90
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE DIREITO KELLY BIZINOTTO ENTRE A ADOÇÃO INTUITU PERSONAE E O CADASTRO NACIONAL DE ADOÇÃO: O PRINCÍPIO DO SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA

3%83o Intuitu Personae e o Cadastro Nacional de Ado%c3%87%c3%83o - o Princ%c3%8dpio Do Superior Interesse Da Crian%c3%87a[1]

Embed Size (px)

Citation preview

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIS

FACULDADE DE DIREITO

KELLY BIZINOTTO

ENTRE A ADOO INTUITU PERSONAE E O CADASTRO NACIONAL DE ADOO: O PRINCPIO DO SUPERIOR INTERESSE DA CRIANA

GOINIA, 2011

KELLY BIZINOTTO

ENTRE A ADOO INTUITU PERSONAE E O CADASTRO NACIONAL DE ADOO: O PRINCPIO DO SUPERIOR INTERESSE DA CRIANA

Monografia apresentada como exigncia parcial para a obteno do grau de Bacharel em Direito junto Faculdade de Direito da Universidade Federal de Gois UFG, sob a orientao do Prof. Ps Dr. Srgio Matheus Garcez.

GOINIA, 2011

kelly bizinotto

ENTRE A ADOO INTUITU PERSONAE E O CADASTRO NACIONAL DE ADOO: O PRINCPIO DO SUPERIOR INTERESSE DA CRIANA

Monografia defendida e aprovada em ___ de ____________ de ______ pela Banca Examinadora constituda pelos professores:

_______________________________________ Avaliao: ____

Prof. Ps Dr. Srgio Matheus Garcez

Orientador

Universidade Federal de Gois

____________________________________________ Avaliao: ____

Prof. Ms. Maria do Socorro Sousa Afonso da Silva

Universidade Federal de Gois

_______________________________________ Avaliao: ____

Prof. Edson Lucas Viana

Pontifcia Universidade Catlica de Gois

Avaliao Final: ___

RESUMO

A doutrina da proteo integral, inserida no ordenamento jurdico brasileiro atravs da Constituio Federal de 1988, estabelece enquanto diretrizes orientadoras do tratamento dispensado criana e ao adolescente os princpios do superior interesse da criana, da prioridade absoluta e da convivncia familiar que so norteadores do Estatuto da Criana e do Adolescente. Apesar de terem sido pautados h mais de vinte anos, os dados atuais identificam um nmero significativo do pblico infanto-juvenil em acolhimento institucional. Para contornar essa situao foi promulgada a Lei n 12.010/09, que alm de indicar meios para se manter a criana ou o adolescente no seio familiar natural, tentou aprimorar os dispositivos relacionados colocao em famlia substituta, em especial, a adoo. Contudo, estabeleceu-se a obrigatoriedade da inscrio no cadastro de adoo como requisito para tal procedimento e a proibio da adoo intuitu personae. O presente trabalho visa apresentar o esvaziamento do princpio do superior interesse da criana decorrente de tais alteraes, o que agride o texto constitucional e acaba por dificultar o exerccio da convivncia familiar pelo acolhido institucionalmente.

Palavras-chave: criana e adolescente; adoo; convivncia familiar; Lei n 12.010/09; superior interesse da criana.

RESUMENLa doctrina de la proteccin integral, incluida en el ordenamiento jurdico brasileo a travs de la Constitucin Federal de 1988, establece las directivas del tratamiento dispensado a los nios y adolescentes los principios del inters superior del nio y la prioridad de la vida familiar que conduce el Estatuto Nios y Adolescentes. A pesar de han sido discutidos por ms de veinte aos, los datos actuales identifican um nmero significativo de nios y jvenes en acogimiento en institucin. Para evitar esta situacin se promulg la Ley n 12.010/09, que ms all de decir la manera de mantener al nio o adolescente en la familia natural, trat de mejorar las disposiciones relativas a inclusin en la familia sustituta, em particular la adopcin. Sin embargo, estableci la obligatoriedad de el requisito de inscripcin en el registro de la adopcin como requisito para este procedimiento y la prohibicin de la adopcin intuitu personae. Este trabajo presenta la deflacin del principio del inters superior del nio que surgen de estos cambios, lo que ataca el texto constitucional y obstaculiza el ejercicio de la vida familiar por la atencin en institucin.Palabras-claves: nio y adolescente; adopcin; vida familiar; Ley n 12.010/09; superior del nio.SUMRIO

8INTRODUO

121. REFERENCIAL HISTRICO DOS DIREITOS DA CRIANA E DO ADOLESCENTE

121.1 Os Direitos da Criana e do Adolescente no Brasil

161.2 O Tratamento Dado Criana e ao Adolescente a Partir da Constituio Federal de 1988: a Doutrina da Proteo Integral

161.2.1 O processo internacional de mudana paradigmtica e seus reflexos no Brasil

181.2.2 A doutrina da proteo integral e seus princpios

232. DA ADOO

232.1 O Perfilhamento da Adoo ao Longo do Tempo

252.2 O Processo de Adoo no Brasil

272.3 O Instituto da Adoo e suas Espcies

312.3.1 Adoo bilateral

332.3.2 Adoo unilateral

332.3.3 Adoo pstuma

353. O ADVENTO DA LEI 12.010/09 NO ORDENAMENTO JURDICO BRASILEIRO

373.1 Principais Inovaes Trazidas ao ECA com o Advento da Lei n 12.010/09

373.1.1 Alterao da nomenclatura ptrio poder para poder familiar

383.1.2 Classificao trinria dos grupos familiares

393.1.3 Criana ou adolescente indgena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo

403.1.4 Habilitao prvia dos postulantes adoo

413.1.5 Aprimoramento do texto legal pertinente adoo internacional

423.1.6 Permanncia mxima de dois anos em acolhimento institucional

433.1.7 Proibio da adoo intuitu personae e suas excees

453.1.8 Infrao administrativa relacionada com a operacionalizao dos cadastros de adoo

463.2 O Cadastro Nacional de Adoo

484. ADOO INTUITU PERSONAE E A LEI N 12.010/09 LUZ DA JURISPRUDNCIA DO STJ

54CONSIDERAES FINAIS

56REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

INTRODUO

A doutrina da proteo integral, inserida no ordenamento jurdico brasileiro atravs da Constituio Federal de 1988, estabelece enquanto diretrizes orientadoras do tratamento dispensado criana e ao adolescente os princpios do superior interesse da criana e da prioridade absoluta, que so norteadores do Estatuto da Criana e do Adolescente - ECA, promulgado em 1990, e garantem tratamento especial em todos os mbitos sociais a tal pblico.

Essa doutrina estabelece o espao da criana e o adolescente na sociedade enquanto sujeitos de direitos em condio peculiar de pessoas em desenvolvimento. Para tanto reafirma os direitos fundamentais tambm garantidos a eles e soma os direitos especiais relacionados ao seu estgio de desenvolvimento no s fsico com psquico, intelectual, moral e emocional. Um desses direitos especiais o direito a convivncia familiar. A famlia, por ser o primeiro ncleo social da qual uma pessoa ir pertencer, indispensvel na formao de um indivduo.

Apesar de notadamente ser algo natural, pertencer a uma famlia no exercido por todos. Considervel o nmero de crianas e adolescentes que so desprovidas desse direito e permanecem em acolhimento institucional. Os dados do Ministrio do Desenvolvimento Social e Combate Fome do conta de 20.000 pessoas nessas condies.

Da retira-se a percepo da nocividade em se ter a famlia em condies de vulnerabilidade social. As precrias condies de alimentao, sade, habitao, escolarizao e a intensa violncia urbana caminham no sentido de fragilizar a segurana do instituto em tela. Uma vez que a criana necessita ausentar-se do seu lar e de suas atividades de lazer infantis para auxiliar no oramento domstico, seja vendendo objetos de porta em porta, seja esmolando dinheiro em semforos; ou uma vez que o adolescente forado pelas circunstncias a desistir da frequncia escolar porque o trabalho, fonte de renda familiar, ocupa todo seu tempo, a famlia deixa de significar uma fonte de amparo e passa a ser smbolo de cobrana, carncia e abandono.

Ter sua referncia de sociedade fundamentada nesse smbolo provoca nesses sujeitos em desenvolvimento frustraes que arraigam em sua personalidade de forma a prejudicar seu amadurecimento e posterior relacionamento social, comunitrio.

Popularmente, abandonar significa desprezar, sentir indiferena perante alguma coisa ou algum. Os dicionrios no se afastam muito desse significado. No dicionrio Aurlio, abandonar o mesmo que desamparar; desprezo, no cuidar de; renunciar a; desistir de. No dicionrio Silveira Bueno, abandonar tem por significado deixar, desamparar, desprezar, renunciar a .

O desamparo constitui crime previsto no Cdigo Penal, em seu Artigo 133 que dita abandonar pessoa que est sob seu cuidado, guarda, vigilncia ou autoridade e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: pena de deteno, de 6 (seis) meses a 3 (trs) anos. So situaes especficas que se afastam da ideia de desprezo e se referem ao abandono fsico e material.

Contudo, a criana e o adolescente pela condio peculiar de pessoa em desenvolvimento, como bem aponta o Estatuto da Criana e do Adolescente, carecem de um cuidado mais complexo do que o protegido penalmente, pois envolvem questes de carter emocional, afetivo e psicolgico que apenas a assistncia material no consegue suprir. Por isso, conhecer as facetas do abandono imprescindvel para se mensurar a importncia do acolhimento da criana e do adolescente que se encontram nessa situao.

Vrias so as atitudes que, tipificadas ou no em lei, acabam por violentar o bem-estar de uma criana ou de um adolescente. So exemplos o descaso com a alimentao do filho, deixando-o a mngua da desnutrio (abandono material); ou o pai que no assume no registro da criana a paternidade (abandono jurdico); ou a me que rejeita a criana por ser fruto de gravidez indesejada (abandono psicolgico); ou os pais que praticam e/ou incitam prtica de crime, como o trfico ilcito de entorpecentes (abandono moral); ou o excesso no emprego de castigos em detrimento do carinho (abandono afetivo).

Tendo em vista a responsabilidade da famlia, da sociedade e do Estado preconizada constitucionalmente (Artigo 227, CF), verificado o estado de abandono em seu sentido abrangente, medidas emergenciais urgem ser tomadas para se colocar a salvo a criana ou o adolescente de toda forma de negligncia, discriminao, explorao, violncia, crueldade e opresso.

Nesse momento intervm o Estado com seu sistema de proteo que, nos casos de impossibilidade de resignificao dos laos familiares, aponta dois caminhos assistir a criana ou o adolescente, o acolhimento institucional ou a famlia substituta, por meio da guarda, tutela ou adoo.

At o ano de 2009, a primeira alternativa era mais utilizada, uma vez que a colocao em famlia substituta pressupe o interesse de terceiros em assumir o poder familiar, provisria ou definitivamente, sendo poucos os sensibilizados nesse sentido. Alm disso, muitas eram as crianas e adolescentes encaminhados para as instituies pelos prprios genitores devido a precria condio socioeconmica em que viviam.

