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Gesto/ação/pensamento musical: o fazer musical da infância
Maria Teresa (Teca) Alencar de Brito Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP
Teca Oficina de Música, São Paulo, SP [email protected]
Resumo. Reflexões “koellreutterianas” em diálogo com teorias contemporâneas, bem como, com conceitos propostos por Gilles Deleuze e Félix Guattari, ao lado da observação e análise do fazer musical da infância, definem o objeto dessa pesquisa (desenvolvida no programa de doutorado do curso de Comunicação e Semiótica da PUC-SP), que propõe cartografar construções de idéias de música entre os três e os doze anos de idade. Considerando a efetiva integração entre corpo/mente e ação/reflexão, vimos acompanhando processos que envolvem perceber, escutar, produzir gestos, interpretar, criar, registrar e refletir. Pretendemos mapear percursos de prática e elaboração de conceitos, destacando o significado que a música assume no curso da infância. Propondo que a criança vive um modo menor (segundo Deleuze e Guattari) de fazer e significar a atividade musical, essa pequisa objetiva, também, ampliar e redimensionar procedimentos pedagógicos que favoreçam o exercício significativo da música da infância.
A presença da música no conjunto de modos de ação/representação/comunicação
característicos do ser humano é estudada e analisada, desde há muito tempo, sob diversas
óticas (relacionadas à estética, à filosofia, à sociologia, à antropologia, à educação...), em
sintonia com os paradigmas vigentes em cada época e cultura. Funções e significados do
fazer musical1 dialogam com os modos de produção e de recepção, que incluem os
materiais sonoros disponíveis, bem como, os meios propiciadores e facilitadores do fruir
musical.
Como atividade cultural e construção temporal, a música estrutura sons e silêncios
segundo cânones sintonizados com modos diversos e singulares de perceber e representar o
mundo. Assim, as transformações sociais, econômicas, científicas etc que marcaram o
século XX , a exemplo do que ocorreu em épocas anteriores, ressoaram esteticamente,
atualizando modos de pensar, de criar, redimensionando, assim, as idéias de música.
A música é uma das formas de manifestação da consciência; é forma de representação
simbólica que inter-relaciona os mundos interno e externo, o ser e o ambiente, a natureza e
a cultura, em contínua e dinâmica (re)construção.
1 Entendemos por fazer musical “o contato entre a realização acústica de um enunciado musical e seu receptor, seja este alguém que cante, componha, dance ou simplesmente ouça”. FERRA, S. “Elementos para uma análise do dinamismo musical”, in Cadernos de Estudo/Análise Musical nº6/7, SP, Atravez, 1994, p.18.
Tal concepção estendemos e aplicamos a distintos modos, níveis, graus de imersão e
complexidade do fazer musical. Como um sistema dinâmico e emergente, a música
territorializa e atualiza o modo de ser humano em sua totalidade.
O advento de gravadores e de outros meios de registro e difusão sonoros ampliaram as
possibilidades de troca de informações interculturais, relativizando valores e hegemonias.
(Delalande, 1984). Para além da música ocidental tradicional, documentada pela força da
escritura, tornou-se possível conhecer variantes organizacionais de som e silêncio próprios
a tempos e espaços singulares e distintos.
No “todo” dos “jogos sonoros” culturais incluem-se as crianças que, se já interagem
com sons e músicas antes mesmo do nascimento, ampliam e transformam dinamicamente
suas experiências ao longo da vida, em contextos educativos ou não.
O rádio, a televisão e as demais mídias agenciam transformações nos modos de
perceber/produzir/significar sons e silêncios, influenciando, sobremaneira, o
comportamento musical dos sujeitos que vivem nas sociedades de massa. E se,
especialmente a partir da segunda metade do século XX, o emergir de consciências
sintonizadas com transformações de ordens diversas ampliou (e considerou) os campos de
possibilidades para explorar, produzir e organizar sons, o sistema dominante nos meios de
comunicação reforça a difusão de modelos padronizados, formando – para um grande
número de indivíduos - uma única idéia de música.
