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    2. Do movimento feminista s teorias sobre gnero/

    sexo

    Enquanto Psique dormia, Cupido derrama, ento, algumasgotas de gua da fonte amarga sobre os lbios da jovem,embora ao v-la quase fora tomado de piedade; depois, tocou-ade lado com a ponta de sua seta. Ao contrrio, Psique acordou eabriu os olhos diante de Cupido (ele prprio invisvel), que,perturbado, feriu-se com sua prpria seta...1

    H diversos exemplos, no decorrer dos sculos, que revelam a mulher

    calada, silenciada, adormecida, ... quando sua voz (palavra) se manifesta. Esta ,

    muitas vezes, vista como inadequada/incoerente (amarga) ao expressar-se na

    esfera patriarcal onde est inserida.Ao longo da histria percebemos tentativas de reao ao sistema de

    estratificao social que discrimina seus membros de acordo com sua identidade

    sexual. Essa sutil discriminao, que se firmou com o advento da era judaico-

    crist, atribui mulher a sagrada vocao da maternidadecomo funo mxima,

    e isso nos faz repensar que esteretipos sexuais favorecem o homem em

    detrimento da mulher, cf. sinalizam SEABRA, Z.; MUSZKAT, M. (1985: 13-5).

    A participao da mulher em movimentos scio-polticos teve comoprincipal foco a apropriao do seu discurso mais do que da ao para fazer

    evidente suas reivindicaes, ainda que este, muitas vezes, tenha sido visto como

    inapropriado representao da mesma nos extratos sociais variados.

    Em Cameron (1999), encontramos relaes entre o movimento feminista e

    a anlise do discurso feminino. A autora esclarece que no se deve colocar a

    linguagem na agenda poltica dos movimentos sociais. Para ela, existe uma

    crtica feminista da linguagem e essa que deve influenciar a pesquisa dodiscurso pblico e/ou acadmico.

    Neste captulo, pretendo apontar as relaes do movimento feminista com

    as teorias sobre gnero/sexo e como essa articulao possibilitou o surgimento da

    lingstica feminista.

    1In: BULFINCH, Thomas. Livro de Ouro da Mitologia. Histrias de deuses e heris. Trad. DavidJardim. 27ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 2002: 101.

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    2.1 O movimento feminista

    O feminismo moderno quis tirar as mulheres do espaoprivado para o do trabalho.In: Oliveira (2003).

    Ao longo do sculo XX, o movimento feminista passou por diferentes

    momentos.Assim como outros movimentos de minorias sociais, este caracterizou-

    se ao longo de sua histria pela sua especificidade: a luta pela conquista dos

    direitos das mulheres.

    A Revoluo Francesa considerada o bero do feminismo. Em 1791,

    Olimpia de Gouges2lanou a "Declarao dos direitos da mulher e da cidad", em

    que proclamou que a mulher possui direitos naturais como o homem e deveria

    participar, por exemplo, do poder legislativo.

    Em fins do sculo XIX, o feminismo despontou na Inglaterra como

    movimento de emancipao, reivindicando igualdade jurdica, como direito ao

    voto, acesso instruo e s profisses liberais. Podemos, ento, destacar que o

    movimento sufragista foi considerado o primeiro marco do movimento feminista.

    Em agosto de 1910, em Copenhagen, por iniciativa da jornalista alem

    Clara Zetkin3, mulheres vindas de 17 pases adotaram a proposio de criar um

    "Dia Internacional da Mulher", com o objetivo de canalizar os esforos na luta

    para obteno do direito do voto feminino. Meses mais tarde, em 25 de maro de

    1911, ocorreu o trgico incndio da fbrica de camisas Triangle, em Nova York.

