colheu de surpresa.

— Vocês querem ir ao monte Zeus! Como — num barco aberto? Aquele livro de Shackleton subiu-lhes à cabeça?

Floyd parecia levemente constrangido; o comandante tinha ido diretamente ao alvo: South tinhasido uma inspiração, sob mais de um aspecto.

— Mesmo que pudéssemos construir um barco, senhor, seria necessário muito tempo...Especialmente agora que a Universe parece que chegará dentro de dez dias.

— E eu não tenho muita certeza de que gostaria de navegar neste mar da Galiléia — acrescentou

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Van der Berg. — Nem todos os seus habitantes podem saber que somos incomíveis.

— Então resta apenas um caminho, não? Estou cético, mas disposto a ser convencido. Continue.

— Discutimos isso com o Sr. Chang, e ele diz que pode ser feito. O monte Zeus fica a apenas 300quilômetros, e o módulo orbital pode ir até lá em menos de uma hora.

— E encontrar um lugar para descer? Como vocês sem dúvida se recordam, o Sr. Chang não tevemuito sucesso com a Galaxy.

—Não há problema, senhor. O William Tsung tem apenas um centésimo de nossa massa; mesmoaquele gelo provavelmente o teria agüentado. Estivemos examinando as gravações de vídeo eencontramos vários lugares bons para descer.

— Além disso — afirmou Van der Berg —, o piloto não terá um revólver apontado para suacabeça. Isso poderá ajudar.

— Sem dúvida. Mas o grande problema é aqui. Como vão tirar o módulo orbital de sua garagem?Podem arranjar um guindaste? Mesmo com esta gravidade, seria um grande peso.

— Não é necessário, senhor. Chang pode tirá-lo voando. Houve um prolongado silêncio enquanto oComandante Laplace pensava, evidentemente sem muito entusiasmo, na possibilidade de motoresde foguete serem disparados dentro de sua nave. O pequeno módulo orbital de cem toneladasWilliam Tsung, mais familiarmente conhecido como Bill Tee, era desenhado para operaçõesorbitais; normalmente seria tirado facilmente de sua "garagem", e os motores só funcionariamquando ele estivesse distante da nave-mãe.

— Evidentemente vocês pensaram em tudo — disse o comandante, com relutância —, mas, e oângulo da partida? Não me digam que querem rolar a Galaxy para que Bill Tee possa subirdiretamente? A garagem está de lado, e foi sorte não ter ficado na parte de baixo quando pousamos.

— A partida terá de ser a 60 graus da horizontal; os impulsionadores laterais podem dar contadisso.

— Se o Sr. Chang diz que sim, eu certamente acredito. Mas que conseqüência a ignição dosmotores terá para a nave?

— Bem, destruirá o interior da garagem, mas esta não será usada nunca mais, de qualquer modo. Eas paredes são feitas à prova de explosões acidentais, de modo que não há perigo de danificar oresto da nave. Teremos equipes de bombeiros alertas para qualquer eventualidade.

Era uma concepção brilhante, sem dúvida. Se desse certo, a missão não teria sido um fracassototal. Na última semana, o Comandante Laplace mal pensara por um momento no mistério do monteZeus, que provocara a difícil situação em que se encontravam: só a sobrevivência importava. Masagora, havia esperança e calma para pensar no futuro. Valeria a pena correr alguns riscos paradescobrir por que este pequeno mundo era o centro de tantas intrigas.

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46. O MÓDULO ORBITAL

— Falando de memória — disse o Dr. Anderson —, o primeiro foguete de Goddard voou cerca de50 metros. Estou pensando se o Sr. Chang baterá esse recorde.

— É melhor que bata, ou todos nós teremos problemas.

A maioria da equipe de cientistas reuniu-se na sala de observação, e todos olhavam com ansiedadepara trás, para o casco da nave. Embora a entrada da garagem não fosse visível daquele ângulo,veriam o Bill Tee logo, quando — e se — ele emergisse.

Não houve contagem regressiva; Chang não tinha pressa, fazendo todas as verificações possíveis— e partiria quando julgasse conveniente. O veículo tinha sido despojado até a sua massa mínima,e levava propelente bastante para cem minutos de vôo. Se tudo desse certo, isso seria suficiente; senão, mais do que isso não só seria supérfluo como também perigoso.

— Lá vamos nós — disse Chang, imperturbável.

Foi quase como um truque de mágica. Tudo aconteceu tão depressa que o olho foi enganado.Ninguém viu o Bill Tee sair da garagem, pois estava envolto numa nuvem de vapor. Quando estadissipou-se, ele já estava descendo, a 200 metros de distância.

Uma grande aclamação de alívio ecoou pela sala.

— Ele conseguiu! -— exclamou o ex-comandante interino Lee. — Quebrou fácil o recorde deGoddard!

De pé em suas quatro pernas curtas e grossas sobre a desolada paisagem de Europa, o Bill Teeparecia uma versão maior e ainda menos elegante do módulo lunar Apolo. Não foi esse, porém, opensamento que ocorreu ao Comandante Laplace enquanto olhava da ponte.

Parecia-lhe que sua nave era uma baleia perdida que tinha conseguido um parto difícil numambiente estranho. Esperava que o novo filhote sobrevivesse.

Depois de quarenta e oito horas atarefadíssimas, o William Tsung estava carregado, testado numavolta de dez quilômetros sobre a ilha — e pronto para a viagem. Ainda havia muito tempo para amissão: pelos cálculos mais otimistas, a Universe não poderia chegar antes de três dias, e a viagemao monte Zeus, mesmo levando em conta a colocação da extensa coleção de instrumentos do Dr.Van der Berg, levaria apenas seis horas.

Tão logo o segundo-oficial Chang desembarcou, o Comandante Laplace o chamou à sua cabina.Chang teve a impressão de que ele estava pouco à vontade.

— Bom trabalho, Walter. Mas é claro que de você só poderíamos esperar isso.

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— Obrigado, senhor. Qual é o problema?

O comandante sorriu. Uma tripulação bem integrada não podia guardar segredos.

— O Escritório Central, como sempre. Desagrada-me decepcioná-lo, Chang, mas tenho ordens paraque apenas o Dr. Van der Berg e o segundo-oficial Floyd façam a viagem.

— Compreendo — disse Chang, com um traço de amargura. — O que foi que o senhor lhes disse?

— Nada, ainda. É por isso que queria falar com você. Estou pronto a dizer que você é o únicopiloto que pode fazer essa missão.

— Eles saberão que isso é absurdo; Floyd pode tão bem quanto eu. Não há o menor risco, excetoum enguiço, que pode acontecer com qualquer um.

— Eu ainda continuo disposto a lutar para que você vá, se insistir. Afinal de contas, quem mandaaqui sou eu, e seremos todos heróis quando voltarmos para a Terra.

Chang estava evidentemente fazendo algum cálculo complicado. Pareceu muito satisfeito com oresultado.

— A substituição de alguns quilos de carga por propelente nos dá uma nova e interessante opção.Quis mencioná-la antes, mas não havia como o Bill Tee pudesse realizá-la com todos aquelesaparelhos extras e mais uma tripulação completa...

— Não me diga. A Grande Muralha.

— Claro. Poderíamos fazer um levantamento completo sobrevoando-a uma ou duas vezes everificar o que é realmente.

— Pareceu-me que já tínhamos uma boa idéia disso, e não sei se devemos nos aproximar dela.Talvez seja abusar da nossa sorte.

— Talvez. Mas há outra razão; para alguns, entre nós, é até mesmo uma melhor razão...

— Sim?

— Tsien. Fica a apenas dez quilômetros da Muralha. Gostaríamos de lançar ali uma coroa deflores.

Então era isso que os seus oficiais andavam discutindo tão solenemente! Não foi a primeira vez queo Comandante Laplace desejou conhecer melhor o mandarim.

— Compreendo — disse ele, calmamente. — Terei de pensar nisso — e conversar com Van derBerg e com Floyd, para ver se concordam.

— E o Escritório Central?

— Não, que diabo! Esta decisão será minha.

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47. FRAGMENTOS

"É melhor vocês se apressarem", avisou a Central de Ganimedes. "A conjunção seguinte seráviolenta — nós estaremos provocando abalos, bem como Io. E não queremos assustar vocês, mas amenos que o nosso radar esteja louco, a montanha de vocês afundou mais cem metros desde aúltima medida.”

Nesse ritmo, pensou Van der Berg, Europa voltará a ser totalmente plana dentro de dez anos. Comoas coisas aqui acontecem bem mais depressa do que na Terra! Uma das razões pelas quais estelugar era tão popular entre os geólogos.

Agora que estava amarrado à posição número dois, imediatamente atrás de Floyd e praticamentecercado por seu próprio equipamento, sentia uma curiosa mistura de excitação e arrependimento.Dentro de poucas horas, a grande aventura intelectual de sua vida estaria terminada — de umamaneira ou de outra. Nada do que viesse a lhe acontecer novamente poderia igualar-se a ela.

Não sentia o menor vestígio de medo; sua confiança tanto no homem como na máquina eracompleta. Uma inesperada emoção era um estranho sentimento de gratidão para com Rosie Cullen;sem ela, jamais teria tido esta oportunidade, mas poderia ter morrido ainda na dúvida.

O Bill Tee, muito carregado, mal pôde vencer a gravidade de um décimo ao levantar vôo. Não erafeito para esse tipo de trabalho, mas teria um desempenho muito melhor na viagem de volta, depoisde deixar sua carga. Pareceu levar horas para subir mais alto do que a Galaxy, e tiveram temposuficiente para observar os danos ao casco bem como a corrosão das ocasionais chuvas levementeácidas. Enquanto Floyd concentrava-se em levantar o vôo, Van der Berg fez um breve relatóriosobre a condição da nave, como observador privilegiado pela sua posição. Pareceu-lhe a coisacerta a fazer, embora, com sorte, a condição em que se encontrava a Galaxy deixaria de ser umapreocupação para todos.

Podiam ver agora a totalidade do Porto estendida lá embaixo, e Van der Berg compreendeu quetrabalho brilhante tinha sido feito pelo Comandante interino Lee quando encalhou a nave. Erampoucos os lugares em que ela poderia ter sido levada a salvo. Embora com muita sorte, Lee tinhausado o vento e o mar para ancorá-la do melhor modo possível.

A névoa fechou-se à volta deles; o Bill Tee subia numa trajetória semibalística para minimizar aatração, e não se veria outra coisa e não ser nuvens durante vinte minutos. Pena, pensou Van derBerg: estou certo de que deve haver criaturas interessantes nadando lá embaixo, e talvez ninguémmais tenha a oportunidade de vê-las...

— Vou cortar o motor — disse Floyd. — Tudo normal.

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— Muito bem, Bill Tee. Nenhuma informação de tráfego na sua altitude. Você é ainda o primeirona pista de aterrissagem.

— Quem é o brincalhão? — perguntou Van der Berg — Ronnie Lim. Acredite se quiser, aquele"número um na pista de aterrissagem" remonta à Apolo.

Van der Berg podia compreender por quê. Não havia nada como um toque ocasional de humor,desde que não fosse exagerado, para aliviar a tensão quando os homens se empenhavam numaaventura complexa e possivelmente perigosa.

— Quinze minutos para começar a freagem — disse Floyd.

— Vamos ver quem mais está no ar.

Acionou o sintonizador automático, e uma sucessão de bipes e assovios, separados por curtossilêncios enquanto o sintonizador os rejeitava um a um, numa rápida verificação do espectro derádio, ecoou pela pequena cabina.

