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681 22 A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA A AÇÃO DE ALIMENTOS: UMA CONCLUSÃO CONSTITUCIONAL Cristiano Chaves de Farias 1 Sumário: 1. Colocação do problema. 2. Sede constitucional da legitimidade do Ministério Público para a defesa de interesses indisponíveis, dentre estes o direito a alimentos (CF, art. 127). 3. Previsão expressa da Lei nº8.069/90 - ECA, autorizando o MP a aforar ação de alimentos na proteção integral de criança ou adolescente. 4. Legitimação do MP para a ação de alimentos como forma de garantir o acesso à Justiça assegurado constitucionalmente. 5. Irrelevância da existência de serviço de assistência judiciária gratuita. 6. Referências “Bebida é água, comida é pasto, você tem fome de que?, você tem sede de que? A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão, balé, a gente não quer só comida, a gente quer a vida como ela é” (Titãs, Comida) “É preciso pensar, mais que pensar, é preciso sentir, mais do que sentir, é preciso agir, com sabedoria quase que divina, quando se milita na Justiça da Infância e da Juventude.” (Luiz Paulo Santos Aoki, MP/SP) 1. COLOCAÇÃO DO PROBLEMA A afirmação da legitimidade ministerial para a propositura da ação de alimentos, na qualidade de substituto processual, apresenta relevantes contornos por diferentes razões de múltiplas origens. Primus, em face da dificuldade de acesso à justiça, propiciada, em mui- to, pelas altas custas processuais e pela demora do processo, que geram, inclusive, uma descrença na solução pelo Poder Judiciário. Secundus, por 1 Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Mestre em Ciências da Família na Sociedade Contemporânea pela UCSal - Universidade Católica do Salvador. Professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito e do Curso JusPODIVM – Centro Preparatório para as car- reiras jurídicas. Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Civil do Curso JusPODIVM. Presidente da Seccional da Bahia do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

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22A legitimidAde do ministério Público

PArA A Ação de Alimentos: umA conclusão constitucionAl

Cristiano Chaves de Farias1

Sumário: 1. Colocação do problema. 2. Sede constitucional da legitimidade do Ministério Público para a defesa de interesses indisponíveis, dentre estes o direito a alimentos (CF, art. 127). 3. Previsão expressa da Lei nº8.069/90 - ECA, autorizando o MP a aforar ação de alimentos na proteção integral de criança ou adolescente. 4. Legitimação do MP para a ação de alimentos como forma de garantir o acesso à Justiça assegurado constitucionalmente. 5. Irrelevância da existência de serviço de assistência judiciária gratuita. 6. Referências

“Bebida é água, comida é pasto, você tem fome de que?, você tem sede de que? A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão, balé, a gente não quer só comida, a gente quer a vida como ela é” (Titãs, Comida)

“É preciso pensar, mais que pensar, é preciso sentir, mais do que sentir, é preciso agir, com sabedoria quase que divina, quando se milita na Justiça da Infância e da Juventude.” (Luiz Paulo Santos Aoki, MP/SP)

1. ColoCação do problema

A afirmação da legitimidade ministerial para a propositura da ação de alimentos, na qualidade de substituto processual, apresenta relevantes contornos por diferentes razões de múltiplas origens.

Primus, em face da dificuldade de acesso à justiça, propiciada, em mui-to, pelas altas custas processuais e pela demora do processo, que geram, inclusive, uma descrença na solução pelo Poder Judiciário. Secundus, por

1 Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Mestre em Ciências da Família na Sociedade Contemporânea pela UCSal - Universidade Católica do Salvador. Professor de Direito Civil da Faculdade Baiana de Direito e do Curso JusPODIVM – Centro Preparatório para as car-reiras jurídicas. Coordenador do Curso de Pós-graduação em Direito Civil do Curso JusPODIVM. Presidente da Seccional da Bahia do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

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conta da dificuldade em constituir um advogado em muitas comarcas do interior de nosso país, sempre valendo lembrar as nossas dimensões con-tinentais. Tertius, por conta do lamentável desprestígio (esperando que por pouquíssimo tempo!) das Defensorias Públicas, que ainda não me-receram o aparelhamento necessário para viabilizar o acesso à justiça. E, não fossem suficientes os argumentos, por conta da natureza indisponível do direito material subjacente, enquadrando a hipótese na moldura do art. 127 da Lei Maior.

Nesse desenho, considerando, inclusive, as dificuldades apontadas, sobreleva vislumbrar a plena legitimidade do Parquet para promover a ação de alimentos – bem como as suas ações congêneres, como a execu-ção de alimentos, a revisão de alimentos e mesmo a oferta de alimentos – na defesa dos interesses indisponíveis que lhe foram confiados pela Lex Fundamentallis. Exatamente por isso, já se disse, noutro quadrante, que a legitimação ministerial para os alimentos alcança, por igual, a proposi-tura da execução de alimentos (bem como de eventual ação revisional), mesmo nas causas em que o Ministério Público não promoveu a ação de alimentos antecedente ou nas quais os alimentos decorreram de acordo extrajudicial, referendando pela Defensoria Pública ou pelos advogados dos transatores.2

Há perfeita harmonia entre a feição ministerial conferida pela Constituição da República e a sua plena legitimidade para requerer ali-mentos em favor de quem deles necessitar, pois se enfeixa nas latitudes constitucionais que lhes entregaram a defesa da ordem jurídica, do regi-me democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Resta, então, vencer o retrógrado posicionamento no sentido de que a substitui-ção processual por parte do Ministério Público para o aforamento da ação de alimentos dependeria da existência de situação de risco (irregular) da criança ou adolescente, eis que fora da sintonia constitucional, bem assim como em descompasso com a orientação protetiva da legislação infanto-juvenil (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 201, III).3

2 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, cf. Direito das Famílias, cit., p.649. 3 Já houve oportunidade do Superior Tribunal de Justiça afirmar que “tratando-se de menor que

se encontra sob a guarda e responsabilidade da genitora, falta legitimidade ao Ministério Público para ajuizar a ação de alimentos, como substituto processual” (STJ, Ac.4aT., REsp.120.118/PR, rel. Min. Barros Monteiro, DJU 1.3.99). No mesmo diapasão, veja-se os acórdãos proferidos no julgamento dos REsp.102.039/MG, rel. Min. Waldemar Zveiter, DJU 30.3.98 e REsp.659.498/PR, rel. Min. Jorge Scartezzini, DJU 14.2.05, p.214.