    Cento e trinta e nove trabalhadoras, jovens imigrantes italianas e judias, morreram

    devido falta de segurana nas instalaes. Esta tragdia - e as terrveis condies

    em que ocorreu - passou a ser sempre invocada por ocasio das celebraes do

    2 Olimpia de Gouges (1748-1793) Nascida em Montauban, na Frana, filha bastarda de umhomem influente e de Anne-Olimpe Muisset. Escreveu mais de quatro mil pginas de escritos

    revolucionrios ao longo de sua vida, entre peas de teatro, panfletos, novelas autobiogrficas,

    textos satricos, utpicos, filosficos. Olmpia mudou-se para Paris em 1768 e escandalizou a

    opinio pblica de seu tempo. Levantou dvidas sobre a escravido dos negros, tomou posies

    em favor dos direitos da mulher (divrcio, maternidade, educao, liberdade religiosa) eemprestou sua voz para defesa de todos os oprimidos e humilhados. Por isso, recebeu a

    condenao guilhotina, em 1793. Tais informaes encontram-se em:http://www.unb.br/acs/bcopauta/mulher1.htm3Clara Zetkin (1857-1933) alem, membro do partido comunista alemo, deputada em 1920,militava junto ao movimento operrio e se dedicava conscientizao feminina. Fundou e dirigiu

    a revista Igualdade, que durou 16 anos (1891-1907). Tais informaes encontram-se em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2001000200016

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    Dia Internacional da Mulher, oficialmente fixado em 08 de maro pela

    Assemblia Geral da ONU, a partir de 1975.

    Os anos de 1930 e 1940 representam um perodo em que as reivindicaes

    das mulheres haviam, mesmo que formalmente, sido atendidas: podiam votar e ser

    votadas, ingressar nas instituies escolares e participar do mercado de trabalho.

    Nestas dcadas, houve um refluxo na organizao das mulheres. Este perodo

    marcado pela preparao e exploso de uma nova guerra mundial. Mais do que

    nunca, valoriza-se a participao da mulher no mercado de trabalho, pois torna-se

    necessrio liberar a mo-de-obra masculina para as frentes de batalha. Mas com

    o fim da guerra e a volta da fora de trabalho masculina, que a ideologia que

    refora a diferenciao dos papis por sexo, atribuindo condio feminina o

    espao domstico, fortemente reativada.

    Simone de Beauvoirfoi uma voz isolada neste momento de transio (do

    primeiro momento movimento sufragista para o segundo do movimento

    feminista, o de contestao scio-poltica). No final da dcada de 40, ela escreve o

    livro "O Segundo Sexo", que denuncia as razes culturais da desigualdade sexual.

    Sua anlise constitui um marco na medida em que delineia os fundamentos da

    reflexo feminista, que ressurgir a partir da dcada de 60. J estavam dados os

    primeiros passos na construo de uma teoria feminista. A autora analisa a

    condio inferior da mulher, inferioridade que no precisa ser um destino:

    "Ningum nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biolgico, psquico,econmico define a forma que a fmea humana assume no seio da sociedade; oconjunto da civilizao que elabora esse produto intermedirio entre o macho e ocastrado que qualificam o feminino."4

    A segunda onda do movimento feminista inscreve-se nos anos 60-70, no

    contexto de intensos debates e questionamentos desencadeados pelos movimentos

    de contestao europeus.

    O movimento feminista organizado surgiu nos EUA, na segunda metade

    dos anos 60. Logo, expandiu-se pelos pases do ocidente, defendendo a libertao

    da mulher, e no apenas sua emancipao. Emancipar-se seria equiparar-se ao

    homem em direitos jurdicos, polticos e econmicos. J libertar-se seria querer ir

    4In: BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Trad. Srgio Milliet. So Paulo: Crculo do Livro,1990: 13; V.2.

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    mais adiante, marcar a diferena, realar as condies que regiam a alteridade nas

    relaes de gnero. Mulheres norte-americanas, inglesas, francesas e italianas

    ganham as ruas, gritando palavras de ordem como "o privado poltico, nosso

    corpo nos pertence". Muitas queimam seus sutis, em pblico.

