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jan. ⁄ fev. ⁄ mar. l 2009 l ano xv, nº 56 l 21-26 integração 21 Eladio Dieste, arte e engenho yopanan conrado rebello* Resumo l Este artigo pretende mostrar que existe uma grande aproximação entre o conhecimento técnico e o artístico. Apoia-se, para essa demonstração, no trabalho do engenheiro uruguaio Eladio Dieste. Um profundo conhecedor da análise matemática das estruturas, que usa esse conhecimento a favor das belas formas arquitetônicas de suas obras. Palavras-chave l Eladio Dieste. Estrutura. Técnica e arte Title l Eladio Dieste, art and ingenuity Abstract l is article aims to show that there is a great connection between the technical and artistic knowledge. It relies, for this demonstration, the work of the Uruguayan engineer Eladio Dieste. A deep knowledge of mathematical analysis of structures, which uses this knowledge for the beautiful architectural features of their works. Keywords l Eladio Dieste. Framework. Technique and art. Data de recebimento: 21/11/2008. Data de aceitação: 20/01/2009. * Professor da graduação e da Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da USJT. E-mail: [email protected] Um dos procedimentos mais simples e, ao mesmo tempo, complexos é obter resistência de um ele- mento estrutural por meio da manipulação de suas formas. Simples porque no dia a dia estamos usando essa possibilidade nas mais corriqueiras atividades. Ao passar uma folha de papel para ou- tra pessoa, intuitivamente provocamos uma cur- vatura nessa folha para estruturá-la. Ver Figura 1. Observa-se, dessa ação, que a dobra é uma fer- ramenta poderosa no ganho de resistência, e que por meio dela podemos fazer com que elementos extremamente esbeltos, como a folha de papel, pos- sam suportar cargas e vencer vãos. Eladio Dieste foi, sem dúvida, um engenheiro de estruturas que soube, com arte, bom gosto e conhecimento téc- nico, explorar as possibilidades da dobra. E, mais ainda, estruturar, não uma lâmina contínua, mas lâminas construídas pela associação, quase mágica, de pequenas peças de tijolos cerâmicos. Desen- volveu estudos e realizou estruturas usando a cerâ- mica, tanto associada à armação como protendida. O engenheiro Eladio Dieste nasceu em Arti- gas, Uruguai, em 1917. Formou-se em 1943 em Engenharia Civil na Faculdade de Engenharia da Universidade da República do Uruguai. Dieste, com sua visão social, sempre procurou soluções que estivessem ao alcance das classes economica- mente menos favorecidas. Suas propostas, apesar de sofisticadas, eram sempre possíveis de ser reali- zadas por uma mão de obra sem formação especí- fica. Sofisticadas não com a conotação de luxuosas, mas como mostra a própria raiz sofos, do grego, feitas com sabedoria. As estruturas projetadas por Dieste são, em sua maioria, coberturas em cascas, tendo como mate- rial principal o tijolo cerâmico. Com este mesmo material, além de coberturas em cascas de dupla curvatura, Dieste projetou vigas, paredes e pórticos. As estruturas em abóbadas são conhecidas já há muito tempo. Edward Allen (2004, p. 66) ar- gumenta que historicamente o desenvolvimento das abóbadas segue três caminhos que lhe dão Figura 1. Manuseio de uma folha de papel. Fonte: Rebello, 2000, p. 28.

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jan. ⁄ fev. ⁄ mar. l 2009 l ano xv, nº 56 l 21-26 integração 21

Eladio Dieste, arte e engenhoyopanan conrado rebello*

Resumo l Este artigo pretende mostrar que existe uma grande aproximação entre o conhecimento técnico e o artístico. Apoia-se, para essa demonstração, no trabalho do engenheiro uruguaio Eladio Dieste. Um profundo conhecedor da análise matemática das estruturas, que usa esse conhecimento a favor das belas formas arquitetônicas de suas obras.Palavras-chave l Eladio Dieste. Estrutura. Técnica e arte

Title l Eladio Dieste, art and ingenuityAbstract l Th is article aims to show that there is a great connection between the technical and artistic knowledge. It relies, for this demonstration, the work of the Uruguayan engineer Eladio Dieste. A deep knowledge of mathematical analysis of structures, which uses this knowledge for the beautiful architectural features of their works.Keywords l Eladio Dieste. Framework. Technique and art.