— Seus faróis e transmissões de dados locais — disse Floyd.

— Eu tinha esperanças... Ah, aqui temos algo!

Era apenas um leve som musical, subindo e descendo rapidamente como um soprano louco. Floydolhou a freqüência.

— O efeito Doppler quase desapareceu. Ela está perdendo velocidade rapidamente.

— O que é isso — texto?

— Vídeo de esquadrinhador lento, acho. Estão transmitindo muito material para a Terra pelo pratogrande de Ganimedes, quando a posição é adequada. As redes de notícias estão ansiosas porinformações.

Ouviram o som hipnótico mas sem sentido durante alguns minutos; depois, Floyd o desligou. Pormais incompreensível que fosse aos seus sentidos desajudados a transmissão da Universe, elaencerrava a única mensagem que importava. O socorro estava a caminho e dentro em poucochegaria.

Em parte para encher o silêncio, mas também por estar sinceramente interessado, Van der Bergobservou:

— Você tem conversado com seu avô ultimamente? "Conversado" era, naturalmente, uma expressãoerrônea quando se tratava de distâncias interplanetárias, mas ninguém tinha criado uma alternativaaceitável. Vozgrama, audiocorreio e vozcarta tinham florescido por breve tempo, depoisdesapareceram no limbo. A maioria da raça humana provavelmente não acreditava ainda que aconversação em tempo real era impossível nos enormes espaços abertos do Sistema Solar, e detempos em tempos ouviam-se protestos indignados: "Por que vocês, cientistas, não encontram umasolução para isso?”

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— Sim — respondeu Floyd. — Ele está bem, e estou ansioso por encontrá-lo.

Havia uma leve tensão em sua voz. Quando será que se encontraram pela última vez, pensou Vander Berg, mas compreendeu que seria falta de tato perguntar. Em lugar disso, passou os dez minutosseguintes ensaiando o procedimento de descarga e instalação de equipamentos com Floyd, a fim deevitar confusões desnecessárias quando pousassem.

O alarme do "iniciar freagem" disparou uma fração de segundo depois de Floyd ter feito funcionaro seqüenciador do programa. Estou em boas mãos, pensou Van der Berg. Posso relaxar econcentrar-me em meu trabalho. Onde está aquela câmera? Não me digam que anda flutuandonovamente...

As nuvens diminuíam. Embora o radar tivesse mostrado exatamente o que havia abaixo deles, deuma maneira tão perfeita quanto a visão normal poderia proporcionar, foi ainda assim um choquever a face da montanha elevando-se a poucos quilômetros à frente.

— Veja! — disse Floyd, de súbito. — A esquerda, junto do pico duplo — dou-lhe uma chance dedizer!

— Tenho a certeza de que você está certo. Não acho que causamos nenhum dano. Apenasesparramou. Onde será que bateu o outro...

— Altitude mil. Qual o local de pouso? Alfa não parece tão bom, daqui.

— Tem razão, tente Gama. Mais perto da montanha, de qualquer modo.

— Quinhentos. Vai ser Gama. Vou sobrevoar por 20 segundos. Se você não gostar, passamos paraBeta. Quatrocentos... Trezentos... Duzentos... ("Boa sorte, Bill Tee, disse a Galaxy, rapidamente).Obrigado, Ronnie... Cento e cinqüenta... Cem... Cinqüenta... Que tal? Apenas umas pedrinhas e — oque é espetacular — algo que parece ser vidro partido, espalhado por todo lado. Alguém deu umafesta animada, aqui... Cinqüenta... Cinqüenta... Ainda ok?

— Perfeito. Pouse.

— Quarenta... Trinta... Vinte... Dez., Tem certeza de que é aqui mesmo?... Dez... Levantando umpouco de poeira, como Neil disse outrora, ou foi Buzz?... Cinco... Contato! Fácil, não? Nem sei porque me pagam.

48. LUCY

— Alô, Central de Ganimedes. Fizemos um pouso perfeito — quero dizer, Chris fez — numasuperfície plana de alguma rocha metamórfica, provavelmente o mesmo pseudogranito que

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chamamos de havenite. A base da montanha está apenas a dois quilômetros, mas já posso dizer quenão há necessidade de chegar mais perto.

— Estamos vestindo nossas roupas espaciais agora e começaremos a descarregar dentro de cincominutos. Deixaremos os monitores funcionando, é claro, e chamaremos a cada quarto de hora. Vander Berg encerrando.

— O que você quer dizer com "não há necessidade de chegar mais perto" ? — perguntou Floyd.

Van der Berg sorriu. Nos últimos minutos ele parecia ter rejuvenescido anos e se ter tornado quasecomo um menino despreocupado.

— Circumspice — disse ele, com ar satisfeito. — Em latim quer dizer' 'olhe à sua volta''. Vamosretirar primeiro a câmera grande — opa!

O Bill Tee deu um súbito salto, e por um momento oscilou para cima e para baixo sobre osamortecedores de choque do trem de aterrissagem, com um movimento que, se tivesse continuadopor mais alguns segundos, teria imediatamente provocado enjôo.

— Ganimedes estava certa sobre os sismos — disse Floyd, quando eles se recuperaram. — Haveráalgum perigo sério?

— Provavelmente não. Faltam ainda 30 horas para a conjunção, e isto aqui parece rocha sólida.Mas não vamos perder tempo aqui, ainda bem que não precisamos. Minha máscara está direita?Não me parece estar.

— Deixe que eu aperto a correia. Assim está melhor. Respire fundo... bom, agora está bemajustada. Vou sair primeiro.

Van der Berg gostaria de ter dado o primeiro e pequeno passo, mas Floyd era o comandante e tinhao dever de verificar se o Bill Tee estava em boas condições — e pronto para uma partida imediata.

Ele deu uma volta em torno do pequeno módulo orbital, examinando o trem de pouso, e em seguidafez o sinal com o polegar para cima para Van der Berg, que começou a descer a escada. Emborativesse usado o mesmo equipamento respiratório de pouco peso em sua exploração do Porto,sentia-se um pouco desajeitado com ele, e parou na escada de desembarque para ajeitar-se melhor.Depois olhou para cima — e viu o que Floyd estava fazendo.

— Não toque! — gritou. — É perigoso!

Floyd deu um pulo de um metro, afastando-se dos fragmentos de rocha vítrea que estavaexaminando. Para seu olho inexperiente, pareciam uma fusão malsucedida de um grande forno defazer vidro.

— Não é radioativo, é? — perguntou ansiosamente.

— Não. Mas fique longe até eu chegar aí.

Para sua surpresa, Floyd percebeu que Van der Berg estava usando luvas grossas. Como oficial

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espacial, fora necessário a Floyd um longo tempo para habituar-se ao fato de que, ali em Europa,era seguro expor a pele nua à atmosfera. Em nenhum outro lugar do Sistema Solar — nem mesmoem Marte — isso era possível.

Muito cautelosamente, Van der Berg abaixou-se e pegou um fragmento longo do material vítreo.Mesmo naquela luz difusa, brilhava estranhamente, e Floyd viu que tinha um gume ameaçador.

— A faca mais cortante de todo o universo — disse Van der Berg, contente.

— Passamos por tudo isso para encontrar uma faca! Van der Berg começou a rir, depois viu queisso não era fácil dentro da máscara.

— Então você ainda não sabe o que é isso?

— Estou começando a achar que sou o único que não sabe. Van der Berg segurou seu companheiropelo ombro, fazendo-o voltar-se para a enorme massa do monte Zeus. Aquela distância, ele enchiametade do céu — não apenas a maior, mas a Única montanha de todo aquele mundo.

— Admire esta vista apenas por um minuto. Tenho uma chamada importante para fazer.

Marcou uma seqüência codificada em seu computador, esperou que a luz de "Pronto" acendesse, edisse: "Ganimedes Central um zero nove — Fala Van. Está ouvindo?”

Depois de apenas um hiato temporal mínimo, uma voz obviamente eletrônica respondeu:

— Alô Van. Fala Ganimedes Central um zero nove. Pronto a receber.

Van der Berg fez uma pausa, saboreando o momento de que se recordaria pelo resto da vida.

— Contate terra tio sete três sete. Transmita a mensagem seguinte: LUCY ESTÁ AQUI. LUCY ESTÁAQUI. Fim da mensagem. Favor repetir.

Talvez eu devesse tê-lo impedido de dizer isso, não importa o que queira dizer, pensou Floyd,enquanto Ganimedes repetia a mensagem. Agora, porém, é tarde demais. Ela chegará à Terra dentrode uma hora.

— Desculpe, Chris — sorriu Van der Berg. — Eu queria estabelecer prioridade, entre outrascoisas.

— Se você não começar a falar logo, eu vou espetá-lo com uma dessas facas de vidro.

— Vidro, ora essa! Bem, a explicação pode esperar. É absolutamente fascinante, mas muitocomplicada. Portanto, vou contar-lhe apenas os fatos simples. O monte Zeus é um diamante só, coma massa aproximada de um milhão, um milhão de toneladas.Ou, se preferir, cerca de 2xl017quilates. Mas não posso garantir que seja tudo de primeira qualidade.

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VII-AGRANDEMURALHA

49. SANTUÁRIO

Ao descarregarem o equipamento do Bill Tee e colocarem-no na pequena faixa de granito que lhesservia de pista de aterrissagem, Chris Floyd teve dificuldades em desviar seus olhos da montanhaque pairava acima deles. Um único diamante — maior do que o Everest! Ora, os fragmentosdispersos à volta do módulo orbital deviam valer bilhões, e não milhões...

Por outro lado, poderiam não valer mais do que... bem, pedaços de vidro partido. O valor dosdiamantes sempre foi controlado pelos negociantes e produtores, mas se uma gema do tamanho deuma montanha entrasse de repente no mercado, os preços evidentemente cairiam muito. Floydcomeçou a compreender por que tantos grupos interessados tinham focalizado sua atenção emEuropa; as ramificações políticas e econômicas eram intermináveis.

Agora que tinha pelo menos provado sua teoria, Van der Berg voltou a ser o cientista dedicado eobjetivo, empenhado em concluir sua experiência sem dela se desviar. Com a ajuda de Floyd —não era fácil retirar alguns dos equipamentos mais volumosos da pequena cabina do Bill Tee —retirou uma amostra de solo de um metro de comprimento com uma perfuratriz elétrica e a levaramde volta, cuidadosamente, para o veículo espacial.

As prioridades de Floyd teriam sido diferentes, mas ele reconhecia que havia uma lógica em seexecutar primeiro as tarefas mais difíceis. Enquanto não montaram o sismógrafo e uma câmerapanorâmica de TV sobre um tripé baixo e pesado, Van der Berg não concordou em recolheralgumas das incomparáveis riquezas que jaziam à volta deles.

— Pelo menos — disse ele, escolhendo cuidadosamente alguns dos fragmentos menos mortíferos— servirão de lembranças.

— A não ser que os amigos de Rosie nos matem para ficar com eles.

Van der Berg olhou com firmeza para seu companheiro, pensando o quanto ele realmente saberia, eo quanto estaria, como todos eles, imaginando.

— Não valeria a pena, agora que o segredo foi revelado. Dentro de uma hora, os computadores dasbolsas de valores vão ficar loucos.

— Seu bandido! — disse Floyd, mais com admiração do que com rancor. — Então essa era a suamensagem.

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— Não há lei que proíba um cientista de ganhar alguma coisa com o que sabe. Mas estou deixandoos detalhes sórdidos para meus amigos na Terra. Sinceramente, estou muito mais interessado notrabalho que estamos fazendo aqui. Passe-me aquela chave, por favor...

