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Cadernos do Segundo caderno (2012) Algumas contribuições teóricas de Antoine Hennion para a sociologia de música * Eleandro de C. G. Cavalcante ** * Todas as traduções de língua estrangeira são de responsabilidade do autor do artigo. Uma versão reduzida deste trabalho foi apresentada como comunicação oral no I Seminário dos Estudantes de Pós-Graduação em Ciências Sociais do Estado do Rio de Janeiro (I SEPOCS-Rio), em dezembro de 2011. ** Doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). E-mail para contato: [email protected] Sociofilo

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    Segundo caderno (2012)

    Algumas contribuies tericas de Antoine Hennion para a sociologia

    de msica*

    Eleandro de C. G. Cavalcante**

    * Todas as tradues de lngua estrangeira so de responsabilidade do autor do artigo. Uma verso reduzida deste trabalho foi apresentada como comunicao oral no I Seminrio dos Estudantes de Ps-Graduao em Cincias Sociais do Estado do Rio de Janeiro (I SEPOCS-Rio), em dezembro de 2011. ** Doutorando em Sociologia no Instituto de Estudos Sociais e Polticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ). E-mail para contato: [email protected]

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    Qual o papel da obra de arte na vida social? um smbolo ou um objeto passivo? No seria nem uma coisa nem outra? Es-tas perguntas no sero propriamente respondidas aqui, ape-nas teoricamente qualificadas. Este exerccio est englobado pe-lo meu interesse no estudo sociolgico da msica e, mais preci-samente, pela vontade de responder s seguintes questes: co-mo cantar num coro transforma as pessoas que ali cantam? Como a produo musical est envolvida na construo e na valorao de si? Como o prprio fazer musical concorre para a formao subjetiva de algum? Como tomar parte na criao e, mais precisamente, na intrepretao da msica contribui para isso? Considerando estas questes, busquei comparar o traba-lho de trs socilogos que se dedicaram ao estudo da arte: Pier-re Bourdieu, Howard S. Becker e Antoine Hennion. Este ltimo, contudo, o foco, na medida em que as aproximaes e diver-gncias das abordagens servem para esclarecer conceitos e vias de anlise do que ele chamou sociologia das mediaes. com es-te objetivo que chamo a ateno para a maneira como cada um dos autores tentou responder a questo colocada acima: qual o papel da obra de arte na vida social?

    Para Pierre Bourdieu (2002), toda atitude esttica o pro-duto de uma aprendizagem especfica. A percepo e a apreci-ao de uma obra de arte no so as mesmas em qualquer lugar e em qualquer tempo. Pensar diferente disso , segundo o au-tor, incorrer no erro da anlise de essncia dos objetos artsti-cos. Um erro que ele atribui principalmente aos filsofos da ar-te: promover a universal aquela que foi a sua experincia parti-cular em relao a uma pintura, a uma pea de teatro, a uma msica etc. Universalizando-a, esquece-se, literalmente, de sua origem histrica, cristalizando-a, naturalizando-a. E, de acordo com este autor, no h nada menos natural que a atitude a adoptar perante uma obra de arte (:295). apenas com o tem-po e conforme uma grande variedade de fatores, dentre os quais Bourdieu dar destaque aos sociais, que se desenvolver

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    uma atitude perante determinados objetos que os revestir de um sentido e de um valor artsticos (:285). Quer dizer, no h obras de arte em si mesmas, mas apenas objetos que so assim classificados por um sujeito que, desde pequeno, aprendeu a classific-los como tais, relacionando-se diretamente com eles e, sobretudo, indiretamente com uma srie de atores sociais que gravita ao seu redor. como se aquele objeto que percebido e apreciado como obra de arte por algum fosse a ponta do grande iceberg que o universo social relativamente autnomo do qual este algum faz parte enquanto apreciador de arte. Em suma, h uma correlao especfica entre sujeitos e objetos, ou melhor, entre disposies subjetivas e objetos, entre aquilo que Bourdieu chama habitus e campo artstico, cujos resultados mais aparentes so as obras de arte:

    Quando as coisas e os crebros (ou as conscincias) so con-cordantes, quer dizer, quando o olhar produto do campo a que ele se refere, este, com todos os produtos que prope, apa-rece-lhe de imediato dotado de sentido e de valor (loc. cit.).

    Da, deste carter aprendido da percepo, no se poder

    falar, de acordo com Bourdieu, de uma essncia da obra de ar-te. Mas o argumento de Bourdieu um pouco mais complexo do que isso. Parar por a, segundo ele, parar numa meia-crtica (:282). Ou seja, limitar-se constatao da historicidade e, portanto, da relatividade daquilo que normalmente consi-derado como algo absoluto. Para ele, justamente pelo fato de que a obra de arte no seja uma essncia a-histrica que se de-ve, em sociologia, resgatar a sua histria. No entanto, poder acompanhar este passo-a-passo no significa poder retroceder no tempo, anulando simplesmente o estatuto esttico de um obra de arte. Dito de outro modo, reconstruir o percurso que levou at a classificao de um objeto como uma obra de arte no o mesmo que a desconstruir. Quer dizer, a histria de um