    Na Argentina, nessa mesma poca, as "Madres de la Plaza de Mayo",

    mulheres que, at hoje, mantm uma viglia permanente pelos membros de suas

    famlias desaparecidos, opositores de esquerda que haviam iniciado uma guerrilha

    contra o regime e foram vitimados pela perseguio poltica da ditadura, tambm

    estavam mobilizadas, combatendo violaes dos direitos humanos e violncias

    contra as mulheres. O modelo tradicional do ser mulher entrou em crise, e um

    novo perfil feminino comeou a se esboar tambm na Amrica Latina.

    A partir de 1977, o movimento feminista fragmentou-se em diversas

    tendncias, algumas mais voltadas para a descriminalizao do aborto, outras

    centradas na isonomia profissional com os homens. Muitas mulheres, aps

    conquistar postos de trabalho antes ocupados exclusivamente pelos homens,

    lograram tambm assumir funes polticas de mando.

    Violentadas em sua dignidade, atualmente encontramos mulheres despidas

    em outdoors e capas de revistas, reduzidas a iscas de consumo, como na

    propaganda televisiva, ridicularizadas em programas humorsticos, condenadas

    anorexia e beleza compulsria pela ditadura da moda.

    O movimento feminista denuncia tanto a violncia fsica praticada contra o

    corpo da mulher, como a simblica, que faz de seu sexo um objeto desvalorizado.

    Existe um conjunto de idias, de imagens e de crenas, que legitima e d

    continuidade s diferenas acirradas de papis sexuais. O movimento vem

    travando uma luta, a fim de acabar com o conceito de "masculino" e "feminino"

    na sua posio de "superior" e "inferior".Para Oliveira (1993: 55-6), so inegveis as conquistas das mulheres at o

    fim do sculo XX:

    As mulheres passaram a fronteira do mundo dos homens escamoteando o ladofeminino da vida. Enfrentaram a concorrncia no espao pblico carregandoconsigo, escondidas, as razes no espao privado... Procuravam assimcorresponder a um novo perfil de mulher que emergia da agonia de umparadigma. Obedeciam a uma mensagem dupla e contraditria: para ser

    respeitada, pense, aja e trabalhe como um homem; mas para ser amada continuesendo mulher. Seja homem e seja mulher.

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    Outras observaes a respeito das mudanas comportamentais das

    mulheres com o advento do movimento feminista so feitas pela autora ( ibid: 13,

    72):

    As mulheres tentaram a passagem da fronteira do mundo dos homens,arrastando, escondidas, as razes plantadas em casa. Adotaram estilos de vidamasculinos sem que os homens se feminizassem. Assim ficaram, entre doismundos, compatibilizando estilos de vida e modos de comunicao diferentes,recebendo da sociedade uma ordem esquizofrenizante: seja homem e sejamulher. E foi assim que o sonho de igualdade tropeou no impossvel.(...) Odiscurso masculino sempre definir o que uma mulher normal. Seu lugar, seupapel, sua imagem e sua identidade.

    O destino natural das mulheres, ser me, esposa, e dona de casa, marcado

    pela maternidade, casamento e dedicao ao lar, foi profundamente revolucionado

    no sculo XX. nesse contexto que as feministas se viram frente ao desafio de

    demonstrar que no so caractersticas anatmicas e fisiolgicas que definem as

    diferenas entre as desigualdades de gnero, mas a militncia pelos direitos

    igualitrios entre os seres humanos.

    Portanto, como sinaliza Louro (2003: 16), nesse contexto de

    efervescncia social e poltica que o movimento feminista ressurge, no sexpressando-se atravs de protestos pblicos, mas sim atravs do surgimento dos

    estudos da mulher.

    A lingstica feminista vai propor colocar a linguagem numa agenda

    poltica, e a anlise do discurso feminino, seja ele em que contexto for, ser a

    maneira pela qual feministas e crticas da linguagem marcaro, mais do que sua

    investigao acadmica, sua militncia neste movimento scio-poltico.