Esse cenrio pintado pela pesquisa supracitada motivou representantes da sociedade civil e do poder pblico a discutir formas de reverter o quadro, indicando a convivncia familiar como mote para voltar as diretrizes de polticas pblicas direcionadas ao pblico infanto-juvenil. Desse trabalho resultou o Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa dos Direitos da Criana e do Adolescente Convivncia Familiar e Comunitria.

Paralelamente, representantes do Poder Legislativo tambm discutiam a temtica o que resultou na promulgao da Lei n 12.010/09, alterando o texto do ECA, que sinalizou a relevncia da convivncia familiar, preferencialmente no seio da famlia natural e aprimorou os dispositivos referentes adoo.

Diante do exposto, o presente trabalho visa apresentar as principais alteraes trazidas pela referida Lei, enfatizando as disposies relacionadas proibio da adoo intuitu personae face aos princpios da doutrina da proteo integral inerente Constituio Federal de 1988, no sem antes apresentar um resgate histrico da evoluo dos direitos da criana e do adolescente at os dias atuais, abordando o perfilhamento do instituto da adoo em diferentes momentos histricos.

Para tanto, utilizou-se do mtodo indutivo que parte da comparao do material bibliogrfico pesquisado e da coleta de dados quantitativos provenientes de fontes oficiais de informao. Inicialmente foi realizada uma pesquisa bibliogrfica vasta com material diversificado que variou entre doutrinas jurdicas, artigos cientficos e jornalsticos, trabalhos de concluso de curso e a legislao correspondente. Num segundo momento, colheram-se os dados quantitativos que, aps serem analisados, foram comparados com aqueles j confeccionados provenientes do estudo bibliogrfico, gerando este trabalho final.

1. REFERENCIAL HISTRICO DOS DIREITOS DA CRIANA E DO ADOLESCENTE

1.1 Os Direitos da Criana e do Adolescente no Brasil

Como herana da colonizao portuguesa, o poder patriarcal regia as relaes sociais durante o perodo de Brasil-Colnia, sendo o pai a autoridade mxima de uma famlia. Era inerente s Ordenaes provenientes de Portugal o reconhecimento desse poder que, na tentativa de defender seu exerccio, reconhecia o castigo como forma de educar o filho e admitia a excluso de ilicitude nos casos de falecimento ou leso enquanto suas conseqncias. De tal sorte que a violncia era meio comum de educao e a agresso sade e vida de crianas e adolescentes era protegida pelas leis do Imprio portugus, pois os membros de uma mesma famlia eram tidos como patrimnio do pai, pois era ele quem tinha o poder de gerar (GARCEZ, 2008, pag. 21-22).No aspecto penal, a criana, a partir dos sete anos de idade, poderia ser responsabilizada penalmente. Acreditava-se que a pessoa ao atingir essa idade era capaz de discernir todos os seus atos e ser responsvel por eles penal e civilmente. Era possvel identificar diferena apenas na gravidade da pena. Quando se tratava de indivduos com idade inferior a dezessete anos, no se poderia aplicar pena de morte e era possvel conceder reduo da pena e, para os jovens entre dezessete e vinte e um anos de idade, era possvel tanto reduzir a pena como aplicar a pena de morte; isso variava de acordo com as circunstncias agravantes ou atenuantes da condenao (SARAIVA, 2009, pag. 34).

Em contrapartida, havia uma preocupao, por parte da Igreja, com crianas rejeitadas ou filhas de ndios e negros que sofriam violncia devido aos seus costumes. Os jesutas, contando com a colaborao do Imprio, fundou casas de recolhimento que acolhia e, de certa forma, defendia esse pblico infanto-juvenil, tambm o instruindo e o catequizando conforme os princpios da religio catlica (AMIN, 2007, pg.04).No sculo XVIII, como resultado da estigmatizao de filhos ilegtimos bem como da crueldade do regime de escravido, tornou-se prtica comum o abandono de bebs nas ruas, nas portas de igrejas, conventos e residncias. Na tentativa de resolver o problema, o Estado trouxe a idia europia de acolhimento dessas crianas: as Rodas dos Expostos existentes nas Santas Casas de Misericrdia. Com a abolio da escravatura em 1888, houve uma intensa migrao da zona rural para a rea urbana, principalmente nas regies do Estado do Rio de Janeiro e de So Paulo. Com o aumento da populao e a ausncia de estrutura nas cidades para comportar os recm-chegados, desequilbrios ocorreram no campo da sade, educao e moradia, exigindo medidas urgentes para contornar a situao. Assim, foram fundadas entidades assistenciais que adotaram ou prticas de caridade ou medidas higienistas (AMIN, 2007, pg.05), tendo como pblico-alvo, inclusive, crianas nessas condies.

Em 1906, diante do agravamento da condio de crianas abandonadas em situao de rua, foram inauguradas casas de recolhimento com as finalidades de prevenir a delinqncia, educando crianas e adolescentes em situao de abandono e, tambm, corrigindo as condutas daqueles de mesma faixa etria que tenham praticado algum ilcito. necessria a participao do Estado, com alguma das pessoas jurdicas de direito pblico interno, responsabilizando o agente poltico pelo bem-estar desses infortunados da sociedade (GARCEZ, 2008, pag.32).Aps o Primeiro Congresso Internacional de Tribunais de Menores, realizado em Paris, Frana, no ano de 1911, repercutiu na repblica brasileira um processo contnuo de alteraes no que diz respeito tutela dos direitos infanto-juvenis, pois trouxe discusses sobre a possibilidade de uma jurisdio para menores, as funes das instituies de caridade e sobre a liberdade vigiada (MENDEZ, COSTA, 1994).

Em 1927, pelo Decreto n17.943-A, foi institudo o primeiro Cdigo de Menores do Brasil, o chamado Cdigo Mello de Mattos, nome do juiz de menores da cidade do Rio de Janeiro que contribuiu em sua redao. Tal lei dava amplos poderes aos juzes para decidir o destino de crianas e adolescentes em situao de hipossuficincia econmica ou autores de ilcito penal. Construa-se a figura de uma autoridade centralizadora, controladora e protecionista sobre a infncia pobre, potencialmente perigosa (AMIN, 2007, pg.06).

Com a implantao do Estado social brasileiro, muitas reivindicaes do setor social defensor dos direitos humanos comearam a ser atendidas. A Constituio Federal de 1937 retrata tal luta ao trazer em seu texto a possibilidade de lei infraconstitucional prescrever proteo infncia e juventude. Com essa abertura, foi criado em 1941, o Servio de Assistncia ao Menor SAM, que atendia os menores delinqentes e carentes. Esse sistema de atendimento baseava-se em internatos (reformatrios e casas de correo) para adolescentes autores de infrao penal e de patronatos agrcolas e escolas de aprendizagem de ofcios urbanos para os menores carentes e abandonados (MENDEZ, COSTA, 1994).

Outras entidades federais de carter assistencial surgiram aps a instituio do SAM, ligadas figura da primeira-dama do pas. Dentre elas esto Fundao Darcy Vargas, hospitais materno-infantil em diversas regies brasileiras; Casa do Pequeno Jornaleiro, trabalho informal a meninos provenientes de famlias carentes; Casa do Pequeno Lavrador, servio direcionado a filhos de camponeses; Casas da Meninas, voltado para o pblico feminino infanto-juvenil.

Instaurado o regime militar em 1964, o SAM extinto e criada a Fundao Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e, no mbito estadual, as Fundaes Estaduais do Bem-Estar do Menor, ditas Febens, geridas de forma centralizada e verticalizada. Tais entidades serviram apenas como instrumento de controle poltico traado de acordo com o princpio da preservao da segurana nacional.

Aps a decadncia do regime militar, consolidou-se a doutrina da Situao Irregular, com a publicao do novo Cdigo de Menores, em outubro de 1979. O binmio carncia-delinquncia atingiu seu auge, permitindo ao juiz de menores arbitrariamente decidir pela segregao de crianas e adolescentes carentes ou em conflito com a lei. Esse pblico era tratado como objeto de proteo em que a privao da liberdade e da convivncia com a famlia hipossuficiente economicamente era a melhor alternativa. Os vnculos familiares eram substitudos, de forma autoritria, pelos vnculos institucionais.

Acrescenta Olimpio de S Sotto Maior:

Apartadas ento da realidade social e baseadas unicamente nos ditames do Cdigo de Menores, as medidas judiciais se perfazem mediante meros processos lgico-dedutivos de subsuno do fato norma, decidindo-se por destituies do ptrio poder ou por internaes em unidades de reeducao sem maiores indagaes de outra ordem que no tcnico-jurdicas, j que se cr (ou finge-se crer) no fato de ter havido uma opo pela vida marginal ou delinquencial, pois o pressuposto o de que a todos os indivduos so dadas iguais oportunidades de progresso social. (SOTTO MAIOR, apud MACHADO, 2003, pag. 49).

Tal situao permaneceu at a Constituinte de 1988, quando a mobilizao de diferentes atores sociais, paralelamente a avanos internacionais sobre a temtica, mudou o curso da histria. O Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua procurou, ainda em 1984, discutir e sensibilizar a sociedade sobre o tratamento dado a crianas e adolescentes. Nesse ano, foi realizado o primeiro Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua, que fez vrios segmentos da sociedade voltar os olhos para o tema e tambm agir em defesa dos direitos individuais e sociais do pblico em questo. De tal forma que a Comisso Nacional Criana e Constituinte conseguiu reunir 1.200.000 (um milho e duzentos mil) assinaturas a favor da incluso dos direitos infanto-juvenis na nova Carta Magna. O resultado foi a aprovao dos textos dos artigos 227 e 228 da Constituio Federal de 1988, colocando o Brasil no seleto rol das naes mais avanadas na defesa dos direitos infanto-juvenis (AMIN, 2007, pg.08-09).

Foi adotada, com status constitucional, a Doutrina da Proteo Integral. Para regulamentar esse novo sistema, reuniram-se movimentos sociais, agentes do campo poltico (polticas pblicas) e jurdico, resultando em 1990 o Estatuto da Criana e do Adolescente (ECA). De acordo com Amin,

Coube ao movimento social reivindicar e pressionar. Aos agentes jurdicos (estudiosos e aplicadores) traduzirem tecnicamente os anseios da sociedade civil desejosa de mudana do arcabouo jurdico-institucional das dcadas anteriores. Embalados pelo ambiente extremamente propcio de retomada democrtica ps-ditadura militar e promulgao de uma nova ordem constitucional, coube ao poder pblico, atravs das Casas legislativas efetivar os anseios sociais e a determinao constitucional.(AMIN, 2007, pg.09)

Mais que uma lei, o ECA tornou-se um microssistema que comporta princpios e orientaes nas esferas administrativa, poltica e jurdica, abrangendo as garantias dos direitos individuais e sociais de crianas e adolescentes, o regime infracional queles em conflito com a lei e a relao de condutas delitivas que tenham por vtima o pblico infanto-juvenil. Alm disso, prope uma mudana de paradigma, a comear por visualizar a criana e o adolescente como sujeitos de direitos em condio peculiar de pessoa em desenvolvimento que merecem ateno especial por estarem em formao fsica, psquica e emocional.