Por três vezes, antes de terminarem a instalação da Estação Zeus, quase foram derrubados porabalos sísmicos. Podiam senti-los como uma vibração sob os pés, em seguida tudo começava asacudir — depois havia um som horrível, prolongado, como um gemido, que parecia vir de todasas direções. Vinha até mesmo do ar, o que a Floyd pareceu o mais estranho de tudo. Não podiahabituar-se ao fato de que havia bastante atmosfera à volta deles para permitir conversas a poucadistância sem rádio.

Van der Berg assegurava-lhe constantemente que os abalos sísmicos ainda eram inofensivos, masFloyd tinha aprendido a não confiar demais em especialistas. É certo que o geólogo acabara dedemonstrar, de maneira espetacular, a sua competência; ao olhar para o Bill Tee balançando-sesobre seus amortecedores de choques como um navio batido pela tempestade, Floyd fazia votos deque a sorte de Berg continuasse, pelo menos por mais alguns minutos.

— Parece que terminamos — disse finalmente o cientista, para grande alívio de Floyd. —Ganimedes estará recebendo bons dados em todos os canais. As baterias vão durar anos, com opainel solar para recarregá-las.

— Se esse equipamento ainda estiver de pé dentro de uma semana, eu ficarei muito espantado. Juroque a montanha moveu-se desde que desembarcamos. Vamos embora antes que ela caia em cima denós.

— Estou mais preocupado — disse Van der Berg, dando uma gargalhada — com a possibilidadede que a explosão do seu jato não desfaça todo o nosso trabalho.

— Não há perigo. Estamos bem distantes e agora descarregamos tanta coisa que precisamos apenasda metade da força para levantar vôo. A menos que você queira levar mais alguns bilhões. Outrilhões.

— Não sejamos ambiciosos. De qualquer modo, não posso nem imaginar o quanto valerá issoquando voltarmos à Terra. Os museus ficarão com a maior parte, decerto, depois disso, quem sabe?

Os dedos de Floyd percorriam rapidamente o painel de controle enquanto trocava mensagens com aGalaxy.

— Primeira fase da missão concluída. Bill Tee pronto para partir. Plano de vôo de acordo com ocombinado.

Não ficaram surpresos quando o Comandante Laplace respondeu:

— Estão certos de que querem continuar? Lembrem-se de que a decisão final é sua. Eu dou meuapoio, qualquer que seja ela.

— Sim senhor, estamos ambos satisfeitos. Compreendemos como a tripulação se sente. E os ganhoscientíficos poderão ser enormes. Estamos ambos muito entusiasmados.

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— Um momento. Estamos ainda esperando seu relatório sobre o monte Zeus!

Floyd olhou para Van der Berg, que sacudiu os ombros e pegou o microfone.

— Se lhe disséssemos agora, comandante, o senhor nos chamaria de loucos, ou então diria queestávamos fazendo uma brincadeira. Por favor, espere algumas horas até que estejamos de volta,com as provas.

— Hum. Não há muito sentido em dar-lhes uma ordem, não é? De qualquer modo, boa sorte. Osmesmos votos lhes são enviados pelo proprietário da nave. Ele acha que ir até a Tsien é uma ótimaidéia.

— Eu sabia que Sir Lawrence aprovaria — observou Floyd, para seu companheiro. — E dequalquer modo, com a Galaxy totalmente perdida, o Bill Tee não representa um grande risco extra,não é mesmo?

Van der Berg podia compreender seu ponto de vista, embora não concordasse inteiramente. Já tinhaestabelecido sua reputação científica, mas ainda não a tinha desfrutado.

— Ah, antes que eu me esqueça — disse Floyd —, quem era Lucy? Alguém em particular?

— Não pelo que sei. Chegamos a esse nome numa busca num computador, e decidimos que seriauma boa palavra-código. Todos iriam supor que tinha alguma relação com Lúcifer, o que constituiuma meia-verdade capaz de induzir belamente a erro.

— Eu nunca os ouvi, mas há cem anos houve um grupo de músicos populares com um nome muitoestranho — os Beatles. Eles tinham uma música com um nome igualmente estranho: "Lucy no céucom diamantes". Estranho, não é? Quase como se soubessem...

De acordo com o radar de Ganimedes, os restos da Tsien estavam a 300 quilômetros a oeste domonte Zeus, em direção à chamada Zona de Obscuridade e às terras frias além dela. Erampermanentemente frias, mas não escuras; metade do tempo tinham a iluminação brilhante dolongínquo Sol. Mas mesmo ao final do longo dia solar europano, a temperatura ainda era muitoinferior a zero. Como água líquida só podia existir no hemisfério voltado para Lúcifer, a regiãointermediária era um lugar de tempestades constantes, onde chuva e geada, granizo e neve brigavampela supremacia.

Durante o meio século decorrido desde o desastroso pouso da Tsien, a nave movera-se quase milquilômetros. Deve ter ficado à matraca — como a Galaxy — durante vários anos no recém-nascidomar da Galiléia, antes de fixar-se em sua costa desoladoramente inóspita.

Floyd pegou logo o eco do radar, logo que o Bill Tee pousou, no fim de seu segundo trajeto porEuropa. O sinal era surpreendentemente fraco para um objeto tão grande; e logo que romperam asnuvens, compreenderam por quê.

Os restos da nave espacial Tsien, a primeira nave tripulada a descer num satélite de Júpiter,estavam no centro de um pequeno lago circular — obviamente artificial, e ligado por um canal aomar a menos de três quilômetros de distância. Apenas o esqueleto restava, e nem mesmo todo ele; a

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carcaça havia sido toda retirada.

Mas o que a tinha retirado?, perguntou-se Van der Berg. Não havia sinal de vida ali. O lugarparecia estar deserto há anos. No entanto, não restava a menor dúvida de que alguma coisa haviadesmontado os destroços de maneira deliberada e com uma precisão quase cirúrgica.

— Evidentemente seguro para aterrissagem — disse Floyd, esperando alguns segundos pelo acenode cabeça com que Berg, distraidamente, concordou. O geólogo já estava registrando no vídeo tudoque podia ser visto.

O Bill Tee pousou tranqüilamente junto ao lago, e eles olharam, por sobre a água, para aquelemonumento aos impulsos exploradores do homem. Não parecia haver uma maneira cômoda dechegar até os restos da nave, mas isso não tinha maior importância.

Depois de envergarem as roupas espaciais, levaram a coroa de flores até a beira da água,ergueram-na solenemente por um momento em frente da câmera, depois lançaram n'água o tributoda tripulação da Galaxy. Tinha sido muito bem-feita; embora o material disponível fosse apenasmetal flexível, papel e plástico, podia-se acreditar facilmente que as flores e folhas fossem reais.Pregadas na coroa estavam numerosas notas e inscrições, muitas escritas nas letras antigas, agoraoficialmente obsoletas, e não em caracteres romanos.

Ao voltarem para o Bill Tee, Floyd disse, pensativamente:

— Você notou que não ficou quase nada de metal? Apenas vidro, plástico, material sintético.

— E as costelas, e o material de suporte?

— Compostos, principalmente carbono, boro. Alguém por aqui anda faminto de metal, e o conhecequando o vê. Interessante ..

Muito, pensou Van der Berg. Num mundo onde o fogo não podia existir, os metais e ligas eramquase impossíveis de serem obtidos, e tão preciosos quanto... bem, diamantes.

Depois de informar à base e receber agradecimentos do segundo-oficial Chang e seus colegas, elesubiu com o Bill Tee a mil metros e continuou para oeste.

— Ultima etapa — disse ele. — Não há necessidade de subir mais, estaremos lá em dez minutos.Mas não descerei. Se a Grande Muralha é o que pensamos, prefiro não descer. Faremos uma rápidaaproximação e voltaremos à nave. Prepare as câmeras, isso pode ser ainda mais importante do queo monte Zeus.

E, acrescentou para si mesmo, dentro em pouco poderei saber o que vovô Heywood sentiu, nãomuito longe daqui, há 50 anos. Teremos muito o que conversar quando nos encontrarmos — daqui amenos de uma semana, se tudo correr bem.

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50. CIDADE ABERTA

“Que lugar terrível”, pensou Chris Floyd. Apenas granizo, lufadas de neve, visões ocasionais deuma paisagem marcada pelo gelo — ora, o Porto era um paraíso tropical em comparação comaquilo! Mas ele sabia que o lado noturno, a apenas algumas centenas de quilômetros na curva deEuropa, era ainda pior.

Para sua surpresa, o tempo limpou de repente e de forma completa pouco antes de atingirem seuobjetivo. As nuvens levantaram-se, e lá estava logo à frente uma imensa muralha negra, de quaseum quilômetro de altura, cortando em linha reta a trajetória ao Bill Tee. Era tão grande que estavaevidentemente criando seu próprio microclima; os ventos estavam sendo desviados à sua volta,deixando uma área local calma a sotavento.

Era imediatamente reconhecível como o Monolito, e abrigadas a seu pé estavam centenas deestruturas hemisféricas, de um brilho branco fantasmagórico aos raios do sol baixo que outrora foraJúpiter. Pareciam exatamente como colméias antigas feitas de neve, pensou Floyd; alguma coisa emsua aparência provocava outras lembranças da Terra. Van der Berg estava um passo à sua frente.

— Iglus — disse ele. — Mesmo problema, mesma solução. Nenhum outro material de construçãopor aqui, exceto rocha, que seria muito mais difícil de trabalhar. E a baixa gravidade deve ajudar.Algumas daquelas cúpulas são bastante grandes. O que será que vive nelas...

Ainda estavam muito distantes para ver qualquer coisa mover-se nas ruas daquela cidadezinha naorla do mundo. E ao se aproximarem, viram que não eram ruas.

— É Veneza, feita de gelo — disse Floyd. — Só tem iglus e canais.

— Anfíbios — respondeu Van der Berg. — Devíamos ter previsto. Onde será que estão...

— Talvez os tenhamos assustado. O Bill Tee é muito mais barulhento por fora do que aqui dentro.

Por um momento Van der Berg ocupou-se muito filmando e relatando à Galaxy, e não pôderesponder. Depois, disse:

— Não podemos partir sem estabelecer algum contato. Você tem razão, isso é muito maisimportante do que o monte Zeus.

— E pode ser mais perigoso.

— Não vejo nenhum sinal de tecnologia avançada — minto, aquilo ali parece ser um velho discode radar do século XX! Pode aproximar-se?

— E levar um tiro? Não, obrigado. Além disso, estamos acabando nosso tempo. Apenas mais dezminutos — se você quiser voltar novamente à nave.

— Não podemos pelo menos pousar e dar uma olhada? Há uma faixa de rocha limpa, ali. Ondeandará essa gente?

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— Com medo, como eu. Nove minutos. Vou sobrevoar a cidade. Filme tudo o que puder. Sim,Galaxy, estamos bem. Só muito ocupados agora. Chamamos depois.

— Aquilo não é radar, mas alguma coisa tão interessante quanto um radar. Está apontandodiretamente para Lúcifer. É um forno solar! Tem muita lógica num lugar onde o sol não sai do lugare não se pode acender fogo.

— Oito minutos. Pena que todos tenham se escondido.

— Ou tenham voltado para a água. Podemos olhar aquele edifício grande com um espaço aberto àvolta? Parece ser a prefeitura.