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    2.2 A lingstica feminista

    Nesta seo, observaremos a importncia da relao da lingstica

    feminista com os estudos do/sobre (o) discurso feminino. Em Cameron (1999: 01-

    21), encontramos informaes importantes em relao ao papel da mulher

    enquanto crtica da linguagem.

    A autora apresenta, ao longo do livro, diversos estudos coletados em

    diferentes reas do conhecimento a respeito do discurso feminino quando visto

    como objeto de estudo da lingstica. Afirma que o termo crtica

    freqentemente usado como sinnimo de censura, ou seja, uma avaliao

    negativa quanto ao papel desempenhado pela mulher vista como analista da

    linguagem. Tal atributo, para a mulher no seria, muitas vezes, permitido. E

    isso faz com que um dos temas freqentes para a crtica feminista da linguagem

    seja a possibilidade de se reverter essa crena.

    Para isso, da relao da lingstica feminista com os estudos do/sobre (o)

    discurso feminino, a autora sugere trs temas condutores para a anlise crtica

    feminista, sendo estes: (i) o tema do silncio e da excluso; (ii) o tema da

    representao; e (iii) o tema sobre as relaes entre gnero e a linguagem.

    Em relao ao tema do silncio e da excluso, a autora comenta sobre a

    questo da voz da mulher na fala e na escrita. A reivindicao de que mulheres

    so mudas ou silenciadas no pode significar que elas so sempre, e em todo

    lugar, literalmente mudas, nem que elas caream da capacidade de usar a

    linguagem, inalienvel patrimnio hereditrio de muitos seres humanos. Isso no

    pode igualmente significar que existam lingistas no-ativistas associados a

    mulheres mais do que a homens. Isto significa no somente escrever sobre coisas

    diferentes, mas, para alguns crticos, refazer estilos literrios ou igualmente(re)criar uma linguagem prpria. Silncio pode tambm significar censura por

    temer parecer ridicularizada, atacada ou ignorada pelos outros;

    Sobre o tema da representao, as feministas tm concludo que sua

    linguagem sexista, j que esta representa ou nomeia os termos sobre o ponto de

    vista masculino e de acordo com as crenas estereotipadas sobre mulheres,

    homens e as relaes entre eles. Tais crticas da linguagem tm argido que isto

    acontece porque, como Ado fora nomeado como criao de Deus no livro doGnesis, os homens tm tido o monoplio da nomeao. E as conseqncias so

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    srias porque nomes no so somente espelhos da realidade pr-existente, nem

    rtulos arbitrrios relacionados a esta, mas uma forma cultural de fixar o que pode

    ser contado como algo concreto no frtil universo imerso em uma multitude de

    realidades possveis.

    Quanto s relaes entre gnero e linguagem, tema de como e para que

    finalidade ns, mulheres, determinamos o gnero atravs de nossas condutas

    lingisticas, a diferena sexual aproxima alguns aspectos do comportamento da

    mulher e do homem e, por conseguinte, prope uma explanao de algumas

    diferenas que emergem como parte da nossa herana intelectual da cultura pr-

    feminista. Muitos estudos tm distinguido trs abordagens explanatrias usadas

    pelas feministas, rotuladas: como dficit, dominao e diferena; tais

    abordagens sero tratadas na prxima seo.

    Cameron (1999) relata, ainda, que tais abordagens so muito importantes

    para se entender a lingstica feminista. A abordagem do dficit sugere que

    maneiras femininas de falar, quer pela natureza, quer pela educao, so

    deficientes em comparao s formas masculinas. J a abordagem da dominao

    sugere que maneiras femininas so menores que o resultado do seu gnero que de

    suas posies subordinadas em relao aos homens. A abordagem da diferena

    sugere que formas femininas de falar reflitam normas lingsticas e sociais de

    subculturas femininas, j que entende-se que a maioria das mulheres passam em

    seus anos de formao. A diferena entre mulheres e homens semelhante

    diferena entre falantes de duas culturas, os quais no esto bem familiarizados

    uns com os outros e podem suscitar, portanto, mal entendidos entre os mesmos.