1.2 O Tratamento Dado Criana e ao Adolescente a Partir da Constituio Federal de 1988: a Doutrina da Proteo Integral

1.2.1 O processo internacional de mudana paradigmtica e seus reflexos no Brasil

O Estatuto da Criana e do Adolescente representou, no Brasil, o marco na mudana do tratamento dado criana e ao adolescente. Tal mudana fruto, basicamente, de dois elementos: recepo da doutrina inaugurada pela Conveno das Naes Unidas de Direitos da Criana e o movimento de participao popular que serviu como catalisador conceitual no ordenamento jurdico brasileiro.

A Conveno das Naes Unidas de Direitos da Criana foi adotada pela Assembleia-Geral das Naes Unidas em 20 de novembro de 1989 e dispe sobre os direitos humanos de crianas e adolescentes com o escopo de incentivar os pases membros da Organizao das Naes Unidas (ONU) a implementarem polticas de proteo integral aos direitos infanto-juvenis, promovendo a assistncia necessria para o bom desenvolvimento desse pblico e sensibilizando a sociedade para colaborarem no mesmo sentido.

Tal documento tem sua origem ainda na Declarao de Genebra sobre os Direitos da Criana, formulada no ano de 1924, em que se relacionavam aes destinadas proteo da criana, considerada internacionalmente como as pessoas com idade no superior a dezoito anos. Originalmente:

By the present Declaration of the Rights of the Child, commonly known as 'Declaration of Geneva,' men and women of all nations, recognizing that mankind owes to the Child the best that it has to give, declare and accept it as their duty that, beyond and above all considerations of race, nationality or creed (1) The child must be given the means requisite for its normal development, both materially and spiritually (2) The child that is hungry must be fed; the child that is sick must be nursed; the child that is backward must be helped; the delinquent child must be reclaimed; and the orphan and the waif must be sheltered and succored; (3) The child must be the first to receive relief in times of distress; (4) The child must be put in a position to earn a livelihood, and must be protected against every form of exploitation; 5) The child must be brought up in the consciousness that its talents must be devoted to the service of fellow men1(UNICEF, 2010)

Em razo desse primeiro acordo internacional e de aes populares, com destaque para a atuao de movimentos sociais e organismos no-governamentais espalhados por diversos pases, concebeu-se, aps a confeco da Declarao Universal dos Direitos Humanos de 1948, a Declarao sobre os Direitos da Criana, em 20 de novembro de 1959, reafirmando os direitos individuais no mbito da infncia e adolescncia e frisando a especialidade de determinados direitos considerando o estgio de desenvolvimento dos mesmos. Frisava-se garantir a proteo e os cuidados especiais ao pblico infanto-juvenil, inclusive proteo jurdica apropriada, antes e depois do nascimento, em virtude de sua condio de hipossuficincia e de sua imaturidade fsica e mental, considerando que em vrios pases do globo havia crianas vivendo em condies extremamente adversas e necessitando de ateno especial.

Em ritmo crescente, as aes em prol do pblico infanto-juvenil foram se ampliando a ponto de, em 20 de novembro de 1989, a ONU ter reformulado e ampliado a Declarao de 1924, inaugurando a doutrina da proteo integral como meio de garantir os direitos humanos de crianas e adolescentes, levando em considerao serem eles sujeitos de direitos em peculiar condio de pessoa em desenvolvimento fsico, psquico, moral, emocional e intelectual.

Doutrina recepcionada pelo Brasil e adotada em sua totalidade pelo Decreto n 99.710 de 02 de novembro de 1990, depois de ser ratificada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto n 28 de 14 de setembro de 1990. Emilio Garcia Mendez considera que A Conveno Internacional dos Direitos da Criana (CIDC) provoca um deslocamento substancial desse paradigma de proteo das pessoas ao paradigma de proteo dos direitos das pessoas , transformando as necessidades de crianas e adolescentes em direitos humanos internacionalmente reconhecidos.

Alm desses, outros importantes documentos internacionais, de carter mais especfico, tambm compem o acervo jurdico-poltico de garantia dos direitos da criana e do adolescente. So eles: Regras Mnimas das Naes Unidas para a Administrao da Justia Juvenil, tambm chamada de Regras de Beijing; Regras Mnimas das Naes Unidas para a Proteo dos Jovens Privados de Liberdade; Diretrizes das Naes Unidas para a Preveno da Delinquncia Juvenil, denominada de Diretrizes de Riad. Tais regras, voltadas notadamente para a proteo da criana e do adolescente em conflito com a lei, tambm compuseram as referncias para a confeco do Estatuto da Criana e do Adolescente, considerado um avanado sistema de garantias.

1.2.2 A doutrina da proteo integral e seus princpios

A doutrina da proteo integral, inserida no ordenamento ptrio atravs dos artigos 227, 228 e 229 da Constituio Federal, diferentemente da doutrina da situao irregular presente no Cdigo de Menores de 1979, percebe a criana e o adolescente como sujeito de direitos e estabelece princpios orientadores de um tratamento especial, levando em conta a sua fragilidade, sem, contudo, deixar de perceber suas potencialidades. Essa parcela da sociedade carece dessa especialidade tendo em vista a sua desigualdade inerente se comparada s demais pessoas com idade superior a dezoito anos e, portanto, j considerados integralmente formados enquanto seres humanos. Da conceber na prpria Carta Magna um tratamento de maior alcance como meio de balancear a desigualdade de fato e atingir a igualdade de direito no meramente formal, mas material.

O tratamento constitucional diferenciado, destacando os direitos individuais desse pblico, acentua a mudana paradigmtica e indica uma nova postura, no s dos organismos competentes pelas polticas pblicas como da sociedade, quando se verifica sua corresponsabilidade ao determinar o dever de proteo juntamente com o Estado e a famlia. Acrescenta Martha de Toledo Machado:

Sob a tica desta funo organizadora e reguladora esttica das relaes sociais que o ordenamento cumpre, esta vulnerabilidade peculiar que a noo distintiva fundamental e fundante para o estabelecimento de um sistema especial de proteo, porque: a) distingue crianas e adolescentes de outros grupos de seres humanos simplesmente diversos da noo do homo medio; b) autoriza e opera a aparente quebra do princpio da igualdade porque so portadores de uma desigualdade inerente, intrnseca, o ordenamento confere-lhes tratamento mais abrangente como forma de equilibrar a desigualdade de fato e atingir a igualdade jurdica material e no meramente formal mediante processo de especificao do genrico, no qual se realiza o respeito mxima suum cuique tribuere, como referiu Bobbio. (MACHADO, 2003, pg,123)

Tal diretriz mantm-se no ECA, delineando seus princpios mais relevantes, quais sejam: o superior interesse da criana, a prioridade absoluta e a convivncia familiar.

Para tanto, o best interest, princpio do superior (melhor) interesse, foi elevado a nvel constitucional. Trata-se de princpio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando a primazia das necessidades da criana e do adolescente como critrio de interpretao da lei, deslinde de conflitos ou mesmo para elaborao de futuras regras (AMIN, 2007, pg. 28). Ele aplicado como norteador de decises jurdicas, polticas, administrativas e no mbito particular, favorecendo a situao daquele que ainda no tem totais condies de discernir impasses como os acima citados.

Tal discernimento, que se adquire medida que se aprimora a construo da personalidade do indivduo, reconhecido pelo Direito Civil como bem que materializa sua prpria existncia, possibilitando-o sobreviver, se adaptar ao ambiente, aferir, adquirir e ordenar outros bens (TELLES JNIOR, in MACHADO, 2003, pg. 109). a personalidade que possibilita o desenvolvimento das potencialidades do ser humano e o permite se reconhecer e ser reconhecido como tal. Considerando que esse elemento inerente ao ser humano, aliado aos demais aspectos do crescimento infanto-juvenil, est em fase de construo, os direitos fundamentais da criana e do adolescente precisam ser ressaltados dentre os direitos dos demais (adultos).

O princpio da prioridade absoluta vem garantir preferncia a esse grupo da sociedade em todos os mbitos, seja ele familiar, social, administrativo, judicial ou extrajudicial. Orienta a discricionariedade do poder pblico em dar primazia formulao e execuo de polticas pblicas voltadas para o interesse infanto-juvenil, preferindo por aquelas de carter preventivo e de longo prazo a fim de evitar medidas emergenciais caracterizadas pela superficialidade. Um exemplo disso proporcionar qualidade de vida famlia com apoio s suas necessidades essenciais, como sade, alimentao, moradia e educao para que no se torne impossvel cuidar de uma criana no seio familiar e esta tenha que ser colocada a disposio do poder pblico para adoo.

Aliado aos princpios j colacionados, a convivncia familiar outro valor inestimvel vida da criana e do adolescente. Esse princpio deve receber peculiar ateno em face dos problemas que sua inobservncia ocasiona. Isso porque a famlia, enquanto conjunto de pessoas que coabitam e vivenciam relaes de interdependncia e cuidado mtuo, encerram um vnculo afetivo fundamental na vida emocional de seus membros.

Ao contrrio do que ocorria at o sculo passado, hodiernamente, a famlia valorizada pela enorme influncia que possui no desenvolvimento humano. Como smbolo inicial de socializao, ela responsvel pela constituio da subjetividade do indivduo e de suas habilidades. Alm do desenvolvimento ntimo, a famlia contribui na percepo do social, da existncia de direitos, deveres, obrigaes e limites para o exerccio da convivncia comunitria e da cidadania.

O estabelecimento de vnculos prprio do ser humano, e a famlia, como grupo primrio, o locus para a concretizao desta experincia. A confiana que o indivduo tem de que pode estar no mundo e estar bem entre os outros lhe transmitida pela sua aceitao dentro do grupo familiar. O sentir-se pertencente a um grupo, no caso, famlia, possibilita-lhe no decorrer de sua vida pertencer a outros grupos (GOMES e PEREIRA, 2005, site)

O ECA distingue trs modalidades de famlia: a natural, a extensa e a famlia substituta. Conforme o artigo 25, entende-se por famlia natural a comunidade formada pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes. Presume-se um vnculo natural em que os filhos so descendentes por consanguinidade. Reconhece-se a famlia monoparental como instituio da sociedade e concede a ela a mesma legitimidade dada quela j reconhecida pelo antigo Cdigo Civil de 1916, composta por pai, me e filhos.

A famlia extensa formada por parentes com os quais a criana ou adolescente convive e mantm vnculos de afinidade e afetividade. So os avs, tios, primos que, em nveis diferentes, compem o meio social prximo daquele sujeito em desenvolvimento. Pela rearticulao das relaes sociais, a importncia dessa classificao de famlia ir variar de indivduo para indivduo, podendo ocorrer, por exemplo, de a av ser mais presente que a me ou o tio ter mais afinidade com a criana do que o pai.

Se esgotadas todas as possibilidades de se manter a unio da famlia originria ou inexistindo, na convivncia, o respeito aos direitos da criana e do adolescente, a terceira alternativa, a famlia substituta. So atuaes gradativas, em carter excepcional, que tem por meios a guarda, a tutela e a adoo.