É preciso reconhecer o caráter vivo e dinâmico da linguagem musical, manifesto nos
modos de produção e recepção, de difusão, de comunicação, de ensino e aprendizagem,
assim como, pela convivência de muitos caminhos e possibilidades de realização. E um
recorte dessa questão refere-se à interação das crianças com os sons e com a música; com o
desenvolvimento das condutas musicais na infância.
Para o compositor alemão Hans-Joachim Koellreutter, “a música é, em primeiro lugar,
uma contribuição para o alargamento da consciência e para a modificação do homem e da
sociedade” (Koellreutter, 1997:72).
Koellreutter definiu consciência como “a capacidade do ser humano de apreender os
sistemas de relações que o determinam: as relações de um dado objeto ou processo a ser
conscientizado com o meio ambiente e o eu que o apreende" (Koellreutter apud Brito,
2001:47). O compositor não se refere ao mero conhecer, ao conhecimento formal ou a
qualquer processo de pensamento, mas, sim, ao inter-relacionamento constante que se
estabelece entre corpo/mente/ambiente, que implica em ato criativo de integração. O ser
consciente apreende e conhece, cria e constrói, em contínuo movimento de transformação e
integração.
A abordagem de Hans-Joachim Koellreutter revela influências da fenomenologia de
Maurice Merleau-Ponty e da física quântica, bem como, manifesta sintonia com teorias
dinamicistas propostas posteriormente, destacando as psicólogas americanas Esther Thelen
e Linda Smith.
As reflexões geradas pelas proposições de Koellreutter em diálogo com outras
abordagens teóricas, de um lado, e o contato direto com o fazer musical de crianças, de
outro, definem o objeto da pesquisa que vimos desenvolvendo no programa de Doutorado
do curso de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, qual seja: observar e analisar os
processos de integração “gesto/ação/pensamento musical” no período compreendido entre
três e doze anos de idade.
A pesquisa em curso tem como objetivos:
• Ampliar os conhecimentos relativos à construção de um pensamento/ação
musical infantil em sua relação dialógica entre a natureza (do ser) e a cultura (da
música);
• Apontar e analisar – nos contextos do fazer musical da infância - a presença de
uma “espécie” de “estética musical” própria aos diferentes estágios do
desenvolvimento infantil em sua totalidade;
• Transcender interpretações e procedimentos pedagógicos padronizados, pela
valorização dos aspectos singulares presentes na relação de cada criança (e/ou
grupo) com o sonoro e o musical;
• Avaliar as relações que se estabelecem entre as crianças, os educadores, os
sistemas e os métodos de ensino musical;
• Redimensionar campos de possibilidades para a realização do trabalho de
educação musical em seus diversos espaços de acontecimento.
Os fundamentos teóricos que dão suporte ao desenvolvimento do trabalho em questão,
consideram:
• O pensamento artístico-pedagógico do compositor alemão Hans-Joachim
Koellreutter;
• A teoria dinamicista proposta pelas psicólogas Esther Thelen e Linda Smith;
• A pesquisa das condutas musicais infantis desenvolvida por François
Delalande;
• A filosofia de Gilles Deleuze, com ênfase para os conceitos de maior/menor e
rizoma;
• Abordagens sobre a música e o fazer musical destacando o pensamento de
John Cage, Murray Schafer, Pierre Schaeffer, J.J.Nattiez e Jean Molino, dentre
outros;
A pesquisa teórica e conceitual será complementada pela análise de ações e reflexões
musicais observados em crianças com idades entre três e doze anos, integrantes de grupos
de musicalização de uma escola de música, em São Paulo, Brasil.
