3933933 Antonio Candido e Outros a Persona Gem de Fico Docrev

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    A Personagem

    de FicoAntonio Candido, Anatol Rosenfeld,

    Decio de Almeida Prado e Paulo Emlio Sales Gomes

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    A Personagem de FicoDebates

    por J. Guinsburg

    Conselho Editorial: Anatol Rosenfeld, AnitaNovinsky, Aracy Amaral, Bons Schnaiderman, CelsoLafer, Gita K. Ghinzberg, Haroldo de Campos, RosaKrausz, Sbato Magaldi, Zulmira Ribeiro Tavares.

    Antonio Candido Anatol RosenfeldDecio de Almeida Prado Paulo Emlio Sales Gomes

    A Personagem de Fico

    2aedio

    Equipe de realizao: Geraldo Gerson de Souza, reviso; MoyssBaumstein, capa e trabalhos tcnicos.

    Editora Perspectiva

    So Paulo

    1

    1Este livro foi digitalizado e distribudo GRATUITAMENTE pela equipe Digital Source com a inteno defacilitar o acesso ao conhecimento a quem no pode pagar e tambm proporcionar aos DeficientesVisuais a oportunidade de conhecerem novas obras.

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    PREFCIO

    (pag. 5)

    O livro seguinte reproduz, com o mesmo ttulo, o Boletim n. 284

    da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da. Universidade de So

    Paulo, publicado em 1964. Nascido de uma experincia de ensino, julgo

    oportuno reproduzir a parte do Prefcio que explicava a sua elaborao.

    ste Boletim resulta das atividades do Seminrio

    Interdisciplinar, iniciativa pela qual procuro dar aos cursos a meu cargoo carter de interrelao com outros pontos de vista, indispensveis ao

    estudo da Teoria Literria. Esta matria toca no apenas em outros

    domnios do saber,como a Filosofia e a Lingstica, mas na realidade

    viva das diversas artes. Da se encontrarem nesta publicao, como se

    encontraram nas atividades do Seminrio, estudiosos da Filosofia, da

    Literatura, do Teatro e do Cinema.

    O curso de 1961 para o 4. ano versou Teoria e Anlise do

    Romance; dentre os seus tpicos, foi selecionado o referente

    Personagem (explanado no ms de abril), para os trabalhos do

    Seminrio. Eles se estenderam de outubro a novembro, depois de

    terminadas as aulas, constando de exposies sbre o problema geral

    Se quiser outros ttulos nos procure http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros, ser um prazerreceb-lo em nosso grupo.

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    da fico pelo Professor Anatol Rosenfeld; sbre a personagem de teatro,

    pelo Professor Dcio de Almeida Prado; sbre a personagem de cinema,

    pelo Professor Paulo Emlio Sales Gomes. A seguir, vieram outras

    atividades, como uma Mesa Redonda, com participao dos alunos e

    dos quatro docentes, para balano e esclarecimento de problemas; a

    projeo do filme La Dolce Vita, de Federico Fellini, comentado pelo

    Professor Paulo Emilio Sales Gomes do ngulo das tcnicas de

    caracterizao psicolgica; a representao da peaA Escada, de Jorge

    Andrade, seguida de debate sbre a caracterizao cnica, orientado

    pelo Professor Dcio de Almeida Prado, com a participao central do

    encenador, Flvio Rangel, e a colaborao da crtica de teatro Brbara

    Heliodora Carneiro de Mendona. Dessa maneira, procurou-se pr os

    estudantes em contato com vrias faces de um problema complexo, a

    fim de que a teoria e a anlise, do ponto de vista literrio, ficassem o

    mais esclarecidas possvel pela incidncia de outros focos.

    Neste Boletim, recolhem-se as aulas sbre personagem do professor do

    curso e as contribuies do Seminrio, redigidas especialmente para o

    caso. Como se ver, as exposies crticas sbre o problema no

    romance, no teatro e no cinema giram estruturalmente em trno da

    exposio bsica sbre o problema geral da fico, embora cada autor

    tenha escrito a sua contribuio independentemente e com tda a

    liberdade.

    Na presente edio, suprimiu-se a pequena bibliografia final, de

    intersse meramente indicativo, e corrigiram-se alguns erros

    tipogrficos.

    So Paulo, 31 de janeiro de 1968

    Antonio Candido de Mello e Souza

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    Literatura e Personagem

    (Pag. 9)

    Conceito de Literatura

    Geralmente, quando nos referimos literatura, pensamos no que

    tradicionalmente se costuma chamar belas letras ou beletrstica.

    Trata-se, evidentemente, s de uma parcela da literatura. Na acepo

    lata, literatura tudo o que aparece fixado por meio de letras obras

    cientficas, reportagens, notcias, textos de propaganda, livros

    didticos, receitas de cozinha etc. Dentro dste vasto campo das letras,

    as belas letras representam um setor restrito. Seu trao distintivoparece ser menos a beleza das letras do que seu carter fictcio ou

    imaginrio1. A delimitao do campo da beletrstica pelo carter

    ficcional ou imaginrio tem a vantagem de basear-se em momentos de

    lgica literria que, na maioria dos casos, podem ser verificados com

    certo rigor, sem que seja necessrio recorrer a valorizaes estticas.

    Contudo o critrio do carter ficcional ou imaginrio no satifaz

    inteiramenente o propsito de delimitar o campo da literatura no

    sentido restrito. A literatura de cordel tem carter ficcional, mas no se

    pode dizer o mesmo dos Sermesdo Padre Vieira, nem dos escritos de

    Pascal, nem provvelmente dos dirios de Gide ou Kafka. Ser fico o

    poema didtico De rerum natura, de Lucrcio? No entanto, nenhum

    1 O significado dste trmo, no sentido usado neste trabalho, se esclarecer mais adiante, sem que haja

    qualquer pretenso de uma abordagem ampla e profunda dste conceito tradicional, desde a antiguidade

    objeto de muitas discusses. Contribuies recentes para a sua anlise encontram-se nas obras de 3.-P.

    Sartre,LImagination eLImaginaire, Roman Ingsrden,Das literarische Kunstwerk(A obra-de-arteliterria) e Untersuchungen zur Ontol,ogle der Kunst(Investigaes acrca da ontologia da arte) M.Dufreune,Phnomnologje de lexprlence esthtique tdas baseadas nos mtodos de E. Husseri.

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    historiador da literatura hesitar em eliminar das suas obras os

    romances triviais de baixo entretenimento e em nelas acolher os

    escritos mencionados. Parece portanto impossvel renunciar por inteiro

    a critrios de valorizao, principalmente esttica, que como tais no

    atingem objetividade cientfica embora se possa ao menos postular certo

    consenso universal.

    A Estrutura da Obra Literria

    A estrutura de um texto qualquer, ficcional ou no, de valor

    esttico ou no, compe-se de uma srie de planos, dos quais o nico

    real, sensivelmente dado, o dos sinais tipogrficos impressos no papel.

    Mas ste plano, embora essencial fixao da obra literria, no tem

    funo especfica na sua constituio, a no ser que se trate de um

    texto concretista. No nexo dste trabalho, ste plano deve ser psto de

    lado, assim como tdas as consideraes sbre tendncias literrias

    recentssimas, cuja conceituao ainda se encontra em plena

    elaborao.

    Como camadas j irreais por no terem autonomia ntica, necessitando

    da atividade concretizadora e atualizadora do apreciador adequado

    encontramos as seguintes: a dos fonemas e das configuraessonoras

    (oraes), percebidas apenas pelo ouvinte interior, quando se l o

    texto, mas diretamente dadas quando o texto recitado; a das unidades

    significativas de vrios graus, constitudas pelas oraes; graas a estas

    unidades, so (projetadas atravs de determinadas operaes lgicas,

    contextos objectuais (Sachverhalte), isto , certas relaes atribudas

    aos objetos e suas qualidades (a rosa vermelha; da flor emana um

    perfume; a roda gira). stes contextos objectuais determinam as

    objectualidades, por exemplo, as teses de uma obra cientfica ou o

    mundo imaginrio de um poema ou romance.

    Merc dos contextos bjectuais, constitui-se um plano intermedirio de

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    certos aspectos esquematizados que, quando especialmente

    preparados, determinam concretizaes especificas do leitor. Quando

    vemos uma bola de bilhar deslizando sbre o pano verde, vivenciamos

    um fluxo continuo de aspectos variveis de um disco eliptide, de uma

    cr clara extremamente matizada; atravs dsses aspectos variveis -

    nos dada e se mantm inalterada a percepo da esfera branca da

    bola. Em geral, os textos apresentam-nos tais aspectos mediante os

    quais se constitui o objeto. Contudo, a preparao especial de

    selecionados aspectos esquemticos de importncia fundamental na

    obra ficcional particularmente quando de certo nvel esttico j

    que desta forma solicitada a imaginao concretizadora do apreciador.

    Tais aspectos esquemticos, ligados seleo cuidadosa e precisa da

    palavra certa com suas conotaes peculiares, podem referir-se

    aparncia fsica ou aos processos psquicos de um objeto ou

    personagem (ou de ambientes ou pessoas histricas etc.), podem

    salientar momentos visuais, tteis, auditivos etc.

    Em poemas ou romances tradicionais, a preparao especial dos

    aspectos bem mais discursiva do que, por exemplo, em certos poemas

    elpticos de Ezra Pound ou do ltimo Brecht, em que a justaposio ou

    montagem de palavras ou oraes, sem nexo lgico, deve, como num

    ideograma, resultar na sntese intuitiva de uma imagem, graas

    participao intensa do leitor no prprio processo da criao (a teoria da

    montagem flmica de Eisenstein baseia-se nos mesmos princpios).

    Num quadro figurativo h s umaspecto para mediar os objetos, mas

    ste de uma concreo sensvel nunca alcanada numa obra literria.

    Esta, em compensao, apresenta grande nmero de aspectos, embora

    extremamente esquemticos. O cinema e o teatro apresentam muitos

    aspectos concretos, mas no podem, como a obra literria, apresentar

    diretamente aspectos psquicos, sem recurso mediao fsica do

    corpo, da fisionomia ou da voz.

    s camadas mencionadas devem ser acrescentadas, numa obra

    ficcional de elevado valor, vrias outras as dos significados

    espirituais mais profundos que transparecem atravs dos planos

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    anteriores, principalmente o das objectualidades imaginrias,

    constitudas, em ltima nlise, pelas oraes 2.ste mundo fictcio ou

    mimtico que freqentemente reflete momentos selecionados e

    transfigurados da realidade emprica exterior obra, torna-se, portanto,

    representativo para algo alm dle, principalmente alm da realidade

    emprica, mas imanente obra.