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Aliás, como bem expõe Marcelo Zenkner, o puctum saliens da dis-cussão é saber se o Órgão Ministerial tem legitimação “para ajuizar ações de alimentos quando o incapaz possui representante legal, ou seja, se a legitimação indicada no Estatuto da Criança e do Adolescente vale ape-nas para incapazes que estejam em situação irregular ou para qualquer hipótese”.4

Veja-se, então, minuciosamente, a argumentação em prol do reconhe-cimento da ampla legitimidade ministerial para a ação alimentar, inde-pendentemente da situação em que se encontra a criança ou adolescente.

2. Sede ConStituCional da legitimidade do miniStério públiCo para a defeSa de intereSSeS indiSponíveiS, dentre estes o direito a alimentos (CF, art. 127)

Após notável avanço histórico, especialmente com a Lex Legum de 1988, o Ministério Público se consolidou como órgão de defesa e pro-moção dos interesses mais relevantes da sociedade, conforme previsão do próprio Texto Magno. Enfim, ganhou a notável função de promover a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individu-ais indisponíveis, efetivando, assim, os ideais de uma sociedade solidária (art. 3o, CF), democrática (art. 1o, CF) e igualitária (art. 5o, CF). 5

Órgão independente, com autonomia financeira e administrativa, des-vinculado de todos os poderes constituídos do Estado6 (de acordo com a divisão trinária dos poderes proposta por Montesquiaeu), o Parquet foi considerado instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado.

Efetivamente, como já vislumbrava Norberto Bobbio, “na realidade os ordenamentos jurídicos são compostos por uma infinidade de normas que,

4 ZENKNER, Marcelo, cf. Ministério Público e efetividade do processo civil, cit., p.153.5 Tratando da estrutura administrativa do Parquet, conforme os contornos constitucionais, vale

fazer referência à obra inexcedível de Emerson Garcia, cf. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico, cit., notadamente p.243-347. Outrossim, merece registro o não menos completo trabalho de Carlos Roberto de Castro Jatahy, cf. Curso de Princípios Institucionais do Ministério Público, cit., em especial p.59-110.

6 Com Emerson Garcia, a “Constituição, assim, diluiu os estreitos vínculos outrora existentes entre o Ministério Público e o Poder Executivo, tendo vedado a representatividade judicial deste e assegurado a autonomia administrativa e financeira da Instituição, garantindo a independência funcional de seus membros e conferindo-lhes garantias idênticas àquelas outorgadas aos magistrados, do que resultou a sua posição de órgão verdadeiramente independente”, cf. Ministério Público: organização, atribuições e regime jurídico, cit., notadamente p.243-347.

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como as estrelas do céu, jamais alguém consegue contar”. Em sendo assim, e considerando que a essência do convívio humano está no cumprimento dessas normas (o que é de grande relevância para a convivência pacífica em sociedade), o Estado destaca um de seus órgãos para atuar na efeti-vação da proteção de toda a coletividade, velando pelo respeito à ordem jurídica e pelos interesses de cunho social e por aqueloutros que, pela sua própria natureza, merecem tutela especial (por integrarem a própria per-sonalidade humana) – os chamados interesses indisponíveis.

Dessa maneira, tornou-se o Ministério Público um específico órgão de atuação, essencial à função jurisdicional (como agente ou interveniente), em causas que versem sobre interesses de ordem social (difusos ou cole-tivos) ou mesmo de interesses privados indisponíveis.

Equivale a dizer: consoante a própria dicção do texto constitucional, tem-se que a simples existência de um interesse indisponível já justifica a atuação ministerial.

Fixada a posição e os contornos ministeriais na Magna Carta, é de se esclarecer que, no processo civil, a sua atuação se bifurcará em dois dife-rentes campos: i) pode atuar como órgão agente (isto é, como parte au-tora), demandando em nome próprio os interesses sociais ou individuais indisponíveis que lhe foram confiados; ou ii) pode, outrossim, agir como órgão interveniente (quando atua como custos legis, fiscalizando a correta aplicação da norma jurídica). 7-8

Como órgão agente, o Parquet movimenta, em seu próprio nome (excepcionando, quando preciso, a regra do art. 6o do CPC), a máquina judiciária para defender os valores que lhe foram confiados pela Carta Maior. É, sem dúvida, a veia processual ativa do Ministério Público. E essa movimentação do Judiciário se materializa através da tutela de interes-ses coletivizados (rectius, transindividuais) ou da defesa de interesses personalizados, individuais indisponíveis. Nessa hipótese de substituição processual (defesa, em juízo, de interesses individuais, mas que têm na-tureza indisponível), a Promotoria de Justiça atua buscando a efetivação

7 Abandonou, assim, o Parquet a sua velha feição de órgão acusador sistemático, com atuação restrita na área penal, ganhando papel de destaque na defesa dos interesses de caráter social ou individual indisponíveis, atuando, em toda e qualquer hipótese, com liberdade funcional.

8 A respeito da compreensão processual da atuação do Ministério Público no processo civil brasileiro, inclusive com amplas referências a sua atuação como órgão agente, remete-se à excelente obra de Fernando Antônio Negreiros Lima, cf. A intervenção do Ministério Público no processo civil brasileiro como “custos legis”, cit., notadamente p. 99-118.