    O debate dominao / diferena no , no entanto, apenas uma arena onde

    feministas esto engajadas em argumentos com o outro. Pesquisadores, em ambas

    abordagens, tm atrado crticas atravs da corrente anti-essencialista cada vezmaior e proeminente na lingista feminista. Feministas anti-essencialistas

    conjeturam todas as tentativas de situar gnero na qualidade no-silenciada,

    fundamental e fixa em mulheres ou homens, seja pela natureza ou educao.

    Percebe-se uma tensa relao entre feministas anti-essencialistas e a

    tendncia no feminismo (e em outros movimentos sociais contemporneos) de

    estabelecer polticas de identidades. As reivindicaes polticas so formuladas

    e validadas numa base onde essas compartilham com uma certa identidade e/ouposio social, tais como lsbicas, mulheres deficientes, senhoras, mulheres

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    negras, judias, mulheres operrias etc. Esta tendncia ditada como as

    tendncias anti-essencialistas que dizem: que ns devemos atender s diferenas e

    conflitos entre mulheres distantes do que ns fizemos no passado.

    Polticas de identidades tm penetrado mais profundamente na crtica

    feminista da linguagem, em dois modos principais. Do ponto de vista do debate

    sobre a correo / exatido poltica, em alguns casos, prticas que so ilustradas

    como correo / exatido poltica podem ser vistas como reflexes de polticas

    de identidades. Cada vez mais, a crtica feminista da linguagem sexista tem sido

    sob-somada aos debates nesta extensa discusso da representao de grupos os

    quais tradicionalmente tm sido definidos como outros.

    As polticas de identidades tambm, de outra forma, tm afetado a crtica

    feminista da linguagem e esta mais relevante para os estudos sociolingsticos

    de comportamento de gneros discursivos. H pouco, os pioneiros da crtica

    feminista comearam por posicionar a questo: como as mulheres so diferentes,

    lingisticamente, em relao aos homens? Atualmente algumas feministas esto

    estabelecendo questes como: como mulheres negras so diferentes,

    lingisticamente, em relao s mulheres brancas?, ou como lsbicas so

    diferentes, lingisticamente, em relao s mulheres heterossexuais?

    Questes de identidade e diferena, diversidade e conflito, entre mulheres,

    representam um importante tema nos atuais debates feministas sobre a linguagem.

    Cameron (1999: 20) conclui seu texto defendendo uma noo da crtica

    feminista da linguagem, segundo a qual feministas engajadas neste projeto podem

    no concordar entre elas, mas esto at agora num dilogo produtivo umas com as

    outras.

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    2.3 Teorias sobre gnero/ sexo

    Como foi observado, as teorias sobre gnero/sexo esto relacionadas aos

    estudos culturais e feministas.

    Primeiramente, sinalizarei as teorias essencialistas que surgiram no fim

    dos anos setenta e foram classificadas, segundo suas pesquisadoras, como: (i)

    teoria do dficit, cf. Lakoff (1975); (ii) teoria da dominao, cf. Cameron (1995);

    e (iii) teoria das duas culturas (da diferena), cf. Tannen (1994, 1996), sendo esta

    focada nos papis inadequados como a origem da diferena, em que a abordagem

    cultural ou da diferena seria focada na socializao da separao dos sexos

    como a origem; cf. sinalizam Kendall & Tannen (2001: 554).

    Na teoria do dficit, h um suposto bilingismo da mulher, ou seja, h

    diferenas da linguagem relativas ao gnero. A teoria das duas culturas,

    relacionada s diferenas sociais de necessidades do homem e da mulher, leva-nos

    a culturas comunicativas diferenciadas pelo gnero, cf. Tannen (1986). Na

    abordagem relativa ao poder, no h s diferenas culturais, mas tambm de

    autoridade exercidas entre ambos os gneros, de acordo com Lakoff (1975) e

    Cameron (1995).