    A Obra Literria Ficcional

    1) O problema ontolgico:A verificao do carter ficcional de

    um escrito independe de critrios de valor. Trata-se de problemasontolgicos, lgicos e epistemolgicos.

    Como foi exposto antes uma das funes essenciais da orao a de

    projetar, como correlato,um contexto objectual que transcendente ao

    mero contedo significativo, embora tenha nle seu fundamento

    ntico. Assim, a orao Mrio estava de pijama projeta um correlato

    objectual que constitui certo ser fora da orao. Mas o Mrio assim

    projetado deve ser rigorosamente distinguido de certo Mrio real,possivelmente visado pela orao. Como tal, o correlato da orao pode

    referir-se tanto a um rapaz que existe independentemente da orao,

    numa esfera ntica autnoma (no caso, a da realidade), como

    permanecer sem referncia a nenhum mo real. Todo texto, artstico

    ou no, ficcional ou no, projeta tais contextos objectuais puramente

    intencionais que podem referir-se ou no a objetos nticamente

    autnomos.Imaginemos que eu esteja vendo diante de mim o Mrio real; evidente

    que na minha conscincia h s uma imagem dle, alis no notada por

    mim, j que me refiro diretamente ao Mrio real. Posso chamar ste

    objeto o Mrio real de tambm intencional, visto o mesmo existir

    no por graa do meu ato, mas ter plena autonomia, mesmo quando

    visado por mim num ato intencional, como agora. Todavia, a imagem

    dle, a qual o representa na minha conscincia (embora no a note), puramente intencional, visto no possuir autonomia ntica e existir

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    por graa do meu ato. Posso reproduzi-la at certo ponto na minha

    mente, mesmo sem ver o rapaz autnomo; posso tambm transform-la

    merc de certas operaes espontneas. bvio que as oraes s

    podem projetar tais correlatos puramente intencionais, j que no lhes

    dado tampouco como minha conscincia encerrar os objetos

    tambm intencionais.

    Ainda assim, as objectualidades puramente intencionais projetadas por

    intermdio de oraes tm certa tendncia a se constiturem como

    realidade. Se a orao Mrio estava de pijama apresenta o mo pela

    primeira vez, ste torna-se portador do traje a ele atribudo; portador

    graas funo especfica de sujeito da orao; e portador de algo, em

    virtude da funo significativa da cpula. O pretrito, apesar de em

    certos casos ter o cunho fictcio do era uma vez, tem em geral mais

    fra realizadora e individualizadora do que a voz do presente (O

    elefante pesa no mnimo uma tonelada pode ser o enunciado de um

    zologo sbre os elefantes em geral; mas o elefantepesavano mnimo

    uma tonelada refere-se a um elefante individual, existente em

    determinado momento). De qualquer modo, a orao projeta o objeto

    Mrio como um ser independente. Com efeito, ela sugere que Mrio

    j existia e j estava de pijama antes de a orao assinalar ste fato.

    Ao seguir a prxima orao: le batia uma carta na mquina de

    escrever, Mrio j se emancipou de tal modo das oraes,. que os

    contextos objectuais, embora estejam pouco a pouco constituindo e

    produzindo o mo, parecem ao contrrio apenas revelarpormenores

    de um ser autnomo. E isso ao ponto de o mundo objectual assim

    constitudo pelas oraes (mas que se insinua como independente,

    apenas descrito pelas oraes) se apresentar como um contnuo,

    apesar de as oraes serem naturalmente descontnuas como os

    fotogramas de uma fita de cinema. base das oraes, o leitor atribui a

    Mrio uma vida anterior sua criao pelas oraes; coloca a

    mquina sbre uma mesa (no mencionada) e o rapaz sbre uma

    cadeira; o conjunto num quarto, ste numa casa, esta numa cidade

    embora nada disso tenha sido mencionado.

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    Uma das diferenas entre o texto ficcional e outros textos reside no fato

    de, no primeiro, as oraes projetarem contextos objectuais e, atravs

    dstes, sres e mundos puramente intencionais, que no se referem, a

    no ser de modo indireto, a sres tambm intencionais (nticamente

    autnonios), ou seja, a objetos determinados que independem do texto.

    Na obra de fico, o raio da inteno detm-se nestes sres puramente

    intencinais, smente se teferindo de um modo indireto e isso nem

    em todos os casos a qualquer tipo de realidade extraliterria. J nas

    oraes de outros escritos, por exemplo, de um historiador, qumico,

    reprter etc., as objectualidades puramente intencionais no costumam

    ter por si s nenhum (ou pouco) pso ou densidade, uma vez que, na

    sua abstrao ou esquematizao maior ou menor, no tendem a conter

    em geral esquemas especialmente preparados de aspectos que solicitam

    o preenchimento concretizador. O raio de inteno passa atravs delas

    diretamente aos objetos tambm intencionais, semelhana do que se

    verifica no caso de eu ver diante de mim o mo acima citado, quando

    nem sequer noto a presena de uma imagem interposta.

    H um processo semelhante no caso de um jornal

    cinematogrfico ou de uma foto de identificao. Trata-se de imagens

    puramente intencionais que, no entanto, procuram omitir-se para

    franquear a viso da prpria realidade. J num retrato artstico a

    imagem puramente intencional adquire valor prprio, certa densidade

    que fcilmente ofusca a pessoa retratada. Alis, mesmo diante de um

    fotgrafo despretensioso a pessoa tende a compor-se, tomar uma pose,

    tornar-se personagem; de certa forma passa a ser cpia antecipada da

    sua prpria cpia. Chega a fingir a alegria que deveras sente.

    2) O problema lgico. Os enunciados de uma obra cientfica e, na

    maioria dos casos, de notcias, reportagens, cartas, dirios etc.,

    constituem juzos, isto , as objectualidades puramente intencionais

    pretendem corresponder, adequar-se exatamente aos sres reais (ou

    ideais, quando se trata de objetos matemticos, valores, essncias, leis

    etc.) referidos. Fala-se ento de adequatio orationis ad rem. H

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    nestes enunciados a inteno sria de verdade. Precisamente por isso

    pode-se falar, nestes casos, de enunciados errados ou falsos e mesmo

    de mentira e fraude, quando se trata de uma notcia ou reportagem em

    que se pressupe inteno sria.

    O trmo verdade, quando usado com referncia a obras de arte ou de

    fico, tem significado diverso. Designa com freqncia qualquer coisa

    como a genuinidade, sinceridade ou autenticidade (trmos que em geral

    visam atitude subjetiva do autor); ou a verossimilhana, isto , na

    expresso de Aristteles, no a adequao quilo que aconteceu, mas

    quilo que poderia ter acontecido; ou a coerncia interna no que tange

    ao mundo imaginrio das personagens e situaes mimticas; ou

    mesmo a viso profunda de ordem filosfica, psicolgica ou

    sociolgica da realidade.

    At neste ltimo caso, porm, no se pode falar de juzos no

    sentido preciso. Seria incorreto aplicar aos enunciados fictcios critrios

    de veracidade cognoscitiva. Sentimos que a obra de Kafka nos

    apresenta certa viso profunda da realidade humana, sem que,

    contudo, seja possvel verificar a maioria dos enunciados individuais

    ou todos les em conjunto, quer em trmos empricos, quer puramente

    lgicos. Na obra de Knut Hamsun h uma viso profunda inteiramente

    diversa da realidade, mas seria impossvel chamar a maioria dos

    enunciados ou o conjunto dles de falsos. Quando chamamos falsos

    um romance trivial ou uma fita medocre, fazemo-lo, por exemplo,

    porque percebemos que nles se aplicam padres do conto de

    carochinha a situaes que pretendem representar a realidade

    cotidiana. Os mesmos padres que funcionam muito bem no mundo

    mgico-demonaco do conto de fadas revelam-se falsos e caricatos

    quando aplicados representao do universo profano da nossa

    sociedade atual (a no ser que esta prpria aplicao se torne temtica).

    Falso seria tambm um prdio com portal e trio de mrmore que

    encobrissem apartamentos miserveis. esta incoerncia que falsa.

    Mas ningum pensaria em chamar de falso um autntico conto de

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    fadas, apesar de o seu mundo imaginrio corresponder muito menos

    realidade emprica do que o de qualquer romance de entretenimento.

    Ainda assim a estrutura das oraes ficcionais parece ser em geral a

    mesma daquela de outros textos. Parece tratar-se de juzos. O que os

    diferencia dos verdadeiros a inteno diversa isto , a inteno que

    se dtm nas objectualidades puramente intencionais (e nos

    significados mais profundos por elas sugeridos), sem atravess-las,

    diretamente, em direo a quaisquer objetos autnomos, como ocorre,

    no nosso exemplo, na viso do mo real. essa inteno diversa

    no necessriamente visvel na estrutura dos enunciados que

    transforma as oraes de uma obra ficcional em quase-juzos3. A sua

    inteno no sria4.

    O autor convida o leitor a deter o raio de inteno na imagemde Mrio,

    sem buscar correspondncias exatas com qualquer pessoa real dste

    mesmo nome5.

    Todavia, os textos ficcionais, apesar de seus enunciados costumarem

    ostentar o hbito exterior de juzos, revelam nitidamente a inteno

    ficcional, mesmo quando esta inteno no objetivada na capa do

    livro, atravs da indicao romance, novela etc. Ainda que a obra

    no se distinga pela energia expressiva da linguagem ou por qualquer

    valor especfico, notar-se- o esfro de particularizar, concretizar e

    individualizar os contextos objectuais, mediante a preparao de

    aspectos esquematizados e uma multiplicidade de pormenores

    circunstanciais, que visam a dar aparncia real situao imaginria.

    paradoxalmente esta intensa aparncia de realidade que revela a

    inteno ficcional ou mimtica. Graas ao vigor dos detalhes,

    veracidade de dados insignificantes, coerncia interna, lgica das

    motivaes, causalidade dos eventos etc.,

    3. A expresso usada por Roman Ingarden em Das literarische

    Kunstwerk.J.-P. Sartre, em LImagination, formula: Il y a l un type daffirmation,

    un type dexistence intermdiaire entre les assertions fausses du rve et les certitudesde la veille: et ce type dexistence est videmment celui des crations imaginaires.

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    Faire de celles-ci des actes judicatifs, cest leur donner trop (p.137).