A guarda obriga a prestao de assistncia material, moral e educacional criana ou adolescente (Artigo 33, ECA). Tem por fim solucionar casos de perda do poder familiar, situao de abandono ou regularizar a convivncia de fato. Apesar de no impedir a visita dos pais e sua assistncia, confere a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, como meio de defender o bem-estar de quem est sob sua responsabilidade. Isso inclui os prprios genitores, porque o guardio tem a legitimidade para postular a busca e apreenso da pessoa sob os seus cuidados contra qualquer um que ilegalmente a detenha, visto que a ele foi transferido o encargo de cuidado e proteo.

Como modalidade de colocao em famlia substituta, a guarda comumente deferida como precedente da tutela ou da adoo, pois permite um convvio prvio antes de iniciar seus procedimentos. Tal ato garante um estgio de experincia que em momento posterior ser avaliado pela equipe multiprofissional do Juizado da Infncia e Juventude competente, garantindo o melhor interesse da criana.

A tutela, por sua vez, implica o zelo pela educao e prestao de alimentos, adimplemento dos demais deveres que cabem aos pais, representao do tutelado nos atos da vida civil e administrao dos bens do mesmo, no proveito deste, com zelo e boa-f (Artigo 1.740 e 1.747, Cdigo Civil). O artigo 36 do ECA estabelecia como condies para a concesso da tutela a prvia decretao da suspenso ou da perda do poder familiar e implicava necessariamente o dever de guarda. Contudo, o Cdigo Civil de 2002, nos artigos 1.728 a 1.766, alterou a matria e excluiu a simples suspenso, limitando aos casos de falecimento ou ausncia dos pais e de destituio do poder familiar. A tutela, portanto, perdurar at a criana ou o adolescente completar dezoito anos, ou seja, atingir a maioridade e a capacidade civil, extinguindo o relacionamento formal entre tutor e tutelado aps ter completado tal idade. Maciel assinala que

o menor de 18 anos tutelado, em decorrncia de os pais terem sido destitudos do poder familiar, aps atingir a maioridade civil ou emancipar-se, manter os vnculos de parentesco com seus pais destitudos, uma vez que no registro civil de nascimento constar apenas a averbao da perda do poder familiar. Esse fato poder redundar em um retorno ao seio familiar (se ntegro o liame afetivo) ou um afastamento da parentela (se desaparecido o afeto), tudo dependendo da situao que ocasionou a medida de tutela e o trabalho desenvolvido pela equipe tcnica no acompanhamento da mesma. (MACIEL, 2007, pag.154).

Diferentemente da tutela, tem-se o instituto que atribui a condio de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vnculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais (Artigo 41, ECA). medida em carter de ltimo recurso, uma vez esgotadas todas as possibilidades de manuteno da criana ou do adolescente na famlia natural ou extensa. Seu processo complexo, exigindo o cumprimento de todos os requisitos impostos legalmente.

2. DA ADOO

2.1 O Perfilhamento da Adoo ao Longo do Tempo

O instituto da adoo tem origens remotas. Entre os documentos registrados, tm-se no Cdigo de Hamurabi (1728-1686 a.C.) da antiga Babilnia os primeiros sinais de organizao social de tal instituto. Traz o documento uma epgrafe especfica intitulada Adoo. Ofensa aos pais. Substituio de criana que determina situaes como a reclamao dos pais biolgicos aps a adoo, a devoluo do filho adotivo casa de origem, as obrigaes dos pais adotivos incluindo o direito sucesso, os deveres do filho adotivo para com seus pais e as respectivas punies em caso de desobedincia como cortar a lngua, arrancar os olhos ou decepar as mos.

O Cdigo de Manu (1.500 a.C.), a legislao mais antiga da ndia, tambm traz em suas regras a indicao da adoo como forma de perpetuar a tradio das cerimnias fnebres em famlias que os casais no puderam ter filhos. A religiosidade era o pano de fundo do ato que poderia apenas ser exercido entre pessoas do sexo masculino, de mesma casta.

Em Atenas, na Grcia Antiga, houve a regularizao dos primeiros requisitos, formalidades e conseqncias de tal instituto. O ato era solene, exigindo a interveno do magistrado, salvo quando praticado por meio de testamento (CHAVES, 1995, pag.49). Tinha por objetivo maior preservar o culto domstico, prtica religiosa que, para os atenienses, garantia a perpetuidade da famlia.

Em Roma, antes de Cristo, o instituto tambm tinha a mesma finalidade e era dividido em duas espcies, a ad-rogao e a adoo propriamente dita. Esta era relativa submisso de uma criana ao ptrio poder. Aquela se dava em outros moldes, em que um cidado romano, com idade superior a sessenta anos, trazia um pater familias com todos os seus descendentes e bens para a sua famlia, possibilitando a transio de classes sob fora de lei. Com o advento do Cristianismo, determinados valores se modificaram entre os romanos e duas leis deram nova face adoo, a Lex Atilia e a Lex Ploetoria (sc. II d. C.), trazendo os primeiros sinais de proteo criana referentes sua tutela e aos seus interesses patrimoniais.

justamente nesse perodo, entre o segundo e o terceiro sculo da era crist, que a doutrina de Direito do Menor admite um incio de proteo infncia desamparada, por meio de leis especficas, de disposies jurdicas espordicas (GARCEZ, 2008, pag.24).

Entre os francos, um dos povos brbaros germnicos, tal instituto se relacionava intimamente com os direitos hereditrios. Para formaliz-lo, eles se utilizavam de uma complexa cerimnia com a presena da assemblia do povo. Era ato exclusivo entre homens em que o pai no poderia ter filhos e o adotivo tornava-se seu legtimo herdeiro. Existia tambm a chamada afiliao que ocorria com o casamento entre vivos com filhos ou com mais de um casamento entre mesmas famlias.

Durante o perodo da Idade Mdia pouco se tem sobre adoo. Esta caiu em desuso, por ser contrria aos direitos eventuais dos senhores sobre os feudos. O modo de produo e a estrutura familiar da poca comportavam o instituto apenas entre pessoas que no pudessem ter filhos e tivessem o interesse de desenvolver o sentimento cristo da paternidade/maternidade ou da proteo e da caridade (CHAVES, 1995, pag.51).

Na Idade Moderna, com o rigoroso controle da Igreja, que apenas admitia relaes sexuais aps o casamento e com o objetivo nico de procriao, a adoo permanece um instituto esquecido e at mesmo estigmatizado por ser considerado como forma de inserir na famlia filho bastardo. Assim, multiplicou-se o nmero de crianas expostas, levando as prprias instituies religiosas a receberem e se responsabilizarem pelos abandonados.

Foi aps a Revoluo Francesa, com a proclamao dos direitos individuais do homem, que a adoo passou aos poucos a ser vista com bons olhos. E Napoleo Bonaparte tem grande contribuio nesse sentido. Apesar de ter sido impulsionado por motivos de cunho particular e poltico, o citado imperador inseriu no Cdigo Napolenico de 1804 o instituto da adoo para que a imperatriz Josefina, sua esposa, estril, pudesse adotar seu sobrinho Eugene Brauharnais, podendo, assim, ser herdeiro do trono e dos bens patrimoniais da famlia (SIQUEIRA, 1992. pag. 19).

Aos poucos, o instituto foi criando forma entre as legislaes dos pases do ocidente chegando ao Brasil, inicialmente, por meio das normas da Coroa Portuguesa.

2.2 O Processo de Adoo no Brasil

A adoo foi inserida no Brasil por meio do direito portugus, ainda durante o perodo de colonizao. Assim, ordenaes, leis, regimentos, alvars e quaisquer outros moldes de regras que eram expedidos pelo rei de Portugal tambm atingiam a populao brasileira, se adaptando s necessidades e circunstncias.

Antes da Proclamao da Repblica de 1889, o Desembargo do Pao concentrava a atribuio de confirmar as adoes, fazendo desse ato uma graa concedida para poucos em condies extraordinrias. Tal concentrao de poder foi dissipada com a extino desse rgo do Imprio, sendo distribuda entre os juzes de primeira instncia que faziam as confirmaes aps audincia dos interessados e colhida as devidas informaes. Por esse meio legitimava-se as filiaes provenientes de sacrilgio, incesto e adultrio.

Aos poucos, vrios textos legais foram promulgados, compondo uma legislao esparsa com algumas tentativas de consolidao. Chaves explica que ainda no sculo XIX houve as primeiras preocupaes com a tutela do bem-estar do pblico infanto-juvenil ao citar projetos de leis da poca em que se previa o estmulo do Poder Pblico atravs de assistncia jurdica, incentivos fiscais e subsdios ao acolhimento, sob forma de guarda, de criana ou adolescente rfo ou abandonado.

Na discusso antecessora ao Cdigo Civil de 1916, as proposies indicavam dois caminhos opostos: a regulamentao do instituto com seus requisitos e efeitos ou a sua supresso por ser considerado por alguns legisladores instituto obsoleto que jamais deveria ter composto nossos costumes. O que se procedeu foi a permanncia da adoo no ordenamento jurdico pelos artigos 183, III e V; 332; 336; 368 a 379; 392, IV; 1.605; 1.609 e 1618 do CC/1916.

Em 1957, a Lei n 3.133 modificou parcialmente a Carta Civilista nos seguintes aspectos: reduo da idade mnima do adotante de 50 para 30 anos; possibilidade de j ter prole legtima ou legitimada; perodo de 05 anos entre a data do casamento e a adoo; reduo da diferena de idade entre adotando e adotante de 18 para 16 anos; exigncia do consentimento do responsvel legal pela criana; o efeito da sucesso hereditria no se exerce pelo adotando no caso de famlias que tenham filhos consangneos; alterao do nome do adotado. Chaves narra que essas inovaes foram objeto de inmeras crticas, denunciando a falta de compreenso do Congresso Nacional para legislar a respeito. Todavia, elas passaram a compor um cenrio normativo consideravelmente complexo e tambm restrito ao adotado na medida em que mantiveram situaes potencialmente discriminadoras.

Posteriormente, adveio o Cdigo de Menores (Lei n 6.697/79) que inovou, trazendo a adoo simples direcionada aos ditos menores em situao irregular. Definida por Chaves como ato solene pelo qual, obedecidos os requisitos da Lei, algum estabelecia, com o menor em situao irregular, um vnculo fictcio de paternidade e filiao legtimas, de efeitos limitados e sem total desligamento do adotando da sua famlia de sangue, objetivava contornar a situao vivida naquele perodo em que o nmero de crianas e adolescentes em situao de rua crescia demasiadamente.