    Algumas destas teorias, ao contrrio, propem uma postura no-

    essencialista ao classificar gnero. Durante a dcada de noventa, j se percebe,

    pelos estudos das teorias sobre gnero/sexo, uma viso mais realista, ou seja, no-

    essencialista, que no sugere uma correspondncia entre as identidades e aspectos

    da realidade social.

    Na teoria performtica/construcionista, os atos/performance dos

    gneros/sexos acontecem de acordo com os vestgios culturais, isto , expresso em

    comportamentos lingsticos, prticas e/ou aes em contextos sociais particulares de acordo com McLlvenny (2002).

    Procuro apresentar um breve panorama dessas teorias e o quanto elas

    contriburam para os estudos sobre gnero.

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    2.3.1 Teorias essencialistas

    Surgiram no final dos anos setenta. Propem uma postura essencialista

    sobre gnero.

    2.3.1.1 Teoria do dficit

    Lakoff (1975) foi quem identificou as formas lingsticas, para ela,

    enfraquecidas ou mitigadas do discurso feminino. Suas observaes forneceram

    um ponto de partida para explorar a complexidade das relaes entre gnero e

    discurso.

    Esta teoria aponta que a linguagem da mulher seria deficitria em relao

    do homem, ou seja, existiria um suposto bilingismo da mulher, isto , formas

    lingsticas inerentes fala feminina e masculina. As caractersticas da fala da

    mulher apontariam para essa deficincia/desvio atravs de um menor nmero de

    palavras em seu vocabulrio, com sentenas menos complexas e um estilo que

    veicularia a incerteza. Esta teoria teve como conseqncia um foco de pesquisas

    voltado para a diferena da fala feminina em relao masculina; criou-se a

    expectativa de que as mulheres deveriam interpretar a linguagem do homem e

    pressionou-se para que a mulher usasse a linguagem do homem, ou seja, treinasse

    a diretividade masculina, quando pretendesse ser, por exemplo, assertiva.

    Ao longo dos anos, essa abordagem sofreu muitas crticas, por diversos

    pesquisadores. Para Cameron (1995), esse paradigma, denominado de paradigma

    da dominao, ou de teoria do dficit5, representa o momento do ultraje dofeminismo, com a opresso das mulheres, isto , da sua linguagem, j que esta

    seria vista como esvaziada, destituda de valor em relao masculina.

    Em Oliveira (1993: 78-81) encontramos algumas reflexes sobre esta

    teoria:

    5 A autora no apresenta diferenas entre a abordagem relativa ao poder (teoria/paradigma dadominao) e teoria do dficit.

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    A existncia de dois discursos, dois estilos, dois modos de expresso, umfeminino e outro masculino, tributrio cada um do pertencimento a uma esfera devida e a um espao social, merecem uma produo terica importante, sobretudode pesquisadores norte-americanos (...) Lakoff afirma que: A linguagem nos usatanto quanto ns usamos a linguagem e (...) nossa escolha de formas deexpresso guiada pelos pensamentos que queremos expressar, da mesma formaque a maneira como sentimos as coisas no mundo real governa a maneira comonos expressamos sobre essas coisas.

    2.3.1.2 Teoria da dominao

    A abordagem relativa ao poder tambm conhecida como teoria da

    dominncia/dominao teve a contribuio das pesquisas de Lakoff (1975) e

    uma releitura por Cameron (1995). Tal teoria faz uma crtica em relao s outras

    teorias (das duas culturas/diferena e do dficit) medida que prope a reflexo

    sobre o papel do discurso feminino frente ao masculino hegemonicamente

    construdo.