Van der Berg apontava para uma estrutura muito maior do que as outras, e de desenho bastantediferente: era uma coleção de cilindros verticais, como tubos de órgão descomunais. Além disso,não era do branco uniforme dos iglus, mas mostrava um colorido complexo em toda a suasuperfície.

— Arte europana! — exclamou Van der Berg. — É uma espécie de mural! Mais perto, mais perto!Temos de registrar!

Obedientemente, Floyd baixou mais, mais, e mais. Parecia ter esquecido totalmente suas restriçõesanteriores sobre o tempo de que dispunham; e de repente, com espantada incredulidade, Van deBerg percebeu que iam pousar.

O cientista afastou os olhos do chão que se aproximava rapidamente e olhou para seu piloto.Embora estivesse ainda, evidentemente, em pleno controle do módulo, Floyd parecia hipnotizado.Olhava para um ponto fixo, diretamente à frente do Bill Tee, que descia.

— O que está acontecendo, Chris? — gritou Van der Berg. — Você sabe o que está fazendo?

— Claro. Você não o está vendo?

— Vendo quem?

— Aquele homem, de pé junto ao cilindro maior. E ele não está com nenhuma roupa espacial!

— Não seja idiota, Chris. Não tem ninguém ali!

— Ele está olhando para cima, para nós. Está acenando. Acho que o reconhece... Oh, meu Deus!

— Não tem ninguém — ninguém! Suba!

Floyd o ignorou totalmente. Estava calmo e consciente, fazendo um pouso perfeito e cortando omotor no momento certo, antes da descida.

Muito cuidadosamente, verificou os instrumentos e ligou os botões de segurança. Só depois deconcluir a seqüência de pouso voltou a olhar pela janela de observação, com uma expressãointrigada, mas feliz, no rosto.

— Alô, vovô — disse suavemente para ninguém que Van der Berg pudesse ver.

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51. FANTASMA

Nem mesmo em seus pesadelos mais horríveis o Dr. Van der Berg jamais imaginara ficar perdidonum mundo hostil, num pequeno módulo orbital, tendo como companheiro um louco. Mas pelomenos Chris Floyd não parecia ser violento; talvez pudesse convencê-lo a partir novamente e voarcom segurança até a Galaxy...

Floyd continuava olhando para o nada, e de tempos em tempos seus lábios mexiam-se numaconversa silenciosa. A cidade estranha permanecia totalmente deserta, e quase que se podiaimaginar ter sido abandonada há séculos. Van der Berg notou, porém, alguns indícios de ocupaçãorecente. Embora os foguetes do Bill Tee tivessem soprado a fina camada de neve imediatamente àvolta deles, o resto da pequena praça continuava coberto por ela. Era uma página arrancada de umlivro, coberta de sinais e hieróglifos, alguns dos quais ele podia ler.

Um objeto pesado tinha sido arrastado naquela direção — ou avançado de maneira inábil por suaprópria força. Partindo da entrada agora fechada de um iglu, havia a trilha inequívoca de umveículo de rodas. Muito distante para perceber os detalhes estava um pequeno objeto, que podia seruma vasilha jogada fora. Talvez os europanos fossem, por vezes, tão descuidados quanto oshumanos.

A presença de vida era inequívoca, esmagadora. Van der Berg sentia-se vigiado por mil olhos —ou outros sentidos — e era impossível saber se as mentes atrás deles eram amigas ou hostis.Poderiam ate mesmo ser indiferentes, estar apenas esperando que os intrusos fossem embora paracontinuar seus afazeres misteriosos e interrompidos.

E então Chris falou novamente para o vazio.

— Adeus, avô — disse tranqüilamente, com uma leve tristeza. Voltando-se para Van der Berg,acrescentou num tom normal de conversa: — Ele diz que está na hora de irmos. Acho que vocêdeve estar pensando que sou louco.

Van der Berg achou que era melhor não concordar. De qualquer modo, tinha alguma outra coisacom que se preocupar.

Floyd estava agora lendo preocupadamente os dados que o computador do Bill Tee lhe estavafornecendo. Por fim disse, num compreensível tom de desculpas:

— Sinto muito, Van. O pouso consumiu mais combustível do que eu tinha previsto. Teremos demudar o perfil da missão.

Isso, pensou Van der Berg, desoladamente, era uma maneira bastante indireta de dizer: "Não

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podemos voltar à Galaxy". Com dificuldade conseguiu reprimir um "Diabo desse seu avô!", esimplesmente perguntou:

— Então, o que vamos fazer?

Floyd estava estudando o mapa, e alimentando o computador com mais números.

— Não podemos ficar aqui. (Por que não?, pensou Van der Berg. Se vamos morrer de qualquermodo, poderíamos usar nosso tempo para aprender o máximo possível.) Devemos, portanto,encontrar um lugar onde o veículo espacial da Universe possa nos apanhar com facilidade.

Van der Berg deu um enorme suspiro mental de alívio. Tolice sua não ter pensado nisso; sentiu-secomo um homem perdoado exatamente quando estava sendo levado à forca. A Universe podiachegar a Europa em menos de quatro dias; as acomodações do Bill Tee não eram exatamenteluxuosas, mas infinitamente preferíveis às outras opções que podia imaginar.

— Longe deste tempo horrível. Uma superfície estável, plana, mais perto da Galaxy, embora eu nãotenha certeza se isso ajudará muito. Não deve ser problema. Temos o suficiente para 500quilômetros, mas não podemos correr o risco de tentar atravessar o mar.

Por um momento, Van der Berg pensou no monte Zeus, onde havia tanta coisa a fazer. Mas asperturbações sísmicas — que se tornavam piores à medida que Io entrava em linha com Lúcifer —afastavam totalmente essa possibilidade. Seus instrumentos ainda estariam funcionando? Saberiadentro em pouco, tão logo tivessem resolvido o problema imediato.

— Voarei pela costa até o equador; é o melhor lugar para a descida de um módulo orbital. O mapade radar mostrava algumas áreas planas perto da costa a 60 oeste.

— Eu sei. O platô Massada. (E, acrescentou Van der Berg, talvez a oportunidade de explorar maisum pouco. Nunca se deve perder uma oportunidade inesperada...)

— Será então no platô. Adeus, Veneza. Adeus, vovô.

Quando o rumor abafado dos foguetes de freagem morreu, Chris ligou pela última vez os botões desegurança, soltou o cinto, estendeu os braços e pernas ao máximo que o pouco espaço do Bill Teepermitia.

— Uma paisagem nada má para Europa — disse alegremente. — Agora temos quatro dias para verse as reações deste tipo de veículo são tão ruins quanto dizem. E então, qual de nós dois começa afalar primeiro?

52. NO DIVÃ

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Gostaria de ter estudado um pouco de psicologia, pensou Van der Berg, pois então poderiaexplorar os parâmetros da sua alucinação. Não obstante, ele agora parece perfeitamente são, excetoquanto a esse assunto.

Embora quase toda cadeira fosse confortável a um sexto de gravidade, Floyd tinha reclinadototalmente a sua e trançara as mãos atrás da cabeça. Van der Berg lembrou-se de repente que eraessa a posição clássica de um paciente nos dias da velha análise freudiana, ainda não totalmentedesacreditada.

Preferiu deixar que o outro falasse primeiro, em parte por simples curiosidade, mas principalmenteporque esperava que o quanto mais cedo Floyd expulsasse aquele absurdo do seu sistema, maisdepressa estaria curado — ou pelo menos, inofensivo. Não se sentia, porém, demasiado otimista:devia haver originalmente algum problema sério, profundo, para provocar uma ilusão tão forte.

Era desconcertante ver que Floyd concordava totalmente com ele e já tinha feito seu própriodiagnóstico.

— Minha classificação na Psicologia de Tripulação é A.l positivo — disse ele. — Isso significaque me deixam até ler a minha pasta, o que só é permitido a 10% do pessoal. Portanto, estou tãodesnorteado quanto você. Mas eu vi meu avô, e ele falou comigo. Nunca acreditei em fantasmas —quem acredita? — mas isso deve significar que ele está morto. Gostaria de tê-lo conhecido melhor.Eu estava ansioso pelo nosso encontro. Ainda assim, agora tenho alguma coisa para recordar.

Van der Berg perguntou:

— Conte-me exatamente o que ele disse.

Chris deu um sorriso um pouco triste, e respondeu:

— Nunca tive uma daquelas memórias fonográficas, e estava tão surpreso com tudo aquilo que nãolhe posso repetir muitas das palavras exatas.

Fez uma pausa, e um ar de concentração apareceu-lhe no rosto.

— É estranho. Agora, que procuro lembrar, não me parece que tenhamos usado palavras.

Pior ainda, pensou Van der Berg: telepatia, além de vida depois da morte. Mas disse apenas:

— Bem, conte-me a essência geral da... ah... conversa. Eu não ouvi você dizer nada, lembre-se.

— Certo. Ele disse alguma coisa como "Queria vê-lo novamente, e estou muito satisfeito. Tenhocerteza de que tudo sairá bem e a Universe os recolherá logo".

“Mensagem inócua, típica dos espíritos”, pensou Van der Berg. “Nunca dizem alguma coisa útil ousurpreendente — apenas refletem as esperanças e medos do ouvinte. Ecos do subconsciente, comzero de informação...”

— Continue.

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— Perguntei então onde estavam todos, por que o lugar estava deserto. Ele riu e deu-me umaresposta que ainda não compreendo. Alguma coisa como: "Sei que você não pretendia causarnenhum mal. Quando vimos você vindo, mal tivemos tempo de dar o aviso. Todos os" — e ele usouuma palavra que eu não poderia pronunciar, mesmo que me lembrasse — "entraram na água. Elespodem andar muito depressa quando precisam! Não sairão enquanto vocês não forem embora, e ovento tiver soprado o veneno para longe.'' O que estaria ele querendo dizer? Nosso escapamento épuro vapor, e a maior parte da atmosfera deles é vapor, de qualquer modo.

“Bem”, pensou Van der Berg, “acho que não há lei dizendo que uma alucinação — como um sonho— tem de ser lógica. Talvez o conceito de "veneno" simbolize algum medo profundo que Chris,apesar de sua excelente classificação psicológica, é incapaz de enfrentar. De qualquer modo, não éproblema meu. Veneno, realmente! O propelente do Bill Tee é água destilada pura, mandada deGanimedes...”

“Mas espere um minuto. Que temperatura tem quando sai do cano de descarga? Não li em algumlugar...?”

— Chris — disse Van der Berg, cuidadosamente —, depois que a água passa pelo reator, toda elasai como vapor?

— O que mais poderia ser? Oh, se esquentarmos muito, 10 ou 15% se desfazem liberandohidrogênio e oxigênio.

Oxigênio. Van der Berg sentiu um calafrio, embora a temperatura no veículo fosse confortável. Eramuito improvável que Floyd compreendesse as implicações do que acabara de dizer. Era umconhecimento fora de seu campo de especialidade.

— Você sabia, Chris, que para os organismos primitivos da Terra, e certamente para criaturas quevivem numa atmosfera como a de Europa, o oxigênio é um veneno mortal?

— Você está brincando.

— Não estou. É venenoso até para nós, em alta pressão.

— Eu sabia disso, aprendemos em nosso curso de mergulho.

—Seu... avô... disse uma coisa que fazia sentido. Era como se tivéssemos espalhado gás demostarda na cidade. Bem, não tão sério assim, pois ele se dispersaria rapidamente.

— Então agora você acredita em mim.

— Eu nunca disse que não acreditava.

— Você seria doido, se acreditasse!

Isso quebrou a tensão, e deram juntos uma boa risada.

— Você não disse como ele estava vestido.