    4. Quando da publicao de seus Buddenbrooks,Th. Mann foi violentamente atacado

    devido ao retratamenso de pessoas e aspectos da cidade de Lbeck. Tais incidentes

    so freqentes na histria da literatura. Num ensaio sbre o caso (Bilse und ich), Th.

    Mann declarou: Quando fao de uma coisa uma orao que tem que ver esta coisacom a orao? O fato que mesmo uma cidade realmente existente torna-se fico no

    contexto fictcio, j que representa determinado papel no mundo imaginrio. Isso se

    refere tambm s imagens de filmes tomadas no ambiente real correspondente ao

    enrdo: o ambiente, embora em si real, situa-se agora num espao fictcio e torna-se

    igualmente fictcio. Um enunciado como dois e dois so quatro sempre verdico;

    mas quando preferido por uma personagem, com inteno sria, esta inteno sria ,

    por sua vez, fictcia; e quando ocorre na prpria narrao, a inteno fictcia

    transforma o enunciado em quase-juzo, embora em si certo. Quando, em Lio, de

    Ionesco, o professor e a aluna se debatem com multiplicaes astronmicas, ningum

    pensaria em verificar os resultados. A funo dos juzos aritmticos, no contexto

    fictcio, no esta.

    5. A conscincia do carter ficcional no tem sido sempre ntida. Wolfgang

    Kayser (em:Die Wahrheit der DlchterA verdade dos Poetas)demonstra que no

    sculo XVI os leitores de romance no tinham a noo ntida de que os enunciados

    respectivos eram fictcios.

    tende a constituir-se a verossimilhana do mundo imaginrio.

    Mesmo sem alguns dstes elementos o texto pode alcanar tamanha

    fra de convico que at estrias fantsticas se impem como quase-

    reais. Todavia, a aparncia da realidade no renega o seu carter de

    aparncia. No se produzir, na verdadeira fico, a decepo da

    mentira ou da fraude. Trata-se de um verdadeiro ser aparencial

    (Julian Matias), baseado na conivncia entre autor e leitor. O leitor,

    parceiro da emprsa ldica, entra no jgo e participa da no -seriedade

    dos quase-juzos e do fazer de conta.

    Uma orao como esta: Enquanto falava, a mulherzinha deitava sbre

    o marechal os grande olhos que despediam chispas. Floriano parecia

    incomodado com aqule chamejar; era como se temesse derreter-se ao

    calor daquele olhar. . . (Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo

    Quaresma)revela de imediato, apesar do contexto histrico, a inteno

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    ficcional. O autor parece convidar o leitor a permanecer na camada

    imaginria que se sobrepe e encobre a realidade histrica.

    3) O problema epistemolgico (a personagem). porm a

    personagem que com mais nitidez torna patente a fico, e atravs dela

    a camada imaginria se adensa e se cristaliza. Isto pouco evidente na

    poesia lrica, em que no parece haver personagem. Todavia, expresso

    ou no, costuma manifestar-se no poema um Eu lrico que no deve

    ser confundido com o Eu emprico do autor. Sem dvida, houve no

    decurso da histria grandes variaes neste campo. No se devem

    aplicar os mesmos padres e conceitos a poemas da Grcia antiga, a

    poemas romnticos e a poemas atuais. Parece, contudo, que se pode

    negar em geral a opinio de que nas oraes de poemas lricos se trata

    de juzos, de enunciados existenciais acrca de determinada realidade

    psquica do poeta ou qualquer realidade exterior a le. precisamente

    no poema que so mobilizadas tdas as virtualidades expressivas da

    lngua e toda a energia imaginativa.

    No caso de versos como stes:

    A chuva de outono molha

    O pso da minha altura

    E tal rosa que desfolha

    Tenho ptalas na figura 6

    seria absurdo falar de juzos, mesmo subjetivos, referentes,

    passo a passo, a estados psquicos reais da poetisa 7. perfeitamente

    possvel que haja referncia indireta a vivncias reais; estas, porm,

    foram transfiguradas pela energia da imaginao e da linguagem

    potica que visam a uma expresso mais verdadeira, mais definitiva e

    mais absoluta do que outros textos.

    O poema no uma foto e nem sequer um retrato artstico de

    estados psquicos; exprime uma viso estilizada, altamente simblica,

    de certas experincias.

    Mesmo em versos aparentemente confessionais como stes de Safo: A

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    lua se ps e as Pliades, pelo meio

    anda a noite, esvai-se a juventude, mas eu estou deitada, szinha

    no se deve confundir o Eu lrico dentro do poema com o Eu emprico

    fora dle. ste ltimo se desdobra e objetiva, atravs das categorias

    estticas, constituindo-se na personagem universal da mulher ansiosa

    por amor. At um poeta como Goethe que, na sua fase romntica,

    considerava a poesia a mais poderosa expresso da verdade, como

    revelao da intimidade, chegou, j aos vinte anos, concluso de

    Fernando Pessoa (o poeta finge mesmo a dor que deveras sente), porque

    o poema , antes de tudo, Gestalt, forma viva, beleza. Variando

    concepes de Plato, declara que a beleza no luz e no noite;

    cre-

    6Lupe Cotrlm Garaude, Raiz Comum.

    7. Tal , contudo, a opinio de Kaethe Hamburger emDie Logik der Dichrung (A

    Lgica da Fico); segundo a autora, os enunciados de um poema lrico seriam

    juzos existenciais, juzos subjetivos, mas juzos.

    psculo; resultado da verdade e no-verdade. Coisa

    intermediria. So quase os trmos com que Sartre descreve a fico.

    Contudo, a personagem do poema lrico no se define nitidamente.

    Antes de tudo pelo fato de o Eu lrico manifestar-se apenas no

    monlogo, fundido com o mundo (A chuva de outono molha / O pso

    da minha altura), de modo que no adquire contornos marcantes;

    depois, porque exprime em geral apenas estados enquanto a

    personagem se define com nitidez smente na distenso temporal do

    evento ou da ao.

    Como indicadora mais manifesta da fico por isso bem mais

    marcante a funo da personagem na literatura narrativa (pica). H

    numerosos romances que se iniciam com a descrio de um ambiente

    ou paisagem. Como tal poderiam possivelmente constar de uma carta,

    um dirio, uma obra histrica. geralmente com o surgir de um ser

    humano que se declara o carter fictcio (ou no-fictcio) do texto, por

    resultar da a totalidade de uma situao concreta em que o

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    acrscimo de qualquer detalhe pode revelar a elaborao imaginria. No

    nosso exemplo de Mrio seria possvel que as oraes Mrio estava de

    pijama. ele batia uma carta na mquina de escrever constassem de um

    relato policial que prosseguisse assim: . . . quando entrou o ladro. . .

    Se o texto, porm, prosseguir assim: Sem dvida ainda iria alcan-la.

    Afinal, Lcia decerto no podia partir depois-de-amanh, sabemos que

    se trata de fico. Notamos, talvez sem reconhecer as causas, que Mrio

    no urna pessoa e sim uma personagem. Certas palavras sem

    importncia aparente nos colocam dentro da conscincia de Mrio,

    fazem-nos participar de sua intimidade: sem dvida, afinal,

    decerto, depois-de-amanh. Tais palavras indicam que se verificou

    uma espcie de identificao com Mrio, de modo que o leitor levado,

    sutilmente, a viver a experincia dle. Mais evidentes seriam verbos

    definidores de processos psquicos, como pensava, duvidava,

    receava, os quais, quando referidos experincia temporalmente

    determinada de uma pessoa, no podem, por razes epistemolgicas,

    surgir num escrito histrico ou psicolgico. Numa obra histrica pode

    constar que Napoleo acreditava poder conquistar a Rssia; mas no

    que, naquele momento, cogitava desta possibilidade. S com o surgir

    da personagem tornam-se possveis oraes categorialmente diversas de

    qualquer enunciado em situaes reais ou em textos no-fictcios: Bem

    cedo ela comeava a enfeitar a rvore. Amanh era Natal (Alice Berend,

    Os Noivos de Babette Bomberling);... and of course he was coming to

    her party to-night (Virgnia Woolf, Mrs. Dallowcry); A revolta veio

    acabar da a dias (Lima Barreto, Triste Fim de Policarpo Quaresma);

    Da a pouco vieram chegando da direita muitas caleas. . . (Machado

    de Assis, Quincas Barba).

    altamente improvvel que um historiador recorra jamais a tais

    oraes. Advrbios de tempo (e em menor grau de lugar) como

    amanh, hoje, ontem, da a pouco, da a dias, aqui, ali, tm

    sentido smente a partir do ponto zero do sistema de coordenadas

    espcio-temporal de quem est falando ou pensando. Se surgem num

    escrito, so possveis smente a partir do narrador fictcio, ou do foco

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    narrativo colocado dentro da personagem, ou onisciente, ou de algum

    modo identificado com ela. O amanh do primeiro exemplo citado pe

    o foco dentro da personagem, cujo pensamento expresso atravs do

    estilo indireto livre:

    no caso, os pensamentos so reproduzidos a partir da perspectiva da

    prpria personagem, mas a manuteno da terceira pessoa e do

    imperfeito finge o relato impessoal do narrador. Seriam possveis

    outros recursos:

    Ela pensava: Amanh ser Natal; Ela pensava que no dia seguinte

    seriaNatal; mas nenhum como o indicado (alis j usado na literatura

    latina, na literatura francesa desde o sculo XII e com bem mais

    freqncia no romance do sculo XIX, desde Jane Austen e Flaubert)

    revela o carter categorialmente singular do discurso fictcio. Em

    nenhuma situao real o amanh poderia ser ligado ao era; e o

    historiador teria de dizer no dia seguinte j que no pode identificar-se

    com a perspectiva de uma pessoa, sob pena de transform-la em

    personagem.

    Embora tais formas no surjam nem na poesia lrica, nem na

    dramaturgia, e no necessriamente na literatura narrativa, o fenmeno

    como tal extremamente revelador para todos os tipos de fico, j que

    a anlise dste sintoma da fico indica, ao que parece, estruturas

    inerentes a todos os textos fictcios, mesmo nos casos em que o sintoma

    no se manifesta. O sintoma lingstico evidentemente s pode surgir

    no gnero pico (narrativo), porque nle que o narrador em geral finge

    distinguir-se das personagens, ao passo que no gnero lrico e

    dramtico, ou est identificado com o Eu do monlogo ou,

    aparentemente, ausente do mundo dramtico das personagens. Assim,

    smente no. gnero narrativo podem surgir formas de discurso

    ambguas, projetadas ao mesmo tempo de duas perspectivas: a da

    personagem e a do narrador fictcio. Mas a estrutura bsica do discurso

    fictcio parece ser a mesma tambm nos outros gneros.