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de interesses pessoais e particulares, mas cuja defesa é necessária à pre-servação da ordem jurídica justa e equilibrada. Há, desse modo, um inte-resse privado que se afigura como relevante à manutenção dos princípios afirmados em sede constitucional.9

Enfim, como de há muito visualizava a genialidade de Piero Calamandrei, processualista peninsular cuja obra até hoje influencia nosso processo civil, “a participação do Ministério Público (como parte no processo civil) tem a finalidade de suprir a não iniciativa das partes privadas ou de controlar sua eficiência (da iniciativa em juízo), sempre que, pela especial natureza das relações controvertidas (natureza indis-ponível), possa temer o Estado que o estímulo do interesse individual (...) possa faltar totalmente ou se dirigir a fins distintos do da observância da lei.”10

E um exemplo significativamente eloqüente dessa legitimação minis-terial para a defesa dos interesses individuais indisponíveis (na busca da preservação de direitos cuja proteção interessa ao Estado), é, justamente, a ação de alimentos – na qual o órgão atua em juízo com vistas a garantir o direito constitucionalmente assegurado à vida, à integridade física e psí-quica e, principalmente, à dignidade humana (art. 1o, CF). Tratando-se de alimentos, tem-se, então, a toda evidência, um interesse individual indis-ponível. Aliás, se fossem disponíveis os interesses relativos aos alimentos, despicienda seria, por conseguinte, a própria intervenção ministerial nas ações aforadas através da representação processual de advogados e per-mitida seria a ampla possibilidade de transação ou mesmo de renúncia ao direito alimentar.

Por isso, versando a demanda sobre alimentos, é incontroversa a indis-ponibilidade do direito em debate, dizendo respeito à própria dignidade humana e o direito à vida digna. Nesse sentido, Robson Renault Godinho esclarece que a legitimidade ministerial para os alimentos decorre, em última análise, da tutela do próprio “direito à vida, por meio de uma ação judicial que visa a garantir o mínimo existencial necessário para o subs-tituído, estando presente, assim, a nota da indisponibilidade”.11 Também

9 A respeito da atuação ministerial no processo civil, é relevante fazer menção à obra de Paulo Cézar Pinheiro Carneiro, cf. O Ministério Público no processo civil e penal, cit., especialmente p.8-11, para a análise dos influxos decorrentes do princípio do promotor natural.

10 CALAMANDREI, Piero, cf. Direito Processual Civil, cit., p.335-6.11 GODINHO, Robson Renault, cf. O Ministério Público como substituto processual no processo civil,

cit., p.43.

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Pinto Ferreira assevera que a obrigação alimentícia “funda-se na própria existência da família, porém interessa aos destinos da sociedade e da comu-nidade humana, daí a indisponibilidade do direito”.12

Essas observações, por si sós, já se apresentam suficientes para evi-denciar, com absoluta certeza e segurança, a legitimidade do Ministério Público para as ações de alimentos, por versarem sobre matéria de nature-za indisponível, que, em consonância com o comando 127 da Constituição da República, pode (e deve) ser defendida pela Instituição. Vale dizer: tendo sido entregue ao Órgão Ministerial a incumbência da “defesa da or-dem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis” (CF, art. 127, caput) e configurando os alimentos matéria de natureza indisponível, por simples exercício lógico, se vislumbra a plena legitimidade da Instituição para promover, em juízo ou fora dele, procedi-mentos tendentes a garantir e efetivar tal direito (indisponível).

Afigura-se lícito, pois, concluir que, em se tratando de interesse in-disponível, o direito de pleitear os alimentos está incluído no campo de atuação do Ministério Público, conforme previsão da Lex Mater.

Na jurisprudência de nossos Tribunais de Justiça o entendimento vai ganhando fôlego, de modo a garantir o império da norma constitucional.

“Alimentos – Ação proposta pelo Ministério Público – Ilegitimidade de parte defendida na sentença extintiva – Particularidades que au-torizam a aplicação do art. 201, III, do ECA, e art. 129, IX, da CF/88 – Regularidade na propositura da ação de alimentos.

Primeiramente, cumpre considerar o disposto no art. 201, III, do ECA que assegura a possibilidade do órgão ministerial propor e acompa-nhar ações de alimentos, assim como o art. 129, IX, da Constituição Federal de 1988 também deixa entrever hipóteses no mesmo sentido.

Regramento com perfeito encaixe à questão proposta, tendo em vista que se pretende arbitramento de verba alimentar para satisfazer ne-cessidades de menores praticamente abandonados...” (TJ/SP, Ac.unân.Câmara de Direito Privado, ApCív.17.089.4/9 - comarca de Itu)

“Alimentos (...) Pedido formulado pelo Ministério Público – Interesse de incapaz e de pessoas humildes e necessitadas – Legitimidade ativa de parte – Art. 129, IX, Constituição da República... e 201, inciso III, da Lei Federal nº8.069, de 1990 – ECA - Extinção do processo afasta-da.” (TJ/SP, in JTJ 142:167)

12 Apud Covello, Sérgio Carlos, cf. Ação de Alimentos, cit., p.9.

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Demonstra-se, portanto, a legitimidade ministerial (a partir de refe-rências constitucionais) para promover medidas garantistas de direitos indisponíveis, dentre os quais, o direito a alimentos.

Definitivas e precisas são as palavras de Marcelo Zenkner acerca da questão: “o direito a alimentos diz respeito a interesse individual in-disponível e fundamental da criança e do adolescente, tendo assento na própria Constituição da República (art. 227, caput), estando o Ministério Público legitimado extraordinariamente para tanto pela própria Lei Maior (art. 127)”.13

Também comungando com esse entendimento, o imortal Caio Mário da Silva Pereira esclarece que “em nome de ‘interesses individuais in-disponíveis’ previstos no art. 127 da Constituição Federal, está a legi-timidade do Ministério Público... de ‘promover e acompanhar ações de alimentos’”.14

Efetivamente, esse é o único entendimento que pode de uma interpre-tação conforme o Texto Constitucional: o Ministério Público está legitima-do para a ação de alimentos (e para as demais ações que lhe são afeitas) em razão do caráter indisponível do direito em disputa e pelo alcance so-cial dessa legitimidade.

Essa tese, inclusive, já vem merecendo acolhimento no próprio seio do Superior Tribunal de Justiça, como se infere do lúcido voto conduzido pela Ministra Fátima Nancy Andrighi:

“Direito Civil e Processual Civil. Ação de execução de alimentos. Ministério Público. Legitimidade ativa.