Com novas alteraes legislativas a partir de 1965, o ordenamento jurdico brasileiro passou a ter trs modalidades de adoo: por escritura pblica, simples e plena. Regulada pelo Cdigo Civil, a adoo por escritura pblica no integrava o adotando na famlia do adotante por estabelecer determinadas restries, como a relao de parentesco limitada entre o adotante e o adotado, salvo impedimentos matrimoniais. A adoo simples tinha por pblico os menores em situao irregular e era regida tambm pelo Cdigo Civil, com as especificidades de ser necessrio o estgio de convivncia prvio e a indicao dos apelidos (sobrenome) para ser modificado em seu registro civil. Por ltimo, a espcie plena aquela que se assemelha ao proposto pelo ECA atualmente, porm com a ressalva, dentre outras, de ser possvel adotar apenas crianas com idade no superior a sete anos., como melhor demonstra Chaves ao defini-la:

[...] a outorga judicial, de efeitos constitutivos, e com as condies de segredo, irrevogabilidade e desligamento da famlia de sangue, salvo os impedimentos matrimoniais, obedecidos os requisitos e formalidades da lei, a um ou a mais menores, em geral, at sete anos de idade, que se encontrem privados de condies essenciais sua subsistncia, sade e instruo obrigatria, ainda que eventualmente, em razo de falta, ao ou omisso dos pais ou responsvel, ou manifesta impossibilidade dos mesmos para prov-las, do estado de filhos legtimos de um casal, excepcionalmente de pessoa viva ou cnjuges separados judicialmente (CHAVES, 1995,pag.72).

A aludida situao foi mantida at a promulgao da Constituio Cidad que no recepcionou determinados dispositivos da legislao infraconstitucional por serem incompatveis.

2.3 O Instituto da Adoo e suas Espcies

Vocbulo proveniente do latim, ad = para, optio = opo, a adoo conceituada sob diferentes aspectos por expressivos juristas ao longo do processo histrico jurdico brasileiro. Para Clvis Bevilacqua, adoo " o ato civil pelo qual algum aceita um estranho na qualidade de filho". Segundo Pontes de Miranda, a "adoo o ato solene pelo qual se cria entre o adotante e o adotado relao fictcia de paternidade e filiao". Na concepo de Silvio Rodrigues, o ato do adotante, pelo qual traz ele, para a sua famlia e na condio de filho, pessoa que lhe estranha. Antnio Chaves entende como ato sinalagmtico e solene, pelo qual, obedecidos os requisitos da Lei, algum estabelece, geralmente um estranho, um vnculo fictcio de paternidade e filiao legtimas de efeitos limitados e sem total desligamento do adotando da sua famlia de sangue. Conforme lio de Orlando Gomes, entende-se por adoo o ato jurdico pelo qual se estabelece, independentemente do fato natural da procriao, o vnculo de filiao.

Trata-se de fico jurdica, que consagra a relao de paternidade e filiao entre aqueles que no a tem por consanguinidade, oportunizando o exerccio do direito convivncia familiar ao adotando. a busca, ao mesmo tempo, de uma famlia para uma criana ou para um adolescente e a oportunidade do exerccio da paternidade e/ou maternidade. Essa, que no se resume ao sustento e educao, construda a cada dia como funo social, fundada, sobretudo, no afeto e no cuidado.

Para Tnia da Silva Pereira, a filiao jurdica de natureza cultural e no, necessariamente, natural, pois a verdadeira paternidade precedida de uma escolha, de um desejo de ser pai ou me. Est, portanto, a adoo presente em qualquer relao de pais e filhos por estar a paternidade/maternidade mais ligada funo do que a fatores biolgicos.

Legalmente, a adoo medida excepcional e irrevogvel, que atribui a condio de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessrios, desligando-o de qualquer vnculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. Recorre-se a ela uma vez esgotadas todas as possibilidades de manuteno da criana ou do adolescente na famlia natural ou extensa (Artigos 39 e 41, do ECA).

Seu processo complexo, exigindo o cumprimento de todos os requisitos impostos legalmente, quais sejam: idade mnima do adotante, estabilidade da famlia, diferena de 16 anos entre adotante e adotando, consentimento dos pais biolgicos, concordncia do adotando, estgio mnimo de convivncia entre adotante e adotando, reais vantagens e motivos legtimos. Esses ltimos visam assegurar o interesse da criana, pois se constatada pela equipe multiprofissional da Vara da Infncia e da Juventude que o procedimento trar malefcios para o adotando, independente da opinio dos pretendentes, tal adoo no ser deferida. Os motivos se pautam prioritariamente no direito especial convivncia familiar que proporcione um desenvolvimento saudvel em todos os aspectos da formao da criana ou do adolescente. Desse modo, os argumentos dos adotantes sero ouvidos em segundo plano uma vez que as disposies do ECA objetivam proteger os interesses do pblico infanto-juvenil.

A constituio do vnculo de filiao, a relao de parentesco com os familiares do adotante, a irrevogabilidade do ato, a inscrio no registro civil do nome dos adotantes como pais, o exerccio do poder familiar, a obrigao alimentar e de amparo intelectual, moral e emocional e os direitos sucessrios so os efeitos provenientes da adoo que prevista na Carta Magna como equivalente a qualquer outra filiao sem qualquer designao discriminatria.

Devido complexidade da adoo bem como amplitude de seus efeitos, a legislao prev situaes de impedimento que Bordallo classifica em parcial e total. Os impedimentos parciais esto relacionados prestao de contas do tutor e do curador. Estes no podero pleitear a adoo do pupilo at que apresente a contabilidade da gesto dos bens deste. A impossibilidade de os ascendentes e irmos do adotando serem seus pais o que o autor chama de impedimento total, pois no h excees a esta proibio que se justifica por evitar situaes esdrxulas, como ser irmo de seu pai ou filho de seu irmo, com repercusso negativa, inclusive, no direito sucessrio.

Delicada a concepo da natureza jurdica da adoo. H divergncia entre os doutrinadores que se dividem, basicamente, em cinco correntes: a) ato solene, tm essa opinio Clvis Bevilacqua e Pontes de Miranda; b) ato de natureza hbrida, isto , contratual e de direito pblico, em que so filiados Planiol e Ripert; c) contrato, aderem a ela Eduardo Espnola e Gomes de Castro; d) ato complexo, no qual haver um ato negocial com interveno do Estado, so adeptos Bordallo e Tavares; e) instituio, no qual se filiam Chaves, Saravia e Wald.

No dicionrio Michaelis, instituio tem por significado um complexo integrado por ideias, padres de comportamento, relaes inter-humanas e, muitas vezes, um equipamento material, organizados em torno de um interesse socialmente reconhecido. O dicionrio Aurlio conceitua como a estrutura decorrente de necessidades sociais bsicas, com carter de relativa permanncia, e identificvel pelo valor de seus cdigos de conduta, alguns deles expressos em leis; instituto.. E instituto, por sua vez, tem por significado entidade jurdica instituda e regulamentada por um conjunto orgnico de normas de direito positivo Extrai-se, portanto, ser a instituio um complexo de normas e pensamentos formalizados e legitimados socialmente com a finalidade de satisfazer um interesse coletivo amplamente reconhecido.

A Constituio de 1988 aduz em seu artigo 227:

5 - A adoo ser assistida pelo Poder Pblico, na forma da lei, que estabelecer casos e condies de sua efetivao por parte de estrangeiros.

6 - Os filhos, havidos ou no da relao do casamento, ou por adoo, tero os mesmos direitos e qualificaes, proibidas quaisquer designaes discriminatrias relativas filiao.

Tal disposio reconhece a adoo, evidenciando seu acompanhamento pelo poder pblico e indicando sua regulamentao infraconstitucionalmente. No Estatuto da Criana e do Adolescente, para onde todo o normativo correspondente a adoo do pblico infanto-juvenil deslocou-se aps a lei 12.010/09, os artigos 39 a 52-D seguem o comando da Carta Magna e narram as condies, requisitos e efeitos da adoo, reforando os princpios pertinentes doutrina da proteo integral.

Assim, as diversificadas medidas legais e extra-legais para propiciar o convvio familiar criana e ao adolescente, a necessidade de um processo judicial com a participao do Ministrio Pblico para se deliberar sobre a concesso da adoo, a alterao do registro civil aps sentena judicial favorvel, o reconhecimento da relao de paternidade e filiao como irretratvel e irreversvel, dentre outros aspectos, so exemplos que denotam o carter pblico e social da adoo, qualificando-a, portanto, enquanto instituto.

Acrescenta Pereira:

Tendo a Constituio Federal determinado expressamente a solenidade pblica do ato e tendo a lei n 8.069/90 estabelecido princpios rgidos para a medida, vinculando a sua validade sentena judicial irrevogvel [...] a nova relao familiar que nasce da sentena constitutiva estabelece para os pais adotivos os mesmos direitos e obrigaes, semelhana da relao biolgica. Nascendo de uma deciso judicial irrefutvel sua identificao como instituto de ordem pblica. (PEREIRA, 2008, pag.425).

Assim, relaes que se procedam de forma diversa daquela estabelecida em lei no geram os efeitos jurdicos e sociais esperados e podem trazer a responsabilizao de quem se utilizou de outros instrumentos, como a chamada adoo brasileira. No reconhecida legalmente, trata-se do registro de filho alheio como prprio. ato nulo, uma vez que possui vcio intrnseco, passvel de desconstituio a qualquer tempo e de responsabilizao penal por infrao ao artigo 242 do Cdigo Penal (supresso ou alterao de direito inerente ao estado civil de recm-nascido).

Afora a adoo brasileira, proibida pelo ordenamento, o Estatuto da Criana e do Adolescente traz, segundo Bordallo, a seguinte classificao para a adoo: nacional e internacional. A primeira se subdivide em bilateral, unilateral, pstuma e, at o advento da lei 12.010/09, intuitu personae. A adoo internacional subdividida em bilateral e unilateral.

Por respeito ao princpio do superior interesse da criana, a adoo internacional a ltima opo para colocao em famlia substituta. Isso porque, aps cruzar a fronteira, a proteo aos direitos infanto-juvenis fica limitada pela soberania do pas de destino que possui cultura e legislao diversa. Assim, os cuidados ao iniciar esse procedimento so redobrados.

Nesse sentido, diversos pases se reuniram para estipular regras mnimas sobre a adoo internacional, entendida como aquela na qual a pessoa ou casal postulante residente ou domiciliado fora do Brasil, resultando na Conveno de Haia, de 29 de maio de 1993, Relativa Proteo das Crianas e Cooperao em Matria de Adoo Internacional. Tal documento foi aprovado pelo Decreto Legislativo 1, de 14 de janeiro de 1999, e promulgado pelo Decreto 3.087, de 21 de junho de 1999 (Artigo 51 do ECA).

Devido ao recorte deste trabalho, iremos nos ater apenas adoo nacional, aquela em que o(s) adotante(s) (so) residente(s) ou domiciliado(s) no Brasil. Sua classificao atual, como acima exposto, se divide em: bilateral, unilateral, pstuma.

2.3.1 Adoo bilateral

Tambm chamada de adoo conjunta, ela possibilita que a criana ou o adolescente sejam adotados por duas pessoas casadas civilmente ou que mantenham unio estvel. Esta, reconhecida constitucionalmente, deve ser caracterizada pela estabilidade, pela notoriedade e pela fidelidade, apresentando-se comunidade como uma unio dentro dos parmetros normais de uma sociedade familiar (LIBERATI, 2010, pag. 54) e sem qualquer distino referente opo sexual do casal. Nesse sentido, a recente posio do Supremo Tribunal Federal nas sbias palavras do Ministro Ayres Britto:

Como no se pode pr-excluir da adoo ativa pessoas de qualquer preferncia sexual, sozinhas ou em regime de emparceiramento.[...] Por ltimo, anoto que a Constituio Federal remete lei a incumbncia de dispor sobre a assistncia do Poder Pblico adoo, inclusive pelo estabelecimento de casos e condies da sua (dela, adoo) efetivao por parte de estrangeiros (5 do art. 227); E tambm nessa parte do seu estoque normativo no abre distino entre adotante homo ou heteroafetivo. E como possibilita a adoo por uma s pessoa adulta, tambm sem distinguir entre o adotante solteiro e o adotante casado, ou ento em regime de unio estvel, penso aplicar-se ao tema o mesmo raciocnio de proibio do preconceito e da regra do inciso II do art. 5 da CF, combinadamente com o inciso IV do art. 3 e o 1 do art. 5 da Constituio. Mas bvio que o mencionado regime legal h de observar, entre outras medidas de defesa e proteo do adotando, todo o contedo do art. 227, cabea, da nossa Lei Fundamental.