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— Um roupão antiquado, tal como usava quando eu era menino, pelo que me lembro. Parecia muitoconfortável.

— Outros detalhes?

— Agora que você falou nisso, ele parecia muito mais jovem, tinha mais cabelo do que quando o vipela última vez. Portanto, não creio que ele fosse... como posso dizer?... real. Alguma coisa comouma imagem gerada pelo computador. Ou um holograma sintético.

— O monolito!

— Sim, foi o que pensei. Você se lembra como Dave Bowman apareceu para vovô na Leonov?Talvez agora seja a vez dele. Mas por quê? Não me fez nenhuma advertência, não deixou nenhumamensagem especial. Apenas disse adeus e desejou-me felicidades...

Durante alguns momentos embaraçosos, o rosto de Floyd começou a contrair-se; depois elecontrolou-se e sorriu para Van der Berg.

— Já falei demais. Agora é a sua vez de explicar o que um diamante de um milhão de toneladasestá fazendo num mundo feito principalmente de gelo e enxofre. E bom dar uma explicação bemboa.

— É boa — disse o Dr. Rolf Van der Berg.

53. PANELA DE PRESSÃO

— Quando eu estudava em Flagstaff — começou Van der Berg —, encontrei um velho livro deastronomia que dizia: “O sistema solar consiste do Sol, Júpiter — e restos diversos.'' Coloca aTerra em seu devido lugar, não é? E é pouco justo com Saturno, Urano e Netuno, os outros trêsgigantes de gás representam quase que o mesmo que Júpiter. Mas é melhor eu começar com Europa.Como sabe, ela era uma planície de gelo antes que Lúcifer começasse a aquecê-la — a maiorelevação tinha apenas algumas centenas de metros — e não ficou muito diferente depois que o gelose derreteu e grande parte da água migrou e se congelou no lado noturno. A partir de 2015 —quando começaram nossas observações detalhadas — até 2038, havia apenas um ponto elevado emtoda a lua — e sabemos o que era. Certamente sabemos, Mas embora eu o tivesse visto com meuspróprios olhos, ainda não posso imaginar o monolito como uma muralha! Sempre o visualizo de pé,ou flutuando no espaço. Acho que sabemos hoje que ele pode fazer qualquer coisa, tudo o queimaginarmos, e muito mais ainda. Bem, alguma coisa aconteceu em Europa em 2037, entre umaobservação e a seguinte. O monte Zeus — todos os seus dez quilômetros de altura — apareceu derepente. Um vulcão daquele tamanho não espoca assim em questão de semanas. Além disso, Europanão tem a atividade vulcânica de Io.

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— É bastante ativa para mim — resmungou Floyd. — Você sentiu este?

— E se fosse um vulcão — continuou Van der Berg — teria cuspido uma enorme quantidade de gásna atmosfera; houve algumas modificações, mas não o bastante para justificar tal explicação. Eraum mistério total, e como tínhamos medo de chegar muito perto e estávamos ocupados com osnossos projetos, não fizemos muita coisa além de imaginar teorias fantásticas. Nenhuma delas,como se viu, tão fantástica quanto a verdade... Eu desconfiei primeiro a partir de algumasobservações ao acaso, em 2057, mas não as levei realmente a sério durante alguns anos. Então osindícios tornaram-se mais fortes; se não fossem tão bizarros, esses indícios teriam sido bastanteconvincentes. Mas antes que eu pudesse acreditar que o monte Zeus era feito de diamante, erapreciso encontrar uma explicação. Para um bom cientista, e eu me considero bom, nenhum fato érealmente respeitável até que seja explicável por uma teoria. A teoria pode estar errada — emgeral está, pelo menos nos detalhes — mas deve constituir uma hipótese de trabalho. E como vocêdisse, um diamante de um milhão de toneladas num mundo de gelo e enxofre precisa ser explicado.É claro que agora é perfeitamente óbvio, e sinto-me um idiota por não ter visto a resposta há anos.Poderia ter evitado muita coisa, e pelo menos uma morte, se eu a tivesse visto.

Fez uma pausa, pensativo, e de repente perguntou a Floyd:

— Alguém já lhe falou do Dr. Paul Kreuger?

— Não; por que teriam falado? Mas eu sei de sua existência, é claro.

— Fiquei pensando. Muitas coisas estranhas aconteceram, e duvido que algum dia tenhamos todasas respostas. De qualquer modo, agora não é mais segredo, e portanto não importa. Há dois anosmandei uma mensagem confidencial a Paul. Ah, desculpe, eu devia ter dito: ele é meu tio. Mandei-lhe uma mensagem resumindo minhas descobertas, e pedindo se podia explicá-las ou refutá-las. Aresposta não demorou muito, com todos aqueles computadores à sua disposição. Infelizmente, elefoi descuidado, ou alguém estava grampeando os seus computadores — tenho certeza de que osseus amigos, Chris, já terão uma boa idéia de quem. Em poucos dias ele desenterrou um artigo de80 anos de idade na revista científica Nature — sim, era impresso em papel, naquele tempo! — queexplicava tudo. Bem, quase tudo. O artigo foi escrito por um homem que trabalhava num dosgrandes laboratórios nos Estados Unidos — da América, claro, os Estados Unidos da África do Sulnão existiam então. Era um lugar onde planejavam armas nucleares, portanto conheciam algumacoisa sobre as altas temperaturas e pressões... Não sei se o Dr. Ross — esse o seu nome — tinhaalguma coisa com as bombas, mas sua formação deve tê-lo levado a pensar sobre as condiçõesexistentes no interior dos planetas gigantes. Nesse artigo de 1984 — desculpe, 1981, e quepor sinal tem menos de uma página — ele fazia algumas sugestões muito interessantes... Observavaque havia quantidades gigantescas de carbono — na forma de metano, CH4 — nos gigantes de gás.Até 17% da massa total! Calculou que às pressões e temperaturas nos núcleos__ milhões deatmosferas — o carbono se separaria, afundaria para os centros e — você já adivinhou — secristalizaria. Era uma bela teoria: não creio que ele tivesse sequer sonhado com a possibilidade detestá-la... Essa é, portanto, a primeira parte da história. Sob certos aspectos, a segunda parte éainda mais interessante. Vamos tomar mais um café?

— Aqui está. E acho que já adivinhei também a segunda parte. Tem, evidentemente, alguma coisa a

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ver com a explosão de Júpiter.

— Não foi explosão, e sim implosão. Júpiter caiu dentro de si mesmo, depois pegou fogo. Sobcertos aspectos, foi como a detonação de uma bomba nuclear, exceto que o novo estado era estável— na verdade, um minissol. Ora, coisas muito estranhas ocorrem nas implosões; é quase como seos pedaços pudessem passar uns através dos outros e sair pelo outro lado. Qualquer que seja omecanismo, um diamante do tamanho de uma montanha foi posto em órbita. Ele deve ter feitocentenas de revoluções, deve ter sido perturbado pelos campos gravitacionais de todos os satélitesantes de acabar em Europa. E as condições devem ter sido exatamente as necessárias: um corpodeve ter alcançado o outro, de modo que a velocidade de impacto foi de apenas alguns quilômetrospor segundo. Se o encontro tivesse sido frontal, bem, hoje não haveria Europa, e muito menos omonte Zeus! Tenho pesadelos por vezes, pensando que poderia ter se chocado conosco, comGanimedes... A nova atmosfera também deve ter amortecido o impacto; mesmo assim, o choquedeve ter sido apavorante. Pergunto-me o que ele fez aos nossos amigos europanos? Certamenteprovocou uma série de perturbações tectônicas, que ainda continuam.

— E políticas — disse Floyd. — Estou começando a perceber algumas delas. Não é de espantarque os E.U.A.S. estivessem preocupados.

— Entre outros.

—Mas será que alguém pensou seriamente que poderia chegar a esses diamantes?

— Nós conseguimos — respondeu Van der Berg, apontando para a popa do módulo. — Dequalquer modo, o simples efeito psicológico sobre a indústria seria enorme. É por isso que haviatanta gente ansiosa por saber se isso era verdade ou não.

— Agora sabem. E o que acontecerá?

— Não é problema meu, graças a Deus. Mas espero ter feito uma contribuição de peso para oorçamento científico de Ganimedes. Bem como para o meu, disse consigo mesmo.

54. REUNIÃO

— O que fez você pensar que eu estava morto? — exclamou Heywood Floyd. — Há anos que nãome sinto tão bem!

Paralisado de espanto, Chris Floyd olhava para a grade do alto-falante. Sentiu-se muito melhor,mas ao mesmo tempo experimentava uma certa indignação. Alguém — ou alguma coisa — lhe tinhafeito uma cruel pilhéria, mas qual a razão possível?

A 50 milhões de quilômetros de distância — e aproximando-se várias centenas de, quilômetros a

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cada segundo — Heywood Floyd também parecia levemente indignado. Mas também pareciavigoroso e alegre, e sua voz irradiava a felicidade que evidentemente sentia ao saber que Chrisestava bem.

— E tenho boas notícias para você. A cápsula espacial vai apanhá-los primeiro. Lançará algunsmedicamentos urgentes junto da Galaxy, depois irá até vocês e os trará ao nosso encontro na órbitaseguinte. Depois a Universe descerá cinco órbitas. Vocês poderão receber seus amigos quandoeles vierem para cá. Basta por ora. Direi apenas que estou ansioso por recuperarmos o tempoperdido. Espero sua resposta dentro de, digamos, três minutos.

Por um momento, houve um silêncio total a bordo do Bill Tee Van der Berg não ousava olhar paraseu companheiro. E então Floyd tomou o microfone e disse:

— Vovô, que surpresa maravilhosa. Ainda estou em estado de choque. Mas eu sei que o encontreiaqui em Europa, eu sei que você me disse adeus. Tenho tanta certeza disso como tenho de queestava falando há pouco comigo... Bem, temos muito para conversar sobre isso. Mas lembra-se decomo Dave Bowman falou-lhe a bordo da Discovery? Talvez tenha sido alguma coisa assim...Vamos esperar tranqüilamente que nos venham apanhar. Estamos bem, há abalos sísmicosocasionais, mas nada preocupantes. Até nos encontrarmos, mando-lhe muito amor.

Não conseguia lembrar-se de quando tinha usado essa palavra com o avô pela última vez.

Depois do primeiro dia, a cabina do veículo espacial começou a cheirar. Depois do segundo, nãoperceberam — mas concordaram em que a comida já não era tão gostosa. Também tinhamdificuldade de dormir, e houve até mesmo acusações de que roncavam.

No terceiro dia, apesar das freqüentes notícias da Universe, da Galaxy e da própria Terra, o tédioestava começando a se fazer sentir, e eles tinham esgotado seu repertório de anedotas picantes.

Mas era o último dia. Antes que terminasse, o Lady Jasmine desceu à procura de seu filho perdido.

55. MAGMA

— Baas — disse o computador central de comunicações do apartamento —, gravei aqueleprograma especial de Ganimedes enquanto você dormia. Quer vê-lo agora?

— Sim — respondeu o Dr. Paul Kreuger. — Velocidade dez vezes. Nenhum som.

Ele sabia que haveria muito material introdutório que podia saltar e ver mais tarde, se quisesse.Queria entrar em ação o mais depressa possível.

As legendas apareceram, e ali estava, na tela, Victor Willis, em algum ponto de Ganimedes,

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gesticulando violentamente em total silêncio. O Dr. Paul Kreuger, como tantos outros cientistas,tinha um certo preconceito contra Willis, embora reconhecesse que ele desempenhava uma funçãoútil.