É socialmente relevante e legítima a substituição processual extra-ordinária do Ministério Público, notadamente quando na defesa dos economicamente pobres, como também em virtude da precária ou inexistente assistência jurídica prestada pelas Defensorias Públicas.

Dado o caráter indisponível do direito a receber alimentos, em se tra-tando de criança ou adolescente, é legítima a atuação do Ministério Público como substituto processual em ação de execução de pres-tação alimentícia por descumprimento de acordo referendado pelo próprio Ministério Público.

13 ZENKNER, Marcelo, cf. Ministério Público e efetividade do processo civil, cit., p.153.14 PEREIRA, Caio Mário da Silva, cf. Instituições de Direito Civil, cit., p.520. Acrescenta o notável

civilista das Alterosas que a ação de alimentos pode ser proposta pelo MP “sempre que os interesses destes (parentes do alimentando) colidirem com os de seus pais ou responsável, ou quando carecer de representação ou assistência legal ainda que eventual”.

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O tão-só descumprimento de acordo de alimentos evidencia viola-ção a direito da criança, que se vê privada do atendimento de suas necessidades básicas. Recurso especial provido.” (STJ, Ac.unân.3aT., REsp.510.969/PR, rel. Min. Fátima Nancy Andrighi, j.6.10.05, DJU 6.3.06, p.372)

E acresça-se, ademais, que “não se deve negar ao Ministério Público a legitimidade ativa ‘ad causam’ na defesa do cumprimento das normas constitucionais”, como bem ressaltou o Desembargador Villa da Costa, ao relatar a Ap.Cív.nº201.109-1, j.4.2.94, no Eg. TJ/SP (in JTJSP 155:98).15

Com a preciosa advertência de Belmiro Pedro Welter, “se alimen-tos envolvem questão do Estado, em se tratando de menores, emergem direitos indisponíveis e, por conseguinte, não há como inadmitir que em nome do interesse público, já à luz da nova lei, não possa o Ministério Público, em socorro aos necessitados, acionar a máquina judiciária. É que a extensão do campo de atribuições que o Estatuto confere ao Ministério Público permite-lhe, sem peias ou amarras que não as da lei, intervir em tais processos com ampla liberdade e imparcialidade, pois não há como exigir-lhe vinculação ao pedido”.16

Logo, havendo inescondível interesse indisponível de criança ou ado-lescente, decorre, com tranqüilidade, a legitimação ministerial para pro-por ação de alimentos, como conseqüência lógica de sua feição consti-tucional. O mesmo será aplicável, inclusive, à tutela jurídica das pessoas idosas, em favor das quais será possível ao Parquet pleitear alimentos, de modo a resguardar a dignidade e a integridade física-psíquica, como se extrai da leitura do Estatuto do Idoso. Bem por isso, “a ação de alimentos é um dos instrumentos eficazes de que dispõe o Ministério Público para tutelar o direito de idoso” e negar-lhe legitimidade significa “ignorar a Constituição e fechar os olhos para a realidade do país”.17

A tudo isso não é demais acrescentar que o nosso sistema garantis-ta-constitucional reconhece um direito ao mínimo existencial (teoria do

15 O saudoso Celso Ribeiro Bastos percebe o surgimento da atuação ministerial na “clara necessidade de um órgão que zele tanto pelos interesses da coletividade, quanto pelos dos indivíduos, estes (...) quando indisponíveis (...), que merecem um especial tratamento do ordenamento jurídico”, cf. Curso de Direito Constitucional, cit., p.412.

16 WELTER, Belmiro Pedro, cf. Alimentos no Código Civil, cit., p. 112-3.17 GODINHO, Robson Renault, cf. O Ministério Público como substituto processual no processo civil,

cit., p.55.

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patrimônio mínimo da pessoa humana),18 defluindo da concretização da dignidade da pessoa humana, aplicável em sede de relações patrimoniais, o que reforça a tese da indisponibilidade do direito em disputa, fazendo incidir o preceito constitucional que legitima a Promotoria de Justiça para a propositura da ação de alimentos.

3. Previsão exPressa da lei nº8.069/90 - eCa, autorizando o mp a aforar ação de alimentoS na proteção integral de Criança ou adoleSCente

Já fortalecido, sem dúvida, pelo texto constitucional, ao Parquet fo-ram confiadas, ainda, outras atribuições na defesa da infância e juventude pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, até mesmo considerando a in-disponibilidade do direito tratado.19

18 Em outra sede, já sustentamos, conjuntamente com talentoso civilista radicado em Minas Gerais, sobre a teoria do patrimônio mínimo da pessoa humana, que a proteção do patrimônio mínimo se harmoniza com a tendência de despatrimonialização das relações privadas, conferindo realce à pessoa humana e às suas necessidades fundamentais. Justifica-se uma vez que a pessoa humana é o fim almejado pela tutela jurídica e não o meio. Assim, as regras jurídicas criadas para as mais variadas relações intersubjetivas devem assegurar permanentemente a dignidade da pessoa humana. Para tanto, é necessário ultrapassar as fronteiras dos direitos da personalidade para buscar, também nos direitos patrimoniais, a afirmação da proteção funcionalizada da pessoa humana. Enfim, relacionando a garantia de um mínimo patrimonial à dignidade da pessoa humana, percebe-se o objetivo almejado pela Constituição da República no sentido de garantir a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, funcionalizando o patrimônio como um verdadeiro instrumento de cidadania e justificando a separação de uma parcela essencial, básica, do patrimônio para atender às necessidades elementares da pessoa humana. É o chamado mínimo existencial, revelando um dos aspectos concretos, práticos, da afirmação da dignidade da pessoa humana. Através da teoria do reconhecimento do direito a um patrimônio mínimo, institutos antes vocacionados, exclusivamente, à garantia do crédito são renovados, rejuvenescidos, e utilizados na proteção da pessoa humana, como um aspecto essencial para o reconhecimento de sua dignidade. Exemplos contundentes da proteção ao patrimônio mínimo da pessoa humana podem ser apresentados com a proteção ao bem de família (Lei n. 8.009/90 e CC, arts. 1.711 a 1.722), com o óbice da prodigalidade, vedada a doação da totalidade do patrimônio, sem que se resguarde um mínimo (CC, art. 548) e com a previsão da impenhorabilidade de determinados bens (CPC, art. 649), reconhecendo como necessária a preservação de um mínimo de patrimônio para o desenvolvimento das atividades humanas. É preciso alertar para o fato de que o eventual rol de exemplos não é exauriente, dependendo do caso concreto para que seja delimitada a extensão do patrimônio mínimo da pessoa humana, a partir da colisão entre valores patrimoniais destinados à garantia do crédito e valores patrimoniais vocacionados à proteção das situações existenciais, exigindo importante atuação interpretativa e construtiva, FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson, cf. Direito Civil: Teoria Geral, cit., p.200 e ss.