Assim, o reconhecimento da unio de casal homoafetivo se estende possibilidade de se adotar bilateralmente, sem qualquer impedimento de carter discriminatrio, o que no os isenta de avaliao tcnica sobre as condies familiares por eles ofertadas.

Da mesma forma, podem adotar conjuntamente os divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros, mas devem acordar sobre o regime de visitas e a guarda. Outro fator relevante para a relao de paternidade e filiao o estgio de convivncia entre esses ex-casais e a criana ou o adolescente, que dever ter sido iniciado na constncia do perodo de convivncia com expressa existncia de vnculo de afetividade e afinidade com aquele no detentor da guarda (art. 42, ECA). Excepcional cuidado tem por escopo a preservao da harmonia na nova famlia em que o adotado se inserir, pois a estabilidade familiar requisito para o deferimento do pedido de adoo.

2.3.2 Adoo unilateral

O artigo 41 do ECA em seu 1 contempla a adoo unilateral que consiste no ato de um dos cnjuges adotar o filho do outro, ou seja, seu enteado. Porm, isso deve ocorrer apenas nos casos em que prepondere os interesses da criana, pois h relaes familiares em que o padrasto ou a madrasta visto como usurpador pelo filho, no sendo saudvel para as relaes familiares a escolha pela adoo.

Maria Berenice Dias, citada por Farias e Rosenvald, vislumbra trs possibilidades para a adoo unilateral: i) quando o filho foi reconhecido apenas por um dos pais, competindo a ele autorizar a adoo unilateral pelo seu parceiro, no futuro; ii) quando reconhecido por ambos os genitores, h concordncia integral, decaindo um deles do poder familiar; iii) na hiptese de falecimento do pai biolgico, podendo o rfo ser adotado pelo cnjuge ou companheiro do genitor sobrevivente.

Nos casos em que necessria a destituio do poder familiar, a condio socioeconmica no deve ser fator relevante a ser sopesado. Pelo contrrio, fundamentos baseados exclusivamente na hipossuficincia do (a) genitor (a) so repelidos, pois a assistncia material no o nico meio de cuidado que pode ser oferecido por quem institudo do poder familiar e utiliz-la singularmente ferir os direitos individuais das duas partes envolvidas.

Na hiptese de falecimento de um dos genitores importa averiguar a finalidade da adoo, pois o estado familiar do filho no pode ser utilizado para fins escusos como a obteno de um futuro direito sucessrio.

2.3.3 Adoo pstuma

A adoo pstuma, prevista no artigo 42, 6 do ECA, o deferimento do pedido de adoo realizado pela pessoa que no curso do processo vem a falecer. A sentena favorvel s concedida quando se tem por inequvoca a manifestao de vontade do adotante. Para tanto, importante que a ao tenha sido proposta antes da morte do autor, para que tal iniciativa, de per si, demonstre o desejo de adotar.

Tendo em vista a sucesso bem como a possibilidade do rompimento do vnculo j estabelecido, os efeitos da sentena constitutiva retroagem ao momento do falecimento do adotante. Ratifica Liberati:

A hiptese de adoo apresentada no 6 do art. 42 aquela deferida a pessoa que tenha falecido no curso do procedimento j instaurado e que tenha manifestado, de forma inequvoca, sua vontade de aceitar a medida. Nesse caso, os efeitos da adoo retroagem data do bito (ECA, art. 47, 7), ao mesmo tempo em que se determina a abertura da sucesso (CC, arts. 1.784 e 1.788).

Dessa forma no se prejudica a inteno do de cujus bem como a oportunidade da criana ou do adolescente em pertencer a uma famlia, visto que o processo de adoo tem continuidade - no extinto sem julgamento de mrito aps a ocorrncia do falecimento, e a sucesso alcana o mais recente membro familiar.

3. O ADVENTO DA LEI 12.010/09 NO ORDENAMENTO JURDICO BRASILEIRO

A Lei n 12.010 de 03 de agosto de 2009 modificou consideravelmente o texto do Estatuto da Criana e do Adolescente, bem como do Cdigo Civil e de alguns dispositivos em leis esparsas. Foi denominada Lei Nacional de Adoo ou Lei Nacional de Convivncia Familiar e tem por finalidade, em suma, propiciar condies mais favorveis ao exerccio do direito convivncia familiar garantido pela Constituio de 1988 ao pblico infanto-juvenil.

Os dados levantados pelo CONANDA, disponveis no Levantamento Nacional de Abrigos para Crianas e Adolescentes da Rede SAC do Ministrio do Desenvolvimento Social e no Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito da Criana e do Adolescente Convivncia Familiar e Comunitria, apontam um elevado nmero de crianas e adolescentes em situao de acolhimento institucional, no necessariamente rfos do poder familiar, mas distante da proteo proveniente deste.

Assim, alm de traar planos para desenvolvimento de polticas pblicas, esses dados motivaram paralelamente a mudana da legislao, tendo por escopo transformar os resultados das pesquisas realizadas.

O Projeto de Lei n 314/2004, oriundo do Senado, que contemplava a regulamentao da adoo internacional, de autoria da Senadora Patrcia Saboya, foi recebido pela Cmara dos Deputados ganhando novas feies com o acrscimo de propostas desta Casa que traziam modificaes como: supresso da diferena de 16 anos entre adotante e adotado; dispensa de advogado no processo de adoo; licena maternidade e paternidade para adotantes; fiscalizao no exterior quando da adoo internacional; benefcios tributrios para adotantes; auxlio financeiro para as famlias dos adotados; programa para incentivo da guarda provisria de crianas e adolescentes rfos do poder familiar; e legalizao da adoo por casal homoafetivo.

A soma dessas idias resultou no Projeto de Lei n 6.222/2005, que foi amplamente discutido por cerca de trs anos pela Comisso Especial, criada para tanto, e demais deputados com a colaborao da sociedade civil e representantes de diversas entidades que trabalhavam com as questes relacionadas ao pblico infanto-juvenil. Alm disso, houve pesquisa pblica, via internet, para que os interessados pudessem opinar sobre o tema.

Durante o processo legislativo, a Deputada Maria do Rosrio, enquanto relatora da Comisso, apresentou parecer apontando algumas preocupaes que ensejaram o debate. Relatou que o estudo publicado pelo IPEA anotava que cerca de 86% das crianas abrigadas no Pas possuam famlia e que destas 58% mantinham vnculos familiares, porm elas permaneciam em abrigos pela precariedade da condio socioeconmica da famlia, atrelada ou no a situaes de alcoolismo, drogadio ou violncia familiar.

Denunciou a demora do Poder Judicirio em resolver a situao da criana ou do adolescente que se encontravam acolhidos. A deciso sobre o poder familiar e a possibilidade de colocao em famlia substituta demorava em torno de 02 a 05 anos para ser prolatada. Enquanto isso, as chances de serem adotadas diminuam, pois suas caractersticas iam se distanciando daquelas desejadas pelos pretendentes adoo, ou seja, crianas com idade no superior a 03 anos.

Apontou um abandono no s da famlia como do Estado que resultava na permanncia da pessoa em instituio por toda sua juventude. Indivduos majoritariamente negros ou possuidores de alguma deficincia que acabavam por introjetar o sentimento de rejeio sofrido durante todo seu desenvolvimento.

Revelou, ainda, uma ateno s crianas provenientes de comunidades indgenas que, por valores culturais, eram rejeitadas, chegando at a correr risco de morte. Isso se devia ao fato de algumas etnias sacrificarem, por exemplo, crianas que nasciam com alguma deficincia ou que eram gmeas. Assim, para que no houvesse agresso cultura indgena e aos direitos humanos consagrados no Brasil, uma alternativa seria a colocao em famlia substituta, preferencialmente, em outra comunidade indgena.

Tais motivos, somados preocupao com o trfico de pessoas decorrente da adoo internacional, resultaram, depois de diversas modificaes nas propostas originais, na Lei n 12.010/09.

Apesar de ser mais conhecida por Lei Nacional de Adoo, a Lei n 12.010/09 foca primordialmente a preservao dos vnculos da famlia natural, com assistncia do Poder Pblico. Caso constatada a deficincia incontornvel nas relaes familiares naturais, busca-se colocar a criana ou o adolescente sob a proteo da famlia extensa por meio da guarda ou da tutela para que haja a sua manuteno entre pessoas conhecidas com as quais exista uma relao de afinidade e afeto.

Em se mostrando invivel tal possibilidade, desloca-se a criana ou o adolescente para o atendimento em programas de acolhimento familiar ou institucional, o que for mais apropriado para seu bem-estar.

Identificando a impossibilidade de reatar a relao com a famlia natural, o Estado-juiz, devidamente provocado em procedimento judicial, determinar a destituio definitiva do poder familiar, encaminhando a criana ou o adolescente para a adoo. Durante o tempo que aguarda a colocao em famlia substituta, deve o Sistema de Garantia de Direitos zelar para que seja a criana ou o adolescente integralmente assistido em todas as suas necessidades considerando ser pessoa em condio peculiar de desenvolvimento.

Na busca dessa gradao de cuidados (famlia natural, famlia extensa e, por ltimo, famlia substituta) as alteraes a seguir relacionadas modificam substancialmente o entendimento do texto legal.

3.1 Principais Inovaes Trazidas ao ECA com o Advento da Lei n 12.010/09

3.1.1 Alterao da nomenclatura ptrio poder para poder familiar

Coadunando com o princpio constitucional de igualdade entre homens e mulheres, a lei adotou o termo poder familiar em lugar da expresso ptrio poder, que carregava a concepo patriarcalista de famlia, para designar os direitos e deveres dos membros de uma famlia entre si e principalmente em relao criana e ao adolescente que a compe.

E no podia ser diferente. A Carta Magna j reconheceu o declnio do patriarcalismo em nossa sociedade ao dispor, em seu artigo 226, 5, que os direitos e deveres referentes sociedade conjugal so exercidos igualmente pelo homem e pela mulher, assim como o Cdigo Civil, que dita ser competente aos pais, durante o casamento ou unio estvel, o poder familiar e na falta ou impedimento de um deles o outro exercer com exclusividade.