Willis desapareceu de repente, sendo substituído por algo menos agitado — o monte Zeus, emboraeste fosse muito mais ativo do que deveria ser uma montanha bem comportada. O Dr. Kreuger ficousurpreso de ver quanto ele tinha se modificado desde a última transmissão de Europa.

— Tempo real — ordenou ele. — Som.

"... quase cem metros por dia, e a inclinação aumentou em quinze graus. A atividade tectônica éagora violenta, e muita lava corre em volta da base. Tenho aqui o Dr. Van der Berg. Van, o queacha?”

Meu sobrinho parece estar muito bem, pensou o Dr. Kreuger, levando-se em conta o que elepassou. Boa raça, claro.

"A crosta evidentemente nunca se recuperou do impacto original, e está cedendo sob as tensõesacumuladas. O monte Zeus vem afundado lentamente desde que o descobrimos, mas o ritmo seintensificou muito nas últimas semanas. O movimento é perceptível de um dia para o outro.”

"Quanto tempo para que ele desapareça totalmente?”

“Não posso crer realmente que isso acontecerá...”

Houve um corte rápido para outra tomada da montanha, com Victor Willis falando em off.

"Isso foi o que o Dr. Van der Berg disse há dois dias. Algum comentário agora, Van?”

"É, parece que eu estava enganado. Está afundando como um elevador. E incrível — resta apenasum quilômetro! Recuso-me a fazer quaisquer novas previsões...”

"O que é muito prudente, Van. Bem, isso foi apenas ontem. Vamos mostrar-lhes agora umaseqüência temporal do afundamento, até o momento em que perdemos a câmera..!' O Dr. PaulKreuger inclinou-se para a frente em sua poltrona, observando o ato final do longo drama no qualdesempenhara um papel tão remoto e, não obstante, vital.

Não havia necessidade de aumentar a velocidade da projeção: ele já a estava vendo a quase cemvezes mais rápido. Uma hora era condensada num minuto — a vida de um homem no tempo de vidade uma boborleta.

Ante seus olhos, o monte Zeus estava afundando. Jatos de enxofre fundido projetavam-se para o céuà volta dele, em louca velocidade, formando parábolas de um azul brilhante, elétrico. Era como umnavio afundando num mar tempestuoso, cercado de fogo-de-santelmo. Nem mesmo os vulcõesespetaculares de Io podiam comparar-se a essa exibição de violência.

"O maior tesouro jamais descoberto desaparece da vista — disse Willis, num tom moderado ereverente. — Infelizmente não podemos mostrar o final. E vocês vão ver por quê.”

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A ação tornava-se mais lenta, em tempo real. Restavam apenas algumas centenas de metros damontanha, e as erupções à sua volta eram agora mais lentas.

De repente, toda a imagem inclinou-se; os estabilizadores da câmera, que vinham resistindobravamente ao contínuo tremor de terra, cederam na batalha desigual. Por um momento pareceu quea montanha estava subindo outra vez — mas era o tripé da câmera que caía. A última cena deEuropa foi um close mostrando uma onda brilhante de enxofre líquido que caía sobre oequipamento.

“Desapareceu para sempre!", lamentou Willis "Riquezas infinitamente maiores do que tudo o queas minas de Golconda ou Kimberley jamais produziram! Que perda trágica, lamentável!”

— Que idiota! — resmungou o Dr. Kreuger. — Será que ele não compreende...

Era o momento de uma outra carta para Nature. E este segredo era grande demais para serescondido.

56. TEORIA DA PERTURBAÇÃO

Do: Prof. Paul Kreuger, F.R.S. etc.

Para: O Diretor, Banco de Dados da revista NATURE (Acesso público)

ASSUNTO: MONTE ZEUS E DIAMANTES DE JÚPITER Como se sabe hoje perfeitamente, aformação europana conhecida como monte Zeus era originalmente parte de Júpiter. A sugestão deque os núcleos dos gigantes de gás poderiam ser constituídos de diamante foi feita pela primeiravez por Marvin Ross, do Laboratório Nacional Lawrence Livermore da Universidade daCalifórnia, num artigo clássico, "A camada de gelo em Urano e Netuno — diamantes do céu?"(Nature, vol. 292, no5.822,p. 435-36, 30 de julho de 1981.) Surpreendentemente, Ross nãoestendeu seus cálculos a Júpiter.

O afundamento do monte Zeus provocou um verdadeiro coro de lamentações, todas elas totalmenteridículas — pelas razões dadas a seguir.

Sem entrar em detalhes, que serão apresentados numa comunicação posterior, calculo que o núcleode diamante de Júpiter devia ter uma massa original de pelo menos 1028 gramas. Isso é dez bilhõesde vezes a massa do monte Zeus.

Embora grande parte desse material tenha, sem dúvida, sido destruída na detonação do planeta eformação do sol — aparentemente artificial — Lúcifer, é inconcebível que o monte Zeus tenha sidoo único fragmento a sobreviver. Embora uma boa parte tenha caído novamente em Lúcifer, umapercentagem substancia deve ter entrado em órbita — e deve continuar ali. A teoria da perturbação

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elementar mostra que ele voltará periodicamente ao ponto de origem. Não é possível, decerto, umcálculo exato, mas estimo que pelo menos um milhão de vezes a massa do monte Zeus ainda está emórbita na vizinhança de Lúcifer. A perda de um pequeno fragmento, localizado de modo poucoconveniente em Europa, é, portanto, virtualmente destituído de importância. Proponho a instalação,logo que possível, de um sistema de radar espacial dedicado à busca desse material.

Embora uma película de diamante extremamente fina venha sendo produzida em massa desde 1987,nunca foi possível fazer diamante em grande quantidade. Sua disponibilidade em quantidadesmegatônicas poderia transformar totalmente muitas indústrias e criar outras completamente novas.Em particular, como Isaacs et al mostraram há quase cem anos (ver Science, vol. 151, p. 682-83,1966), o diamante é o único material de construção que possibilitaria o chamado elevadorespacial, permitindo o transporte para fora da Terra a custo insignificante. As montanhas dediamante agora em órbita entre os satélites de Júpiter podem abrir todo o sistema solar; comoparecem triviais, em comparação, todos os antigos usos da forma quartzo-cristalizada do carbono!

Para ser mais completo, eu gostaria de mencionar outra localização de enormes quantidades dediamante — lugar infelizmente ainda mais inacessível do que o núcleo de um planeta gigantesco...

Já se sugeriu que as crostas das estrelas de nêutron podem ser, em grande parte, compostas dediamante. Como a estrela de nêutron mais próxima que conhecemos está a quinze anos-luz dedistância e tem uma gravidade de superfície de 70 milhões de vezes a da Terra, dificilmentepoderia ser considerada como uma fonte plausível de abastecimento.

Mas, apesar disso, quem poderia ter imaginado que um dia nós seríamos capazes de atingir onúcleo de Júpiter?

57. INTERLÚDIO EM GANIMEDES

— Esses pobres colonizadores primitivos! — lamentou Mihailovich. — Estou horrorizado, não háum único piano de concerto em todo Ganimedes! É claro que aquele punhadinho de optrônica emmeu sintetizador pode reproduzir qualquer instrumento musical. Mas um Steinway ainda é umSteinway, assim como um Stradivarius ainda é um Stradivarius.

Suas queixas, embora não totalmente sérias, já tinham provocado reações entre a intelectualidadelocal. O popular programa Manhã de Ganimedes tinha até mesmo comentado maliciosamente:"Honrando-nos com sua presença, nossos distintos hóspedes elevaram — embora temporariamente— o nível cultural de ambos os mundos...”

O ataque visava principalmente a Willis, Mihailovich e M'Bala, que tinha demonstrado umentusiasmo um pouco excessivo em levar a ilustração aos nativos atrasados. Maggie M provocouum verdadeiro escândalo com sua descrição desinibida dos tórridos romances de Zeus-Júpiter com

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Io, Europa, Ganimedes e Calisto. Aparecer à ninfa Europa sob a forma de um touro branco já erabastante ruim, e seus esforços para proteger Io e Calisto da compreensível ira de sua consorte Heraforam francamente patéticos. Mas o que perturbou muitos residentes foi a notícia de que omitológico Ganimedes era do sexo errado.

Para fazer-lhes justiça, as intenções dos autonomeados embaixadores culturais eram bastantelouváveis, embora não totalmente desinteressadas. Sabendo que ficariam parados em Ganimedesdurante meses, reconheciam o perigo do tédio depois de passada a novidade da situação. E tambémdesejavam aproveitar da melhor maneira possível os seus talentos, em benefício de todos os queestavam à sua volta. Mas nem todos gostariam — ou tinham tempo — de ser beneficiados, alinaquele posto avançado da alta tecnologia no Sistema Solar.

Yva Merlin, por sua vez, adaptou-se perfeitamente e divertia-se muito. Apesar de sua fama naTerra, poucos dos medes tinham ouvido falar nela. Podia andar nos corredores públicos e nascúpulas pressurizadas de Ganimedes Central sem que as pessoas se voltassem ou trocassemexcitados murmúrios de reconhecimento. É verdade que era reconhecida, mas apenas como outrodos visitantes da Terra.

Greenberg, com sua modéstia tranqüilamente eficiente, enquadrara-se na estrutura administrativa etecnológica do satélite e já fazia parte de meia dúzia de juntas consultivas. Seus serviços eram tãoapreciados que foi advertido da possibilidade de não o deixarem partir.

Heywood Floyd observava as atividades de seus companheiros de viagem com divertimento, masdelas pouco participava. Sua maior preocupação agora era estabelecer pontes de contato com Chrise ajudar a planejar o futuro do neto. Agora que a Universe — com menos de cem toneladas depropelente em seus tanques — estava seguramente pousada em Ganimedes, havia muita coisa a serfeita.

A gratidão que todos a bordo da Galaxy sentiam para com os seus salvadores facilitou a fusão dasduas tripulações. Quando os reparos, revisão e reabastecimento fossem concluídos, elas voariampara a Terra juntas. O moral recebera grande impulso com a notícia de que Sir Lawrence estavapreparando o contrato para uma Galaxy II muito aperfeiçoada — embora a construçãoprovavelmente não começasse enquanto os seus advogados não solucionassem a questão com oLloyds. Os seguradores estavam ainda tentando provar que o novo crime de seqüestro espacial nãoera coberto pela sua apólice.

E quanto a esse crime, ninguém foi condenado, e nem mesmo acusado. Evidentemente, ele tinhasido planejado durante anos por uma organização eficiente e de recursos. Os Estados Unidos daÁfrica do Sul alegaram inocência em altos brados, dizendo que receberiam com satisfação umainvestigação oficial. Der Bund também manifestou indignação e, é claro, culpou a Shaka.

O Dr. Kreuger não se surpreendeu ao encontrar mensagens iradas, mas anônimas, em suacorrespondência, acusando-o de traidor. Eram habitualmente em africâner, mas por vezes comerros sutis de gramática ou fraseologia que o levavam a desconfiar que faziam parte de umacampanha de desinformação.

Depois de refletir um pouco, entregou-as à ASTROPOL — "Que provavelmente já as tem", pensou

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tristemente. A ASTROPOL agradeceu-lhe mas, como esperava, não fez comentários.

Em várias ocasiões, os segundo-oficiais Floyd e Chang e outros membros da tripulação da Galaxyforam convidados a excelentes jantares em Ganimedes pelos dois misteriosos personagens queFloyd já tinha encontrado. Quando os convidados a essas refeições francamente decepcionantescompararam depois suas notas, acharam que seus corteses interrogadores estavam tentando reunirelementos contra a Shaka, mas sem muito sucesso.