19 Acerca da proteção constitucional da criança e do adolescente, permita-se apontar a obra de Martha de Toledo Machado, cf. A proteção constitucional de crianças e adolescentes e os direitos humanos, cit., em especial p.191, na qual se registra, não sem razão, que dentre os direitos fundamentais especiais reconhecidos à infância e juventude consta o direito à alimentação.

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Assim sendo, não fossem suficientes os argumentos esposados alhu-res, é de se lembrar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (diploma legal dos mais avançados, como é amplamente reconhecido), expressa-mente, legitimou o Ministério Público para promover ações de alimentos, em defesa, é óbvio, da infância e juventude, sem fazer qualquer referência limitadora. Giza, verbum ad verbo, o art. 201 do Estatuto da Criança e do Adolescente: “compete ao Ministério Público: (...) III - promover e acompa-nhar as ações de alimentos...” Ora, o texto legal é de clareza meridiana, não suscitando dúvidas, nem possibilitando interpretações restritivas que, por evidente, colidem frontalmente com a sua finalidade teleológica.20

E é esta a situação com a qual se defronta no caso em apreço: haven-do explícita previsão legal (ECA, art. 201, III), legitimando a Instituição Ministerial para promover a ação de alimentos em favor da infância e ju-ventude, sem qualquer ressalva ou condição, não cabe ao intérprete ou aplicador discutir o alcance da norma. Enfim, não poderá obstar a aplica-ção do texto legal, sob qualquer argumento.

Nessa esteira, inclusive, Hugo Nigro Mazzili dispara que, dentre as ações fundadas no Estatuto da Criança e do Adolescente, poderá o MP ajuizar “ação de alimentos.”21

Importante destacar que, em tais hipóteses, o que se está defendendo em juízo é, sem dúvida, a própria proteção integral (CF, art. 227) da infân-cia e juventude, colocando a criança ou o adolescente a salvo da omissão ou negligência de seus responsáveis, garantindo-lhe o mínimo preciso para atender às suas vitais e básicas necessidades e garantir um padrão elementar de dignidade.

Bem salienta Paulo Lúcio Nogueira, inclusive com referências a aba-lizado posicionamento doutrinário, que o Ministério Público defende “os valores fundamentais indispensáveis para a existência pacífica e profícua da sociedade e para a realização dos seus membros como pessoa huma-

20 Merece ser trazido à liça, inclusive, importante trecho do voto dos Ministros Sálvio de Figueiredo Teixeira e Ruy Rosado de Aguiar, no julgamento do REsp. 89.661/MG, na 4ª Turma do STJ, julgado em 27.8.96 e publicado no DJU de 11.11.96, tratando a matéria com a lucidez e pertinência que lhe são peculiares: “não é apenas nos casos de abandono, perda ou suspensão do pátrio poder que a lei atribui ao Ministério Público promover em juízo a defesa dos interesses difusos, coletivos ou mesmo individuais de crianças e adolescentes. A sua competência é ampla, pois a proteção do Estatuto se estende a todos os casos de ameaça ou violação aos direitos do menor, e para lutar por eles apôs o Ministério Público, dando-lhe as atribuições elencadas no art. 201.”

21 MAZZILI, Hugo Nigro, cf. Manual do Promotor de Justiça, cit., p. 505

A legitimidade do Ministério Público para a ação de alimentos: uma conclusão...

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na”.22 E não há valor fundamental mais indispensável a uma existência digna e honrada dentro da sociedade do que o direito aos alimentos. Até mesmo porque, sem eles, muito dificilmente, a criança ou o adolescente conseguirá atender às suas necessidades básicas vitais como saúde, ali-mentação, moradia, lazer e educação.

De fato, inexiste direito mais fundamental em nosso ordenamento ju-rídico do que o direito à vida digna, conforme previsão do art. 1o, III, da própria Lei Maior. E esse direito fundamental a uma vida digna materiali-za-se, também, sem a menor sombra de dúvidas, através do recebimento dos alimentos que lhe são devidos, de acordo com a regra do Código Civil, art. 1.694.23

A legitimação ministerial prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente nada mais pretende, senão garantir um amplo acesso à jus-tiça na proteção dos direitos infanto-juvenis. É que negando à criança ou ao adolescente o direito (constitucionalmente garantido – CF, art. 5º) de acesso à Justiça para cobrar alimentos, se estará negando, por via oblíqua, o seu próprio direito à vida.

Aliás, não se pode olvidar que a própria legislação menorista, em seus arts. 1º e 4º, e a Constituição da República, em seu art. 227, adotaram os princípios (universalmente consagrados pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança e pelas Regras de Beijing – Beijing Rules) da pro-teção integral e prioridade absoluta, dizendo ser “dever da família, da so-ciedade e do estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação..., além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Portanto, uma eventual decisão judicial que venha a negar a legitimi-dade do Ministério Público para estar em juízo pleiteando alimentos em prol de uma criança ou adolescente, estará em rota de colisão com o texto constitucional (CF, arts. 127 e 227), bem como com o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente.

Demais de tudo isso, ao se perpetrar uma análise sistemática e com-parativa das disposições constitucionais com o Estatuto Menorista, vis-

22 NOGUEIRA, Paulo Lúcio, cf. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, cit., p.316.23 Art. 1.694, Código Civil: “podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros

os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação^.