Isso no significa que as nicas organizaes familiares reconhecidas sejam provenientes do casamento ou da unio estvel, pois o rol constitucional no taxativo. Com os diversos arranjos familiares contemporneos, o rol exemplificativo o meio que alcana tratamento igualitrio a todas as constituies familiares. Nesse sentido argumenta Farias e Rosenvald:

Os novos valores que inspiram a sociedade contempornea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepo tradicional de famlia. A arquitetura da sociedade moderna impe um modelo familiar descentralizado, democrtico, igualitrio e desmatrimonializado. O escopo precpuo da famlia passa a ser a solidariedade social e demais condies necessrias ao aperfeioamento e progresso humano, regido o ncleo familiar pelo afeto, como mola propulsora. (FARIAS e ROSENVALD, 2010, pag.04)

Assim, determinar preliminarmente quem so e como compem a entidade familiar tentar estagnar o desenvolvimento das relaes sociais em seu ncleo, o que no prope a Constituio Federal de 1988.

3.1.2 Classificao trinria dos grupos familiares

A Lei Nacional de Adoo trouxe ao ECA a concepo trinria dos grupos familiares. Para as famlias formadas pelos pais, ou um deles, e seus descendentes, d-se o nome de famlia natural. Ela reconhece as diversas composies das relaes conjugais (casamento, unio estvel etc.), ou seu desfazimento (separao, divrcio, etc.), e a monoparentalidade, isto , a manuteno do lar apenas por um dos genitores. A famlia natural o primeiro ncleo social responsvel pela garantia dos direitos da criana e do adolescente, pois nela que se constituem os primeiros traos de formao do ser humano.

A famlia extensa, tambm chamada de ampliada, formada por parentes prximos (avs, primos, tios, etc.) com os quais a pessoa em formao convive e apresenta vnculos afetivos ou de afinidade. Caso haja impossibilidade de manuteno da criana ou do adolescente em sua famlia natural, esse o segundo ncleo em que se recorre para garantir o exerccio do direito convivncia familiar.

Em se recorrendo por meio da guarda, tutela ou adoo, tem-se a terceira espcie de grupo familiar, a famlia substituta. Sua finalidade suprir a situao de desamparo e abandono sofrida pela criana ou adolescente e provocada pelos pais biolgicos. Sua insero deve ser gradativa, com prvia preparao e acompanhamento psicolgico a fim de evitar circunstncias delicadas, como a de rejeio j vivenciada.

3.1.3 Criana ou adolescente indgena ou proveniente de comunidade remanescente de quilomboO Estatuto da Criana e do Adolescente no abordava questes relacionadas ao pblico infanto-juvenil indgena ou membro de comunidade quilombola. A Lei n 12.010/09 inovou nesse sentido, trazendo o seguinte dispositivo:

Art. 28. A colocao em famlia substituta far-se- mediante guarda, tutela ou adoo, independentemente da situao jurdica da criana ou adolescente, nos termos desta Lei.

6o Em se tratando de criana ou adolescente indgena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, ainda obrigatrio:

I - que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradies, bem como suas instituies, desde que no sejam incompatveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela Constituio Federal;

II - que a colocao familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia;

III - a interveno e oitiva de representantes do rgo federal responsvel pela poltica indigenista, no caso de crianas e adolescentes indgenas, e de antroplogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que ir acompanhar o caso.

O ECA preceitua o respeito aos povos indgenas e sua cultura, j garantido constitucionalmente, e prioriza a colocao da criana ou do adolescente em famlia substituta condizente com sua origem tnica. Tal comando visa evitar choques culturais, que podem agredir a formao da pessoa na famlia inserida. Esse respeito limitado pelos direitos fundamentais institudos pela Carta Magna: nesses casos prefere-se o contido nesta em detrimento dos comandos provenientes dos costumes das referidas comunidades.

No muito diferente do que acontece nos processos de adoo comuns, eles sero acompanhados por equipe interprofissional tambm composta por especialistas nas questes indgenas ou quilombolas, exercendo, assim, a proteo devida traada pelo Estatuto.

3.1.4 Habilitao prvia dos postulantes adoo

Prev o ECA que os interessados em adotar devero se inscrever no cadastro de adoo. Para tanto, um perodo de preparao psicossocial e jurdica, orientado por equipe tcnica da Justia da Infncia e Juventude, requisito indispensvel.

Tal procedimento visa avaliar as condies oferecidas pelo postulante tanto no que se referem ao ambiente familiar em que ser inserida a criana ou o adolescente quanto aos aspectos psicolgicos do pretendente a pai/me. O lugar de convivncia necessita ser adequado ao desenvolvimento fsico e mental de uma pessoa, coexistindo salubridade, mnimo conforto e harmonia para que o crescimento infanto-juvenil se d, em todos os aspectos, de forma saudvel.

Outro ponto a se destacar diz respeito s expectativas dos postulantes. Uma vez que a inscrio permite a escolha das caractersticas da criana ou do adolescente que se deseja adotar, h potencialmente a gerao de (pre)conceitos em relao ao futuro filho. Por isso, a adoo no recomendada como forma de sanar frustraes, por exemplo, as decorrentes de infertilidade. Tambm no pode se resumir a um ato de caridade, pois o sentimento ideal no de compaixo, mas aquele inerente paternidade/maternidade.

Assim, esse momento precedente inscrio uma forma de conscientizar os interessados sobre a responsabilidade pertinente ao exerccio do poder familiar, com todos os seus desafios e satisfaes, para se tornar possvel um estgio de convivncia com a criana ou o adolescente escolhido, antes de se efetivar a adoo (artigo 46, ECA).

3.1.5 Aprimoramento do texto legal pertinente adoo internacional

A adoo internacional, antes do advento da Lei Nacional de Convivncia Familiar, era regulada por alguns poucos artigos do ECA, pelo Decreto 3.087/99, que promulgou a Conveno de Haia Relativa Proteo das Crianas e Cooperao em Matria de Adoo Internacional, e pelo Decreto 3.174/99, que dispunha sobre a competncia das autoridades centrais relacionadas na Conveno.

Por ser assunto distribudo esparsamente na legislao, os representantes do Sistema de Garantia de Direitos encontravam dificuldades e despendiam um grande esforo para conciliar os dispositivos. A compilao em um nico documento colaborou com o trabalho, especialmente dos juzes das Varas da Infncia e Juventude.

Qualifica-se a adoo como internacional utilizando-se o critrio da territorialidade, ou seja, o que se leva em considerao o deslocamento da criana ou do adolescente para outro pas, seja com pais brasileiros ou estrangeiros. Seu carter subsidirio, pois somente ser deferida se forem esgotadas todas as possibilidades de colocao em famlia substituta residente no Brasil.

Os artigos referentes adoo internacional disciplinam criteriosamente o rito procedimental, pois essa modalidade de adoo importa em insero em nova cultura, com costumes, hbitos e idioma diferentes. Alm disso, uma vez em pas estrangeiro, o sistema de proteo brasileiro pouco pode fazer para a criana ou o adolescente, porque tange questes de soberania entre Estados-nao.

Por ser matria complexa que merece um estudo prprio, o presente trabalho no ir discorrer em detalhes, encerrando aqui sua abordagem sobre o tema.

3.1.6 Permanncia mxima de dois anos em acolhimento institucional

Prev o artigo 19, do ECA, que a permanncia da criana e do adolescente em programa de acolhimento institucional no se prolongar por mais de 02 anos, salvo comprovada necessidade que atenda ao seu superior interesse, devidamente fundamentada pela autoridade judiciria.

Essa medida foi inserida no Estatuto como forma de transformar a realidade apontada pelo "Levantamento Nacional de Abrigos para Crianas e Adolescentes da Rede SAC do Ministrio do Desenvolvimento Social", promovido em 2005, pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica (SDH), que descreve a situao das entidades de acolhimento e o perfil de quem ali vive. Destaca que

Os abrigos pesquisados atendem cerca de 20 mil crianas e adolescentes que so, na maioria, meninos (58,5%), afro-descendentes (63,6%) e tm entre sete e 15 anos (61,3%). Esto nos abrigos h um perodo que varia de sete meses a cinco anos (55,2%), sendo que a parcela mais significativa (32,9%) est nos abrigos h um perodo entre dois e cinco anos, ainda que a medida de abrigo seja estabelecida como excepcional e provisria.

Esses dados, combinados com a demora do Poder Judicirio em resolver a situao da criana e do adolescente, como referido em captulo anterior, levaram representantes do Poder Legislativo a repensarem a situao e redigir norma na tentativa de revert-la. Ocorre que o dispositivo do texto recm-promulgado de difcil execuo, pois para aqueles que so rfos ou tiveram os pais destitudos do poder familiar ou tm pais desconhecidos, no havendo interessados em adot-los, restam duas alternativas, o acolhimento familiar e o institucional. Como o primeiro no amplamente desenvolvimento, poucas so as pessoas beneficiadas por ele, consequentemente, recorre-se instituio.

Para as crianas e os adolescentes que esto em instituio de acolhimento, mas mantm vnculo familiar, o que, segundo o Levantamento da SDH, somam 58% dos acolhidos, improdutiva ser a nova legislao, se no houver um trabalho de reinsero no grupo familiar que colabore com a extino dos problemas que os levaram a estarem em tais condies.

3.1.7 Proibio da adoo intuitu personae e suas excees

A adoo intuitu personae ou adoo direta modalidade de colocao em famlia substituta na qual os pais biolgicos interferem na escolha dos adotantes em momento anterior ao pedido judicial. Isso normalmente ocorre em circunstncias especiais, quando os interessados conhecem os genitores da criana ou so indicados por uma pessoa prxima de sua confiana.

Tal modalidade foi proibida com o advento da Lei n 12.010/09, que alterou o Estatuto da Criana e do Adolescente acrescentando a seguinte redao:

Art. 50 A autoridade judiciria manter, em cada comarca ou foro regional, um registro de crianas e adolescentes em condies de serem adotados e outro de pessoas interessadas na adoo.

13. Somente poder ser deferida adoo em favor de candidato domiciliado no Brasil no cadastrado previamente nos termos desta Lei quando:

I - se tratar de pedido de adoo unilateral;

II - for formulada por parente com o qual a criana ou adolescente mantenha vnculos de afinidade e afetividade;

III - oriundo o pedido de quem detm a tutela ou guarda legal de criana maior de 3 (trs) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivncia comprove a fixao de laos de afinidade e afetividade, e no seja constatada a ocorrncia de m-f ou qualquer das situaes previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei. (grifo nosso)

Extrai-se da legislao que a inscrio no cadastro de adoo de todos os envolvidos no processo condio sine qua non para o deferimento do pedido, excetuando os casos em que um dos cnjuges adota o enteado ou o pedido feito por familiar que comprova vnculo, com observao dos impedimentos, ou, ainda, quando se tem a guarda ou a tutela do adotando maior de 03 anos. Ou seja, em nenhuma hiptese possvel adotar a pessoa em tenra idade, a menos que esteja na vez do postulante inscrito no cadastro de adoo.

H um tratamento diferenciado para um grupo de crianas em detrimento das demais, pois para adotar pessoa com idade inferior a 03 anos expressa a necessidade de se respeitar o cadastro e para aquelas que superam essa idade, tal regra admite certa relatividade, em decorrncia de os pretendentes adoo preferirem esse recorte do pblico infantil. Todavia, o cenrio apresentado no deveria justificar tal atitude por parte dos legisladores, pois que dentro de um mesmo grupo de sujeitos, que merecem ateno especial por parte do Estado para que atinjam a igualdade material face aos capazes civilmente, existe uma desigualdade injustificvel. No se observa necessidade em diferenciar o zelo para com uma criana de 03 anos em relao a outra com 04 anos de idade.