Data de recebimento: 21/11/2008.Data de aceitação: 20/01/2009.* Professor da graduação e da Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da USJT.E-mail: [email protected]

Um dos procedimentos mais simples e, ao mesmo tempo, complexos é obter resistência de um ele-mento estrutural por meio da manipulação de suas formas. Simples porque no dia a dia estamos usando essa possibilidade nas mais corriqueiras atividades. Ao passar uma folha de papel para ou-tra pessoa, intuitivamente provocamos uma cur-vatura nessa folha para estruturá-la. Ver Figura 1.

Observa-se, dessa ação, que a dobra é uma fer-ramenta poderosa no ganho de resistência, e que por meio dela podemos fazer com que elementos extremamente esbeltos, como a folha de papel, pos-sam suportar cargas e vencer vãos. Eladio Dieste foi, sem dúvida, um engenheiro de estruturas que soube, com arte, bom gosto e conhecimento téc-nico, explorar as possibilidades da dobra. E, mais ainda, estruturar, não uma lâmina contínua, mas lâminas construídas pela associação, quase mágica, de pequenas peças de tijolos cerâmicos. Desen-volveu estudos e realizou estruturas usando a cerâ-mica, tanto associada à armação como protendida.

O engenheiro Eladio Dieste nasceu em Arti-gas, Uruguai, em 1917. Formou-se em 1943 em Engenharia Civil na Faculdade de Engenharia da

Universidade da República do Uruguai. Dieste, com sua visão social, sempre procurou soluções que estivessem ao alcance das classes economica-mente menos favorecidas. Suas propostas, apesar de sofi sticadas, eram sempre possíveis de ser reali-zadas por uma mão de obra sem formação especí-fi ca. Sofi sticadas não com a conotação de luxuosas, mas como mostra a própria raiz sofos, do grego, feitas com sabedoria.

As estruturas projetadas por Dieste são, em sua maioria, coberturas em cascas, tendo como mate-rial principal o tijolo cerâmico. Com este mesmo material, além de coberturas em cascas de dupla curvatura, Dieste projetou vigas, paredes e pórticos.

As estruturas em abóbadas são conhecidas já há muito tempo. Edward Allen (2004, p. 66) ar-gumenta que historicamente o desenvolvimento das abóbadas segue três caminhos que lhe dão

Figura 1. Manuseio de uma folha de papel. Fonte: Rebello, 2000, p. 28.

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características construtivas especiais, defi nindo três tipos de abóbada: a europeia, a do Oriente Médio e a catalã.

A solução europeia é muito conhecida. Eram os sistemas usados nas arquiteturas românicas e góticas. Essas abóbadas tinham, geralmente, como geratriz a semicircunferência e eram construídas sobre cimbramentos de madeira, conforme mostra a Figura 2. Nestas abóbadas os empuxos eram ab-sorvidos por contrafortes.

No Oriente Médio as abóbadas eram construí-das sem cimbramentos. Para se iniciar sua execução,

Na primeira camada as lâminas cerâmicas eram coladas com um gesso especial que garantia forte ligação entre suas faces. As lâminas eram dispostas com juntas desencontradas, o que garantia melhor estabilidade na construção da primeira camada e, também, das subsequentes. Como o gesso é instá-vel quando submetido a água, nas demais camadas as placas cerâmicas eram assentadas com argamas-sa de cimento e areia. Ver Figura 4. As geratrizes das abóbadas catalãs são normalmente funiculares. Gaudí desenvolveu maravilhosas estruturas e arqui-teturas usando os princípios das abóbadas e cúpulas catalãs em suas obras. Os empuxos nos apoios

era usada uma parede vertical que ao fi nal da re-construção podia ser retirada. Esse sistema foi resgatado, nos tempos modernos, pelo arquiteto egípcio Hassan Fathy, que com ele construiu di-versas moradias. Os empuxos dessas abóbadas podem ser absorvidos pela fundação, quando elas são apoiadas diretamente no chão, ou por contra-fortes, quando elevadas. A geratriz dessas abóba-das é predominantemente parabólica, pois essa curva facilita a disposição dos tijolos durante a construção. Ver a Figura 3.