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lumbra-se o caráter indisponível dos direitos afetos à área infanto-juvenil, como questão intransponível, verdadeiro pressuposto dos direitos da in-fância e juventude.

Assim, seja pelo prisma dos direitos fundamentais (ECA, art. 7º e ss.), seja quanto aos individuais (ECA, arts. 106 e ss.), estará presente, sempre, a indisponibilidade como um caráter precípuo, inderrogável, dos alimen-tos em favor de criança ou adolescente.

A partir desse enfoque (resultante da interpretação sistemática e te-leológica da Constituição Federal e do próprio ECA), chega-se na base sólida onde se assentam todas as normas garantidoras dos direitos da criança e do adolescente: a doutrina da proteção integral, que traz como traço marcante e fundamental assegurar às crianças e adolescentes a sa-tisfação de suas necessidades básicas vitais, independendo de formalis-mos ou questões processuais. Daí Olympio de Sá Sotto Maior Neto concluir, corretamente, que “as crianças e adolescentes não podem mais ser tratados como meros objetos de intervenção do Estado, devendo-se ago-ra reconhecê-los como sujeitos dos direitos elementares à pessoa humana, de maneira a propiciar o surgimento de uma ponte de ouro entre a margi-nalidade e a cidadania plena”.24

Nessa ordem de idéias, em face da fragilidade e da falta de condições pessoais de autodefesa, a criança e o adolescente precisam ter resguar-dados os seus direitos e garantias, inclusive a fim de impedir que pais ou responsáveis (ou melhor, irresponsáveis) extrapolem os limites legal-mente admitidos, impingindo prejuízos morais e psicológicos de difícil reparação. Há de se garantir suas incolumidades física, corpórea, psíquica e moral, em nome do próprio futuro da civilização, da sociedade que, no amanhã, será o reflexo da proteção dada à criança de hoje.

Por isso, dispara Hugo Nigro Mazzilli: “tratando-se de interesses de crianças ou adolescentes (...), sua defesa sempre convirá à coletividade como um todo”.25

Nesse panorama, entrega-se ao órgão de defesa da sociedade – o Ministério Público – a missão, não só de defesa, mas de preservação, ga-rantia e efetivação, dos direitos da infância e juventude. E essa entrega da proteção integral justifica-se por tratar-se de interesses de ordem indis-

24 SOTTO MAIOR NETTO, Olímpio de Sá, cf. “O Ministério Público e a proteção aos interesses individuais, coletivos e difusos relacionados à infância e juventude”, passim.

25 MAZZILI, Hugo Nigro, cf. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo, cit., p. 499.

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ponível, pouco importando a situação específica a que se refira: envolven-do criança ou adolescente, automaticamente, está legitimada a atuação ministerial.

Seguindo essa trilha de raciocínio, percebe-se serem inúmeras as hi-póteses de atuação do Ministério Público na área infanto-juvenil, sendo, inclusive, impossível nominar, elencar, todos esses interesses resguarda-dos e garantidos pela legislação. É certo afirmar, de qualquer maneira, que nessa defesa estará inserida a ação de alimentos. Até mesmo porque a Lei Maior conferiu ao Parquet legitimidade ativa para qualquer medida de proteção aos interesses individuais indisponíveis, inexistindo previsão numerus clausus.

Mais uma vez, vale lembrar a lição de Mazzili, destacando que a atu-ação ministerial se justifica por ser esse especialíssimo grupo “merecedor de um tipo todo especial de atenção e proteção”.26

Uma coisa não pode estar em dúvida: toda criança e adolescente es-tão a exigir atuação protetiva integral. E é por essa imperiosa necessida-de e pela amplitude do alcance dos direitos menoristas que não se pode excluir a iniciativa e a intervenção ministerial em qualquer questão que os envolva. Afinal de contas, o Parquet é o protetor natural da infância e juventude.

Decorre, assim, de modo indelével e induvidoso (de forma expres-sa), da própria legislação menoril a legitimatio ad causam do Ministério Público para a propositura de qualquer ação visando garantir medidas protetivas da infância e juventude, inclusive para promover a ação de alimentos.

Conclui-se, então, com segurança: o Parquet está legitimado para pro-por ação de alimentos, em favor de criança ou adolescente, pelo art. 201, III, do ECA, a fim de proteger interesses infanto-juvenis. Vale dizer, tem o órgão ministerial plena legitimidade para propor medidas que visem proteger à criança ou o adolescente, sejam elas quais forem (o que significa, estejam em situação de risco, ou não), inclusive podendo – devendo – aforar, se preciso, ação de alimentos, para compelir o responsável a garantir o sus-tento e necessidades vitais.

Também com esse pensar, Marcelo Zenkner dispara que “além do mais, não há, no inciso III, do art. 201 do ECA, qualquer ressalva ou con-dição apta a concluir pela limitação da atuação do Ministério Público na

26 MAZZILI, Hugo Nigro, cf. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, cit., p.611.

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defesa dos interesses da criança e do adolescente”.27 Disso não discrepa Belmiro Pedro Welter, para quem o Parquet tem a liberdade não so-mente de acompanhar, como “também de ajuizar as ações a que se refere o inciso III do art. 201 do Estatuto, tudo isso em nome da defesa dos va-lores ligados à infância e juventude, que encartam interesses superiores que, por sua natureza, em boa hora passaram a ser mais seriamente tute-lados pelo Estado”.28

Esse entendimento também já é manifestado por algumas de nossas Casas Judiciais, como é possível perceber dos arestos invocados:29

“Ao Ministério Público, que desempenha o papel de curador da in-fância e da juventude, compete ‘promover e acompanhar as ações de alimentos’...” (TJ/SC, Ac.48468, 1ªCâmCív., rel. Des. Nílton Macedo Machado, j.9.5.95, in Biblioteca dos Direitos da Criança ABMP - Ju-risprudência - v. 1:97)