    Nesta teoria, as autoras acreditam que no existem problemas culturais que

    sinalizem problemas discursivos entre os sexos. O problema da

    dominao/dominncia e/ou poder.Lakoff (1975) considera que a fala da mulher seria caracterizada por

    implicaturas conversacionais. A autora atribui caractersticas prprias ao falar

    feminino, como por exemplo, ser menos assertivas ao comunicar-se. Alm disso,

    a fala da mulher tambm seria marcada por formas de polidez como, por favor,

    muito obrigada. Sob o ponto de vista comunicativo, a autora considera a fala

    feminina como hesitante, trivial, educada e incerta. Ao falar como uma dama, por

    exemplo, a mulher seria vista como insegura e incapaz de participar de discussessrias. A autora estabelece relaes entre a natureza da fala da mulher com a falta

    de poder da mesma na sociedade norte-americana, por exemplo.

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    2.3.1.3 Teoria das duas culturas (da diferena)

    A teoria das duas culturas (ou paradigma da diferena) originou-se nos

    estudos da lingstica antropolgica em que vrios estudiosos contriburam para

    constituir essa proposta sobre a natureza da fala feminina em contraposio

    masculina.

    Esta seo baseia-se nos estudos de Tannen (1994,1996). Pressupe que as

    diferenas sociais levam a culturas comunicativas diferenciadas em funo do

    gnero dos falantes. Haveria, assim, diferentes culturas de fala nos estilos

    conversacionais de homens e mulheres.

    Revela, ainda, que os problemas de comunicao entre os sexos se do por

    homens e mulheres pertencerem as diferentes subculturas scio-lingsticas, tendo

    diferentes concepes da conversao e interpretao. As diferenas sociais das

    necessidades do homem e da mulher levam-nos a culturas comunicativas

    diferenciadas pelo gnero. A origem, por exemplo, seria nas formas de

    socializao da criana, em que meninas brincam em ambientes fechados, em

    pequenos grupos, dedicando menos tempo aos jogos, tendo relativa intimidade

    entre elas e diferentes formas de lidar com o conflito. J no mundo dos

    meninos, as brincadeiras se do com grupos maiores, em jogos competitivos,

    grupos mais organizados, e, a fala, usada para: (i) marcar posio de dominao;

    (ii) atrair e manter a audincia; e (iii) afirmar-se quando os outros tm a palavra.

    A indiretividade na fala feminina e a assertividade na fala masculina estariam

    relacionadas a diferenciaes de princpios dos relacionamentos do ponto de vista

    do gnero: a intimidade e a independncia.

    Para Tannen (1994, 1996), essas diferenas podem dar ao homem e

    mulher diferentes vises da mesma situao. O estilo de fala da mulher seria maisindireto, seja em termos da indiretividade conversacional ou da indiretividade por

    implicaturas, em funo da inferncia conversacional.

    A autora apresenta sinais em que homens e mulheres no s possuem

    estilos interativos diferentes, mas tambm tpicos (assuntos) preferidos e

    maneiras diferentes de us-los. Parece que mulheres se detm por muito tempo em

    um tpico, dando informaes sobre si mesmas, seus sentimentos e relaes.

    Homens, por outro lado, rapidamente mudam de tpico e raramente falam de simesmos.

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    2.3.2 Teorias no-essencialistas

    A partir dos anos noventa, novos debates surgem com o objetivo de rever

    as teorias essencialistas de gnero. Defendem uma viso no-essencialista, ou

    seja, no propem uma correspondncia entre as identidades e aspectos da

    realidade social.

    2.3.2.1 Teoria performtica/construcionista

    McLlvenny (2002: 01-48) critica a viso realista de gnero, em que existe

    uma correspondncia entre identidade e algum aspecto da realidade social. Gnero

    seria, para o autor, um atributo varivel, expresso em comportamentos

    lingsticos, prticas e/ou aes em contextos sociais particulares. A fala no seria

    apenas um veculo para manifestar propriedades essenciais: algum fala de

    determinada forma por ser homem ou mulher.