As abóbadas catalãs, originadas em Barcelona, diferem bastante das outras. São mais esbeltas e mais abatidas. Por não se utilizarem cimbramentos para sua execução, seu processo construtivo usava duas ou mais camadas de tijolos cerâmicos, fun-cionando a primeira como forma para as demais.

Figura 2. Execução de abóbada europeia. Fonte: Anderson, 2004, p. 67.

Figura 3. Execução de abóbada do Oriente Médio. Fonte: Anderson, 2004, p. 67.

Figura 4. Execução de abóbada catalã. Fonte: Anderson, 2004, p. 67.

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dessas abóbadas são, como nas demais, absorvidos por contrafortes.

Até o início do século XVIII, as abóbadas eram construídas com base em experiência empíricas. O primeiro tratamento formal do comportamento das abóbadas aparece 1748, em estudo feito por Giovanni Poleni. O cálculo preciso das forças atuantes nas abóbadas é estabelecido por Karl Culmann, baseado nas ideias de Poleni. Culmann desenvolveu um método gráfi co para o cálculo das forças em sistemas estruturais que se genera-lizou com o nome de grafostática.

Quem popularizou o uso da grafostática (cál-culo gráfi co das forças) foi Rafael Guastaviano, que usando esse processo construiu abóbadas e cúpu-las catalãs extremamente esbeltas, na Europa e nos Estado Unidos.

Eladio Dieste estudou grafostática na Facul-dade de Engenharia de Montevidéu, juntamente com processos matemáticos para análise de estru-turas de concreto armado. Com base nesse conhe-cimento, percebeu a importância das formas dos elementos estruturais na concepção de estruturas. A existência de uma tradição de construções em alvenaria de tijolos no Uruguai fez com que Dieste se interessasse por essa técnica e a desenvolvesse à perfeição.

A primeira obra de Dieste com cobertura cur-vas usando tijolos foi a Residência Berlingieri, cujo projeto de arquitetura pertence a Antoni Bonet. Apesar de o arquiteto ter proposto a cons-trução no sistema catalão, com tijolos cerâmicos e sem cimbramento, nesta primeira obra Dieste op-tou pelo uso de tijolos comuns e cimbramento. O que diferenciou, desde de o início, a obra de Dies-te daquela de Guastaviano foi o insistente uso de armações e protensão, e isto permitiu que ele pu-desse criar formas bastante diferenciadas, em oposição a Guastaviano, que usava as formas tra-dicionais da arquitetura catalã. O conhecimento profundo do cálculo numérico possibilitou a Dieste usar formas que pudessem trabalhar também a fl e-xão, e não só a compressão, como as tradicionais.

Dieste projetou e construiu coberturas indus-triais com vãos de até 60 m usando um tipo de abóbada que ele denominou de “bóvedas gausas” (abóbadas gaussianas), em homenagem ao grande

matemático Carl Gauss. Esse matemático estudou as curvaturas das superfícies, determinando o que hoje é conhecido como curvatura de Gauss de uma superfície em um ponto. Essa propriedade geométrica das superfícies é dada pelo produto K = k1.k2, em que k1 e k2 são as curvaturas principais (máximas e mínimas no ponto).

Um esquema de uma abóbada gaussiana pode ser visto na Figura 5.

Dieste ainda desenvolveu outros tipos de estru-turas em blocos cerâmicos: as cascas autoportantes, as dobradas e as cônicas. As primeiras comportam-se como abóbadas na direção transversal e como

vigas de seção curva na longitudinal ou como vigas de seção semelhante a um V, que foram denomina-das por Dieste “vigas gaivotas”. Usando armações e protensões, Dieste pôde ousar na concepção de cascas de blocos cerâmicos. Com essas alternati-vas podia usar as chapas dobradas, ou seja, su-perfícies planas que adquirem resistência graças

Figura 5. Abóbada gaussiana. Fonte: Anderson, 2004, p. 74.

Figura 6. Cascas autoportantes. Fonte: Anderson, 2004, p. 74.

a dobraduras, muito comuns no concreto, mas extremamente audaciosas em cerâmica.