“Alimentos. Ministério Público – Legitimidade para propor e exe-cutar ação de alimentos de menores – Sentença indeferindo (...) ao entendimento de faltar ao Ministério Público, no caso concreto, le-gitimidade postulatória - Inadmissibilidade - Recurso provido.” (TJ/SP, Ap.Cv. 52.497-4 - comarca de Pirassununga - Ac.un. 10ª Câm.Dir. Privado - Rel.Des. Marcondes Machado, j. 2.9.97, v.u., 746/004/05)

E mais esse acórdão tão oportuno ao tema: “A função do Ministério Público na ação de alimentos não se exaure no simples custos legis. Diante da impotência natural do incapaz e dos direitos objetivamente indisponíveis deste, legitimado, como substituto processual, está o órgão ministerial a pleitear, em nome próprio, direito daquele na forma do art. 6º da lei processual civil, independentemente de se tratar de menor totalmente desassistido e de existir ou não na comarca o serviço de assistência judiciária gratuíta, incogitável seria anular-se o processo...” (TJ/SC, Ap.Cív. 47221 – comarca de Sombrio, rel. Des. Alcides Aguiar, publ. DJ/SC nº 9.313, de 5.9.95, p.12)

Aliás, bem percebeu Ruy Rosado de Aguiar Júnior que “somente descumprindo a lei é que se pode retirar essa competência do Ministério Público, diminuindo o campo de sua atuação e causando grave prejuízo aos menores necessitados, pois a experiência do foro demonstra que, mui-

27 ZENKNER, Marcelo, cf. Ministério Público e efetividade do processo civil, cit., p.153-4.28 WELTER, Belmiro Pedro, cf. Alimentos no Código Civil, cit., p.112-3. 29 No mesmo diapasão, vale fazer referência à posição do Ministério Público de segundo grau

bandeirante: “no tocante ao incapaz expressamente mencionado na petição, a legitimidade do Ministério Público para propor ação de alimentos é induvidosa...” (parecer da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo, RT 548:279).

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tas vezes, especialmente nas pequenas comarcas, é o Ministério Público a única instituição capaz de zelar pelos interesses dos desassistidos”.30 31

Nessa linha de intelecção, induvidoso é o reconhecimento da plena le-gitimidade ativa para a ação de alimentos pelo Parquet, na defesa e prote-ção de interesses infanto-juvenis, não se podendo obstar a sua ação, pena de abalar o próprio direito à vida dos menores tutelados.

4. legitimação do mp para a ação de alimentoS Como forma de garantir o aCeSSo à JuStiça aSSegurado ConStituCionalmente

Negar a legitimidade ministerial para a ação de alimentos, ainda, sig-nificaria agravar, ainda mais, o (já) difícil acesso à Justiça daquelas pesso-as mais carentes e cujos direitos são mais vulnerados.

Não é despiciendo lembrar que a prestação da tutela jurisdicional pelo Estado-Juiz deve se dar com a efetivação das normas materiais, através de um instrumento célere e eficaz (o processo). E aqui é de se ressaltar que essa tutela jurisdicional, de modo a respeitar o princípio basilar da igual-dade, preconizado constitucionalmente (logo no caput do Art. 5º), deve estar ao alcance de todos, inclusive daqueles hipossuficientes economica-mente ou daqueloutros desestimulados pela demora na solução judicial ou pela dificuldade de ingressarem em juízo.

A realidade social – máxime em países como o nosso, com francas de-sigualdades sócio-econômicas e com omissão estatal de suas obrigações básicas, como a prestação de assistência jurídica e judiciária gratuita – é outra.

Neste panorama surge a importância da atuação do Ministério Público como instituição voltada para uma finalidade social, tendo relevante pa-pel na salvaguarda de direitos da população, especialmente quando se tratar de direitos indisponíveis. Dessume-se, assim, a legitimatio do Parquet para a propositura de ações diversas (obviamente enquadráveis nas latitudes de sua função de defensor de interesses sociais e individuais

30 Voto proferido no julgamento mencionado na Revista dos Tribunais 738:258.31 No mesmo julgamento, comungando do entendimento, destacou o Ministro Sálvio de

Figueiredo Teixeira: “o Ministério Público estaria legitimado como substituto processual para o ajuizamento da ação de alimentos contra o pai (...) em face do disposto no inciso III, do art. 201 do ECA, onde o legislador contempla a hipótese da promoção da ação de alimentos por parte do ‘Parquet’.”

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indisponíveis), a fim de permitir e viabilizar o acesso à justiça (que é, sem dúvida, um dos problemas maiores a serem resolvidos pelo processo civil moderno).

Por outro turno, não se pode olvidar que o Judiciário detém o poder (e dever) de apreciar toda e qualquer lesão ou ameaça a direito (CF, art. 5º, XXXV). Entretanto, em razão da inércia natural deste Poder (não sendo possível cumular as funções postulatória e decisória num mesmo órgão), se impõe a existência de um órgão tendente a promover em juízo medi-das necessárias a desencadear a atividade judiciária, quando se tratar de direitos de cunho coletivizado ou individuais de natureza indisponíveis.

Exsurge, assim, a figura do Ministério Público, como instituição essen-cial à justiça e, “nessa perspectiva guarda enorme relação com a questão do acesso à justiça. Afinal de contas, o Ministério Público é o órgão que pode (e deve) obter junto ao Judiciário decisões tendentes a solucionar conflitos e proteger bens e valores de interesse da sociedade”, nas palavras lúcidas de Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz e João Lopes Guimarães Júnior.32

Qualquer raciocínio em contrário afronta diretamente o caput do art. 5º de nossa Lex Mater, que proclama a igualdade de todos perante a lei.

Desse modo, através do Parquet, uma significativa parcela de nossa sociedade (especialmente aquelas pessoas mais carentes ou aqueloutras cujos direitos indisponíveis ou coletivos - rectius, transindividuais - es-tejam sendo infringidos ou ameaçados de violação e que, naturalmente, teriam enorme dificuldade de pleitear perante o Judiciário) é levada à Justiça, com vistas a ter seus direitos reconhecidos e assegurados, o que gera economia de tempo (celeridade) e de despesas (sentido amplo) e imprime efetividade às disposições de lei (o que é visado preponderante-mente pelo processo civil contemporâneo).