No que diz respeito à observação e análise da atividade musical infantil, vimos
considerando:
• A interação de crianças em grupos de musicalização, ou seja, em situações de
intervenção educativa;
• Os modos de perceber, escutar, explorar materiais sonoros, produzir gestos,
imitar, interpretar, improvisar, compor e registrar, destacando singularidades (de
cada criança /de cada grupo) e aferindo características gerais (próprias às
distintas idades).
• As reflexões, os comentários, as análises e opiniões das crianças; os percursos
de elaboração de conceitos e, especialmente, o reconhecimento e o significado
que a linguagem musical assume para elas;
• Os produtos musicais, considerando características estruturais e formais;
O método utilizado consistirá na observação e avaliação qualitativa dos processos
infantis de construção musical, bem como, na análise de registros escritos e audiovisuais
documentados desde 1988 até os dias de hoje.
Conforme proposições da teoria dinamicista de Esther Thelen e Linda Smith (1998),
consideramos que cada ser humano reconstrói a idéia da música, como parte de seu
exercício de interação com o sonoro e de sua característica de viver na linguagem –
simbólica, expressiva e reflexivamente.
A construção do significado da música, ou seja, a “re-invenção” da música por cada
sujeito, se dá pela interação interno/externo: eu-ambiente-construção de relações sonoro-
musicais. Sempre na integração corpo/mente, ação/reflexão.
O fazer musical é uma das formas de relação do ser humano com o sonoro, forma de
organização da percepção, de manifestação consciente, de realização complexa, de
pensamento, de comunicação e expressão, de jogo; é um dos sistemas que territorializa e
atualiza o modo de ser humano (que envolve o perceber, o sentir, o pensar, o comunicar, o
interagir, o organizar, o criar, o repetir...).
A música é um sistema dinâmico sintonizado com a consciência – de uma criança ou de
um adulto, de um oriental ou ocidental, de um pescador, de uma comunidade, em um
espaço-tempo. Dessa feita, o modo como as crianças percebem, apreendem e se relacionam
com os sons no espaço-tempo revela também o modo como elas percebem, apreendem e se
relacionam com o mundo.
Observando as relações que se estabelecem entre os planos da criação musical infantil e
os sistemas institucionais pedagógicos, percebemos que estes tendem, em sua maioria, a
desconsiderar os primeiros. Preocupados em ajustar a transmissão dos valores e conceitos
próprios à música adulta, “oficial”, à maturidade cognitiva infantil em cada etapa, os planos
pedagógico-musicais, via de regra, atualizam-se em modelos que priorizam a reprodução, a
imitação do mesmo e não a construção, a criação e a exploração de possíveis.
Consideramos que a relação que se estabelece entre o modo musical da criança e os
sistemas de comunicação e educação pode ser analisada a partir do conceito de literatura
menor proposto pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari2.
A criança pode ser considerada com um ser que vive em modo menor, dotada de
percepções, pensamentos e modos de ser próprios, que escapam ao sistema adulto,
dominante. Este, por sua vez, pode ser entendido como um sistema em modo maior, que
inclui as instituições, a organização, a sistematização e a difusão padronizada dos saberes e
dos valores culturais.
2 O conceito de literatura menor foi apresentado em: DELEUZE, Gilles e GUATARI, Félix – Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
Valendo-se dessa hipótese, a pesquisa em questão deve ser entendida como uma
pesquisa sobre o fazer musical da infância – modo menor, ocupando-se daquilo que escapa
ao território oficial, ao controle do modo maior.
O fazer musical infantil atualiza-se num jogo dialogal que se estabelece entre as
estruturas internas emergentes e os sistemas musicais do meio externo. No jogo de
construção dos planos de organização musical das crianças, o modelo da cultura,
sobrecodificado pela máquina agenciadora de enunciados dominantes, territorializa uma
espécie de modo musical “oficial” que captura e “maioriza”, a cada vez, o modo musical
da infância
Interessa-nos pesquisar ações e significados do fazer musical da infância, considerando
seu intrínseco vínculo à consciência e considerando, também, que conscientizar – mais do
que aprender - é um processo que envolve corpo/mente e ação/reflexão em suas condições
de efetiva integração.