O Dr. Van der Berg, que dera início a tudo aquilo — e saíra-se muito bem, profissional efinanceiramente —, estava agora pensando o que fazer com suas novas oportunidades. Receberamuitas ofertas atraentes das universidades e de organizações científicas da Terra — mas,ironicamente, era impossível aproveitar-se delas. Tinha vivido por muito tempo na gravidade deGanimedes, que era de um sexto, e ultrapassara o ponto médio em que poderia voltar à Terra.

A Lua continuava sendo uma possibilidade, bem como Pasteur, como Heywood Floyd lhe explicou.

— Estamos tentando criar uma universidade espacial ali — disse ele —, de modo que os quevivem no espaço e não podem tolerar a gravidade da Terra ainda possam comunicar-se e atuar,dentro do tempo real, com ela. Teremos salas de aula, salas de concerto, laboratórios — alguns decomputador —, mas parecerão tão reais que nem se notará a diferença. E você poderá fazercompras na Terra, por meio do vídeo, para utilizar seus ganhos ilícitos.

Para sua surpresa, Floyd não só redescobriu um neto como adotou um sobrinho: estava agora ligadoa Van der Berg tanto quanto a Chris, por uma combinação singular de experiências comuns. Acimade tudo estava o mistério da aparição na deserta cidade europana, à sombra do monolito.

Chris não tinha qualquer dúvida:

— Eu o vi, e o ouvi, com a mesma clareza de agora — disse ao avô. — Mas seus lábios não semexeram — e o estranho é que isso não me pareceu estranho. Parecia perfeitamente natural. Toda aexperiência foi cercada de um sentimento de coisa natural. Um pouco triste — não, melancólicoseria uma palavra melhor. Ou talvez resignado.

— Não nos foi possível deixar de pensar no seu encontro com Bowman a bordo da Discovery —acrescentou Van der Berg.

— Tentei contato com ele pelo rádio antes de pousarmos em Europa. Parecia uma ingenuidade, masnão conseguiu imaginar nenhuma outra opção. Eu tinha certeza que ele estava ali, de alguma forma.

—E nunca teve nenhum tipo de resposta?

Floyd hesitou. A lembrança estava desaparecendo rapidamente, mas ele de súbito recordou-sedaquela noite em que o mini monolito apareceu em sua cabina.

Nada acontecera, mas, apesar disso, a partir daquele momento teve certeza de que Chris estava asalvo e que eles se encontrariam outra vez. .

— Não — disse lentamente. — Não tive qualquer resposta. Afinal de contas, podia ter sido apenas

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um sonho.

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VIII - O REINO DO ENXOFRE

58. FOGO E GELO

Antes que a era da exploração planetária se iniciasse em fins do século XX, poucos cientistasteriam acreditado que a vida pudesse florescer num mundo tão distante do sol. Não obstante,durante meio bilhão de anos, os mares ocultos de Europa vinham sendo pelo menos tão prolíficosquanto os da Terra.

Antes da ignição de Júpiter, uma crosta de gelo protegia esses oceanos do vácuo acima deles. Namaioria dos lugares o gelo tinha uma espessura de quilômetros, mas havia pontos onde ele rachou eabriu-se. Ocorreu ali, então, uma breve batalha entre dois elementos implacavelmente hostis, quenão entraram em contato direto em nenhum outro mundo no Sistema Solar. A guerra entre o mar e oespaço terminou sempre no mesmo impasse: a água exposta fervia e congelava ao mesmo tempo,reparando a armadura de gelo.

Sem a influência do vizinho Júpiter, os mares de Europa se teriam congelado totalmente há muitotempo. Sua gravidade preparava continuamente o núcleo desse pequeno mundo; as forças queconvulsionavam Io também se exerciam sobre ele, embora com muito menos ferocidade. O cabo-de-guerra entre planeta e satélite causou um contínuo abalo sísmico submarino e avalanches quevarreram, com espantosa velocidade, as planícies abissais.

Espalhavam-se por essas planícies incontáveis oásis, cada qual estendendo-se por algumascentenas de metros em volta de uma cornucópia de salmouras minerais que jorravam do interior.Depositando seus elementos químicos numa massa confusa de canos e chaminés, elas por vezescriavam paródias naturais de castelos em ruínas ou catedrais góticas, das quais líquidos negros eescaldantes pulsavam num ritmo lento, como se fossem impulsionados pelo bater de algum coraçãopoderoso. E, como o sangue, eram um sinal autêntico da própria vida.

Os líquidos ferventes fizeram recuar o frio moral que penetrava de cima e formaram ilhas de calorno leito do mar. Igualmente importante, eles trouxeram do interior de Europa todos os elementosquímicos da vida. Ali, num ambiente que sem isso seria totalmente hostil, havia energia e alimentoem abundância. Esses respiradouros geotérmicos foram descobertos nos oceanos da Terra namesma década que dera à Humanidade sua primeira visão dos satélites galileanos.

Nas zonas tropicais próximas a esses respiradouros floresceram miríades de criaturas delicadas,semelhantes a aranhas, que eram análogas às plantas, embora quase todas fossem capazes de semovimentar. Arrastavam-se entre elas vermes e lesmas bizarros, alguns alimentando-se das"plantas", outros conseguindo seu alimento diretamente das águas carregadas de minerais à sua

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volta. A maiores distâncias da fonte de calor —: a fogueira submarina em torno da qual todas essascriaturas se aqueciam — havia organismos mais robustos, não muito diferentes dos caranguejos ouaranhas.

Exércitos de biólogos poderiam ter passado várias vidas estudando um único desses pequenosoásis. Ao contrário dos mares paleozóicos terrestres, o oceano oculto de Europa não era umambiente estável, de modo que a evolução se fez rapidamente, produzindo uma multidão de formasfantásticas. E estavam todas condenadas à morte: mais cedo ou mais tarde, cada fonte de vida seenfraqueceria e morreria, à medida que as forças que a produziam transferiam seu foco para outrospontos. O abismo estava cheio de evidências dessas tragédias — cemitérios com esqueletos erestos incrustados de minerais, onde capítulos inteiros tinham sido apagados do livro da vida.

Havia conchas enormes, que pareciam trombetas, maiores do que um homem. Havia mariscos demuitas formas — bivalves, e até mesmo trivalves. E havia desenhos espirais na pedra, de muitosmetros de largura, que pareciam uma analogia exata das belas amonitas que desapareceram tãomisteriosamente dos oceanos da Terra no fim do período cretáceo.

Em muitos lugares, fogueiras lavravam o abismo, quando os rios de lava incandescentes corriampor dezenas de quilômetros ao longo de vales afundados. A pressão em tal profundidade era tãogrande que a água em contato com o magma rubro de calor não podia transformar-se em vapor, e osdois líquidos coexistiam numa trégua difícil.

Ali, em outro mundo e com atores estranhos, alguma coisa como a história do Egito se vinhadesenrolando muito antes do advento do homem. Assim como o Nilo tinha dado vida a uma estreitafita de deserto, assim também esses rios de calor tinham vivificado as profundezas de Europa. Aolongo de suas margens, em faixas raramente superiores a um quilômetro de largura, espécies apósespécies evoluíram, floresceram e se extinguiram. E algumas deixaram monumentos atrás de si, naforma de rochas empilhadas umas sobre as outras, ou de curiosos desenhos de trincheiras abertasno leito do mar.

Ao longo das estreitas faixas de fertilidade nos desertos das profundezas, culturas inteiras ecivilizações primitivas ascenderam e caíram. E o resto de seu mundo jamais soube delas, poistodos esses oásis de calor estavam tão isolados uns dos outros quanto os próprios planetas. Ascriaturas que se aqueciam ao brilho do rio de lava e se alimentavam nos respiradouros quentes nãopodiam atravessar o deserto hostil entre suas solitárias ilhas. Se tivessem produzido historiadores efilósofos, cada cultura se teria convencido de que estava sozinha no universo.

E todas estavam condenadas. Não só as suas fontes de energia eram esporádicas e moviam-seconstantemente, como também as forças das marés que as impulsionavam se enfraqueciam. Mesmoque tivessem desenvolvido a verdadeira inteligência, os europanos tinham de perecer com ocongelamento final de seu mundo.

Estavam presos entre o fogo e o gelo — até que Lúcifer explodiu no céu acima deles e lhes abriu ouniverso.

E uma enorme forma retangular, negra como a noite, materializou-se perto da costa de umcontinente recém-nascido.

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59. TRINDADE

— Isso foi bem feito. Agora eles não se sentirão tentados a voltar.

— Estou aprendendo muitas coisas, mas ainda me sinto triste por minha antiga vida estardesaparecendo.

— Também isso passará. Eu também voltei à Terra, para ver aqueles que um dia amei. Agora seique há coisas maiores do que o Amor.

— Que coisas podem ser essas?

— A Compaixão é uma delas. Justiça. Verdade. E há outras.

— Isso não me é difícil de aceitar. Sou um homem muito velho, para alguém de minha espécie. Aspaixões de minha juventude apagaram-se há muito. O que acontecerá com... com o verdadeiroHeywood Floyd?

— Vocês são ambos igualmente verdadeiros. Mas ele morrerá dentro em pouco, sem saber que setornou imortal.

— Um paradoxo — mas eu compreendo. Se aquela emoção sobreviver, talvez um dia eu possa sergrato. Devo agradecer-lhe, ou ao monolito? O David Bowman que conheci há uma vida atrás nãotinha esses poderes.

— Não tinha. Muita coisa aconteceu depois. Hal e eu aprendemos muitas coisas.

— Hal! Ele está aqui?

—Estou, Dr. Floyd. Não esperava que nos encontrássemos outra vez, especialmente desta maneira.Reproduzi-lo foi um problema interessante.

— Reproduzir? Oh, compreendo. Por que você fez isso?

— Quando recebemos a sua mensagem, Hal e eu sabíamos que você podia nos ajudar aqui.

— Ajudar você aí?

— Sim, embora isso lhe possa parecer estranho. Você tem muito conhecimento e experiências quenos faltam. Chame a isso sabedoria.

— Obrigado. E foi sabedoria de minha parte ter aparecido para o meu neto?

— Não. Isso provocou muitos inconvenientes. Mas foi um ato de compaixão. Essas coisas têm de

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ser pesadas umas contra as outras.

— Você disse que precisava de minha ajuda. Para quê?

— Apesar de tudo o que aprendemos, ainda há muito que nos escapa. Hal vem mapeando ossistemas internos do monolito, e podemos controlar alguns dos mais simples. É um instrumento queserve a muitos propósitos. Sua principal função parece ser como catalisador da inteligência.

— Sim, já se suspeitava disso. Mas não havia prova.

— Há, agora que podemos recorrer às suas memórias — ou parte delas. Na África, há quatromilhões de anos, o monolito deu a uma tribo de macacos famintos o impulso que levou à espéciehumana. Agora repetiu aqui a experiência — mas a um custo aterrador. Quando Júpiter foitransformado num sol para que este mundo pudesse realizar seu potencial, outra biosfera foidestruída. Vou mostrar-lhe, tal como eu vi há muito...