    O sintoma lingstico, bvio nos exemplos apresentados, revela,

    precisamente atravs da personagem, que o narrar pico

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    estruturalmente de outra ordem que o enunciar do historiador, do

    correspondente de um jornal ou de outros autores de enunciados reais.

    A diferena fundamental que o historiador se situa, como enunciador

    real das oraes, no ponto zero do sistema de coordenadas espcio-

    temporal, por exemplo, no ano de 1963 (e na cidade de So Paulo),

    projetando a partir dste ponto zero, atravs do pretrito plenamente

    real, o mundo do passado histrico igualmente real de que le,

    naturalmente, no faz parte. Ao sujeito real (emprico) dos enunciados

    corresponde a realidade dos objetos projetados pelos enunciados (e s

    neste contexto possvel falar de mentira, fraude, rro etc.). Na fico

    narrativa desaparece o enunciador real. Constitui-se um narrador

    fictcio que passa a fazer parte do mundo narrado, identificando-se por

    vzes (ou sempre) com uma ou outra das personagens, ou tornando-se

    onisciente etc. Nota-se tambm que o pretrito perde a sua funo real

    (histrica) de pretrito, j que o leitor, junto com o narrador fictcio,

    presencia os eventos. O pretrito mantido com a funo do era uma

    vez, mero substrato fictcio da narrao, o qual, contudo, preserva a

    sua funo de posio existencial, de grande vigor individualizador, e

    continua fingindo a distncia pica de quem narra coisas h muito

    acontecidas. A modificao do discurso indica que na fico (e isso se

    refere tambm poesia e dramaturgia) no h um narrador real em face

    de um campo de sres autnomos. ste campo existe smente graas

    ao ato narrativo (ou ao enunciar lrico, dramtico). O narrador fictcio

    no sujeito real de oraes, como o historiador ou o qumico;

    desdobra-se imaginriamente e torna-se manipulador da funo

    narrativa (dramtica, lrica), como o pintor manipula o pincel e a cr;

    no narra depessoas, eventos ou estados; narra pessoas (personagens),

    eventos e estados. E isso verdade mesmo no caso de um romance

    histrico 8. As pessoas (histricas), ao se tornarem ponto zero de

    orientao, ou ao serem focalizadas pelo narrador onisciente, passam a

    ser personagens; deixam de ser objetos e transformam-se em sujeitos,

    sres que sabem dizer eu.

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    8. Kaethe Hamburger, na obra citada, estuda agudamente os

    vrios problemas envolvidos.

    A rainha se lembrava neste momento das palavras que dissera

    ao rei tal orao no pode ocorrer no, escrito de um historiador, j

    que ste, nos seus juzos, smente pode referirr-se a objetos,

    apreendendo-os exclusivamente de fora, mesmo nos casos da mais

    sutil compreenso psicolgica, baseada em documentos e inferncias.

    Smente o criador de Napoleo, isto , o romancista que o narra, em

    vez de narrar dle, lhe conhece a intimidade de dentro.

    A personagem nos vrios gneros literrios e no espetculo

    teatral e cinematogrfico.

    Em trmos lgicos e ontolgicos, a fico define-se nitidamente

    como tal, independentemente das personagens. Todavia, o critrio

    revelador mais bvio o epistemolgico, atravs da personagem, merc

    da qual se patenteia s vzes mesmo por meio de um discurso

    especificamente fictcio a estrutura peculiar da literatura imaginria.

    Razes mais intimamente poetolgicas mostram que a personagem

    realmente constitui a fico.

    A descrio de uma paisagem, de um animal ou de objetos quaisquer

    pode resultar, talvez, em excelente prosa de arte. Mas esta excelncia

    resulta em fico smente quando a paisagem ou o animal (como no

    poema A pantera, de Rilke) se animam e se humanizam atravs da

    imaginao pessoal. No caso da poesia lrica, atravs da fuso do Eu, do

    foco lrico, com o objeto. No fundo, isso que Lessing pretende dizer no

    seu Laocoonte ao criticar um poema descritivo por lhe faltar o que

    chama segundo a terminologia do sculo XVIII a iluso

    (Taeuschung), ou seja, a impresso da presena real do objeto. Tal

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    iluso smente possvel pela colocao do leitor dentro do mundo

    imaginrio, merc do foco personal que deve animar o poema e que

    lhe d o carter fictcio. No poema isto conseguido, antes de tudo,

    atravs da fra expressiva da linguagem, que transforma a mera

    descrio em vivncia duma personagem que erradamente se costuma

    confundir com o autor emprico. Mas, enquanto a poesia, na sua forma

    mais pura, se atm vivncia de um estado, o gnero narrativo (e

    dramtico) transforma o estado em processo, em distenso temporal.

    Smente assim se define a personagem com nitidez, na durao de

    estados sucessivos. A narrao mesmo a no-fictcia , para no se

    tornar em mera descrio ou em relato, exige, portanto, que no haja

    ausncias demasiado prolongadas do elemento humano (ste,

    naturalmente, pode ser substitudo por outros sres, quando

    antropomorfizados) porque o homem o nico ente que no se situa

    smente no tempo, mas que essencialmente tempo 9.

    Se Lessing recomenda, no ensaio acima citado, a dissoluo da

    descrio em narrao porque a palavra, recurso sucessivo, no pode

    apreender adequad amente a simultaneidade de um objeto,

    ambiente ou paisagem (que a nossa viso apreende de um s relance), o

    que no fundo exige a presena de personagens que atuam. Homero,

    em vez de descrever o traje de Agamenon, narra como o rei se veste, e

    em vez de descrever o seu cetro, narra-lhe a histria desde o momento

    em que Vulcano o fz. Assim, o leitor participa dos eventos em vez de se

    perder numa descrio fria que nunca lhe dar a imagem da coisa.

    Antes de abordar, mesmo marginalmente, a fico dramtica, convm

    ressaltar que verbos como dizer, responder etc., desempenham na

    fico em geral funo semelhante aos que revelam processos psquicos

    (recear, pensar, duvidar), particularmente quando

    9. Pode-se escrever e j se escreveram contos sbre baratas. Mas h de

    se tratar, ao menos, de uma baratinha. O diminutivo afetuoso desde logo humaniza

    o bicho. O mais terrvel na Metamorfose de Kafka a lenta desumanizao doinseto. As fbulas e os desenhos cinematogrficos baseiam-se nesta humanizao. O

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    homem, afinal, s pelo homem se interessa e s com ele pode identificar-se realmente.

    acompanham uma fala em voz direta, referida a momentostemporais determinados (determinados no tempo irreal da fico). Tais

    verbos indicam em geral a presena do foco narrativo no campo fictcio.

    Ademais, personagens, ao falarem, revelam-se de um modo mais

    completo do que as pessoas reais, mesmo quando mentem ou procuram

    disfarar a sua opinio verdadeira. O prprio disfarce costuma

    patentear o cunho de disfarce. Esta franqueza quase total da fala e

    essa transparncia do prprio disfarce (pense-se no aparte teatral) sondices evidentes da oniscincia ficcional.

    A funo narrativa, que no textodramtico se mantm humildemente

    nas rubricas ( nelas que se localiza o foco), extingue-se totalmente no

    palco, o qual, com os atres e cenrios, intervm para assumi-la.

    Desaparece o sujeito fictcio dos enunciados pelo menos na aparncia

    , visto as prprias personagens se manifestarem diretamente atravs

    do dilogo, de modo que mesmo o mais ocasional disse le,respondeu ela do narrador se torna suprfluo. Agora, porm, estamos

    no domnio de uma outra arte. No so mais as palavras que

    constituem as personagens e seu ambiente. So as personagens (e o

    mundo fictcioda cena) que absorveram as palavras do texto e passa a

    constitu-las, tornando-se a fonte delas exatamente como ocorre na

    realidade. Contudo, o mundo mediado no palco pelos atres e cenrios

    de objectualidade puramente intencionais. Estas no tm refernciaexata a qualquer realidade, determinada e adquirem tamanha

    densidade que encobrem por inteiro a realidade histrica a que,

    possivelmente, dizem respeito. A fico ou mimesis reveste-se de tal

    fra que se substi tu ou superpe realidade. talvez devido velha

    teoria da iluso da realidade supostamente criada pela cena, devido,

    portanto, ao altssimo vigor da fico cnica, que no se atribui ao

    teatro o qualificativo de fico.

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    Contudo, o dilogo tem na dramaturgia a mesma funo do

    amanh era Natal.Compe-se, para o pblico, de quase-juzos,

    embora os atres se comportem como se se tratasse de juzos, j que as

    personagens levam os enunciados a srio. Embora seja apresentado ao

    pblico em forma semelhante s condies reais, o dilogo concebido

    de dentrodas personagens, tornando-as transparentes em alto grau.

    verdade que, no teatro moderno, esta conveno da franqueza dialgica

    ficou abalada ao ponto de se tornar temtica (Tchecov, Pirandello,

    Th.Wilder, Ionesco, Beckett etc.). Temos aqui uma das razes para a

    mobilizao de recursos picos, narrativos. Quando Brecht pede ao

    ator que no se identifique com a personagem, para poder critic-la,

    pe um foco narrativo fora dela, representado pelo ator que assume o

    papel de narrador fictcio. Isso indica claramente que a identificao do

    ator com a personagem significa que o foco se encontra dentro dela: a

    aparente ausncia do narrador fictcio, no palco clssico, explica-se pelo

    simples fato de que ele se solidarizou ou identificou totalmente com

    uma ou vrias personagens, de tal modo que j no pode ser discernido

    como foco distinto. por isso tambm que, o palco dssico depende

    inteiramente do ator-personagem, porque no pode haver foco fora dle.

    O prprio cenrio permanece papelo pintado at surgir o foco fictcio

    da personagem que, de imediato, projeta em trno de si o espao e

    tempo irreais e transforma, como por um golpe de magia, o papelo em

    paisagem, templo ou salo.

    No que se refere ao cinema, deve ser concebido como de carter pico-

    dramtico; ao que parece, mais pico do que dramtico. verdade que

    o mundo das objectualidades puramente intencionais se apresenta

    neste caso, semelhana do teatro, atravs de imagens, como

    espetculo percebido (espetculo visto e ouvido; na verdade quase-

    visto e quase-ouvido; pois o mundo imaginrio no exatamente objeto

    de percepo). Mas a cmara, atravs de seu movimento, exerce no

    cinema uma funo nitidamente narrativa, inexistente no teatro.