    O autor apresenta uma nova abordagem a vez do construcionismo em

    oposio s teorias essencialistas, em que gnero seria manifestado nas atividades

    cotidianas e nas prticas comunicativas, McLlvenny (2002: 02). Ele tambm

    prope a pesquisa do uso da linguagem em relao orientao sexual e

    formao de identidades sexuais.

    O autor mostra, ainda, as contribuies dessa nova abordagem na

    confluncia de quatro teorias recentes ou ordens metodolgicas, sendo estas:

    (i)

    Ordem da interao nos estudos de prtica social e cultural;(ii) Ordem da linguagem na psicologia social;

    (iii) Ordem da performatividade nos estudos de gnero e teoria

    queer tenta explicar como o binarismo hetero/homossexual funciona;

    coloca a homossexualidade no mais pertencente a uma minoria social,

    mas como uma poltica do conhecimento e da diferena;

    (iv) Ordem corporal atravs das cincias humanas e sociais

    para a anlise da personificao situada (e virtual).

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    Pesquisadores de diferentes reas de estudo, como a psicologia, lingstica,

    sociologia, dentre outros, tm analisado a fala em interao e colocam-se

    insatisfeitos com os conceitos de gnero e sexo por estarem mal-concebidos em

    seus respectivos campos de estudos. Para McLlvenny (2002: 06), devemos

    repensar estes conceitos, pois a influncia das idias ps-estruturalistas no

    feminismo resultou na diferena entre esses dois conceitos: sexo biolgico e

    gnero social e cultural.

    Kitzinger apud McLlvenny (2002: 55-6) esclarece que as feministas

    engajadas nos estudos da linguagem tm enfatizado a necessidade de entender que

    gnero (e sexualidades) so socialmente construdas e continuamente produzidas e

    reproduzidas na interao social, ou seja, deve-se entender o uso da linguagem

    como uma maneira de produzir essa identidade. Quem somos, depende de como,

    repetidamente, desempenhamos, extraordinariamente, a fala que constituir aquela

    identidade.

    Sundn apud McLlvenny(2002: 298) aborda tambm a noo de

    performativo. A autora reporta-se aos estudos de Butler6 uma estudiosa da teoria

    queer e justifica que o termo derivado de performancee que no h gnero

    biolgico pr-existente sobre os quais os atos de gnero atuam como marcas

    culturais. A corporificao de sexo e gnero materializada atravs da reiterao

    de atos na linguagem.

    Em McLlvenny (2002: 113), observamos que o autor faz algumas

    reflexes sobre a performatividade e esclarece que as cincias humanas e sociais,

    em diversos campos de pesquisa, tm investigado sobre a natureza da

    performanceou performatividade. Essas distintas reas procuram explicar como

    algum est fazendo algo por engajamento em uma ao, comportamento ou

    prtica particular. O autor sugere que observemos na ordem da performatividadepelo menos quatro sentidos diferentes:

    (i) O sentido do agir (ou fazer) como o resultado de

    comportamentos particulares, sinais (signos) ou usos da linguagem;

    (ii) Normas, ordens ou estruturas que so expressas, executadas

    ou construdas atravs de certos rituais, prticas e/ou procedimentos;

    6BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. London: Routledge,1990.

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    (iii) Uma criao do ser como um efeito retrospectivo de

    comportamentos particulares, aes, prticas e/ou relaes;

    (iv) Entender, num sentido mais amplo, uma possibilidade de

    normas ou relaes que existem e se alteram para incluir outras

    entidades e assim transformar nosso senso do que real, o que social

    e o que habitvel.

    Coates (1997) relata que a performance feminina no acontece da mesma

    forma em todas as circunstncias, pois nossa cultura oferece-nos um vasto

    campo de possibilidades de ser (mulher/0.

    Para Coates, discursos diferentes oferecem-nos acesso a diferentes

    feminilidades. Estes no justificam relaes e entidades de representaes

    sociais, mas constroem-nas e/ou constituem-nas de diversas maneiras.

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