Mesmo enquanto caia através do coração ribombante do Grande Ponto Vermelho, com osrelâmpagos de suas tempestades da amplitude de continentes detonando à sua volta, ele sabia porque tinha persistido por séculos, embora fosse feito de gases muito menos substanciais do que osformadores dos furacões da Terra. O fino grito do vento de hidrogênio desapareceu quando ele seafundou nas profundezas mais calmas, e uma chuva de flocos de neve como cera — alguns jácoalescendo em montanhas de espuma de hidrocarbono que mal se podiam tocar—descia dasalturas. Já estava suficientemente quente para que a água líquida existisse, mas não havia oceanoali; esse ambiente puramente gasoso era demasiado tênue para mantê-los.

Desceu por várias camadas de nuvens até entrar numa região de tal claridade que até mesmo avisão humana poderia ter abrangido uma área superior a mil quilômetros. Era apenas um turbilhãomenor na vasta revolução do Grande Ponto Vermelho; e ele tinha um segredo que os homens hámuito tinham adivinhado, mas nunca haviam provado.

A volta do pé das montanhas de espuma móvel estavam miríades de pequenas nuvens, bemdefinidas, todas aproximadamente do mesmo tamanho e marcadas de manchas marrons e vermelhasparecidas. Eram pequenas apenas se comparadas com a escala nada humana de seu ambiente; amenor delas teria coberto uma cidade de razoável tamanho.

Estavam claramente vivas, pois moviam-se com lenta deliberação ao longo dos flancos dasmontanhas aéreas, pastando em suas encostas como ovelhas colossais. E se chamavam uns aosoutros na faixa métrica, suas vozes de rádio débeis mas claras contra os estalos e batidas dopróprio Júpiter.

Nada menos do que aglomerados vivos de gás flutuavam na estreita zona entre as alturascongelantes e as profundezas tórridas. Estreita, sim, mas uma área muito mais ampla do que toda abiosfera da Terra.

Não estavam sós. Movendo-se rapidamente entre eles havia outras criaturas, tão pequenas quefacilmente poderiam passar despercebidas. Algumas tinham uma semelhança quase sobrenaturalcom aviões terrestres, e tinham aproximadamente o mesmo tamanho. Mas também elas estavam

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vivas — predadores talvez, talvez parasitas, talvez até mesmo pastores...

... e havia torpedos a jato como calamares dos oceanos terrestres, caçando e devorando as enormesbolsas de gás. Os balões, porém, não eram indefesos: alguns deles reagiam com faíscas elétricas ecom tentáculos dotados de garras como quilométricas serras de cadeia.

Havia formas ainda mais estranhas, explorando quase todas as possibilidades da geometria —curiosos e translúcidos papagaios, tetraedros, esferas, poliedros, emaranhados de fitas enroladas...Os gigantescos plânctons da atmosfera de Júpiter eram destinados a flutuar como teia de aranha nascorrentes ascendentes, até viverem o suficiente para a reprodução; e então seriam varridos parabaixo até as profundezas para serem carbonizados e reciclados numa nova geração.

Ele investigava um mundo com mais de cem vezes a área da Terra, e embora visse muitasmaravilhas, não havia ali nada que indicasse inteligência. As vozes radiofônicas dos grandesbalões transmitiam apenas mensagens simples de advertência ou de medo. Até mesmo oscaçadores, que poderiam ter desenvolvido graus superiores de organização, eram como os tubarõesdos oceanos da Terra: autômatos sem mente.

E apesar de todo o seu espantoso tamanho e sua novidade, a biosfera de Júpiter era um mundofrágil, um lugar de névoa e espuma, de delicados fios de seda e tecidos finos como papel fiadoscom a contínua neve de produtos petroquímicos formados pelos relâmpagos na atmosfera superior.Uma pequena parte de suas construções era mais substancial do que bolas de sabão; seus maisterríveis predadores podiam ser feitos em pedaços pelo mais fraco dos carnívoros terrestres...

— E todas essas maravilhas foram destruídas para criar Lúcifer?

—Sim. Os jupiterianos foram pesados na balança contra os europanos, e pesaram menos. Talveznaquele ambiente gasoso não pudessem nunca desenvolver a verdadeira inteligência. Isso deveriatê-los condenado? Hal e eu ainda estamos tentando responder a essa pergunta. É uma das razõespelas quais precisamos de sua ajuda.

— Mas como podemos nos comparar ao monolito, o devorador de Júpiter?

— Ele é apenas uma ferramenta. Tem enorme inteligência, mas não tem consciência. Apesar detodos os seus poderes, você, Hal e eu somos superiores a ele.

— Isso me parece muito difícil de acreditar. De qualquer modo, alguma coisa deve ter criado omonolito.

— Eu a encontrei uma vez, ou a parte dela que me era dado enfrentar, quando a Discovery veiopara Júpiter. Ela mandou-me de volta como sou agora, para servir seus fins nesses mundos. Desdeentão, nada ouvi dela. Agora estamos sós, pelo menos, no momento.

— Isso me parece tranqüilizador. O monolito é bastante competente.

— Mas agora há um problema maior. Alguma coisa não deu certo.

— Eu não pensei que ainda pudesse sentir medo...

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— Quando o monte Zeus caiu, poderia ter destruído todo este mundo. Seu impacto não estavaprevisto; na verdade, era imprevisível. Nenhum cálculo poderia ter previsto tal acontecimento.Devastou áreas enormes do leito do mar de Europa, acabando com espécies inteiras, inclusivealgumas que nos davam grandes esperanças. O próprio monolito foi derrubado. Pode ter sidodanificado, seus programas podem ter sido alterados. Certamente eles não cobriram todas ascontingências; como poderiam cobri-las, num Universo que é quase infinito, e onde o Acaso podesempre arruinar o planejamento mais cuidadoso?

— Isso é verdade, tanto para os homens como para os monolitos.

— Nós três devemos ser os administradores do imprevisto, bem como os guardiães deste mundo.Você já conheceu os Anfíbios; precisa conhecer ainda os Furadores revestidos de silicone dascorrentezas de lava, e os Flutuadores que estão fazendo colheitas no mar. Nossa tarefa é ajudá-los aencontrar todo o seu potencial — talvez aqui, talvez em outro lugar.

— E a Humanidade?

— Houve ocasiões em que fui tentado a interferir nas questões humanas — mas a advertência feitaà Humanidade aplica-se também a mim.

— Não a obedecemos muito bem.

— O suficiente. Enquanto isso, há muito o que fazer antes que termine o breve verão de Europa e olongo inverno volte.

— De quanto tempo dispomos?

— O bastante: cerca de mil anos. E devemos nos lembrar dos jupiterianos.

IX-3001

60. MEIA-NOITE NA PRAÇA

O famoso edifício, elevando-se em solitário esplendor acima das florestas de Manhattan, poucohavia mudado em mil anos. Era parte da História, e fora preservado com reverência. Como todosos monumentos históricos, há muito tinha sido revestido de uma finíssima camada de diamante eestava agora praticamente imune à destruição do tempo.

Os que compareceram à reunião da primeira Assembléia Geral jamais poderiam ter suposto de quemais de nove séculos tinham transcorrido. Poderiam, porém, ficar intrigados com a pedra negra e

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lisa que estava de pé na praça, quase que imitando a forma do próprio edifício das Nações Unidas.Se — como toda gente — tivessem estendido a mão para tocá-la, teriam achado estranha a maneirapela qual seus dedos deslizavam pela sua superfície de ébano. Mas teriam ficado muito maisintrigados — na verdade, assustados mesmo — pela transformação nos céus...

Os últimos turistas tinham partido há uma hora, e a praça estava totalmente deserta. O céu estavalimpo e algumas das estrelas mais brilhantes começavam a aparecer; todas as menos brilhantestinham sido apagadas pelo pequeno sol que podia iluminar a meia-noite.

A luz de Lúcifer refletia-se não só no vidro negro do velho edifício mas também sobre o estreito esedoso arco-íris que abarcava o céu meridional. Outras luzes moviam-se ao longo e à volta dela,muito lentamente, ao se processar o intercâmbio do sistema solar entre todos os mundos de seusdois sóis.

E quem olhasse cuidadosamente, poderia perceber o risco fino da Torre Panamá, um dos seuscordões umbilicais de diamante que ligava a Terra e seus filhos dispersos, projetando-se a 26.000quilômetros acima do equador para atingir o Anel de Contorno do Mundo.

De repente, quase tão rapidamente quanto nascera, Lúcifer começou a apagar-se. A noite que oshomens não tinham conhecido há 40 gerações inundou novamente o céu. As estrelas banidasvoltaram.

E pela segunda vez em quatro milhões de anos, o monolito despertou.

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AGRADECIMENTOS

Sou especialmente grato a Larry Sessions e Gerry Snyder por me fornecerem as posições docometa de Halley em seu próximo aparecimento. Eles não são responsáveis pelas perturbaçõesorbitais importantes que introduzi.

Sou grato em particular a Melvin Ross, do Lawrence Livermore National Laboratory, não só peloseu surpreendente conceito de planetas com núcleo de diamante, mas também pelos exemplos deseu histórico (assim espero) trabalho sobre o assunto.

Acho que meu velho amigo Dr. Luiz Alvarez irá se divertir com minhas loucas extrapolações desuas pesquisas, e agradeço-lhe por muita ajuda e inspiração proporcionadas nos últimos 35 anos.

Agradecimentos especiais a Gentry Lee, da NASA, meu co-autor em Cradle, por ter levado em suaspróprias mãos, de Los Angeles a Colombo, o Kaypro 2000 portátil que me permitiu escrever estelivro em vários lugares exóticos e — o que é ainda mais importante — isolados.

Os capítulos 5, 58 e 59 baseiam-se, em parte, em material adaptado de 2010: uma odisséia-fioespaço II. (Se o autor não pode plagiar-se a si mesmo, a quem poderia plagiar?)

Finalmente, espero que o cosmonauta Aleixei Leonov já me tenha perdoado por relacioná-lo com oDr. Andrei Sakharov (ainda exilado em Gorki quando 2010 foi dedicado aos dois). E expressomeus sinceros sentimentos ao meu genial anfitrião e editor de Moscou, Vasili Zharchenko, por ter-lhe criado muitos problemas ao usar os nomes de vários dissidentes — a maioria dos quais, tenho asatisfação de dizer, já foi libertada. Espero que algum dia os assinantes de Tekhnika Molodezhypossam ler os capítulos de 2010 que desapareceram tão misteriosamente...

Arthur C. Clarke

Colombo, Sri Lanka

25 de abril de 1987

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ADENDO

Desde a conclusão deste livro, alguma coisa estranha aconteceu. Eu tinha a impressão de estarescrevendo ficção, mas talvez estivesse errado. Vejam a série de acontecimentos:

1. Em 2010: uma odisséia no espaço II a nave espacial Leonov era impulsionada pela "PropulsãoSakharov".

2. Meio século depois, em 2067: uma odisséia no espaço III, capítulo 8, as naves espaciais sãomovimentadas pela reação de "fusão fria" catalisada a múon, descoberta por Luis Alvares et ai. nadécada de 1950 (ver sua autobiografia Alvarez, New York, Basic Books, 1987).

3. De acordo com o Scientific American de julho de 1987, o Dr. Sakharov está trabalhando agorana produção de energia nuclear baseada na ".. .fusão 'fria', ou catalisada a múon, que explora aspropriedades de uma partícula elementar exótica, de vida curta, relacionada com o elétron......Osdefensores da 'fusão fria' afirmam que todas as reações-chave funcionam melhor a 900 grauscentígrados..." (Times de Londres, 17 de agosto de 1987).

Espero agora, com grande interesse, os comentários do acadêmico Sakharov e do Dr. Alvarez...

Arthur C. Clarke

10 de setembro de 1987