    Focaliza, comenta, recorta, aproxima, expe, descreve. O close up, o

    travelling, o panoranomizar so recursos tipicamente narrativos.

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    Em tdas as artes literrias e nas que exprimem, narram ou

    representam um estado ou estria, a personagem realmente constitui

    a fico. Contudo, no teatro a personagem no s constitui a fico mas

    funda, nticamente, o prprio espetculo (atravs do ator). que o

    teatro integralmente fico, ao passo que o cinema e a literatura

    podem servir, atravs das imagens e palavras, a outros fins (documento,

    cincia, jornal). Isso possvel porque no cinema e na literatura so as

    imagens e as palavras que fundam as objectualidades puramente

    intencionais, no as personagens. precisamente por isso que no

    prprio cinema e literatura ficcionais as personagens, embora realmente

    constituam a fico, e a evidenciem de forma marcante, podem ser

    dispensadas por certo tempo, o que no possvel no teatro. O palco

    no pode permanecer vazio.

    stes momentos realam o cunho narrativo do cinema. A imagem (como

    a palavra) tem a possibili dad de descrever e animar ambientes,

    paisagens, objetos. Estes sem personagem podem mesmo

    representar fatres de grande importncia. A fita e o romance podem

    fazer viver uma cidade como tal. Ademais, no teatro uma s

    personagem presente no palco no pode manter-se calada; tem de

    proferir um monlogo.

    Uma personagem muda no pode permanecer szinha no palco. J no

    cinema ou romance, a personagem pode permanecer calada durante

    bastante tempo, porque as palavras ou imagens do narrador ou da

    cmara narradora se encarregam de comunicar-nos os seus

    pensamentos, ou, simplesmente, os seus afazeres, o seu passeio

    solitrio etc. o homem centro do universo. O uso de recursos picos

    o cro, o palco simultneo etc., so recursos picos indica que o

    homem no se concebe em posio to exclusiva.

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    A pessoa e a personagem.

    A diferena profunda entre a realidade e as objectualidades

    puramente intencionais imaginrias ou no, de um escrito, quadro,

    foto, apresentao teatral etc. reside no fato de que as ltimas nunca

    alcanam a determinao completa da primeira. As pessoas reais, assim

    como todos os objetos reais, so totalmente determinados

    apresentando-se como unidades concretas, integradas de uma

    infinidade de predicados, dos quais smente alguns podem ser

    colhidos e retirados por meio de operaes cognoscitivas especiais.

    Tais operaes so sempre finitas, no podendo por isso nunca esgotar

    a multiplicidade infinita das determinaes do ser real, individual, que

    inefvel. Isso se refere naturalmente em particular a sres humanos,

    sres psicofsicos, sres espirituais, que se desenvolvem e atuam. A

    nossa viso da realidade em geral, e em particular dos sres humanos

    individuais, extremamente fragmentria e limitada.

    De certa forma, as oraes de um texto projetam um mundo bem mais

    fragmentrio do que a nossa viso j fragmentria da realidade. Uma

    expresso nominal como mesa projeta o objeto na sua unidade

    concreta, mas isso apenas formaliter, como esquema que contm

    apenas potencialmente uma infinidade de determinaes. Atravs das

    funes significativas da orao posso atribuir (ou retirar) a essa

    unidade uma ou outra determinao (a mesa azul, alta, redonda, bem

    lustrada); mas por mais que a descreva ou lance mo de aspectos

    especialmente preparados, capazes de suscitar o preenchimento

    imaginrio do leitor (a mesa era um daqueles mveis tradicionais em

    trno do qual, antes do surgir da televiso, a famflia costumava reunir-

    se para o jantar), as objectualidades puramente intencionais

    constitudas por oraes sempre apresentaro vastas regies

    indeterminadas, porque o nmero das oraes finito. Assim

    psmiagemde um romance (e ainda mais de um poema ou de uma pea

    teatral) eum configurao esquemtica, .tanto no sentido fsico como

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    psquico, emboraformaliterseja projetada como um indivduo real,

    totalmente determinado.

    ste fato das zonas indeterminadas do texto possibilita at certo ponto

    a vida da obra literria, a variedade das concretizaes, assim como a

    funo do diretor de teatro, chamado a preencher as mltiplas

    indeterminaes de um texto dramtico. Isso, porm, se deve variedade

    dos leitores, atravs dos tempos, no variabilidade da obra, cujas

    personagens no rnutabilidade e a infinitude das de de sereshumanos

    reais. As concretizaes podem variar, mas a obra como tal no muda.

    Comparada ao texto, a personagem cnica tem a grande vantagem de

    mostrar os aspectos esquematizados pelas oraes em plena concreo

    e, nas fases projetadas pelo discurso literrio descontnuo, em plena

    continuidade. Isso comunica representao a sua fra de presena

    existencial. A existncia se d smente percepo (o fato de que o

    mundo imaginrio tambm neste caso no prpriamente percebido

    quase negligencivel). Isso naturalmente no quer dizer que a

    representao no tenha zonas mdeterminadas caractersticas de tdas

    as objectualidades puramente intencionais. Os atres, stes sim, so

    reais e totalmente determinados, mas no os sres imaginrios de que

    apresentam apenas alguns aspectos visuais e auditivos e, atravs dles,

    aspectos psquicos e espirituais, O fato que a pea e sua

    representao mostram em geral muito menos aspectos das

    personagens do que os romances, mas stes poucos aspectos aparecem

    de modo sensvel e contnuo, dando s personagens teatrais um poder

    extraordinrio. ste poder no diminudo pelo fato de no teatro

    clssico (por exemplo, Racine) as personagens terem o carter quase de

    silhuetas, porque se confrontam com poucas personagens, aparecem

    em poucas situaes e se esgotam quase totalmente nos aspectos

    proporcionados pela ao especfica da pea, de modo que seria difcil

    imagin-las fora do contexto desta ao peculiar. J nas peas de

    cunho mais aberto pico pense-se em diversas obras de

    Shakespeare as figuras adquirem maior plasticidade, podendo ser

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    imaginadas fora da pea. Tais diferenas, porm, no implicam um

    juzo de valor. Trata-se de outros estilos.

    O curioso que o leitor ou espectador no nota as zonas

    indeterminadas (que tambm no filme so mltiplas). Antes de tudo

    porque se atm ao que positivamente dado e que, precisamente por

    isso, encobre as zonas indeterminadas; depois, porque tende a atualizar

    certos esquemas preparados; finalmente, porque costuma ultrapassar

    o que dado no texto, embora geralmente guiado por le.

    De qualquer modo, o que resulta que precisamente a limitao da

    obra ficcional a sua maior conquista. Precisamente porque o nmero

    das oraes necessriamente limitado (enquanto as zonas

    indeterminadas passam quase despercebidas), as personagens

    adquirem um cunho definido e definitivo que a observao das pessoas

    reais, e mesmo o convvio com elas, dificilmente nos pode proporcionar

    a tal ponto. Precisamente porque se trata de oraes e no de

    realidades, o autor pode realar aspectos essenciais pela seleo dos

    aspectos que apresenta, dando s personagens um carter mais ntido

    do que a observao da realidade costuma a sugerir levando-as,

    ademais, atravs de situaes mais decisivas e significativas do que

    costuma ocorrer na vida. Precisamente pela limitao das oraes, as

    personagens tm maior coerncia do que as pessoas reais (e mesmo

    quando incoerentes mostram pelo menos nisso coerncia); maior

    exemplaridade (mesmo quando banais; pense-se na banalidade

    exemplar de certas personagens de Tchecov ou Ionesco); maior

    significao; e, paradoxalmente, tambm maior riqueza no por

    serem mais ricas do que as pessoas reais, e sim em virtude da

    concentrao, seleo, densidade e estilizao do contexto imaginrio,

    que rene

    os fios dispersos e esfarrapados da realidade num padro firme e

    consistente. Antes de tudo, porm, a fico nico lugar em trmos

    epistemolgicos em que os sres humanos se tornam transparentes

    nossa viso, por se tratar de seres puramente intencionais a sres

    autnomos; de sres totalmente projetados por oraes. E isso a tal

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    ponto que os grandes autores, levando a fico fictciamente s suas

    ltimas conseqncias, refazem o mistrio do ser humano, atravs da

    apresentao de aspectos que produzem certa opalizao e iridescncia,

    e reconstituem, em certa medida, a opacidade da pessoa real.

    precisamente o modo pelo qai p autor dirige o nosso olhar, atravs de

    aspectos selecionados de certas situaes de aparncia fsica e do

    comportamento sintomticos de certos estados ou processos

    psquicos ou diretamente atravs de aspectos da intimidade das

    personagens tudo isso de tal modo que tambm as zonas

    indeterminadas comeam a funcionar precisamente atravs de

    todos sses e outros recursos que o autor torna a personagem at certo

    ponto de nvo inesgotvel e insondvel.

    A valorizao esttica

    A exposio do problema da fico foi numerosas vzes

    ultrapassada por descries que de fato j introduziam certasvalorizaes estticas. Quando, por exemplo, foi afirmado que os

    grandes autores tendem a refazer o mistrio humano, o campo da

    lgica ficcional, assim como os aspectos puramente epistemolgicos e

    ontolgicos, foram abandonados em favor de consideraes estticas; a

    mesma falta de rigor se verificou na abordagem da vibrao verbal da

    poesia do problema da verdade ficcional (que no fundo de ordem

    esttica) e da questo dos aspectos esquemticos especialmentepreparados para suscitar preenchimentos determinados do leitor. A

    preparao de tais aspectos depende em alto grau da escolha da palavra

    justa, insubstituvel da sonoridade especfica dos fonemas, das

    conotaes das palavras, da carga de suas zonas semnticas marginais,

    do jgo metafrico, do estilo ou seja, da organizao dos contextos de

    unidades significativas e de muitos outros elementos de carter

    esttico. stes momentos inerentes s camsdsas exteriores da obraliterria esto, naturalmente, relacionados com a necessidade de

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    concretizar e enriquee a camada das objectualidades puramente

    intencionais, e de dar a ste piano imaginrio certa transparncia ou

    iridescncia em direo a significados mais profundos, em que se

    revela o sentido, a idia da obra. No pocesso da criao stes planos

    mais profundos certamente condicionaram, de modo consciente ou

    inconsciente, o rigor seletivo aplicado s camadas mais externas

    (embora num poema todo o processo criavo possa iniciar-se a partir de

    uma sequncia rtmica de palavras).