5. irrelevânCia da exiStênCia de Serviço de aSSiStênCia JudiCiária gratuita

Sobreleva encalamistrar, outrossim, além de todos os argumentos já alinhavados, que a legitimidade ministerial para a ação de alimentos não está submetida à existência, ou não, de serviço de assistência ju-

32 FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo; GUIMARÃES JÚNIOR, João Lopes, cf. “A necessária elaboração de uma nova doutrina de Ministério Público, compatível com seu atual perfil consti-tucional”, cit., p.22.

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diciária gratuita na comarca, tratando-se de verdadeira legitimidade concorrente.33

Efetivamente, o que se tem, no regramento legal brasileiro (com os raios emitidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 201, III, e pela própria Constituição da República, nos arts. 127 e 227) é a ple-na legitimidade do Ministério Público para o aforamento da ação de ali-mentos, pouco interessando a existência, ou não, de serviço de gratuidade judiciária na localidade.34

É que os interesses relativos à infância e juventude (e tuteláveis pelo Parquet) são indisponíveis, independendo do status econômico ou social dos interessados. Enfim, a indisponibilidade é o traço marcante desses interesses.

A importância e especificidade (dado o caráter indisponível) do inte-resse menorista suplanta – e muito – a questão econômica, patrimonial. Por isso, a legitimação da Promotoria de Justiça não depende da existên-cia, ou não, do serviço de assistência judiciária gratuita na localidade. Aliás, a questão é tratada com percuciência por Bertoldo Mateus de Oliveira Filho: “a legitimidade do MP para o aforamento de ação de ali-mentos (...) não se subordina à condição de menoridade destes, emergindo, sim, da indisponibilidade do interesse individual”.35

Também os nossos Pretórios são colhidos importantes precedentes, admitindo a legitimidade ministerial, independentemente da existência de serviço de assistência jurídica gratuita. Vale conferir alguns exemplos:

“Alimentos – Criança ou adolescente – Ajuizamento da ação pelo Ministério Público – Legitimidade ‘ad causam’ – Irrelevância da

33 Em sentido contrário, somente admitindo a legitimidade ministerial se inexistir na comarca assistência judiciária gratuita: “agravo de instrumento provido para o efeito de considerar a legitimação do Ministério Público para patrocinar as causas dos que fazem jus a assistência judiciaria, onde não houver serviço organizado para presta-la..., se justificando pela defesa do valor fundamental consistente no acesso ao judiciário.” (TJ/PR, AgInst. 15573100 – comarca de Formosa do Oeste, rel. Des. Ronald Accioly, DJ/PR 18.5.92). Também assim: “a legitimidade do Ministério Público para patrocinar as causas dos que fazes jus à assistência judiciária gratuita, onde não houver serviço organizado, se justifica pela defesa do valor fundamental que é o acesso ao judiciário.” (TJ/SP, Ac.4ªCâm.Cív., j.30.4.92, in RT 699:127) Em verdade, porém, o argumento expendido não resiste à própria análise da previsão constitucional e legal das funções inerentes à Defensoria Pública, consoante o formato que lhe foi conferido pela Constituição Federal e pela sua lei orgânica.

34 Com semelhante raciocínio, também defendendo a legitimidade ministerial, independentemente da existência de serviço de gratuidade judiciária, veja-se a lição preciosa de Maria Berenice Dias, cf. Manual de Direito das Famílias, cit., p.83.

35 OLIVEIRA FILHO, Bertoldo Mateus de, cf. Alimentos e Investigação de Paternidade, cit., p.96.

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existência de Assistência Judiciária na comarca – Interpretação do art. 201, III, da Lei nº8.069/90” (TJSP, in RT 752/189)

“Alimentos - Execução - Legitimidade do Ministério Público para promovê-la, em nome de menor - Irrelevância de possuir este ad-vogado constituído, ou de haver, ou não, na comarca, serviço or-ganizado de assistência judiciária... Aplicação do art. 201, III, do Estatuto da Criança e do Adolescente - Recurso provido.” (TJ/SP, Ac.unân.10ªCâmara de Direito Privado, AgInstr. 41.265-4 – comarca de Pirassununga, rel. Des. Quaglia Barbosa, j. 23.9.97, 746/072/04)

“Legitimidade de parte - Ativa - Ministério Público - Ação de ali-mentos - Admissibilidade - Existência na Comarca de assistência judiciária aos necessitados - Irrelevância - Artigos 201, inciso lll, do Estatuto da Criança e do Adolescente e 129, inciso IX, da Constitui-ção da República - Extinção do processo cassada - Recurso provido”. (TJ/SP, in JTJ 138/183)

Não se perca de vista, demais de tudo isso, o fato de que essa legitimi-dade promotorial decorre, sem dúvida, da natureza do interesse em jogo e não da situação financeira eventual da parte interessada.

Daí, merecer destaque o fato de pouco interessar a condição econô-mica dos titulares dos interesses tutelados. Se se admitisse que a situ-ação sócio-econômica poderia influir na legitimidade ministerial, como conseqüência lógica (ou melhor, ilógica), seria imperativo entender que a Instituição estaria propensa e vocacionada à defesa dos pobres, mesmo quando se tratar de direitos de natureza disponível – o que, a toda evidên-cia, afronta a legalidade constitucional.

Ademais, a Lei nº8.625/93 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público – reza, em seu art. 32, II, que “compete aos Promotores de Justiça, dentro das esferas de atribuições: (...) II - atender a qualquer do povo, to-mando as providências cabíveis”. Não é difícil inferir, a partir da simples e perfunctória leitura do referido texto legal, que a mens legis acena no sentido de que o Ministério Público deve atender à população (indepen-dente da posição sócio-econômica – sob pena de infringência ao princípio constitucional da igualdade), encaminhando uma solução e, quando legi-timado, adotando as providências judiciais necessárias e adequadas, com o acionamento da máquina judiciária, para tornar efetivo o direito material correspondente.

Pensar diferente é fazer tabula rasa do espírito constitucional, redu-zindo e sufocando a importante atuação do Ministério Público na defesa de interesses indisponíveis.

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