Se um adulto no cadastrado, com a guarda legal ou a tutela de uma pessoa com 03 anos e meio de vida, comprovar tempo de convivncia e laos de afinidade e afetividade para com ela, ele poder ter seu processo de adoo deferido. Porm, se esse mesmo adulto comprovar a mesma situao para com uma criana de 02 anos e meio de idade, tal processo no ter o mesmo resultado que, baseado no texto legal acima transcrito, ser indeferido.

Argumenta-se que a existncia de um contato prvio entre os envolvidos prejudicial aos interesses infanto-juvenis, uma vez que pode ocorrer a comercializao da criana, tomando-a por objeto, o que viola severamente a dignidade da pessoa humana. E que a natalidade, em casos extremos, serviria como fonte de renda aos genitores sem escrpulos.

Levanta-se tambm a incerteza das condies dos adotantes em exercer a paternidade, pois a avaliao da equipe multiprofissional, como requisito para inscrio no cadastro, mostra-se tardia com perda de suas finalidades, que so a de avaliar a compatibilidade com a natureza da medida e a averiguao de ambiente familiar adequado (art.29, ECA).

Ainda, tem-se por argumento o desrespeito ordem de inscrio no cadastro e por conseqncia, uma agresso s expectativas de quem aguarda na fila, o que gera uma sensao de tratamento desigual entre os inscritos e os no-inscritos.

O trfico de pessoas, a avaliao prvia por equipe multiprofissional e o desrespeito fila do cadastro so argumentos genricos que tanto podem ser utilizados em circunstncias que envolvam crianas com idade superior a 03 anos tanto como em situaes que envolvam crianas com menos de 03 anos. Desse modo, questiona-se se, de fato, plausvel o exerccio de tal desigualdade.

3.1.8 Infrao administrativa relacionada com a operacionalizao dos cadastros de adoo

Dita o artigo 258-A do ECA que a autoridade competente que deixar de providenciar a instalao e operacionalizao dos cadastros previstos no artigo 50 e no 11 do artigo 101 do Estatuto incorrer em multa de R$1.000,00 (mil reais) a R$3.000,00 (trs mil reais). Ainda incorre nas mesmas penas a autoridade que deixar de efetuar o cadastramento de crianas e adolescentes em condies de serem adotadas, de pessoas ou casais habilitados adoo e de crianas e adolescentes em regime de acolhimento institucional ou familiar.

A autoridade competente a que o dispositivo se refere consiste no juiz da Vara da Infncia e Juventude ou o juiz de direito nas comarcas em que ainda no foi designada vara especializada. Considera-se corresponsvel a Autoridade Central Estadual e a Autoridade Central Federal Brasileira por tambm ser conferido a elas o zelo pela manuteno e correta alimentao dos cadastros no mbito de sua atuao. Subsidiariamente, responsvel o Ministrio Pblico, pois cabe a ele fiscalizar a utilizao dos cadastros conforme previsto no artigo 50, 1 e 12.

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidncia da Repblica foi designada pelo Decreto 3.087/99 como a Autoridade Central Federal Brasileira. Compete a ela, dentre outras coisas: representar os interesses do Estado brasileiro na preservao dos direitos e das garantias individuais das crianas e dos adolescentes face aos demais Estados-nao; promover aes de cooperao tcnica e colaborao entre as Autoridades Centrais dos Estados federados brasileiros e do Distrito Federal; gerenciar banco de dados, para anlise e deciso quanto aos dados das pessoas inscritas no cadastro de adoo,promover o credenciamento dos organismos que atuem em adoo internacional no Estado brasileiro, verificando se tambm esto credenciadas pela autoridade Central do pas contratante de onde so originrios e comunicando o credenciamento ao Bureau Permanente da Conferncia da Haia de Direito Internacional Privado.

As Autoridades Centrais Estaduais so as Comisses Estaduais Judicirias de Adoo compostas por um desembargador presidente e um secretrio executivo. A SDH mantm lista atualizada de todas essas entidades para consulta pblica.

Discriminadas as autoridades e a conduta em que as mesmas incorrem em infrao administrativa, o respeito ao Cadastro se dar de forma objetiva, sem a devida ponderao do interesses da criana, haja vista que antes deles est o receio da sano imposta que atinge moral e patrimonialmente.

3.2 O Cadastro Nacional de Adoo

A Lei n 12.010/09 trouxe ao Estatuto da Criana e do Adolescente a obrigatoriedade de implementao e manuteno de cadastros estaduais e nacional de crianas e adolescentes em condies de serem adotados e de pessoas ou casais habilitados adoo. Essa medida foi precedida pelo Conselho Nacional de Justia que, por iniciativa da Conselheira Andrea Pach, editou a Resoluo n 54, em 29 de abril de 2008, criando o Cadastro Nacional de Adoo CNA.

Ao unificar os dados, o CNA apresenta os resultados na seguinte ordem: a) pretendentes do foro regional (nos casos de mais de uma vara na mesma comarca), por ordem cronolgica de habilitao; b) pretendentes da comarca, por ordem cronolgica de habilitao; c) pretendentes da unidade da Federao, por ordem cronolgica de habilitao; d) pretendentes da regio geogrfica, por ordem cronolgica de habilitao; e) pretendentes das demais regies geogrficas, por ordem cronolgica de habilitao. E para queles anteriormente habilitados h um respeito aos seus cadastros, em que ir constar preferncia diante dos demais cadastrados em data posterior. Dessa forma, as diversas habilitaes que os interessados faziam em diferentes comarcas tornam-se desnecessrias, pois ao informar na primeira inscrio que deseja adotar pessoas em outras unidades da Federao, enumerando-as, o pedido automaticamente se estende a elas.

Esse sistema objetiva ampliar as possibilidades de encontrar um lar em que a pessoa em acolhimento possa ser inserida. Alm disso, com a relao das caractersticas dos inscritos possvel traar diretrizes na constituio de polticas pblicas, dando enfoque nas principais dificuldades encontradas para se manter a criana ou o adolescente na famlia de origem e tambm as dificuldades encontradas para se adotar e ser adotado.

Apesar de o CNA oportunizar esses benefcios, os dados que ele apresenta revelam duas realidades divergentes que configuram um entrave reduo de seus nmeros, porque

[...] Dos 11.125 pretendentes a adoo, 90% so casados ou vivem em unio estvel, 10% vivem sozinhos e, nesta condio, pretendem assumir a paternidade ou a maternidade. A maioria (50%) possui renda mdia entre 3 e 10 salrios mnimos, e no tem filhos (76,5%). Quanto s preferncias, 70% s aceitam crianas brancas. A grande maioria dos que querem adotar tambm branca (70%). 80,7% exigem crianas com no mximo trs anos; o sistema mostra que apenas 7% das disponveis para adoo possuem esta idade. Alm disso, 86% s aceitam adotar crianas ou adolescentes sozinhos, quando grande o nmero dos que possuem irmos, e separ-los constituiria um novo rompimento, o que deve ser evitado a todo custo. (NETO e PACH, 2008)

Verifica-se que a liberdade concedida aos pretendentes para definir as caractersticas da criana ou do adolescente que se quer adotar - por exemplo a cor, a idade, ter ou no irmos - produz um projeto ideal de filho no condizente com a realidade do pblico que se encontra em abrigos a espera de uma famlia.

Esse fator constitui grande empecilho para viabilizar a adoo, ao mesmo tempo em que contribui para que pessoas queiram participar desse processo, pois ao fornecer uma espcie de comanda para os habilitados escolherem as caractersticas que querem que seu filho adotivo tenha, gera uma expectativa de realizao do ideal de filho perfeito o que frustrado quando os candidatos a pais se cansam de aguardar ou quando visitam uma instituio de acolhimento e conhecem as pessoas que ali esperam por uma famlia. O resultado, conforme apresentado, o registro de duas extensas listas que no se comunicam: a lista de crianas e adolescentes aptos a adoo e a lista de pretendentes a adoo.

Diante desse impasse, o Plano Nacional de Promoo, Proteo e Defesa do Direito de Crianas e Adolescentes Convivncia Familiar e Comunitria prope a conscientizao, sensibilizao e desmistificao da adoo para que aquelas crianas e adolescentes que, por motivos diversos tm sido preteridos pelos adotantes, possam ser oportunizada a colocao em famlia substituta.

Todavia, apenas o planejamento no suficiente. O princpio constitucional da prioridade absoluta deve atravessar todos os nveis de atuao do poder pblico para atender essas pessoas em condio especial de desenvolvimento.

4. ADOO INTUITU PERSONAE E A LEI N 12.010/09 LUZ DA JURISPRUDNCIA DO STJ

A Resoluo n 54/2008 do Conselho Nacional de Justia, que regula a instalao do Cadastro Nacional de Adoo com seus respectivos alimentadores estaduais, com a posterior promulgao da Lei n 12.010/09 consolidaram a impossibilidade de se optar pela modalidade adoo intuitu personae como forma de colocao em famlia substituta. Contudo, no raro so os casos em que se necessita desse instrumento jurdico para legitimar uma situao de fato, como ocorreu no municpio de Sete Lagoas, no Estado de Minas Gerais que levou os pretendentes adoo recorrer ao Superior Tribunal de Justia para exercer o direito de postular o pedido de adoo sem estarem limitados pela inscrio no cadastro, resultando na seguinte deciso:

RECURSO ESPECIAL - AFERIO DA PREVALNCIA ENTRE O CADASTRO DE ADOTANTES E A ADOO INTUITU PERSONAE - APLICAO DO PRINCPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR - VEROSSMIL ESTABELECIMENTO DE VNCULO AFETIVO DA MENOR COM O CASAL DE ADOTANTES NO CADASTRADOS - PERMANNCIA DA CRIANA DURANTE OS PRIMEIROS OITO MESES DE VIDA - TRFICO DE CRIANA - NO VERIFICAO - FATOS QUE, POR SI, NO DENOTAM A PRTICA DE ILCITO - RECURSO ESPECIAL PROVIDO.I - A observncia do cadastro de adotantes, vale dizer, a preferncia das pessoas cronologicamente cadastradas para adotar determinada criana no absoluta. Excepciona-se tal regramento, em observncia ao princpio do melhor interesse do menor, basilar e norteador II - incontroverso nos autos, de acordo com a moldura ftica delineada pelas Instncias ordinrias, que esta criana esteve sob a guarda dos ora recorrentes, de forma ininterrupta, durante os primeiros oito meses de vida, por conta de uma deciso judicial prolatada pelo i. desembargador-relator que, como visto, conferiu efeito suspensivo ao Agravo de Instrumento n. 1.0672.08.277590-5/001. Em se tratando de aes que objetivam a adoo de menores, nas quais h a primazia do interesse destes, os efeitos de uma deciso judicial possuem o potencial de consolidar uma situao jurdica, muitas vezes, incontorn