    A dificuldade de abordar o fenmeno da fico sem recorrer a

    valorizaes estticas indica que ste problema e o do nvel esttico no

    mantm relaes de indiferena. Sem dvida, h fico de baixo nvel

    esttico, de grande pobreza imaginativa (clichs), com personagens sem

    vida e situaes sem significado profundo, tudo isso relacionado com a

    inexpressividade completa dos contextos verbais (que por vzes,

    contudo, so afetados e pretensiosos, sem economia e sem funo no

    todo, sem que sua exagerada riqueza corresponda qualquer coisa na

    camada imaginria e nos planos mais profundos). Todavia a criao de

    um vigoroso mundo imaginrio, de personagens vivas situaes

    verdadeiras, j em si de alto valor esttico, exige em geral a mobilizao

    de todos os recursos da lngua, assim como de muito outros elementos

    da composio literria, tanto no plano horizontal da organiza das

    partes sucessivas, como no vertical das camadas; enfim, de todos os

    rneios tendem a constituir a obra-de-arte literria. De outro lado, a

    mobilizao plena dsses recursos dar obra, mesmo a despeito da

    inteno possivelmente cientfica ou filosfica, um carter seno

    imaginrio, ao menos imaginativo, que a aproximar at certo ponto

    da fico. Exemplos caractersticos seriam os dilogos de Plato (que,

    em parte, podem ser lidos como comdias), certos escritos de

    Kierkegaard, Pascal, Nietzsche, a obra de Schopenhauer (cuja vontade

    metafsica se torna quase personagem de uma epopia) etc. Deve-se

    admitir, na delimitao do que seja literatura no sentido restrito,

    amplas zonas de transioem que se situariam obras de grande poder e

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    preciso verbais, na medida em que se ligam agudeza da observao,

    perspiccia psicolgica e riqueza de idias.

    Na descrio da estrutura da obra literria em sentido lato (pp. 2-3)

    verificou-se que, em essncia, se trata da associao de camadas mais

    sensveis (das quais a nica realmente foi posta de lado) e de planos

    mais profundos projetados por aquelas. Esta estrutura

    fundamentalmente a de tdas as objetivaes espirituais (todos os

    produtos humanos) e, em especial, de tdas as obras de arte. Em tdas

    as objetivaes espirituais associam-se a uma camada material,

    sensvel, real, uma ou vrias camadas irreais, no apreendidas

    diretamente pelos sentidos, mas mediadas pelos exteriores.

    Entretanto, graas ao material em jgo no caso de uma sinfonia, de um

    quadro ou de uma apresentao teatral, evidencia-se a sua inteno

    esttica, mesmo que no se tenha cristalizado em relevante obra de

    arte. No. caso da literatura, bem ao contrrio, o material em jgo a

    lngua tanto pode servir para fins tericos ou prticos como para fins

    estticos. a isso que Hegel se refere quando chama a literatura (as

    belas letras) aquela arte peculiar em que a arte... dissolver-se...,

    passando a ser ponto de transio para a prosa do pensamento

    cientfico. Principalmente neste campo, portanto, surge o problema de

    diferenciar entre prosa comum e arte.

    A diferena entre um documento literrio qualquer e a obra-de-arte

    literria reside, antes de tudo, no valor diverso da camada quase-

    sensvel das palavras (sensvel quando o texto lido a viva voz). ste

    plano quase-sensvel das palavras e de seus contextos maiores tem na

    literatura em sentido lato funo puramente instrumental: a de

    projetar, como vimos, objectualidades puramente intencionais que, por

    sua vez, sem serem notadas como tais, se referem aos objetos visados.

    O que importa so os significados que se identificam com os objetos

    visados, no os significantes. stes ltimos ai palavras se omitem

    por completo (da mesma Forma que as objectualidades puramente

    intencionais); podem ser substitudos por, quaisquer outros que

    constituam os mesmos significados. A relao entre a camada quase-

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    sensvel e a camada espiritual , portanto, inteiramente convencional.

    A inteno do leitor passa diretamente ao sentido e aos objetos

    visados.

    Na obra-de-arte literria, esta relao deixa de ser convencional,

    apresenta necessidade e grande firmeza e consistncia. Em casos

    extremos (particularmente na poesia), a mais ligeira modificao da

    camada exterior (e na poesia concretista, mesmo da distribuio dos

    sinais tipogrficos) destri o sentido de tda a obra, devido ao valor

    expressivo das palavras, agora usadas como se fssem relaes de cres

    ou sons na pintura ou msica. A camada verbal adquire, pois, valor

    prprio e passa a fazer parte integral da obra. Isso vale particularmente

    para contextos maiores, que passam a constituir o ritmo, o estilo, o

    jgo das repeties e associaes e que se tornam momentos

    inseparveis do todo, de modo que a modificao da estrutura das

    oraes e da maneira como se organizam os significados afeta

    profundamente o sentido total da obra (imagine-se uma edio de

    Proust com as oraes simplificadas!) ao passo que num texto

    cientfico ou filosfico as mesmas teses podem ser mediadas por

    contexto diversos de oraes (isso no se refere a filsofos como

    Heidegger; mas neste caso a prosa comum do pensamento cientfico

    abandonada em favor de especulaes teosficas que requerem o uso da

    arquipalavra admica). isso que Lessing tem em mente

    quando chama o poema um discurso totalmente sensvel ou quando

    Hegel, num sentido mais geral, define a beleza como o aparecer (luzir)

    sensvel da idia.

    O significado disso que os planos de fundo (os mais

    espirituais) se ligam na obra de arte (literria ou no)

    de um modo indissolvel ao seu modo de aparecer, concreto,

    individual, singular. a isso que Croce chama de intuio.

    O sentimento do valor esttico, o prazer especfico em que se anuncia a

    presena do valor esttico, refere-se precisamente totalidadeda obra

    literria ou, mais de perto, ao modo de aparecer sensvel (quase-

    sensvel) dos objetos mediados. As camadas exteriores impem a sua

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    presena em virtude da organizao e vibrao peculiares de seus

    elementos. O raio de inteno, ao atravessar estas camadas exteriores,

    conota-as, assimila-as no mesmo ato de apreenso das camadas mais

    profundas. Isso, em parte, se verifica tambm em virtude de uma

    atitude diversa em face de escritos de valor esttico.

    Na vida cotidiana ou na leitura de textos no-estticos, a nossa

    inteno geralmente atravessa a superfcie sensvel devido imposio

    de valores prticos, vitais, tericos etc. O raio da inteno, sem deter-se

    nas exterioridades sensveis, dirige-se diretamente ao que interessa,

    por exemplo, s atitudes e palavras, amabilidade, clera, disposio

    geral do interlocutor (a no ser que se trate de pessoa de grande

    encanto fsico, dificilmente nos lembramos de seus traos e jgo

    fisionmico) ou topografia de um bosque (quando o observador um

    engenheiro de estradas de ferro) ou ao valor til das rvores (quando se

    trata de um negociante de madeiras) ou teoria dos genes (exposta

    num tratado de gentica). A experincia esttica, bem ao contrrio,

    desinteressada, isto , o objeto j no meio para outros fins, nada

    nos interessa seno o prprio objeto como tal que, em certa medida, se

    emancipa do tecido de relaes vitais que costumam solicitar a nossa

    vontade. o fenmeno da moldura que, nas vrias artes, de modo

    diverso, isola o objeto esttico, como rea ldica, de situaes reais (s

    quais, contudo, pode referir-se indiretamente). Esta atitude

    desinteressada j condicionou a elaborao do objeto e a configurao

    altamente seletiva das camadas exteriores. A experincia do apreciador

    adequado, atendendo s virtualidades especficas do objeto, se

    caracterizar por uma espcie de repouso na totalidade dle. le no se

    ater apenas idia expressa, nem smente configurao sensvel

    em que ela aparece, mas ao aparecer como tal, ao modo como

    aparece; ao todo, portanto. No primeiro caso, um atesta seria incapaz

    de apreciar Dante ou um antimarxista, Brecht. No segundo caso, tratar-

    se- provvelmente de um crtico que s examina fenmenos tcnicos,

    sem referi-los ao todo. Nem aqules, nem ste apreendero o objeto com

    aquela peculiar emoo valorizadora do prazer esttico, que se liga a

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    atos de apreenso referidos ao objeto total.

    ste tipo de apreciao, facilitado pelo isolamento em face de situaes

    vitais, permite uma experincia intensa, quase arcaica, das

    objectualidades mediadas (particularmente quando se trata de

    objectualidades imaginrias), que se apresentam com grande concreo,

    graas aos aspectos especialmente preparados e forte co-apreenso

    dos momentos mais sensveis. A apreenso do mundo fictcio

    acompanhada de intensas tonalidades emocionais, tudo se carrega de

    mood, atmosfera, disposies anmicas. Em obras de inteno filosfica

    ou cientfica, ste cunho esttico pode representar fator de perturbao,

    j que desvia o raio de inteno da passagem reta aos objetos visados.

    Contudo, mesmo na obra fictcia, ste retrocesso a tipor mais puros e

    intensos de percepo e emocionalidade no realmente, uma volta a

    fases mais primitivas no provoca tiros contra o palco ou a tela. As

    prprias lgrimas tm, por assim dizer, menos teor salino. Ao forte

    envolvimento emocional liga-se, no apreciador adequado, a conscincia

    do Contexto ldico, da moldura. Mantm-se intata a distncia

    contemplativa. O prazer esttico no modo de aparecer do mundo

    mediado integra e suspende em si a participao nas dores e mgoas do

    heri. ste prazer possvel smente porque o apreciador sabe

    encontrar-se em face de quase-juzos, em face de objectualidades

    puramente intencionais, sem referncia direta a objetos tambm

    intencionais.

    A obra-de-arte literria ficcional

    Os momentos descritos so de importncia na valorizao

    esttica da obra literria fictcia. Na fico. em geral, tambm na de

    cunho trivial, o raio de inteno se dirige camada imaginria, sem

    passar diretamente s realidades empricas possivelmente

    representadas. Detm-se, por assim dizer, neste plano de personagens,situaes ou estados (lricos), fazendo viver o leitor, imaginriamente, os

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    destinos e aventuras dos heris. Boa parte dos leitores, porm, pe o

    mundo imaginrio quase imediatamente referncia coma realidade

    exterior obra, j que as objectualidades puramente intencionais,

    embora tendam a prender a inteno, so tomadas na sua funo

    mimtica, como reflexo do mundo emprico. Isto , em muitos casos,

    perfeitamente legtimo; mas esta apreciao, quando muito unilateral,

    tende a deformar e empobrecer a apreenso da totalidade literria,

    assim como o pleno prazer esttico no modo de aparecer do que

    aparece.