Especialmente, entendemos que esta pesquisa permitirá redimensionar e atualizar os
jogos entre as crianças, a música e a educação musical, visando a ampliar valores, sentidos
e significados, principalmente pela valorização de procedimentos singulares, que emergem
constante e dinamicamente, no cotidiano do fazer musical. Neste sentido, a pesquisa se
orientará para a atualização de uma educação musical construída rizomaticamente, no
sentido proposto por Deleuze e Guattari3.
A metáfora do rizoma - tipo de caule radiciforme próprio a alguns vegetais – remete a um
sistema complexo no qual os elementos se inter-relacionam, sem hierarquizações. O rizoma
não se confunde com o paradigma. Este, fechado, paralisa o pensamento; aquele, ao
contrário, faz proliferar pensamentos. (Gallo, 2003)
Um processo educativo gerido por um currículo rizomático constitui produções singulares,
a partir de múltiplos referenciais, abertas a resultados diversos. Caótico, anárquico e
particular, atualiza-se na contramão da estrutura curricular tradicional, que separa o
conhecimento, estrutura seqüências previamente e fecha-se ao emergir, estabelecendo
padrões e homogeneidades.
3 Para o conceito de rizoma ver DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix - Mil platôs-Capitalismo e Esquizofrenia, vol.4; tradução de Suely Rolnik – São Paulo: Ed.34, 1997, 176p. (Coleção TRANS)
Bibliografia
BRITO, Teca Alencar de – Koellreutter educador: o humano como objetivo da educação musical.
São Paulo: Editora Fundação Peirópolis, 2001.
____________ - Música na educação infantil: propostas para a formação integral da criança, São Paulo:
Editora Fundação Peirópolis, 2003
_____________ - Criar e comunicar um novo mundo: as idéias de música de H-J Koellreutter, Dissertação
de Mestrado, Programa de Comunicação e Semiótica, PUC/SP, 2003
CAGE, John - De Segunda a um ano; tradução de Rogério Duprat e Augusto de Campos, São Paulo: Editora
Hucitec, 1985.
DELALANDE, François – La musique est un jeu d’enfants. Paris: Éditions Buchet/Chastel, 1984.
DELEUZE, Gilles e GUATARI, Félix – Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago, 1977.
_______________________ - O que é a filosofia?; tradução de Bento Prado Jr
e Alberto Alonso Muñoz – Rio de Janeiro: Ed.34, 1992, 288 p. (Coleção TRANS).
____________ Mil platôs-Capitalismo e Esquizofrenia, vol.4; tradução de
Suely Rolnik – São Paulo: Ed.34, 1997, 176p. (Coleção TRANS)
FERRAZ, Sílvio– “Elementos para uma análise do dinamismo musical”, in Cadernos
de Estudo/ Análise Musical, n° 6/7, São Paulo, Atravez, 1994, p. 18.
GALLO, Sílvio – Deleuze e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
KATER, Carlos (org.) – Educação Musical: Cadernos de
Estudo nº6, Belo Horizonte: Atravez/EMUFMG/FEA/FAPEMIG, 1997.
KOELLREUTTER, Hans-Joachim – “O espírito criador e o ensino pré-figurativo”. In: KATER, C (org.)
Educação Musical: Cadernos de estudo n° 6, Belo Horizonte: Atravez/EMUFMG/FEA/
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MERLEAU-PONTY, Maurice – Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
MOLINO, Jean –“Facto musical e semiologia da música”, In: Semiologia da música, Nattiez, J.J, Eco,
Umberto, Ruwer, N., Lisboa: Vega Universidade, s/d.
THELEN, Esther & SMITH, Linda – A dynamic systems approach to the development
of cognition and action; 3º edition. Cambridge: The MIT Press (A Bradford book), 1998.