O uso de superfícies cônicas, também chamadas de superfícies regradas, foi comum na obra de Dies-te. Estas superfícies apresentam a interessante propriedade de poder ser obtidas a partir de gera-trizes retas, o que permite obter com bastante facilidade as mais diversas superfícies sinuosas. Dieste aplicava as superfícies regradas tanto em

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coberturas como em paredes. Variava, conforme a necessidade, a rigidez da lâmina ao longo de seu comprimento, conseguindo, com isso, seções ora retas, de pouca rigidez, ora de grande curvatura e rigidez. Essa manipulação da rigidez da seção dos elementos de cobertura e parede pode ser vista na

no lugar do reproduzir; dizia: “são os países centrais os que podem dar-se ao luxo da especialização e de formar técnicos hábeis e rápidos na aplicação de rotinas, nós não temos outro remédio senão começar quase tudo do começo, e, consequente-mente, pensar cada passo a partir das grandes ba-ses do conhecimento” (Carbonell, 1987, p. 167).

Figura 7. Comportamento das “vigas gaivotas”. Fonte: Carbonell, 1987, p. 221.

Figura 8. Chapas dobradas. Fonte: Anderson, 2004, p. 74.

Figura 9. Nela a parede apresenta pequena inércia em sua base, resultando em vínculo articulado e grande inércia em seu topo, e em vínculo rígido, próprio das estruturas aporticadas.

Dieste acreditava que seu trabalho não se resu-mia a projetar. Fazia questão de participar ativa-mente do processo de construção, inventando e executando os equipamentos usados na constru-ção. Equipamentos que deveriam ser simples, que pudessem ser executados a baixo custo e, ao mesmo tempo, serem efi cientes. Dieste defendia o pensar

Figura 9. Superfície regrada aplicada a uma parede. Fonte: Anderson, 2004, p. 74.

Figura 10. Macaco hidráulico para apoio das formas. Fonte: Carbonell, 1987, p. 166.

Figura 11. Cimbramento móvel para a construção de abóbodas. Fonte: Carbonell, 1987, p. 175.

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As fi guras 10 e 11 mostram algumas das in-venções de Dieste para o canteiro de obras.

Exemplos de obras:

Cascas autoportantes

Figura 12. Vista interna do Pavilhão dos Produtores do Mercado de Porto Alegre. Fonte: Carbonell, 1987, p. 105.

Figura 13. Pórtico de entrada do Mercado de Porto Alegre (1969 a 1972). Fonte: Carbonell, 1987, p. 112.

Abóbadas gaussianas

Figura 14. Vista interna da Igreja de São Pedro de Durazno (1969 a 1971). Fonte: Anderson, 2004, p. 61.

Figura 15a. Detalhe das armações das placas dobradas. Fonte: Anderson, 2004, p. 62.

Figura 15b. Igreja de Cristo o Trabalhador, em Atlândida (1958 a 1960). Fonte: Anderson, 2004, p. 42.

Chapas dobradasSuperfícies regradasDieste desafi ou não só a gravidade, como os

ventos. Executou torres elevadas, usando a cerâmi-ca, formando tubos semelhantes àqueles usados para as chaminés, vazando-os, onde possível, ti-rando partido dos efeitos dos vazios para aliviar as pressões devidas ao vento. Usava como modelo es-

Figura 16. Vista da torre da caixa d’água da Fábrica de Refrescos do Norte S.A. em Salto, no Uruguai. Fonte: Anderson, 2004, p. 154.

trutural um pseudotubo formado por “barras” ver-ticais e horizontais de blocos cerâmicos, armadas de forma que fosse garantida a rigidez dos nós, como em uma estrutura em vierendeel. Ver fi guras 16 e 17.

Dieste, um engenheiro, profundo conhecedor da matemática das estruturas, sabia que essa mesma matemática podia conduzi-lo a soluções formais harmoniosas; obtendo formas tão importantes para a estrutura como para o espaço e o espírito. Nas obras de Dieste não se sabe mais, e nem inte-

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ressa saber, se o que se vê é criação de um arqui-teto ou de um engenheiro.Referências bibliográfi cas

Figura 17. Detalhe de armação das paredes da torre. Fonte: Carbonell, 1987, p. 53.

ALLEN, E. [artigo]. In: ANDERSON, S. Eladio Dieste – Innovation in Structural Art. Nova York: Princeton Architectural Press, 2004.

ANDERSON, S. Eladio Dieste – Innovation in Structural Art. Nova York: Princeton Architectural Press, 2004.

CARBONELL, G. Eladio Dieste – la estructura cerámica. Bogotá: Universidad de Los Andes, 1987.