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    objeto e tambm a daquele campo posto por ele em elipse um dado objetivo, uma realidade dura que se vai tornando cada vez mais independente: Da resulta que, contrariamente qui-lo que um relativismo ingnuo ensina, o tempo da histria da arte realmente irreversvel e que ela apresenta uma forma de cumulatividade (:297, grifo no original). E s remetendo a esta histria que se poder compreender como uma percepo se institucionalizou de um modo e no de outro ao longo do tem-po. s atravs da reconstituio das lutas a respeito das for-mas artsticas, do que e do que no arte, da negociao des-tes limites; s assim que se poder entender como uma varia-da organizao de atores sociais tornou-se a base do sentido ex-cepcional atribudo a um objeto que, num outro arranjo, passa-ria desapercebido como ordinrio (:285). Contudo, isto, que nuana bastante a proposta de anlise de Bourdieu, tambm aquilo que a limita. A sua noo de campo artstico est intimamente vinculada a uma histria es-pecfica: a histria de um universo social que, talvez desde o Quattrocento (:290), veio se emancipando do restante da socie-dade, desenvolvendo uma lgica interna animada por smbolos e prticas sociais que, a princpio, s tm algum valor ali den-tro. Por exemplo, a assinatura do artista, a arbitragem de pares para definir o estatuto esttico de um objeto, os museus, as academias de arte, as escolas de Belas-Artes etc., mas, sobretu-do, uma linguagem artstica, isto , uma maneira de falar da ar-te e do artista. Tudo isso, diz Bourdieu, compe um lugar em que se produz e reproduz incessantemente a crena no valor da arte e no poder de criao do valor que prprio do artista (:289). Para ele, ento, o campo artstico uma conjugao de agentes individuais e de organizaes sobre a qual se vai er-guendo o mito de que h homens e mulheres especiais, seno privilegiados, capazes de, sozinhos, revestir de um valor extra-ordinrio tanto aquilo que baixo quanto aquilo que medo-cre (:296-7). Em resumo, Bourdieu j sabe de antemo o que

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    arte, apesar de lhe negar uma essncia que flutue fora da hist-ria.

    Se esta perspectiva gera bvios dividendos metodolgicos, especialmente a defesa de uma histria social da percepo das formas artsticas, ela tambm limita o escopo da investigao a uma concepo excessivamente realista da arte, da obra de arte e, principalmente, do artista. Para o autor, praticamente todo o poder de criao de valor e, portanto, de condicionamento da percepo vem do campo. Assim, os sujeitos envolvidos nesse processo parecem desprovidos de qualquer eficcia simblica, por assim dizer: pessoas, no que elas tm de mais pessoal, so, essencialmente, a personificao das exigncias atual ou potenci-almente inscritas na estrutura do campo ou, mais precisamente, na posio ocupada dentro deste campo (1989:449 apud WACQUANT, 1992:44, grifo no original). O que subjaz a por-tanto uma forte nfase analtica sobre o campo: O campo ar-tstico, pelo seu prprio funcionamento, cria a atitude esttica sem a qual o campo no poderia funcionar (2002:286). Como argumenta Luc Boltanski (2005), este o uso intenso que Bourdieu faz do seu conceito de habitus, ou seja, quando o so-cilogo deixa de prestar ateno ao do ator individual para se concentrar apenas na situao onde ele est inserido como o agente de um campo:

    O analista considera ento que foi at o fim de sua tarefa [...] quando consegue mostrar que, mergulhado em situaes dife-rentes, o autor [sic] agiu atualizando os esquemas inscritos em seu habitus, ou seja, de certo modo, de maneira previsvel (:162).1

    1 Frdric Vandenberghe (2006) faz a mesma crtica. A partir de uma perspectiva psicanaltica, ele acrescenta que Bourdieu poderia ter evitado esta aguda tenso entre liberdade individual e determinao social se no lugar de sublimar sua indignao moral em uma hiperviolncia terica e cientfica, ele tivesse acentuado

    mais as capacidades reflexivas de que dispem os atores, em uma situao de ao

    ou de interao (:324).

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    Desse modo, as intenes e os discursos pessoais so deflacio-nados demais, diminuindo-se bastante a importncia que even-tos singulares podem ter na caracterizao do que ou deixa de ser msica. Howard S. Becker oferece uma perspectiva diferente. Ele parte justamente da premissa inversa, ou seja, a de que basta que algum nomeie algo como arte para que isso seja arte efeti-vamente ou, pelo menos, para que se travem disputas em torno de seu estatuto esttico:

    No comeamos por definir o que a arte, para depois desco-brirmos quem so as pessoas que produzem os objetos por ns selecionados; pelo contrrio, procuramos localizar, em primeiro lugar, grupos de pessoas que estejam cooperando na produo de coisas que elas, pelo menos, chamam de arte (1977:10, meu grifo).

    Desse modo, ao invs de apenas um, haveria tantos mundos ar-tsticos quantos fossem aqueles conjuntos de pessoas que classi-ficam o resultado de sua ao conjunta como uma obra de arte. A partir da, a proposta de Becker guarda alguns pontos de contato com a de Bourdieu. Ou seja, parte-se de um objeto con-siderado por um grupo de pessoas como uma obra de arte na direo das redes que sustentam este seu significado:

    Localizados estes grupos, procuramos, ento, todas as demais pessoas igualmente necessrias quela produo, construindo, gradativamente, o quadro mais completo possvel de toda a rede de cooperao que se ramifica a partir dos trabalhos em pauta (loc. cit.).

    Em outras palavras, Becker d mais nfase s pessoas, pensando-as como causa suficiente da produo artstica; em

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    contrapartida, as redes ou mundos artsticos figuram apenas como necessrios. Esta inverso crucial quando se deseja afastar de uma ideia preconcebida do que venha a ser msica. Isto no implica repudiar a abordagem de Bourdieu, pelo contrrio, mas em tra-t-la como mais uma interpretao do que seja a arte. Neste sentido, ela pode at ser mobilizada como um ponto de partida a confrontar durante pesquisas comparativas. De acordo com Becker, algo assim aconteceu com Peggy Golde, uma antrop-loga que investigava os valores estticos dos moradores da al-deia de Oaxaca, nos EUA. No foi sem choque que ela desco-briu que ali reinava uma grande indiferena em relao auto-ria das panelas de barro entre as mulheres que as produziam: [a] idia de uma conexo exclusiva e artstica entre o artista e sua obra simplesmente no existia (:23). Se Golde estranhou a situao foi porque ela mesma atribuiu um valor excepcional quelas peas. Mais especificamente, um valor que aquelas mu-lheres no compartilhavam com ela:

    O que se percebe [] que embora estas mulheres fizessem uma linda cermica, no estavam orientadas para a nossa no-o convencional de que quem faz alguma coisa bonita gosta de ser elogiado e assume a responsabilidade da autoria (loc. cit.).

    assim que o campo artstico, tal como caracterizado por Bourdieu, pode servir como um termo de comparao entre di-ferentes mundos artsticos, tais como delineados por Becker. Afinal, uma pessoa como Golde parece ter sado direto de den-tro dele. Desse modo, Becker prope uma abordagem que pretende anti-elitista e democrtica (1982:ix). Seu foco analtico no est nem nas obras de arte propriamente ditas, nem nos indiv-duos geniais que as conceberam. Antes, est nas vastas redes de interaes entre annimos que se colocam entre umas e ou-

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    tros, annimos que ele chamou de pessoal de apoio (:17). Apesar de os participantes de um mundo artstico e membros da socie-dade em geral chamarem artsticas apenas algumas das ati-vidades necessrias para a realizao de obras de arte, ou seja, atividades que se baseariam nos talentos especiais daquele in-divduo ou grupo de indivduos que eles chamam artistas; apesar disso, outras atividades so igualmente necessrias, em termos prticos, para a produo de um objeto artstico. Ainda assim, no geral, elas so encaradas apenas como uma habili-dade menos rara, [...] menos digna de respeito (:16). E so pre-cisamente estas atividades que o autor quer reabilitar sociologi-camente. Diferentemente de Bourdieu, portanto, que enxerga a arte como a macro-construo histrica, inadvertida e intocvel das disputas entre grupos sociais, Becker a v surgindo aos poucos, a partir de pequenas situaes cotidianas, como uma atividade coletiva e deliberada:

    [A] metfora de mundo [...] contm pessoas, todos os tipos de pessoas, que esto em vias de fazer algo que requer que pres-tem ateno umas s outras, que, conscientemente, levem em conta a existncia de outros e que moldem o que fazem luz do que os outros fazem (BECKER; PESSIN, 2006).

    De acordo com Becker, isto significa entender os mundos

    artsticos como redes de cooperao. Mas isso no significa enten-d-los como isentos de conflito. Embora seja comum associar cooperao e consenso, este no necessariamente o caso nos mundos artsticos. Por vezes, ocorre que os musicistas de uma orquestra sabotem uma composio porque muito difcil exe-cut-la (BECKER, 1982:25). Desse modo, arma-se um conflito. Para a carreira deles, apresentar-se tocando mal ruim, tanto quanto ruim para a carreira do compositor no ter quem to-que a sua pea. dessa maneira, bastante ampla portanto, que Becker entende a cooperao abrangendo qualquer coisa que as pessoas fazem juntas e nas quais elas levam em conta e res-

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    pondem ao que os outros envolvidos esto fazendo (BECKER; PESSIN, op. cit.). Nestes termos, o conflito ser sempre situaci-onal, uma vez que a natureza das relaes entre as pessoas no dada a priori (loc. cit.). Assim, o autor ir privilegiar situaes em que a prpria definio de arte esteja em disputa, procu-rando destacar o carter processual da realizao de obras de arte:

    Eu no aceitei definies-padro de arte na anlise a seguir. Eu tambm no inclu tudo, atendo-me aos casos marginais nos quais o rtulo est em disputa ou em que as pessoas fa-zem algo que parece ter semelhana substancial com as coisas chamadas "arte", de maneira que o processo de definio seja enfocado como um grande problema (BECKER, 1982:38).2

    Durante estes episdios de desacordo, possvel perceber

    melhor as formas de organizao social que constituem um mundo artstico, ou seja, como se armam as redes de coopera-o em torno de objetos ou eventos que so ou podero ser considerados coletivamente como arte. Em resumo, Becker no se preocupa tanto com aquilo que considerado arte iso-ladamente, mas com a diviso de trabalho que o produz.

    2 possvel notar uma afinidade entre esta abordagem de Becker para os mundos da arte e a sociologia das situaes crticas de Luc Boltanski e Laurent Thvenot (1999, por exemplo). Mas no ser possvel nos determos aqui. Cabe apenas destacar que esta poderia ser uma via de aproximao terica entre Becker e Antoine Hennion. Como este ltimo afirma a propsito do vulto musical de J. S. Bach: [a] palavra grandeza, entre valor e grandiosidade, deve, em primeiro lugar, ser entendida literalmente, como aquela que, contrastando com a graa de Mozart e a fora de Beethoven ou gnio para ambos , constantemente usada pela maioria dos comentadores (Bach um gigante, um colosso, um Jpiter). Mas, ainda que num sentido menos elaborado do que o desenvolvido por Boltanski e Thvenot [...], tambm pode se referir ideia de uma magnitude, como em fsica: o padro de uma certa realidade, sobre o qual crticos e msicos se baseiam para defender uma concepo do que seja boa msica (HENNION; FAUQUET, 2001:77, nota 2).

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    J em Antoine Hennion, a construo da msica como ob-jeto de investigao sociolgica se d de maneira bastante dife-rente. Ainda que Bourdieu e Becker se encontrem ocupando o que so praticamente dois plos da tradio da sociologia da arte, um realista e um nominalista respectivamente, ambos es-to de acordo quando se dedicam exclusivamente observao da ao humana por trs das obras de arte. Quer dizer, mesmo que atribuam pesos analticos muito diferentes s instituies e aos indivduos, nenhum dos dois experimenta fora do terreno da segurana ontolgica da disciplina, jamais atribuindo s prprias obras de arte qualquer tipo de agncia semelhante que atribuem unicamente aos seres humanos. Este no o caso de Hennion. Junto com Bruno Latour, este autor defende uma teoria controvertida em que os objetos se encontram no mesmo patamar ontolgico em que se encontram as pessoas, agindo sobre elas como elas agem sobre eles a teoria do ator-rede ou actor-network-theory, tambm conhecida como ANT.