    Na medida em que se acentua o valor esttico da obra ficcional o mundo

    imaginrio se enriquece e se aprofunda, prendendo o raio de inteno

    dentro da obra e tornando-se, por sua vez, transparente a planos mais

    profundos, imanentes prpria obra. S agora a obra manifesta tdas

    as virtualidades de revelao revelao que no se deve confundir

    com qualquer ato cognoscitivo explcito, j que em plena imediatez

    concreta que o mediado se revela, na individualidade quase-sensvel das

    camadas exteriores e na singularidade das personagens e situaes.

    Neste sentido, a cogitatio pode de certa forma ser contida na

    apreenso esttica, mas ela ultrapassada por uma espcie de visio, ou

    viso intuitiva, que ao mesmo tempo superior e inferior ao

    conhecimento cientfico preciso. Tampouco deve-se comparar o prazer

    desta revelao ao prazer do conhecimento. esttico integra e suspende

    a distncia da contemplao, o intenso envolvimento emocional e a

    revelao profunda; pode manifestar-se mesmo nos casos em que o

    contedo desta revelao se ope a tdas as nossas concepes (bem

    tarde T. S. Eliot reconheceu isso com referncia a Goethe e

    Shakespeare, visceralmente contrrios sua concepo do mundo).

    Seria tautolgico dizer que essa riqueza e profundidade da camada

    imaginria e dos planos por ela revelados pressupem uma imaginao

    que o autor de romances triviais no possui, assim como capacidades

    especiais de observao, intuio psicolgica etc. Tudo isso, porm,

    adquire relevncia esttica smente na medida em que o autor

    consegue projetar ste mundo imaginrio base de oraes, isto ,

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    merc da preciso da palavra, do ritmo e do estilo, dos aspectos

    esquemticos especialmente preparados, sobretudo no que se refere ao

    comportamento e vida ntima das personagens; aspectos stes cujo

    preparo, por sua vez, se relaciona mntimamente composio estilstica

    e camada sonora dos fonemas.

    Na medida em que a obra ficcional tambm uma de obra-de-arte,

    estas camadas exteriores so co-percebidas com muito mais fra do

    que ocorre em geral. Se, na obra cientfica, a inteno atravessa estas e

    a camada objectual, sem not-las, para incidir sbre os objetos

    exteriores obra (que, como tal, quase no notada, j que ela

    apenas meio) e na obra de fico em geral h certo repouso na

    camada objectual, na obra-de-arte ficcional h, alm disso, ainda certo

    repouso nas camadas exteriores; h como que um fraccionamento do

    raio (sem que isso afete a unidade do ato de apreenso), em virtude do

    fascnio verbal e estilstico. Falando metafisicamente, o raio adquire

    certo effet e, graas a isso, maior capacidade de penetrao nas

    camadas mais profundas da obra.

    Na cena do sonho do heri de A Morte em Veneza (Thomas Mann), o

    acmulo de certos ditongos faz-nos ouvir as flautas e o ulular do

    squito dionisaco; as oraes assindticas, as aliteraes, o ritmo

    acelerado, os aspectos tteis e olfativos apresentados que sugerem

    um mundo pnico e primitivo reforam a impresso do xtase e da

    presena embriagadora do Deus estranho, assim como a sugesto de

    todo um plano de fundo arcaico, de evocaes mticas, j antes

    suscitadas por trechos de prosa que tomam, quase imperceptivelmente,

    o compasso dactlico do hexmetro. O enrdo a camada imaginria

    trata do amor de um escritor envelhecido por um formoso rapaz. As

    camadas exteriores retiram a ste tema algo do seu aspecto melindroso

    por cerc-lo de atmosfera grega, colocando-o, de certo modo, numa

    constelao mais universal e numa grande tradio. o estilo, atravs

    das sugestes arcaicas por ele mediadas, que nos leva a intuir os planos

    mais profundos, o significado das objectualidades puramente

    intencionais: o perigo de retrocesso arcaico que ameaa o homem,

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    particularmente o artista fascinado pela beleza, pelo puro aparecer,

    independentemente do que aparece; o perigo, portanto, da existncia

    esttica. H nisso uma parfrase levemente irnica da expulso dos

    artistas do Estado platnico ironia que se anuncia na grecizao do

    estilo, no uso de palavras homricas (tambm Homero deveria ser

    expulso do Estado platnico).

    Seria fcil prosseguir na interpretao da novela, atravs da

    anlise da organizao polifnica das camadas; todavia, em

    determinado ponto a interpretao deve deter-se. A grande obra de arte

    inesgotvel em trmos conceituais; stes s podem aproximar-se dos

    significados mais profundos. O essencial revela-se, em tda a sua fra

    imediata, smente prpria experincia esttica.

    O Papel de Personagem

    Se reunirmos os vrios momentos expostos, verificaremos que a

    grande obra-de-arte literria (ficcional) o lugar em que nos

    defrontamos com sres humanos de contornos definidos e definitivos,

    em ampla medida transparentes, vivendo situaes exemplares de um

    modo exemplar (exemplar tambem no sentido negativo). Como sres

    humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de

    ordem cognoscitiva, religiosa, moral, poltico-social e tomam

    determinadas atitudes em face dsses valores. Muitas vzes debatem-se

    com a necessidade de decidir-se em face da coliso de valores, passam

    por terrveis conflitos e enfrentam situaes-limite em que se revelam

    aspectos essenciais da vida humana: aspectos trgicos, sublimes,

    demonacos, grotescos ou luminosos. Estes aspectos profundos, muitas

    vzes de ordem metafsica, incomunicveis em tda a sua plenitude

    atravs do conceito, revelam-se, como num momento de iluminao, na

    plena concreo do ser humano individual. So momentos supremos,

    sua maneira perfeitos, que a vida emprica, no seu fluir cinzento e

    cotidiano, geralmente no apresenta de um modo to ntido e coerente,

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    nem de forma to transparente e seletiva que possamos perceber as

    motivaes mais intmas, os conflitos e crises mais recnditos na sua

    concatenao e no seu desenvolvimento.

    O prprio cotidiano, quando se torna tema da fico, adquire outra

    relevncia e condensa-se na situao-limite do tdio, da angstia e da

    nusea.

    Todavia, o que mais importa que no s contemplamos stes

    destinos e conflitos distncia. Graas seleo dos aspectos

    esquemticos preparados e ao potencial das zonas indeterminadas, as

    personagens atingem a uma validade universal que em nada diminui a

    sua concreo individual; e merc dsse fato liga-se, na experincia

    esttica, contemplao, a intensa participao emocional. Assim, o

    leitor contemplae ao mesmo tempo vive as possibilidades humanas

    que a sua vida pessoal diflcilmente lhe permite viver e contemplar, pela

    crescente reduo de possibilidades. De resto, quem realmente vivesse

    sses momentos extremos, no poderia contempl-los por estar

    demasiado envolvido nles. E se os contemplasse distncia (no crculo

    dos conhecidos) ou atravs da conceituao abstrata de uma obra

    filosfica, no os viveria. precisamente a fico que possibilita viver e

    contemplar tais possibilidades, graas ao modo irreaal de suas amadas

    profundas, graas aos quase-juzos que fingem referir-se a realidades

    sem realmente se referirem a sres reais; e graas ao modo de aparecer

    concreto e quase-sensvel dste mundo imaginrio nas camadas

    exteriores.

    importante observar que no poder apreender estticamentea

    totalidade e plenitude de uma obra de arte ficcional, quem no fr capaz

    de sentir vivamente tdas as nuanas dos valores no-estticos

    religiosos, morais polticos-sociais, vitais, hedonsticos etc. que

    sempre esto em jgo onde se defrontam sres humanos. Todos stes

    valores em si no-estticos, assim como o valor at certo ponto

    cognoscitivo de uma profunda interpretao do mundo e da vida

    humana, que fundam o valor esttico, isso , que so

    pressupostos e tornam possvel o seu aparecimento, de modo algum o

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    determinam. O fato de os valores morais representados numa tragdia

    serem mais elevados do que os de uma comdia no influi no valor

    esttico desta ou daquela. O valor esttico aparece nas costas

    (expresso usada por Max Scheler e Nicolai Hartmann) dstes outros

    valores, mas o nvel qualitativo dste valor no condicionado pela

    elevao dos valores morais ou religiosos em choque, nem pela

    interpretao especfica do mundo e da vida. O valor esttico suspende

    o peos real dos outros valores (embora os faa aparecer em tda a sua

    seriedade e fra); integra-os no reino ldico da fico, transforma-os

    em parte da organizao esttica lhes d certo papel no todo.

    A isso corresponde o fenmeno de que o prazer esttico integra no seu

    mbito o sofrimento e a risada, o dio e a simpatia, a repugnncia e a

    ternura, a aprovao e a desaprovao com que o apreciador reage ao

    contemplar e participar dos eventos. Tanto a nobre Antgone como o

    terrvel Macbeth sucumbem; as emes com que participamos de seus

    destinos so profundamente diversas. Mas o prazer suscitado pelo valor

    esttico, pelo modo como aparecem stes destinos diversos, tal prazer,

    como que consome estas emoes divergentes; nutrindo-se delas, ele

    as assimila; e embora no renegue a variedade das emoes que

    contribuem para fund-lo e que o tingem de tonalidades distintas, o

    prazer como tal, na sua qualidade de prazer esttico e na sua

    intensidade, tende a convergir em ambos os casos.

    Quanto ao valor cognoscitivo que como tal no pode ser plenamente

    visado por quase-juzos substitudo pela revelao e vivncia de

    determinadas interpretaes profundas da vida humana, pela

    contemplao e participao de certas possibilidades humanas.