    Por trs desta reabilitao das coisas, encontramos com-plementarmente uma problematizao dos smbolos na vida social. Isto no significa que Hennion e Latour simplesmente no levem os smbolos em conta em suas anlises. Ainda assim, eles no lhes atribuem o lugar central que ocupam nas sociolo-gias em que aparecem como os representantes de uma instncia englobante ou emergente. Neste sentido, objetos e smbolos es-to mutuamente implicados numa relao sem hierarquia. Co-mo sugere Latour (2007:46), os smbolos so apenas mais al-guns de uma srie de apoios fugidios que caracterizam as rela-es entre os seres humanos menos ou mais duradouramente, mas jamais necessariamente:

    Os smbolos no poderiam ser originrios. Quando eles estive-rem suficientemente sustentados, quando as capacidades cog-nitivas estiverem suficientemente instrumentadas, suficiente-mente pesadas, ser possvel atrelar-se a eles provisoriamente, mas no antes (loc. cit.).

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    Sob este aspecto, Latour e Hennion se distinguem explici-

    tamente tanto de Bourdieu quanto de Becker. Ali, onde encon-tramos uma discordncia direta, eles rejeitam o carter ilusrio e traioeiro da obra de arte; aqui, onde encontramos uma con-vergncia e uma radicalizao, ele expande o conceito de mun-do artstico para nele incluir a interveno dos objetos.

    Quer dizer, ao mesmo tempo em que encontramos uma afinidade de ideias entre a teoria do ator-rede e o interacionis-mo praticado por Becker, percebemos, vinda dos dois lados, uma crtica cerrada sociologia crtica realizada por Bourdieu. Ao contrrio deste ltimo, que v as dinmicas entre classes permeando todas as interaes que ocorrem dentro de um de-terminado campo, Becker rejeita a ideia de um nico princpio gerador da vida social: [] mais provvel que muitos princ-pios funcionem juntos, de uma maneira ou de outra, para pro-duzir a baguna da vida do dia-a-dia (BECKER; PESSIN, op. cit.). Contudo, a teoria do ator-rede recusa a ideia, central para o interacionismo, de que mediaes simblicas emergiriam acima das cabeas dos atores a partir desse caos quotidiano. Na verdade, elas estariam no mesmo nvel em que esto as coisas e no so, de modo algum e diferentemente do que sugere Alain Pessin sobre este aspecto do trabalho de Becker, as nicas ver-dades que o mundo social pode produzir (loc. cit.). Como ar-gumentam Hennion e Latour,

    J tempo de rever esta custosa fico dualista e de descer das oposies entre grandes princpios e operaes ordinrias dos atores. [...] [Isto] implica que no escolhamos a priori que um princpio de explicao social (o interesse, o meio, a organi-zao, a distino) tem mais realidade que um princpio estti-co ou cientfico (a beleza da obra ou a verdade da fsica) (op. cit.:7, traduo modificada).

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    Desse modo, se Becker v um mundo artstico como as pessoas de carne e osso que esto tentando realizar projetos atravs do recrutamento do apoio de tantas outras pessoas de carne e osso, os defensores da teoria do ator-rede vem apenas redes scio-tcnicas onde, de acordo com o comentrio de Vandenberghe,

    tudo, todo um mundo de humanos (os cientistas, os polticos, os marinheiros-pescadores [...] etc.) e de no-humanos (os mi-crbios, os criados, [...] as palavras, etc.) podem ser associados, interessados, mobilizados, enrolados, encadeados e alinhados pela fora ou pela astcia, traduo ou traio, delegao ou representao em uma rede rizomtica de atuantes em devir (2006:344-5).

    Desse modo, pode-se complementar ainda com Vandenberghe, o que se pode encontrar na teoria do ator-rede uma forte des-confiana em relao dimenso simblica da vida social (:339). Desconfiana que faz com que os prprios objetos pas-sem a ser encarados como parceiros momentneos de uma rea-lidade que no comeou num nico ponto determinado, tam-pouco foi ganhando forma a partir das numerosas interaes dirias entre as pessoas. Assim, o que se enfatiza neste tipo de anlise no so os objetos em detrimento dos smbolos, mas, antes, o carter relacional de uma realidade que o resultado, ou melhor, o efeito de performances em que humanos e no-humanos se associam em redes, transformando-se sem cessar to logo outros elementos sejam incorporados ou descartados ou, d na mesma, to logo novas relaes se configurem. As-sim, ao invs de uma substncia primeira, a sociedade ou o in-divduo, tem-se uma relao primeira:

    A relao no liga os elementos quando eles so j constitu-dos (inter-relao). Os relata no pr-existem relao, mas [existem] como operao, a relao os constitui como entida-

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    des que emergem da relao, como dos relata, internamente re-ligados (intra-relao). Nessa perspectiva performativa, no se trata tanto de "ver as relaes entre as coisas", quanto, como diz to bem Marilyn Strathern [...], de "ver" "as coisas como re-laes" (:345, grifos no original).

    Se, para Latour, este encadeamento de encadeamentos o

    objeto de uma sociologia da traduo, onde, conforme Vanden-berghe, [n]ada se deduz de nada, pois no h totalidade, nem verdade, nem essncias, nem substncias sobre as quais pode-ramos erigir um sistema (:344); para Hennion, o objeto de uma sociologia da mediao. Ora, os dois afirmam que traduo e mediao so termos afins em seus trabalhos (HENNION; LATOUR, op. cit.:10).3 De qualquer modo, vale a pena nos de-termos na ideia de mediao por um momento. Ela central para o pensamento de Hennion, que o autor que nos interessa mais diretamente aqui. No importa reter um inventrio dos sentidos isolados que a palavra porventura adquiriu ou pode adquirir, mas, passando por alguns deles, tentar entender me-lhor quais so as razes intelectuais, digamos, de sua aborda-gem sociolgica para a msica.

    De acordo com Raymond Williams (1983:204-7), por exem-plo, a palavra mediao bastante complexa. Em ingls, os trs sentidos originais da palavra latina mediare chegaram a se esta-belecer: 1) interceder entre dois adversrios para reconcili-los; 2) um instrumento de transmisso ou agncia como um meio; e 3) diviso ou, mais precisamente, diviso ao meio. Destes, o l-timo se tornou obsoleto; os outros dois, mesmo que se tenham tornado comuns, acabaram adquirindo uma srie de sentidos que variam dentro de dois registros, o uso geral e o especfico.

    No uso geral, o sentido 1), de reconciliao, se consagrou designando a intercesso de Cristo pelo homem diante de

    3 Vandenberghe, alis, tambm chama a ateno para isso (2006:358, nota 24).

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    Deus, alm de manter o sentido original latino, mais pol-tico, de reconciliao ou tentativa de reconciliao de dois adversrios. Ainda, encontramos o sentido 2), de agncia intermdia, tanto de objetos quanto da mente: no ser to-cado seno pela mediao de uma vara e o entendimen-to recebe coisas pela mediao, primeiro dos sentidos ex-ternos, depois da imaginao. De acordo com Williams, um outro sentido aparece no uso geral quando se atenta para o emprego do adjetivo ingls mediate, que o de uma relao indireta e dependente de tipo intermdio, tal como em 2), e onde h sempre um mediato contrastando com um imediato: a causa imediata da morte a resoluo ou extino dos espritos; a destruio ou corrupo dos r-gos no seno a causa mediata.

    Assim, pode-se notar que havia um complexo de sentidos

    que, a partir de um dado momento da histria da lngua ingle-sa, ganharam novas conotaes com o uso especfico da palavra. Na verdade, especialmente a partir da traduo de alguns sis-temas de pensamento modernos orginalmente concebidos em lngua alem e dos quais a categoria central Vermittlung foi tra-duzida para o ingls com a palavra mediao, ou melhor, medi-ation.

    No uso especfico, o sentido de mediao que mais se des-tacou foi o 1), de reconciliao e, mais precisamente, de um processo de reconciliao. Ainda assim, este processo aparece de trs maneiras bastante distintas: a) como a bus-ca por um ponto central entre dois opostos, comum na po-ltica; b) como a interao de duas foras ou conceitos opostos pertencentes, suposta ou realmente, a uma mesma totalidade; c) tambm como uma interao entre duas for-as ou conceitos opostos, mas uma interao substancial em si mesma, ou seja, no pertencente a uma totalidade.

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    Com este deslocamento na direo de um processo, o que acontece com todos estes trs matizes comparativamente ao daqueles presentes no uso geral da palavra mediao a promoo do mediador a um papel que vai alm ao de um mero instrumento. No caso de b), refere-se aproxi-mao de partes imprescindveis de um mesmo todo, mas distintas entre si de diversas maneiras: aparentemente se-paradas na tradio idealista; contraditrias na marxista; e conscientes ou inconscientes na psicanaltica. J em c), a mediao no um simples recurso que resolve uma dua-lidade entre partes, mas uma atividade necessria, positi-va e autnoma: [n]o o processo neutro da interao de formas separadas, mas um processo ativo no qual a forma da mediao altera as coisas mediadas, ou que, pela sua natureza, indica a natureza deles (:205).

    J segundo Sonia Livingstone (2009), que tambm escreve

    a partir das colocaes iniciais de Williams, hoje ainda pode-mos notar as oscilaes entre estes dois ltimos sentidos da pa-lavra mediao no campo emergente dos estudos da mdia e da comunicao. Para ela, h a duas maneiras prevalecentes de encarar o papel dos meios de comunicao de massa na vida social atualmente. Por um lado, uma em que eles no so ape-nas mais uma das muitas esferas que compem o quadro insti-tucional da modernidade, mas em que j estariam subordinan-do as demais em termos de poder. Neste sentido, como argu-menta Livingstone, nem tudo mediado, uma vez que os mei-os de comunicao de massa se impem sobre as autoridades governamentais, a educao, a Igreja, a famlia etc., usurpando-lhes poder unilateralmente: [h]oje, estas instituies perderam alguma da sua antiga autoridade e a mdia, em alguma medi-da, assumiu o papel delas como provedoras de informao e orientao moral (HJARVARD, 2008:13 apud LIVINGSTONE, op. cit.:6). Por outro lado e em decorrncia de sua crescente oni-

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    presena no quotidiano, uma em que eles precisam ser conside-rados em qualquer anlise que se pretenda realizar das intera-es entre diferentes destas esferas da vida contempornea. Aqui, tudo mediado, j que os prprios meios de comunica-o de massa no esto isentos dos efeitos da ao humana rea-lizada atravs deles:

    Podemos argumentar que, como se d com a linguagem, a mdia de hoje se tornou significativa por causa da atividade humana coordenada e, ao mesmo tempo, que as pessoas en-tendem o mundo e sua posio nele atravs da mdia. A me-diao uma via de mo-dupla (LIVINGSTONE, op. cit.:5).

    A partir da, podemos esboar uma generalizao para os

    sentidos que a palavra mediao pode adquirir na grande rea das cincias humanas, ou seja, num campo de conhecimento que, embora vasto, faa dela um uso especializado ou, como diz Williams, especfico. Talvez sem grande prejuzo, podemos dizer que a mediao a entendida de duas maneiras distintas: ora como parte de um todo, ora como uma partcula autnoma. Como j vimos, a teoria do ator-rede se dedica anlise de re-laes simtricas entre elementos que no esto dados desde o incio, mas que s existem em conexo uns com os outros. Des-se modo, a noo de mediao em Hennion se aproxima bas-tante daquela ltima apresentada por Williams, em que a natu-reza das coisas mediadas depende da natureza da prpia me-diao. Igualmente, ela tambm se aproxima bastante da de Li-vingstone, em que a mediao atua em dois sentidos, isto , as pessoas transformam as instituies que as transformam, sejam elas lingsticas, econmicas, literrias etc. Aqui e ali, a media-o possui um valor de ser, como recorda Vandenberghe (2006:345), mas sem jamais se fechar numa totalidade sistmica. Ainda assim, embora possamos apontar para aproximaes en-tre estes diferentes usos da palavra mediao, tambm pode-mos sugerir um parmetro para o seu distanciamento: a agn-

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    cia dos objetos. Ora, de acordo com Hennion, [u]m mediador no nem causa nem conseqncia, nem meio nem fim. um evento que transforma radicalmente o que entra e o que sai. Fa-le com um marionetista e ele lhe falar do que suas marionetes o fazem fazer (HENNION; LATOUR, op. cit.:9). J para Willi-ams, embora todos os objetos devam ser colocados entre as-pas em conformidade com a nfase analtica na relao, eles ainda so mediados por relaes sociais especficas (op. cit.:206). Livingstone tambm no vai adiante neste sentido, ar-gumentando que o mais interessante nos processos de media-o no so os prprios meios de comunicao, mas as rela-es cambiantes entre estruturas sociais e agentes (op. cit.:5).

    No fundo, Hennion quer apontar para uma via de anlise sociolgica onde no se presuma um abismo entre, por um la-do, uma estrutura social englobante de onde despencam todos os sentidos reais das aes humanas, estrutura esta construda como um dado natural por alguns socilogos sobretudo aque-les da linhagem que se estende de mile Durkheim at Bourdi-eu passando pelo antroplogo Claude Lvi-Strauss; e, por ou-tro lado, as interaes face-a-face didicas que efetivamente ocorrem no cotidiano, construdas como um locus hermetica-mente fechado de onde emergeriam smbolos que abrangem os atores em relao imprevisivelmente, ao invs de se precipitar sobre eles sistematicamente como o fazem Harold Garfinkel e, principalmente, Erving Goffman, mas tambm Becker. Para ele, ento, a nica maneira de superar este abismo se livrar do que chama reflexo anti-fetichista das cincias sociais, isto , re-conhecer que no h uma causalidade mecnica entre a inten-o de uma pessoa e o objeto que ela manipula, tampouco o contrrio, algo como uma distopia animista. Admitir esta dose de fetichismo , finalmente, perceber, ao invs de uma duali-dade entre a Natureza e a Cultura, um nico eixo ontolgico composto por densas associaes de humanos e no-humanos

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    que se medeiam uns aos outros sem jamais alcanarem um ex-tremo fixo:

    Esta reabilitao dos objetos passa por uma inverso de ten-dncia: ao invs de purificar seu estado, necessrio mistur-los, [...] situar todos os produtos materiais da arte ou da cin-cia sobre um eixo. As extremidades deste eixo que, ao con-trrio, esto vazias, estes pontos de fuga bem pouco veross-meis, que seriam, de um lado, amuletos sem contedo, de es-tatuto puramente social, e, de outro, obras absolutamente ver-dadeiras ou belas, de estatuto perfeitamente autnomo (HENNION; LATOUR, op. cit.:6).

    Em termos prticos para o sociolgo em geral, isto signifi-

    ca adotar ou, pelo menos, imaginar uma atitude deliberada-mente acrtica e descritiva diante da constituio de redes s-cio-tcnicas: aceitar a proliferao de mediadores para permi-tir que a sociologia integre objetos, corpos, instrumentos e des-creva um mundo que seja, enfim, repleto tanto de coisas quanto de humanos (:10). J para o socilogo que se interessa em to-mar a msica como seu objeto de investigao, isto significa tentar ultrapassar a separao entre os contedos musicais e as condies sociais de tais contedos (:6). Mais especificamente, conforme o comentrio sobre o trabalho de Hennion realizado por Tia DeNora (2004), isto significa tentar conciliar as contri-buies metodolgicas da prpria sociologia com as da musico-logia para o estudo da msica. Neste sentido, deve-se tanto atentar para as articulaes entre formas de msica e formas de vida, como querem os socilogos, quanto para o papel dos efei-tos musicais, quer dizer, dos efeitos no-representacionais da msica na prpria constituio destas formas de vida, como querem os musiclogos; estes

    Nos lembram que a vida social no meramente socialmente construda, mas feita referindo-se a materiais, convenes e

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    tecnologias das quais a msica uma , e que estes materiais podem mediar as coisas que so feitas com eles e a eles (:214).

    Segundo DeNora, o que deve resultar de uma abordagem

    como essa uma uma sociologia musical (music sociology), ao invs de uma sociologia da msica (sociology of music). Aqui, os arranjos de composio, a realizao dos parmetros musi-cais em performance, as estruturas meldica, rtmica e harm-nica, os gneros, o andamento, o fraseamento, a orquestrao; tudo isso dotado de um dinamismo interno que incide sobre aqueles que com ele se relacionam, transformando-se em tec-nologias de identidade (:211). Assim, fazer uma sociologia mu-sical tomar a msica, tambm ela, como um agente capaz de instigar consenso ou subverso, de pressagiar a ao (:213; 218).

    Ao invs de explicaes sociolgicas cristalinas e revela-doras como as de Bourdieu, Hennion e Latour querem produ-zir composies mal-acabadas: [o] martelo slido do icono-clasta se transforma no pincel, no formo, no microscpio do iconfilo (HENNION; LATOUR, op. cit.:8). Isto os aproxima bastante de Becker, novamente, uma vez que ele no quer des-cobrir uma verdade por trs das aes supostamente iludidas das pessoas, isto , ele no quer descobrir nada alm do que as prprias pessoas participando de um determinado mundo so-cial j no saibam elas mesmas: [s]ocilogos descobrem o que este daqui sabe e o que aquele dali sabe de maneira que, ao fim, eles podem juntar o conhecimento parcial dos participantes num entendimento mais abrangente (BECKER; PESSIN, op. cit.). A diferena entre esta perspectiva e aquela delimitada pela teoria do ator-rede que, neste caso, nunca se chegar a um en-tendimento mais abrangente, uma vez que as interaes no so mais esquematicamente reduzidas a um encontro face-a-face entre dois corpos nus, mas empiricamente reduzidas pela mediao ininterrupta dos objetos: [n]s somos obrigados, pa-ra seguir uma interao, a desenhar um emaranhado bastante mvel que mistura tempos, lugares e atores heterogneos, o

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    que nos fora a rasurar sem parar o quadro fixado (LATOUR, op. cit.:43). De acordo com Vandenberghe (2010:6, nota 10), esta opo por um achatamento ontolgico em que os objetos fabri-cam a realidade em parceria com os seres humanos resulta nu-ma sociologia experimental hipocrtica da qual vlido guar-dar os pressupostos metodolgicos anti-essencialistas, isto , que h realidades construdas sobre uma realidade que no se constri; mas no os irrealistas, ou seja, que toda realidade construda:

    A meio-caminho entre a micro-histria e a grande metafsica, a cientificizao latouriana se apresenta como uma etnografia li-terria, infra-reflexiva [...], multi-situada [...] e combinatria [...], que se prope seguir os atores que configuram e perfor-mam tecnicamente o mundo como seguimos e construmos uma histria, que prolifera como um romance (2006:347).

    Para Hennion, ento, a msica no simboliza um social

    implcito, isto , as disputas entre classes ou entre fraes de classe, como ocorre com Bourdieu; nem emerge das redes de produo de obras de arte, como ocorre com Becker. Antes, ela se associa aos seres humanos na produo de efeitos estticos. Neste sentido, nenhum dos fatores desta relao, nem mesmo as pessoas, completamente autnomo, ou seja, nenhum deles produz significados sozinho, mas apenas relacionalmente. Isto faz de todos eles, humanos e no-humanos, mediaes simtri-cas de uma cadeia mais ou menos estvel ao mesmo tempo que tendencialmente crescente:

    A ideia de que os elementos no tm significados seus e em si mesmos crucial para este argumento "relacional" [...]; alm daquela de que, quando um mediador particular escolhido por causa de uma preferncia esttica ou de um significado social, a introduo deste elemento iniciar toda uma seqn-cia de mudanas nos valores designados para outros interme-

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    dirios e resultar na produo de gneros musicais muito di-ferentes. No h espao global ao qual a msica pertena. [...] Ao aproximar coisas e humanos e ao entretecer as suas inter-sees, [nota-se que] eles formam um envelope resistente o su-ficiente para reter os elementos e flexvel o suficiente para crescer, se modificar e se fixar em agrupamentos maiores. O que a sociologia pode fazer rastrear esta seqncia de even-tos (HENNION, 1997:433, traduo modificada).

    Desse modo, o revival do barroco na Frana a partir da dcada de 1970, o jazz, o rock e o rap no so apenas o resultado de disputas simblicas travadas entre agentes humanos social-mente condicionados ou das negociaes quotidianas de quem diz estar fazendo arte, mas tambm da interferncia de uma srie de objetos que, embora insignificantes em si mesmos, con-tribuem ativa e mesmo inesperadamente para a produo de efeitos estticos. Quer dizer, eles no so apenas ferramentas previsveis mobilizadas por produtores artsticos, sejam gnios, sejam do pessoal de apoio. No caso do revival do barroco (:418-27), por exemplo, a preferncia pelo emprego de instru-mentos tradicionais provocou uma redefinio gradual do que era a verdadeira msica barroca. E no apenas isso, mas tambm uma redefinio de quem foi Bach para a msica e, fi-nalmente, uma redefinio do que era a msica simplesmente, j que, pelo menos na Frana, o estatuto desta est intimamente atrelado ao daquele. CONSIDERAES FINAIS

    Qual o papel da obra de arte na vida social? Buscamos fundamentar esta pergunta teoricamente. Para tanto, realiza-mos um breve estudo comparativo, cujo principal intuito foi o de entender a sociologia das mediaes de Antoine Hennion luz das abordagens de Pierre Bourdieu e Howard S. Becker pa-ra a produo artstica. Estabelecidas desde os anos 80 do scu-

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    lo passado, as teorias do campo artstico e dos mundos da arte convergem, por um lado, na nfase que do, ou melhor, que no do obra de arte em comparao que do ao huma-na: Bourdieu, preocupado a todo momento em denunci-la como a iluso de mecanismos invisveis de dominao; Becker, suspendendo qualquer juzo esttico para poder se dedicar s inmeras interaes entre seres humanos que condicionam o gnio criador e, principalmente, sua criatura. Por outro lado, os dois autores no poderiam discordar mais um do outro no mo-do como enxergam esta ao humana por trs da obra de arte. Para Becker, os indivduos tm bastante autonomia na defini-o das redes de um mundo da arte; em alguns casos, como nos de alguns vanguardistas bem-sucedidos, bastou mesmo que se nomeasse um objeto como uma obra de arte para que ele co-measse a ser integrado como uma nova conveno entre aque-las que ali j vigiam. O que muito diferente do que Bourdieu sugere: o campo artstico se impe ao indivduo, nele se insta-lando e formatando a sua sensibilidade; desse modo, em meio aos mais diversos estmulos, ele perceber apenas alguns como constituindo obras de arte. Menos ou mais, como tentamos mostrar, estas duas abordagens contrastam com a que Hennion nos prope.

    No caso de Bourdieu, pode-se dizer sem grande exagero que h uma franca discordncia. Para tanto, foi necessrio ex-por a principal inspirao terica da sociologia da msica de Hennion, a teoria do ator-rede. Assim como Bruno Latour, Hennion rejeita a sociedade como um princpio explicativo do papel dos objetos em nossas vidas. Mais precisamente, ele ar-gumenta que os objetos, tambm eles, constituem princpios como este junto com grupos de seres humanos, no sendo me-ramente os rebatimentos simblicos de uma estrutura englo-bante pressuposta por socilogos. Quer dizer, h um refluxo contnuo, crescente e virtualmente infinito de agncias: no mais apenas de cima para baixo, no sentido dos humanos para

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    as coisas, mas indo e vindo de todos os lados, inclusive das coi-sas para os humanos. Chamando a ateno para estes dois pon-tos, isto , para o carter construdo do artefato sociedade e para a irredutibilidade de um artefato a um outro, portanto, da obra de arte sociedade e vice-versa, Hennion quer superar a oposio entre a sociologia e a esttica, argumentando que h associaes mais ou menos estveis entre seres humanos e obras de arte. No h a hierarquias verticais rgidas, caracteri-zadas por um grande abismo a ser superado por uma soluo de continuidade entre dois tipos de seres, no caso, os humanos e os no-humanos; mas simetrias horizontais muitssimo den-sas e sem cortes, caracterizadas pelos vnculos que ligam uns e outros numa rede scio-tcnica onde todos desfrutam do mes-mo estatuto de actante (LATOUR, op. cit.:51; VANDEN-BERGHE, 2006:341).

    Argumentamos que esta uma perspectiva que diverge radicalmente da de Bourdieu, no apenas porque se atribui agncia a objetos, mas porque, ao faz-lo, Hennion desacredita a ideia de que os seres humanos sejam agentes passivos nas mos da sociedade e, no caso da msica, a ideia de que eles es-tejam iludidos em seu gosto. Para ele, d-se justamente o con-trrio. Pelo menos em se tratando de suas pesquisas na Frana, Hennion (2003:89) afirma que chega a ser difcil des-sociologizar o discurso altamente sociologizado do amante da msica sobre a relatividade e a historicidade de seu gosto. Lo-go, trata-se de analisar como estas pessoas mesmas o realizam:

    As mediaes nem so meros vetores da obra, nem substitutos que lhe dissolvem a realidade; elas so a prpria arte, como particularmente bvio no caso da msica: quando um perfor-mer coloca uma partitura em sua estante, ele toca aquela m-sica, certamente, mas a msica igualmente o prprio fato de tocar; as mediaes em msica tm um carter pragmtico elas so a arte que elas revelam e no podem ser distinguidas da apreciao que geram (:84, meu grifo).

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    Assim, uma vez que no h uma estrutura englobante,

    mas redes pouco ou muito povoadas por actantes, no cabe ao socilogo adotar uma atitude iconoclasta e destruir os fetiches que supostamente a esconderiam. Pelo contrrio, advogando uma certa dose de fetichismo ou de iconofilia, ou seja, o reco-nhecimento de que os objetos no so meras extenses dos se-res humanos, Hennion adverte que cabe ao socilogo remontar sequncias de eventos analtica mas no criticamente: [p]odem-se imaginar cincias sociais que no sejam mais crti-cas (ver Boltanski e Thvenot), mas parece impossvel imaginar cincias sociais privadas de capacidade analtica (HENNION; LATOUR, op. cit.:10). Desse modo, uma msica no apenas um intermedirio simblico que distingue posies dominantes e posies dominadas dentro de um campo de disputas por poder; nem, portanto, um objeto fixo e isolado, descartado sem maiores consequncias das relaes em que est inserido. Para Hennion, ento, uma msica no pode ser entendida como o produto acabado da ao humana, mas apenas como o efeito circunstancial de uma srie de mediaes que conectam coisas e homens e, mais precisamente, um envelope fabricado a par-tir delas.

    J no caso de Becker, apontamos para uma convergncia e, na verdade, uma radicalizao da parte de Hennion. A partir deste deslocamento terico no sentido de um achatamento on-tolgico em que os objetos fabricam a realidade em parceria com os seres humanos, Hennion avana a ideia de que os ele-mentos caracteristicamente musicais da msica, isto , seus elementos no-representacionais, devem ganhar destaque nas investigaes sociolgicas deste fenmeno. Assim, eles no so smbolos estufados com os sentidos que emanam de uma estru-tura oculta que pesa inexoravelmente sobre o instante de uma performance musical. Antes, eles so entes independentes que atuam sobre tantos quantos forem os outros entes independen-

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    tes que tambm venham a atuar sobre eles. neste sentido que sugerimos que a proposta de Hennion pode ser entendida co-mo uma radicalizao da de Becker. Por um lado, ambas con-vergem quando do prioridade terica s pequenas interaes que configuram os diferentes mundos da arte, rejeitando assim a inescapabilidade de um campo artstico monoltico sedimen-tado no curso da histria de disputas sociais e que mal se pode arranhar, como preferiria Bourdieu. Por outro lado, Hennion extrapola Becker na medida em que estende at os objetos mu-sicais uma agncia que antes era atribuda apenas aos seres humanos tanto na redefinio quanto na manuteno do que convencional e aceitvel dentro daqueles mundos:

    Isto conduz a uma promoo terica dos objetos em mediado-res: no mais suportes das causas decididas pelo socilogo (o mercado, a organizao, a diferenciao social...), mas produ-tores de princpios, de meios e de objetos que constituem um universo cientfico ou um mundo da arte, segundo a expres-so de [Howard S.] Becker (:7).

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