    Todavia, a profundeza e coerncia dessas interpretaes no tm valor

    por si, como teriam numa obra filosfica, mas smente na medida em

    que so integradas no todo esttico, tomando se viso e vivncia,

    enriquecendo o prazer esttico. O extraordinrio que podemos, de

    certo modo, participar destas interpretaes por mais que na vida real

    nos sejam contrrias, por mais que as combatamos na vida real.

    evidente que h, nesta apreciao esttica, limites. Ao que esta

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    descrio visa expor o fenmeno esttico como tal na sua mxima

    pureza. Contudo, no existe o Homo aestheticus. Mesmo dentro da

    moldura da rea ldica no ocorre a suspenso total das

    responsabilidades. Normalmente, o homem um ser incapaz de

    valorizar apenas estticamente o mundo humano mesmo quando

    imaginrio; a literatura no uma esfera segregada. Glorificar a arte,

    maneira de Schopenhauer, como quietivo ou entorpecente da nossa

    vontade, resulta em desvirtuamento da funo que a arte exerce na

    sociedade.

    Isso, porm, no exclui, antes pressupe que a grande obra de arte

    literria nos restitua uma liberdade o imenso reino do possvel

    que a vida real no nos concede. A fico um lugar ontolgico

    privilegiado: lugar em que o homem pode viver e contemplar, atravs de

    personagens variadas a plenitude da sua condio, e em que se torna

    transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se

    imaginriamente no outro, vivendo outros papis e destacando-se de si

    mesmo, verifica, realiza e vive a sua condio fundamental de ser

    autoconsciente e livre, capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si

    mesmo e de objetivar a sua prpria situao. A plenitude de

    enriquecimento e libertao, que desta forma a grande fico nos pode

    proporcionar, torna-se acessvel smente a quem sabeater-se, antes de

    tudo, apreciao esttica que, enquanto suspende o pso real das

    outras valorizaes, lhes assimila ao mesmo tempo a essncia e

    seriedade em todos os matizes. Smente quando o apreciador se entrega

    com certa inocncia a tdas as virtualidades da grande obra de arte,

    esta por sua vez lhe entregar tda a riqueza encerrada no seu

    contexto.

    Neste sentido pode-se dizer com Ernst Cassirer que afastando-

    se da realidade e elevando-se a um mundo simblico o homem, ao

    voltar realidade, lhe apreende melhor a riqueza e profundidade.

    Atravs da arte, disse Goethe, distanciamo-nos e ao mesmo tempo

    aproximamo-nos da realidade.

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    A PERSONAGEM DO ROMANCE

    (pag. 51)

    Geralmente, da leitura de um romance fica a impresso duma

    srie de fatos, organizados em enrdo, e de personagens que vivem stes

    fatos. uma impresso prticamente indissolvel: quando pensamos

    no enrdo, pensamos simultneamente nas personagens; quandopensamos nestas, pensamos simultneamente na vida que vivem, nos

    problemas em que se enredam, na linha do seu destino traada

    conforme uma certa durao temporal, referida a determinadas

    condies de ambiente. O enrdo existe atravs das personagens; as

    personagens vivem no enrdo. Enrdo e personagem exprimem, ligados,

    os intuitos do romance, a viso da vida que decorre dle, os significados

    e valores que o animam.Nunca expor idiasa no ser em funo dostemperamentos e dos caracteres1. Tome-se a palavra idia como

    sinnimo dos mencionados valores e significados, e ter-se- uma

    expresso sinttica do que foi dito. Portanto, os trs elementos centrais

    dum desenvolvimento novelstico (o enrdo e a personagem, que

    representam a sua matria; as idias, que representam o seu

    significado, e que so no conjunto elaborados pela tcnica), stes trs

    elementos s existem intimamente ligados, inseparveis, nos romancesbens realizados. No meio dles, avulta a personagem, que representa a

    possibilidade de adeso afetiva e intelectual do leitor, pelos mecanismos

    de identificaes, projeo, transferncia etc. A personagem vive o

    enrdo e as idias, e os torna vivos. Eis uma imagem feliz de

    Gide: Tento enrolar os fios variados do enrdo e a complexidade dos

    meus pensamentos em tmo destas pequenas bobinas vivas que so

    cada uma das minhas personagens (ob. cit., p. 26).No espanta, portanto, que a personagem parea o que h de mais vivo

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    no romance; e que a leitura dste dependa bsicamente da aceitao da

    verdade da personagem por parte do leitor. Tanto assim, que ns

    perdoamos os mais graves defeitos de enrdo e de idia aos grandes

    criadores de personagens. Isto nos leva ao rro, freqentemente

    repetido em crtica, de pensar que o essencial do romance a

    personagem, como se esta pudesse existir separada das outras

    ralidades que encarna, que ela vive, que lhe do vida. Feita esta

    ressalva, todavia, pode-se dizer que o elemento mais atuante, mais

    comunicativo da arte novelstica moderna, como se configurou nos

    sculos XVIII, XIX e como do XX; mas que s adquire pleno

    significado

    1. Gide, Journal des Faux-Monnayeurs, 6.medition, Gallmard, Pule 1927,

    p. 12.

    no contexto, e que, portanto, no fim de contas a construo

    estrutural o maior responsvel pela fra e eficcia de um romance.

    A personagem um ser fictcio, expresso que soa como paradoxo.

    De fato, como pode uma fico ser?Como pode existir o que no existe?

    No entanto, a criao literria repousa sbre ste paradoxo, e o

    problema da verossimilhana no romance depende desta possibilidade

    de um ser fictcio, isto , algo que, sendo uma criao da fantasia,

    comunica a impresso da mais ldima verdade existencial. Podemos

    dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num

    certo tipo de relao entre o ser vivo e o ser fictcio, manifestada atravs

    da personagem, que a concretizao dste.

    Verifiquemos, inicialmente, que h afinidades e diferenas essenciais

    entre o ser vivo e os entes de fico, e que as diferenas so to

    importantes quanto as afinidades para criar o sentimento de verdade,

    que a verossimilhana. Tentemos uma investigao sumria sbre as

    condies de existncia essencial da personagem, como um tipo de ser,

    mesmo fictcio, comeando por descrever do modo mais emprico

    possvel a nossa percepo do semelhante.

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    Quando abordamos o conhecimento direto das pessoas, um dos dados

    fundamentais do problema o contraste entre a continuidaderelativa

    da percepo fsica (em que fundamos o nosso conhecimento) e a

    descontinuidade da percepo, digamos, espiritual, que parece

    freqentemente romper a unidade antes apreendida. No ser uno que a

    vista ou o contato nos apresenta, a convivncia espiritual mostra uma

    variedade de modos-de-ser, de qualidades por vzes contraditrias.

    A primeira idia que nos vem, quando refletimos sbre isso, a de que

    tal fato ocorre porque no somos capazes de abrangera personalidade

    do outro com a mesma unidade com que somos capazes de abrangera

    sua configurao externa. E conclumos, talvez, que esta diferena

    devida a uma diferena de natureza dos prprios objetos da nossa

    percepo. De fato, pensamos o primeiro tipo de conhecimento se

    dirige a um domnio finito, que coincide com a superfcie do corpo;

    enquanto o segundo tipo se dirige a um domnio infinito, pois a sua

    natureza oculta explorao de qualquer sentido e no pode, em

    conseqncia, ser aprendida numa integridade que essencialmente no

    possui. Da concluirmos que a noo a respeito de um ser, elaborada

    por outro ser, sempre incompleta, em relao percepo fsica

    inicial. E que o conhecimento dos sres fragmentrio.

    Esta impresso se acentua quando investigamos os, por assim dizer,

    fragmentos de ser, que nos so dados por uma conversa, um ato, uma

    seqncia de atos, uma afirmao, uma informao. Cada um dsses

    fragmentos, mesmo considerado um todo, uma unidade total, no

    uno, nem contnuo. le permite um conhecimento mais ou menos

    adequado ao estabelecimento da nossa conduta, com base num juzo

    sbre o outro ser; permite, mesmo, uma noo conjunta e coerente

    dste ser; mas essa noo oscilante, aproximativa, descontnua. Os

    sres so, por sua natureza, misteriosos, inesperados. Da a psicologia

    moderna ter ampliado e investigado sistemticamente as noes de

    subconsciente e inconsciente, que explicariam o que h de inslito nas

    pessoas que reputamos conhecer, e no entanto nos surpreendem, como

    se uma outra pessoa entrasse nelas, invadindo inesperadamente a sua

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    rea de essncia e de existncia.

    Esta constatao, mesmo feita de maneira no-sistemtica,

    fundamental em tda a literatura moderna, onde se desenvolveu antes

    das investigaes tcnicas dos psiclogos, e depois se beneficiou dos

    resultados destas. claro que a noo do mistrio dos sres,

    produzindo as condutas inesperadas, sempre estve presente na criao

    de forma mais ou menos consciente, bastando lembrar o mundo das

    personagens de Shakespeare. Mas s foi conscientemente desenvolvida

    por certos escritores do sculo XIX, como tentativa de sugerir e

    desvendar, seja o mistrio psicolgico dos sres, seja o mistrio

    metafsico da prpria existncia. A partir de investigaes metdicas em

    psicologia, como, por exemplo, as da psicanlise, essa investigao

    ganhou um aspecto mais sistemtico e voluntrio, sem com isso

    ultrapassar necessriamente as grandes intuies dos escritores que

    iniciaram e desenvolveram essa viso na literatura. Escritores como

    Baudelaire, Nerval, Dostoievski, Emily Bronte (aos quais se liga por

    alguns aspectos, isolado na segregao do seu meio cultural acanhado,

    o nosso Machado de Assis), que preparam o caminho para escritores

    como Proust, Joyce,Kafka, Pirandello, Gide. Nas obras de uns e outros,

    a dificuldade em descobrir a coerncia e a unidade dos sres vem

    refletida, de maneira por vzes trgica, sob a forma de

    incomunicabilidade nas relaes. ste talvez o nascedouro, em

    literatura, das noes de verdade plural (Pirandello), de absurdo

    (Kafka), de ato gratuito (Gide), de sucesso de modos de ser no tempo

    (Proust), de infinitude do mundo interior (Joyce). Concorrem para isso,

    de modo direto ou indireto, certas concepes filosficas e psicolgicas

    voltadas para o desvendamento das aparncias no homem e na

    sociedade, revolucionando o conceito de personalidade, tomada em si e

    com relao ao seu meio. o caso, entre outros, do marxismo e da

    psicanlise, que, em seguida obra dos escritores mencionados, atuam

    na concepo de homem, e portanto de personagem, influindo na

    prpria atividade criadora do romance, da poesia, do teatro.

    Essas consideraes visam a mostrar que o romance, ao abordar as

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    personagens de modo fragmentrio, nada mais faz do que retomar, no

    plano da tcnica de caracterizao, a maneira fragmentria,

    insatisfatria, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos

    nossos semelhantes. Todavia, h uma diferena bsica entre uma

    posio e outra: